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1 CRISTIANE DE AZEVEDO PRIZIBISCZKI DIÁLOGO ABERTO: COMO SÃO DESENVOLVIDAS, NA PRÁTICA, AS ETAPAS TEÓRICAS DE PRODUÇÃO DO LIVRO-REPORTAGEM Londrina 2006

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CRISTIANE DE AZEVEDO PRIZIBISCZKI

DIÁLOGO ABERTO: COMO SÃO DESENVOLVIDAS,

NA PRÁTICA, AS ETAPAS TEÓRICAS DE

PRODUÇÃO DO LIVRO-REPORTAGEM

Londrina

2006

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CRISTIANE DE AZEVEDO PRIZIBISCZKI

DIÁLOGO ABERTO: COMO SÃO DESENVOLVIDAS,

NA PRÁTICA, AS ETAPAS TEÓRICAS DE

PRODUÇÃO DO LIVRO-REPORTAGEM

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel.

Orientador: Prof. Dr. Rozinaldo Antonio Miani

Londrina

2006

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CRISTIANE DE AZEVEDO PRIZIBISCZKI

DIÁLOGO ABERTO: COMO SÃO DESENVOLVIDAS,

NA PRÁTICA, AS ETAPAS TEÓRICAS DE

PRODUÇÃO DO LIVRO-REPORTAGEM

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel.

COMISSÃO EXAMINADORA

________________________________ Prof. Dr. Rozinaldo Antonio Miani

Universidade Estadual de Londrina

________________________________ Prof. Dr. Paulo César Boni

Universidade Estadual de Londrina

________________________________ Profª Flávia Lúcia Bazan Bespalhok

Universidade Estadual de Londrina

Londrina, 21 de novembro de 2006

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Não se trata de ter disposição: você é

um operário como qualquer outro.

Mário de Andrade a Fernando Sabino

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Rozinaldo Miani, pelo apoio e condução precisa; À Flávia Lúcia Bespalhok, pela paciência e carinho com que sanou minhas dúvidas; A Paulo César Boni, pela amizade e confiança desde os primeiros anos de universidade; À Rosane Verdegay de Barros, pela amizade quase que maternal e por ter me ensinado a praticar um jornalismo responsável e de qualidade; Aos meus pais, por terem garantido que eu pudesse viver este momento; À minha família, principalmente à Nydia Natali, pelo carinho e apoio nas horas difíceis; A todos os amigos, os de ontem e de os hoje, pela compreensão nos momentos difíceis e pelas alegrias vividas nesses cinco anos de universidade; Às amigas Aline, Audrey e Glória, pelos livros emprestados, pela recepção sempre calorosa em São Paulo e, principalmente, pelos sonhos, receios e conquistas compartilhados; Ao amigo Fábio Marcelo Calsavara, pelo suporte técnico e emocional durante a execução do trabalho Aos colaboradores entrevistados: Mylton Severiano, Fernando Morais e Caco Barcellos, pela riqueza de material que me colocaram em mãos; E, finalmente, a Edvaldo Pereira Lima, que me alicerçou durante toda esta viagem e me abriu as portas para o universo da reportagem em livro.

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PRIZIBISCZKI, Cristiane de Azevedo. Diálogo aberto: como são desenvolvidas, na prática, as etapas teóricas de produção do livro-reportagem. 2006. Monografia (Bacharel em Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina.

RESUMO

Verifica como são desenvolvidas, na prática, as etapas teóricas de produção do livro-reportagem – definição de pauta, captação de informações e redação - sugeridas por Edvaldo Pereira Lima em sua tese de doutoramento, Páginas Ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Utiliza-se, para isto, da metodologia da entrevista em profundidade, associada à análise de conteúdo e documental, no contato com os autores Mylton Severiano, Fernando Morais, Caco Barcellos e com o próprio Edvaldo Pereira Lima. Apresenta, ainda, um diálogo entre as hipóteses e sugestões do pesquisador em comunicação e a opinião dos autores sobre conceitos, funções e motivações do livro-reportagem, além de novos pontos que não haviam sido abordados por Lima em seu trabalho. Palavras-chave: Livro-reportagem, Caco Barcellos, Edvaldo Pereira Lima, Fernando Morais, Mylton Severiano

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PRIZIBISCZKI, Cristiane de Azevedo. Open dialog: how, in a practical procedure, the theoretical stages of production of the nonfiction novel are developed. 2006. Course Conclusion Job Degree in Jornalism – Londrina State University, Londrina/PR.

ABSTRACT It has as its aim to verify, in a practical procedure, how the theoretical stages of production of the nonfiction novel are developed, – task assignment, information search and editorship – suggested by Edvaldo Pereira Lima in his doctorate thesis, “Páginas Ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura”. It was obtained over the methodology of detailed interviews, associated with content and documental analyses, through the meeting with the writers Mylton Severiano, Fernando Morais, Caco Barcellos and Edvaldo Pereira Lima. It also presents a dialog between Lima´s hypotheses and suggestions and the other writers’ opinion about these concepts, functions and motivations of the nonfiction novel, in addition to those, new points that have never been worked by Lima in his thesis. Key-words – Nonfiction novel, Caco Barcellos, Edvaldo Pereira Lima, Fernando Morais, Mylton Severiano

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 08

Metodologia .................................................................................................. 15

CAPÍTULO 1: UMA BREVE BIOGRAFIA .............................................................. 22

1.1 Mylton Severiano: "A escola de jornalismo pra mim é: tanto faz" ................. 22

1.2 Fernando Morais: "Livro-reportagem é a única coisa que eu sei fazer" ....... 25

1.3 Edvaldo Pereira Lima: "Nenhum assunto, nenhuma pauta é superior

ao valor da vida humana" ............................................................................ 28

1.4 Caco Barcellos: "A maneira mais bela de se contar uma história

é a da reportagem" ....................................................................................... 30

CAPÍTULO 2: PRIMEIROS CONFRONTOS .......................................................... 34

2.1 Conceitos, funções e motivações ................................................................. 34

2.2 Um ponto de discordância: classificações .................................................... 40

CAPÍTULO 3: PAUTA ............................................................................................ 46

3.1 Pauta: mais que uma simples idéia .............................................................. 46

CAPÍTULO 4: CAPTAÇÃO DE INFORMAÇÕES ................................................... 52

4.1 Técnicas de Apuração .................................................................................. 52

4.2 Ampliando o Páginas Ampliadas – recursos técnicos .................................. 64

CAPÍTULO 5: REDAÇÃO ....................................................................................... 66

5.1 Última etapa: a redação ............................................................................... 66

5.2 Ampliando o Páginas Ampliadas – Tratamento das informações apuradas . 83

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 86

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 90

ANEXOS ................................................................................................................. 93

ANEXO A – Entrevista com Mylton Severiano

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ANEXO B – Entrevista com Fernando Morais

ANEXO C – Entrevista com Caco Barcellos

ANEXO D – Entrevista com Edvaldo Pereira Lima

ANEXO E – CD’s com entrevistas

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INTRODUÇÃO

O livro-reportagem é um veículo de comunicação jornalística muito

conhecido nos meios editoriais do mundo ocidental. No Brasil, não são raros os

autores que procuram unir o apuro jornalístico ao verniz estético da linguagem

literária. A versão tupiniquim do jornalismo literário e de sua vertente mais famosa, o

Novo Jornalismo - nascido em meio à efervescência juvenil européia, e

posteriormente norte-americana, dos anos 60 -, ganhou adeptos e evoluiu com o

passar dos anos até se chegar ao que é hoje o mercado editorial do livro-reportagem

brasileiro: um nicho ainda em crescimento, mas bastante promissor, que agrega

obras de variados temas e estilos lingüísticos.

Tal afirmação torna-se legítima quando confrontada a dados de

grandes editoras nacionais. Uma das maiores editoras do país, a Companhia das

Letras, lançou, recentemente, uma coleção especial intitulada “Jornalismo literário –

a arte de contar boas histórias”, que possui 15 títulos de grandes autores da

modalidade1, como os próprios Gay Talese e Truman Capote, pioneiros no estilo. A

Editora Record também possui números expressivos: 47 obras de seu acervo estão

inseridas no "gênero Biografia"; na Editora Casa Amarela, 12 dos 60 títulos são

relacionados ao livro-reportagem, e assim por diante.

E por falar em números, não foram somente os jornalistas formados

e profissionais da área (ou não) que optaram por esta modalidade. Também os

1 Como não existem conceituações teóricas acerca do livro-reportagem, fato salientado por Edvaldo Pereira Lima em sua tese: “...convém ilustrar com um exemplo a ausência de maiores referências ao livro-reportagem nos veículos acadêmicos. O Dicionário de comunicação (Rio de Janeiro, Codecri; 1978), de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa - ...apresenta o verbete livro, mas nada diz de sua variante, que é exatamente o livro-reportagem. Também apresenta o verbete reportagem, mas tampouco aí menciona qualquer coisa a uma das formas pelas quais a reportagem pode se apresentar, que é justamente a do livro”. (LIMA, 2004, p.9. Grifos do autor), optamos por usar a denominação dada por esse autor em seu trabalho. Assim, o livro-reportagem será tratado como uma modalidade do jornalismo. Também a grafia do termo - com uso de traço entre as palavras - foi adotada em todo este trabalho, tomando-se como modelo a grafia utilizada por Lima.

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estudantes de comunicação social de várias escolas de jornalismo do país ousaram

passear pelo mundo da não-ficção. Somente no 12º Expocom, realizado no Rio de

Janeiro em 2005, foram inscritos 80 livros-reportagem de escolas de jornalismo de

sete estados brasileiros: São Paulo (66 inscritos), Minas Gerais (5), Paraná (2), Rio

Grande do Norte (2), Santa Catarina (2) e Espírito Santo e Ceará com um inscrito

cada.

Este ano, o Expocom, realizado em Brasília, recebeu 23 inscrições

de livros-reportagem, também de vários estados do país2.

Muitos seriam os títulos a serem citados como exemplo da

preferência crescente que autores têm dado a esta modalidade de jornalismo, o que

corrobora a afirmativa de que o livro-reportagem ocupa um espaço próprio de

importância no mercado editorial. Apesar disso, “o livro-reportagem, como objeto de

estudo, ainda não desperta significativamente a atenção da comunidade acadêmica”

(LIMA, 2004, p. 4), o que fica evidente quando comparados o número de livros-

reportagem produzidos no Brasil e a quantidade de obras que propõem um

embasamento teórico à modalidade: o portal da web mais conhecido sobre o

assunto, www.textovivo.com.br, traz a indicação de 36 livros teóricos sobre o

jornalismo literário, mas apenas dois deles estão disponíveis em português e versam

diretamente sobre o ato criador do livro-reportagem: O que é livro-reportagem, que

teve sua 2ª edição lançada em 1998 pela Editora Brasiliense; e Páginas Ampliadas:

O livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura, lançado por duas

vezes pela Editora da Unicamp e uma pela Editora Manole, em 2004. Mais

recentemente temos a obra Livro-reportagem, de Eduardo Belo, lançado pela

Editora Contexto em agosto do corrente ano. 2 Os números e informações citadas no texto foram extraídas dos site www.expocom.s2w.com.br em 26/09/06 e por meio de contato via e-mail com a organização do evento.

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Tal panorama de desigualdade é ainda sublinhado pelo pesquisador

e também profissional da área da comunicação, Edvaldo Pereira Lima:

A literatura acadêmica especializada é pobre em referências ao livro-reportagem. Não apenas a produção brasileira é quase inexistente como também os estudos elaborados em universidades norte-americanas [...] há carência de trabalhos que formem um patamar conceitual básico, sobre o qual se poderá avançar para questões específicas, particulares, desse universo. (LIMA, 2004, p.4)

Em face dessa escassez de referências teóricas, e interessados que

somos pelos processos de confecção do livro-reportagem, tomamos estes como

objeto de estudo de nossa pesquisa, com o objetivo de verificar como se dão, na

prática, as etapas necessárias para a produção de uma obra de não-ficção.

O título que nos serviu de referência teórica foi justamente o trabalho

de Edvaldo Pereira Lima: Páginas Ampliadas: O livro-reportagem como extensão do

jornalismo e da literatura, produto de sua tese de doutoramento pela Universidade

de São Paulo, defendida em 1990 e atualizada em 2004 para a publicação de sua 3ª

edição em livro.

Nela, Lima realiza uma análise extensiva do panorama no qual o

livro-reportagem está inserido, propondo várias classificações e procedimentos a

serem adotados para a confecção de uma obra de não-ficção. Segundo ele, o livro-

reportagem poderia ser encarado como um "subsistema do sistema jornalismo"

(LIMA, 2004 p. 8), levando-se em consideração o fato de que a função que o livro-

reportagem exerce - o de prestar informação ampliada sobre fatos, situações e

idéias de relevância social – procede, essencialmente, do jornalismo em sua

globalidade e de que os recursos técnicos com que essa função é desempenhada

provêm do jornalismo. A esse respeito, o pesquisador afirma: “por conseguinte, a

Page 13: Dialogo Aberto[1]

11

realidade essencial do livro-reportagem é determinada a partir das características e

dos princípios que regem o jornalismo como um todo” (LIMA, 2004, p. 11).

Dos elementos que compõem o livro-reportagem como subsistema

do jornalismo, seu catalisador, como sugere Lima, ou disparador, é a grande-

reportagem, assim como no jornalismo cotidiano o catalisador é a notícia. São as

técnicas da reportagem de que se vale o livro de relato do real para se comunicar. É

visando uma narrativa ampliada que o jornalista se propõe a produzir um livro-

reportagem.

Porém, ele se diferencia das práticas jornalísticas – a exemplo, a

notícia puramente informativa e a reportagem – por ser um veículo de comunicação

impressa não-periódico que apresenta reportagens em grau de amplitude superior

ao tratamento costumeiro nos meios de comunicação jornalística, o que pode ser

entendido no sentido de maior ênfase de tratamento ao tema focalizado.

O livro-reportagem ainda se diferencia dos periódicos, pois, apesar

de se caracterizar pela universalidade – ao tratar de temas tão variados quanto nos

jornais e revistas – e pela difusão coletiva – pois circula publicamente para uma

audiência heterogênea e dispersa geograficamente –, o livro-reportagem não

apresenta periodicidade, bem como seu conceito de atualidade deve ser

compreendido de forma mais elástica do que a que se aplica às publicações

periódicas.

Quando focalizada a categoria "livro", o livro-reportagem distinguir-

se-ia, segundo Lima, das demais publicações por três condições essenciais:

- Quanto ao conteúdo, pois o objeto de abordagem do qual trata

corresponde ao real, ao factual;

Page 14: Dialogo Aberto[1]

12

- Quanto ao tratamento, compreendendo-se a linguagem, a

montagem e a edição do texto, que se apresentam, no livro-reportagem,

eminentemente jornalísticos, ou seja, obedecem, em linhas gerais, às

particularidades específicas à linguagem jornalística com, naturalmente, maior

maleabilidade de tratamento. Ainda nesse plano, aparecem as qualidades

desejáveis de precisão, exatidão, clareza e concisão. Quanto ao trabalho de

montagem e edição, por sua vez, o livro-reportagem apresenta os mesmos recursos

utilizados para a grande reportagem nas publicações periódicas, aparecendo, muitas

vezes, o emprego de ilustrações, fotografias, mapas etc.

- Quanto à função, o livro-reportagem pode servir a distintas

finalidades típicas do jornalismo, como o objetivo fundamental de informar, explicar e

orientar, podendo trabalhar sua narrativa de forma horizontal, com apreensão

quantitativa dos fatos, ou de forma vertical, que pressupõe um mergulho qualitativo

no objeto abordado. Normalmente, e na melhor das hipóteses, o livro-reportagem

apresenta-se com aprofundamento igualmente horizontal e vertical, isto é, extensivo

e intensivo, respectivamente.

Assim, segundo Lima, o livro-reportagem poderia ser definido como

[...] um veículo multidiciplinar de comunicação capaz de integrar elementos do jornalismo, da literatura, da antropologia, da sociologia, da historia, da psicologia. Acima de tudo, porém, o bom livro-reportagem é simplesmente um excelente meio de narrar histórias e registrar a história desafiadora do nosso tempo (LIMA, 2004, p. XV).

Nessa tentativa de abalizar as etapas de produção de livros-

reportagem, valemo-nos das técnicas de Entrevista em Profundidade, Pesquisa

Bibliográfica e Análise de Conteúdo, tendo como corpus da pesquisa as entrevistas

Page 15: Dialogo Aberto[1]

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concedidas pelos autores Fernando Morais, Caco Barcellos, Mylton Severiano e

Edvaldo Pereira Lima, bem como algumas de suas respectivas obras.

Elegemos tais autores tomando-se como critério de seleção o

destaque e prestígio que possuem no mercado editorial e na mídia e a atualidade de

suas obras, mesmo sem a certeza de que o acesso a eles seria possível. Nesse

ponto, o interesse pelo veículo livro-reportagem e seus processos de metalinguagem

falou mais alto e nos empenhamos em viabilizar o projeto, mesmo tendo consciência

da dificuldade que poderíamos encontrar no momento de contatar os autores e os

deslocamentos que se fariam necessários no caso de respostas afirmativas.

Nos primeiros meses muitas foram as dificuldades e tentativas de

acesso a eles. A entrevista com Mylton Severiano foi a que encontramos maior

facilidade, já que, no mês de abril deste ano, o autor esteve em Londrina por ocasião

do lançamento de seu livro Paixão de João Antônio, quando deu-se a entrevista.

Com os outros autores, os primeiros contatos foram feitos via e-mail e telefone,

dados conseguidos por fontes conhecidas nossas.

Para dar conta de identificar, na experiência dos autores, as etapas

cumpridas para a confecção de um livro-reportagem e de apresentá-las em

confronto com a teorização defendida por Lima, estruturamos este trabalho em 5

capítulos. Antes de entrarmos nos pontos de confrontação, apresentamos, no

capítulo 1, os momentos mais expressivos da trajetória pessoal e profissional de

cada autor estudado, além de fornecer dados relevantes sobre suas obras, com o

objetivo de compreender os processos de criação em sua globalidade.

No capítulo 2 buscamos, sempre com base na obra de Lima,

realizar os primeiros confrontos, bem como identificar as classificações nas quais os

diversos temas e estilos praticados poderiam ser inseridos.

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Alicerçados nas entrevistas e pesquisa bibliográfica, apresentamos,

no capítulo 3, o diálogo entre o pensamento de Lima e a prática dos autores no que

diz respeito à definição da pauta. No capítulo 4 o foco é para o encontro entre teoria

e prática na etapa da captação de informações.

O diálogo ainda se mantém estabelecido no capítulo 5, no qual

confrontamos as propostas de Lima com a experiência dos autores no momento da

redação do livro-reportagem.

Entendemos que este trabalho tem o aspecto prático bastante

evidenciado e, devido a isso, procuramos, nos capítulos 4 e 5 citados acima, ir além

dos pontos de confronto e inserir, em sub-itens que chamamos Ampliando o Páginas

Ampliadas, elementos considerados pelos autores estudados como de relevante

importância para quem se propõe a trabalhar com a não-ficção atualmente, mas que

não haviam sido considerados por Lima em seu trabalho.

Com os conceitos estabelecidos sobre o livro-reportagem

entrelaçados aos confrontos entre a obra de Lima, o material de entrevistas e a

bibliografia estudada, tecemos nossas considerações sobre o corpus da pesquisa.

Consideramos que este trabalho não esgotará o assunto da

produção de livros-reportagem, já que, assim como salienta Lima (2004, p.51), o

gênero da reportagem em livro oferece muita liberdade ao autor - o que não impede

que alguns aspectos importantes se alterem no futuro breve -, mas pretende

contribuir com as pesquisas em comunicação, esclarecendo e ilustrando pontos

teóricos já trabalhados e inserindo novos elementos para a construção de um

alicerce básico a quem deseja se aventurar pelo mundo da não-ficção.

Page 17: Dialogo Aberto[1]

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Metodologia

Pesquisa Bibliográfica

Assim como propõem vários teóricos da pesquisa científica, entre

eles Ida Regina Stumpf (2005, p.51), a pesquisa bibliográfica é o planejamento

global inicial de qualquer trabalho de pesquisa, que compreende a identificação,

localização e obtenção de bibliografia pertinente ao assunto. A revisão da literatura,

segundo Stumpf, é uma atividade contínua em todo trabalho de pesquisa, desde a

formulação do problema até a análise dos resultados.

Para se empregar esta metodologia, foi necessário, assim como

sugeriu a pesquisadora, realizar a busca do material, organizar dados coletados

para, somente depois de tais procedimentos, confrontá-los com o problema

identificado. Inicialmente, no presente trabalho foi determinado o seguinte corpus:

Paixão de João Antonio, de Mylton Severiano, publicado em 2006 pela editora Casa

Amarela; Carmen: uma biografia, de Ruy Castro, publicado em 2005 pela editora

Companhia das Letras; Cela Forte Mulher, de Antonio Carlos Prado, publicado em

2003 pela Labortexto; Abusado – O dono do morro dona Marta, publicado em 2003

pela editora Record, e Rota 66 – A história da polícia que mata, publicado em 2004

pela Editora Record, ambos do autor Caco Barcellos, e Corações Sujos, de

Fernando Moraes, publicado em 2000 pela Companhia das Letras.

Porém, no decorrer das entrevistas e a partir dos primeiros

confrontos, identificamos a necessidade de se incluir os demais títulos publicados

por alguns dos autores e excluir outros. Além de Abusado e Rota 66, de Caco

Barcellos, também foi incluído no trabalho o livro Nicarágua: A revolução das

Page 18: Dialogo Aberto[1]

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crianças; após a entrevista com Fernando Morais, além de Corações Sujos foram

incluídos Cem quilos de Ouro, Chatô – O rei do Brasil e A Ilha; outro livro que

passou a fazer parte do trabalho foi Ayrton Senna: guerreiro de Aquário, de Edvaldo

Pereira Lima, após identificação da necessidade de se incluir a presença deste

autor, por meio de entrevista, para aprofundamento da análise; a apreciação do

material de Mylton Severiano manteve-se centrada em Paixão de João Antonio. Os

livros Carmem: uma biografia, de Ruy Castro, e Cela Forte Mulher, de Antônio

Carlos Prado foram excluídos da análise.

As entrevistas

“Entrevista é uma das mais comuns e poderosas maneiras que

utilizamos para tentar compreender nossa condição humana”, dizem Fontana & Frey

(apud DUARTE in LOPES, 2001. p. 62). Ela tornou-se técnica clássica de obtenção

de informações nas ciências sociais, com adoção em áreas como sociologia,

antropologia, administração, educação e psicologia, além de ser ferramenta básica

para o trabalho de jornalistas.

Como procuramos entender os processos de produção do livro-

reportagem de forma qualitativa e intentamos promover o diálogo entre os

depoimentos colhidos e a bibliografia teórica sobre o assunto, neste trabalho,

adotamos a técnica da Entrevista em Profundidade, que, segundo Duarte, pode ser

definida como: “uma técnica qualitativa que explora um assunto a partir da busca de

informações, percepções e experiências de informantes [...] que procura intensidade

nas respostas, não quantificação ou representação esquemática” (DUARTE, 2001,

p. 62)

Page 19: Dialogo Aberto[1]

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E ainda:

A entrevista em profundidade é uma técnica dinâmica e flexível, útil para apreensão de uma realidade tanto para tratar questões relacionadas ao íntimo do entrevistado, como para descrição de processos nos quais está ou esteve envolvido. É uma pseudo conversa realizada a partir de um quadro conceitual previamente caracterizado, que guarda similaridade, mas também diferenças, com a entrevista jornalística [...] a entrevista em profundidade é extremamente útil para estudos do tipo exploratório, que tratam de conceitos, percepções ou visões para ampliar conceitos sobre a situação analisada. (DUARTE, 2001, p. 64)

Dentre os vários tipos de entrevista em Profundidade, optamos por

utilizar a Semi-Aberta, modelo que mais se mostrou oportuno para a conquista do

objetivo pretendido, justamente por assegurar a liberdade do entrevistador na

condução dos trabalhos. Assim como diz Triviños, a entrevista semi-aberta

[...] parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. (TRIVIÑOS apud DUARTE, 2001, p. 66)

Desde a definição do projeto (junho 2006), buscávamos formas de

contato com os autores selecionados. O primeiro resultado positivo foi com Mylton

Severiano, que esteve na cidade de Londrina por ocasião do lançamento de seu

livro Paixão de João Antônio. Um contato prévio foi feito por telefone para acertos de

data e local da entrevista. Entretanto, apesar desta primeira vitória, o contato com os

outros autores deu-se por caminhos mais complicados, desde a dificuldade em

conseguir os contatos, demora ou ausência de respostas aos e-mails,

deslocamentos de cidade, até respostas negativas3.

3 Ruy Castro, durante contato telefônico, negou-se a colaborar com o projeto por não se considerar um autor de livro-reportagem. Em suas palavras: “Eu não escrevo livros-reportagem, eu escrevo biografias, o que demanda anos de trabalho. Considero que os autores de livro-reportagem são oportunistas, porque acontece um fato qualquer eles já vão escrever um livro pra ganhar dinheiro em cima. Eu não quero ser incluído em trabalhos que falem de livro-reportagem.” Já Antônio Carlos

Page 20: Dialogo Aberto[1]

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Desde a primeira entrevista, possuíamos um questionário-guia de

perguntas, porém, a cada novo contato, o roteiro de perguntas era reformulado tanto

para atender às informações pessoais que buscávamos de cada autor, quanto para

reescrever as perguntas do questionário-guia de maneira mais clara e direta. Todas

as entrevistas foram gravadas em cassete e depois digitalizadas e arquivadas em

CD (Compact-disk – ANEXO E).

Como alguns detalhes de procedimento desta etapa de trabalho não

estavam suficientemente abarcados pela metodologia da Entrevista em

Profundidade, utilizamos determinados aspectos da técnica metodológica da História

Oral. Muitos pesquisadores da história oral, cujo instrumento base de captação de

informações é a entrevista e, portanto, fazem dela mesma um objeto de estudo em

todas as suas nuanças -, preferem fazer inicialmente um primeiro encontro para,

somente após uma conversa prévia, gravar a conversa. Já Thompson aconselha o

registro tão logo seja possível: “Segundo minha própria experiência, o melhor é pôr o

gravador a funcionar logo que você possa, assim que comece a falar” (THOMPSON

apud BESPALHOK, 2006, p. 24). Porém, em nossa experiência, tivemos problemas

com o registro da entrevista em duas ocasiões, justamente por não seguir os

conselhos de Thompson: no encontro com Fernando Morais, alguns detalhes,

posteriormente considerados importantes, foram perdidos, já que em todas as

ocasiões em que o entrevistado interrompia a conversa para atender ao telefone ou

a pessoas que vinham ao seu escritório, o gravador era desligado. Também, ao final

da entrevista, a fita acabou e não trocamos o material por já termos contemplado

todas as perguntas, pensamento que resultou-se equivocado. O mesmo problema

Prado mostrou-se muito acessível, porém, devido à sua rotina de trabalho, não encontrou tempo para realizarmos o encontro. Durante uma semana tentamos o contato pessoal em São Paulo. Como não foi possível, a pedido do autor tentamos realizar a entrevista por via telefônica, procedimento tentado por mais de um mês, mas que também não foi concretizado, o que nos levou a excluí-lo do trabalho.

Page 21: Dialogo Aberto[1]

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de interrupção do registro por término da fita ocorreu na entrevista com Caco

Barcellos. Diante desses fatos, passamos, no quarto encontro, a manter o gravador

ligado durante todo o procedimento.

As entrevistas foram realizadas pessoalmente4, em locais escolhidos

pelos próprios entrevistados. Mylton Severiano nos recebeu no Hotel Bourbon, onde

esteve hospedado durante sua estadia em Londrina. Fernando Morais nos recebeu

em sua casa de praia na cidade de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. O

encontro com Caco Barcellos ocorreu nos estúdios da Rede Globo em São Paulo.

Edvaldo Pereira Lima nos recebeu em um restaurante do Conjunto Nacional, na

avenida Paulista, também em São Paulo.

Depois das entrevistas gravadas, procedemos à etapa da

transcrição do material, que foi feito segundo sugere Portelli, citado pela professora

e pesquisadora Flávia Bespalhok em sua dissertação de mestrado:

[...] estima-se que para cada hora de gravação gastem-se pelo menos seis horas para a transcrição – e, como afirma Portelli (1997, p. 27), apresenta o complicador de transformar “objetos auditivos em visuais, o que inevitavelmente implica mudanças e interpretação”. Quando passadas para o papel, que é estático, a palavra falada pode ser alterada porque perde a gestualidade, a expressão facial e o tom, ritmo e timbre originais da voz. Para se evitar deformações, o autor alerta para o uso adequado da pontuação, não seguindo as regras gramaticais, mas buscando o sentido do que foi dito, procurando indicar as pausas e apontando alterações de ritmo ou timbre, risos e gestos significantes. (BESPALHOK, 2006, p. 26)

As mais de cinco horas de gravação foram transformadas em

páginas impressas, material anexado ao final deste trabalho.

Análise de Conteúdo

4 Embora tivéssemos a possibilidade técnica de realizar as entrevistas por telefone, fizemos questão de viajar aos locais das entrevistas e realizá-las pessoalmente.

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Além da Pesquisa Bibliográfica e da Entrevista em Profundidade,

valemo-nos também do método da Análise de Conteúdo que, segundo Michelat

(apud DUARTE, 2005, p. 285), é a metodologia considerada mais pertinente como

técnica acessória na pesquisa por meio de entrevistas.

Apesar de sua herança positivista – que valoriza as ciências exatas

como paradigma de cientificidade -, as novas tendências da análise de conteúdo

introduziram a noção de inferência (dedução de maneira lógica) e a conceituaram

como sendo uma operação destinada a extrair conhecimentos sobre os aspectos

latentes da mensagem analisada. Tais inserções possibilitaram que os estudos

atuais a considerassem “uma técnica híbrida por fazer ponte entre o formalismo

estilístico e a análise qualitativa de materiais” (FONSECA JUNIOR, 2005, p. 284-

285). Em nosso trabalho, optamos por valorizar o aspecto qualitativo da análise.

Nesta etapa, considerando o objetivo geral do trabalho - analisar

como as categorias teóricas do livro-reportagem aparecem e são desenvolvidas por

autores da modalidade - e tendo como referencial teórico a obra de Edvaldo Pereira

Lima, buscamos realizar um diálogo entre o livro Páginas Ampliadas, a experiência

de cada autor e suas respectivas obras.

O confronto inicial centrou-se nos conceitos, funções e

classificações do livro-reportagem propostos por Lima. Em seguida, realizamos um

mergulho de fôlego nos “procedimentos de extensão” indicados em Páginas

Ampliadas – a saber: "A extensão pela pauta", “A complementação pela captação” e

“A fruição do texto” - e a experiência pessoal de cada autor nas etapas de trabalho

relativas às fases proposta por Lima.

Neste mergulho, o leitor encontrará um certo excesso de citações

referentes tanto às entrevistas realizadas quanto aos livros analisados. Porém, o

Page 23: Dialogo Aberto[1]

21

procedimento se justifica pela necessidade de fundamentação do nosso objetivo,

que entendemos não ser possível realizar, senão desta maneira.

Antes, porém, de apresentarmos o entrelaçamento de todas essas

informações, no próximo capítulo vamos destacar alguns aspectos da vida

profissional e pessoal dos autores estudados para, extraindo o contexto no qual as

respectivas obras foram escritas, tentarmos compreender os processos de criação

em sua globalidade.

Page 24: Dialogo Aberto[1]

22

CAPÍTULO1: UMA BREVE BIOGRAFIA

Não é objetivo deste trabalho contar em detalhes a história de vida

de cada autor e os processos pelos quais seus diversos livros foram escritos.

Entretanto, fez-se necessário pontuar os momentos mais expressivos da trajetória

pessoal e profissional de cada um deles e fornecer dados relevantes sobre suas

obras, com ênfase para aquelas que integram o corpus de nossa pesquisa. O ponto

de chegada, neste capítulo, é a atuação dos profissionais nos dias de hoje, seja no

campo da literatura ou no trabalho que desenvolvem em redações de jornais e

outros meios de comunicação.

1.1 Mylton Severiano: “A escola de jornalismo pra mim é: tanto faz”5

Mylton Severiano da Silva nasceu no dia 10 de setembro de 1940 na

cidade de Marília, interior de São Paulo. Aos dez anos publicou o primeiro texto em

jornal escolar. Em 1960 mudou-se para São Paulo para estudar Direito no Largo São

Francisco e, como precisava trabalhar para se sustentar, conseguiu, por meio do

também jornalista e amigo, Woile Guimarães, um emprego de revisor no jornal Folha

de São Paulo. Três meses depois passou ao cargo de redator do então caderno de

Interior e Estados. Em 1963, além da Folha de São Paulo, também trabalhou um

período no jornal A Nação. Em 1964 recebeu um convite de Paulo Patarra e Mino

Carta para integrar o expediente da revista Quatro Rodas como redator, situação

que o fez optar entre a Faculdade de Direito e o jornalismo. Escolheu o jornalismo.

5 Os títulos que acompanham cada biografia foram extraídos das entrevistas concedidas pelos autores, cujas transcrições encontram-se anexadas a este trabalho, e representam, de acordo com nossa percepção, um traço da personalidade de cada um deles.

Page 25: Dialogo Aberto[1]

23

Em 1965 entrou para o grupo do O Estado de São Paulo, onde foi

redator e copy, além de levar em paralelo o trabalho na revista Quatro Rodas, que

deixou somente um ano depois para fazer parte do Jornal da Tarde.

Em setembro de 1966 passou a integrar o corpo de jornalistas da

Revista Realidade como editor de texto. Depois da derrocada da publicação, em

1968, ajudou a fundar uma cooperativa de jornalistas que lançaria jornais

alternativos históricos, entre eles Bondinho e ex-. Após relativo sucesso, as revistas

acabaram e a cooperativa, já reformulada, tentou lançar a revista Mais Um,

empreendimento que foi tolhido desde o início pelos censores da ditadura militar.

Em 1975 integrou a equipe do jornal Panorama, na cidade de

Londrina, iniciativa que, por motivos políticos, durou somente um mês – a revista

denunciou em manchete que indústrias fortes da cidade estavam poluindo o lago

Igapó, o que provocou a ira de certos empresários.

Em 1977 e 1978 fez parte do expediente de outras duas revistas que

também tiveram vida curta: Extra-Realidade Brasileira e Repórter 3. Também em

1977 lançou seu primeiro livro: Se liga!, que trata de vários tipos de drogas, como

álcool, tabaco, tranqüilizantes, maconha, cocaína e LSD. Escrito por quem havia

experimentado várias dessas substâncias, o livro não condena nem endeusa tais

produtos, mas busca identificar seus vários conceitos, sejam eles culturais,

históricos, sociais ou antropológicos; os efeitos e contra-indicações e a questão da

legalização.

Entre 1980 e 1981 editou, por cerca de um ano, a revista Doçura,

distribuída na rede de supermercados Pão de Açúcar. Em 1984 trabalhou para a

revista Brasil Extra que, apesar do sucesso de vendas, durou somente um número.

Page 26: Dialogo Aberto[1]

24

Além das inúmeras contribuições para a imprensa escrita, Mylton

Severiano também já trabalhou para a televisão, primeiramente como editor do

jornal Hora da Notícia da TV Cultura de São Paulo entre 1973 e 1975, depois na TV

Bandeirantes e TV Globo, onde foi editor do Jornal Nacional em 1979 e editor-chefe

do Esporte Espetacular e Globo Esporte entre 1983 e 1984. Ainda fez na TV Abril o

programa dominical Olho Mágico, em 1985.

Em 2006, Mylton Severiano publicou o livro Paixão de João Antônio,

baseado na experiência e convivência que o autor teve com o jornalista, além de

entrevistas com parentes e ex-mulheres do escritor, pesquisas em jornais e nas 223

cartas que restaram das 500 que João Antônio lhe enviou entre 1965 e poucos dias

antes de falecer, em 1996.

Fomos apresentados em 1966, na redação inaugural da revista Realidade. Nono andar da Rua João Adolfo, 118, prédio que a Editora Abril ocupava, no Anhangabaú. Sérgio de Souza, editor de texto e futuro editor de Caros Amigos, me pergunta certa manhã: “Você já ouviu falar do João Antônio?” Sim. Malagueta me havia maravilhado [...] Sem que nada combinássemos, fomos vizinhos na paulistana Boca do Lixo: ele e Marília, instalados na Rua Vitória; eu e minha primeira mulher, Eugênia, na esquina de Santa Efigênia com Gusmões, a uma centena de metros. [...] Com João Antônio, a amizade se faria com vagar. Parecia um bicho escabreado. [...] Começaram as trocas. Ele a me ensinar Nelson Cavaquinho, eu a mostrar-lhe Mozart. Afinidades, o gosto pela palavra. Lembranças da infância – eu achava que a escola do centro de Marília se chamava Bom Dosco, não Dom Bosco; ele lia nos livros mononstro, e se decepcionou ao descobrir que o correto era monstro. “Mononstro eu achava muito mais monstruoso – Mo-nons-tro!” [...] em 11 de outubro de 1996, enviou-me carta escrita em manhã ensolarada, ao som da Flauta Mágica de Mozart e de Peer Gynt de Grieg. Pôs no correio, comprou carne. Voltou ao “fajuto, falso mirante de Copacabana”, deixou a carne sobre a pia. Sentiu-se mal. Vinha reclamando fazia anos de problemas circulatórios, nefrite. Deitou de costas na cama, de bermudas e chinelos, um pé apoiado no chão. Assim o encontraram, pele e osso, três semanas depois. (SEVERIANO, 2006, p. 57, 82 e 92)

Page 27: Dialogo Aberto[1]

25

O autor também já trabalhou como assessor de imprensa de vários

políticos e partidos do país e editou a revista Almanaque Brasil de Cultura Popular,

distribuída à bordo em vôos da TAM. Atualmente Mylton Severiano assina a coluna

Enfermaria na revista Caros Amigos.

1.2 Fernando Morais: “Livro-reportagem é a única coisa que eu sei fazer”

Fernando Gomes de Morais nasceu em 1946 na cidade de Mariana

(MG), onde viveu até os 18 anos, antes de ir para São Paulo. Começou a trajetória

de repórter na redação de uma pequena revista de um banco em Belo Horizonte,

onde trabalhava primeiramente como office-boy: com a ausência do único jornalista

da revista, foi consultado se poderia participar de uma coletiva, aceitou o convite e

transformou-se em jornalista. Um ano depois, já profissionalmente, foi redator de um

house-organ local. Em 1965 mudou-se para São Paulo, quando começou a trabalhar

no jornal A Gazeta. Um ano depois, incorporou-se ao recém-fundado Jornal da

Tarde, onde passou oito anos, sucessivamente como repórter, redator, sub-editor e

repórter especial. Simultaneamente ao trabalho no Jornal da Tarde, Fernando

Morais foi redator da Folha de São Paulo, do Suplemento feminino do Jornal O

Estado de São Paulo e chefe de reportagem do Departamento de Telejornalismo da

TV Cultura de São Paulo.

Morais também foi um dos editores da revista Bondinho - publicação

da cadeia de supermercados Pão de Açúcar - e colaborador do semanário Opinião e

da revista Status. Em 1970, juntamente com o repórter Ricardo Gontijo, recebeu o

Prêmio Esso de Reportagem pela série Transamazônica, publicada no Jornal da

Tarde e posteriormente editada em livro pela Editora Brasiliense. Em 1974 deixou o

Jornal da Tarde, transferindo-se para a revista Visão, de onde saiu para juntar-se à

Page 28: Dialogo Aberto[1]

26

equipe que fundaria o semanário Aqui São Paulo. (MORAIS, 1976, p. XV). Ainda na

década de 70, Morais deixou a rotina das redações e, desde então, prefere atuar

como free-lancer e dedicar-se aos livros.

Em 1976, em meio a um dos períodos mais duros da ditadura militar

- datam do final de 1975 e início de 1976 os dois últimos assassinatos sob tortura, os

do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho -, Fernando Morais

lança seu segundo livro: A Ilha. Nele, o autor, após três meses vivendo em Cuba,

traça um perfil positivo do país comunista, ao tratar aspectos como saúde,

economia, cotidiano, imprensa, reforma agrária etc. Em 2001, 25 anos após o autor

ter visitado Cuba pela primeira vez, a editoria Companhia das Letras relançou A Ilha,

com a inserção de um novo comentário do autor sobre a realidade do país nos idos

do século XXI.

Em 1985, Fernando Morais lança Olga, que narra a tragédia dessa

judia alemã, membro do serviço secreto militar soviético e esposa do líder comunista

Luís Carlos Prestes. O livro virou filme em 2004 sob a direção de Jayme Monjardim.

Depois do lançamento do livro, Fernando Morais deu um tempo na

literatura para dedicar-se unicamente à política: foi deputado estadual durante oito

anos – pelo MDB - SP e depois pelo PMDB - SP, entre 1978 e 1986, enquanto ainda

produzia Olga – e secretário da Cultura (1988-91) e da Educação (1991-93) do

Estado de São Paulo.

