Dilogos de Aproximao: Os de 70 e os de Orpheu

Pedro Gabriel Reis Albuquerque

1. INTRODUO

Concedendo especial enfoque aco da Gerao de 70 e Gerao de

Orpheu, o presente artigo sobrepem as atitudes das geraes destacadas a fim de

averiguar afinidades ideolgicas e de ao no que se poderia designar de leitura de

aproximao.

Com efeito, para consecuo de tal empresa, problematizar-se-, num primeiro

momento, as diferentes acepes do conceito gerao. Segundamente, admitindo

que o esprito das duas Geraes se construiu, paradoxalmente, em oposio e em

favor de Portugal, considera-se pertinente a contextualizao das diferentes

Geraes na tela histrico-social.

Consumadas as premissas anteriores, de crer que existam condies para

concretizar uma anlise sobre a ao de uma e de outra Gerao. Neste sentido,

como ponto quatro, prope-se uma anlise individual dos percursos de cada uma.

Em relao aos de 70, destacar-se- a ideologia do grupo atravs de episdios

sumrios, tais como: a Questo Coimbr, as Conferncias de Casino ou o Cenculo

- centro de fabricao de Carlos Fradique Mendes. Seguidamente, avanar-se- para

os rficos e para a sua especificidade enquanto grupo.

Na ltima parte do trabalho, estabelecido um paralelismo entre os diferentes

percursos geracionais e prestar-se- especial ateno s diferentes produes

coletivas das duas geraes: Carlos Fradique Mendes e Orpheu.

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2. Aproximao ao conceito de gerao

A acepo prototpica do item gerao remete para uma leitura

interconexionada com a rea da Biologia. De facto, esse um dos sentidos

propostos na entradas lexicogrfica: BIOL. 1. Grupo de indivduos oriundos dos

mesmos progenitores (CHORO, 2000:311). Imbricando-se com o sentido de gerar,

exprime o significado de continuidade histrica atravs da novidade do nascimento.

Por extenso, a enciclopdia amplia a acepo anterior para medida da vida

humana(idem).

Iniciando o exerccio de aproximao s possveis significaes que

interessaro ao estudo, o termo gerar implica uma baliza de tempo compreensvel -

como a durao dos homens que vivem nele. Neste sentido, todos os homens vivem

numa gerao - os do passado, os contemporneos e os do futuro. Este tipo de

relacionamento temporal o que preside a anlise sociolgica numa perspetiva

longitudinal onde se assume, como critrio, a experincia de um fenmeno histrico

comum - neste caso o nascimento - num perodo temporal partilhado. O

nascimento, no mesmo segmento temporal, permite uma coopresena que poder

resvalar na tendncia [para] interpretar certos acontecimentos da mesma

maneira (ibidem).

de notar a predominncia da matriz biolgica e cronolgica nos argumentos

anteriores. Todavia, possvel antecipar uma dissemelhana no Dicionrio da

Academia das Cincias que prope, como uma das acepes para gerao, um

conjunto de pessoas que vivem numa poca [ou] pessoas aproximadamente da

mesma idade e que, numa determinada poca ou perodo, afirmam as suas

diferenas e os seus prprios modelos de conduta ou pensamento (CASTELEIRO,

2001:1891). A ltima proposta passvel de articular as duas geraes, e logra

distinguir os elementos das referidas geraes dos seus contemporneos.

Completamos a proposta anterior com novo afastamento da matriz biolgica

supramencionada ao adoptar uma acepo mais restrita de criao de ideias e de

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obras em que essas ideias se reflectem por um determinado nmero,

inevitavelmente restrito, de grandes figuras da literatura portuguesa num

determinado momento de confluncia de tendncias culturais (MACHADO, 1986:15) -

o que implica uma conotao infixada no elitismo intelectual e no prprio sentido de

marginalidade inerente minoria.

3. Duas geraes dois Portugais ou dois lados da mesma degenerao?

Entre 1836 e 1850, enquanto iam nascendo os membros da Gerao de 70,

cicatrizavam as feridas da guerra civil e pressentia-se a Regenerao que lograria de

um perodo de maior serenidade governativa que gravitava em redor do progresso

material. Porm, a melhoria das infraestruturas permitia-se com recurso a capital

estrangeiro que endividava o pas e no cumpria a capitalizao intelectual. A

depresso que se instaurou causou a instabilidade e a rotatividade do poder. As

contradies da monarquia constitucional comeavam a ser evidentes. A conjuntura

gerou transformaes sociais, polticas e econmicas no pas - catalisadoras do

descontentamento e da oposio s instituies vigentes. Este panorama acentuava

as diferenas e as distncias de Portugal em relao aos vizinhos europeus.

Segundo Loureno (2001:18), o problema de Portugal ser Europa e, ainda assim,

estar margem dos demais pases europeus. O interlocutor da Gerao de 70 era

esta sociedade que se caracterizava pela ausncia de proletariado, elevados ndices

de analfabetismo, e que lhe escapava qualquer forma de organizao social e de

revoluo social.