Voltou para a literatura em 1994 para escrever Chatô- o Rei do

Brasil, livro que trata da

[...] história de um dos brasileiros mais poderosos e controvertidos desse século. Dono de um império de quase cem jornais, revistas, estações de rádio e de televisão – os Diários Associados-, e fundador do MASP, Assis Chateaubriand teve trajetória associada de

Page 29: Dialogo Aberto[1]

27

modo indissolúvel à vida cultural e política do país entre as décadas de 1910 e 1960 (MORAIS, 1994, contra-capa)

Em 2001, é lançado, pela Companhia das Letras, Corações Sujos,

uma obra de investigação sobre a Shindo-Renmei, sociedade secreta formada por

imigrantes japoneses que resistiam à rendição do Japão na Segunda Guerra

Mundial. O livro rendeu ao autor o prêmio Jabuti de jornalismo no mesmo ano.

Em 2003 o autor lançou Cem quilos de Ouro, uma coletânea de 12

reportagens assinadas por ele entre as décadas de 70 e 90. O livro foi concebido

originalmente para ser lançado na coleção Jornalismo Literário, da Companhia das

Letras, mas, como o próprio Morais explica, o trabalho se desenvolveu para outra

vertente.

No decorrer da leitura, acabei me convencendo de que um livro que resultasse da seleção não se encaixaria na série Jornalismo Literário, por mais diversas que sejam as definições do conceito. Havia ali reportagens escritas dentro de um estilo que se poderia chamar de “jornalismo literário”, sim, mas também perfis que estavam muito distantes desse gênero, entrevistas do tipo pingue-pongue e até trabalhos [...] em que o autor nem sequer aparecia no texto. (MORAIS, 2003, p. 9 -10)

Cada capítulo do livro é ainda precedido de um breve texto que

revela como as histórias foram feitas e com o qual o autor deseja responder às

principais questões levantadas por jovens jornalistas e estudantes de comunicação:

Como tal reportagem foi feita? Foi pauta sua ou do jornal? Em que circunstâncias o trabalho se desenvolveu? Quanto tempo você levou para conseguir essa ou aquela entrevista? Que dificuldades enfrentou? Que dilemas éticos? Havia censura? Como era o Brasil daquela época?(MORAIS, 2003, p. 10)

Ainda em 2003, Fernando Morais disputou e perdeu uma vaga na

Academia Brasileira de Letras para o ex-vice-presidente, Antônio Marco Maciel.

Page 30: Dialogo Aberto[1]

28

Em 2005, Fernando Morais lançou Na Toca dos Leões, pela Editora

Planeta. O livro, que conta a história da agência de publicidade W/Brasil e de seus

três sócios, gerou polêmica e teve de ser recolhido em todo o país por ordem de um

juiz de Goiânia por conter informações sobre o deputado Ronaldo Caiado

consideradas pelo político como sendo difamatórias a ele. Fernando Morais recebeu

três vezes o Prêmio Esso, quatro vezes o Prêmio Abril de Jornalismo e uma vez o

prêmio Jabuti de jornalismo. É também autor dos roteiros das minisséries

documentais Brasil, 500 anos e Cinco dias que abalaram o Brasil, exibidos pelo

canal GNT/ Globosat. Tem livros traduzidos em dezoito países. (MORAIS, 2001, p.

349)

Atualmente, Fernando Morais dedica-se ao seu mais recente

trabalho: a biografia do também escritor Paulo Coelho. O livro ainda não possui data

para ser lançado.

1.3 Edvaldo Pereira Lima: "Nenhum assunto, nenhuma pauta é superior ao

valor da vida humana"

Edvaldo Pereira Lima nasceu na cidade de Colúmbia, interior do

Paraná, em 1951. Já residiu em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Costa Rica e

Estados Unidos. Está radicado em São Paulo desde 1971. Graduou-se em Turismo

pela Universidade Anhembi Morumbi em 1975 e em Jornalismo pela Universidade

Metodista de São Paulo em 1985. Possui mestrado e doutorado em Ciências da

Comunicação pela Universidade de São Paulo (1982 e 1990) e pós-doutorado pela

University of Toronto (2001).

Page 31: Dialogo Aberto[1]

29

Lima é o criador do Jornalismo Literário Avançado6, “um estilo de

reportagem de profundidade que alia técnicas narrativas da literatura a uma visão

dinâmica, interdisciplinar e integral da realidade” (LIMA, 1995, p. 170).

Em 1989 escreveu seu primeiro livro: Colômbia Espelho América,

publicado pelas editoras Perspectiva e Edusp; em 1991 é lançado El Periodismo

Impresso y la Teoria General de los Sistemas: Um Modelo Didáctico, publicado na

Cidade do México pela Editora Trillas; em 1993 lança Páginas Ampliadas: O Livro-

reportagem como extensão do Jornalismo e da Literatura, pela Editora da Unicamp,

fruto de sua tese de doutoramento e base teórica deste trabalho. Também em 1993

é publicado O que é livro-reportagem, pela Editora Brasiliense. É também

idealizador e organizador de dois livros-reportagem produzidos em equipe: O Tao

entre nós, publicado em 1994 pela Com-Arte, editora laboratório da Escola de

Comunicação e Arte da USP e Retratos da baía, também de 1994, editado no Rio de

Janeiro pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do

Rio de Janeiro (Faperj). Em 1995 lançou Ayrton Senna - Guerreiro de Aquário. Em

1996 lançou Econautas: Ecologia e Jornalismo Literário Avançado, pelas editoras

Peirópolis e Ulbra, uma série de reportagens experimentais produzidas por alunos

de pós-graduação das quais Lima foi organizador. Finalmente, em 2004, Edvaldo

6 O Jornalismo Literário Avançado é um estilo de trabalho criado por Edvaldo Pereira Lima que traz para dentro do Jornalismo Literário alguns elementos das ciências de ponta do século XXI, como a física quântica, a psicologia humanista, as neurociências, a biologia e a nova história francesa. Para traduzir e integrar tais conhecimentos ao campo da comunicação, Lima desenvolveu um método de trabalho que ele chamou de Escrita Total. A forma narrativa da Escrita Total é similar à utilizada pelo jornalismo literário, porém, a visão de mundo é expandida, os propósitos são ampliados e algumas técnicas são inseridas, como a visualização criativa, o método narrativo da jornada do herói e o mapa mental, este último explicado no capítulo 4 deste trabalho. Todos esses recursos foram empregados pelo pesquisador em Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário, obra em que tanto a narrativa como o propósito diferenciam-se muito do que até então podia ser encontrado no mercado editorial de livros-reportagem no Brasil. O JLA, segundo Lima, foi criado com o objetivo enriquecer a visão de mundo dos autores, possibilitando a criação de obras que ajudem o leitor a transformar sua compreensão da realidade e cujos textos "sejam instrumentos de auxílio à construção de um mundo realmente melhor" (LIMA, 2006).

Page 32: Dialogo Aberto[1]

30

Pereira Lima republicou Páginas Ampliadas: O livro-reportagem como extensão do

Jornalismo e da Literatura, pela Editora Manole.

Já publicou cerca de 70 textos em jornais e revistas, mais de 40

artigos e reportagens, além de ter sido orientador e ter participado de bancas de

graduação, mestrado e doutorado, palestras, congressos e eventos culturais no

Brasil e no exterior. Atualmente é professor da Escola de Comunicação e Arte da

USP, coordenador do site www.textovivo.com.br e coordenador e responsável

pedagógico do curso de pós-graduação em Jornalismo Literário, criado e mantido

pelo Grupo Texto Vivo em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo

Literário (ABJL). Além disso, Edvaldo Pereira Lima cobre o setor de aviação de toda

a América Latina para uma revista americana especializada no assunto.

1.4 Caco Barcellos: “A maneira mais bela de se contar uma história é a da

reportagem”

Cláudio Barcelos de Barcelos, mais conhecido como Caco Barcellos,

nasceu na periferia de Porto Alegre em 1950. Desde pequeno, sofreu diretamente

com desigualdades sociais, o que mais tarde viria a determinar o seu estilo e opção

de trabalho como repórter investigativo. Fez bicos em trabalhos informais desde a

infância, como, por exemplo, vendedor de sucata. Aos 18 anos, enquanto cursava a

faculdade de Matemática, trabalhou como motorista de táxi. Durante o curso de

exatas teve seu primeiro contato com o jornalismo, ao ser convidado para fazer o

jornal do Centro Acadêmico na Universidade. Largou o curso de Matemática para

estudar jornalismo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e

começou sua carreira na Folha da Manhã, em Porto Alegre. Era o final do ano de

1973.

Page 33: Dialogo Aberto[1]

31

Chegou minha vez de correr desta maldita Radiopatrulha. Sou um menino tímido, bem-comportado, nada fiz de errado, mas sei que devo fugir [...] já completei 12 anos, tenho que começar a me prevenir. Fomos pegos de surpresa. [...] Depois que anoitece, eu costumo ficar atento a qualquer movimento lá embaixo. Não que seja necessário. Nossa rua é uma aliada que sempre anuncia o perigo. Sem iluminação pública, cheia de buracos na pista de chão batido, provoca a maior barulheira na lataria da velha RP. Pode ser seguro, mas eu tenho medo, não consigo ficar desatento. Geralmente sou o primeiro a avisar o pessoal. - Lá vem a Bate-lata! Corro descalço pela rua de terra, rente às cercas de madeira [...] Assistimos quietos por muito tempo a covardia habitual do delegado. Estamos de pé, encostados na parede. Quando ele começou a puxar os cabelos do amigo preso, criamos coragem e resolvemos interferir. Já havíamos combinado, em um cochicho, que Manoel falaria primeiro [...] Resolvo interferir. Manoel Luis não suporta sofrer injustiça. Sei que está a ponto de responder aquilo que o delegado merece ouvir. Conheço seu temperamento. Além de grandes amigos, somos sócios na venda de osso e vidro quebrado. Fazemos a coleta em carrinho de mão pelas ruas da vila. Depois vendemos ao caminhão do ferro-velho [...] Desde 1967, os homens da Polícia Civil desapareceram das ruas do nosso bairro. A tarefa do patrulhamento se tornou exclusiva dos policiais militares. Na prática, o novo esquema só começou a funcionar no começo dos anos 70. Os suspeitos, antes perseguidos de forma injusta, agora muitas vezes eram mortos sem chance ou direito de defesa. Não só no meu bairro pobre mas também na periferia de todas as grandes cidades do país. Porém, depois de 73, eu já não sofria como antes. Tornei-me testemunha dos sofrimentos dos outros. Já era repórter. (BARCELLOS, 2004, 25-31)

Durante a Ditadura Militar dedicou cinco anos – de 1975 a 1980 – à

produção independente, em veículos da imprensa alternativa, como a revista

Realidade, o jornal Movimento e o Coojornal, além de ter sido um dos criadores da

revista Versus, especializada em reportagens sobre povos latinos.

Foi com esse olhar que, em 1979, mesmo morando em Nova York -

onde desenvolvia trabalhos paralelos para sustentar a primeira mulher Avani Stein e

o filho Ian e, quando conseguia, fazia free-lancers para veículos brasileiros -, se

aventurou a escrever o primeiro livro: Nicarágua – A revolução das crianças, lançado

pela Editora Mercado Aberto em 1982.

Page 34: Dialogo Aberto[1]

32

Foi em Nova York, a mais de dois mil quilômetros da Nicarágua, que fiz as primeiras entrevistas com pessoas envolvidas na guerra. Era a madrugada de 17 de junho de 1979 [...] No metrô de Nova York, a caminho do trabalho num restaurante irlandês da Terceira Avenida, eu pensava se o Ian, meu filho, também viajaria. Naquele dia, derrubei pratos, quebrei copos, fui desatento. [...] A idéia de viajar a Miami, pegar um avião e desembarcar na guerra, junto com minha mulher e meu filho...Não, não podia ser assim. Que a Avani me acompanhasse, tudo bem. Ela é fotógrafa, está entusiasmada com a perspectiva. Mas o Ian só tem três anos! [...] Tinha começado a trabalhar no Old Stand dia 27 de maio, quando os representantes sandinistas de Nova York anunciaram a “ofensiva final”. Uma coluna de trezentos guerrilheiros, vindos de Costa Rica, invadiu a Nicarágua no dia seguinte. Na segunda semana de trabalho, descobri um vôo especial para Miami a cinqüenta dólares. Tinha economizado 1.200 dólares. Dava! [...] No mesmo dia pedi demissão” (BARCELLOS, 1982, p. 36-37)

Depois de voltar ao Brasil, Caco Barcellos trabalhou ainda nas

revistas Veja e Isto É e apresentou, por seis anos, um programa semanal para a

Globo News, todo produzido nas periferias e áreas mais pobres do país,

principalmente do Rio de Janeiro.

Em 1985 foi contratado pela Rede Globo como repórter para o

Jornal Nacional, Fantástico e Globo Repórter. Já cobriu guerras, catástrofes

naturais, guerrilhas e se dedicou a grandes reportagens investigativas, entre elas a

que deu origem ao seu segundo livro, Rota 66 – A história da polícia que mata,

resultado de sete anos de pesquisa sobre os abusos e crimes cometidos pela Polícia

Militar contra civis, durante o patrulhamento na cidade de São Paulo, no período de

1970 a 1992. O livro, que foi lançado pela primeira vez em 1992 pela Editora

Record, ganhou o prêmio Jabuti de Reportagem em 1993 e outros seis prêmios.

Em 1996 ganhou o Prêmio Vladimir Herzog por uma reportagem

feita para a televisão sobre os 20 anos do atentado militar, durante a ditadura,

deflagrado no Riocentro por ocasião das comemorações do Dia do Trabalho.

Page 35: Dialogo Aberto[1]

33

Em 2002 passou a ser correspondente da Rede Globo em Londres e

Paris, países onde ficaria por quatro anos.

Em 2003, Caco lançou seu terceiro livro: Abusado – O dono do

morro Dona Marta, um relato do tráfico nos morros cariocas. No livro, que lhe custou

quatro anos de pesquisas, Caco conta a história da terceira geração do Comando

Vermelho, que levou a organização a controlar o comércio ilegal de drogas nos

morros do Rio de Janeiro. Tendo como fio condutor a história de Márcio Amaro de

Oliveira, o Marcinho VP, tratado no livro como Juliano, Caco conduz o leitor pelas

vielas e becos da favela Dona Marta – escolhida por ele por ser uma favela vertical e

de enorme concentração populacional, entre outros motivos -, dando ênfase para as

condições físicas e sociais do local, o poder e meandros do tráfico de drogas e a

relação da polícia com os fatos ocorridos no morro. Abusado rendeu a Caco

Barcellos seu segundo Prêmio Jabuti na categoria não-ficção em 2004.

Atualmente o jornalista mora em São Paulo, comanda a série

Profissão Repórter, no Fantástico, e trabalha na produção de seu quarto livro.

Pudemos acompanhar, neste capítulo, os principais acontecimentos

da trajetória profissional dos autores aqui analisados e o contexto que deu origem a

cada obra, porém, não é somente por esse caminho que tentaremos compreender

as etapas de produção de livros-reportagem. Cada autor possui métodos e

procedimentos de trabalho próprios, e é na experiência pessoal, em confronto com

as sugestões do pesquisador Edvaldo Pereira Lima, que nos deteremos nos

próximos capítulos.

Page 36: Dialogo Aberto[1]

34

CAPÍTULO 2: PRIMEIROS CONFRONTOS

Já pudemos acompanhar, no capítulo anterior, alguns momentos

importantes da trajetória profissional dos autores Fernando Morais, Mylton

Severiano, Caco Barcellos e Edvaldo Pereira Lima, bem como identificar o contexto

no qual estão inseridas suas respectivas obras. Neste capítulo, nos ateremos ao

diálogo entre a obra de Edvaldo Pereira Lima, Páginas Ampliadas – O livro-

reportagem como extensão do jornalismo e da literatura, e a opinião dos autores

sobre os conceitos, funções e as motivações que os levaram a optar pelo livro-

reportagem, além das possíveis classificações que poderiam ser dadas à

modalidade. No decorrer da análise, ainda serão inseridos trechos da entrevista

realizada com Lima, com o objetivo de acrescentar ou elucidar pontos relevantes.

2.1 Conceito, funções e motivações

Como já vimos, Lima, em sua tese de doutoramento, afirma ser

possível dizer que:

[...] o livro-reportagem é um dos gêneros da prática jornalística, dadas as suas especificidades relacionadas com a função aparente que exerce, com os elementos operativos de que se utiliza e com o modo como combina as regras que determinam as relações desses elementos. (LIMA, 2004, p.62)7

Tal afirmação encontra eco, principalmente, no pensamento de Caco

Barcellos, ainda que em menor escala de complexidade. Em entrevista a nós

concedida, Barcellos, ao descrever os processos pelos quais realiza seus trabalhos,

indica que as técnicas aplicadas para se fazer uma pequena reportagem são as

7 Não nos ateremos, neste capítulo, às definições de livro-reportagem propostas por Edvaldo Pereira Lima por entendermos que o assunto, se não esgotado, já foi suficientemente abordado na Introdução.

Page 37: Dialogo Aberto[1]

35

mesmas utilizadas quando o autor se propõe a escrever um livro, o que corrobora a

tese de Lima:

Os meus critérios são semelhantes aos de qualquer reportagem que eu faça. Ou uma reportagem de cinco minutos que eu tenho que fazer pra tv, ou um livro de 600 páginas, meus critérios são os mesmos, exatamente iguais. É claro que eu aviso pro telespectador que eu tive só cinco minutos pra aquela apuração, então deu tempo só pra meia entrevista. No caso do livro tem o componente de que eu já estou muito enfronhado na história, aí decidi que vou fazer o livro. Uma vez decidido, eu parto pra uma grande apuração, quero dizer, do tamanho que eu acho necessário pra eu poder ter um razoável entendimento daquela história. (BARCELLOS, 2006)

Fernando Morais também liga os processos utilizados para a

produção de um livro-reportagem aos por ele empregados nas redações dos jornais

em que trabalhou.

Eu não tenho muita metodologia não, porque a forma de trabalho varia de personagem pra personagem, às vezes não é nem uma biografia, é história, como o Corações Sujos. Mas não tem muito segredo [...] é quase tudo vício de redação, tudo cacoete de jornalista. (MORAIS, 2006 – grifo nosso)

Uma vez entendido o livro-reportagem como sendo um "subsitema

do sistema jornalismo", nos cabe perguntar em que contexto e por quais motivos

tantos jornalistas optam pela modalidade. A resposta pode ser encontrada ao se

realizar uma análise - mesmo que superficial – das práticas incorporadas nas

redações nas últimas décadas. A corrida cada vez mais sufocante conta o tempo, a

construção de mensagens pelo uso da fórmula mais rápida do texto pasteurizado

nos elementos o que, quem, quando, onde, como e porque e a recorrência apenas a

fontes consideradas legítimas (LIMA, 2004, p.66) são os fatores que, tanto Edvaldo

Pereira Lima quanto os outros autores estudados, identificam como sendo

responsáveis pelo quadro reducionista em que a imprensa se encontra.

Segundo Lima:

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36

[...] se pode compreender o espaço que o livro-reportagem acaba ocupando, preenchendo o vazio deixado pelas publicações periódicas. Trata-se da questão da superficialidade e do extremo oportunismo com que se apresenta o trabalho da imprensa cotidiana. Atrelada ao fato em ocorrência, a imprensa luta contra o relógio, briga com a concorrência, desse modo praticando em muitas ocasiões o exercício de uma informação pública imprecisa, incompleta. (LIMA, 2004, p. 31-32)

Mylton Severiano, em explícito acordo com o pensamento de Lima,

aponta as preocupações financeiras das empresas jornalísticas – e as novas

práticas inseridas nas redações em decorrência deste fato - e o uso dos manuais de

redação, como sendo fatores de cerceamento da liberdade dos repórteres, que

poderiam desenvolver suas habilidades autorais se não fossem tais restrições.

Eu brinco que às vezes a mídia gorda se engana e publica uma boa reportagem. Parece que eles erraram. Ás vezes aparece uma reportagem legal, bem escrita, com preocupação de beleza, porque o texto não precisa ser ‘apenasmente’ bem informado. O repórter trouxe tudo, trouxe tudo da rua, mas aí ele é obrigado, por questões industriais ou porque tem o manual de redação que ele tem que obedecer, ele não pode fazer um texto autoral. Eu acho que são louváveis esses jornalistas que, por falta de veículo, põem a história deles num livro, eu acho maravilhoso isso. Imagina se ao invés de eles estarem escrevendo um livro a cada dois, três anos, cinco anos, se eles tivessem fazendo uma reportagem por mês ou a cada dois meses. (SEVERIANO, 2006)

Na esteira de tais afirmações, também encontra-se a opinião de

Fernando Morais, que salienta a falta de tempo como sendo um fator limitante à

capacidade literária dos jornalistas em trabalhos da grande imprensa.

Todo jornalismo deveria ser literário, mas não dá, tem hora pra fechar, tem limitação de espaço físico...Nas revistas você encontra gente ali capaz de fazer livros de uma qualidade estética, de uma qualidade literária impecável e que não pode fazer isso no cotidiano do jornal, porque não dá tempo. A realidade comprova isso. Há um mercado interessante [de livros-reportagem], há uma demanda interessante por histórias do Brasil. Começou com a ditadura, com o fim da ditadura, que foi quando as pessoas começaram a poder se assanhar. Então se você olhar de lá pra cá o que saiu nessa área, é uma barbaridade e acho que isso se deve à carência de grandes reportagens na imprensa. O livro-reportagem supre hoje uma deficiência da imprensa. (MORAIS, 2006)

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Assim, considerando os atuais padrões de rotina inseridos nas

redações com a nova formatação da imprensa como empresa capitalista, o livro-

reportagem surge com a função aparente8 de informar e orientar o leitor em

profundidade sobre ocorrências sociais, fatos cotidianos, situações, idéias e figuras

humanas, de modo que ofereça ao leitor um quadro da atualidade, mostrando-lhe

um sentido, um significado para o mundo contemporâneo (LIMA, 2004, p.39). Na

entrevista referida acima, Lima confirma e complementa tal pensamento.

Qual é o primeiro objetivo do livro-reportagem? É ampliar um conhecimento e explorar informações que não estão esclarecidas, que às vezes o público até tem uma certa noção, mas ela não está compreendida. Na medida em que o principal objetivo do livro-reportagem deve ser lançar luzes de compreensão sobre a realidade, o livro-reportagem em princípio, não existe para simplesmente denunciar, ou investigar, ou contar abobrinhas. Ele existe como esforço de compreensão de um certo tema. Normalmente, o noticiário traça uma informação no seu nível, digamos, primário, factual do que houve, mas o que aconteceu, o que está nos bastidores, como o processo evoluiu, como são as pessoas envolvidas na ação.... Isso tudo nem sempre no periódico dá tempo pra colocar, então o livro-reportagem amplia o olhar sobre a realidade, e traz esse subsídio contextual que os periódicos não têm. Então o leitor, ao investir seu dinheiro, pagar dez, vinte, quarenta, sessenta reais, num livro-reportagem, terá em troca uma abordagem mais contextualizada de um tema já conhecido num certo nível, ou a abordagem inédita de um tema que nem foi considerado. (LIMA, 2006)

A opinião de Barcellos é similar à de Lima. Para ele, o livro-

reportagem, ao contrário daquilo que as redações têm praticado, mantém a

reportagem viva, o que acaba por ser um fator de atração para os leitores:

[A importância do livro-reportagem] é que eles mantêm a reportagem viva, contra a vontade dos jornais, das revistas, que assassinaram a reportagem. As editoras hoje estão caçando autores de livro-reportagem, que vendem muito mais que os ficcionistas, e atribuo isso à necessidade que as pessoas têm de ler histórias com profundidade, com riqueza de detalhes, porque não há mais isso na grande imprensa. (BARCELLOS, 2006)

8 Lima utiliza-se do termo “aparente” pois não descarta as outras funções exercidas pelos livros-reportagem, como as funções ideológica, política, econômica, educativa e todas as demais (conf. LIMA, 2004, p. 40)

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A vontade de manter a reportagem viva, o anseio de contar histórias

com profundidade e a possibilidade de utilizar todo o potencial que lhes é inerente.

Estes são alguns dos motivos apontados pelos autores para a escolha do caminho

do livro-reportagem. Para Lima, são exatamente as limitações ou inadequações do

jornalismo periódico os fatores que abrem espaço para o livro, no qual a primeira

marca é, muitas vezes, a liberdade do autor, o que permite ao jornalista fugir aos

ditames convencionais que restringem sua tarefa de construtor de mensagens na

imprensa cotidiana. (LIMA, 2004, p. 63)

É fácil compreender que o livro-reportagem, agora, como no passado, é muitas vezes fruto da inquietude do jornalista que tem algo a dizer, com profundidade, e não encontra espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de trabalho, na imprensa cotidiana. Ou é fruto disso e (ou) de uma outra inquietude: a de procurar realizar um trabalho que lhe permita utilizar todo o seu potencial de construtor de narrativas da realidade. (LIMA, 2004, p. 33-34)

Ambas hipóteses apontadas por Lima estão em consonância com a

experiência dos autores estudados. Para Barcellos, a motivação vem da

necessidade de tratar de temas que, mesmo que as pessoas sejam capazes de

emitir opinião sobre eles, ainda existem lacunas não abordadas pela mídia, o que

acaba por deturpar a opinião do público. Na entrevista referida, Barcellos explica os

motivos que o levaram a escrever cada um de seus livros9:

Na guerra da Nicarágua eu me envolvi lá com os guerrilheiros, fiquei um tempo mais preocupado em contar a história sobre a guerra [...] Mas daí acabou a guerra, voltei pra onde eu morava, que era Nova York, passei pelo Brasil e me dei conta que eu tinha feito uma cobertura que a imprensa não tinha falado nada a respeito. A imprensa tinha feito uma cobertura centrada nas entrevistas coletivas no lado da ditadura e alguma coisa de orelhada da guerrilha, mas dificilmente com os guerrilheiros e menos ainda, muito menos ainda com o povo envolvido na guerra. Eu falei: “Olha, porque não escrever isso então se aqui no Brasil as pessoas só ficaram sabendo da guerra pela visão oficialista da ditadura, que perdia os combates progressivamente, a visão americana também e alguma coisa do que os combates revelavam, sobretudo a destruição?” Mas intimidade da guerra, pela visão dos vencedores, nada, praticamente nada, com

9 Este aspecto na obra de Caco Barcellos será abordado novamente mais adiante, no capítulo sobre definições de pauta.

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algumas exceções. Daí eu achei, “bom, aí tem um livro, eu acho”. E eu fui pra contar essa história e fiz meu primeiro livro assim. Com o Rota foi uma coisa parecida: eu trabalhava muito na cobertura de assuntos relacionados à injustiça social e dava conta que a polícia matava todo dia e o noticiário não falava nada. Outro fator que me levou a escrever é que eu achava que a imprensa mentia todo dia. Nesses episódios, que retratavam só a visão do Comando da Polícia Militar, que é uma visão mentirosa, versão mentirosa, então eu estava em crise profissional, achando que era um absurdo. Se eu sei que é mentira, como eu não faço nada ou faço muito pouco? Eu pensava: "ou saio dessa área do jornalismo ou eu faço alguma coisa, como cidadão, não como repórter". Resolvi fazer um livro pra provar que quem matava era o Estado. O Abusado, só pra finalizar esse raciocínio, eu acho que os brasileiros falam muito sobre drogas, como mais ou menos acontece com o futebol, todo mundo sabe escalar um time, tem opinião pra tudo, mas eu acho que conhecem pouco o universo do tráfico, sobretudo o universo dos traficantes que são os protagonistas da história. Quase sempre é uma reprodução do discurso dos policiais, dos coronéis da PM, ou de especialistas da academia que nunca sobem o morro, que jamais falam com os moradores do morro. Mas olha, é uma visão só ou só a visão dos organizados, da sociedade organizada. E o outro lado? Os traficantes? Os moradores do morro? Todo mundo emite juízo sem conversar com os moradores, sem conhecer como é por dentro o tiroteio, como funciona uma boca de cocaína, e eu tinha muita informação sobre isso. “Aí tem aqui uma história que precisa ser contada”. Então a motivação sempre foi a mesma: tratar de temas que dizem respeito ao cotidiano das pessoas, que todo mundo tem opinião, mas que tem algumas lacunas que eu acho que merecem trazer a tona. (BARCELLOS, 2006)

Para Fernando Morais, a motivação vem de questões financeiras.

Apesar de serem verdadeiras, as afirmações foram por nós entendidas como uma

ironia do autor, já que ele trilhou um longo caminho de reportagem até chegar à

situação profissional que o possibilita concentrar-se apenas na produção de livros.

[Livro-reportagem] é a única coisa que eu sei fazer. Eu nem sei se fazer isso é muito, mas é a única coisa que eu sei fazer. Eu não sei porque eu faço...Eu faço porque eu preciso comer, eu vivo disso, exclusivamente disso, eu não tenho nenhuma fonte de renda. [...] A minha carreira toda foi de repórter, fui outras coisas, fui editor, fui pauteiro, fui copy, mas fazia isso por causa de dinheiro, porque precisava trabalhar. Eu tinha três empregos. Com 20 anos eu trabalhava de manhã como pauteiro da TV Cultura, com o Herzog, com o Jordão, com o João Batista de Andrade. De tarde trabalhava como repórter do Jornal da Tarde, de noite trabalhava como copy da Folha de SP. Mas porque? Porque eu precisava de grana! Se qualquer um dos três me oferecesse uma boa grana só pra eu ser repórter, eu preferia. (MORAIS, 2006)

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2.2 Um ponto de discordância: classificações

Em sua tese de doutoramento, Lima propõe 13 grupos nos quais os

livros-reportagem poderiam estar incluídos, levando-se em consideração a

variedade de linhas temáticas e modelos de tratamento narrativo. Para isso, o autor

usou como critérios “o objetivo particular, específico com que o livro desempenha

narrativamente sua função de informar e orientar em profundidade, e a natureza do

tema de que trata a obra” (2004, p. 51) Assim, temos os seguintes grupos de livro-

reportagem, de acordo com o pesquisador:

Livro-reportagem perfil

Seria a obra preocupada em evidenciar o lado humano de uma

personalidade pública ou de uma personagem anônima que, por suas características

e circunstâncias de vida, representa um determinado grupo social, passando a

personificar a realidade do grupo em questão. Uma variante dessa modalidade é o

livro-reportagem biografia.

Livro-reportagem depoimento

Livro-reportagem que reconstitui um acontecimento relevante, de

acordo com a visão de um participante ou de uma testemunha privilegiada. Pode ser

escrito pelo próprio envolvido na ação – com auxílio de um jornalista ou não – ou por

um profissional que coleta os depoimentos e elabora o livro.

Livro-reportagem retrato

Possui papel parecido ao livro-reportagem perfil, mas, ao invés de

focalizar uma figura humana, concentra-se em uma região geográfica, um setor da

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sociedade ou um segmento de atividade econômica, buscando traçar o retrato do

objeto em questão.

Livro-reportagem ciência

Serve ao propósito de divulgação científica, geralmente em torno de

um tema específico, podendo apresentar caráter de reflexão ou crítica.

Livro-reportagem ambiente

Possui íntima relação com interesses ambientalistas e causas

ecológicas. Pode apresentar uma postura combativa ou simplesmente tratar de

temas que auxiliem na conscientização sobre a importância do equilíbrio entre

homem e natureza.

Livro-reportagem história

Focaliza um tema do passado recente ou mesmo mais distante no

tempo, porém, sempre mantendo algum elemento que o conecta com o presente,

possibilitando, dessa forma, um elo comum ao leitor atual. Esta atualização pode

dar-se tanto com a atualização “artificial” de um fato como por outros motivos.

Livro-reportagem nova consciência

Tem foco nas novas correntes comportamentais, culturais, sociais,

econômicas e religiosas resultantes de ebulições significativas do mundo ocidental

nos anos 60, como a contracultura e os movimentos de aproximação à cultura e

civilização do Oriente Médio e do continente asiático.

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Livro-reportagem instantâneo

Trabalha sobre fatos recém-concluídos, porém, com contornos finais

já identificados. Apesar de ater-se basicamente ao fato nuclear, pode inserir algo de

sua amplitude, de seus desdobramentos.

Livro-reportagem atualidade

Diferencia-se do livro-reportagem instantâneo por selecionar temas

atuais de maior perenidade no tempo, mas cujos desdobramentos finais ainda não

são conhecidos. Assim, permite que o leitor resgate as origens do fato ocorrido, seu

contorno do presente e as tendências possíveis do seu desfecho futuro.

Livro-reportagem antologia

Reúne reportagens agrupadas sob distintos critérios, previamente

publicadas na imprensa cotidiana ou até mesmo em outros livros. Podem ser tanto

reportagens de diferentes temas de um profissional conhecido do público como de

distintos profissionais sobre um único tema. Também incluem-se neste grupo os

trabalhos de diferentes jornalistas, sobre diversos temas, mas que têm em comum

um gênero jornalístico ou uma categoria de prática do jornalismo.

Livro-reportagem denúncia

Possui propósito investigativo e “apela para o clamor contra as

injustiças, contra os desmandos dos governos, os abusos das entidades privadas ou

as incorreções de segmentos da sociedade” (LIMA, 2004, p. 58).

Livro-reportagem ensaio

Trabalha com a presença evidente do autor e de suas opiniões

sobre o tema, de forma que esta presença conduza o leitor a compartilhar do ponto

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de vista do autor. O uso do foco narrativo na primeira pessoa é freqüente no

decorrer do livro.

Livro-reportagem viagem

Tem como fio condutor uma viagem a uma região geográfica

específica, o que serve para retratar aspectos sociais, históricos e humanos das

realidades possíveis do local. Difere-se do relato meramente turístico por evidenciar

a preocupação com a coleta de dados, a pesquisa e com o exame de conflitos. “O

conhecimento constrói-se, ao longo do livro, por via da ótica jornalística, alicerçada

por recursos advindos de diversos campos do saber moderno” (2004, p.59)

Mesmo considerando as 13 propostas de classificação de livros-

reportagem, o próprio Edvaldo Pereira Lima admite que elas não podem ser

entendidas como classificações finais, porque novas variedades podem surgir, em

decorrência da flexibilidade e da criatividade peculiares à obra de não-ficção (LIMA,

2004, p. 59). Tanto é que, o próprio Lima, na entrevista referida, incluiu uma nova

categoria de livros-reportagem: o livro-reportagem ensaio pessoal, na qual ele

inseriu sua obra Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário. Esta nova categoria de livros-

reportagem pode ser compreendida dentro dos conceitos do Jornalismo Literário

Avançado, proposta de trabalho lançada por Lima em Páginas Ampliadas.

O Ayrton Senna está encaixado numa categoria de livros-reportagem que na época do Páginas Ampliadas não tinha precisamente, que é o que eu chamo de livro-reportagem ensaio pessoal. O que é isso? O ensaio é um gênero onde o autor está procurando filosofar um pouco, refletir um pouco sobre um assunto. Esse é o ensaio clássico, que existe na literatura, na história, em todas as ciências humanas, na filosofia, assim por diante. Só que no jornalismo literário, eles começaram a ver que o ensaio poderia ser feito de uma maneira um pouco diferente. Como o Jornalismo Literário exige a humanização, a humanização que aparece é do próprio autor. Então o autor coloca seus pensamentos também, suas emoções, sua experiência de ter vivido aquele tema. Então isso foi evoluindo e de 2001 pra cá [...] o leitor não quer só uma abordagem intelectual das pessoas, quer também a emoção. Aí os jornalistas literários que praticavam o

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ensaio pessoal resolveram enriquecer o ensaio pessoal produzindo um texto que tem as reflexões do autor, mas também tem muita narrativa. Mesmo sem eu saber disso naquela ocasião, intuitivamente, o Ayrton Senna - Guerreiro de Aquário se encaixa perfeitamente no livro-reportagem ensaio pessoal, ele tem todas as características de ensaio pessoal que hoje se pratica nos EUA, no Jornalismo Literário. (LIMA, 2006)

Lima também salienta que a classificação “tampouco pode ser

entendida como uma camisa-de-força que se impõe à realidade. Na prática é

possível que títulos se enquadrem simultaneamente em mais de uma classificação”

(LIMA, 2004, p.59).

Porém, apesar de admitir e permitir esta flexibilidade – ou

justamente por esse motivo -, os autores entrevistados não souberam responder em

qual categoria seus livros poderiam ser enquadrados. Barcellos, ao ser perguntado

se o livro Abusado poderia se enquadrar na categoria Biografia, respondeu:

Eu acho que não, quero dizer, eu não queria [que o livro fosse enquadrado na categoria Biografia], mas o pessoal acabou divulgando como se fosse a história do Marcinho VP. Eu acho que não é. É a história da quadrilha dele, da quadrilha da 3ª geração, mas claro que dá um grande personagem de livro, por ser o chefe da quadrilha. É mais uma reportagem sobre o morro. Eu não sei se ele se enquadra em alguma classificação.Talvez tenha, bem definida, mas eu não sei qual é. Eu comecei a falar romance-reportagem, mas nem sei se existe isso, e acabaram reproduzindo “romance-reportagem”. (BARCELLOS, 2006)

Para Mylton Severiano, a classificação também é confusa:

A editora me inscreveu num prêmio lá, Jabuti, não sei, me inscreveu num concurso como Biografia. É o mais próximo que meu livro está, porque eu conto a vida dele [referindo-se a João Antônio] É uma biografia sim, mas é uma biografia com algumas nuanças, tem crítica literária ali, minha não, porque eu não sou crítico literário, mas eu uso muitos críticos falando sobre ele pra amparar as idéias que eu tenho sobre ele, tem as cartas...É um livro-reportagem também histolografia [o autor quis dizer historiografia]. Tem várias nuanças, mas o mais próximo é de biografia. (SEVERIANO, 2006)

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Apesar de não ter uma resposta do autor Fernando Morais quanto

às classificações, os livros de sua autoria que fazem parte do corpus deste trabalho

foram inseridos, de acordo com a Câmara Brasileira do Livro, nos seguintes grupos:

Chatô – O rei do Brasil e Corações Sujos, Biografias; Cem quilos de ouro,

Repórteres e reportagens e A Ilha em História e Repórteres e reportagens.

Em nosso entendimento, os livros que fazem parte do corpus deste

trabalho poderiam ser enquadrados, segundo as propostas de Lima, nos seguintes

grupos10: Chatô - O rei do Brasil, livro-reportagem perfil; Corações sujos, livro-

reportagem história; Cem quilos de Ouro, livro-reportagem antologia; A ilha, livro-

reportagem viagem e livro-reportagem retrato; Nicarágua – A revolução das

crianças, livro-reportagem viagem e livro-reportagem retrato; Rota 66 – A história da

polícia que mata, livro-reportagem denúncia; Abusado- O dono do morro Dona

Marta, livro-reportagem retrato e livro-reportagem denúncia e, finalmente, Paixão de

João Antônio, livro-reportagem perfil.

Neste capítulo, realizamos os primeiros confrontos entre a

experiência dos autores estudados e a obra de Edvaldo Pereira Lima, Páginas

Ampliadas. Nele, foram definidos os conceitos, as funções e as motivações que

levaram os autores a optar pelo livro-reportagem, além de trabalhadas as

classificações que poderiam ser dadas à modalidade. No próximo capítulo,

partiremos para a etapa inicial de produção de uma obra baseada no real: a

definição da pauta.

10 Assim como sugeriu Lima, quando afirmou que "na prática é possível que títulos se enquadrem simultaneamente em mais de uma classificação” (LIMA, 2004, p.59), enquadramos algumas das obras em mais de uma categoria.

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CAPÍTULO 3: PAUTA

O primeiro passo para se fazer uma matéria jornalística é definir qual

será o assunto a ser abordado, procedimento conhecido no meio pelo nome de

pauta. Considerando que o livro-reportagem é um "sub sistema do sistema

jornalismo" e que ele maximiza os recursos operativos inerentes à prática jornalística

– tendo em mente, é claro, que ele acaba por revestir-se de qualidades específicas,

oriundas de diferentes fontes, influências e procedimentos no interior do jornalismo e

também fora dele, o que faz com que ganhe características individualizadoras

(LIMA, 2004, 61) – é lógico pensar que também o primeiro passo a ser dado para a

confecção de um livro-reportagem é a definição da pauta, isto é, a definição de

rumos e estabelecimento de diretrizes a serem seguidas para se alcançar o objetivo

almejado. Neste capítulo trataremos desta primeira etapa de produção de uma obra

de não-ficção, sempre criando um diálogo entre o trabalho de Lima, Páginas

Ampliadas, e a experiência dos autores entrevistados.

3.1 Pauta: mais que uma simples idéia

Segundo a professora e pesquisadora em comunicação, Cremilda

Medina, a definição da pauta envolve procedimentos que vão além da invenção, e

estão diretamente ligados ao preparo técnico do profissional de imprensa:

A criação de pauta não é ficção – inventar uma meta-realidade, contar histórias literárias sobre a vida -, mas é, sem dúvida, a descoberta de ângulos, a busca de problemas imanentes ou subjacentes dessa mesma realidade. E nesse sentido, os pauteiros e editores que se reúnem para programar seu dia de amanhã e o de hoje precisam de preparo técnico (conjunto de repertório cultural, aprendizado jornalístico e maturidade para assumir mudanças das rotinas) para desenvolver essas pautas, sugerir reportagens, relacionar temas, prever edições especiais. (MEDINA apud LIMA, 2004, p.69)

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Porém, a elaboração da pauta – por mais que possa parecer um

procedimento simples – não é igual para jornalistas em seus trabalhos nas redações

e escritores de livro-reportagem. Ainda segundo Medina (apud LIMA, p. 70), o

trabalho do jornalista é condicionado por uma série de ingerências de angulações,

isto é, ingerências na perspectiva básica sob a qual a matéria será desenvolvida.

Tais interferências estão ligadas às estreitas relações entre o que

ela chama de nível grupal – ou seja, a caracterização da empresa jornalística

conectada a um grupo econômico e político -, nível de massa – observado pela

preocupação em satisfazer a um gosto médio, em embalar a informação com

ingredientes certos de consumo -, e nível pessoal, que apenas superficialmente

oferece maior grau de autonomia, já que mesmo os profissionais que têm liberdade

para colocar seu toque pessoal na matéria, seguem tendências do consumo de

massa e não vão contra a empresa por receio de serem dispensados11.

Assim, o livro-reportagem, por uma série de liberdades inerentes às

suas práticas, "apresenta, ao menos em tese, o melhor potencial para diminuir os

vieses de leitura com que o jornalismo tem encarado habitualmente o real" (LIMA,

2004, p. 81), hipótese esta que não deixa de levar em conta, é claro, as

condicionantes do livro-reportagem, as imperfeições inerentes à percepção humana

e a relatividade de tudo.

Segundo Lima, esse potencial para uma leitura mais aprofundada e

"neutra" da realidade provém da liberdade que o autor de livro-reportagem possui

para: definir o tema que será abordado, estabelecer as angulações – que

desvincula-se, ao menos em tese, dos comprometimentos com os níveis grupal, de 11 Segundo Edvaldo Pereira Lima, o raciocínio é válido para o chamado padrão médio da produção jornalística, o que não significa que tais práticas sejam de todo nocivas, pois "naturalmente, boa parte das matérias pode ser elaborada condicionadas por tais critérios e não há grande prejuízo informativo para o leitor". (LIMA, 2004, p. 72)

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massa e pessoal (quando limitado pela empresa jornalística) -, escolher as fontes a

serem entrevistadas, definir o tempo que o livro irá abordar – livre, assim, da

limitação imposta e restrita ao presente –, liberdade do eixo de abordagem – que

não precisa obrigatoriamente girar em torno da factualidade, do acontecimento – e,

finalmente, liberdade de propósito.

Autor de importantes biografias, Fernando Morais, em entrevista a

nós concedida, explicou como se dá a escolha do personagem a ser trabalhado,

ilustrando seu pensamento com o caso do livro Corações Sujos, que, de acordo com

ele, surgiu "por acaso":

[...]Em primeiro lugar tem que ter algum ineditismo. Tem que ser um personagem que tenha uma vida diferente da minha, da sua, que justifique a energia que você vai gastar com ele, ou seja, ele tem que ser ou agente ou testemunha de coisas, de episódios, de fatos que sejam saborosos. O ideal é que sejam saborosos e importantes. Se você for olhar os meus personagens, sejam os biografados ou não, você vai encontrar esse ingrediente. O ideal é você pegar um personagem cujo trajeto, cujas pegadas, te ajudem a contar um pouco da história do Brasil que não foi contada, história não oficial, não obrigatoriamente a chamada história dos vencidos, pode até ser a história dos vencedores, desde que conte coisas que a história oficial não contou. [...] talvez o caso dos Corações Sujos seja um bom exemplo de como surge um assunto. Por acaso, entrevistando uma mulher, que foi namorada do Chatô quando era mocinha, uma japa, eu perguntei como o Chatô tinha chegado perto dela se ele não tinha nenhuma ligação maior com a comunidade japonesa do Brasil. Ela contou que o pai dela tinha sido preso, era um funcionário dos Associados [Diários Associados], e o Chatô deu carteiraço nas pessoas, conseguiu soltar. No dia que ela foi lá agradecer, junto com o pai, o Chatô viu aquela japonesinha e caiu em cima, mas daí eu já não estava me interessando mais pela história da paixão, eu queria saber porque o pai tinha sido preso, se era por razões políticas e tal, e ela disse: "Não, era por causa da Shindo Renmei", eu disse "Que Shindo Renmei?" Na hora que eu falei Shindo Renmei, que eu comecei a perguntar, ela começou a arrepiar, a dizer, "Ahh não, não, não se preocupe, isso é uma briga de família, de japonês", o que só fez despertar o meu interesse. Essa história, enquanto eu escrevi Chatô, eu guardei, eu tenho um arquivinho de histórias que podem, em algum momento, servir. Quando estava para terminar o século, 97, 98, o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, me propôs um livro, que seria muito legal, e que a gente chamava enquanto não tinha nome como “O século das sombras”. Era fazer uma recontagem que era pra sair no ano 2000, personagens e histórias do século XX que

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não tinham sido objeto de interesse ou de historiadores ou de jornalistas, ou seja, personagens que estão enterrados por aí e que foram da maior importância, ou de muita importância. Essa ia ser uma das histórias [referindo-se à Shindo Renmei], e eu falei pro Luiz: ”Ô Luiz, tô com dó. As histórias dos japoneses...de gastar num capítulo, porque é um desperdício, porque dá um filme, dá um livro, dá uma minissérie, dá o que você quiser" E ele falou: "Taca o pau então", e o livro nasceu assim. Eu tenho hoje dez histórias pra escrever, prontas, dez assuntos que eu poderia imediatamente começar a trabalhar neles, sabe. Se eu for declamar esses assuntos aqui, você vai achar que tem uma certa obviedade, "É, mas que engraçado, como ninguém se lembrou de escrever sobre essa pessoa se tem uma história tão legal, ou sobre esse episódio?", não sei dizer, mas é isso, é um negócio que o Darci Ribeiro costumava dizer e me anima muito essa frase: “Esse país é ótimo, o que falta é gente pra contar". Quase é possível dizer que dá pra escolher o tema que quiser, tem personagem à vontade porque a gente vive numa diversidade cultural riquíssima e num país em construção...(MORAIS, 2006)

Para Caco Barcellos, suas pautas não surgem de algo muito

planejado, mas sim como conseqüência de um trabalho que já vem sendo

desenvolvido.

Eu jamais poderia escrever um livro a partir de um projeto muito planejado. Eu acho que eu tenho que estar já há algum tempo envolvido em determinado tema, ou em determinada história, e aí eu fico extremamente ansioso, convivendo mal com aquele volume grande de informação e eu tenho que dar um sentido pra aquilo, então eu acho que é hora de escrever um livro. Pelo menos os três que eu fiz até agora essa situação se repetiu.12 (BARCELLOS, 2006)

Ao contrário de Caco Barcellos e Fernando Morais, que, cada um

com seu método pessoal, constroem suas pautas a partir de análises sobre qual

personagem tem maior potencialidade para ser desenvolvido ou de trabalhos que já

vêm sendo realizados anteriormente, Mylton Severiano atribui o nascimento da idéia

de seu último livro a um acaso:

Eu fui amigo do João Antonio 30 anos e a gente morava...ele no Rio e eu em São Paulo, uma época ele na Alemanha... Como era uma

12 Outro trecho da entrevista com Caco Barcellos que trata dos processos iniciais de realização de um livro-reportagem e estão descritos com mais detalhes pode ser encontrado no capítulo 2 deste trabalho.

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época pré-Internet e telefone era muito caro, então a gente trocava cartas. A gente trocou por volta de 500 cartas das quais eu perdi metade porque eram duas caixas e uma delas eu perdi numa mudança, então sobraram 223 cartas. Eu estava conversando com o Sérgio de Souza, que é o editor da Caros Amigos, isso há uns cinco anos atrás, à propósito da série "Os rebeldes brasileiros", que a editora Casa Amarela havia lançado, e um deles era o João Antonio, e a propósito disso eu comentei com ele: "Rapaz, você sabe que eu tenho 223 cartas do João Antonio", e ele falou: "Então porque você não faz um livro?" Então eu devo esse livro a esse, sabe, a essa conversinha coloquial ali, porque ele me botou um desafio interessante ali na frente. (SEVERIANO, 2006)

Na experiência prática de Edvaldo Pereira Lima, desde os primeiros

passos para a criação do livro-reportagem já é possível identificar os elementos do

Jornalismo Literário Avançado, com sua nova forma de visão de mundo, integrando

várias ciências humanas à pratica jornalística.

Como nasceu esse livro Ayrton Senna- Guerreiro de aquário? Nasceu assim, num curso de pós-graduação que eu conduzia na USP, os alunos precisavam fazer um trabalho final e, naquela ocasião, o trabalho prático seria escrever um livro-reportagem coletivo. Cada aluno escolheria uma sessão dentro de um tema único de fundo que era o seguinte: nós queríamos encontrar na sociedade brasileira daquela época, e eu estou falando do início nos anos 90, setores da atividade econômica onde houvesse profissionais trabalhando com foco de mundo diferenciado, um foco mais integral e sistêmico, mais holístico, não no sentido pejorativo místico, mas aquela perspectiva que hoje, por exemplo, é falada na administração de empresas, uma visão mais integral das coisas, aí nós mapeamos cinco áreas do conhecimento e fomos entrar nelas. Umas das áreas seria o esporte e aí o caso que o aluno encarregado do tema descobriu seria mostrar o trabalho pioneiro do Nuno Cobra, que é um preparador físico que, já naquela época, usava não só recursos de preparo físico dos atletas, mas também um trabalho pioneiro de preparo mental e o grande caso de sucesso do Nuno Cobra era o Ayrton Senna. E daí eu me interessei muito pelo trabalho do Nuno e quis me aproximar dele. Ao mesmo tempo, os meus alunos falaram de mim pro Nuno: “Pô, mas tem um cara na ECA, um professor de jornalismo com essa visão diferente” e ele disse: "Eu quero conhecer". Então houve uma simpatia mútua, nos conhecemos, ficamos amigos e logo depois ele me convidou pra ajudar a trabalhar num livro. Ele queria escrever um livro que seria contar o método dele, então eu respondi a isso. Então aí esse processo e mais um fenômeno intuitivo que começou a ocorrer comigo num tempo anterior, geraram a idéia do livro que é a seguinte: eu comecei a sonhar com o Ayrton Senna e achei muito estranho porque eu não admirava o Ayrton Senna, não acompanhava a Fórmula 1. Comecei a achar esquisito, mas comecei a prestar atenção porque eu acho

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que a gente enxergar os processos intuitivos é muito importante pra você sentir qual é o tema que realmente vai chamar você para fazer um mergulho importante. Se você não tiver uma conexão pessoal com o tema não adianta, não funciona. Como eu sou uma pessoa estudiosa dessas coisas novas, inclusive trago pro jornalismo elementos desses conhecimentos todos, eu fiquei muito interessado mesmo e aí eu falei "Pô então agora ta na hora de escrever um livro sobre o Ayrton, porque há vários aspectos do Ayrton Senna que a mídia não fala", por exemplo, o treinamento mental que ele tinha, a mídia não falava [...]. Depois [esse projeto] não deu certo, o projeto parou, não caminhou, por n fatores e a coisa ficou um pouco estancada. Daí o Ayrton Senna morre. Quando o Ayrton Senna morre, eu pensei: "Bom, aquilo que eu tava querendo fazer não pode ficar de lado, as pessoas não podem ficar sem saber disso. As pessoas têm que ter um conhecimento do que era o Ayrton Senna nesse aspecto também e o que está ligado a isso tudo", daí então eu retomei o projeto que tinha sido esboçado antes com um foco diferente, incluindo coisas do trabalho anterior e obviamente incluindo um ângulo diferente que era o impacto da morte dele, porque o esboço do primeiro livro era essa coisa de mostrar esse lado do Ayrton Senna, de onde vem isso, que visão de mundo está aí atrás e quais são as coisas que estão acontecendo nas ilhas de excelência da ciência transformando a nossa perspectiva da realidade. (LIMA, 2006)

Neste capítulo procuramos estabelecer os conceitos de pauta - e os

ruídos inerentes à pratica jornalística que acabam por interferir na definição e

tratamento do assunto abordado - e as liberdades oferecidas a quem se dedica a

uma obra de não-ficção, além de acompanhar como se dão, na prática, todos esses

processos. No próximo capítulo, daremos continuidade ao diálogo travado entre

teoria e prática, no que diz respeito à segunda etapa do processo: a captação de

informações.

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CAPÍTULO 4: CAPTAÇÃO DE INFORMAÇÕES

Definido qual assunto ou personagem a ser trabalhado - ou seja,

definida a pauta - estabelecidas as angulações a serem dadas e o eixo de

abordagem inicial a ser aplicado, o autor de livro-reportagem passa para a etapa que

é, pelo menos em tese, a mais extensa a ser cumprida: a captação de informações,

assunto que iremos abordar neste capítulo do trabalho.

4.1 Técnicas de Apuração

Edvaldo Pereira Lima, em Páginas Ampliadas, sugere seis métodos

de captação: a entrevista, as histórias de vida, a observação participante, a

memória, a documentação e a visão pluridimensional simultânea.

O primeiro, e mais clássico de todos, a Entrevista, para Lima, é mais

que um mero procedimento de captação, porque, quando bem sucedida, cumpre o

papel de "estimular, criar um clima autêntico de conexão entre entrevista e receptor"

(LIMA, 2004, p.90), auxiliando a compreensão real, mas também colocando dose

adequada de emoção, necessária, segundo o pesquisador, para que os atos de

comunicação sejam bem resolvidos.

Segundo a também pesquisadora Cremilda Medina (apud LIMA,

2004, p.92), as entrevistas podem ser agrupadas em duas tendências: a de

espetacularização, que é sempre uma caricatura das possibilidades humanas, e a

de compreensão, que busca o aprofundamento.

Descartada a entrevista de espetacularização, por não atender aos

objetivos do livro-reportagem, Lima propõe que o escritor utilize a tendência da

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entrevista de compreensão e seus diversos subgêneros – a saber: entrevista

conceitual, entrevista/enquete, entrevista investigativa e confrontação/polemização -,

procedimentos que podem ser utilizados tanto individualmente, como também de

forma conjugada.

Ainda dentro desta técnica da entrevista, o pesquisador propõe um

procedimento por ele chamado de perfil humanizado, "que se caracteriza pela

abertura e proposta de compreensão ampla do entrevistado em vários aspectos, do

histórico de vida ao comportamento, dos valores aos conceitos" (LIMA, 2004, p. 93).

Nesta técnica, que busca construir um retrato humano por trás, muitas vezes, do

ídolo ou da figura pública, apesar de existir a pauta, coexiste a flexibilidade de o

entrevistador, em dado momento, abandoná-la para entrar numa variante mais

empática com o entrevistado, chegando até a despertar emoções.

Outro recurso de captação sugerido em Páginas Ampliadas, são as

Histórias de Vida que também aparecem nos livros-reportagem, mesclados a outros

procedimentos, na forma clássica de entrevista – "com a reprodução do diálogo

entre o entrevistador e o entrevistado ou como depoimento direto, ou ainda numa

mescla em que se combinam essas modalidades de apresentação com narrativa em

primeira ou terceira pessoa" (LIMA, 2004, p. 114).

Proveniente das ciências sociais e, sobretudo, da antropologia, as

Histórias de Vida, segundo a professora de comunicação Dulcília Schoeder Buitoni,

são entrevistas livres acompanhadas de observação participante e, apesar de não

haver uma definição rigorosa sobre o que seja o recurso,

[...] uma entrevista de tipo aberto se define como história de vida uma vez que utiliza a vivência do entrevistado de maneira longitudinal, buscando encontrar padrões de relações humanas e percepções individuais, além de interpretações sobre a origem e o funcionamento dos fenômenos. (BUITOINI apud LIMA, 2004, p. 93).

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O resultado do uso deste procedimento seria uma visão multiangular

dos personagens trabalhados, seus comportamentos, seus problemas, suas

realidades.

Outra técnica que provém das ciências sociais e pode ser utilizada

no livro-reportagem é a Observação participante. Tal procedimento teve seu apogeu

na época da inovação norte-americana conhecida como new-journalism, que

descobriu que não há como retratar a realidade senão com vivacidade, cor,

presença. "Isto é, com mergulho e envolvimento total nos próprios acontecimentos e

situações, os jornalistas tentando viver, na pele, as circunstâncias e o clima inerente

ao ambiente de seus personagens" (LIMA, 2004, p. 122-123). Portanto, tal técnica

consiste no registro dos gestos cotidianos, das maneiras, costumes, hábitos, estilos

de vestuário, decoração, móveis, estilos de viagem, comida, modos de

comportamento etc. Mesmo que sem a mesma intensidade com a qual a observação

participante era aplicada nos anos 60, ela ainda hoje é utilizada e surge como

proposta de Lima para a confecção do livro-reportagem.

O próximo método de captação sugerido pelo pesquisador é o que

ele chama de Memória, que seria o "resgate de riquezas psicológicas e sociais"

(LIMA, 2004, p. 127), por um trabalho de reconstrução feito pelo narrador,

ultrapassando os limites da informação concreta para se chegar a uma dimensão

superior de compreensão dos atores sociais e da própria realidade em que se insere

a situação examinada. Nesta etapa, porém, Lima não indica se o procedimento seria

executado por meio da realização de entrevistas, documentação ou mesmo as duas

formas conjugadas.

E por falar em Documentação, este é o próximo tópico a ser

abordado por Lima, quando refere-se à coleta de dados em fontes registradas de

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conhecimento, procedimento que funciona como auxílio à fundamentação do tema

de que trata a reportagem (ou a grande-reportagem). Apesar de o autor identificar

uma deficiência neste campo na imprensa brasileira, Lima destaca alguns autores

que são exceção no assunto, como o próprio Fernando Morais, que veremos mais

adiante.

O último método de captação sugerido pelo pesquisador é o por ele

chamado de Visão pluridimensional simultânea, que seria a incorporação de óticas

modernas abrangentes, em contrapartida à visão reduzida do cartesianismo aplicado

na atualidade. Nela:

O jornalismo não deixa de abordar o real, não se confunde com a ficção. Mas nega que real seja apenas sua porção mais aparente, visível, concreta, material [...] Nem se trata do mergulho no imaginário como fantasia ou ficção, mas como elementos que ajudam a explicar o real num contexto total, sistêmico. (LIMA, 2004, p.130)

Segundo Lima, os primeiros a introduzirem esta nova visão da

realidade foram os "novos-jornalistas", com os monólogos interiores dos

personagens e fluxos de consciência, até então somente empregados na literatura

de ficção. Este recurso, tecnicamente falando, manifestava-se pelo "ponto de vista

autobiográfico em terceira pessoa", assim explicado por Tom Wolf:

[...] a técnica de apresentar cada cena ao leitor por intermédio dos olhos de um personagem particular, dando ao leitor a sensação de estar dentro da mente do personagem, experimentando a realidade emocional da cena como o personagem a experimenta. Os jornalistas muitas vezes usavam o ponto de vista da terceira pessoa – "eu estava lá" – da mesma forma que o usavam autobiográficos, memorialistas e romancistas. Isso, contudo, é muito limitador para o jornalista, uma vez que ele só pode levar o leitor para dentro da cabeça de um personagem – ele próprio [...] Porém, como pode um jornalista, escrevendo não-ficção, penetrar acuradamente os pensamentos de outra pessoa? A resposta mostrou-se deslumbrantemente simples: entreviste-o sobre seus sentimentos e emoções, junto com o resto. (WOLFE, 2005, p. 54-55)

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E conclui Lima:

Desse modo, a visão multidimensional na captação, como enfoque de percepção do que o jornalista trata nas suas reportagens, transforma-se em instrumento que orienta a entrevista, as histórias de vida, o resgate da memória e a documentação para uma nova potencialidade: a do livro-reportagem com missão de cravar um vínculo mais largo, profundo, na leitura da cativante e complexa realidade que é o mundo contemporâneo. (LIMA, 2004, p. 134)

Dadas as propostas de Edvaldo Pereira Lima para a etapa da

captação de informações, iniciaremos o diálogo entre a técnica proposta e a

experiência dos autores.

Pudemos perceber na análise do material coletado em entrevista

com Caco Barcellos, que mesmo que intuitivamente, o autor utiliza-se de quase

todos os recursos sugeridos por Lima. No trecho reproduzido a seguir, no qual o

jornalista explica os processos de captação de informação para seu livro Abusado,

podemos identificar um intenso trabalho na realização de entrevistas, um mergulho

profundo do autor na realidade do morro – o que poderíamos identificar como

observação participante –, e uma busca pelos processos internos e ações

contextualizadoras dos personagens – encaixáveis nas propostas de história de vida

e até mesmo na de visão pluridimensional simultânea.

[...] no Abusado, eu queria contar a história da terceira geração do Comando Vermelho, porque foi essa geração que levou o Comando Vermelho a controlar o comércio de drogas no Brasil. A primeira coisa era localizar uma quadrilha, isso demorou bastante. Tentei inicialmente na Rocinha, mas daí aconteceram guerras, o cara que tinha me dado a possibilidade de trabalhar lá morreu e eu tive que parar, até conhecer o Juliano, o Marcinho VP, e ele me deu a possibilidade de trabalhar lá no Santa Marta. Daí eu começo a fase que pra mim é a mais fascinante, que é me aproximar das pessoas, conquistar a confiança delas, fazer com que elas contem histórias pra mim. Isso é o que eu acho mais legal. Então algumas técnicas, por exemplo, de apuração: se você diz que João é um covarde sanguinário, provavelmente eu vá jogar o seu depoimento no lixo. O que eu vou querer saber de você? [Barcellos reproduz um diálogo] "O que o João fez pra você dizer que ele é covarde?", “Ahh, ele pegou três crianças da vizinha que todo mundo

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adora e machucou, agrediu com facadas, fez coisas brutais contra as crianças e tirando sangue delas". Então eu quero riqueza de detalhes na ação desse cara, pra não ofendê-lo, não chamá-lo de covarde sanguinário. Eu não quero ofender ninguém, mas eu quero contar histórias do que as pessoas fazem, histórias que permitem confronto da informação pra saber se ela é verdadeira ou não. Então em vez de simplesmente ter uma frase de efeito "João sanguinário covarde", eu quero contar: "O operário João, aquele dia virou comerciante ilegal de drogas, usou o que não devia, cruzou com o inimigo e, em vez de enfrentar o inimigo, foi enfrentar os filhos, cometer atrocidades contra os filhos". E daí eu conto a história um, dois e três e começo, na seqüência, a saber se esta história é verdadeira. Eu tenho o seu depoimento, é importante, mas é um só, então eu te obrigo, forço a dizer quem assistiu àquilo e você diz: "Sete pessoas", então eu vou atrás dos sete. (BARCELLOS, 2006)

Outro trecho que deixa claro o uso dos procedimentos sugeridos por

Lima é este no qual Barcellos, ainda falando sobre o Abusado, explica como

trabalha a documentação:

Bom, se é um crime, tem que haver processo. Vou na justiça, vejo ..mas daí nossa justiça é incompetente, nossa polícia mais ainda. Às vezes crimes acontecem e a polícia não fez nada, nem sequer sabe que aconteceu e aí complica, porque eu não tenho esse dado pra confrontar. Mas se tem é legal, pra ver como a polícia trabalhou isso, como a justiça trabalhou, como tratou desse tema. Geralmente é uma distância imensa entre a verdade do morro e a verdade do judiciário. É uma distância absurda, uma omissão total, uma incompetência recorrente, mas se você sabe, você conhece o universo que está trabalhando, é assim mesmo. Quando crime envolve gente poderosa, gente do lado onde há cidadania, você tem um processo razoavelmente eficaz. Quando envolve pobre, esquece. [Por isso] eu acho que o contexto é importante você ter muito claro, você conhecer o universo que você está trabalhando a priori, porque te ajuda muito a traçar seu caminho. Mas, enfim, tem a imprensa. Ela contou essa história ou não contou? É uma outra fonte. (BARCELLOS, 2006)

Caco Barcellos explicou ainda que, nesta fase de apuração, muitas

foram as dificuldades encontradas, situação que o fez criar métodos alternativos de

investigação, como a adoção de "santinhos" para tentar descobrir a data correta da

morte de algum personagem:

[...] essa história recorrente dos meninos, pra facilitar o exemplo: tá, matou três crianças. Que dia foi? O pessoal nunca lembra. O morro

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não tem memória. Eu tive que levantar as histórias, fazer a cronologia, a partir dos santinhos que as pessoas produzem pra homenagear os parentes que morrem. Eu ficava: "Tem santinho, tem santinho?" Porque com os santinhos você tem as datas. Daí eu comecei, depois de um bom tempo, mais de um ano, acho, quando as pessoas não lembravam, eu falava: "Foi antes ou depois da morte do Zezinho? Foi na semana?" daí as pessoas: "Ah, foi no velório", esse é um outro tipo de apuração...(BARCELLOS, 2006)

Segundo o jornalista, a etapa da captação de informações é a mais

importante e deve ser realizada em exaustão, mesmo que isso signifique ter de

retomar a apuração quando detectada alguma falha, ou quando novos elementos

surgem e são considerados importantes para o bom desenvolvimento da história:

De repente, o pessoal da quarta geração [do Comando Vermelho] entrava na história e queria contar: "Eu tenho uma história do passado interessante pra te contar" e eu não queria. Enfim, eu acabei me convencendo que podia ser legal, até porque eles pediram muito e eu achei interessante, mas o livro estava pronto, estava escrito. Eu retomei tudo do zero, apurando tudo de novo. Então o moleque que entrava na primeira apuração com 14 anos, eu fui atrás da história de quando ele nasceu, vendo o que era interessante pra eu contar. Então quando eu estou contando, no primeiro capítulo, o Juliano com 14 anos, o moleque que tava aparecendo originalmente no final do livro, estava nascendo. Eu tive que acrescentar essa história, sempre evoluindo, e quando o livro chega ao fim, quando ele aparecia na versão 1, na verdade ele veio aparecendo, na versão final, desde o começo, até assumir o poder, que é a 4ª geração que está no poder hoje. Isso pra te dizer como a apuração vai se impondo. (BARCELLOS, 2006)

A partir de tais declarações, é possível perceber como a etapa da

captação das informações, da apuração, é uma etapa exaustiva. O livro Rota 66, por

exemplo, consumiu sete anos de pesquisa de Caco Barcellos. Já em Abusado, o

processo de captação de informações durou quatro anos. Mesmo ponderando que

tais tempos são relativos, já que o autor necessitou conjugar seu trabalho na

televisão com a apuração dos materiais que dariam origem aos livros, Barcellos

confessa que este é um processo de muito fôlego. Quando perguntado até onde ia

sua apuração, respondeu:

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Poxa, isso é terrível. Tem que seqüestrar o livro de mim. Eu não acabo nunca, porque reportagem não tem fim, né. Você falou de sete testemunhas que viram as crianças morrendo, quando você vai falar com a testemunha ela diz que mais gente viu e assim vai. Mas também chega num momento que você pensa: "Bom, essa história ta redonda por aqui". Então, o que eu faço pra poder dar um ponto final em algum seguimento? Bom, eu tenho aqui 80% da história que me parece verdadeira, 20% eu tenho em dúvida. Eu posso trabalhar mais duas semanas pra apurar até 90%, mas vem cá, 80% já tem fonte pra caramba. Lixo 20%, na dúvida, lixo. Então muitas, muitas histórias potencialmente maravilhosas foram pro lixo, porque eu tenho a camisa de força da verdade. No primeiro não tinha tanto [referindo-se ao livro Nicarágua – A revolução das crianças] porque eu estava muito influenciado pelos ficcionistas, então eu me permitia uns vôos. Depois eu vi o que eu realmente quero, fiquei realmente fascinado pela não-ficção, pela realidade das pessoas, que é tão complexa que pode até parecer ficção, cada pessoa tem uma história, mais maluca que a outra [...] O que mudou de um livro para o outro foi a apuração. Pensando no que rolou, eu acho que eu fui me dedicando cada vez mais à apuração. (BARCELLOS, 2006)

Na experiência de Fernando Morais, também é possível identificar a

utilização de vários dos procedimentos sugeridos em Páginas Ampliadas, como a

entrevista e, principalmente, a documentação, que acaba por ser uma característica

bastante forte do autor. No trecho a seguir, extraído de entrevista a nós concedida,

Morais explica, de maneira genérica, como se dá a etapa da captação de

informações para a realização de seus trabalhos:

Em primeiro lugar entrevistas. Primeira coisa é pegar o maior número de pessoas que tenham convivido ou com tema ou com o personagem. Porque primeiro as entrevistas? Porque você vai fazer esse trabalho antes dos outros? Simplesmente por uma questão etária. Em geral você está escrevendo sobre um personagem remoto e as pessoas vão morrendo, então, em primeiro lugar pegar os velhinhos, cerca os velhinhos antes que eles morram. Agora isso já não vale se você for fazer um livro sobre Frei Caneca. Frei Caneca viveu em 1750, é outra metodologia [na verdade, Frei Caneca viveu entre 1779 e 1825]. De qualquer maneira, passou as entrevistas, você vai pegar o quê? Os depoimentos já existentes. Vale pro Frei Caneca: o que existe nos arquivos de Pernambuco sobre o assunto, o que existe no Vaticano, o que existe de depoimento sobre ele? E aí depois você vai fazer a varredura de acervos: onde tiver uma impressão digital da pessoa eu vou atrás. Isso é uma parte gostosa, dependendo do tipo de personagem. De repente aparece alguém que conhece seu personagem e tá no Amazonas. Bom, aí você arranja alguém em Manaus, paga a pessoa, isso quando você não

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tem que ir, pegar avião, ou gastar 12 horas de telefone, mas de qualquer maneira ir atrás de papel, de documento, de depoimento. (MORAIS, 2006)

Outro procedimento muito utilizado por Morais, quando o

personagem lhe permite, é a observação participante13. O uso da técnica fica claro

neste trecho em que Morais descreve a forma como iniciará o seu próximo livro, a

biografia do também escritor Paulo Coelho:

Eu estou abrindo o livro com um avião da Air France rolando no aeroporto de Budapeste. Então eu escrevo: na primeira classe um camarada sozinho, de cabelo branco, jeans preto, coturno preto, camiseta preta e quando o avião está pousando, ele pára os olhos, faz como fosse uma oração, pega uma malinha ali em cima e veste um paletó preto. E daí percebe-se que ele não é um mortal comum, porque na lapela do paletó tem uma chapinha vermelhinha com um fio branco e um vermelho e aquilo mostra que ele é um Chevalier d'Honneur, que recebeu uma comenda que foi criada pelo Napoleão e só é dada pelo presidente e a dele foi colocada pelo Chirac. Pega a malinha, doido pra fumar, um cigarro Galaxy brasileiro, um isqueiro na mão, Zipo, louco pra fumar e todos lugares do aeroporto escrito "proibido fumar, proibido fumar". Percebe-se que ele está um pouco ansioso, olhando do lado de fora, coisa e tal. Eu ainda não disse quem é, o nome do passageiro. Todo mundo pega mala, ele pega uma mochila e a mala dele é uma malinha desse tamanho [faz um gesto com as mãos indicando um objeto pequeno] e acha ela fácil porque ele desenhou com giz, pra achar fácil nos aeroportos, um coração na mala. E sai andando e se espanta. Sai do lado de fora, os passageiros ali pegam táxi, coisa e tal. Ele pega o celular, fala com ódio, acende o cigarro, dá uma chupada, acaba o cigarro de uma tragada só, pega o celular e fala em português: "Puta que o pariu, não tem ninguém me esperando aqui, porra! Ninguém”, pá! [faz sinal de desligar o telefone com força], fica olhando de um lado pro outro, fuma dois cigarros, daí ele ouve um tropel familiar, um bando de repórteres, de câmaras, de jornalistas que estavam esperando na porta errada. Daí ele se ilumina, esse é o verdadeiro Paulo Coelho, autor que já vendeu cem milhões de livros e tal. Conto a viagem dele pela Europa Oriental, conto a viagem pelo Oriente Médio, como é que é, como é recebido, como as pessoas querem apalpar, pegar...sem eu aparecer, como se um mosquito tivesse pousado no ombro dele. Acompanho ele num banquete na França, pra cem pessoas, black-tie, vou com ele pro Cairo, pra Beirute, pra Síria, Praga, Budapeste, Hamburgo, Barcelona. Depois voltamos pra casa dele e depois descrevo a casa dele, uma casa simples, o carro é um carro simples, ele não tem secretária, não tem jatinho, não tem segurança, não tem nada. Ele, a mulher dele e a empregada

13 É interessante observar que, nem Barcellos, nem Morais, conhecem o método pelo nome de observação participante.

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brasileira. Conto como é o dia-a-dia dele, chegar de manhã, abrir o correio, sessenta cartas, às 11h ele abre o e-mail. Ele recebe 1.600 e-mails já filtrados, e um dia, por acaso, dia 25 de agosto, um dia depois do aniversário dele, eu falei: "Deixa que hoje eu quero ver seu e-mail antes de você" Tinha mensagens de 111 países ...esse é o cara...ali eu conto quem é, quantos livros já vendeu, falo dos assédios das mulheres [...] Eu vou terminar o livro voltando ao começo, que é ele 20 anos depois de ter escrito O diário de um mago, refazendo a pé o caminho de Santiago, agora no começo do ano, e eu fui lá, pra encontrar ele no meio da trilha...(MORAIS, 2006)

Mesmo que não declaradamente, é possível perceber, por este

trecho da entrevista, a preocupação de Morais em entrar na realidade do

personagem, o que nos fez estabelecer uma ligação com os outros procedimentos

sugeridos por Lima, como a história de vida e a visão pluridimensional simultânea.

Como já foi dito, Fernando Morais é muito conhecido pelo intenso

trabalho de apuração que realiza antes de publicar uma obra, por isso, também

perguntamos a ele até que ponto esta etapa se estende. A resposta revela, assim

como na declaração de Barcellos, que essa é uma decisão muito difícil a ser tomada

e que não há regras a serem seguidas, já que a decisão depende do entendimento

que o autor tem do processo:

É muito difícil dizer: "Está pronta a pesquisa". Sempre fica um rabicho pra trás, na maioria das vezes um rabicho 'desimportante'. Mas quando é rabicho é rabicho, material descartável. (MORAIS, 2006)

Para Mylton Severiano, o processo de captação das informações

que deram origem à Paixão de João Antônio demorou quatro anos e meio, entre

tratamento das cartas que entraram no livro e apuração. Apesar de se revelar

totalmente avesso a técnicas e processos, é possível identificar em seu discurso

alguns dos procedimentos utilizados, como a entrevista, a investigação e a

documentação:

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Então você vê, é um processo meu, ninguém me falou "faz isso, e isso e isso". Eu não fui pegar um manual de como se faz um livro- reportagem, meu Deus, que isso?! Isso não existe. Eu fui maturando...eu vou também pegar, amealhar, vou pegar todos os livros que eu tenho dele [referindo-se a João Antônio]. Eu tenho praticamente tudo dele em casa, alguns autografados, comecei a reler os livros dele, fui entrevistar as ex-mulheres. Uma delas que está no livro lá, a Tereza, uma crioula, eu só sabia o nome, Tereza, não sabia o sobrenome, só sabia que tinha voltado pra Divinópolis. Quero dizer, tem toda uma saga aí. Enfim, depois de 4 anos e meio estava pronto o livro. (SEVERIANO, 2006)

Para concluir o diálogo entre Páginas Ampliadas e a prática dos

autores no que diz respeito à captação de informações, promovemos o encontro da

técnica com a experiência do próprio Edvaldo Pereira Lima, por ocasião dos

trabalhos que deram origem a Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário:

A minha captação foi entrevistando. Como não pude entrevistar a família, entrevistando o Nuno Cobra, que era uma fonte decisiva, entrevistando muitas pessoas sobre como o impacto da morte do Ayrton Senna aconteceu com elas, escolhendo pessoas de diferentes extratos sociais, de diferentes padrões culturais, médicos, arquitetos, bancários, e ouvindo adolescentes, porque o impacto sobre a criança e o adolescente foi muito grande, eu queria ouvir adolescentes. Nessa entrevista eu tenho a pauta, mas obviamente eu procuro mais conversar do que perguntar, pra que a coisa flua, e tenho flexibilidade. Se a conversa sai do tema central, mas parece importante, eu deixo rolar um pouco e depois eu volto, porque muitas vezes na informação paralela é que surgem coisas importantes, então esse é um instrumento de captação. Um outro instrumento é a observação, dependendo do tipo de matéria, do tipo de livro, eu passo um certo momento só observando os personagens em seus ambientes, sem entrevistar, sem perguntar nada, sem conversar, às vezes até de maneira anônima, não escondido da fonte, mas assim, se a fonte trabalha em um determinado local e eu preciso mostrar como é aquele local, há momentos em que eu entrevisto e há momentos em que eu fico de maneira camuflada, não escondida, porque eu peço a concordância da fonte. O terceiro modo de captar mais convencional é a documentação bibliográfica. Eu pesquiso muito, vou atrás de conhecimento mais profundo se é uma coisa que eu não sei, vou atrás de dados factuais, estatísticos, informações bem concretas. Se é um tema mais sofisticado, vou atrás de teorias, se for necessário eu posso entrevistar especialistas pra esclarecer um certo ponto ou testemunhas de uma situação, dentro do objetivo de pauta que eu tenho. Isso completa a captação. (LIMA, 2006)

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É interessante observar, neste trecho da entrevista, que Edvaldo não

cita os instrumentos: histórias de vida, memória e visão pluridimensional simultânea,

o que nos faz concluir que tais técnicas estão inseridas e podem ser aplicadas por

meio do uso da entrevista, da observação e/ou da documentação.

Também para Lima, a etapa da captação é exaustiva e depende

exclusivamente da percepção do autor sobre o material que tem em mãos para que

ela chegue ao fim:

[A etapa da captação vai] até eu sentir que é necessário. Geralmente, eu prefiro captar muito e ter o que jogar fora do que ficar faltando. Então eu sou muito exaustivo na captação, apesar de eu ter um foco, eu procuro abarcar muita coisa porque na hora de escrever a gente nunca sabe se de repente um ângulo apareceu, que você não tinha percebido, e pode ser rico. E daí se você não captou antes, aquilo fica pobre. E captar o quê? De tudo que você possa imaginar, de detalhes até como está vestido o personagem. A pessoa usa brinco, usa anel, usa uns óculos de tal tipo? Observar e captar todos os detalhes que me chamarem a atenção, até coisas intelectualmente muito relevantes, determinados estudos sobre o assunto, pesquisas e tal. Eu tento esgotar e eu aprender aquilo. Enquanto eu não sinto que mais ou menos eu estou compreendendo bem aquilo, eu não me sento pra escrever. Aquilo tem que se transformar numa natureza minha. (LIMA, 2006)

Lima ainda revelou que, se no momento da redação é percebido

algum viés que poderia ser melhor trabalhado, ele retorna às investigações:

Normalmente eu volto, a não ser que seja uma coisa que eu deixei de abordar mas é uma coisa super secundária e não precisa de maior abordagem. Mas se eu sentir que para o foco provável da matéria aquilo é importante, eu volto atrás. Com os entrevistados, por exemplo, eu sempre deixo a abertura pra eventualmente voltar. Com as observações também, então eu nunca fecho um assunto com a pessoa. Eu digo: "Olha, parece que acabou, mas se precisar, eu posso voltar a contatar?". A mesma coisa a documentação que eu leio, que eu acho que é suficiente, que tá feito, mas num outro momento, se eu percebo que faltou alguma coisa, eu vou atrás pra completar aquilo, desprezo quando realmente me parece que não tem muita necessidade. (LIMA, 2006)

Page 66: Dialogo Aberto[1]

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4.2 Ampliando o Páginas Ampliadas – recursos técnicos

Neste ponto do trabalho, apesar de não termos encontrado em

Páginas Ampliadas nenhuma referência ao uso de equipamentos e ao modo de

condução das entrevistas e da observação, nos ateremos a este aspecto da prática

jornalística aplicada ao livro-reportagem. O ponto abordado, apesar de ser fruto de

uma liberdade nossa durante a realização das entrevistas, mostrou-se revelador em

vários aspectos, como veremos a seguir.