Os finais do sc. XIX constituem para Portugal tempos de agitao social e de

degradao do sistema constitucionalista. Marcam-no alternncias frustradas de

inovao de esprito governativo (maxime com o movimento Vida Nova polarizado

em Oliveira Martins) e regressos ao pastoso e proteico rotativismo. Conforme

destaca Seabra (2003:9), os trs ltimos lastros de Oitocentos so sacudidos em

Portugal por acontecimentos que convulsionam a conscincia nacional e agitam

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numerosas massas, acicatadas pelas propagandas reacionria, republicana e

libertria. Portugal viveria o verdadeiro mal-de-sicle como se absorvesse a imagem

de finis patriae. Com o sistema poltico de rotativismo esgotado, Martins (2007:14)

sublinha que a pastelaria poltica gerara o reino puro da intriga. Era o agonizar da

monarquia, apesar de todas as boas intenes e qualidades do prprio monarca.

Tinha soado, j em 1890, o quarto de hora de Rabelais, momento fatal a requerer

decises dramticas para a ptria doente.

A conjuntura citada, qual se somaria a bancarrota de 1891-92 e o episdio

do Ultimatum Ingls, abriria uma ferida de morte em Portugal, deixando-o

moribundo e com a conscincia da diluio do Imprio. Imagem idntica a outras

praas, evoque-se a situao da vizinha Espanha e a perda de Cuba. Esta

escoriao valeu a Eduardo Loureno o seguinte reparo: [os europeus] depois de se

terem retirado das orlas imperiais onde se imaginavam instalados por direito divino,

regressaram mais ou menos gloriosamente aos velhos parapeitos. (...) Nenhuma

barca europeia est mais carregada de passado do que a nossa (LOURENO,

2004:61).

O estado do paciente nos seus diversos momentos, requeria a interveno das

duas geraes. Respeitando a cronologia, inicia-se a anlise pela Gerao de 70.

4. Gerao de 70

4.1 O esprito na ao

Se atendermos a um cenrio chamado Frana, inferimos que a guerra

estalou em 1862 quando algumas telas de Manet e dos primeiros impressionistas,

Degas e Monet, foram recusadas pelos acadmicos. Organizou-se, nesse momento,

o Salon des Refuss - embrio da exposio impressionista de 1874 e dos

consequentes Sales dos Independentes. possvel argumentar que a pintura no

literatura. Todavia, como atesta DAlge (1989:7) o problema de fundo o mesmo na

medida em que a vanguarda prope uma nova weltanschauung, isto , uma nova

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concepo do mundo - o que implica uma transformao radical de todos os

valores. No mesmo diapaso DAlge completa

A vanguarda traz em si uma proposta revolucionria que entra no s em choque com os padres aceites e assimiliados, como prope meios de expresso para modificao desses mesmos padres. Ela assume uma postura ideolgica, oeferecendo sociedade uma possibilidade de mudana, atravs de uma nova viso das coisas, e a utilizao de uma nova linguagem (DALGE, 1989:8).

A gerao de que falamos, revela, em linha com o exposto, o trao identitrio

da partilha de uma mensagem de carcter revolucionrio e fez tudo o que era

necessrio para que a sua irrupo no nosso palco cultural provinciano no ficasse

desapercebida (LOURENO; 2011; 37). Urgia nestes espritos elevados da Gerao de

70 romper com a vivncia

achatada entre duas pginas de um cdigo, ou seja, num mundo mediano e regrado, sem inveno nem iniciativa intelectual, onde as ideias, para agradar, devem ser como as maneiras, geralmente adoptadas e no individualmente criadas [e que] consiga tornar-se indcil e libertar-se da canga de servilismo e da falta de originalidade que afecta [o portugus] e, ainda, dessa espessa camada de lugar-comum que compem a sua pretensa erudio (PIEDADE, 2008:26).

E, tambm, criar uma atmosfera de renovao cultural que atrasse a

ateno de intelectuais, escritores, polticos, pedagogos, etc., para o que se passava na Europa, assim se afirmando um impulso de modernizao que, mesmo enunciado em termos entusiasticamente juvenis, muito significativo; procurando fugir a uma dominante do nacionalismo (...) e noutro plano do nosso romantismo - que estagnara sobre o signo da Regenerao, em atitudes de autocontemplao, de alienao cultural e de consequente esvaziamento crtico (REIS, 1990:25).

Assumindo a responsabilidade da cruzada intelectual que per si

representativa da prpria possibilidade de regenerao, a Gerao de que fala

encetar uma srie de esforos para cumprir o dilogo europeu do qual Portugal no

era subsidirio. Nos pontos seguintes, observar-se-, com maior destaque e

propriedade, os principais momentos da sua ao.

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4.2 A Questo Coimbr

A Questo Coimbr foi uma quezlia travada por Antero de Quental e Tefilo

Braga contra os valores da tradio da escola de Antnio Feliciano de Castilho. A

contenda foi motivada pelo facto de lhes ter sido contestada a obscuridade estilstica

das suas primeiras produes poticas em favor de Pinheiro Chagas que, com o seu

Poema da Mocidade, colhia, em posfcio algrafo de Castilho, a sua glorificao e

emparelhamento elogioso a outros como Mendes Leal ou Toms Ribeiro.

Concomitantemente, deprimiam-se as plsticas, estticas, filosofias e

transcendncias em que mergulhavam os engenhos juvenis dos dois

aorianos (HOMEM, 1995:101). O mesmo autor, contextualiza

A refrega estalou pelos fins de 1865. Por essa altura j se faziam sentir os efeitos nocivos da poltica econmica levada a cabo pelo Fontismo. A solvncia dos emprstimos que os diversos governos regeneradores entenderam contrair no estrangeiro, para o financiamento da poltica de melhoramentos materiais obrigou ao aumento progressivo da carga fiscal. Era previsvel, nestas circunstncias, que o interregno regenerador, inicialmente pacfico e consensual, viesse a ser posto em causa por vozes dissidentes, defensoras de outras solues (idem).

Parece-nos que deve haver um afastamento da leitura do conflito como

estritamente intraliterrio. Alis, precedendo a redao das Odes Modernas j Antero

presidia aces contestatrias. Os vultos intelectuais coevos imputavam-lhe a

heterodoxia das atitudes e a desmesura das intervenes. Antero de Quental

protagonizara, em 1862, a retumbante evacuao da Sala dos Capelos da

Universidade de Coimbra como forma visvel de protesto da Sociedade do Raio -

agremiao secreta que tambm fundara - contra o rigor disciplinar do Reitor Baslio

Alberto de Sousa Pinto que viria a demitir-se no ano seguinte. Tambm ele, redigiu o

Manifesto dos estudantes da Universidade de Coimbra opinio ilustrada do pas.

Antero de Quental tambm chefiara a contestao estudantil transferncia de

efetivos militares para a cidade de Coimbra que o governo ordenara para prevenir a

ampliao de distrbios universitrios - provocados pela recusa oficial de um perdo

de exames.

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Por seu turno, Castilho, que contava com 65 anos de idade, era tido como

exactamente o contrrio de um rebelde. Grande purista, mestre do idioma, dotado de escassa imaginao criadora, nunca fora realmente um romntico, embora seja em regra mencionado como terceiro mentor do movimento. Formado na dissoluo do neoclassicismo arcdico, que nunca abandonou, encarnava uma peculiar adaptao das formas externas do Romantismo a um esprito pseudoclssico (PIEDADE, 2008:141).

Assim polarizados, Castilho e Antero eram prosopopeia de valores literrios

imiscveis. O primeiro representava os valores literrios dominantes e o segundo

buscava uma implicao tica e social patente na figura social do poeta, anttese do

esvaziado universo temtico do romantismo. Recuperando a inteno de

afastamento de uma leitura puramente literria do fenmeno, o debate suscitado

(...) embora tenha tido, de um ponto de vista mais imediato, motivaes

prioritariamente esttico-literrias, teve tambm, enquanto incio de um processo de

constestao que desejar reformar em profundidade a sociedade portuguesa,

outras implicaes de efeito mais mediato no tempo (PIEDADE, 2008:144).

A Questo Coimbr pode ser tida como uma antecmara anunciadora das

tenses histrico-polticas e histrico-sociais que iro esmaltar as evolues futuras.

Concluindo, a polmica de Coimbra, de 1865, pode ser definida como um

movimento de vanguarda. Na verdade, o que menos importava eram os escritos de

Antnio Feliciano de Castilho, ou os versos bem comportados e insossos de Pinheiro

Chagas. O que estava em jogo era a novidade: o novo pensamento filosfico que,

descendo os Pirinus, atravs da linha frrea, recm-inaugurada, trazia aos

intelectuais portugueses as obras de Proudhon, Renan, Marx, Darwin, Spencer e

Michelet" (DALGE, 1989:7).

4.3 O Cenculo

Como atesta Serro (1985:193), com excepo de Anos de Lisboa (algumas

lembranas) de Jaime Batalha Reis, todos os restantes testemunhos conhecidos

sobre O Cenculo lisboeta so ou demasiado tardios relativamente ao evento ou

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demasiado apologticos ou anedticos para que neles se possa depositar grande

confiana. Aquando da concluso do curso de Direito, Ea de Queirs encontra

Jaime Batalha Reis que, por sua vez, terminava Agronomia e Engenharia Florestal.