Caco Barcellos, quando questionado sobre o modo como registra as

informações, revelou que, além do gravador, também se utiliza de uma câmera

digital, com o objetivo de não perder detalhes físicos da cena:

Simbolicamente eu achava que tinha que ter algo entre eu e o entrevistado, embora ali esse componente não representasse nada. Pra ele se eu tivesse colocado uma pistola, aí sim, aquilo é simbolicamente importante, mas um gravador não faz parte do universo deles. Pra mim sim, mas eu queria dizer pra eles: "ó, você está dando um depoimento pra um escritor, que vai escrever um livro, pensa no que você está dizendo", mas isso não tem a menor importância para o universo deles... E também porque, na hora de escrever a frase, eu posso esquecer. Eu aprendi muito com Truman Capote e com outros autores a memorizar, mas você falha, esquece uma palavra e outra. Eu gosto de ter o ritmo da frase, então eu gravava também pra isso, pra ficar ouvindo, ouvindo. Antes de separar os capítulos eu ouvi muito o que eles falavam, então eu fiquei falando como eles também pra ajudar a escrever, eu ficava treinando ao máximo [...] Eu levava sempre uma câmera digital porque facilita muito a visão. Você tem uma cena que aconteceu nessa sala, eu filmo tudo, toda a sala. Os tiros atingiram aquele quadro [aponta para um quadro da parede], então eu tiro muitas fotos aí, eu filmo, porque na hora de escrever eu tenho tudo. Com câmera digital, colocava lá monitor na hora de escrever, e se esquecia alguma coisa, ia lá, ouvia, assistia. (BARCELLOS, 2006)

Assim como Barcellos introduziu o recurso da câmera digital para o

registro das informações, Edvaldo Pereira Lima também inovou o processo com um

instrumento por ele chamado de Mapa mental, assim explicado:

Page 67: Dialogo Aberto[1]

65

Na minha cabeça, o propósito do livro tem que estar muito claro, qual o objetivo do livro, que aspectos ele vai abordar. Em função disso eu preparo um roteiro de captação, que busque atender a aqueles itens, aqueles sub-temas, e aí tem várias formas de processamento da captação. Uma delas é a entrevista. Na entrevista eu uso gravador. Eu prefiro sempre usar o gravador, obviamente neutralizando ao máximo a presença do equipamento, para não provocar inibição nas pessoas, e tento fazer com que a pessoa se sinta à vontade pela conversa. Esse é um processo. Outro recurso que eu uso hoje em dia, não usava na época do Ayrton porque eu acrescentei ao meu método depois, é fazer um mapa mental. Mapa mental é um registro das observações que eu estou fazendo durante a entrevista, então isso me facilita, por quê? O gravador está cuidando de gravar a fala e eu estou observando outros sinais, o olhar, o gesto, o comportamento psicológico, emocional, se a pessoa fala alguma coisa com emoção na voz, se ela fala empostadamente, segurando a emoção, o que o corpo dela está me transmitindo, o ambiente em torno eu observo. Então isso me facilita muito porque se eu ficasse tentando só gravar o que a pessoa diz, eu acho que me diminuiria a capacidade de observar os outros sinais que são importantes. (LIMA, 2006)

Entrevista, observação, documentação e pesquisa são métodos que

os autores utilizam na etapa da apuração e que tentamos, aqui, conceituar e ilustrar.

O próximo ponto a ser trabalhado será a redação, última etapa na produção do livro-

reportagem e que estudaremos no capítulo a seguir.

Page 68: Dialogo Aberto[1]

66

CAPÍTULO 5: REDAÇÃO

Fora dos reducionismos do jornalismo contemporâneo e livre dos

ditames dos manuais de redação, o autor de não-ficção possui a liberdade para

utilizar os diversos recursos estilísticos da língua na terceira etapa de produção de

livros-reportagem: a redação, assunto que iremos abordar neste capítulo do

trabalho.

5.1 Última etapa: a redação

Concluída a etapa da captação de informações, o autor inicia esta

fase que, segundo Edvaldo Pereira Lima, pode ser comparada a um jogo implícito

com o leitor.

O jogo consiste em captar o leitor, atraí-lo do seu mundo mental e emocional, cativá-lo para abstrair-se – no momento da leitura ou nos momentos dos diversos segmentos que constituem a leitura de uma obra escrita – desse mundo, em alguma medida, para um mergulho no universo particular contido, representativamente, no livro. (LIMA, 2004, p. 143)

Para alcançar este objetivo, o autor deve criar um texto que flua com

naturalidade, que transite suavemente de uma passagem a outra, que tenha ritmo,

cadência e um pulsar característico, que se altera de vez em quando para combater

o ruído natural do homem que é a sua propensão exagerada ao devaneio, à

dispersão. Ou seja, há uma necessidade de alternância no emprego dos

instrumentos disponíveis à elaboração de texto e também à sua estruturação.

Outro fator que contribui para a captura do leitor é a capacidade que

o autor deve ter em propor-lhe um desafio:

Page 69: Dialogo Aberto[1]

67

[...] o de mergulhar em uma realidade representada que, apesar dos pontos em comum, lhe é, no geral, desconhecida [...] é preferível o texto que ofereça uma leitura verticalizada da contemporaneidade, mas ordenada de tal maneira que não dê pontas para todas as conclusões. (LIMA, 2004, p. 145-146)

De acordo com o pensamento de Lima, para compor sua mensagem

visando atingir o objetivo a que se propõe, o livro-reportagem deve combinar uma

série de técnicas de tratamento de sua linguagem verbal, plástica e ilustrada.

Dentre os recursos sugeridos estão: a narração, a descrição, a

exposição, o uso das funções de linguagem, as técnicas de angulação, o ponto de

vista e, finalmente, as técnicas de edição.

Muniz Sodré e Maria Helena Ferrari, citados por Lima, definem a

Narração como sendo:

[...] a ordenação de fatos, de natureza diversa, externos ao relator (mesmo quando o narrador é parte dos fatos, isto é, participa da ação que está sendo narrada). No texto comunicativo, os acontecimentos (desde a mais simples notícia até a grande-reportagem), situados no nível de uma seqüência temporal, constituem uma narrativa. (FERRARI; SODRÉ apud LIMA, 2004, p. 147)

Na narração, ainda segundo esses autores, encontram-se elementos

essenciais, como a situação – compreendendo as unidades do acontecimento

traduzidas em termos do que ocorre, quando e onde – a intensidade – que

compreende a ressonância emocional do acontecimento – e o ambiente – que seria

a descrição de traços do meio físico ou mental que cercam o fato.

Aqui está um fragmento em que a narração, combinada a rápido

trecho de diálogo e descrições, confere grande carga dramática e serve de exemplo

de como Caco Barcellos soube utilizar bem este recurso em Rota 66:

Page 70: Dialogo Aberto[1]

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Mãos firmes na metralhadora. Corpos cada vez mais erguidos para fora da Veraneio. O cabo Roberto Lopes Martinez está praticamente de pé, como cobra se preparando pra o bote. No outro lado, o sargento José Felício Soares segue sentado na janela, protegido pelo comunicador da Rota 66, Antônio Sória, que não desgruda a mão direita do cinturão do chefe. Holofote, farol alto, farolete de milha manual iluminam o fusca desgovernado, que avança. O comunicador da Rota 66 revela no rádio a euforia. - Eles estão perdidos! Estamos colando neles. Os dois carros entram na rua Alasca separados por menos de 50 metros, à baixa velocidade, com a cabeça dos três rapazes sob a mira das metralhadoras. O estudante e poeta Augusto Junqueira, de 19 anos, segue com o rosto grudado no vidro lateral esquerdo manchado de sangue. À sua frente, à direita, ao lado do motorista, o estudante espanhol Carlos Ignácio Rodrigues de Medeiros, de 21 anos, tenta se escudar com a frágil proteção do encosto do banco. Francisco Noronha, 17 anos, dirige desde os 14, mas está com dificuldades em controlar o carro [...] A veraneio breca bem no meio da esquina, a 9 metros do Fusca. As quatro portas são abertas ao mesmo tempo. Viram escudo dos três PMs armados de revólver. [...] Apontam na mesma direção do fecho de luz, que provoca cegueira e pavor nos rapazes. Eles usam as mãos para proteger os olhos da iluminação, tentar enxergar alguma coisa. O máximo que eles podem ver, na posição que estão agora, são os cinco pontos de fogo das armas que começam a disparar contra eles. (BARCELLOS, 2003, p. 61-63)

Outro recurso muito empregado em livros-reportagem é a Descrição,

que pode ser entendida como a representação particular dos seres, dos objetos e

dos ambientes. A descrição "[...] imobiliza esse objeto ou ser em certo instante do

processo narrativo" fixando um momento, um aspecto do ser que se move, nas

palavras de Sodré e Maria Helena Ferrari. (apud LIMA, p. 105)

Apesar de existirem vários tipos de descrições, a saber: a pictórica –

que se faz pela soma dos detalhes com o observador imóvel em relação ao

observado -, a topográfica – que concede mais ênfase a certos aspectos, como

massa e/ou volume -, a cinematográfica – que destaca o jogo de luzes ou sobras

sobre o objeto -, a prosopografia – que descreve fisicamente pessoas – e a

cronografia – que trata da descrição de época ou circunstância temporal, na prática

Page 71: Dialogo Aberto[1]

69

jornalística os vários tipos se encontram, combinados também às observações direta

e indireta – reconstituída com auxílio de fontes – do autor.

Neste exemplo, o observador leva o leitor a um espaço onde a

descrição, combinada a outras ferramentas narrativas e carregada do elemento

emocional, serve não apenas para detalhar uma situação, mas também para evocar

um estado de alma dos personagens que se mostrará determinante para o

desenrolar das ações no decorrer da história. Fernando Morais em Corações Sujos:

Como espectros que tivessem surgido do nada, às nove horas da noite sete japoneses descalços, com idades variando entre vinte e 41 anos, sérios e com ar decidido, postaram-se diante da delegacia de polícia. Uns traziam nas mãos porretes de madeira semelhantes a tacos de beisebol. Outros estavam armados das mortais catanas, sabres embainhados em bambu trabalhado, em cujo interior ocultava-se uma afiada lâmina de aço curva, de oitenta centímetros de comprimento. Eles usavam calções ou tinham a barra das calças arregaçadas até a metade da perna, como se tivessem acabado de chegar da lavoura. Embora o uso de pêlos no rosto fosse comum entre os imigrantes – de onde nasceria o apelido de "bodes", dado a eles pelos brasileiros -, apenas um deles, Eiiti Sakane, tinha cavanhaque, bigode e um arremedo de suíças negras no rosto. Como o prédio da polícia ficava em plena avenida Tamoios, no centro da cidade, para chegar até lá tiveram que atravessar uma Tupã às escuras – uma aparição que assombrou os moradores das imediações, que fecharam portas e janelas à aproximação do grupo silencioso. Quando percebeu que os “sete samurais” – como a população passaria a referir-se a eles – tentavam forçar a porta de entrada da delegacia, o soldado Juventino Leandro, carcereiro de plantão, saiu para a calçada empunhando um fuzil e dirigiu-se ao de barba, que parecia ser o chefe do grupo: “Perdeu o juízo, japonês?” [...] (MORAIS, 2001, p.15)

A Exposição é o próximo recurso sugerido por Lima em Páginas

Ampliadas. Sempre citando Sodré e Ferrari, Lima explica (2004, p. 154) que o termo

aplica-se à "[...] apresentação de um fato e suas circunstâncias, com análise de

causas e efeitos, de uma maneira muito pessoal ou não". No livro-reportagem a

exposição é empregada quando o profissional quer discutir uma questão básica e

Page 72: Dialogo Aberto[1]

70

argumentar de modo a tentar convencer o leitor a compartilhar sua visão do

problema.

Outro recurso muito utilizado por autores de livro-reportagem, e que

Lima incorpora às suas sugestões, é o uso das Funções de linguagem, a saber:

referencial – que responde por um relato seco e direto -, expressiva – na qual o

emissor evidencia-se no texto com suas opiniões ou sentimentos -, conativa – a que

o receptor é colocado em primeiro plano -, metalingüística – que procura explicar,

com estilo didático, o tema de que trata a reportagem – e, por fim, poética. Segundo

o pesquisador, as funções mais utilizadas na redação do livro-reportagem são a

referencial e a expressiva. As demais funções são menos comuns no mercado de

não-ficção.

Além da narração, da descrição, da exposição e das possíveis

funções de linguagem, o autor ainda pode valer-se das várias técnicas de

Angulação, que significa, nas palavras do professor Gaudêncio Torquato, citado por

Lima, o ato de "[...] escolher uma abordagem, uma palavra, uma imagem, cores;

angular é saber onde e como colocar determinado componente no texto, de maneira

que a idéia apresentada seja a mais próxima daquilo que se pretendeu"

(TORQUATO apud LIMA, p. 158). Entre os recursos técnicos de angulação

propostos por Torquato estão os grupos: imagem, analogias e comparações;

tipificação de situações e personagens; e descoberta do aspecto mais original e

interessante da matéria.

O próximo recurso sugerido é o Ponto de vista, assim explicado por

Lima:

A narrativa jornalística é como um aparato ótico que penetra na contemporaneidade para desnudá-la, mostrá-la ao leitor, como se fosse uma extensão dos próprios olhos dele, leitor, naquela realidade

Page 73: Dialogo Aberto[1]

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que está sendo desvendada. Para cumprir tal tarefa, a narrativa tem de selecionar a perspectiva sob a qual será mostrado o que se pretende. Em outras palavras, deve optar na escolha dos olhos – e de quem – que servirão como extensores da visão do leitor. (LIMA, 2004, p. 161)

Apesar de a literatura ter se direcionado, com o passar do tempo e

devido às necessidades técnicas, às narrativas em primeira e em terceira pessoa –

com uma menos habitual em segunda pessoa -, é mais comum nos livros-

reportagem o uso do ponto de vista em terceira pessoa, ao estilo do narrador

onisciente neutro, e em primeira pessoa, quando ocorre o uso do foco denominado

narrador protagonista.

Em nosso corpus, dois dos livros estudados foram escritos com foco

narrativo unicamente em primeira pessoa – é claro, sem descartar os momentos de

narração e descrição -: A Ilha, de Fernando Morais, e Nicarágua – A revolução das

crianças, de Caco Barcellos.

No exemplo a seguir, podemos ver como Morais desenvolve a

função de narrador protagonista para construir um retrato de Cuba no pós-revolução:

Na principal farmácia da Avenida 23, em Havana, decorada com posters em homenagem a Amilcar Cabral e Che Guevara, peço à balconista gorducha um sabonete neutro e um envelope de aspirina. Ela pede a receita médica. Sem entender bem, e sem vontade de andar num domingo à noite, pergunto: - Quero apenas um sabonete e aspirina. E sou estrangeiro, não sei como conseguir uma receita médica. - Compañero, este é um país muito pobre, que não pode se dar ao luxo de estar vendendo remédios a quem acha que precisa. Quem sabe se você deve tomar aspirina é o médico. E ser estrangeiro não muda nada: ali na esquina há um posto médico aberto, lá você obterá a receita. Consegui em poucos minutos a receita (após dizer ao médico de plantão, às onze horas da noite, o que eu sentia), os comprimidos e o sabonete. [...] Com a mesma facilidade com que obtive o remédio eu conseguiria – disse-me o médico – submeter-me a um eletrocardiograma ou internar-me num hospital para receber até um rim transplantado. (MORAIS, 1976, p.65)

Page 74: Dialogo Aberto[1]

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A narração em primeira pessoa também pode ser exemplificada por

este trecho em que Caco Barcellos nos apresenta um dos momentos mais tensos de

Nicarágua: o de sua captura como prisioneiro dos rebeldes.

Eu também tinha medo de ser pego por alguma patrulha da Guarda Nacional, o que poderia ser fatal, pois entrava numa cidade parcialmente tomada pelos sandinistas. Mas não foi isso que aconteceu. - Você é de esquerda? Não sabia o que responder ao menino. Continuava perturbadíssimo. Aquele kill him causou uma desconfiança generalizada das pessoas que nos viam passar. A cada instante surgia alguém numa porta a me acusar de gringo espião, oreja, sapo. Não sei quanto tempo fui interrogado por um menino que aparentava treze anos. - Onde está o carro, as máquinas de televisão? Nem com a chegada de quatro rapazes armados, que me cercaram e me olhavam desconfiados, o menino deixou de me interrogar. Um dos adultos prosseguiu: - Você é desses que coleciona cartuchos, dentadura de cadáver, "souvenir" de guerra, não é? - Não. - Pois você está preso! (BARCELLOS, 1982, p.78)

Outras duas obras de nosso corpus servem como exemplo para

ilustrar o uso flexível do ponto de vista. Paixão de João Antonio, de Mylton

Severiano, por ser uma obra composta não só de narrativas, mas também de cartas,

contos e críticas, alterna a primeira com a segunda pessoa do singular e, ainda, com

a primeira do plural14.

O tempo se arrasta e, no entanto, é de repente que entramos na casa dos 60, à qual João Antônio escapou por três meses. Morreu aos 59 anos e nove meses. Agora com mais idade que ele, e "idade não faz sábios, faz velhos, usemos a prerrogativa de "mais velho" para nesta tarde alegre de músicas tristes evocar o amigo. (p. 27)

No anoitecer de 21 de junho de 1963 passei pela Livraria Teixeira, Rua Marconi, 40, centro de são Paulo. A "terra de gigantes". Chuviscava frio. A capital paulista beirava 4 milhões de habitantes,

14 Destacamos a flexão de alguns verbos com o objetivo de ilustrar os diferentes pontos de vista nos

quais foram escritos os trechos retirados da obra de Severiano. O procedimento também se repetiu nos fragmentos do livro de Lima, reproduzidos abaixo.

Page 75: Dialogo Aberto[1]

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vinha dobrando a cada década desde os fins dos anos 1930. Inchava de imigrantes, como eu, chegado de Marília em 1960. Duas da manhã, podíamos sair a pé sem susto da Folha, com entrada ainda pela alameda Barão de Campinas, ir jantar filé à cubana no Planalto, na Avenida Ipiranga, ao lado do Jeca; ou o Filé do Morais na Praça Júlio de Mesquista. Com pouco dinheiro, freqüente, croquete com batatas na Salada Paulista, ao lado do Brahma, na famosa esquina: Ipiranga com Avenida São João. [...] Tímido, comprei o livro e não pedi autógrafo. Em torno do estreante de 26 anos, gente importante: a poeta Ilka Laurito Brunhilde [...] (p.33).

Abraçado ao seu rancor, tomado, cego de amor pelo Brasil, eis João. João, não! A avó Nair, fumando cachimbo aos mais de 90 anos, "feminina até para pedir um copo d´água", podia chamá-lo Joãozinho. Mas um amigo comum, certa noite de 1978, num boteco, levou: "João, nem para os íntimos. Por favor, meu nome é João Antônio. Circunflexado." (SEVERIANO, 2005, p. 37 – grifos nossos)

Já Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário, por se enquadrar em uma

obra do Jornalismo Literário Avançado15, alterna primeira e segunda pessoas do

singular, lançando mão de experimentalismos dentro das possibilidades de

alternância do ponto de vista e suas variações e dessa nova visão sobre o livro-

reportagem.

O Brasil chorou lágrimas doídas, reconhecendo de súbito que havia perdido um grande filho, maior do que se estimava quando ainda vivo. O reconhecimento brotou comovente em ações como as das pessoas que, à margem da estrada por onde o corpo era transportado do aeroporto para a cidade, em São Paulo, formavam de mãos dadas um enorme coração sobre o gramado. Chorei junto, pelos motivos coletivos e pelos meus. Surpreso em descobrir, de repente, que aquela figura amada pela verdade parcial que eu conhecera pelos meios de comunicação e pelas conversas com o treinador Nuno Cobra, tornava-se um querido irmão mais jovem que eu nunca tive. Tornava-se símbolo de potencialidades que ele transformou em verdades extraordinárias, mediante um fantástico esforço de auto-superação. Deixei rolar, parei de racionalizar. (p. 18-19)

15 Assim como explicou Edvaldo Pereira Lima no primeiro capítulo, quando tratamos das classificações, a obra Ayrton Senna – Guerreiro de Aquário é uma peça típica do JLA.

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Ao lado deste aprendizado, porém, que prossegue em estudos de pós-graduação que realiza, Nuno conserva uma teimosa fidelidade ao que diz sua intuição e ao que lhe herdara sua experiência juvenil de garoto do interior de São Paulo, crescendo às margens de rio, em São José do Rio Pardo. Em contato freqüente com a Natureza, Nuno pôde crescer preservando uma certa ingenuidade sadia de que o decisivo para o atleta não é o seu preparo físico isolado, mas sim sua atitude mental. Isto é, sua crença em si próprio. Na sua visão, nenhum atleta otimamente bem preparado fisicamente vai conseguir ser um vencedor se não tiver uma atitude psicológica positiva diante dos desafios, das adversidades. De cada situação, por mais desestimulante que seja, deve saber tirar proveito. A autoconfiança depende, porém, da auto-estima. E esta surge da auto-imagem que a pessoa forma de si própria, a partir das expectativas dos outros. (LIMA, 1995, p. 81 – grifos nossos)

A última técnica de tratamento das linguagens verbal, plástica e

ilustrada que compõem o livro-reportagem é a Edição. Como os livros-reportagem

são formados por narrativas extensas, o desafio do autor, nesta etapa, é tratar

habilmente de sua montagem, estruturação e ordenação do conjunto de ações,

ambientes, personagens, discussões e questões, de modo que haja, no todo, uma

unidade organizada com lógica e harmonia (LIMA, 2004, p 166). É dessa engenharia

de construção do texto que depende a fluência que a narrativa terá e a eficiência

que a mensagem alcançará.

Para alcançar a fluência e a eficiência desejadas, não se trata

somente de ordenar cronologicamente os elementos – apesar de esta ser uma

maneira tradicional de se conduzir a narrativa, os autores também adotaram os

chamados recursos cinematográficos, como cortes de tempo e espaço e inversões -,

mas sim de criar um ritmo na narrativa que seja capaz de estabelecer aquele jogo

implícito com o leitor, citado no início deste capítulo.

Para Lima:

[...] a cadência narrativa deve acompanhar os ciclos ascendentes e descendentes de tensão, de modo que o leitor seja levado, ritmicamente, num crescendum, em ondas, até o ponto culminante

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em que a grande-reportagem possa ser encerrada; de preferência no ponto exato em que fique o leitor enriquecido de estímulos e compreensão para reordenar [...] intelectualmente e emocionalmente a visão de mundo que o livro, centelha alquímica, ajuda-o a iluminar. (LIMA, 2004, p. 166-167)

Identificados os recursos de narração, descrição, exposição, funções

de linguagem, técnicas de angulação, ponto de vista e edição propostos por Lima

para a redação e fruição do texto no livro-reportagem, partiremos para o confronto

entre a técnica sugerida e a experiência prática dos autores.

Em um dos momentos da entrevista com Caco Barcellos, o autor

utilizou o termo "romance". Como o uso deste termo para a designação de obras de

não-ficção ainda é questão de debate, perguntamos a ele se a utilização da palavra

tem ligação com seu modo particular de estruturar a narrativa, no que, o autor

respondeu:

Quando eu falo romanceado, não que seja isso um romance, mas é a técnica de contar uma história com toda a complexidade dela, e também pensar no formato realmente. Qual é a leitura mais agradável? Eu gosto muito dos diálogos, porque os diálogos ajudam a transportar o leitor pro cenário do acontecimento, mais fortemente do que você só ficar com a sua observação em terceira pessoa. Eu gosto de trazer o leitor pra dentro da história, não sei se isso é técnica de romance ou não, mas quando eu falo isso de "técnica de romance" é isso que eu quero dizer. Quando eu escrevo, eu procuro ao máximo, ao máximo tornar a leitura agradável, tento de toda maneira prender o leitor e isso exige técnica. (BARCELLOS, 2006)

O trecho reproduzido abaixo ilustra como o autor se utiliza de

diálogos e elementos narrativos de atração do leitor, como a reprodução da fala

típica do morro, o que acaba por conferir maior veracidade à cena. Caco Barcellos

em Abusado:

Diante dos argumentos convincentes de Betinha, Caga Sangue acreditou que Juliano realmente não estivesse em casa. Aceitou levar Betinha para uma conversa particular com o chefão Zaca. A

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conversa foi próxima ao Cruzeiro, na antiga base de Cabeludo, agora ocupada pelos seus inimigos. - O que você quer fazer com meu filho, Zaca? Nunca esperava isso de você! - Eu também nunca esperava isso do seu filho. Lutô contra mim e agora tá fazendo concorrência, vendendo cocaína lá embaixo na boca da praça. Você qué o que? - Quero meu filho vivo. Ele só tem 17 anos. - Então tá ficando velho. Traficante bom morre com 15. - Você vai se arrepender....Se tocar o dedo no meu filho vou atrás de você até no inferno. - Eu não disse que vô matá o Juliano. Mas só digo isso em consideração a você. Dessa arma ele não morre, mas das outras aí... - E o Caga Sangue? Ele queria invadir a minha casa. - Não dá pra segurar a turma. Eles tão mordido com o Juliano. Ele é muito abusado. (BARCELLOS, 2003, p. 135)

Para conseguir tal resultado, Caco Barcellos confessa ter sido – e

ainda ser – muito influenciado por outros autores de não-ficção e até ficcionista,

como assim explicou na entrevista referida:

[...] pra falar assim até mesmo de ficcionistas que me influenciam bastante, que eu aprendo com eles, Frederick Forsyth, por exemplo, é ficcionista, mas eu tenho certeza que ele escreve baseado na realidade, acho que ele deve trabalhar com um grupo de apuração muito grande, de realidade, porque os livros dele parecem verdade, são ficção, mas eu tenho certeza que ele se baseou na realidade pra escrever, e as técnicas dele de narrativa também são maravilhosas. Truman Capote... eu lembro de ter lido, seguramente mais de 30 vezes o A sangue Frio mas lá nos anos 70. John dos Passos, também era um grande repórter. Bom, os contemporâneos, tem Jack London, clássico, Hemingway, Fitzgerald, que foi contemporâneo meu, Gay Talese, Fernando Morais, pra falar dos brasileiros, Otávio Ribeiro, João Antônio, Carlos Morais...mas seguramente tem uma penca de autores que eu estou esquecendo. (BARCELLOS, 2006)

Durante encontro que tivemos com Edvaldo Pereira Lima, este autor

nos explicou o porquê de Caco Barcellos ter lido mais de 30 vezes o livro A Sangue

Frio, de Truman Capote, questão que havia ficado em aberto durante a entrevista

com o Barcellos:

Ele queria descobrir a carpintaria do Truman Capote. As técnicas, o modo de escrever, como é que ele armou o livro, como ele estruturou, como ele tratava os personagens, entendeu? Aí, depois

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que ele leu trinta vezes, ele sacou qual era. "Pô, desses recursos, quais eu posso empregar?" Veja o Abusado. Viu alguma semelhança com o A Sangue Frio? Não só pelo tema, mas a estrutura, entendeu? Isso é investir no seu próprio talento. (LIMA, 2006)

Voltando à experiência de Caco Barcellos, constatamos que a

redação é uma etapa difícil de ser realizada, mesmo para autores experientes e já

consagrados. O autor nos contou que necessita estabelecer desafios a si próprio

para imprimir um ritmo à escrita, e que muitas vezes eles não são alcançados.

Eu, talvez por absoluta incompetência, preciso sentar, bater a cabeça. Não consigo escrever a primeira frase de pronto. Admiro os colegas que sentam e sai o texto assim, fluindo, como dizem que o Norman Mailler faz. Eu tenho colegas que vejo, colegas jornalistas também, que são rápidos, velozes. Eu preciso ficar sofrendo que nem um maluco e repetindo. Às vezes eu demoro três horas pra esquentar uma frase, mas de repente vai, eu escrevo duas horas o que eu não escrevi em dois dias, e não tem o menor constância, a menor regra. Eu estabeleço desafios porque eu sei da dificuldade, então eu estabeleço como desafio duas páginas por dia, durante 20 dias, aí chegou no décimo dia eu vejo: "20 dias, duas páginas, tinha que ter 40 e eu estou com sete, mas tudo bem, nos últimos dez eu escrevo quatro", aí chega lá no 20º dia eu vejo que ao invés de 40 eu tenho 27, eu fico arrasado, um sentimento horrível. Mas daí eu começo a pensar assim: "Eu tinha zero quando eu estabeleci esse desafio e eu tenho hoje 27 páginas, que legal". Estabeleço outro desafio, vou recuperar aquelas 13 páginas, então nos próximos dias, três páginas...fracasso de novo e assim vou, mais dezoito, 27, 45, eu vou dessa maneira, impondo desafios pra ver se melhora o ritmo. Tem épocas realmente que ao invés de duas por dia eu faço três, cinco, seis. Eu esquentei, acho que peguei um ritmo que eu to curtindo. Tem épocas que eu entro em crise e fico três dias numa página e não avança, épocas que num pesadelo, eu tenho muito pesadelo enquanto durmo, no pesadelo resolvo o capítulo, acordo e escrevo rapidinho [...] (BARCELLOS, 2006)

Também para Fernando Morais o processo de redação não é

simples. Ao falar de sua experiência, e genericamente sobre o jornalismo literário,

Fernando Morais nos ensina como se dá seu processo de redação e de quais

elementos se utiliza.

Tem que escrever legal, traduzir as coisas pro leitor, descreva. Quando eu fui descrever um personagem, chamado Casimiro

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Montenegro, eu escrevi: "Profundos olhos azuis, magrinho, franzino e nome de poeta romântico". Eu podia simplesmente dizer "O sujeito chamava Casimiro", mas se você faz assim, atrai o leitor, fala "Tsc, tsc, tsc, vem, vem, vem". Faz uma coisa elegante, coloquial, sofistica, arranja uma palavra melhor. Eu vivo com tudo quando é tipo de dicionário, sou um rato de dicionário [...] Eu escrevo pensando no leitor, tô sempre pensando no leitor, pensando no leitor crítico, isso te permite ter uma auto crítica muito afiada [...] Porque o que é jornalismo literário? É você reescrever dez vezes, salvo os gênios, que eu não conheço nenhum que escreva de bate e pronto, nenhum, e entre as pessoas que eu conheço está o Gabriel Garcia Márquez, prêmio Nobel de literatura. Eu lembro de ter ido pra casa dele uma vez, há muito tempo, não existia nem computador, ele escrevia em uma máquina de escrever e ele tinha um cesto de lixo como esse daqui, desse tamanho [pega um cesto de lixo de cerca de 50 cm de altura que está ao lado de sua mesa] só pra jogar papel fora. (MORAIS, 2006)

Assim como para Barcellos, escrever, de acordo com Fernando

Morais, é um trabalho que exige fôlego e paciência, e onde não conta somente a

inspiração.

[...] eu as vezes fico aqui dois três dias aqui para acertar um parágrafo, desesperado, desesperado...Eu hoje tava andando de manhã na praia e lembrei de uma palavra, era "temido", tava precisando da palavra "temido"...peguei o celular, liguei pra secretária eletrônica e "temido" [...] É aquilo que o Millôr Fernandes fala que é noventa por cento de transpiração e dez por cento de inspiração. Noventa por cento de transpiração, é trabalho, trabalho, trabalho. É a carta do Mário de Andrade para o Fernando Sabino16. Não tem frescura não, "Eu sou um intelectual, eu sou um literato, eu estou aqui e a inspiração não aparece", vá ao diabo! Você não tem que comer? Não tem que pagar a conta de luz? Não tem que trabalhar? Agora, faça bem feito, faça bonito, faça elegante, conta a coisa de uma maneira saborosa, escolhe a palavra certa. No fundo, fazer um livro, seja ele um livrinho nessa área de trabalho, de jornalismo, ou um livro sobre o Chateubriand, no fim, é construir tijolo por tijolo, sabe?! Você não escreve um texto em toques de cinco páginas, cinco parágrafos. É palavra por palavra, letra por letra, é esmerilar, ficar com um cinzel ali... "Ahh, ainda está um pouco áspero", então lima mais um pouquinho.

16 Fernando Morais refere-se ao livro Cartas a um jovem escritor, no qual estão compiladas as correspondências enviadas por Mário de Andrade à Fernando Sabino. O trecho em questão é: “Não tem disposição? Não se trata de ter disposição, você é um operário como qualquer outro: se trata de ter horas de trabalho. Então vá escrevendo, vá trabalhando sem disposição mesmo. A coisa principia difícil, você hesita, escreve besteira, não faz mal. De repente você percebe que, correntemente ou penosamente (isto depende da pessoa) você está dizendo coisas acertadas, inventando belezas, forças etc. Depois, então, no trabalho de polimento, você cortará o que não presta, descobrirá coisas para encher vazios etc etc.” (ANDRADE, SABINO, 1981, p. 25)

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[...] porque no fundo é trabalho. É produzir, produzir, produzir...Eu sei que é difícil. É dedicação, foco...Foca no que você está fazendo. A gente fica inventando coisa pra não escrever. Eu agora estou inventando de criar peixe em um córrego aqui atrás da casa e eu descobri que já é sacanagem pra sair daqui [refere-se ao escritório] Não pode, tem que ficar aqui, tem que trancar a porta e jogar a chave fora. Eu não conheço ninguém que escreva numa nice, não conheço. Uma vez eu vi a Raquel de Queiroz no Jô Soares e a primeira pergunta que o Jô fez pra ela foi a seguinte: "Raquel, você gosta de escrever?" e ela respondeu: "Não, Jô, eu odeio”. Eu entendi o que ela quis dizer, claro que ela gosta de escrever, agora, é um sofrimento, um sofrimento cotidiano, e quanto mais você escreve maior é o sofrimento porque maior é a expectativa das pessoas. (MORAIS, 2006)

Sobre os processos de edição, Morais nos conta que a ordem a ser

dada às informações que farão parte do livro depende exclusivamente do gosto e do

entendimento do autor sobre o material que tem em mãos. A seguir, a título

ilustrativo, intercalamos trechos de sua entrevista com fragmentos dos livros Chatô –

O rei do Brasil e Corações Sujos:

Na hora que você fala "tá pronta" [referindo-se à apuração], daí vai fazer uma estrutura, daí é você, daí não tem mais nada a ver com o personagem. Você pode fazer um negócio rigorosamente cronológico... você faz a história do jeito que você quiser, conta como você quiser. O Chatô eu comecei com uma mentira, um delírio dele... (MORAIS, 2006)

Inteiramente nus e com os corpos cuidadosamente pintados de vermelho e azul, Assis Chateaubriand e sua filha Teresa estavam sentados no chão, mastigando pedaços de carne humana. Um enorme cocar de penas azuis de arara cobria os cabelos grisalhos dele e caía sobre suas costas, como uma trança. O excesso de gordura em volta dos mamilos e a barriga flácida, escondendo o sexo, davam ao jornalista, à distância, a aparência de uma velha índia gorda. Pai e filha comiam com voracidade os restos do bispo Pero Fernandes Sardinha, cujo barco adernara ali perto, na foz do rio Coruripe, quando o religioso se preparava para retornar à pátria portuguesa. Quem apurasse o ouvido poderia jurar que ouvia, vindos de não se sabe onde, acordes do Parsifal, de Wagner. No chão, em meio aos despojos de outros náufragos, Chateubriand viu um exemplar do Diário da Noite, em cujo cabeçalho era possível ler a data do festim canibal: 15 de junho de 1556. De repente o dia escureceu completamente e ele sentiu algo úmido e frio encostado em seu pescoço.

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O delírio fora interrompido pelo gesto do enfermeiro que esfregava um chumaço de algodão embebido em iodo na garganta do paciente. (MORAIS, 1997, p. 13)

Você pode começar com uma cena cinematográfica, que é o caso do Corações Sujos..seis japas enrolados numas cuecas brancas, túnicas, um negócio bem asiático, uma coisa bem insólita pra nós, o olhar ocidental, descalços, atravessando uma cidadezinha, com espadas na mão, brilhantes, todo mundo olhando da veneziana e aqueles 7 japas atravessando a cidade pra ir degolar um soldado da PM, preto, que tinha limpado a botina com cocô de vaca com a bandeira japonesa, e eu achei isso de uma força tão grande, e eu poderia ter começado lá na guerra, mas eu começo com o rei o imperador, fazendo o anúncio... (MORAIS, 2006)

A voz rouca e arrastada parecia vir de outro lado do mundo. Eram pontualmente nove horas da manhã do dia 1º de janeiro de 1946 quando ela soou nos alto-falantes dos rádios de todo o Japão. A pronúncia das primeiras sílabas foi suficiente para que 100 milhões de pessoas identificassem quem falava. Era a mesma voz que quatro meses antes se dirigira aos japoneses, pela primeira vez em 5 mil anos de história do país, para anunciar que havia chegado o momento de “suportar o insuportável”: a rendição do Japão às forças aliadas na Segunda Guerra Mundial. (MORAIS, 2001, p. 9)

Na experiência de Mylton Severiano, a liberdade do autor deve

imperar no momento da redação de um livro-reportagem17. Reproduzimos aqui um

breve trecho de sua entrevista que diz respeito ao uso de técnicas no momento da

redação.

Então eu vou escrever um livro [...] Por onde eu começo, o que vou fazer? Eu acho que é a cabeça de cada um, depende da pessoa, do autor que vai escrever aquilo. Aliás eu sou suspeito pra essa posição porque eu sou contra a exigência do diploma, a escola de jornalismo pra mim é: tanto faz. Se a pessoa quiser fazer, faz. Se não quiser, não faz. Jornalista primeiro tem ser bom de texto, tem que escrever bem, tem que ter lido muito. Eu acho que o jornalismo é um gênero literário [...] Então, como é um gênero literário, cabe tudo...fluxo de consciência, todos esses diálogos, elipses, metáforas, tudo vale [...] (SEVERIANO, 2006)

17 Mesmo tendo encontrado dificuldades na análise da entrevista com Mylton Severiano, justamente por ele se considerar totalmente avesso a técnicas, inserimos os trechos referentes ao assunto abordado por entender que a posição do autor é reveladora, no que diz respeito à realidade das redações e perfil de autores de não-ficção no Brasil.

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Porém, apesar de ter usado alguns termos que se referem às

técnicas de narração, o autor demonstrou não possuir conhecimento sobre o que

realmente sejam todos eles. Neste trecho de sua entrevista, Severiano confunde-se

ao explicar o uso do fluxo de consciência, que deve referir-se ao pensamento da

fonte e não do entrevistador.

Outro dia estava lá no Chile, a propósito de um encontro de teatro infanto-juvenil, e lá eu li muitos jornais. Isso foi de janeiro pra fevereiro, na época que a filha do Pinochet, Lucia Pinochet, tinha fugido do país, ela tinha que depor na polícia a propósito dos crimes que ela foi acusada, e chega nos EUA, em Washington, ela desce lá e havia um mandado de detenção dela pela Interpol. Ela, quando desceu do avião, foi presa e foi pro presídio que tem anexo no aeroporto e teve que se submeter a tocar piano, como se diz, tirar as impressões digitais, entregar os pertences, tirar a roupa civil e vestir o macacão verde de presidiária, enfim, todo o procedimento. O repórter narrou isso, o jornal era La Tercera, de Santiago, se não me engano. Achei aquilo incrível, na nossa imprensa não vejo isso, ele narra tudo isso que eu estou te falando e daí ele abre um parágrafo e diz que aí então, nove horas da noite, são todos recolhidos à cela e às cinco da manhã são acordados, e ele diz: "Quando ela se recolheu à cela, o que será que se passou à cabeça dela?" Fluxo de consciência do repórter agindo ali..isso bateu na cabeça dele e quando ele passa isso pro texto, isso traz uma carga de emoção pro leitor, porque o leitor hoje, com esses textos frios, com a camisa de força dos manuais de redação, jamais pode escrever uma coisa dessas [reproduz novamente o texto do repórter] "Nesse momento, o que terá passado pela cabeça de Lucia Pinochet?” ele pergunta assim: “Será que ela teria pensado que até poucos anos atrás ela foi uma das pessoas mais poderosas do Chile?" Legal, isso! Nos nossos jornais o repórter não pode escrever isso, a não ser que ele seja estrela [...] (SEVERIANO, 2006)

Para concluir este capítulo e os diálogos entre Páginas Ampliadas e

a experiência dos autores, inserimos trechos da entrevista com o próprio Edvaldo

Pereira Lima, nos quais ele nos conta como inicia o processo de redação, com a

definição de um roteiro e, posteriormente, como funciona seu ritmo de escrita.

Eu monto um roteiro em que eu imagino assim, eu vislumbro, a palavra não é imaginar, eu vislumbro o seguinte: qual é o tema central do meu trabalho? Quais são os sub-temas que esse tema vai trabalhar? Em se tratando de um livro-reportagem, eu estruturo os capítulos, um esboço dos capítulos, onde vai entrar tal informação, tal sub-tema, como eu vou passar desse sub-tema pra o outro, qual é

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o melhor que vem a seguir. Estruturo e coloco três pontos chave na estrutura do livro. Assim como o edifício tem de ter alicerce, o livro também, então os pontos chave são, um sub-tema e uma situação forte pra começar, um sub-tema muito forte novo, diferente do primeiro, no meio e um no final. Então eu estruturo os capítulos a partir desses três alicerces, eu reservo três sub-temas pra posições estratégicas dentro do livro, e começo. Mas naturalmente, no processo de escrever, pode ser que algo mude, pode ser que a estrutura que eu pensei não é a coisa adequada, pode ser que surja uma coisa nova, pode ser que eu tenha uma outra idéia. Então eu vou me adaptando, normalmente sem fugir em demasia ao roteiro, porque não há necessidade, mas em algum caso em que realmente fuja muito, eu sinto o que é mais forte. Normalmente aquilo que apareceu espontaneamente, intuitivamente é o mais forte. Eu sou uma pessoa que demora a escrever, demora a começar a escrever, porque eu vou juntando todas essas coisas, junto muita informação, junto muita observação, dou muita importância às minhas intuições e aos meus sonhos. Então há um momento em que a coisa fica pronta pra ser escrita e enquanto esse momento não chega eu não avanço muito. Enquanto eu não sentir que eu dominei o assunto, principalmente se é um assunto que eu não conhecia, eu realmente não compreendi as imbricações que existem no assunto, eu não sento pra escrever. Aí quando eu sento... hoje em dia eu não tenho muita oportunidade de fazer isso pelos n compromissos profissionais, até esse caso do Ayrton Senna, pra ficar num exemplo que já foi citado, eu preferia e hoje prefiro quando é possível, escrever coisas longas assim, eu paro e mergulho intensamente e escrevo. Se possível eu fico mergulhado no assunto e escrevendo, não faço mais nada na vida. (LIMA, 2006)

E ainda:

Então esse caso do livro do Ayrton Senna, quando foi o momento de escrever, eu comecei a escrever, parei todos os outros compromissos que eu pudesse, profissionais e pessoais, fiquei num apartamento sozinho [...] Eu não quero ver nada, não quero ouvir nada, gente a menos de 10 metros de mim, quero ficar isolado, então, presente com o que? Com as minhas fitas de gravação, com as minhas anotações, com os meus materiais de pesquisa, com meu roteiro do livro. Daí sentei e começava a escrever, tantas horas quanto eu agüentasse por dia, inclusive não parava pra almoçar na hora certa. Quando dava fome, comia uma maça, uma fruta, qualquer coisa e continuava, só quando realmente apertava é que eu saía ia comer fora num restaurante. Não ia em casa também pra não quebrar a concentração. Não via televisão, não lia jornal, me isolava do mundo. Isso foi 20 dias, eu levei vinte dias pra escrever o livro. Intensamente. Então uma coisa muito exaustiva. É uma coisa que eu chamo, é uma criação por impulsão. Essa é minha maneira preferencial de escrever. O Páginas Ampliadas, que não é um livro-reportagem mas é uma tese, foi escrito mais ou menos assim, não dessa maneira tão caótica, quase insana, mas também foi assim, num fluxo intenso num breve período. Eu levei um grande tempo pesquisando, estudando, entendendo, na hora que compreendi, foi

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assim. Hoje em dia, como eu tenho n compromissos e não dá pra ficar 10 dias afastado do mundo, eu tento fazer da melhor maneira possível desse jeito, mas estou tentando implementar uma coisa que não é muito o meu jeito, que é a disciplina do escrever um pouco todo dia. Eu custo um pouco pra entrar psicologicamente no tema, então eu tenho uma facilidade muito grande pra me distrair e pra me dispersar, e daí como me demanda muita energia pra entrar no tema, quando eu entro, eu não quero também sair dele enquanto não esgotar. (LIMA, 2006)

5.2 Ampliando o Páginas Ampliadas – tratamento das informações apuradas

Assim como foi feito no capítulo anterior, inserimos, neste ponto do

trabalho, aspectos novos do processo de confecção do livro-reportagem que não

haviam sido apontados por Páginas Ampliadas, mas que julgamos importante para a

sistematização do trabalho. O tema abordado, fruto de uma liberdade nossa durante

a realização das entrevistas, refere-se ao tratamento das informações colhidas

durante a etapa da captação e que situa-se como o primeiro procedimento a ser feito

antes de começar a escrita propriamente dita. Tal iniciativa surgiu da curiosidade em

saber como os autores, mais especificamente Caco Barcellos e Fernando Morais,

lidavam com número tão elevado de informações.

Para Caco Barcellos, o primeiro passo a ser dado antes de começar

a redação é conhecer e organizar o material coletado, com o objetivo de encontrar

as informações com facilidade. Para tanto, o autor desenvolveu recursos próprios,

como ler todo o material coletado mais de uma vez antes de criar o roteiro, separá-

los em pilhas de acordo com o assunto e grifar os textos com diferentes cores para

identificar o grau de importância da informação.

[...] Eu adoro papel. Pra mim não é concreto isso aqui [aponta para o computador]. Então antes tem que pôr no papel, eu pego o papel, pra sublinhar, com várias cores: o que é prioridade, é, sei lá, em vermelha, segundo em importância, azul, terceira, amarela, quarta, bem fraquinha. Enfim, tem mil loucuras pra me organizar. Eu sou extremamente indisciplinado, eu sou uma pessoa desorganizada,

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gosto de freqüentar o abstrato. Mas quando eu me dedico a um trabalho, a uma reportagem, vira uma coisa doentia de organização. Depois de toda a apuração feita, a montanha de informação lá, eu fico meses, dependendo do volume, a quantidade necessária pra ler tudo, uma, duas, três vezes se for o caso e eu conseguir tempo. Daí uma vez com tudo aquilo na cabeça, eu penso em um roteiro, então os capítulos serão, sei lá, eu vou por histórias, quantas histórias bacanas eu tenho? Digamos que eu tenho 30, então serão trinta capítulos. Aí começo a escrever. Capítulo 1, dou um título, capítulo dois, três...Capítulo um: Volante [refere-se a um personagem de Abusado], então pego todo o material relacionado com aquela história do Volante, que foi morto, fuzilado, coloco aqui na pilha do Volante [faz gesto com a mão como se estivesse trabalhando sobre a mesa] Capítulo dois, eu coloco na pilha do capítulo dois...E tem um material central que serve pra todos, geralmente os acontecimentos do cotidiano, do dia-a-dia, servem para pano de fundo da história, background da história: política, secretaria de segurança pública, estatística, coisas que são comuns para todos os capítulos ficam numa área comum. E na medida que eu vou escrevendo, depois, eu vou eliminando com a maior felicidade do mundo aquela montanha do capítulo 1 pra não ver mais na minha frente e vou avançando, terminando tudo [...] (BARCELLOS, 2006)

Já Fernando Morais, que também trabalha com um volume enorme

de informações - fruto, geralmente, de anos de trabalho e apuração e que inclui não

só horas de gravação, mas também documentos, diários pessoais e tudo mais que

possa se referir ao personagem biografado -, adotou como técnica numerar todas as

folhas coletadas e arquivá-las em pastas coloridas, em ordem cronológica. Outro

instrumento de trabalho que Morais considera imprescindível é o computador, que o

ajuda na organização.

Quando você está de posse com aquilo que você supõe que seja material de pesquisa, aí é um período duro, de trabalho quase braçal, mas se for bem feito é recompensador, porque quanto mais abundante e quanto mais... Porque não adianta você ter uma pesquisa abundante se você não sabe onde as coisas estão, então eu pego 40 anos de diários do senhor Paulo Coelho, bom, o diário, embora ele seja cronológico, ele faz muito flash-back, eu preciso organizar isso. Outra coisa, o que eu vou usar e o que eu não vou usar? Eu estou falando do diário do Paulo Coelho, mas eu poderia falar das atas da Shindo Renmei, então aí entra sim um pouco de metodologia, é inevitável. Eu numero tudo, de cada tema, de cada ano. Todas as páginas são numeradas [Fernando Morais mantém sempre uma maquininha de numerar em seu escritório]. Separo, no caso do Paulo, por exemplo, tem uma separação grossa que é cronológica. Se você vir ali [aponta a estante em que as pastas estão

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dispostas por datas e por cores] tem pastas desde a pré-história, desde antes de ele nascer, avô, avó, não sei o que, não sei o que, até hoje, até a viajem dele pra Transiberiana semana trás. A partir do momento que você está com essa maçaroca na mão, organizada, fichada, se eu fosse fazer um livro com tudo o que está aí dentro dessas pastas, eu teria que fazer um livro de 10 mil, 20 mil páginas, como não vai ser isso, eu vou buscar fragmentos de cada um desses documentos e vou juntar não na ordem de que eles aconteceram, mas na ordem que meu livro vai acontecer, e muda de acordo com o livro, de acordo com o personagem, com aquilo que o personagem te dá [...] (MORAIS, 2006)

E continua:

Então, a partir do momento em que você decide o que vai ser a estrutura do seu livro, você faz um roteiro. Eu faço um roteiro, que é o seguinte: eu vou abri com a informação da marcha dos tokotai no centro de tupã [refere-se ao livro Corações Sujos]. Mas onde está essa informação? Na pasta número 79, na página 18. Porque não adianta eu passar dois anos esgravatando a vida do Paulo Coelho, entrevistando gente no mundo inteiro, se depois eu não souber onde está a informação. Duzentas e tantas horas de depoimentos que eu gravei dele, isso é um trolha que ocupa tantos giga de memória...não vale nada se eu não souber localizar as coisas aí dentro. Isso eu aprendi como o tempo, a vida foi me ensinando, o trabalho dos amigos e o computador, o computador foi a salvação da lavoura. Então, daí é simples, se a pesquisa foi boa, trouxe uma abundância de informações, e você sabe onde estão, você faz o que você quiser. (MORAIS, 2006)

Para concluir, inserimos também um breve trecho da experiência de

Edvaldo Pereira Lima no que diz respeito ao trabalho imediatamente anterior ao

processo de redação. Segundo ele, a organização das informações começa durante

a fase da captação e mesmo no momento das entrevistas, com a criação do que ele

chamou de mapa mental, assunto já trabalhado no item Ampliando Páginas

Ampliadas – recursos técnicos, no capítulo anterior.

Eu uso o mapa mental como forma de registro também dessas informações e de síntese do conteúdo que está sendo falado. Isso me facilita porque eu anoto cada item, cada tema que foi falado, não o conteúdo, mas o tema, e anoto em que ponto isto está no gravador. Na hora de trabalhar o tema, eu não preciso transcrever tudo, eu já sei onde é que está cada conteúdo. (LIMA, 2006)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos à última etapa desta viagem pelo universo da prática do

livro-reportagem comandada de forma tão saborosa pelos autores Mylton Severiano,

Fernando Morais, Caco Barcellos e pelo próprio Edvaldo Pereira Lima. Viagem esta

que elucida os caminhos, mas não determina qual é o local da chegada, que aponta

direções, mas não estabelece limites. Seguimos as balizas orientadoras de Páginas

Ampliadas – o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura e com

isso pudemos abranger o contexto do objetivo que nos interessava. Porém, mais do

que isso, pudemos apreender a riqueza e a importância do confronto entre teoria e

prática, que entendemos ser integrantes de uma única via, mesmo que a primeira

não seja sistematizada ou fornecida pelos ditames convencionais da academia ou

de obras que dela provenham.

Assim, o que nos mostra a práxis do livro-reportagem, reunidas por

esta monografia?

Primeiramente, nos revela que o livro-reportagem pode ser

considerado sim - não só por teóricos, mas também por profissionais ligados

exclusivamente à prática - um "subsistema do sistema jornalismo", como assim

propôs Lima em sua tese de doutoramento, consideradas as suas especificidades

com a função aparente que exerce, os elementos operativos de que se utiliza e o

modo como combina as regras que determinam as relações desses elementos

(LIMA, 2004, p.62) e que foram reafirmadas, em maior ou menor grau de

comprometimento, pelos autores aqui estudados.

Outra hipótese de Lima bastante reverberada pelos autores foi a de

que o livro-reportagem preenche os vazios deixados pelo superficialismo epidérmico

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da imprensa contemporânea, ampliando o olhar sobre a realidade, lançando luzes

de compreensão sobre temas já conhecidos em um certo nível ou abordando de

forma inédita temas que nem foram considerados pela imprensa.

Com todo esse potencial latente, o livro-reportagem, na opinião de

Lima e também dos outros autores,

[...] agora, como no passado, é muitas vezes fruto da inquietude do jornalista que tem algo a dizer, com profundidade, e não encontra espaço para fazê-lo no seu âmbito regular de trabalho, na imprensa cotidiana. Ou é fruto disso e (ou) de uma outra inquietude: a de procurar realizar um trabalho que lhe permita utilizar todo o seu potencial de construtor de narrativas da realidade. (LIMA, 2004, p. 33-34)

Partindo para as etapas necessárias à produção de um livro-

reportagem – pauta, captação de informações e redação -, o diálogo entre as

hipóteses e propostas de Lima e a experiência dos autores aqui estudados nos

revelou que muitos dos procedimentos sugeridos pelo pesquisador são sim

utilizados na prática – considerando-se, é claro, a experiência e estilos próprios de

trabalho dos autores -, mesmo que estes não os conheçam pelos nomes com os

quais foram identificados ou que apliquem tais procedimentos de maneira

inconsciente e até mecânica, como se fizessem parte de uma natureza própria.

Em toda nossa análise encontramos pontos muito sutis de

discordância entre teoria e prática, como um ou outro procedimento sugerido por

Lima e que não é utilizado e, em maior grau, as propostas de classificações do livro-

reportagem dadas pelo pesquisador, e trabalhadas no capítulo 2 desta monografia,

mas que não encontraram eco na opinião dos autores aqui estudados. Porém, tais

desacordos foram por nós julgados como irrelevantes, considerando-se o processo

global de produção de uma obra calcada na realidade.

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Nesta nossa viagem pelo universo da prática do livro-reportagem

também buscamos ampliar a perspectiva sobre seus processos de produção,

abrangendo aspectos que não haviam sido trabalhados por Lima em Páginas

Ampliadas, mas que foram identificados no decorrer das entrevistas com os autores.

A descoberta de novos pontos só vem corroborar a afirmação do próprio Edvaldo

Pereira Lima, quando diz que:

[...] como o gênero da reportagem em livro oferece muita liberdade ao autor, nada impede que alguns aspectos importantes se alterem no futuro breve, forçando algum acréscimo ao conceito aqui proposto. (LIMA, 2004, 51)

Os novos aspectos por nós evidenciados estão apontados nos sub-

itens que chamamos Ampliando o Páginas Ampliadas, nos capítulos 4 e 5 deste

trabalho.

Para concluir, tendo à frente o panorama aqui apresentado,

inferimos que é a teoria, não de forma acabada, que está fundamentada nos

processos e não o procedimento contrário. Também entendemos que não é

necessariamente o conhecimento de Páginas Ampliadas o ponto de partida para a

produção de um livro-reportagem, mas que, por mais que os autores não sigam

todos os procedimentos proposto – e, muitas vezes, nem tenham conhecimento

sistêmico deles - , a teoria está sim sistematizada e não deve ser deixada de lado

por quem quer iniciar a aventura que é o livro-reportagem e deseja um panorama

conceitual básico no qual se alicerçar.

Muito do material colhido nas entrevistas não foi incluído neste

trabalho por não contemplar nosso objetivo, porém fazem parte de experiências

ricas e configuram um acervo de extrema importância, não só no que diz respeito à

práxis do livro-reportagem, mas também a questões relativas à opinião dos autores

Page 91: Dialogo Aberto[1]

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sobre a teoria, opinião sobre o mercado editorial de não-ficção no Brasil, sobre o que

consideram bons livros-reportagem e dicas para quem deseja seguir o caminho

desta modalidade. Fica, então, o convite para ler o material em anexo e aprofundar

essas reflexões, de modo a contribuir cada vez mais para o incremento do universo

da reportagem em livro.

Neste momento final da monografia, permito-me revelar as

profundas transformações pessoais ocorridas durante a realização do trabalho.

Tanto as entrevistas – que foram conduzidas em um processo crescente de

qualidade - como a análise dos livros estudados, me enriqueceram e estimularam a

seguir esta área do jornalismo. Concluo a tarefa completamente apaixonada pelo

mundo da não-ficção e com um profundo respeito por todos os autores que tão bem

me receberam e que me mostraram que o respeito pela verdade e pelo ser humano

é mais importante que qualquer desejo pessoal que venhamos a ter. Edvaldo

Pereira Lima nos convidou – e ainda nos convida - a ampliar as páginas da

percepção sobre livro-reportagem. Eu já aceitei o convite.

Page 92: Dialogo Aberto[1]

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PROFISSÃO Repórter – Entrevista com Myltainho. Disponível em <http://prof.reporter.sites.uol.com.br/myltainho.html>. Acesso em: 8 de out. 2006.

RINALDI, Ana Maria. "O importante são os personagens". Disponível em: <http://www.facasper.com.br/jo/entrevistas.php?tb_jo=&id_noticias=219>. Acesso em 4 de out. 2006

SEVERIANO, Mylton. Paixão de João Antônio. São Paulo: Casa Amarela, 2005.

__________. Entrevista concedida à autora. Londrina – PR. 28 abril 2006

STUMPF, Ida Regina C. Pesquisa Bibliográfica. In: BARROS, Antônio Teixeira de; DUARTE, Jorge (Coords). Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação. São Paulo: Atlas, 2005. p. 51-61.

Page 94: Dialogo Aberto[1]

92

VIAGEM ao estômago da besta. Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/al170620031.htm>. Acesso em: 12 de out. 2006.

WOLF, Rom. Radical Chique e o Novo Jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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ANEXOS

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ANEXO A

Entrevista com Mylton Severiano

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ANEXO A – Entrevista com Mylton Severiano

O café da manhã que o hotel serviu na manhã do dia 28 de abril era

"um baita café da manhã" e por isso a jornada de Mylton Severiano em Londrina

começou bem. O primeiro compromisso era na rádio da Universidade Estadual,

onde o autor participaria de uma entrevista ao vivo. Segundo o cartunista e amigo

Jota, "de casa o bate papo foi muito bom":

- Porque quando a gente tá na roda não dá pra perceber o todo, né?!

– explicou Mylton, ou melhor, Myltainho.

O apelido veio em 1966: depois de chegar à redação do Jornal da

Tarde, onde trabalhava, todo molhado e encolhido pela chuva, o amigo e jornalista

Murilo Felisberto falou : "Olha só, parece um pintainho. Aliás, Myltainho"

Depois da entrevista na rádio Universidade, Myltainho foi levado

pelos também amigos Rodrigo Lacerda, Cláudia Silva e Elvira Alegre a um passeio

por Londrina.

- Como a cidade cresceu depois da última vez que eu vim aqui. Tá

linda, linda, linda – disse ele ao comparar a Londrina de hoje com a de 1975, quando

o autor aqui esteve para integrar o corpo de jornalistas do jornal Panorama.

Depois do passeio pela cidade, de uma breve visita à penitenciária

local e de um almoço não menos servido que o café da manhã, Myltainho tomou

banho, fez a barba, vestiu uma camisa branca, calça jeans e tênis. Estava pronto

para me receber.

A entrevista correu tranqüilamente, mas não saí satisfeita. Ainda não

estava madura para conduzir uma conversa que contemplasse os meus objetivos.

Estávamos em abril e muita coisa mudaria até outubro, quando realizei a última

entrevista.

[Durante uma conversa prévia, expliquei a Mylton objetivo do trabalho, por isso, na primeira pergunta,

não há uma introdução ao assunto]

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Cristiane – A primeira pergunta acho que é justamente essa, Mylton, que se hoje em dia..existe na produção.....quando um autor se propõe a fazer um livro-reportagem, se existe a preocupação com pela técnica ou ela foi suprimida pela prática? Se a prática está mais do que a os textos, mais do que a preocupação com a linguagem, com a pauta..várias coisas... Mylton - Mas se você põe em prática a técnica? Cristiane - A técnica, no sentido assim, que algumas teorias, né, de poucas pessoas como o Edvaldo Pereira Lima, por exemplo, propõem classificações, propõem etapas que deveriam ser cumpridas na produção de um livro-reportagem, né, como a pauta e depois a captação das informações por várias técnicas além da entrevista, né e tal, pra depois sentar e escrever o livro, daí depois com o estilo do autor. A questão que eu gostaria de saber de você é, se hoje em dia, quando o autor vai escrever o livro-reportagem, se ele se preocupa com isso, ou se tem a impulsividade e as coisas vão fluindo, como é isso? Mylton – Eu, eu vejo assim..[responde relutante] o resultado que eu vejo, né. O caminho que a pessoa fez não altera o produto, né. Agora, o mínimo de organização você tem que ter quando você vai partir prum trabalho, né, mesmo que essa organização seja aparentemente, para a maioria das pessoas, um caos. Eu acabei de lançar um livro que não deixa de ser um livro-reportagem, porque é uma biografia, e ali tem tudo, todas as técnicas jornalísticas praticamente, ali tem entrevista, tem pesquisa, tem pesquisa na Internet, hoje, que não existia antigamente, tem consultas, tem documentos escritos, cartas, histolografia [ou autor, na verdade, queria dizer historiografia] né, tem história, enfim...Eu adotei...como eu tinha, né, eu tinha no escritório, assim, uma mesa cheia de coisas, e um mundo de informações na cabeça, por isso eu falei caótico, eu não sabia como eu fazia. Por onde eu vou começar? Então eu até me lembrei, em dado momento, do José Carlos Barão, que foi um baita texto de repórter da revista Realidade, que é uma revista cult hoje, o José Carlos Barão uma vez pegou uma reportagem... qualquer reportagem da revista, da Realidade... eu era um dos editores de texto e ele me mostrou uma coisa curiosa, ele falou...eu sou conhecido como Myltainho, "Ô Myltainho, olha que coisa engraçada", ele fechou os olhos, pegou o texto aberto assim, fechou os olhos, pegou o dedo e baixou assim e pôs [com um papel na mão, Mylton reproduz o movimento de quem, com os olhos fechados, aponta, ao acaso, um ponto no texto] e aí olhamos ....e a matéria podia começar ali, sabe, quer dizer...você pode...as possibilidades são quase infinitas pra você partir pro trabalho, depois de você captar tudo o que você tem. E a organização prévia, a organização prévia também, eu acho que...se você tiver uma...um auxílio como esse do Li...Lima, né? Você tem alguém que te passa uma dica de como você organizar o seu trabalho de campo, o seu trabalho prévio pra você partir pra escrever, e for útil pra pessoa, tudo bem, eu acho muito útil. Quer dizer, tanto faz você partir de um jeito seu, especial, exclusivo, que possa parecer fora dos cânones, como se você tiver alguma organicidade de técnica, né, de captação das informações. Pra mim é indiferente, o que me interessa é o produto, é o resultado. Você lê uma coisa que está maravilhosa e a técnica que você usou é absolutamente fora dos padrões, pra mim não tem importância, né... Cristiane - Na verdade, o que me motivou pra esse tema é que o Edvaldo acaba tendo uma voz única, além da Cremilda Medina .. Mylton – Eu não conheço esse nome. De onde ele é, de que escola? Cristiane - Ele é da USP, professor da Usp Mylton – ECA. Cristiane - ...e tem um site que chama texto vivo, que é sobre jornalismos literário, só que ele acabou sendo um dos poucos teóricos sobre o assunto, né, e aí, a idéia partiu de entrevistar autores consagrados... Mylton – E ele te foi útil? Cristiane – Ele me foi útil com a bibliografia...

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Mylton – [risos] Bibliografia é ótimo. Certo, então você veja, se você pegar uma bibliografia de, sei lá, dez livros básicos pra você atingir a um resultado e der pra 30 pessoas, vão sair 30 coisas diferentes. Então é isso que eu estava falando.... Cristiane – O que eu queria saber é assim: pra um autor, é necessário passar por essas etapas? Mylton – Não! Cristiane - Pensar numa pauta, pra daí a captação... Mylton – Não, eu acho que... Você vai escrever um livro sobre o que? Então você tem o assunto, seu objetivo. Eu vou escrever um livro sobre jornalismo literário, vai. Por onde que eu começo? O que vou fazer? Eu acho que é a cabeça de cada um, porque pode sair... depende da pessoa, do autor, da pessoa que vai escrever aquilo...[pausa] Não vejo, aliás, eu sou suspeito pra essa posição porque eu sou contra a escola de jornalismo...não, desculpa, eu sou contra a exigência do diploma. A escola de jornalismo pra mim é: tanto faz! Se a pessoa quiser fazer, faz, se não quiser não faz. Jornalista tem ser primeiro bom de texto, tem que escrever bem, tem que ter lido muito. Outro dia tinha uma carta na revista Caros Amigos de uma moça falando, a propósito de algum assunto lá, que ela tinha tido um namorado que era estudante de direito...e ela...que era estudante de jornalismo, o namorado, o ex-namorado dela, e ela estudante de direito, e o rapaz, esse ex-namorado, tinha lido 1 livro. Um estudante de jornalismo que leu 1 livro? Eu prefiro um que não estudou jornalismo mas que leu 100 livros. Esse que leu 100 livros é muito mais capacitado a ser jornalista, a escrever bem, do que um sujeito que está na escola de jornalismo e leu um livro na vida. O que é isso? Onde estamos..né?! Mas então eu sou meio suspeito pra ficar com esses pé atrás, com essas ... afirmações taxativas pra você fazer uma produção intelectual, principalmente jornalística. O diploma de jornalista pra mim é uma aberração, igual ao sujeito que vai, sei lá...em algum lugar que está pedindo documento e ele diz [reproduz um diálogo] "O que o senhor faz?", "Eu sou pintor e escultor", "O senhor tem o diploma?"...sabe? É o mesmo absurdo, querer exigir agora diploma de pintor, sabe?! De escultor, né, diploma de atriz. São profissões que são profissões de vocação, né... escritor, carteirinha de escritor? Já pensou em uma coisa dessas? É o mesmo absurdo pra mim de diploma...professor doutor em jornalismo...acho tão [enfatiza o "tão"] ridículo isso. Então eu sou meio suspeito pra isso, Cristiane... pra, pra, pra...Essa primeira pergunta eu vejo com um pouco de ironia. Acho que você pode ir em frente agora. Cristiane - Tem algumas técnicas utilizadas...Eu falo em técnicas mas acabou... que são coisa que o escritor faz sem pensar, como por exemplo o uso dos estilos do novo jornalismo, como o jornalismo social, como o ponto de vista, fluxo de consciência, ponto de vista auto-biográfico do Norman Mailler, diálogos, construção cena a cena. Isso você considera imprescindível pra um livro-reportagem ou ele pode ter linguagens diferentes que não utilizem a do novo jornalismo? Mylton – Não, eu acho que o jornalismo é um gênero literário e estou afirmando isso com bastante sossego porque quem disse isso antes de mim foi o Garcia Marquez, é um gênero literário. Então, como é um gênero literário, cabe tudo, fluxo de consciência...Outro dia estava lá no Chile, a propósito de um encontro de teatro infanto-juvenil, e lá eu li muitos jornais, porque eu gosto de saber como é que é. Eu li um jornal lá, isso foi de janeiro pra fevereiro, na época que a filha do Pinochet, Lucia Pinochet, tinha fugido do país, ela tinha que depor na polícia a propósito dos crimes que ela foi acusada. E chega nos EUA, em Washington, ela desce lá e havia um mandado de detenção dela pela Interpol, ela foi detida, presa, quando desceu do avião, e foi presa e foi pro presídio que tem em anexo no aeroporto, ali perto, e ela teve que se submeter a tocar piano como se diz...as impressões digitais... entregar os pertences, tirar a roupa civil e vestir o macacão verde de presidiária, de prisioneira, enfim, todo o procedimento. E o repórter que narrou isso, o jornal era La Tercera, se não me engano, lá de Santiago...achei aquilo incrível, na nossa imprensa não vejo isso. Ele narra tudo isso que eu te falei aí que a mulher passou lá e daí ele abre um parágrafo e diz assim, que aí então 9h da noite são todos recolhidos às celas e depois às cinco da manhã são acordados, "Então às 9h da noite, quando ela se recolheu à cela, o que será que se passou à cabeça dela?", né?! Fluxo de consciência do repórter agindo ali. Isso bateu na cabeça dele e quando ele passa isso pro texto, isso traz uma carga de emoção pro leitor, porque o leitor hoje, com esses textos frios....de... com a camisa de força dos manuais de redação, jamais pode escrever uma coisa dessas. "Nesse momento, o que terá passado pela cabeça de Lucia Pinochet?”, ele pergunta assim: “Será que ela teria pensado que até poucos anos atrás ela foi uma das pessoas mais poderosas do Chile?" Legal, isso. Bacana?!

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Achei incrível, nos nossos jornais o repórter não pode de escrever isso, a não ser que ele tenha... seja uma estrela. Então todos essas... diálogos, fluxos de consciência, sabe, elipses, metáforas, tudo vale no texto jornalístico. Cristiane - E são recursos que você utiliza? Mylton – Claro, claro. Uso tudo, todo instrumental que fui me locupletando durante a vida, instrumentais todos da linguagem, tudo pode ser usado. Cristiane – O uso do novo jornalismo foi bastante forte na Revista Realidade. Eu gostaria de saber qual a contribuição da revista Realidade pra consolidação desse estilo de fazer jornalístico. Mylton – Mas esse estilo hoje está um pouco abandonado. É difícil você ver hoje em dia uma boa reportagem, hoje em dia, no Brasil, na imprensa, no impresso. É bem difícil. Tem... na Caros Amigos tem boas reportagens, na Carta Capital tem boas reportagens..Às vezes...eu até brinco assim, que às vezes a mídia gorda se engana e publica uma boa reportagem...parece que eles erraram. Aqui e ali você encontra, mas não se consolidou. Depois de Realidade, aí acabou mesmo, aquilo morreu durante muito tempo, vários anos. Depois, de repente, começaram a aparecer umas reportagens, já no fim da ditadura. Mas não existe isso sistematicamente, não existe uma revista hoje, um jornal que seja um jornal, uma revista com aquele tipo de jornalismo...sistemático mesmo. Não, às vezes aparece uma reportagem legal, bem escrita, com preocupação de beleza, porque o texto não precisa ser "apenasmente" bem informado. O repórter trouxe tudo, trouxe tudo da rua, mas aí ele é obrigado, por questões industriais ou porque tem o manual de redação que ele tem que obedecer, ele não pode fazer um texto autoral, não digo assim que tem que ser aquela coisa beletrista, falsamente literária, que o cara fica ali querendo me enrolar, falar "Olha como escrevo bonitinho"...Não. Uma coisa autoral, uma coisa que você fala: "Nossa, esse cara tem uma cabeça legal, ele trouxe as coisas mas ele fez uma conjunção legal do texto, ele, além de me informar, ele me deu um prazer estético também". Isso é difícil de você encontrar hoje. Era o que acontecia nos textos da revista Realidade, que era...além de você praticar um jornalismo de engalfinhamento mesmo com a realidade, a gente não fazia matéria por telefone, nem pela Internet, a gente ia pra rua, sujar, pisar no barro, amassar barro e ficar sujo, tomar cachaça com aqueles fudidos lá que a gente tava entrevistando. Além disso, ainda eram repórteres...acho que o repórter ali que menos livro leu, devia ter, naquela época, lá com 25, 27 anos, que era a média de idade nossa, o que menos leu ali devia ter lido uns 50, 80 livros já naquela vidinha ali, eu já tinha lido incontáveis livros... Cristiane – Devido a essa escassez de espaço, de tempo, o livro-reportagem surgiu como uma alternativa...alguns autores o consideram como uma alternativa à essa poda que o jornalista freqüentemente tem que lidar... Mylton – É, os jornalistas partiram pra escrever livros, né?! Cristiane - Qual seria a função do livro-reportagem pro senhor? Mylton – Não me chama de senhor porque nós somos colegas! Cristiane – Tá bom [risos]... Mylton – [reponde com relutância] Eu acho que são louváveis esses jornalistas que por falta de veículo, né, põem a história deles num livro, eu acho maravilhoso isso. É uma pena que... imagina se "invêz" de eles estarem escrevendo um livro a cada dois, três anos, cinco anos, se eles não tivessem fazendo uma reportagem por mês ou a cada dois meses... um veículo só de bom jornalismo, de reportagem, seria bem melhor, né?! Cristiane – Mas o senhor... você, desculpa! Você concorda que o livro-reportagem é uma alternativa à escassez de tempo, de informação? Mylton – Claro! Mesmo que houvesse duas três revistas como foi a Realidade, fossem semanais, mensais, isso não exclui o livro-reportagem, porque o livro, obviamente, é mais perene, mais permanente do que uma revista que muitas vezes você acaba não comprando ou perdendo. Então o

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livro vai pra biblioteca, é mais compartilhado ainda, a família toda lê, empresta, e vai pra biblioteca.. então não exclui..acho eficaz o instrumento do livro jornalismo (sic). Cristiane – Partindo pro seu livro. O que te motivou a escrever? Mylton – O João Antônio? [refere-se ao livro Paixão de João Antônio] Cristiane - Ele é fruto do que? De um desejo? De uma sensação de que ninguém conhecia, de que ele era pouco conhecido, como é que é? Mylton – Eu fui amigo do João Antonio 30 anos, aliás faz 32 anos que eu e o João Antonio nos hospedamos aqui nesse hotel aqui pra fazer o Panorama. A gente ficou aqui antes de ir morar numa casa. Mas eu fui amigo dele durante 30 anos e a gente morava...ele no Rio eu em São Paulo, uma época ele na Alemanha, um ano e pouco lá, uma época pré-Internet, telefone era muito caro na época, então a gente trocava cartas. A gente trocou por volta de 500 cartas das quais eu perdi metade porque eram duas caixas e uma caixa eu perdi numa mudança, então sobraram 223 cartas. E eu estava conversando com o Sérgio de Souza que é o editor da Caros Amigos, isso há uns cinco anos atrás, e à propósito dos Rebeldes, a [Editora] Casa Amarela publicou uma série: "Os rebeldes brasileiros" e um deles era o João Antonio, e a propósito de eu comentar com ele, eu falei: "Rapaz, você sabe que eu tenho 223 cartas do João Antonio?", e ele falou: "Então porque você não faz um livro?" Então eu devo esse livro a esse, sabe, a essa... a uma conversinha coloquial ali, porque ele me botou um desafio interessante ali na frente. Inicialmente eu falei: "Puta, um livro", e ele falou assim: "Pois é, só as cartas João Antonio é um livro" Mas eu fui pra casa, já morava em Florianópolis..."Mas um livro? Publicar as cartas é chocho, né?! Publicar as cartas do João Antonio, fazer uma seleção". E aí eu fui ficando mordido com aquilo, eu fiquei ruminando, como se diz, e pensando: "Fazer um livro..fazer um livro..." E aí, a primeira providência que eu tomei, eu peguei as 223 cartas e passei pro computador, copiei na íntegra, passei tudo pro computador e na medida que ia passando aquilo a limpo, foram nascendo idéias. [O primeiro lado da fita K7 acaba e interrompemos a conversa. Durante este intervalo, Mylton acendeu um cigarro e começou a falar de sua mulher. Quando ligamos o gravador ele já havia iniciado a fala] Mylton - ...ela não tá vendo, então eu vou fumar mais um, porque na frente dela se eu fumar dois em seguido, assim, ..."Fumando outro, já? Faz dez minutos..." [retoma a entrevista] Mas então você vê, o processo... é um processo meu, ninguém me falou faz isso, e isso e isso, ta?! Eu tô respondendo um pouco da primeira pergunta né?! Não fui pegar um manual de como se faz um livro-reportagem, meu deus, que isso?! Isso não existe! Fui... e fui maturando aquilo...vou também pegar, amealhar, vou pegar todos os livros que eu tenho dele, eu tenho praticamente tudo dele em casa, alguns autografados, comecei a reler os livros dele, os que eu mais gostava. Fui entrevistar as ex-mulheres...uma delas que está no livro lá, a segunda, a Tereza, uma crioula...eu só sabia o nome: "Tereza", não sabia o sobrenome, só sabia que tinha voltado pra Divinópolis. Quer dizer, tem toda uma saga aí. Enfim, depois de 4 anos e meio tava pronto o livro. Mas por onde começar de novo? Como é que começa um livro? Por onde que começa? Eu fui naquela brincadeira do Marão, José Carlos Marão, fechei os olhos e... Cristiane – Ao acaso... Mylton - ... pensei: "Ahh, qualquer lugar dá pra começar", daí comecei, pronto, daí fui embora... Cristiane – Foi daí que surgiu também a escolha da linguagem, da reprodução das cartas e não uma outra? Mylton – Exatamente. Porque as cartas são tão abundantes que..., tudo o que aproveitei no livro eu não joguei no apêndice onde estão as cartas. Depois, como eu tenho por formação ser editor de texto, eu não apenas simplesmente joguei as cartas lá, eu editei elas, eu extraí só o sumo de cada uma e agrupei por assuntos mais recorrentes. Então tem umas coisas lá: Brasil, broncas e por aí a fora. [pausa] Contratei, paguei do meu bolso um repórter lá do Rio pra fazer uma visita ao prédio onde ele morreu, viveu 30 anos e morreu lá...foi fazer uma visita lá e com isso eu encerro o livro. Quero dizer, é uma homenagem ao repórter, é uma homenagem minha ao repórter. Eu peguei o texto

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dele, só dei uma arrumadinha, uma limpadinha, e publiquei o texto do repórter pra encerrar o livro. Porque eu tenho muita inveja de repórter, porque é um dom muito raro do repórter...eu tenho inveja, eu não me considero um repórter, eu sou um redator de jornalismo...E foi assim, saiu o livro, pro meu gosto, sou muito exigente, sou virginiano, meticuloso, preciosista, perfeccionista... o livro poderia ter ficado pronto na metade do tempo, mas eu refiz e refiz, copidesquei de novo, cortei na carne n vezes... Cristiane – Então, de certa maneira você já respondeu a essa pergunta...mas tem algumas classificações pro livro-reportagem, como o livro-reportagem perfil, antologia, biografia...Você acha válida essa classificação e classificaria seu livro em algum deles itens ou não? Mylton – A efeito...a editora me inscreveu num prêmio lá, Jabuti, não sei, me inscreveu num prêmio lá, num concurso, como biografia. É... o mais próximo que meu livro está é de biografia, porque eu conto a vida dele. É uma biografia sim, mas é uma biografia com algumas nuances. Tem crítica literária ali, minha não, porque eu não sou crítico literário, mas eu uso muitos críticos falando sobre ele pra amparar idéias que eu tenho sobre o João Antonio escritor, né. Literatura dele eu amparei muito bem em críticas, peguei todos que eu pude arrebanhar pra amparar o que eu achava, e tem as cartas, aí...é um livro-reportagem histolografia (sic), então tem várias nuances, mas é o mais próximo de biografia. Cristiane – O que vem a ser o conto-reportagem? Mylton – O conto-reportagem é uma idéia que nasceu na cabeça do Sérgio de Souza quando nós chamamos o João Antonio pra trabalhar na Realidade. O Sérgio na época era o editor de texto da Revista Realidade, editor de texto... no expediente estava Sergio de Souza, eu estava como redator, embora eu já fosse editor de texto, eu já tava aprendendo com o Serjão, o Serjão foi o meu mestre de texto jornalístico...E eles foram conversar o que o João Antonio ia fazer na revista e tal e conversa vai, conversa vem, o Sérgio falou: "Você é contista e repórter, vamos criar o conto-reportagem. A gente faz a reunião de pauta normal, como todo mundo, você pega seu assunto e vai pra rua como todo repórter, mas você volta e faz um texto seu, de autor mesmo, com mais liberdade até ficcional". Então esta é a origem do conto reportagem. O primeiro foi o “Um dia no cais”. Você lê aquilo você fica ali no fio da navalha, entre o repórter e o escritor. Você não sabe se a Rita Cadilac existe mesmo ou se ele inventou. É um barato aquilo, e é uma observação de um dos críticos citados por mim no livro, eu não me lembro qual é, que é um texto de atmosfera. Ele não tem enredo como um conto tem, é só atmosfera. Tem uns pontos de tensão, daquela briga das prostitutas que depois fazem as pazes, o tatuador, aparece um tatuador, os marinheiros que vêm lá de não sei aonde...Não tem enredo, não tem desfecho, é atmosfera que você fica vendo ali, parece até que você sente até cheiro de cais...Pena que a revista não tem cheiro. Ainda, né [risos]. Cristiane – Mylton, como você avalia a produção de livros reportagem hoje no Brasil? Mylton – Eu tenho visto que está bem, viu?! Só pela minha mão este último ano passaram dois pra editar o texto, pra arrumar o texto. Por coincidência os dois da mesma editora, Geração Editorial, e por coincidência os dois sobre a Guerrilha do Araguaia. O primeiro da Taís Morais que é "Araguaia...", "Dossiê Araguaia", uma coisa assim [refere-se ao livro Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha], que ela é filha de militar, de um militar que passou pela guerrilha combatendo os guerrilheiros. E um outro agora recente, que saiu agora em março, esse do Hugo Studart, "A lei da Selva” [refere-se ao livro A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia] que abordou do ponto de vista inédito dos livros, de todos os trabalhos sobre a guerrilha que eu já vi, ele foi nos militares, imaginário dos militares. Então você veja, só pela minha mão passaram dois, mas tenho visto aí, saiu também uma antologia: “As dez reportagens que abalaram a ditadura”, saiu pelo fim do ano passado, que tem um texto final meu, que é a morte do Vlado, são mais nove reportagens, uma delas, talvez a primeira depois da Revista Realidade que veio com aquele texto bom, que é do Ricardo Kotscho, que é as mordomias, já era o começo do fim da ditadura... Cristiane – E a qualidade? Mylton – Olha, esses dois que eu me engalfinhei são muito bons, muito bons, muito bem apurados, até certo ponto muito bem escritos, claro que eu ajudei. Que mais que eu vi? Esse já tem algum

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tempo já, foi do Macluf, tem uns oito nove anos, "As mulheres que pegaram em armas", uma coisa assim, bom livro também sobre as mulheres que na ditadura foram pra luta armada. Eu não me lembro de mais algum que tenha passado....ahh, tem o Abusado do Caco Barcellos, meu amigo. Barbaridade, aquele puta livro, o Abusado maravilhoso, um livraço. Enfim, tá bem, eu to gostando. Cristiane – Mas é um mercado que tá em construção? Poderia ter mais? Mylton – Olha, eu tenho sentido que está bom ....tenho sentido que está sendo bem recebido...ahh, eu tenho outro livro-reportagem também, sobre drogas, e esse tem oito anos, eu tenho sentido que está saindo mais...parece que João Antonio tem até editora, a Geração, por exemplo tem esse nicho pra livro-reportagem, né, eles publicaram também, um livro do...também trabalhei no texto..dum presidiário famoso, Osmani....é Osmani..’Pavilhão 8’, uma coisa assim , uma narrativa, ele não é repórter, mas uma narrativa dos fatos lá dentro do Carandiru, aliás o livro do Dráusio Varela também é um livro-reportagem, não deixa de ser, embora ele não seja jornalista...o que comprova minha tese de que não precisa ter diploma de jornalista pra fazer jornalismo, né, mas acho que está bem, é alvissareiro, estou gostando. Cristiane – Pra terminar, eu gostaria de saber quais são as características necessárias pra autor de livro-reportagem e eu gostaria que você desse algumas dicas pra quem deseja seguir .... Mylton – Esse filão? Bom, livro-reportagem é pra repórter, a condição primeira é o repórter...as qualidades do repórter é curiosidade, é ler, ter lido muito, é saber escrever bem, ser claro, objetivo, ser ousado, tem que ser peitudo, mas basicamente ser jornalista, ter vocação para o jornalismo... Cristiane - Que não necessariamente passa por uma academia? Mylton – Não, não precisa necessariamente ser acadêmico...de preferência não ser (risos)... Cristiane – Ta certo, Mylton. Obrigada.