Os dois ficariam amigos inseparveis partilhando longos seres na Travessa do

Guarda-Mor, n19, 1Andar. Antes da chegada de Antero de Quental, at 1868,

ocupavam-se pelo convvio inconsequente. Note-se que a nomeao do grupo

tardia, e sugere no haver sequer conscincia de grupo (cf. LEMOS,1981:173). Serro

(1985:193-197) sugere que a convivncia at 1867 se limitava a Ea e a Salomo

Sragga. , posteriormente, estendida a Augusto Machado que contaminava com a

msica de Paris os anteriores. Ea, a braos com o incio da sua produo escrita

literria, manifestava como principais norteadores Heine, Nerval e Michelet. Aos

portugueses, Batalha Reis aponta-o ligado a companheiros de Coimbra como Joo

de Deus e Antero de Quental.

Aquando da chegada de Quental (1868) j pousavam na Travessa do Guarda-

Mor vultos como Joo de Deus, Lobo de Moura, Mariano Machado, Anselmo de

Andrade - todos com o trao identitrio da origem estudantil coimbr. A chegada de

Antero funciona como alambique nas produes do Cenculo. De extrema

importncia para o trabalho, de destacar a primeira fase que envolve uma

predominncia esttico-literria onde o canto de cisne seria a experincia do

satanismo e do heternimo coletivo: Carlos Fradique Mendes. E, um segundo

momento que se imbui de maior teorizao e prtica sociopoltica servindo de

sustento preparao das Conferncias.

4.4 Conferncias de Casino

Os elementos da Gerao de 70 devem o motivo de batismo no a matrizes

biolgicas partilhadas entre os seus principais atores, mas sobretudo pelo perodo

fulgurante da sua ao se balizar nos ltimos anos da dcada de 60 e incios da

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dcada de 70 com especial destaque para o episdio central - as Conferncias de

Casino ocorridas em 1971.

As conferncias concretizaram-se numa sala alugada do Casino Lisbonense e

foram promovidas pelo jornal A revoluo de Setembro. Apesar de serem doze os

nomes que assinaram o manifesto que expunha a sequncia orgnica da mesma,

apenas se realizaram cinco sesses. Relembrando a especificidade do interlocutor

da Gerao de 70 - j evocado em momento anterior - dir-se-ia natural que nesse

contexto, e olhando com um certo distanciamento temporal esse movimento de

poucos intelectuais, impotentes politicamente, mas excepcionais poetas, polemistas,

historiadores, romancistas, existia pelo seu prprio extremismo(LOURENO, 2011: 38)

que causava imensa ressonncia. Note-se que, neste contexto adverso

compreenso da aco da Gerao e consequente entrave sua aceitao, as

conferncias viriam a ser proibidas por ordem do marqus de vila e de Bolama em

cuja advertncia se podia ler a ofensa religio e instituies polticas do Estado.

Apesar da sua proibio, as conferncias marcam um exerccio de introspeo.

Aps a apresentao programtica, Antero refletiria sobre as causas da decadncia

dos povos insulares e considerava vital opor ao catolicismo a conscincia livre, a

cincia, a filosofia, a crena da renovao da Humanidade; monarquia

centralizada a federao republicana, com larga democratizao da vida municipal;

inrcia industrial, a iniciativa do trabalho livre, sem interferncia do

Estado (PIEDADE, 2008:152). A terceira e a quarta conferncias revestiram-se de

amplo interesse e nelas se refletiam a inspirao de Proudhon (conscincia, justia

e igualdade) e Zola. Em tom apologtico, Ea apresentava, de forma sistemtica, o

realismo contaminado j pelo naturalismo, dado o diferimento na chegada das

ideias alm-Pirinus. A nova corrente proclamava a abolio da pieguice, em favor

da observao, da anlise direcionada obteno da verdade absoluta (Cf. Jnior,

1930). Interessa-lhes, em favor da materializao deste retrato, convocar temas e

universos como a educao, a usura, o amor, o adultrio, a degradao moral, o

caciquismo ou o clientelismo, entre outros, e sua concretizao na sociedade. O

retrato destes temas adquire, no Realismo, a necessidade de um processo de

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mimesis que englobe: observao, reparo, denncia, crtica e correo. Este

processo, visava a funo corretiva idlica de fazer Portugal apanhar o comboio da

Europa.

A ltima das cinco conferncias foi encetada por Adolfo Coelho que destacou a

necessidade do combate cultural e da emergncia de uma conscincia coletiva

intelectual que recuperasse em Portugal um poder espiritual.

De ampla relevncia se reveste este exerccio crtico onde so explicados aos

seus ouvintes uma verso do passado portugus. H neste gesto uma ruptura com o

passado acrtico, passando a impor, de acordo com as exigncias modernas e

europeias, um doloroso acto de contrio colectivo (LOURENO, 2011: 39). Apesar

da crtica, e da relativizao da epopeia nacional no serem inditos, existe toda

uma sistematizao em torno deste pensamento que o tornam inaugural e mais

importante, legtimo.

5. A Gerao de Orpheu

5.1 Idiossincrasias rficas

O apocalipse da guerra traria Europa o comeo da decadncia, e a

conscincia dela: Ns-outras, civilizaes, sabemos agora que somos

mortais (VALRY, 1948:11). Para os portugueses foi a vspera de Orpheu - marco de

viragem. Alis, foi mais do que uma viragem: foi um abalo ssmico com uma tal

intensidade e fulgor que ainda hoje se lhe sente os efeitos (LISBOA, 1984:10).