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ANEXO B

Entrevista com Fernando Morais

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ANEXO B – Entrevista com Fernando Morais

- Você vem de manhã? Então venha para almoçar. O almoço é

servido às 13h30. Tchau!

Desliguei o telefone eufórica e amedrontada com a possibilidade de

encontrar o autor Fernando Morais, afinal, não é todo dia que uma pessoa do seu

gabarito nos convida para almoçar, não é?!

Havia pesquisado muitas coisas sobre ele, lido seus livros,

preparado e revisado o roteiro de perguntas mais de dez vezes, porém, ainda não

me sentia segura diante de encontro tão importante. Para que ficasse mais tranqüila,

convidei minha tia e também jornalista Nydia Natali para me acompanhar:

- Se eu não puder ir eu te empresto o carro – disse ela.

- Mas não é o carro que eu quero. É você – respondi quase

implorando.

Nydia me acompanhou pelas estradas que me levaram até a casa

de praia de Fernando Morais, na cidade de São Sebastião, litoral sul paulista, e

durante a entrevista. Por isso, em alguns momentos da transcrição do material ela

está presente, colaborando com seus comentários.

A casa, branca e azul, tinha a praia como quintal e a decoração,

toda clean, fazia o gosto da esposa de Fernando.O único cômodo que contrastava

com a harmonia dos poucos móveis era o escritório do autor, um mundo à parte e

que, só por estar nele, já valeria a visita.

Nas paredes, várias fotos de personalidades com as quais Fernando

esteve. Em uma das estantes, bibelôs de vários países, mais fotos e pequenas

estatuetas, umas sérias, outras satíricas. Na outra estante, várias pastas coloridas,

etiquetadas por data e assunto: era o material de pesquisa sobre Paulo Coelho, o

próximo personagem a ser biografado pelo autor. No chão, caixas com mais

documentos e papéis. Em cima da escrivaninha, livros, gravador, materiais de

escritório, óculos de grau de vários estilos e muitos, muitos charutos, que o autor

fumou durante toda a entrevista.

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Apesar de alguns problemas com o uso do gravador – problemas

estes descritos na introdução desta monografia -, saí do encontro com Fernando

Morais extremamente feliz e ansiosa por trabalhar com as preciosas informações

que ele me forneceu.

Cristiane - O que você pretende com um livro-reportagem? Qual é a importância dele? Fernando – Olha, em primeiro lugar é muito difícil pra mim dizer o que eu pretendo com o livro-reportagem, porque é a única coisa que eu sei fazer. Eu nem sei se fazer isso é muito, mas é a única coisa que eu sei fazer. Eu sou uma pessoa que não tem especialidade em nada. Ao contrário do que acontece hoje, e eu ainda não sei se isso é bom ou mal, mas hoje os jornalistas são muito especialistas, sabe, então você pega um sujeito como o Luiz Nassif, por exemplo, ele virou um homem de economia, ligado à economia e por aí vai. Eu, salvo economia e futebol, eu tenho interesse por praticamente tudo. Então sou de uma geração de jornalistas mais ecléticos, mais universais, eu diria, mais universais e menos específicos. Eu posso fazer coisas tanto de futebol, já fiz, embora não entenda, já fiz coisa de economia, se você se prepara especificamente pra aquilo você faz...Então a única coisa que eu sei fazer, com todo esse trololó, é pra te dizer que eu não sei, porque eu faço...Eu faço porque eu preciso comer, eu vivo disso, exclusivamente disso, eu não tenho nenhuma fonte de renda, não tenho banco, não tenho boi, não tenho industria, não tenho nada... Que importância que pode ter o livro-reportagem? Eu acho que o livro- reportagem, na verdade, supre hoje uma deficiência da imprensa. Eu me lembro, não posso deixar de dar um exemplo pessoal, não porque é pessoal, mas que é muito eloqüente, em 1970 eu e um outro repórter, o Ricardo Gontijo, fomos destacados pelo Jornal da Tarde pra fazer uma reportagem sobre o mundo que ia ser descoberto, que ia ser revelado pela transamazônica. Primeiro que já é um feature, não é uma notícia, não é um hardware, que você tem que cobrir...EUA invadiu o Iraque, escândalo disse, escândalo daquilo, seqüestraram um repórter...não, é um negócio que, teoricamente o jornal pode passar a ser isso. Ainda sendo assim, o jornal de dispôs a manter, durante três meses, dois repórteres, nós não éramos do primeiro time, mas éramos bem remunerados, eu era garoto eu tinha 23, 22, 23 anos, que idade você tem? Cristiane – 26. Fernando – 26...eu era mais novo que você. Também não tem nada que ver, é outra historia, eu comecei com 13 anos, 14 anos em redação, não tenho curso de jornalismo. Então o jornal se dispôs a botar três funcionários bem pagos durante três meses prum negócio que você não sabia se ia ter matéria. Porque no fundo era isso, não tem nada, tem mato só. Por sorte, não só por sorte, tinha uma série de ingredientes, tinha, porque se tem gente tem matéria, tem história...O jornal deu 20 páginas limpas pra nossa reportagem, página limpa é página sem anúncio, apesar de ser o anúncio que paga o Nescau das criança. Durante cinco dias, todos os dias, o jornal dava 4 páginas, sem um calhauzinho, sem um anúncio desse tamanho [faz gesto com o polegar e o indicador como se estivesse medindo algo pequeno], tanto que virou um livro, a reportagem virou um livro e não é o único caso, sabe?! A revista Realidade, a revista Repórter 3...Eu me lembro que uma vez, quando o...na sucessão do general Geisel, estava pra ser indicado o Figueiredo, circulou a notícia que os orixás da Bahia estavam divididos entre a candidatura do general Euler Bentes Monteiro, que era o anti-candidato, candidato da democracia e tal, e a candidatura do Figueiredo, os terreiros estavam divididos, de um lado o Jorge Amado apoiando o Euler Bentes e do outro lado o Antonio Carlos Magalhães, apoiando o Figueiredo, e tal. Você quer matéria melhor do que essa, guerra do orixás? Política! E eles mandam pra lá quem? Eles mandam o João Antonio, não é que catô um foca na rua, então, que ele era repórter assalariado da revista, já era um autor consagrado, já era repórter assalariado, tinha carteirinha e tudo....O Antonio passou três semanas em Salvador, no melhor hotel, ele e o fotógrafo e depois falou: "Não tem matéria nenhuma", sabe?! Então, nessa época, os veículos, alguns veículos, ofereceriam aos leitores grandes reportagens. Eu...a minha carreira toda foi de repórter, fui outras coisas, fui editor, fui pauteiro, fui isso, fui aquilo, fui copy na Folha durante muito tempo, mas fazia isso por causa de dinheiro, porque precisava trabalhar. Eu tinha três empregos.

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Casei, com 20 anos casei, trabalhava de manhã como pauteiro da TV Cultura, com o Herzog, com o Fernando Jordão, com o João Batista de Andrade, de tarde trabalhava como repórter do Jornal da Tarde, de noite trabalhava como copy da Folha de SP. Mas porque, porque eu precisava de grana, se qualquer um dos três me oferecesse uma boa grana só pra eu ser repórter, eu preferia. Cristiane - O que eu queria saber é se a parte ideológica ainda existe....[pequeno trecho ininteligível] Fernando - Olha, eu sempre fui militante, sempre fui de esquerda, nunca escondi. Sou isento, sou muito isento. Pelo menos eu procuro ser. Você tem que ter, tomar uma distância muito grande do personagem ou do tema com o qual você está tratando, pra você nem crucificar nem penalizar. No fundo as pessoas perguntam muito isso, "Ahh, você está fazendo a biografia do fulano de tal, você é contra ou a favor?", porque tem gente que acha também que biografia é uma espécie de cirurgia plástica, né. Tem um pintor em São Paulo chamado Roberto Smith que é ótimo, porque ele melhora as pessoas, ele faz o retrato das pessoas e dá uma certa caprichada... Nydia – Um upgrade Fernando - Dá um upgrade na pessoa. Como se eu fosse lá e pedisse a ele "Pinta um retrato meu que eu quero por no meu escritório". Aí eu vou lá buscar o retrato e é o Guilherme Fontes, tenho olho azul, um metro e oitenta....e biografia não é isso. Não é nem pra penalizar as pessoas, nem pra crucificar. Eu acho que, ao contrário, o êxito de um autor de biografia está diretamente associado à capacidade que ele terá ou não de desenterrar o defunto e colocar ele pra andar o mais parecido possível com o que ele era. Então quando você pega as críticas a um livro como o Chatô [refere-se ao Chatô – O Rei do Brasil], por exemplo, eu fico feliz, porque os inimigos do Chateubriand dizem que eu transformei um gângster em um santo, os amigos do Chateubriand dizem que eu transformei o maior mecenas da história do Brasil em um batedor de carteira, de segunda. Legal! Então, porque ele era isso, ele era gângster e ele era santo, era batedor de carteira e era mecenas. Então é, se ocê se envolve com o personagem, em alguma medida você vai fraudar, vai mutilar a história real dele. Então é um esforço muito grande, porque como é que você consegue não ser contra a um sujeito como o Chateubriand, e ele nem é, talvez nem seja o caso...se você for fazer a biografia do delegado Fleury, por exemplo, como ter algum sentimento, nem falo de simpatia ou de indiferença, por um cara como esse? Tem que ter, tem que ter...E uma outra coisa também, as pessoas se espantam pelo fato de eu ser uma pessoa de esquerda e estar, por exemplo, trabalhando na biografia do Antonio Carlos Magalhães. Já há alguns anos eu estou trabalhando, e tal, e todas as vezes que me cobram isso, eu respondo com a mesma resposta: "Quem não se interessa pelo Antonio Carlos Magalhães, jornalista que não se interessa pala história do Antonio Carlos Magalhães, tem que mudar de profissão". É a história do Brasil andando ali! Não é a história inteira, é uma fatia importante, pode não ser do seu gosto, mas é uma fatia importante da história do Brasil, é a memória da história do Brasil ali andando. E, se eu tivesse a idade que você tem hoje, se eu tivesse a idade de quando eu fiz a transamazônica, provavelmente eu não me interessaria pelo Antonio Carlos Magalhães, porque eu era ainda uma pessoa sectária, era um militante e a militância talvez ainda tivesse no mesmo patamar do trabalho e tal. Então, claro que eu fazia qualquer matéria, cobria os generais todos. Salvo o Castelo Branco, todos os outros presidentes eu cobri. Tudo bem... imagina passar pela minha cabeça: "Não, eu não vou cobrir porque eu sou de esquerda e ele é o ditador, fascista"... Agora, quando você faz um livro, é a sua escolha, é a sua pauta, então, tem que se tomar muito cuidado para não se endeusar uma pessoa como a Olga, e não enterrar uma pessoa como o Chateubriand, por exemplo. Cristiane – Fernando, sobre a parte da produção, dos processos de produção, tem o Edvaldo Pereira Lima, que escreve muito sobre isso, tem a Cremilda Medinab [na verdade, a pesquisadora Cremilda Medina possui um trabalho muito extenso sobre a reportagem e não sobre a práxis do livro-reportagem], diz que tem certas etapas que devem ser cumpridas pra se escrever um livro- reportagem, né, começando da pauta, depois a coleta de dados, pesquisa, entrevista, até a fase da confecção dos livros. Como que é essa realidade pra você? Você segue isso.. Fernando - Olha, eu nunca li um livro, vou ler agora, você está falando que tem o livro da Cremilda, trabalhei com ela um período, porém não li. Mas eu acho que ajuda, claro, toda contribuição...eu não tenho muita metodologia não, porque a forma de trabalho varia de personagem pra personagem, as vezes até não é nem uma biografia, como o caso do Corações Sujos, é uma história, um episódio, mas não tem muito segredo, varia um pouco de personagem pra personagem mas não tem muito segredo. Em primeiro lugar escolher o assunto, escolher o tema. Eu tenho alguns critérios objetivos,

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alguns subjetivos. Em primeiro lugar é algum ineditismo... quase tudo vício de redação, tudo cacoete de jornalista, jornal que noticiar o que aconteceu há uma semana atrás vai embrulhar peixe na feira no dia seguinte. Então, em primeiro lugar, algum ineditismo. Depois, tem que ser um personagem que tenha uma vida diferente da minha, da sua [aponta para mim], da sua [aponta para Nydia] que justifique a energia que você vai gastar com ele, ou seja, ele tem que ser ou agente ou testemunha de coisas que sejam...de episódios, de fatos que seja saborosos. O ideal é que sejam saborosos e importantes. O ideal é pegar um personagem cujo trajeto... e se você for olhar os meus personagens, sejam os biografados e os não, você vai encontrar esse ingrediente, o ideal é você pegar um personagem cujo trajeto, cujas pegadas te ajudem a contar um pouco um pedaço da história do Brasil que não foi contata pra gente em banco de escola. História não oficial, não obrigatoriamente a chamada história dos vencidos, pode até ser a história dos vencedores, desde que te conte coisas que a história oficial não contou. Então se você for... se você juntar Chatô, Olga e Corações Sujos, você vai ver que um nucleão aí que é o mesmo. São coisas completamente diferentes: é uma história de um grande capitalista, de uma seita político-religiosa, e a história de uma americana comunista. Então tem isso, tem alguns pré-requisitos pra a escolha do tema, do personagem.. Cristiane - E como você define se aquele...eu li em entrevistas que você tem vários materiais de outras pessoas... Fernando - Tenho! E talvez o caso dos Corações Sujos seja um bom exemplo como é que surge um assunto. Cristiane – Numa entrevista com a namorada do Chatô... Fernando - Por acaso, entrevistando uma mulher, que tinha namorada do Chatô quando era mocinha, o Chato já adulto, e japa, nissei, ou sansey, asiática...Eu perguntei como o Chatô tinha chegado perto dela se ele não era ligado, pelo que eu já sabia, se ele não tinha nenhuma ligação maior com a comunidade japonesa do Brasil. Ela contou que o pai dela tinha sido preso, era um funcionários dos Associados [Diários Associados], e o Chatô deu carteiraço lá nas pessoas, conseguiu soltar. E no dia que ela foi lá agradecer, junto com o pai, o Chatô viu aquela japonesinha mocinha, tchu, tchu, tchu e créu e caiu em cima. Mas daí eu já não estava me interessando mais pela história da paixão, eu queria saber porque o pai tinha sido preso, se era por razões políticas e tal, e ela disse: "Não, era por causa da Shindo Renmei", "Que Shindo Renmei?". Na hora que eu falei "Shindo Renmei", que que era... que eu comecei a perguntar...[Fernando Morais se dirige a uma pessoa que bate na porta] Pode entrar... [e continua] ela começou a arrepiar, a dizer: "Ah, não, não. Não se preocupe. Isso é uma briga de família, de japonês, tal", o que só fez despertar o meu interesse. Essa história, enquanto eu escrevi Chatô eu guardei. Eu tenho um arquivinho lá de histórias que podem, em algum momento, servir. Quando estava para terminar o século, 98, 97, 98, o Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, me propôs um livro, que seria muito legal, que não tinha nome ainda e que a gente chamava, o apelido enquanto não arrumasse nome, como “O século das sombras”. Era fazer uma recontagem que era pra sair no ano 2000, na virada do milênio, na virada do século... personagens e histórias ao longo do século XX que não tinham sido objeto de interesse ou de historiadores ou de jornalistas ou da mídia, ou disso, ou daquilo, ou seja, personagens que estão enterrados por aí e que foram da maior importância, ou de muita importância, e que estão aí enterrados. Pá, lembro um: Piero Machado, senador Piero Machado do Rio Grande do Sul, foi o vice-rei do Brasil. O Kurt de Ninhengaju que vem da Alemanha pra fazer pesquisa etnológica no Brasil e se apaixona pelos índios, casa com uma índia e passa a viver com os índios...[começa a retomar o momento do encontro com Luiz Schwarcz] "Ahh tá bão", essa ia ser uma das histórias, e eu falei pro Luiz: "Ô Luiz, to com dó...as histórias dos japoneses... to com dó de gastar num capítulo, porque é um desperdício, porque dá um filme, dá um livro, dá uma minissérie, dá o que você quiser", e ele falou: "Taca o pau então", e o livro nasceu assim. Então é muito... eu tenho hoje dez histórias pra escrever, prontas, dez assuntos que eu poderia imediatamente começar a trabalhar neles, sabe. Se eu for declamar esses assuntos aqui, você vai achar que tem uma certa obviedade, "Ué, mas que engraçado, como ninguém se lembrou de escrever sobre essa pessoa se tem uma história tão legal, ou sobre esse episódio?" Não sei porque, mas é isso. É um negócio que o Darci Ribeiro costumava dizer e me anima muito essa frase: "Esse país é ótimo, o que falta é gente pra contar isso"..não tem...tem histórias... Se você for olhar o Brasil da Proclamação da República até a Revolução de Trinta, até a República Velha, você tem personagem pra tudo, pra tudo! Pra romance, pra minissérie, sabe?! O que os Estados Unidos fizeram com a Conquista do Oeste, em termos de literatura, de produção cinematográfica, você poder fazer cem vezes mais com coronéis do Brasil, com jagunços,

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com cangaceiros, com Lampião, com revoltas locais, repúblicas de princesas...República de Princesa é um filme, é um livro...Tem o que? tem um livrinho de alguém, algumas coisas locais, sabe?! Então você pega o Ceará tem um bom livrinho sobre fulano de tal. Agora, quase é possível dizer que dá pra escolher o tema que quiser. Se quiser mais dramático, se quiser mais anedótico, sabe?! Tem personagem à vontade porque a gente vive numa diversidade cultural riquíssima e num país em construção, então surgem aventureiros, surgem, sabe, esses personagens ricos ... Cristiane – Eu vou insistir ainda um pouquinho na pergunta anterior... Fernando – Insista! Cristiane – Eu queria saber se você, nessa sua metodologia, entre aspas, se existem etapas a serem cumpridas... Fernando – Existe, existe! [fala junto com o entrevistador] Cristiane - ...ou se isso é uma coisa está tão arraigada que não tem mais essa separação: "Agora vou fazer isso, vou fazer aquilo"... Fernando - Tem! [fala junto com o entrevistador] Cristiane - ...ou se isso vem naturalmente? Fernando - Vai naturalmente mas tem. O doutor Ulisses Guimarães, meu querido chefe, costumava dizer o seguinte, citando um filósofo francês, La Roche Foucault, ele dizia que "A arte de improvisar é não improvisar jamais". Então, claro já há uma natureza, você adquire uma natureza adicional, mas tem algum método, nessa loucura tem algum método. Então o que é? Varia um pouco mas há uma metodologia. Em primeiro lugar entrevistas. Primeira coisa é pegar o maior número de pessoas que tenham convivido ou com tema ou com o personagem. Porque primeiro as entrevistas? Porque esse tipo de trabalho você está fazendo antes dos outros? Simplesmente por uma questão etária. Em geral, você está escrevendo sobre um personagem remoto e as pessoas vão morrendo, então em primeiro lugar pegar os velhinhos, cerca os velhinhos antes que eles morram. É muito comum você ver entre o pessoal que faz esse tipo de trabalho dizer: "Puta, perdi o velhinho por três dias, morreu há três dias", em primeiro lugar isso. Agora isso já não vale se você for fazer um livro sobre Frei Caneca, sabe?! Frei Caneca viveu em 1750 [Na verdade, Frei Caneca viveu entre 1779 e 1825], é outra metodologia. De qualquer maneira, passou as entrevistas você vai pegar o quê? Os depoimentos, como esse que você está fazendo ao vivo, já existentes. Então, vale pro Frei Caneca. O que existe nos arquivos de Pernambuco sobre o assunto? O que existe no Vaticano? O que existe de depoimento sobre ele? O Frei Caneca ou o Padre Cícero, sei lá. E aí depois a varredura de acervos. Onde tiver uma impressão digital da pessoa eu vou atrás. Isso é uma parte gostosa, dependendo do tipo de personagem, porque você as vezes... aparece alguém que conhece seu personagem e tá no Amazonas. Bom, aí você arranja um Auro Sato [refere-se à um estudante que Fernando Morais contratou aqui no Paraná para buscar informações sobre um militar envolvido com a prisão de Paulo Coelho durante a ditadura militar] em Manaus, paga a pessoa, isso quando você não tem que ir, pegar avião, ou gastar 12 horas de telefone, dinheiro, energia, tempo. E as vezes a pessoa não tem nada, isso me toma..isso é muito comum com gente famosa. Nos Estados Unidos brinca-se muito dizendo que o sujeito serve um uísque pro Frank Sinatra e na semana seguinte vende os direitos pra uma editora de um livro chamado “Minha vida com o Frank Sinatra” [risos]. Então tem muito disso. E tem o oposto, gente que sabe muita coisa e não quer falar...Mas de qualquer maneira ir atrás de papel, de documento, de depoimento. Quando você está de posse daquilo que você supõe que seja material de pesquisa, e aí eu volto a dizer aquilo que eu estava dizendo na hora do almoço, que é o seguinte: é um período duro, de trabalho quase braçal, mas, se for bem feito, é recompensador, porque quanto mais abundante e quanto mais [não conclui o pensamento]...Porque não adianta você ter uma pesquisa abundante, aí é que tá, se você não sabe onde as coisas estão. Então eu pego 40 anos de diários do senhor Paulo Coelho. Bom, o diário, embora ele seja cronológico, ele faz muito flash-back. Eu hoje posso falar no meu diário, posso gastar 30 páginas do meu diário falando de uma negócio que aconteceu quando eu tinha 14 anos, falando de você [aponta para Cristiane], falando de você [aponta para Nydia]...Então eu preciso organizar isso. Outra coisa: o que eu vou usar desses diários e o que eu não vou usar? Eu estou falando do diário do Paulo Coelho como eu poderia falar das atas da Shindo Renmei, então aí entra sim um

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pouco de metodologia..é inevitável, daí você usa Internet, então, o que você faz? Eu numero tudo...eu tenho uma maquininha de numerar ali...de cada tema, de cada ano. Todas as páginas são numeradas, separo, no caso do Paulo, por exemplo, tem uma separação grossa que é cronológica, se você ver ali [aponta a estante em que as pastas estão dispostas por datas e por cores], tem pastas desde a pré história, desde antes de ele nascer, avô, avó, não sei o que, não sei o que, até hoje, até a viagem dele pra Transiberiana semana trás. A partir do momento que você tem essa maçaroca na mão, organizada, fichada... se eu fosse fazer um livro com tudo o que está aí dentro dessas pastas, eu teria que fazer um livro de 10 mil 20mil páginas, como não vai ser um livro de 20 mil páginas, eu vou buscar fragmentos de cada um desses documentos e vou juntar não na ordem de que eles aconteceram, mas na ordem que meu livro vai acontecer, e muda de livro pra livro, de acordo com o que, de acordo com o personagem, com aquilo que o personagem te dá... [Interrompe a entrevista para falar com o arquiteto que vem até o escritório] Cristiane – Continuando, uma curiosidade: até aonde vai a sua pesquisa? Até onde você fala: "Agora está bom"? Depois dessa etapa o que vem? Fernando - Olha, é muito difícil dizer "Está pronta a pesquisa". Sempre fica um rabicho pra trás, na maioria das vezes um rabicho "desiportante", sabe?! Quando é rabicho é rabicho, material descartável. Mas na hora que você fala "Tá pronta", aí você vai fazer uma estrutura, era disso que eu tava querendo falar, daí é você, daí não tem mais nada a ver com o personagem. Você pode fazer um negócio rigorosamente cronológico: "Fulano de tal nasceu no dia 1º de janeiro de 1921..." [ Fernando interrompe a entrevista para atender ao telefone] Então você faz uma história... Você faz a história do jeito que você quiser, conta como você quiser. Então o Chatô eu comecei com uma mentira, um delírio dele...é uma coisa curiosa, se você pegar gente que não leu o livro até o fim, é um barato, inclusive teve gente que fez crítica escrita, assinada, dizendo "Não, o livro é bom, mas o Fernando exagerou na liberdade literária e leu os pensamentos que estavam na cabeça do Chateubriand durante um estado de coma". É porque? É porque ele não terminou de ler o livro, se não ele teria descoberto que o Chatô não morre naquele coma, vive, e volta e escreve o que ele estava sentindo e vendo e ouvindo durante o coma! Eu achei que era uma mentira dele e fui atrás de neurologistas para descobrir se era possível num estado de coma o sujeito ouvir o que está em volta..e eles disseram que não é comum, masacontece, é possível, e ainda me citou um exemplo.."tenta descobrir nos arquivos aí uma entrevista que o Roberto D´Ávila fez com o Nick Lauda, aquele piloto de fórmula 1 ele sofre um acidente brutal no meio de uma corrida, é posto num helicóptero em coma e ele ouve o camarada falando , o médico falando pro hospital pra onde eles estão levando ele, dizendo o seguinte....’não precisa de médico aí não, precisa de um padre pra dar extrema unção porque ele não chegará vivo aí’..e ele sobreviveu e contou isso pro Roberto D´Ávila então me certifiquei, tenho um nome isso, esse fenômeno médico...então .você pode começar com isso, com uma mentira, você pode começar com uma cena cinematográfica, que é o caso do Corações Sujos..seis japas enrolados nas cuecas brancas túnicas, um negócio bem asiático, uma coisa bem insólita pra nós, o olhar ocidental, descalços, atravessando uma cidadezinha, com espadas na mão, brilhando, todo mundo olhando da veneziana e aqueles 7 japas atravessando a cidade pra ir se degolar um soldado da pm, preto, que tinha limpado a botina com cocô de vaca com a bandeira japonesa, então e eu achei isso de uma força tão grande, e eu poderia ter começado lá na guerra, começar lá na guerra, mas eu achei melhor isso, então eu começo com o rei o imperador, fazendo o anúncio, pá, pá, pá então você constrói o livro do jeito que vc quizer então, a partir do momento em que você decide o que vai ser a estrutura do seu livro, você faz um roteiro,...eu faço um roteiro, que é o seguinte, eu vou abrir com a informação da marcha dos tokotai no centro de tupã, onde está essa informação? Na pasta número 79, na página 18... Cristiane – Organização é tudo, né? Fernando - Porque não adianta eu passar 2 anos esgravatando a vida do Paulo Coelho, entrevistando gente pelo mundo inteiro, acompanhando ele lá no Egito se depois eu não souber onde está a informação do que aconteceu lá no Egito que eu anotei, e registrei e pus....sabe, 200 e tantas horas de depoimentos que eu gravei dele, isso é uma trolha que ocupa não sei quantos tantos giga de memória de um chipezinho desse aqui de gravação [pega um pendrive na mão]...não vale nada. Não tem nenhum valor se eu não souber localizar as coisas aí dentro. É como se eu chegasse na

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Biblioteca Nacional, tem 300 mil livros e nenhum deles ter lombada. Não tem utilidade nenhuma para mim esse material então, ..isso eu aprendi como tempo, a vida foi me ensinando, o trabalho dos amigos e tal, e o computador,...o computador pra nós foi a salvação da lavoura então, daí é simples, se a pesquisa foi boa, trouxe um abundância de informações, e você sabe onde estão essas informações , você faz o que você quiser... Cristiane - Você faz o roteiro já... Fernando – Você faz o roteiro a partir do que você decidir, como é que você vai matar, como ele vai morrer ... Cristiane - Mas você tem a liberdade, trabalha com essa liberdade de mudar? Fernando – Tenho. Ahh, mas já fiz várias vezes. Olga eu mudei a abertura várias vezes. Do Paulo, eu estou tocando, ainda não estou escrevendo, escrevendo, estou terminando [a pauração], mas eu vou esquentando o motor, como é um livro de um personagem internacional, é um livro que já ta vendido pra um montão de países, eu não posso fazer um livro brasileiro. É um preocupação nova pra mim, então quando eu escrevi Olga eu não sabia que ele ia ser publicado em 21 países... [Interrompe a entrevista para atender ao telefone] Como é um livro que vai ser vendido simultaneamente aqui no Brasil e já tá vendido para um monte de lugar, eu não posso... eu tenho que tomar cuidados do tipo, eu não posso falar: "Um dia ele encontrou o Cláudio Lembo...". Eu tenho que explicar quem é o Cláudio Lembo, quem é o Fernando Henrique, quem é o Getúlio...Falar: "Ahh, ele pintava retratos do Getúlio quando ele era pequeno, espetava agulhas...", eu tenho que explicar, "Ahh, o Getúlio era o presidente do Brasil e tal, tal, tal". Então, pensando nesse tipo de coisa, estou pensando até em fazer duas versões, fazer uma versão Brasileira, porque eu também não to querendo encher o saco do leitor brasileiro explicando pra ele que branco é branco preto é preto, mas eu resolvi fazer uma abertura que informe a qualquer leitor. Então eu fiz? Eu estou abrindo o livro com um avião da Air France, rolando no aeroporto de [fala o nome do aeroporto, mas não foi possível entender], acabou de pousar Budapeste, fim de tarde e tal. Então eu descrevo, [começa a descrição da cena que abre seu próximo livro, a biografia de Paulo Coelho] na primeira fila da primeira classe, um camarada sozinho, de cabeça branca e tal, com uma cinta hindu, com um chumaço de cabelo aqui atrás [pega os cabelos da nuca], jeans preto, coturno preto, camiseta preta. E quando o avião está pousando, ele pára os olhos, faz como fosse uma oração, então pega uma malinha ali em cima e veste um paletó preto e daí percebe-se que ele não é um mortal comum, porque na lapela do paletó tem uma chapinha vermelhinha com um fio branco e um fio vermelho e aquilo é a medalha... mostra que ele é o Chevalier d'Honneur, que recebeu uma comenda que foi criada pelo Napoleão e só é dada pelo presidente e a dele foi colocada pelo presidente Chirac. Pega a malinha, doido pra fumar, um cigarro Galaxy brasileiro na boca, um isqueiro na mão, Zipo, louco pra fumar e todos lugares do aeroporto escrito proibido fumar, [fala "proibido fumar" em russo] proibido fumar...a paranóia ante tabagista é universal. E percebe-se que ele está um pouco ansioso, olhando do lado de fora e tal. Eu ainda não disse quem é, o nome do passageiro. Todo mundo pega mala, a dele...ahh, ele não pega a mala, ele pega uma mochila no avião e a mala dele é uma malinha desse tamanho [faz gesto com a mão como se medisse um objeto pequeno] e acha ela fácil porque ele desenhou... pra achar fácil nos aeroportos, ele desenha com giz antes de sair de casa um coração na mala e se perder é fácil "A mala que ta desenhada um coração". Pega a malinha dele, sai andando e se espanta. Sai do lado de fora, os passageiros ali pegam táxi, coisa e tal. Ele pega o celular, fala com ódio, acende o cigarro, dá uma chupada, acaba o cigarro de um tragada só, pega o celular e fala em português com alguém: "Puta que o pariu, não tem ninguém me esperando aqui, porra! Eu to dizendo: ninguém”, pá [faz o gesto de quem desliga o telefone com força]. Fica olhando de um lado pro outro, fuma dois cigarros, daí ele ouve um tropel familiar [faz som de cavalos], um bando de repórteres, de câmaras, de jornalistas que tinha descido na porta errada, estavam esperando na porta errada. Daí ele se ilumina, daí eu falo: "Esse é o verdadeiro Paulo Coelho, autor que já vendeu cem milhões de livros e tal pá, pá, pá". Conto a viagem dele pela Europa oriental, conto a viagem pelo Oriente Médio, como é que é, como é recebido, como as pessoas querem apalpar, pegar. Vou acompanhando sem eu aparecer, como se um mosquito tivesse pousado no ombro dele. Acompanho ele num banquete na França, pra cem pessoas, black-tie, pra anunciar que ele foi pra editora Flamarion. Vou com ele pro Cairo, vou com ele pra Beirute, vou com ele pra

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Damasco, na Síria, vou pra Praga, vou pra Budapeste, vou pra Hamburgo, vou pra Barcelona, e aí voltamos pra casa dele.... Cristiane – Isso tudo você foi com ele? Fernando - Fui. E daí eu descrevo a casa dele, como é uma casa simples. Pra uma pessoa tão rica, que diz ser tão rica, que tem trezentos milhões de euros, tal tal tal. Uma casa que qualquer um de nós tem, de dois dormitórios, uma casa mais simples do que essa. Claro, na França, custa dez vezes mais do que essa, de lá você vê os Pirineus, na porta casa dele você aquela massa. Mas é uma casa simples, o carro dele é um carro simples, ele não tem secretária, não tem guarda-costas, não tem jatinho, não tem segurança, não tem nada. Ele, a mulher dele e uma empregada brasileira, que ganha seis mil reais por mês, dois mil euros que é o que se paga lá pra uma doméstica. As poucas pessoas que tem doméstica em tempo integral é isso, seis sete paus por mês. Conto como é o dia-a-dia dele, chegar de manhã, abrir o correio, sessenta cartas, aí ele anda, às 11h ele abre o e-mail. Aí eu conto um pouco sobre o e-mail dele, que diariamente ele recebe 1.600 e-mails já filtrados. E um dia, por acaso, dia 25 de agosto, vai fazer aniversário agora, um dia depois do aniversário dele, eu tava na França com ele, e eu falei: "Hoje eu quero ver seu e-mail antes de você"...tinha mensagens de 111 países... [Interrompe a entrevista para pegar um charuto] O livro apresentando o Paulo Coelho pode ir pra qualquer lugar do mundo [refere-se ao fato de ter que adaptar as histórias dependendo do país em que o livro é lançado]. Esse é o cara. Ali eu conto quem é, quantos e-mails tem, quantos livros já vendeu. Eu conto de gente que pede conselhos, que pede isso, que pede aquilo, falo dos assédios das mulheres, tenho a oportunidade de falar, a mulherada dando em cima dele...Então eu conto quem é esse cara, e no finzinho do capítulo, ele fala alguma coisa da mãe, lembra um pouco da mãe e eu corto no meio da fala dele sobre a mãe e corto pro segundo capítulo, dizendo o seguinte: no dia tal, assim, assim, numa maternidade do Rio de Janeiro nasceu Paulo Coelho de Souza, tal, pá, pá, pá. De fórceps, nasceu morto. O fórceps quebra a clavícula dele, deforma um pouquinho o rosto dele, ele tem uma cara, você pode olhar, ele tem uma cara de Kombi depois que bateu no poste, meio tortinho. Nasceu morto. Todo mundo começou a chorar, chorar, chorar...Chora pai, chora mãe, chora filha, chamam uma freira, não tinha padre e os pais são muito religiosos, chama uma freira pra dar extrema unção e no meio do choro de todo mundo ele acorda, começa a viver. Aí vem, vem, ai vem vindo e eu vou voltar, vou terminar o livro voltando ao começo, que é ele 20 anos depois de ter escrito O Diário de um Mago refazendo a pé o caminho de Santiago. Eu fui me encontrar com ele agora no começo do ano, eu fui lá pro país basco, pra encontrar com ele no meio da trilha, 20 anos depois de ter começado. Tudo isso pra dizer que não tem, não pode ter metodologia. A história de cada pessoa é diferente da outra. Agora, apesar disso, tem ali no meio, tem que ter o fio condutor, se não você se perde. Então eu acho que não tem truque. Escolher bem o personagem, pesquisar direito, organizar direito essas informações e se você for do ramo, se o personagem for bom, a pesquisa for boa, você faz um tremendo de um livro. Cristiane – Outro ponto que você já começou a falar e que eu queria perguntar é sobre mesmo a linguagem. Na maioria dos livros, em quase todos os livros, você usa a linguagem do jornalismo literário. Em que medida você usa isso? Como você trabalha a literatura? Fernando - Olha, todo jornalismo deveria ser literário. Todo. Mas não dá, porque você tem hora pra fechar, tem limitação de espaço físico. Nas revistas você encontra gente ali capaz de fazer livros, tem gente até que já fez, de uma qualidade estética, de uma qualidade literária impecável e que não pode fazer isso no cotidiano do jornal, porque não dá tempo. Eu às vezes fico aqui dois três dias para acertar um parágrafo, desesperado, desesperado. Eu hoje tava andando de manhã na praia, lembrei de uma palavra, era "temido", tava precisando da palavra "temido". Porque eu tô contando a história do avião que tá voando, tem nuvens negras na frente, os CBs, os pilotos chamam de CB, os temidos Cbs... na hora me faltou a palavra "temido". Hoje eu tava andando na praia, "temido, temido". Peguei o celular [faz gesto com a mão de quem segura o telefone ao ouvido], liguei pra secretária eletrônica e "temido". Então é isso. Agora, não dá pra fazer isso no jornal. Então o que é jornalismo literário? É você reescrever dez vezes. Salvo os gênios, que eu não conheço nenhum que escreva de bate e pronto, nenhum! E entre as pessoas que eu conheço está o Gabriel Garcia Márquez, prêmio Nobel de literatura. Eu lembro de ter ido pra casa dele uma vez, há muito tempo, não existia nem computador, ele escrevia em uma máquina de escrever e ele tinha um cesto de lixo como esse daqui desse

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tamanho [pega um cesto de lixo de cerca de 50 cm de altura que está ao lado de sua mesa] só pra jogar papel fora. Uma vez nós fizemos juntos, eu e ele, um manifesto aqui no Brasil, por causa da morte de estudantes pela ditadura e tal. No hotel, ele ditando e eu datilografando, em São Paulo, ficou pronto, ele pegou a caneta e começou [pega uma folha e começa a "canetar"], eu guardei o original, canetado por ele, no papelzinho do hotel, porque é engraçado o Gabriel Garcia Márquez canetando seu próprio texto. Então não tem, não tem gente que escreva...agora é aquilo que o Millôr Fernandes fala que é noventa por cento de inspiração...é dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração. Noventa por cento de transpiração! É trabalho, trabalho, trabalho... é aquilo, você leu o de baixo, é o de cima [sobre o computador do autor havia duas mensagens coladas. Uma era da mulher de Paulo Coelho para Fernando Morais, a outra um trecho do livro Cartas a um Jovem Escritor, reproduzido no capítulo 5 deste trabalho], é a carta do Mário de Andrade para o Fernando Sabino. Não tem isso não, não tem frescura não, "Eu sou um intelectual, eu sou um literato, eu estou aqui, a inspiração não aparece"...vá ao diabo! Você não tem que comer? Não tem que pagar a conta de luz? A Sabesp veio agora uma nota preta. É por isso que eu falo: tem que trabalhar, não tem jeito, tem que trabalhar. Agora, faça bem feito, faça bonito, faça elegante. Conta a coisa de uma maneira saborosa, escolhe a palavra certa, "Essa palavra não ta boa, ta muito..." E isso. Eu acho que qualquer pessoa, o Paulo diz que eu não devo ficar me desvalorizando, mas eu não considero que isso seja me desvalorizar, eu acho que qualquer pessoa bem alfabetizada, que tenha sido bem alfabetizada na infância, no grupo escolar e no ginásio, pode escrever do jeito que eu escrevo e muito melhor. Eu não tenho nenhuma virtude que não tenha um brasileiro médio bem alfabetizado. Não tenho mesmo. E a minha prova de que isso é possível, de que qualquer pessoa pode escrever se quiser e se souber o português, um pouquinho de português... eu acabei de ter um exemplo, vai vir a público daqui a pouco. Eu fui procurado há dois, três anos, mais um pouquinho, por um senhor, bonito, elegante, um homem de uns 75 anos, cabelo branco, foi no meu escritório, paletó de tweed, calça de flanela, "Prazer, Doca Street!". Você sabe quem é Doca Street? Cristiane - Não. Nydia – Que barato, ela não sabe... [fala junto com Fernando] Fernando – Que barato, ela não sabe. Vou ligar pra editora agora. Foi bom você ter dito: "Não sei quem é". Doca Street é o cara que matou a Ângela Diniz, a pantera Ângela Diniz, uma amante. Cristiane – A Ângela Diniz eu sei quem é [risos]. Fernando - Pois é, o Doca me procura e diz: "Olha, eu quero contar a minha versão do crime", "Então me conta", e ele contou. "Porra, é legal, né" [reproduz uma fala dele], "Eu queria que você escrevesse" [reproduz uma fala de Doca Street], "Ah, ta legal, eu topo". Eu ia fazer e daí, por acaso, caiu em tentação, Deus não me livrou do mal, de eu sair candidato pra governador de São Paulo. Eu tive que largar tudo, largar livro..e eu falei pro Doca: "Ó malandro, desculpa mas eu caí em tentação, eu vou fazer campanha pra governador", devia ter ficado com o Doca, teria feito melhor negócio... Nydia – Saiu candidato a governador, caiu na mão do Quércia... Fernando - Fui cair na mão do Quércia e ele quis passar a mão na minha bunda, com o perdão da vulgaridade. Daí falei pro Doca: "Por que você não escreve?", "Porque eu não sei escrever, eu nunca escrevi na vida", "Você já tentou?" ele falou: "Não", "Então tenta", ele falou: "E como é que eu escrevo?", "Do jeito que você me contou. Organiza um pouco, organiza e tenta escrever". Sumiu, nunca mais vi, no dia, no ano passado, no dia que eu estava lançando Toca dos Leões, aparece o Doca na fila com a mulher dele, um pacote debaixo do braço, um tijolo desse tamanho [faz gesto com a mão como se medisse um objeto grande], os originais do livro. E você sabe que ele escreveu direito? Claro, a editora teve que...tá saindo agora pela Planeta [o livro foi lançado em setembro deste ano], e depois eu digo porque foi bom você ter falado que não sabia quem era Doca Street, a Planeta teve que dar uma penteada. O cara não é profissional, mas consegue escrever. Mas porque que eu to falando do nome? Eu sugeri que o título do livro fosse “Mea Culpa”, porque ele assume a culpa, o tempo todo, não é que ele diz: "Ela era uma vagabunda, piranha" e tal. Ela fez coisas horrorosas com ele, coisas que pra cultura masculina, machista brasileira, sabe....Num nos ataques de fúria dela, bêbada, que tinha fumado, cheirado, tal, ela em público, na frente dos amigos... dizia que tinha aparecido lá, eles tinha uma casa em Búzios, tinha aparecido uma francesinha que fazia coisas de artesanato, e tal. A Ângela disse pra ele, no dia, horas antes da morte ela disse pra ele: "Ahh, você é