Nas palavras de Pessoa, por Orpheu entende-se umas vezes a revista com

aquele nome, de que saram s dois nmeros, em Maro e em Junho; outras vezes

os que estiveram ligados a ela, ainda que como simples espectadores prximos e

amigos, e sem que nela influssem ou colaborassem; outras vezes ainda, os que

escreveram subsequentemente em estilo semelhante ou aproximado aos que de

facto colaboraram no Orpheu.

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Orpheu foi a revista que em Portugal iniciou o movimento modernista. Os

germes do que viria a ser o movimento de Orpheu remontam aglutinao em

1913 de um grupo de escritores e artistas de Lisboa em torno de Fernando Pessoa

num momento em que ele ainda estava ligado revista A guia. Na referida

revista, Pessoa, o crtico literrio, promovia a escrita de S-Carneiro e a arte

polifrmica de Almada. Tais interesses no eram bem vistos pela direo que viria

inclusive a negar-lhe a publicao dO Marinheiro (Cf. CHORO, 2000:1018).

A revista foi, simultaneamente, escndalo e sensao. Pessoa classificaria de

sucesso a tareia que A Capital lhes deu logo na primeira pgina, e a ateno que

lhes dedicariam com duas colunas endossadas de farpas revista de sua co-autoria.

Porm, apesar do frenesi criado, este fenmeno deve ser lido em sintonia com um

afastamento poltico explcito em Orpheu conforme destacaria o autor dA

Maternidade ressalvando o carcter puramente literrio e artstico da obra. No

caderno Sudoeste l-se: "Arte e Poltica no esto feitas para colaborar uma com a

outra, e o nico encontro possvel de ambas nos resultados das suas aes

particulares, ao produzir-se a presena duma e da outra na vida da

humanidade" (1935:11). Tambm Pessoa se insurge contra os rtulos polticos que

lhe apontam a algum que uma vez me interrogou sobre as minhas opinies

polticas, na pressuposio de que eu as tivesse, respondi: Sou monrquico

absolutista. E depois acrescentei, com aquela simplicidade prpria das ocasies

histricas: por isso que sou republicano (SEABRA, 1977:12).

Tais posies colocam-se em consonncia com Piedade que admite ser

"inadequado dar linguagem poltica de Pessoa um significado denotativo,

remetendo-a para um referente exterior prpria lgica potica que lhe

imanente" (2008:264) colocando-o assim longe de uma posio poltica mas prximo

de uma fraternidade patritica.

Como tambm observa Loureno, a ligao unvoca para com a poesia.

Alis, os elementos do universo de Orpheu chamaram como smbolo da sua criao

um elemento que no coro dos imortais, apenas um semi-deus. Os jovens de

1915 invocaram-no como Deus da Poesia, ou mais gravemente, viram nele a

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poesia como deus (LOURENO, 1999:51). A respeito de Orpheu, concede-se privilgio

interpretao onomstica em detrimento de matrizes cronolgicas ou esttico-

estilsticas como acontece com a Gerao de 70. Assim, desde logo sintomtica,

privilegiando o que poderamos chamar o tecto geracional (...) em que se

encontram estratificados, como num palimpsesto, mltiplos discursos e tempos,

cujos elementos de continuidade ou de ruptura escrevem e deixam ler a sua

genealogia e o seu significado. (SEABRA, sd:425) Neste sentido, o mesmo autor

defende que o ttulo de Orpheu ainda de ressonncia simbolista: lembre-se por

exemplo, o papel que essa referncia mtica assumia na potica de Mallarm, para

quem o nico dever do poeta era o de descobrir a explicao rfica da Terra. E

como no ver na concepo de Orpheu como num volume geracionalmente

emblemtico a mesma obsesso do Livro que dominava o poeta francs? A sua

viso de uma tetralogia mltipla no deixa de reencontrar-se no projeto de uma

revista em quatro nmeros, tal como os rficos a sonharam (IDEM:432).

Entrecruzando as geraes, assiste-se a um movimento artstico que adopta o

que Lotman chamaria uma esttica de contraposio e uma crtica de expedita

anacronizao dos padres e convenes at a dominantes (LISBOA, 1984:10).

Todavia, o esforo da Gerao da 70 no se isentava de qualquer leitura poltica,

alis, o sector pblico e poltico eram uma rea a electrocutar no porco adormecido,

vulgo ptria.

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6. Do primeiro Fradique ao segundo Orpheu - Para uma leitura de

aproximao

6.1 A heteronmia e a implicao coletiva

Este Deus que nos importa a ns saber-lhe o nome?

Antero de Quental

A msica italiana sai profundamente da natureza, como a alem sai profundamente da alma, de resto a alma,

a natureza, duas maneiras de ser de Deus.