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um merda, você é num sei o que, num sei o que, e você, nem trepá você sabe! A francesinha é melhor de cama do que você". Pá, matou. E eu falei: "Ponha isso no papel, ponha desse jeito". E decidiram que o livro ia ter na capa, eu soube esses dias, que o livro ia ter na capa, “Mea culpa, Doca Street’, só isso. Daí eu falei pro editor: "Mas vocês vão afogar o burro, porque 80 % da população brasileira tem a idade dela pra baixo..." Nydia – E não sabe quem é Doca Street... Fernando - 80% dos compradores de livro tem a idade dela pra baixo, um pouquinho pra cima, um pouquinho pra baixo, sabe?! É a minha filha, meu genro, não sabem, porque isso tem 40 anos que aconteceu, sei lá. Então eu sugeri que eles fizessem o seguinte: "Confissões do assassino de Ângela Diniz", e mais, ainda sugeri que entrasse uma fotinha pequenininha dela, assim, com um clipezinho na capa [pega um livro, um clip e mostra como havia sugerido]...se não a pessoa não vai saber que ele é o assassino da Ângela Diniz. Mas então, voltando à vaca fria, eu acho que o negócio de qualidade literária, de tratamento literário...Olha, um bom leitor, em geral, é um bom escritor. Você aprende a escrever lendo, lendo, lendo, lendo...De preferência livros bons, autores ...se só for possível ler maus autores, lê bula de remédio é melhor, se não, não aprende a escrever. Ninguém aprende a escrever se não for lendo. Eu não conheço nenhum caso de alguém que "Olha, fulano de tal escreve bem e tal, pá, pá, pá, mas não lê, não é uma pessoa que leia". Cristiane - Eu gostaria de perguntar justamente isso....porque você já tinha falado da necessidade da leitura, então são duas perguntas: então quer dizer que para escrever não conta só o fator talento e se é necessário escrever, não só ler, mas também sentar ali no computador e mandar ver? Fernando - Olha, é uma discussão...Eu não sei. O que é talento? Acho que é esforço, esforço, esforço...Claro, nem todo mundo pode fazer tudo, eu não consigo fazer... eu tava vendo o sujeito que está fazendo o telhado do barracão aqui [refere-se a um dos operários que estavam construindo uma área ao lado da piscina da casa], eu tava vendo a armação, eu não consigo fazer aquilo. Claro, se um dia treinar, aprende. Aquele cara tem talento pra aquilo, faz o serviço melhor que a maioria das pessoas. Eu acho que, se a pessoa não tiver deficiência de formação, tem gente que não sabe ortografia...não precisa saber teoria, precisa saber escrever. Eu sei escrever de ouvido. Eu não conheço gramática, mas eu não cometo erros. Pode pegar um livro meu, eu não estou me gabando não, eu e a maioria das pessoas da minha geração, que tiveram educação elementar de boa qualidade. Um livro meu não passa por revisão, não precisa passar por revisão. Não tem...eu dou pra algumas pessoas lerem, eu pego os originais e dou pra pessoas de áreas completamente diferentes. Em geral eu dou pra um adolescente, pro filho de um amigo e tal. Dou pra alguém que não tenha nada a ver com aquilo e dou pra alguém que tenha a ver com aquilo, que conheça, que tenha certa familiaridade ou com o personagem, ou com período tal, e peço pra pessoa dizer: "Oha, não entendi, tá ruim, aqui ta mal construído, o personagem está desaparecendo, tal personagem desaparece de um hora pra outra! Pô, precisa melhorar, tem coisas que não entendi". Eu levo em consideração, reescrevo. E o que e agente costuma fazer hoje, as editoras todas têm, é o chamado checador. O que é o checador? O checador é um super revisor. Ele não toca ....não é mais aquele revisor que mexia no seu estilo, é um preparador de texto, que é o seguinte: eu não posso escrever, Casemiro Montenegro no começo do livro e Casimiro depois. Se eu falo que você tem 26 anos, eu não posso depois dizer "Em 1954, quando ela foi ao Rio...", o revisor não tem nada que ver com isso, agora, o checador tem. "Ahh, mas lá atrás ele falou que ela tem 26 anos ela não pode ter nascido em 54, uma das duas coisas está errada. Ou ela tem 40 e tantos anos, ou ela não nasceu em 54". Então isso é uma coisa..."Ó, fulano de tal não foi Ministro da Aeronáutica em 41 porque em 41 não existia a aeronáutica ainda"...O Gabriel Garcia Márquez conta uma história muito engraçada que aconteceu com ele: quando ele estava escrevendo, quando ele acabou de escrever O general em seu labirinto, a biografia do Bolívar, Simon Bolívar, ele deu pra um historiador, amigo dele ler, professor da Universidade do México ler...[Fernando interrompe a conversa para nos oferecer bebidas] Vocês querem alguma coisa? Água, café, Coca-Cola, Guaraná? Cristiane – Não, obrigada. Fernando - Ele deu os originais do Bolívar pra um professor da Unam, e o cara devolveu pra ele, dizendo que tinha adorado, mas disse que tinha, na página tal, dizendo assim, assim, que o Bolívar aparecia chupando uma abstração..."Um abraço, fulano de tal". O Gabo foi lá, era uma cena que o Bolívar estava sem camisa, chupando uma manga, se lambiando com uma mangona grande e tal.

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Ele ligou pro cara e falou "Pô, meu! Porque você encrencou com o negócio da manga?” e ele falou: "Porque a manga não tinha chegado lá na América aquela época”. Não existia manga na América Latina, ele não podia estar chupando uma manga. Então foi uma liberdade literária que o Gabo teve e então é sempre bom pedir pra alguém, sobretudo pedir pra gente que escreve sobre tudo. Eu peço! Em todas as aberturas e agradecimentos eu coloco: "Esse livro eu pedi pra fulano, cicrano e beltrano pra ler, agradeço as contribuições" Agora, é isso! Acho que é uma coisa meio generacional, geracional...de geração. Eu sou de uma geração, eu talvez seja um dos últimos de uma geração que aprendeu em escola pública, que escola pública era boa, e eu meu lembro que eu estudava no colégio estadual em Belo Horizonte, estudei só um ano porque não podia levar pau. Levou pau, dançou! Você não quer estudar? Tem gente pobre querendo sua cadeira. Pô, então é esse tipo de educação que faz com que a pessoa não precise.... quer escrever, escreve. Eu falo isso pras pessoas, "Escreve e me manda que eu vou te dizer o que esta errado, porque você fez errado, porque você construiu errado". Hoje você não encontra mais isso em redação, não tem mais isso em redação de jornal. Eu saí da linha de montagem, eu freqüento, tenho amigos, colaboro com o jornal...cabô. No tempo do Jornal da Tarde, chegava no fim do dia, os repórteres vinham da rua e ficavam ali em fila sentados, coçando o saco, fumando, tomando café, esperando a hora de sentar com chefe de reportagem que tinha acabado de ler sua trolha que você escreveu e dizer assim: "Tá muito ruim! Tá muito ruim porque você não viu isso, olha aqui ó, você jogou lá no fim da matéria um negócio da maior importância, isso podia ser manchete” [faz os gestos com um papel na mão]. Ou você aprende, ou muda de profissão ...aprende, aprende...se tiver alguém te ensinando, se o volume de erros for tão grande o cara vai dizer pra você: "Olha, desiste, você precisa fazer um curso de ortografia", o que é muito comum hoje. As pessoas me perguntam, qual é a melhor escola de jornalismo que tem no Brasil? Eu digo: "A coleção completa da obra de Machado de Assis". Você tem que ler..ler, ler...que aprende a escrever. Cristiane - Fernando, um pouco ainda sobre o estilo literário. Você busca elementos que dão um sabor especial à leitura, por exemplo, aquele delírio que você falou do Chatô, ou as duas entrevistadas na cadeia que você fez pra Olga. Como você trabalha esses elementos? Fernando - Eu acho que isso é um pouco, também... boa parte do que ta impregnado no meu trabalho é herança de redação. Não de redação do dia-a-dia. Isso que eu falei herança de redação eu não to falando do...não sobre o cara que vai cobrir cachorro de rua. Você pode fazer grandes matérias até cobrindo cachorro de rua. A matéria que deu meu emprego no Jornal da Tarde era uma matéria sobre carrocinha de cachorro: [descreve o conteúdo da matéria] "Agosto, o cara sai com a carrocinha, vai pra periferia de São Paulo, o único bem que a criança tem, que a família tem é o cachorro e a carrocinha vai lá e pega" Isso não é nada. "Pô, que merda! Vocês deviam me mandar entrevistar o presidente da república, vocês estão me botando numa carrocinha de cachorro pra ir pra periferia de São Paulo...", mas é uma puta de uma história humana, belíssima. O cara ali, o carrasco, o laçador é o carrasco. Então, esse é o tipo de coisa que você aprende em redação. Agora, é isso! E é isso aqui ó ta vendo [pega papéis de dentro de uma caixa cheia de documentos de Paulo Coelho], cartinhas, cartinhas. Se você dobrar muito olha o que acontece [pega um documento muito velho, com marcas de dobradura e rasgado em alguns pontos], ta vendo? É daqui que sai. É uma sílaba daqui, é um pedaço da entrevista feita em Berlim, é um pedaço de não sei o que, é uma pontinha de um recorte que saiu no jornal. No fundo, fazer um livro, seja ele um livrinho nessa área de trabalho, de jornalismo, seja um sobre o Chateubriand, no fim é construir tijolo por tijolo, sabe. Você não escreve um texto em toques de cinco páginas, cinco parágrafos, é palavra por palavra, letra por letra. É daí que vai sair um bom ou mal livro, é esmerilar, ficar com um cinzel ali, pá, pá, pá. Lima... ainda está um pouco áspero, lima mais um pouquinho. Texto não pode ter quebra mola, aquele negócio, põe primeira, freia, põe segunda, freia. Isso é texto de Fernando Henrique, é texto de acadêmico. Você tem que facilitar a vida do leitor, tem que escrever legal. Traduz as coisas pro leitor, descreve. Quando eu fui descrever um personagem, Chamado Casimiro Montenegro, eu pus: "Uns profundos olhos azuis, magrinho, franzino e nome de poeta romântico", eu podia simplesmente dizer: "O sujeito chamava Casimiro". Mas se você...atrai o leitor, fala "tsc, tsc, tsc..vem, vem, vem.." faz uma coisa elegante, coloquial, sofistica, arranja uma palavra melhor, eu vivo com tudo quando é tipo de dicionário, sou um rato de dicionário.... Cristiane – E não necessariamente usa palavras difíceis... Fernando - Não, não. Eu uso muito dicionário analógico, ajuda muito. Agora é difícil porque o único autor de dicionário analógico do Brasil, os herdeiros brigaram com a editora e pararam de publicar,

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então não tem mais em livraria, então você compra em sebo por 400, 500 reais. É uma mão na roda, uma mão na roda, porque você vai lá e fala "tempestade", ele tem lá uma página e meia de "tempestade", desde a tempestade propriamente dita, até tempestade de ódio, até brainstorm, tempestade cerebral. Então ajuda muito, te amplia o horizonte...Dicionário de sinônimo e antônimo, às vezes eu to querendo um antônimo, "o que o cara deveria ter dito"...dicionário, dicionário, dicionário...Dicionário ajuda. Cristiane - Você definiria algum estilo seu ou estilo que você mais se identifica? Fernando - Não, eu não acho que eu tenha estilo. Acho que depende do personagem também, sabe. Não sei dizer. Primeiro que eu não leio as coisas que eu escrevo, eu nunca li um livro meu... Cristiane – Depois de impresso. Fernando - Depois de impresso. Às vezes eu uso pra consulta, passo os olhos e penso: "Ai meu deus, podia ser tão melhor". O único livro meu que eu li inteiro foi A Ilha pra refazê-lo agora quando o Luiz lançou uma edição nova, com um ensaio feito pela minha filha, mas em geral não leio. Cristiane - Saindo um pouco da esfera pessoal, como você avalia a produção de livros-reportagem no Brasil? Você disse que.. usou a frase do Darci Ribeiro, que no Brasil falta gente pra contar, eu queria ... Fernando - Eu acho que hoje, acho não, a realidade comprova isso, há um mercado interessante, há uma demanda interessante por histórias do Brasil. Acho que isso começou com a ditadura,com o fim da ditadura que foi quando as pessoas começaram a poder se assanhar. Então se você olhar de lá pra cá o que saiu nessa área, é uma barbaridade. Acho que isso se deve à carência de grandes reportagens na imprensa. Não é que a grande reportagem substitua, mas se você já leu quatro páginas, cinco páginas, oito páginas bem escritas sobre determinado tema, ou determinado personagem, você vai vacilar antes de dar cinquentinha numa livraria por livro sobre aquele personagem. Não acho que o jornalista tem essa capacidade de matar a demanda, tem, [acende outro charuto] hoje, biografia, relato pessoal, histórias da resistência. Até, infelizmente, vou falar mal de um cara que fez dois livros de memória. O cara que foi acusado pela Beth Mendes, Ustra, Carlos Alberto Brilhante Ustra, de ter torturado ela, quando o DOI-CODI...[não termina o pensamento] Soltou dois livros com aversão dele. Podia ser bem escrito, mas é um mega relatório, número, nome, nome, nome, tabelas...Você poderia transformar isso num...Você pega um a carteira de motorista de um personagem, Paulo Coelho [pega o documento do autor]. Se você começar a olhar, você vai começar a descobrir coisas: "olha só"....Eu estava com o certificado militar dele outro dia, você vai, descobre, vai descobrindo coisas, que ele não pegou o serviço militar por causa disso e daquilo...Você pode dar vida ao papel, ao passo que tem gente que joga aquela maçaroca e é isso que acaba determinando se, se o livro vai fazer sucesso ou não, às vezes, também tem livro ruim que faz sucesso, tem livro bom que não faz sucesso. É isso: dar vida. Primeiro a um defunto, no caso de uma biografia, e depois a tudo aquilo que gravitou na órbita dele, reconstituindo. No fundo, tentar fazer com o que o leitor tivesse vendo aquelas coisas, transpor o leitor pra aquilo. Outro dia eu dei uma entrevista pra televisão que perguntava sobre um negócio de cinema, programa de cinema, e três livros meus virando filme: Olga virou, o Chatô está pronto, finalmente, e agora o Corações que o Cacá vai filmar...se eu escrevo pensando nisso. Não. Não escrevo! Eu escrevo pensando no leitor, tô sempre pensando no leitor, pensando no leitor crítico. Então eu tenho alguns personagens na cabeça que eu sempre que eu estou escrevendo eu penso, o que que fulano vai achar? O quê que Beltrano vai achar? O que acharia disso? Isso te permite ter uma auto-crítica muito afiada. Cristiane - Você poderia dizer em quem você pensa? Fernando - Não, não. Varia de livro pra livro. Quando o Cláudio Abramo era vivo eu pensava muito nele, escrevia pensando: "O que o que o Cláudio Abramo vai achar"? Porque era um cara rigoroso, escrevia bem e era um sujeito rigoroso, seco, aquela coisa sem gordura. Mas não escrevo pensando em cinema não, agora já começo, é uma coisa curiosa, depois que me chamaram a atenção, eu começo a pensar: "Olha, essa história pode dar um filme, hein!"

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Cristiane - Sobre os livros. Tirando esse que você falou que não gostou por ser um relatório,você tem gostado? Fernando – Tenho! Tenho gostado muito, eu acabei de receber um livro, legalésimo do Ricardo Kotscho, do golpe ao poder, do golpe ao planalto [o nome correto é Do Golpe ao Planalto], uma coisa assim, livro de memórias...[trecho ininteligível] Ahh, tem muita coisa boa. Saiu uma biografia agora do José de Alencar escrito por um cara chamado Lira Neto... Cristiane – Essa Biografia a duas Vozes de quem que é? Fernando – Desculpe? Cristiane - Biografia a duas Vozes que você falou...[Fernando havia citado o livro neste trecho em que não foi possível compreender sua fala] Fernando - Biografia a duas Vozes, do Ignácio Ramonet, do Le Monde Diplomatique. A apresentação é minha, são 100 horas de entrevistas com o Fidel e ele organizou de forma biográfica. Muita coisa... tem uma bela biografia, agora, tem personagem...que a maioria dos brasileiros torce o nariz porque era obrigado a ler quando tava no curso primário que é o José de Alencar. Saiu uma belíssima biografia, chamada O inimigo do Rei, escrita por um cara chamado Lira Neto. Então tem, tem personagem...outro dia conversando no MSN com um cara ele falou "Mas será que tem tanto assim?" e eu disse: "Você quer agora? Tem dez agora, de memória", ou personagens, ou temas, tem muita, muita,muita coisa. Eu digo sempre pra sua geração que quem quiser se meter nisso vai se meter em um negócio muito legal. Claro, você não poder começar por aí, tem que gramar um pouco, tem que pegar uma certa experiência, mas passou a ser uma área do jornalismo, você fazer livro-reportagem. Claro, porque é mais difícil fazer isso no começo? Porque exige uma certa experiência. Depois, porque você precisa ficar imobilizado durante muito tempo pra fazer um livro e, ao menos que você tenha recebido uma bolsa, que hoje dia está cada vez mais difícil porque são um número maior de pessoas disputando... esse rapaz que fez o José de Alencar, O Inimigo do Rei, está fazendo agora Maísa Matarazzo. Pediu pra fazer uma ponte com o Jaime Monjardim, que é filho dela, que dirigiu o Olga, tá fazendo, arrumou uma bolsa, de um banco, uma bela bolsa, vai ficar três anos se dedicando exclusivamente isso. Tá garantido o supermercado, o Nescau das crianças, o condomínio, cinema, o investimento que ele vai ter que fazer no projeto, viagem, às vezes tem que contratar stringer. É o menino, o Sato [refere-se novamente ao estudante contratado para fazer a apuração no Paraná], ta fazendo, agora, porque? Porque ele já tinha feito uma bela biografia do Castelo Branco, elogiada até pelo Hélio Gaspari, nossa maior autoridade em Castelo Branco, e depois fez o José de Alencar. Então quando ele chega com o projeto pra um patrocinador...o personagem, é um puta personagem, em todos os sentidos. Era uma mulher maravilhosa, cantava muito bem, era uma louca varrida, mãe do Jaime e dormiu com metade das personalidades brasileiras do período dela. Passou os últimos 20 anos da vida dela bêbada, da hora que acordava à hora que ia dormir, linda, belíssima, gata. Tinha uns olhos...e morreu jovem, muito jovem. 30 anos, 30 e poucos anos de acidente de automóvel. Uma boa história, apresentada por alguém que fez dois livros de sucesso, tem uma chance de ganhar uma boa maior, mas é um caminho. E aí é o seguinte: depois que você chega a um certo patamar que você tem três, quatro livros, o que acontece? Uma coisa vai mantendo a outra. Um dia o Olga vende menos, daí o colégio não sei o que adotou o Corações Sujos, daí vai vender mais... vende menos o Corações Sujos, daí vende em tal lugar, no parada [?] o Toca dos Leões.. Nydia – Daí o Fidel fica doente e volta a vender A Ilha. [risos] Fernando – [risos] Depois o Fidel fica doente e volta a vender a ilha. E é isso que acaba garantindo, dizer [bate três vezes na mesa de madeira]...hoje eu posso me preparar para fazer trabalhos como o do Paulo, por exemplo, sem muita preocupação. Mas não é absolutamente sem nenhuma preocupação. Como eu sou um mineiro falso, eu não guardo, eu gasto tudo o que ganho. Gasto tudo, tudo! Não tenho nada. Tenho minha casa, tenho uma motocicleta e tenho um carro, e pronto! Mas é uma profissão, eu vivo disso há trinta anos, exclusivamente disso. [acende outro charuto] Cristiane - Agora as duas últimas perguntas...

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Fernando - Tá bom. Eu também tenho que trabalhar, hein! Cristiane - A primeira é um pouco resumindo o que a gente falou aqui: o que tem que ter um livro- reportagem pra ser bom? E se você poderia dar algumas dicas pra quem quer seguir essa modalidade... Fernando – Olha, o que deve ter um livro-reportagem, assim como a gente falou, algum ineditismo, o que não significa obrigatoriamente que seja algo desconhecido, você não pode dizer o que o Chatô era desconhecido, durante meio século ele imperou nesse país, no entanto é um livro de revelações. Se você pegar, por exemplo, o Roberto Marinho, um personagem maravilhoso, acho que foi mal gasto pelo Bial, que fez uma biografia oficial. Tudo bem, isso não é uma condenação, mas eu acho que a história do Roberto Marinho ainda está para ser escrita. Então, primeiro, algum ineditismo. Segundo, que o personagem tenha alguma efervescência, uma vida rica interiormente, ou por coisas que fez, por coisas que falou ou que viu. E tem que ser bem escrito. E o que é ser bem escrito? É ser escrito com simplicidade. A coisa mais difícil do mundo é escrever fácil, você lê e fala "Pô, é mole". Você lê um Gabriel Garcia Márquez, lê Machado de Assis e fala "É mole, meu", não é? Então eu acho que é isso, procurar ser crítico duro com sua própria produção. Qual era a segunda pergunta? Cristiane – Dicas. Fernando – Olha, dicas de personagens... Cristiane – Não, não... Fernando - Dicas? Não tem! Cê sabe que se tivesse truque eu ficava rico ensinando. Não tem. Eu acho que você constrói a sua reputação fazendo as coisas direito e fazer as coisas direito é ser fiel à fonte, ser fiel ao documento. Difícil dizer, é muito difícil dizer, sabe...dicas? Porque no fundo é trabalho. É isso, produzir, produzir, produzir. Eu sei que é difícil. É isso: dedicação, dedicação, dedicação, foco, foca no que você está fazendo. A gente fica inventando coisa pra não escrever, inventando, inventando. Eu agora estou inventando de criar peixe em um córrego aqui atrás da casa e eu descobri que já é sacanagem pra sair daqui. Não pode, tem que ficar aqui, tem que trancar a porta e jogar a chave fora, tem que ficar aqui dentro. Não conheço ninguém que escreva numa nice, "Ahh, eu tiro de letra". Não conheço! Eu sofro muito. Uma vez eu vi a Raquel de Queiroz no programa Jô Soares e a primeira pergunta que o Jô fez pra ela foi a seguinte: "Raquel, você gosta de escrever?", "Não, Jô Soares, eu odeio!" Eu entendi o que ela quis dizer. Claro que ela gosta de escrever, agora, é um sofrimento, um sofrimento cotidiano. E quanto mais você escreve, maior é o sofrimento porque maior é a expectativa das pessoas. Então, você pega autores consagrados no planeta, como o Paulo Coelho, ficam ansiosos quando está pra lançar um livro novo, porque é expectativa, é expectativa que se cria. Agora, é um ramo... eu se tivesse no seu lugar hoje...Eu nunca fui de planejar muito minha vida não, o destino meio que escolheu algumas coisas pra mim, mas, se pudesse, eu faria o que eu fiz. Talvez tivesse feito um pouco diferente, talvez tivesse começado um pouco mais cedo, talvez tivesse aprendido línguas mais cedo, sabe?! É uma dificuldade muito grande você lidar, sobretudo quando você começa a lidar com personagem internacionais, se você não falar pelo menos o inglês e o francês. É um puta dum obstáculo. Mas eu, se tivesse hoje começando a carreira....minha filha chegou a pensar em fazer jornalismo, eu falei pra ela: "Se você for fazer, vai se planejando pra isso". Não é ir se planejando pra sair daqui amanhã, terminar seu curso e escrever um livro, sabe?! Mas é já ir montando sua carreira, se é isso que você gosta, eu estou falando de pessoas que gostam disso, tem gente que prefere ser correspondente internacional, trabalhar na TV Globo, no Estadão, na Folha, em Beirute...Uma coisa na verdade não exclui a outra, às vezes até ajuda, contribui. O primeiro livro do Bial e da ex-mulher dele, a René Castelo Branco, é sobre a guerra do Iraque. Eles estava cobrindo a guerra do Iraque...então é uma profissão que cada dia que você entra numa redação você tem uma história nova. Eu faço muito isso. Na semana passada saiu uma matéria no Estadão, no domingo, sobre um menino abandonado, há 20 anos atrás, ele tinha alguma deficiência mental muito leve, então ninguém queria adotar, ele estava naquela roda das crianças do padre Júlio Lancelot, crianças abandonadas e como ele era um pouco diferente, ninguém queria adotar, mas acabaram adotando e tal. Ele cresceu, foi pra Marinha, se apresentou lá, foi soldado da Marinha durante um ano, voltou pra São Paulo, se inscreveu na PM, passou, virou soldado da PM. Com dois dias de trabalho ele foi morto pelo PCC. Eu liguei pra ela, descobri, liguei pro diretor do jornal, que é do meu tempo de Jornal da Tarde, o Sandro Vaia, "Quem é uma moça chamada Mônica Tami", nunca tinha ouvido falar, "Mônica Sami....", "?Ahh, é”. Peguei o telefone dela,

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liguei: "Olha, primeiro te cumprimentar pela matéria. Segundo, o seguinte: você tem um livro aí, hein! Esse troço numa página de jornal é pouco. E mais, você tem um roteiro de um filme dramatiquíssimo, retrato da merda em que estamos vivendo, com um personagem e uma história linear". Então é isso, as histórias estão aí dando sopa. Essa menina, assassina, Richthofen, se eu não tivesse com o Paulo Coelho eu ia ligar pro advogado ela e dizer "Olha, eu quero fazer a história"... O Marcola, o bandido que lê Lênin, sabe, um bandido que lê Goethe, que já leu 3 mil livros, que tem um vocabulário....Vocês leram o depoimento dele? Vocês não devem ter lido porque está meio clandestino mas já está circulando na Internet. O sujeito tem o vocabulário mais rico do que qualquer deputado que estava lá, e tinha um ex-ministro pô.. Se isso não é um personagem, eu não sei o que é um personagem. Então ta dando sopa. Leia jornal com esses olhos, vai pra...vai você [aponta para Cristiane] pra casa de custódia de Taubaté, que é pertinho de Jacareí e faz uma semana com o banqueiro do Banco Santos, o Edemar Cid Ferreira, que está lá lavando privada. Morava numa casa de 150 milhões de dólares, que tinha heliporto, que tinha auditório pra 200 pessoas dentro, mandou fazer uma banheira copiada do hotel mais caro de Londres, lavando privada ..se isso não é..uma semana...vai lá... [neste momento a fita acabou e não a trocamos por considerarmos que os objetivos tinham sido cumpridos]

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ANEXO C

Entrevista com Caco Barcellos

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ANEXO C – Entrevista com Caco Barcellos

Caco Barcellos é uma pessoa extremamente doce e atenciosa.

Aceitou o convite para a entrevista desde o primeiro contato por telefone e foi muito

solícito em responder às minhas perguntas. O encontro ocorreu em uma das salas

dos estúdios da TV Globo em São Paulo, por volta das 21h30. Caco também é

sereno, de gestos precisos e fala baixa, o que acabou por prejudicar a gravação e

tornou alguns trechos ininteligíveis.

Quanto a mim, estava nervosa e apreensiva. O trânsito engarrafado

e a demora em chegar ao local aumentaram minha tensão, que acabou por

atrapalhar no desempenho durante o encontro.

Saí muito satisfeita com o material que tinha em mãos, mas

insatisfeita comigo mesma, por achar que não havia conduzido bem a entrevista e

por ter cometido algumas gafes. Coisa normal de foca!

Cristiane – Tenho algumas perguntas sobre o seu trabalho e depois algumas mais geral...Eu gostaria de saber primeiro, porque você escreve livros-reportagem? Caco - Porque? Acho que são várias coisas... nunca pensei direito, mas quando eu percebo que eu tenho uma história, eu gosto muito de contar história, sobretudo de apurar histórias, quando eu percebo que eu tenho uma história forte, contundente, e que acrescenta informação talvez não conhecida de muita gente, eu acho que me motiva a fazer uma reportagem de maior fôlego. Se eu acho que eu tenho muita coisa, que talvez muita gente não saiba, então eu me encaminho pro livro. Então, essencialmente, eu jamais poderia escrever um livro a partir de um projeto muito planejado. Eu acho que eu tenho que estar já há algum tempo envolvido em determinado tema, ou em determinada história, e aí eu fico extremamente ansioso, convivendo mal com aquele volume grande de informação e eu tenho que dar um sentido pra aquilo, então eu acho que é hora de escrever um livro. Pelo menos os três que eu fiz até agora, eu fiz outros, mas em parcerias com outros autores, eu conto o meu só, essa situação se repetiu. Na guerra da Nicarágua eu me envolvi lá com os guerrilheiros, fiquei um tempo mais preocupado em contar a história sobre a guerra. Naquele tempo a gente tinha sido...estava convivendo com movimentos populares derrotados, armados, no Uruguai, na Argentina, no Brasil, no Chile, na Colômbia, na Guatemala, sempre derrotados, mas daí de repente surgiu um movimento popular muito organizado, na Nicarágua eu acreditei que pudesse ser vitorioso e eu achei interessante que pudesse contar aquele história, que o povo, depois de Cuba, volta a se rebelar e com chances de vencer uma ditadura. Essa foi a motivação como repórter, de acompanhar a ofensiva guerrilheira. Aí eu fiz a cobertura toda, pensando em reportagem, sem objetivo de livro. Quando acabei tudo, eles venceram a guerra, eu tive sorte, porque eu fiquei do lado deles, não morri junto... Cristiane - Mas você publicava? Caco - Sim, eu vendia. Eu trabalhava muito pra imprensa alternativa, de combate à ditadura, eu ajudei a fundar uma revista em São Paulo chamada Versus, trabalhava muito pro movimento em

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troca de nada, trabalhava pra escrever ali contra a ditadura, só isso, e, na medida das possibilidades, vendia pra grande imprensa um free-lance, estava envolvido lá com as coisas que eu queria e como não tinha jornalista, eventualmente não tinha no lugar onde eu estava, aproveitava e vendia. Vivia assim, fiquei cinco anos assim, mas daí acabou a guerra, acompanhei a criação da lei número zero, da lei 1, da lei 2, a revolução, os primeiros grandes encontros das pessoas que não se viam havia anos, que estava na guerrilha e assim, em algum tempo eu fiquei lá, pós-vitória. Voltei pra onde eu morava, que era Nova York, passei pelo Brasil, me dei conta que eu tinha feito uma cobertura que a imprensa não tinha falado nada a respeito. A imprensa tinha feito uma cobertura centrada nas entrevistas coletivas no lado da ditadura e alguma coisa de orelhada da guerrilha. Mas dificilmente com os guerrilheiros e menos ainda, muito menos, com o povo envolvido na guerra. "Olha, porque não escrever isso então se aqui no Brasil as pessoas só ficaram sabendo da guerra pela visão oficialista da ditadura que perdia os combates progressivamente, a visão americana também e alguma coisa do que os combates revelavam, sobretudo a destruição, mas intimidade da guerra, pela a visão dos vencedores, nada, praticamente nada, com algumas exceções". Daí eu achei, "bom, aí tem um livro, eu acho" eu fui pra contar essa história, tem muitos capítulos aqui e fiz meu primeiro livro assim [Caco refere-se ao Nicarágua – A revolução das Crianças]. Com o Rota [refere-se ao Rota 66 – A história da Polícia que mata] foi uma coisa parecida, eu trabalhava muito na cobertura de assuntos relacionados à injustiça social tal, e dava conta que a polícia matava todo dia e o noticiário não falava nada. Tentava vender nas revistas, eu trabalhava na Veja nessa época, na Isto É, e fazia free-lances pras revistas e jornais, e quando eu oferecia alguma matéria sobre execução praticada pela PM, eles perguntavam quanto os mortos [reproduz um diálogo] "mas porque vocês estão perguntando quantos os mortos?", "Ah, não, porque três, quatro não é notícia", "mas como assim? Eles matam todo dia dois, três".."ahh, mas qual é a diferença? Ontem foi dois"...cria o inusitado, mas daí se são 111 daí é notícia. Matar 111 por mês não é notícia. Que absurdo essa visão. E outro fator que me levou a escrever, eu acho que a imprensa mentia todo dia nesses episódios, que retratava só a visão do Comando da Polícia Militar, que é uma visão mentirosa, versão mentirosa, ou melhor, então eu estava em crise profissional, achando que é um absurdo, se eu sei que é mentira, como eu não faço nada, se eu sei que é mentira, ou faço muito pouco, apenas uma reportagem pra uma revista, e geralmente quando eu conseguia provar bem que tinha sido uma execução e não um tiroteio legítimo, como os comandantes falavam, eventualmente havia uma punição pro soldado que era afastado do quartel, das ruas, trabalhava no quartel, raramente um era expulso, eu sentia também que era uma sacanagem com o soldado porque eu tinha certeza que o comandantes, os coronéis que tinham mandado matar, ele só executou a ordem e ele é o punido e o coronel saía de bacana, quer dizer, "ou saio dessa área do jornalismo ou eu faço alguma coisa, como cidadão, não como repórter". Resolvi fazer um livro pra provar que quem matava era o estado e não o soldado que assume e dá tiro. O Abusado [refere-se ao livro Abusado – O dono do morro dona Marta], só pra finalizar esse raciocínio, eu acho que o Brasil, os brasileiros falam muito sobre drogas, como mais ou menos acontece com o futebol todo mundo sabe escalar um time, tem opinião pra tudo, mas eu acho que conhecem pouco o universo do tráfico, sobretudo o universo dos traficantes que são os protagonistas da história. Quase sempre é uma reprodução do discurso dos policiais, dos coronéis da PM, ou de especialistas da academia que nunca sobem o morro, que jamais falam com os moradores do morro, mas olha, é uma visão só, ou só a visão só dos organizados, da sociedade organizada, a academia, especialistas daqui, especialistas dali, policiais e repórteres que sobem atrás da metralhadora do Estado, quando tem tiroteio no morro, sobem sempre atrás cobrindo o universo da polícia. E o outro lado? Os traficantes, os moradores do morro. Todo mundo emite juízo sem conversar com os moradores, sem conhecer como é por dentro o tiroteio, como funciona uma boca de cocaína, e eu tinha muita informação sobre isso, porque eu tinha um programa na TV a Cabo, que eu gravei durante 6 anos, 100 % gravados nas periferias das grandes cidades e nas favelas do Rio, principalmente nas favelas do Rio. Então eu estava sempre cruzando com traficante, pedindo autorização pra subir no morro, discutindo o comportamento de elite com eles, essas coisas que a gente tem que fazer pra trabalhar o morro. Eu disse "Ahh, tem aqui uma história que precisa ser contada". Porque vêm aquelas teorias de que traficante obriga as pessoas a ficar no tráfico e se entra não pode sair senão morre... as mentiras, que nem são exatamente mentiras, mas verdades, entre aspas, que são reproduzidas e que ninguém sabe qual é a origem. Então pra desmascar isso, só pra dar um exemplo mais simplório, e outras, e descobrir outras coisas, aprender também um pouco mais sobre o universo do tráfico, eu achava legal escrever sobre isso também, o Abusado, então a motivação sempre foi a mesma: tratar de temas que dizem respeito ao cotidiano das pessoas, que todo mundo tem opinião, mas que eu acho que tem algumas lacunas que eu acho que merecem trazer a tona.

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Cristiane – É uma função social seu livro? Caco – É, se é que se pode ter essa pretensão. Eu tenho esse objetivo, eu não sei se atinge isso, se isso tem importância ou não, mas o que me motiva é isso. Eu acho que tem que contar essa história pras pessoas que estão falando aí, coisa que eu não concordo, vamos ver se é isso mesmo. Até mesmo pra abastecer os especialistas, entre aspas, a academia, se eles não vão lá alguém tem que... Cristiane – Mesmo que se eles fizerem críticas depois ao livro... Caco – É, dane-se, dane-se! Eu acho que alguém tem que contar a história, não só interpretá-la ou emitir juízo ou opinião . Eu acho legal a pessoa emitir opinião, mas precisa saber a história. Cristiane – Hoje em dia você acha que tem a preocupação, de tantos autores de técnica de livro-reportagem, você acha que tem a preocupação com a técnica ou isso já é uma coisa que é intrínseca ao jornalista, porque já está ali tão no cotidiano... Caco – Livros de reportagem? Cristiane - Sim. Caco - Técnicas de texto? Cristiane – Técnicas de texto, de execução? Caco – Ahh, olha, eu não sei os outros, eu gosto muito, sempre que eu tenho a oportunidade eu leio os americanos eu gosto muito, os ingleses...imagino que eles tenham. Eu sou fã de alguns autores. Eu, quando escrevo, eu procuro ao máximo, ao máximo, assim, tornar a leitura agradável, tento de toda maneira prender o leitor e isso exige técnica. Cristiane – Que autores? Você poderia citar? Caco – Que eu gosto? Cristiane – Sim. Caco - Tantos, pra falar assim até mesmo de ficcionistas que me influenciam bastante, que eu aprendo com eles, Frederick Forsyth , por exemplo, é ficcionista, mas eu tenho certeza que ele escreve baseado na realidade, acho que ele deve trabalhar com um grupo de apuração muito grande de realidade, porque os livros dele parecem verdade, são ficção, mas eu tenho certeza que ele se baseou na realidade pra escrever, e as técnicas também de narrativa dele também são maravilhosas. Bom, Truman Capote eu lembro de ter lido, seguramente mais de 30 vezes o A sangue Frio, mas lá nos anos 70. John dos Passos, também era um grande repórter. Stephen Crane, também, um repórter americano, muito jovem adoeceu de tuberculose, escreveu sobre a primeira guerra mundial. Ahhh, bom, mais os contemporâneos, tem [pausa] Jack London, clássico. Hemingway, fiquei puto outro dia que eu descobri que ele foi agente da Cia, foi uma decepção, ganhava uma mensalidade, uma mesada, da Cia, eu preciso até, na verdade, gostaria de investigar melhor pra saber se é verdade, de repente é uma...mas ele parecia ser uma figura tão romântica, interessante a vida dele...agente da Cia... [Aqui começa um trecho em que Caco Barcellos interrompe várias vezes o entrevistador, na medida em que vai se lembrando dos nomes dos escritores] Cristiane – Você disse que teve contato, que os seus livros surgiram... Caco – Fitzgerald, também que foi contemporâneo meu, mas seguramente tem uma penca de autores que eu estou esquecendo. Cristiane – Tá, você me fala... Você disse que suas histórias elas surgem dentro do material que você tem...