Ea de Queirs

Antero em 1861, conforme revela Serro (1985:179), experimenta a

pseudonmia-heteronmia com a adopo do pesudnimo Vasco Vasques

Vasqueanes produtor Das revistas de Coimbra ou O que toda a gente v ou a

poltica numa lio. E, no ano seguinte, Raimundo de Castromino, autor da

Revista Literria de Coimbra. Volvidos dois anos, assumiria o pseudnimo Heine

e posteriormente o criptnimo: O Bacharel Jos - que travaria dilogos consigo

prprio, leia-se com Antero.

Ea de Queirs adoptaria o anagrama A.Z em algumas prosas apressadas dO

Distrito de vora. Mais importante que o anagrama atrs referido o personagem

lanado por Ea, Manuel Eduardo, assumido pelos crticos como pr-fradiquiano e

que escapa ao escopo do trabalho aqui encetado.

Em jeito de paralelismo, Pessoa desinteressado pela Renascena e a

Renascena desinteressada por Pessoa, levam-no para a revista A guia. O

simbolismo da revista A guia estar ainda presente e dar fisionomia ao primeiro

nmero de Orpheu (LISBOA,1986:37) posto venda em fins de Maro de 1915. De

todos os colaboradores participantes no primeiro nmero, lvaro de Campos o

nico que rompe com o tom do simbolismo decadente em direo estridncia

modernista. A fragmentao de eus surge em consonncia com a leitura de Oscar

Wilde quando atesta que a verdade s pode atingir-se pela via complicada da

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insinceridade multifacetada, isto , pela via das mscaras (idem). Tambm Almada a

este respeito completa Rimbaud onde frase original do francs Je, cest un

autre o portugus acrescenta Je, cest aussi un autre(ibidem).

A heteronmia e a pseudonmia so de natureza diversa. Outro nome pode no

corresponder a outra personalidade literria, e nesse caso de pseudonmia que se

trata. Quando o nome civil do criador, mesmo que mais ou menos afeioado,

tambm assuma responsabilidades de autoria prpria, lemos heteronmia. Todavia,

ambas incumbem uma inteno transversal, a ocultao-revelao que a raiz do

fenmeno. Ocultao do personagem biogrfico e revelao do discurso da outra

entidade emergente. A este respeito, Carlos Fradique Mendes, o ltimo assumido

por Ea, um proto-heternimo, no atinge aquela especificidade discursiva que

definitivamente consagraria a alteridade heteronmica esboada nos planos

onomstico e biogrfico-ideolgico. (...) Fradique no parece distinguir-se do autor

dOs Maias no plano genericamente estilstico (REIS, 1999:152). Por sua vez, Pessoa

pode ser apontado como melhor espcimen em relao ao que heteronmia

concerne.

Todavia, para efeitos de exame, interessa, sobretudo, analisar o jogo coletivo

na criao do Fradiquismo e do Orpheu. A respeito de Fradique, Antero de Quental,

Jaime Batalha Reis, e Ea de Queirs contriburam para a configurao do projeto

ao segregar a entidade biogrfica da entidade doadora de discurso (Cf. SILVA, 2007)

tornando Carlos Fradique Mendes autnomo. O folhetim annimo em que se leem

as poesias de Fradique, sabe-se hoje serem da autoria de Antero de Quental (a

abertura e o fecho) e que Ea de Queirs e Jaime Batalha Reis contriburam com

Serenata de Sat s estrelas e A velhinha. Da trade, a quem mais interessava a

publicao do heternimo seria a Jaime Batalha Reis uma vez que nada tinha

publicado. Alis, conforme confessara noiva, somente com Fradique poderia ser

poeta. Antero encontrava-se frequentemente em viagens. Por essa altura, deslocava-

se aos Estados Unidos. Assim, cr-se que a responsabilidade de organizao e

divulgao se tenha cumprido pelo mais jovem dos trs. Serro (1985:206) especula

que Ea tenha sido arrastado para o projeto numa fase inicial e s depois se

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empenhou no mesmo. De forma sumria, o mesmo autor identifica a participao

de Antero de Quental no folhetim organizado por Jaime Batalha Reis em vrias

composies como Os boleros de P ou em dois poemas subordinados a Guitarra

de Sat. Ea contribui com o teu corpo to fresco, pura flor das fontes.

Por sua vez, os rficos, tendencialmente mais individualistas, no

experienciavam a sensao de conscincia de grupo nem qualquer interesse

direccionado ou, sequer, organizado, no sentido de uma interveno pblica com

propsitos reformistas no que se refere situao poltico-social (PIEDADE,

2008:161). Tambm Negreiros destacaria a ausncia da conscincia de grupo (Cf.

1993:2-10).

Nas palavras de Seabra (s.d. 430), para que o grupo se afirmasse, era

necessrio, para dar consistncia ao grupo [e] para lhe permitir uma afirmao

geracional relativamente corrente antecessora, que ele se manifestasse numa

publicao de conjunto, de carcter emblemtico e Orpheu cumpriu. Contudo, a

produo do primeiro nmero de Orpheu, na opinio de Lus de Montalvor o

resultado de um exlio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo

ou tormento (idem). Transversal aos fenmenos coletivos o carcter elitista e o

apurado gosto esttico e artstico. Em ambos os casos, parece-nos necessrio a

sintonia com a modernidade.

6.2 Necessidade de Modernidade

Evocando as palavras a posteriori de Jaime Batalha Reis o nosso plano era

considervel e terrvel: tratava-se de criar uma filosofia cujos ideais fossem

diametralmente opostos aos ideais geralmente aceites (PIEDADE, 2008:163). Nota-

se, desde logo, um discurso contra-corrente com vista ao abalamento da apatia

chinesa dos lisboetas. Por seu turno, os rficos queriam reagir em leonino, nas

palavras de S-Carneiro, contra o ambiente. Buscando uma esttica de ruptura

arteavam para desassossegar. Neste mbito, emerge a criatividade individual

(recupere-se a necessidade de elitismo observada em Piedade a propsito de Ea e

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Pessoa), o gosto pela inovao em oposio ao academismo e aos lepidpteros.

Alis, um neologismo ilustra bem os intentos de choque e de criao contra os

mortos e estticos estados com que S-Carneiro baptizaria grande parte dos

portugueses. Tratava-se de uma revoluo se a tomarmos na plena acepo do

significante revolutio que subsumia semanticamente tanto um movimento para diante como para trs, numa translao em que o que evolui de igual passo re-volta transformando o antes atravs do depois, isto , recriando uma traditio outra, ela mesma restituda sua significao originria de ato de transmisso de uma titularidade (SEABRA, s.d.:425).

Verifica-se pela ruptura com o passado a emergncia da Modernidade como

Sena a resumir: ser-se do tempo em que se vive (1978:409). No contexto de

coexistncia cronolgica h uma nsia pela novidade que far Frana sintetizar

modernista como

o adepto do moderno e o moderno o actual ou o de agora, quando muito o de h pouco, se o radicarmos, como deve ser, no advrbio modo que Ccero, por exemplo, assim empregava. Mas no deixa, por isso, de ser tambm, lembrando o modus, medida, regra ou mtodo, uma maneira de ser (modo) tanto quanto uma maneira de fazer (moda), estrutural a primeira e conjuntural a segunda (FRANA, 1979: 367).

Existe uma conjuntura de aproximao entre as diferentes geraes que

atravs da relao negativa com a ptria, e de um sentido de provocao agem

sobre a psique nacional buscando uma transformao do apangio.

Para os de 70, de notar que a modernidade do primeiro Fradique mescla um

certo pastiche baudelairiano com o satanismo e glosas de clichs avondes por c.

As temticas erguiam-se em desfavor do clericalismo, da religiosidade cega, das

prticas polticas atuais, da podrido do despotismo civil e religioso. Verifica-se a

subverso humorstica, e o riso distncia, possvel pela diluio propiciada pela

iluso de veracidade identificada em Piedade (2008) ou o efeito de parecer

verdadeiro sugerido por Reis (1984:47) que faz notar que o modo como os dados

biogrficos, o conhecimento e reconhecimento de terceiras pessoas (nomeadamente

de personalidades literrias conhecidas) e sobretudo o distanciamento crtico

patenteado na segunda nota introdutria, produzem um "efeito de real" que conduz

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o pblico-leitor a aceitar Fradique como uma entidade real. Estes mecanismos

modernos de experimentao intersectam o chamamento apologtico pessoano que

cada um de ns multiplique a sua personalidade por todas as outras

personalidades e intersecta Orpheu como um poetodrama dividido entre identidade

e alteridade.

Recuperando Orpheu, tambm os rficos possuam um plano meticuloso de

dissoluo de valores vigentes:

trabalharemos ao menos ns, os novos, por perturbar as almas, por desorientar os espritos. Cultivemos em ns prprios a desintegrao mental como flor de preo. (...) E a nossa misso, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna, ser tambm a mais moral e a a mais patritica (PESSOA, s.d.:35).

Relembre-se que esta tomada de posio vem no seguimento da recusa da

publicao do poema O Marinheiro na revista A guia e da constante crtica a

Pessoa pela defesa de S-Carneiro e Almada. H toda uma infixao no presente,

que rompe com o passado e se assume na construo do futuro, conforme se l na

correspondncia de Pessoa

a literatura da aspirao do futuro, inferior sempre, porque desligada do sentimento da realidade. Isto verifica-se muito bem na obra de um poeta s: Teixeira de Pascoaes. Quando elle era poeta puramente do presente, interpretando o espirito da sua raa, produziu a Vida Etherea, que contm a, realmente insupervel Elegia (SILVA, 1996:70).

As atitudes marcam-se por uma atitude de vanguarda de dinmica agnica (Cf.

VILA MAIOR, 1996) num processo que se quer de transio e transformao. Em

diferentes nveis, Orpheu e Fradique experienciam estes processos que se revestem

tambm de uma carnavalizao literria, isto , de um discurso portador de dado

poder simblico que insulta um agente especial: a autoritas (VILA MAIOR,

1996:136). E, igualmente importante, logram criar um espao discursivo-ideolgico

de confrontao contra figuras representativas do tradicionalismo, do passadismo e

do academismo. Neste contexto, a emergncia de novos cdigos, e

consequentemente de uma nova linguagem, carcter necessrio para uma leitura

das novas mensagens veiculadas, incomportveis no paradigma anterior.

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6.3 A linguagem e a intencionalidade da provocao - da ironia e da blague

Em relao a Fradique, como observa Serro, caracterizava-o ser herdeiro de

P, por conseguinte, vinca-se a Sat cujo grande princpio [ o] de que tudo deve

ser feito ao contrrio, exactamente ao invs do que pratica o mundo

sagrado (SERRO, 1985:161). Assim, subvertendo a verdade e a transparncia,

assumem uma blague no to-s na sua feio crtica mas tambm enquanto

fingimento excntrico, divertimento parodoxal que pretendia intervir por forma a

escandalizar os que no estavam dentro dos segredos e cumplicidades do grupo.

Transformando, se possvel, esse pas demasiado tacanho e srio em que

viviam (PIEDADE, 2008:164).

Este estado de alma visvel em Ea quando afirma que o riso acabou porque

a humanidade entristeceu restando, como derradeiro consolo, o epteto de civilizado.

Sendo a ausncia de riso uma marca da sociedade aptica contra a qual se

constroem em oposio, uma das formas de estabelecer o dilogo foi o estilo

adoptado por Ea, de fina ironia e enlevada comicidade que permitiria a crtica e,

tambm, que um pblico mais vasto acedesse ao seu pensamento. Neste sentido,

o riso a mais til forma da crtica porque a mais acessvel multido. O riso dirige-se no ao letrado e ao filsofo, mas massa, ao imenso pblico annimo. por isso que hoje to til como irreverente rir das ideias do passado: a multido no se ocupa das ideias, ocupa-se das frmulas visveis, convencionais das ideias. (ORTIGO, s.d., 36)

Alis, se h trao que individualiza o esprito de Ea e torna a sua escrita to

aliciante justamente essa arte de conseguir fazer coabitar a manifesta leveza de

um registo humorstico e/ou irnico, frequentemente adoptado, com uma

omnipresente e lcida dimenso pensante (PIEDADE, 2008; 14).

lvaro de Campos, no Ultimatum (note-se a ironia lida no facto de Portugal ser

sofredor de um ultimatum concreto) comea escandalosamente com um Mandado

de Despejo aos mandarins da Europa (...) da passa aos Chefes de Estado (...) vm

a seguir os Estados e suas culturas (TORGAL,2004:1091). Como l Lisboa (1984:17)

o frenesi e a palhaada so quase sempre mscaras de um abalo profundamente

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sincero. A pardia serve para esquecer a fundura do golpe e disfarar, com pudor, o

pathos.

Ainda sobre a blague, e enfocando os rficos, Loureno constata que a

blague mais do que pura blague e os gritos de Ode Martima outra coisa que

simples onomatopeia. Representam com toda a conscincia a tentativa de forar a

linguagem a ultrapassar os seus recursos naturais de significao (...) a palavra

quer ganhar o estatuto de pera - msica, plstica e libereto (LOURENO, 1999: 59).

No fundo, trata-se da supremacia da palavra (poesia) na plena substituio da

referncia Realidade enquanto representao pela linguagem, ou, se se prefere a

de conferir linguagem uma realidade absoluta (idem). Oscilando agora ao

Fradiquismo, Piedade (2008:171) identificaria a respeito da blague, a funo de

mecanismo de defesa ante as hostis recepes s manifestaes estticas.

Recorrendo a Piedade forjamos a nossa concluso:

tanto a ironia como a prpria blague podem pois designar-se enquanto elementos estruturantes de um certo charme indiscreto, comum ao trio criador de Fradique e aos inventores de Orpheu, e entendidos como marcas inconfundveis de um esprito que misturou audcia, irreverncia, desafio, humor, e uma inslita energia vital, conseguindo combinar, de modo criativo, a seriedade inerente aos propsitos artsticos com uma saudvel dose de entusiasmo, lucidamente combativo e dinmico (idem).

Concluso

No trmino da presente empresa, verifica-se que nos foi possvel intersectar e

aproximar duas diferentes geraes de intelectuais - responsveis pelo artemoto

maior com que agitaram o pas em vrios vectores. Cremos que as afinidades de

esprito e a coopresena de um esprito to ilustre com um Portugal impassvel e

inerte geraram as produes coletivas como gestos de ruptura. Estes rasgos inditos,

como que hinos de luz, irrompiam em cdigos novos que pudessem sustentar e

veicular a mensagem rara - to original que requeria modernidade e uma completa

ruptura para se concretizar.

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