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Caco –Ahh, Gay Talese...grande Gay Talese.. Cristiane – Norman Mailer? Caco – Menos. Ele é mais um analista, um pensador. Eu prefiro aqueles que ficam centrados nas histórias do que de um analista, mas é maravilhoso...só que pra essa nossa conversa, de técnicas de narração, eu prefiro os que mexem com a realidade...[pausa] Fernando Morais, pra falar dos brasileiros.... Cristiane – É, você disse que... Caco - Otávio Ribeiro....[fala junto com o entrevistador] Cristiane - ...os seus livros... Caco - João Antônio! Desculpa, estou te interrompendo toda hora. Cristiane – [risos] Não, tudo bem. Caco - To lembrando dos nomes...eu falei que ia lembrar...[pausa] João Antônio, mestre... Cristiane – Paixão de João Antonio...o Mylton.. Caco – Myltainho? Myltainho é outro. Maravilhoso. Cristiane – Se você se lembrar de outro pode falar...mas você disse que seus livros surgem do material... Caco - Carlos Morais. [risos] Eu sou um pentelho...acabou de escrever um livro, eu comecei a ler e não tive tempo de seguir, depois eu vou te falar o nome. [fala junto com o entrevistador] Cristiane – Você disse que os seus livros surgem das idéias, das informações que você tem, que estava ali trabalhando já há algum tempo, você .. Caco – Sim, eu tenho aqueles informações todas daí eu parto pra fazer...[interrompe o entrevistador] Cristiane – Sim. eu gostaria de saber se existem....Porque as teorias dizem...é uma entrevista meio teórica...as teorias dizem que tem certas etapas a serem cumpridas pra confecção de um livro, né, como a pauta, depois a pesquisa, levantamento de dados, entrevistas, pra depois a confecção, a redação. Você acha necessário passar por essas etapas? Como é a sua experiência? Caco - Eu não sei qual são as etapas que a teoria recomenda. Os meus critérios são semelhantes aos de qualquer reportagem que eu faça, ou uma reportagem de cinco minutos que eu tenho que fazer pra tv, ou um livro de 600 páginas, meus critérios são os mesmos, exatamente iguais, é claro que eu aviso pro telespectador que eu tive só cinco minutos pra aquela apuração, então deu tempo só pra meia entrevista, mas eu procuro..... no caso do livro tem o componente de que eu já estou muito enfronhado na história, aí decidi: "Agora vou fazer o livro". Uma vez decidido, eu parto pra uma grande apuração, quero dizer, do tamanho que eu acho que é necessário pra eu poder ter um razoável entendimento daquela história. Então qual é a seqüência? Vamos pensar assim no Abusado, eu queria contar a história da terceira geração do Comando Vermelho. Porque eu queria a terceira geração do Comando Vermelho? Porque foi essa geração que levou o Comando Vermelho a controlar o comércio de drogas no Brasil, no Rio de Janeiro em conseqüência no Brasil, ou a organização mais importante que estava controlando as drogas no Brasil. Queria também não fazer um livro sobre o Comando Vermelho, e sim sobre uma boca de cocaína. Eu procuro sempre ter uma história menos pretensiosa possível, mais focada possível, porque eu acho que quando você escolhe um tema pequeno e fechadinho, você tem maior chances de aprofundá-lo, do que pegar um tema muito amplo, você corre o risco de contar toda a história de maneira superficial porque ela é ampla demais. Então eu procuro, de preferência, uma história só e, através dessa história, eu conto toda uma realidade em volta dela, mas pra dar ao leitor a oportunidade de ter uma história com

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profundidade. Então o grande desafio pra mim, que eu me auto-imponho, é descobrir qual é a história que seja síntese do universo que eu quero abordar. Então eu entendi que, pra contar a história das drogas no Brasil eu tinha que contar a história de uma quadrilha da terceira geração. A primeira geração foi criada pelos comunistas, os jovens comunistas que enfrentavam a ditadura, foram presos, mortos, torturados, desapareceram e tal, e os que sobreviveram foram pra cadeia e na cadeia, como era medieval, como é medieval hoje, acho que só veio piorando o sistema carcerário no Brasil, naquele tempo era medieval, abandonados, jogados como animais, com respeito aos animais porque nem os animais são tratados dessa maneira, e eles criaram o Comando Vermelho pra ter um mínimo de auto defesa, de organização, pra cuidar..pra não serem estuprados pelos presos, não serem torturados pelos carcereiros, não apanharem de um policial que vai lá de visita, ou pra exigir o direito que está na constituição de receber visitas de maneira sistemática, receber os parentes, os filhos, enfim, brigar pelos seus direitos, a primeiro geração criou o Comando Vermelho. Daí os criminosos comuns, os chamados presos comuns, aprenderam com os da luta ideológica como se organizar nas cadeias. Na medida em foram saindo, que os comunistas foram saindo da cadeia, ficaram lá os presos comuns, gostaram da idéia de unir forças pra que defender seus direitos e impuseram também um jeito deles, né. E na medida em que eles foram saindo pras ruas, cumprindo suas penas, levaram a organização pra rua, com o compromisso de continuar assaltando, parte do dinheiro do assalto voltado pra contratação de advogados, pra financiar uma ida de uma pessoa que não tem dinheiro pra ir cadeia, levar comida, com alguma dignidade, enfim, coisa que você sabe muito bem como funciona. A segunda geração, foi a geração que levou então pra rua, a primeira são os comunistas a segunda levou o comando pra rua e fez a ponte rua-cadeia. E, dependendo da época, eles vieram a controlar assaltos, de maneira organizada, usando a mesma organização interna da cadeia pra se organizar na rua, agir em grupo pra assaltar banco. Sobretudo no Rio, os criminosos do Rio, estão sempre na vanguarda dos criminosos de qualquer outra cidade brasileira. São Paulo está chegando perto hoje, mas eles realmente são à frente, no sentido de que são organizados. Partiram depois pra assaltos à carro forte, quando os bancos começaram a tirar dinheiro dos caixas, quando a polícia aperta numa área eles vão pra outra, inventaram o seqüestro, trazendo tecnologia dos colombianos, dos seqüestros foram pulando até chegar nas drogas. Então como eu queria falar de drogas, achava que terceira geração foi a que levou o Comando Vermelho a controlar o tráfico, a primeira coisa era localizar uma quadrilha. Isso demorou bastante. Tentei inicialmente na Rocinha, era da terceira geração, mas daí aconteceram guerras, o cara que tinha me dado a possibilidade de trabalhar lá morreu e eu tive que parar até conhecer o Juliano, o Marcinho VP, e ele me deu a possibilidade de trabalhar lá no Santa Marta, e aí quando eu consegui dele o sinal verde pra subir no morro, o que pra mim era tirar a sorte, porque era um morro estratégico pro Comando Vermelho, pro controle de todo o tráfico da zona sul, é um morro amigo dos outros vizinhos ali, Vidigal, Cerro Corá, Pavão Pavãozinho, era interessante porque tem os tentáculos pros outros morros eu podia ampliar sempre com o foco fechado no Santa Marta. Outros componentes me ajudaram também a ficar no Santa Marta porque é a maior concentração de brasileiros está no Santa Marta. Aquela relação por metro quadrado segundo o IBGE, você sabe né?! Realmente ela é muito pequenininha, então por isso a grande concentração, é uma coisa interessante também de se escrever um livro próximo, fácil, não fácil mas você tem a possibilidade de ter toda a informação concentrada num raio muito pequeno. Como eu gosto do universo micro pra me aprofundar o máximo possível é também interessante a geografia do morro.. Cristiane – E depois que você delimita o tem qual é a próxima etapa? Caco – A próxima etapa é contar uma história de forma atraente. Então que histórias selecionar? Daí eu começo a fase que pra mim é a mais fascinante, que é me aproximar das pessoas, conquistar a confiança delas, fazer com que elas contem histórias pra mim. Isso é o que eu acho mais legal, e daí eu começo a escrever, embora não assim fisicamente escrevendo, mas eu apuro pensando na frase de cada um no livro. Então algumas técnicas, por exemplo, de apuração, se você diz que João é um covarde sanguinário, provavelmente eu vá jogar o seu depoimento no lixo. O que eu vou querer saber de você? [reproduz um diálogo] "O que o João fez pra você dizer que ele é covarde?" “ahh, ele pegou três crianças da vizinha que todo mundo adora e, enfim, machucou, agrediu com facadas. Coisas brutais contra as crianças e tirando sangue delas" Então eu quero riqueza de detalhes na ação desse cara, pra não ofendê-lo, não chamá-lo de covarde sanguinário, eu não quero ofender ninguém mas eu quero contar histórias do que as pessoas fazem, histórias que permitem confronto da informação pra saber se ela é verdadeira ou não. Então em vez de simplesmente ter uma frase de efeito "João sanguinário covarde", eu quero contar: "O operário João, tal, aquele dia virou comerciante ilegal de drogas, usou o que não devia, cruzou com o inimigo e em vez de enfrentar o inimigo, foi enfrentar os

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filhos, cometer atrocidades contra os filhos" e daí eu conto história, um, dois e três que ele cometeu. Aí eu começo, na seqüência, saber se esta história é verdadeira. Eu tenho o seu depoimento, é importante, mas é um só, então eu te obrigo, forço a dizer quem assistiu àquilo e você diz "sete pessoas" então eu vou atrás dos sete. Bom, se é um crime, tem que haver processo. Vou na justiça vejo ..mas daí nossa justiça é incompetente, nossa polícia mais ainda, às vezes crimes acontecem e a polícia não fez nada, nem sequer sabe que aconteceu. Aí complica, eu não tenho esse dado pra confrontar, mas se tem é legal, pra ver como a polícia trabalhou isso, como a justiça trabalhou, como tratou desse tema. Geralmente é uma distância imensa entre a verdade do morro e a verdade do judiciário. É uma distância absurda, uma omissão total, uma incompetência recorrente. Mas se você sabe, você conhece o universo que está trabalhando, é assim mesmo. Quando crime envolve gente poderosa, gente do lado onde há cidadania, você tem um processo razoavelmente eficaz. Quando envolve pobre, esquece. A Cristiane tá mentindo? Não, o mais provável é que a polícia tenha se omitindo. Por isso eu acho que o contexto é importante você ter muito claro, você conhecer o universo que você está trabalhando a priori porque te ajuda muito a traçar seu caminho. Mas enfim, tem a imprensa. Contou essa história ou não contou? É uma outra fonte..as fontes formais e as oficiosas. Eu costumo dar muito mais crédito às oficiosas, eu acho que eu estou mais perto da verdade quando eu estou mais perto das pessoas envolvidas, das pessoas simples, de rua, enganam menos do que do lado da sociedade organizada, que são pessoas que costumam enganar bastante, de má fé ou por incompetência, eu acho que é mais freqüente. Pessoas simples, pessoas comuns é muito difícil você ter um relato... de má fé sim, não é tão raro porque as pessoas sempre escondem o que fazem, mas é mais difícil você encontrar mentira nesse universo das pessoas do morro, é muito difícil. Cristiane – Caco, você...para o Rota 66 foram sete anos de pesquisa, é isso? E para o Abusado quatro... Caco – Mas não são tempos efetivos, porque como eu trabalho muito na televisão, há tantos anos em média...não sei, talvez 14 horas, 15 por dia, se fosse fazer uma média..eu faço livro na décima sexta hora, então é um livro sempre cansado e limitado no tempo. Então eu acho que eu contei aí quando eu comecei e quando eu acabei, mas se não houvesse a televisão no caminho, talvez eu pudesse fazer em dois anos, ou quatro e em um ano o Abusado. Cristiane – Eu queria saber até onde... Caco - Daí eu pedi duas licenças. Eu pedi licença pra sair da TV, fiquei dois, três meses cada uma, todas as férias, todos os fins de semana...muitas vezes nessa hora que tocava o telefone..agora não porque não dá mais tempo [a entrevista foi realizada por volta de 22h]...não, até daria. Se tocasse o telefone agora, “Caco, mataram, sei lá, um rebelde". Eu saía daqui correndo, pegava a ponte aérea e ia pro velório dele, aí ficava lá no velório até quatro, cinco da manhã, dormia três horas, voltava pra cá de manhã pra trabalhar. Muitas, muitas, muitas vezes isso. .Mas se você contabilizar, não são cinco anos de trabalho noite e dia, como eu gostaria. Cristiane – Eu queria saber até onde vai com sua pesquisa? Em que momento você diz: "Poxa, agora eu tenho informação suficiente, agora dá pra eu escrever"? Caco – Poxa isso é terrível. Tem que seqüestrar o livro de mim. Eu não acabo nunca, porque reportagem não tem fim, né. Você falou de sete testemunhas que viram as crianças morrendo, você vai falar com uma testemunha "ahh ela disse que naquele dia..." Cristiane – Mais gente viu... Caco – E aí vai. Quanto mais sério você for, mais possibilidades você encontra pra ver se...Mas também chega num momento que você "bom, essa história ta redonda por aqui ". Então o que eu faço pra poder dar um ponto final em algum seguimento? Bom, eu tenho aqui 80% da história me parece verdadeira, 20% eu tenho em dúvida. Eu posso trabalhar mais duas semanas pra apurar até 90%. Mas vem cá, 80% já tem fonte pra caramba. Lixo 20%, na dúvida, lixo. Então muitas e muitas histórias maravilhosas foram pro lixo, potencialmente maravilhosas, porque eu tenho a camisa de força da verdade, né, quando você trabalha com não-ficção. No primeiro não tinha tanto porque eu estava muito influenciado pelos ficcionistas, então eu me permitia uns vôos assim, de mudar de lugar as histórias. Depois eu fui eu sou e vi que eu realmente quero. Fiquei realmente fascinado pela não-

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ficção, pela realidade das pessoas que é tão complexa também que pode até parecer ficção. Cada pessoa tem uma história mais maluca que a outra.... Cristiane - Isso seria uma das perguntas: o que mudou em você ou no seu modo de escrever de um livro para o outro? Caco – A apuração. Cristiane - Foi um processo crescente de amadurecimento ou não? Caco – Eu não sei avaliar, me auto-definir, me auto-avaliar. Mas eu acho... pensando no que rolou, eu acho que eu fui me dedicando cada vez mais à apuração. Como eu te falei, escrever na apuração. Então essa história recorrente dos meninos, pra facilitar o exemplo, a história que eu quero te contar, ta, matou três crianças "Que dia foi?" O pessoal nunca lembra..o morro então não tem memória, eu tive que levantar as histórias, fazer a cronologia, a partir dos santinhos que as pessoas produzem pra homenagear os parentes que morrem. Eu ficava: "Tem santinho, tem santinho e tal...?" Porque com os santinhos você tem as datas, morreu fulano naquela data, daí eu comecei, depois de um bom tempo, mais de um ano, acho, quando as pessoas não lembravam, "Foi antes ou depois da morte do Zezinho? Foi na semana?", daí as pessoas: "Ah, foi no velório", aí eu começava a guardar, a partir disso... é um outro tipo de apuração, mecanismos pra ajudar as pessoas... Cristiane – Você foi se aperfeiçoando na apuração? Caco – Eu acho que eu fui. Com o passar do tempo, dos anos, passei a ser mais rigoroso. A pessoas não sabe? Ok, então eu vou ajudá-la. Então eu invento essa loucura, o santinho. Cada situação é uma coisa diferente, por exemplo: investigar a geologia pra poder narrar com mais detalhes, mais perfeccionismo as histórias que envolviam a escavação pra esconder cocaína. Enfim, "Que terra é essa?". As pessoas não sabem? Tem outras que sabem. Um dia um jovem que subiu, fez uma obra, sei lá. Então vem um momento que amplia ao máximo pra depois novamente fechar. Quando está ampliando evidentemente sempre com a preocupação, "ah, eu preciso saber desse solo, dos barracos, como são, eu preciso saber que madeira é essa. Nos anos 70 era uma coisa, nos 80 outra, porque vem alvenaria". Tem que investigar, sair fora. Material de construção, envolve importação, cimento, enfim, tem possibilidades infinitas de você ir apurando com mais precisão. Mas aí a coisa da fala, digamos, eu te forço a saber a data, você não lembra da data...[reproduz um diálogo hipotético dele com outras pessoas] "Você se lembra se alguém falou alguma coisa na hora do crime?", "Ahh, eu lembro que a dona Joaquina gritou da janela", "O que ela gritou?", "Ahh, não sei. Ela ficou puta da cara com isso", "Mas o que ela disse?" você não lembra, então eu vou atrás da dona Joaquina, já morreu, "Alguém viu a dona Joaquina? Tava em casa? Com quem ela estava aquele dia?", "Tava com o marido. Tá vivo mas ta de cama, sei lá o que", mas tem alguém, enfim, que ouviu ela dizer "Por favor, João, não mate essa criança", "Foi isso que ela disse? Mais alguma pessoa ouviu?", "Não, não foi ‘por favor’, ela caral....um palavrão, não mate esse menino". E aí eu tenho lá a frase "Por favor não mate". Então eu estou narrando a história sobre a ótica de alguém e foi uma frase que não foi dita por você, foi dita pela ....você não lembra a frase, mas alguém lembra. Então vai crescendo lá no meu romance a frase literalmente como meia dúzia disse que aconteceu. E aí entra questões assim, um diz que no momento do crime ele estava usando uma calça jeans "Como era essa calça jeans?", "Ahh, era hippão, boca de sino, cobria o pé inteiro", daí um vai vir: "Não, bobagem, ele tava de bermuda". Era calça jeans ou era bermuda? Ele usava calça jeans, mas naquele dia estava de bermuda. E às vezes fica o detalhe da bainha da calça, "Não, era moda cocota, com fitinha na canela", aí o outro diz "Não, eu tenho certeza que era...". Duas testemunhas, que assistiram o mesmo crime, mas esqueceram esse detalhe, ou uma costumava vê-lo andando pelo morro com uma calça larga daquele jeito e colocou essa calça no dia do crime. Não que queira te mentir, mas é assim que as pessoas narram as coisas. Um outro exemplo muito freqüente: a cena do crime acontece aqui [a entrevista foi realizada em uma das salas da redação da Rede Globo. Estávamos sentados um de frente para o outro, com uma bancada à minha esquerda que seguia por toda a parede. Sobre a bancada, ao meu lado, uma bolsa vermelha]. Eu atiro contra a bolsa, daí alguém que estava naquele canto [aponta para o ponto oposto], narra, diz que eu atirei nessa posição [a queima-roupa], que a bolsa era vermelha, que os tiros atingiram aquele ponto [ainda apontando para minha direção] e tal. E um terceiro diz que aquela bolsa... [Caco cria uma situação hipotética onde há duas testemunhas: a testemunha A em uma posição que forma um ângulo reto à minha direita, e a testemunha B que está na minha diagonal] aquele aí diz que era azul [aponta para o local em que estaria a testemunha A],

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esse diz que era vermelha [aponta para o local em que estaria a testemunha B]. Aquele pode estar enganado [refere-se à testemunha A], porque você está aqui na frente da bolsa e ele não viu. Quem tá mentindo não necessariamente esteja mentindo, é que aquele ali [testemunha A] não viu a cor da bolsa porque você estava na frente, esse aqui viu [testemunha B]. É importante você montar a cena do crime com essa preocupação. Qual é a posição dos objetos relacionados ao crime? Por isso a perícia é tão importante, a perícia do local. Cadáver fala muito, os objetos relacionados com o crime, como é que estavam? Você estabelece relações de coerência e incoerências no relato de uma testemunha a partir da análise da perícia no local, coisa que a Rota é campeã em desfigurar porque eles sabem que isso é importante. Sempre eles levam a vítima para o hospital porque sabem que dessa maneira não vai haver perícia de local, porque só tem perícia de local quando tem cadáver. Cristiane – É um trabalho muito detalhista.... Caco – Eu acho que quanto mais detalhista for mais perto da verdade você estará... Cristiane – Mas muita informação dessa apuração toda, às vezes, acaba em nada... Caco – Acaba em nada, mas te alimenta a convicção. Você tem que estar convicta de que está com a verdade. Eu preciso. Muitas não, infinitas informações você não usa pra construir a história. Por exemplo, eu não gosto de adjetivo, então isso tudo é lixo. Agora, eu gosto que me falem de uma covardia, é importante porque a história está ali, só que ela está mal contada, está contada por quem não é escritor, está contada por quem gosta de opinião e esse tipo de manifestação. Eu gosto do verbo, porque o verbo me possibilita provar as coisas, porque quando você tem ação, você tem testemunha, elementos pra confronto. Cristiane – Caco, você usou uma palavra, uma definição que é um ponto de questionamento também pra quem estuda o livro-reportagem, você falou romance... Caco – Eu? Ahh, eu digo romance como técnica Cristiane – Então, eu queria falar desse assunto mesmo. Na técnica você disse que usa algumas coisas influenciado por certos autores. Como você utiliza o jornalismo literário na sua obra? Caco – O jornalismo ou a literatura? Cristiane – É. A literatura que tem no jornalismo literário. Escrever dessa forma romanceada os fatos verídicos... Caco –É, eu nem sei se é o correto dizer romanceado, eu estou dizendo porque eu digo pra mim mesmo isso. Quando eu falo romanceado, não que seja isso um romance, mas é a técnica de contar uma história com toda a complexidade dela. E também pensar no formato realmente, qual é a leitura mais agradável? Tem romance que é romance quase que ensaio. Eu prefiro, como sou repórter, contar a história sem muita interpretação, enriquecendo muito em detalhes. E gosto muito dos diálogos, porque os diálogos ajudam a transportar o leitor pro cenário do acontecimento, mais fortemente do que você só ficar com a sua observação em terceira pessoa. Eu gosto de trazer o leitor pra dentro da história. Não sei se isso é técnica de romance ou não, mas quando eu falo isso de técnica de romance é isso que eu quero dizer. Então a influência são desses caras, desses escritores que também mergulharam em reportagem e contaram as histórias pela forma da reportagem. Eu acho que... evidentemente que há centenas de maneiras de contar uma história, eu acho que a mais bela de todas é a da reportagem, quando relacionado à não-ficção. Cristiane – Como que você armazena seus dados e como você os coleta? É no gravador, é na mão? Caco - Eu fiz questão no Abusado a mesma coisa que você fez. Simbolicamente eu achava que tinha que ter algo entre nósdois...entre o entrevistador e o entrevistado, ali esse componente, embora não representasse nada para os traficantes. Pra ele se eu tivesse colocado uma pistola aí sim, aquilo é simbolicamente importante, mas um gravador não faz parte do universo deles...pra mim sim, mas eu queria dizer pra eles: "Ó você está dando um depoimento pra em escritor, que vai escrever um livro, pensa no que você está dizendo", mas isso não tem a menor importância para o universo deles...

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Cristiane – Mas o uso do gravador era só pra estabelecer essa relação... Caco – Não, e também pra, na hora de escrever a frase, eu posso esquecer. Eu aprendi muito com Truman Capote e com outros autores a memorizar, mas você falha, esquece uma palavra e outra. Eu gosto de ter também do ritmo da frase, então eu gravava também pra isso, pra ficar ouvindo, ouvindo muito. Antes de separar os capítulos eu ouvi muito o que eles falavam, então eu fiquei falando como eles também pra ajudar a escrever. Eu sempre pensava, “aí", como falam os cariocas, "Aí, qual ..." [fala uma expressão que não foi possível compreender], então eu ficava treinando o máximo. Levava sempre uma câmera digital porque facilita muito a visão. Você tem uma cena que aconteceu nessa sala, eu filmo tudo, toda a sala. Os tiros atingiram aquele quadro [aponta para um quadro na parede], então eu tiro muitas fotos aí. Então eu filmo porque na hora de escrever eu tenho tudo. Tem um grupo, três caras, naquele canto [aponta para o canto oposto da sala]... ajuda, o material da sala, de cada elemento, de cada peça, cada papel. Com câmera digital, colocava lá monitor, na hora de escrever, esquecia alguma coisa, ia lá, ouvia, assistia....Eu adoro papel, pra mim não é concreto isso aqui [aponta para uma tela de computador], eu preciso por no papel. Eu pego o papel, pra sublinhar, com várias cores, o que é prioridade, e sei lá, em vermelha, segundo em importância, azul, terceira, amarela, quarta, bem fraquinha, sem importância. Enfim, tem mil loucuras pra me organizar. Eu sou extremamente indisciplinado, eu sou uma pessoa desorganizada, assim, gosto de freqüentar o abstrato, mas quando eu me dedico a um trabalho, a uma reportagem, isso vira uma coisa doentia de organização. Depois de toda a apuração feita, a montanha de informação lá, eu fico meses, dependendo do volume, a quantidade necessária pra ler tudo, uma, duas, três vezes se for o caso e eu conseguir tempo, daí uma vez que eu tudo aquilo na cabeça, eu penso em um roteiro, então os capítulos serão, sei lá, eu vou por histórias, quantas histórias bacanas eu tenho?, Digamos que eu tenho 30, então serão trinta capítulos. Aí começo a escrever..capítulo 1 dou um título, capítulo dois, três...Isso tudo vai mudando na medida que eu vou viajando nas histórias, mas eu tenho um título pra pegar aquele volume todo de informação e colocar. Digamos, capítulo um: Volante [personagem do livro Abusado], então pego todo o material relacionado com aquela história do Volante, que foi morto, fuzilado, coloco aqui na pilha do Volante. Capítulo dois, eu coloco na pilha do capítulo dois. E tem um material central que serve pra todos, geralmente os acontecimentos do cotidiano, do dia a dia, servem para pano de fundo da história, background da história: política, secretaria de segurança pública, estatística, coisas que são comuns a todos os capítulos ficam numa área comum. E na medida que eu vou escrevendo depois, eu vou eliminando com a maior felicidade do mundo aquela montanha do capítulo um, tiro dali pra não ver mais na minha frente e vou avançando, terminando tudo. Cristiane – Tem um roteiro então que você ... Caco – Que eu não obedeço, mas que eu tento obedecer. Às vezes até emplaca quatro ou cinco na seqüência, às vezes tem uma ali que viram três, ou três que viram um, depende. E gozado, ganha, às vezes uma coisa na minha cabeça, os personagens crescem e daí eu volto a apurar e eu lendo ali ou ouvindo a entrevista, eu falo "mas como é que eu não perguntei isso, ele falou ouro aqui, na hora eu não percebi". Você está exausto, está atento a outra coisa, acha que não é importante descobrir quem é o cara que leva do morro pra Bolívia e vice e versa, fica concentrado ali no lado, daí o cara te fala ouro ali do lado e você não está enxergando, você quer o cara que leva pra Bolívia e ninguém te fala. Cristiane – E daí você volta pra apuração? Caco - E daí eu volto pra apuração. Por exemplo, eu cheguei no morro do Saréu...eu não posso ouvir histórias futuras, eu acabo o livro na hora e falava, na medida em que eu ia conquistando os traficantes e tal, [reproduz um diálogo dele com os traficantes] "Eu não posso ouvir histórias de futuro. Se vocês falarem alguma coisa que vão fazer amanhã, eu vou embora. Eu não posso saber também o que está acontecendo hoje, não façam nada na minha frente. Vocês são criminosos e eu vou interferir e vou brigar com vocês porque se eu sei que vocês vão matar aquele moleque, eu vou avisar o moleque, é minha obrigação fazer isso e eu faço isso e vai ter problema entre a gente, então não fale”, mas eles ficavam putos comigo, eles falavam "Olha, a gente está confiando em você, tá te dizendo as coisas, você não quer ouvir, se vai confiar na gente", "Não é isso cara, mas é uma coisa complicada, vocês estão no crime e eu não estou no crime e eu sou contra gente que mata, contra gente que rouba, sou conta, então eu vou brigar com vocês. Agora, o que vocês fizeram ontem, eu quero saber tudo, e mais, eu quero saber as coisas que vocês não querem falar e eu vou descobrir,

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to avisando vocês, preparem-se. Querem aceitar, é isso, é o meu jeito. Você querem...não querem, to fora, vocês tem todo o direito de querer ou não" aí começavam a contar história e de repente "Ahh, semana que vem eu vou fazer tal coisa”, daí tinha que desligar, "Eu vou embora, semana que vem a gente retoma essa conversa". Eles não entendiam direito, mas depois começavam a entender e eu estava.... quando eu falava pra algum "Eu quero histórias do passado", o cara falava "Ahh, meu passado é uma merda, meu passado é um horror, nasci em família violenta comigo, meu pai é um alcoólatra..." e não queriam falar do passado então eu não falava mais que queria falar do passado, eu deixava a conversa rolar, fazia pouquíssimas perguntas e entrava na história dele. Quando eles começavam a contar eu ia alimentando, sem dizer "eu quero tal coisa" e como técnica isso funcionou super bem. E, de repente, o pessoal da quarta geração entrava na história e queria contar.. "Eiii", daí me chamavam de mano, me chamavam de francês, "Eu tenho uma história do passado interessante pra te contar" e eu não queria. Enfim, eu acabei me convencendo que poderia ser legal, até porque eles pediram muito e eu achei interessante, mas.o livro estava pronto, estava escrito. Eu retomei tudo do zero, apurando tudo de novo. Então o moleque que entrava na primeira apuração com 14 anos no livro, eu fui atrás da história de quando ele nasceu [trecho ininteligível] primeiro, segundo, terceiro... vendo o que era interessante pra eu contar. Então quando eu estou contando, no primeiro capítulo, o Juliano com 14 anos, o moleque que tava aparecendo originalmente no final do livro, estava nascendo, então eu tive acrescentar essa história, sempre evoluindo. E quando o livro chega ao fim, quando ele aparecia na versão 1, na verdade ele veio aparecendo, na versão final, desde o começo até assumir o poder. Que é a 4ª geração que está no poder hoje. Isso eu dei como exemplo de como a apuração vai se impondo. Cristiane – Não pode ter preguiça, né? Caco – Desse jeito como eu faço é impossível. Tem que ser meio doido pela apuração e gostar. Não estou dizendo que é assim que se faz livro-reportagem, quem sou eu pra dizer, estou dizendo como eu faço o meu, mas imagino que tenha outras técnicas eficazes, simples... Cristiane – Você enquadraria ele em alguma classificação [trecho ininteligível] O que eu queria saber é se você o enquadraria [referindo-me ao Abusado] em alguma classificação? Caco -Eu não sei.Talvez tenha, bem definida, mas eu não sei qual é. Eu comecei a falar romance-reportagem, nem sei se é, se existe isso, e acabaram reproduzindo, "romance-reportagem", nem sei se era. Eu acho que é parecido com esses autores que eu gosto muito. Cristiane – Caco, como você avalia a produção de livros-reportagem no Brasil? Você tem contato? Você lê.... Caco – Sim. De certa maneira sim..eu falei do Otávio Ribeiro... [trecho ininteligível] Cristiane - O que um livro-reportagem tem que ter? Caco – O livro-reportagem? Cristiane - O que eles têm que você gosta? Caco - Que eles mantêm a reportagem viva, contra a vontade dos jornais das revistas, que assassinaram a reportagem. Então o grande valor é esse. Então é a felicidade das editoras que estão aí, vendem pra caramba, entraram numa brecha importante e as pessoas gostam, as editoras hoje estão caçando autores de livro-reportagem, que vendem muito mais que os ficcionistas, e atribuo isso à necessidade que as pessoas têm de ler histórias com profundidade, com riqueza de detalhes, porque não há mais isso na grande imprensa. O que precisa ter, eu acho que é o compromisso com a verdade, é essencial isso, com a realidade, no caso dos que estão no Brasil, daí é outro esquema que fora...acho que tem que contar a história da maioria, não da minoria. Se você me pergunta o que eu gostaria de ver em um livro-reportagem, é contar aquilo que a imprensa não conta, porque a imprensa brasileira hoje não conta a história da maioria, conta a história da minoria. Parece que os jornalistas gostam de olhar para o próprio umbigo e a importância do mundo está no seu universo particular, no cotidiano, não no cotidiano dos brasileiros, como se estivessemos morando na Suíça. A Suíça é um país de renda muito bem distribuída, todo mundo, comparando com a gente, é de classe

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média alta. Se fossemos cidadãos suíços os jornalistas estariam contando a história do Brasil real, como não estamos na Suíça eles contam a história da minoria. O que eu acho que um livro-reportagem tem que ter? A história da maioria e não da minoria, então, a história daqueles que não tem acesso ao poder, não tem voz, não tem direito à cidadania, nada dos privilegiados, então eu acho que, se for hierarquizar os componentes que são necessários para a reportagem, sob a minha ótica, primeiro lugar eu acho que a história da maioria. E até do ponto de vista mercadológico acho que dá certo, as pessoas [trecho ininteligível] porque é um universo pouco freqüentado [trecho ininteligível] Cristiane – As últimas perguntas...Já é sabido que para se escrever bem é preciso ler muito, mas você acha que também tem que escrever? Tem que sentar ali [aponta para o computador] e mandar ver Caco - Eu, talvez por absoluta incompetência, eu preciso sentar, bater a cabeça. Não consigo escrever a primeira frase de pronto. Admiro os colegas que sentam e sai o texto assim, fluindo como o Norman Mailler faz, dizem que faz. Eu tenho colegas que vejo, colegas jornalistas também que são rápidos, velozes. Eu preciso ficar sofrendo que nem um maluco e repetindo, às vezes eu demoro três horas pra esquentar uma frase, de repente vai, eu escrevo duas horas o que eu não escrevi em dois dias. E não tem o menor constância, a menor regra. Eu estabeleço desafios porque eu sei da dificuldade, então eu estabeleço como desafio duas páginas por dia, durante 20 dias. Aí chegou no décimo dia eu vejo "20 dias, duas páginas, tinha que ter 40 e eu estou com sete, mas tudo bem, nos últimos dez eu escrevo quatro então porque ..", aí chega lá no 20º dia eu vejo que ao invés de 40 eu tenho 27, eu fico arrasado, um sentimento horrível. Mas daí eu começo a pensar assim: "Eu tinha zero quando eu estabeleci esse desafio e eu tenho hoje 27 páginas, que legal". Estabeleço outro desafio, vou recuperar aquelas 13 páginas, então nos próximos dias três páginas...fracasso de novo, e assim vou, mais dezoito, 27, 45, eu vou dessa maneira, impondo desafio pra ver se melhora o ritmo. Tem épocas realmente que ao invés de duas por dia eu faço três, cinco, seis. Eu esquentei, acho que peguei um ritmo que eu to curtindo, tem épocas que eu entro em crise e fico três dias numa página e não avança, épocas que no pesadelo, eu tenho muito pesadelo enquanto durmo, no pesadelo resolvo o capítulo, acordo e escrevo rapidinho... Cristiane - E a auto-crítica é importante?

Caco – Ah?

Cristiane – A auto-crítica é importante?

Caco – Pra mim é. Talvez eu deva considerar fortemente o seguinte: eu escrevo cansado, então eu escrevo um capítulo hoje, quando chega amanhã, no dia seguinte eu vejo que eu tava sonhando pensando que estava acordado, tem que escrever tudo de novo. Mas pelo menos ali eu já tinha um desenho e então eu escrevo bem rápido, depois eu volto a escrever ainda, porque um livro grande assim, três meses depois quando eu voltar no primeiro capítulo "Meu Deus, eu escrevi isso", então refaço o primeiro capítulo, refaço o segundo, ou um pedaço, acho que estava num ritmo legal, ou até a página quinze, ou da décima quinta à vigésima...

Cristiane – E você fica satisfeito com o seu trabalho?

Caco – Nunca. A Luciana Villas Boas, editora da Record, sempre fala: "eu tenho que te roubar". Agora eu sou muito rigoroso... também eu adoro ficar lendo. Eu li não sei quantas vezes o Abusado, porque demora pra ler, então cada vez que eu lia eu ia mudando, cortando, cortando...O processo de corte é importante, porque a gente escreve com muitas palavras, então dá pra reduzir. Escrever é um processo de corte...escrevi muito, corta, corta, corta, escrevi muito, corta, corta, corta.., pra deixar mais enxuto, mais direto, já que se está embuída de fazer uma não ficção. Cristiane – Caco, eu queria que você desse algumas dicas pra quem quer seguir essa área.Você poderia dar alguma?

Caco – Nenhuma! Sinceramente nenhuma, porque eu temo que o que dá certo, se é que dá certo pra mim, pode ser motivo de sofrimento pra você. Com toda sinceridade possível, eu temo muito, porque eu sei das minhas loucuras e funciona assim, se é que funciona, porque eu tenho essa dificuldade, mas se você tem facilidade de escrever rapidamente, se eu te der dica : "Não, você tem que persistir,

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escrever dez vezes a mesma frase", bobagem! Pra você pode ser que o texto final seja o primeiro, que você tenha essa facilidade. Já, "Durma bem e quando acorda é o melhor momento pra escrever", pra mim pode ser, mas pra você não, eu tenho que ser de madrugada. Enfim, você trabalha na televisão 12 horas por dia, pra escrever na 13ª hora é uma coisa. Eu não sei o que é um livro em um tempo ideal porque eu nunca fiz, talvez lá, quando eu tinha 28 anos de idade, hoje eu tenho 56, minha vida mudou, talvez o que funcionava bem com 28, não funciona agora. Eu precisei de Coca- Cola pra escrever o Rota, hoje eu não tomo Coca-Cola, aliás eu peguei uma gastrite terrível. Aliás, eu sou muito rigoroso também na alimentação. O grau de loucura, imagina, se fosse te dar dica, chega a ponto de fazer alimentação balanceada, com o rigor de macrobiótico que mastiga 40 vezes antes de engolir qualquer alimento.

Cristiane – E você consegue?

Caco - Quando estou fazendo livro sim, porque eu não posso ficar doente. A única, eu acho, medicina que te garante saúde é a macrobiótica. É o remédio, porque eu não uso remédio...alimentação correta. Da onde surgiu isso? Eu sou um imbecil, mas eu tenho esse cuidado pra ficar mais forte, pras idéias fluírem mais, eu preciso de arroz integral [fala dos alimentos que consome mas que não foi possível entender] Então cada doido sabe da sua loucura. Então, pra ser bem sincero, eu não acho que tem um caminho entre as pedras pra sugerir.

Cristiane – Por exemplo, algumas coisas como persistência... Caco – Sim Cristiane - ...rigor na apuração...

Caco – É, eu acabei já te falando aqui, né. A maneira ...se você acha que isso pode ser interessante, eu assino em baixo o que eu te falei, mas funciona pra mim. Será que precisa ter rigor assim pra se contar bem uma história? Ou pode contratar um grupo de apuradores que apuram pra você. Eu prefiro eu apurar e esse rigor ali...tem que ser doido que nem eu pra saber o que eu quero, o que eu acho importante. [Neste momento, como também aconteceu no encontro com Fernando Morais, a fita acabou e não colocamos outra por julgar que o objetivo já tinha sido atingido]

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ANEXO D

Entrevista com Edvaldo Pereira Lima

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ANEXO D – Entrevista com Edvaldo Pereira Lima

Edvaldo Pereira Lima me surpreendeu pela simpatia. Nos

encontramos em um restaurante da rua Augusta, na capital paulista, e durante o

almoço pudemos conversar sobre várias coisas, mas principalmente, é claro, sobre

livro-reportagem.

Depois do cafezinho, estive com ele por mais quase duas horas,

quando fiz a entrevista. Considero este o melhor dos materiais que possuo. O som

está muito limpo e a fala de Edvaldo extremamente clara, o que me ajudou na

análise do material.

Cristiane - Para que serve um livro-reportagem?

Edvaldo – A primeira função do livro-reportagem é ampliar o foco sobre um assunto e um tema, na medida em que os periódicos noticiam, o livro-reportagem busca, preferencialmente, aprofundar, contextualizar a humanizar. Normalmente, o noticiário traz uma informação, no seu nível, digamos, primário, factual do que houve, mas o que aconteceu, o que está nos bastidores, como o processo evoluiu para... como são as pessoas envolvidas na ação, isso tudo nem sempre o no periódico dá tempo pra colocar. Então o livro-reportagem amplia o olhar sobre a realidade e traz esse subsídio contextual que os periódicos não tem. Isso é um dos objetivos do livro-reportagem. A outra função, é que por ter uma certa liberdade operacional que os periódicos não têm, você pode abordar temas que nem foram atendidos pelos periódicos. Então o leitor, ao investir seu dinheiro, pagar dez, vinte, sessenta, quarenta reais, num livro-reportagem, terá em troca uma abordagem mais contextualizada de um tema já conhecido num certo nível, ou a abordagem inédita de um tema que nem foi considerado.

Cristiane - Qual é valor do livro-reportagem hoje em dia, como ele está sendo entendido hoje no meio jornalístico? Edvaldo – Eu acho que há um segmento do profissional de imprensa que sempre presa muito pelo livro-reportagem porque, na medida em que o profissional vai avançando sua carreira no jornalismo, encontra as limitações que existem na prática profissional dentro dos periódicos. Há muitas limitações de tempo, de ângulo de percepção da realidade, de pauta, de temas, uma série de restrições, então uma parte dos profissionais tem um desejo pessoal de produzir trabalhos de peso, que tenham consistência, que perdurem um pouco mais do que acontece com os jornais que no dia seguinte já virou papel de embrulho. Então, pra esses profissionais, há um prezar muito forte pelo livro- reportagem, porque eles sabem que ali há espaço pra se praticar um jornalismo diferenciado. A outra coisa é que o profissional sente no livro-reportagem o desafio de colocar o seu talento à prova. Então a partir de um certo tempo na carreira, o profissional percebe que os veículos geralmente utilizam uma parte muito pequena do potencial do que eles sentem que têm, e o livro-reportagem não, o livro-reportagem exige uma disposição de mergulho mais consistente na realidade, exige o domínio narrativo mais elaborado e exige uma disposição de querer enxergar o mundo com olhos mais amplos, então há uma motivação intrínseca no trabalho do livro-reportagem. Do ponto de vista do público, porque hoje no Brasil já há um público já definido ou cada vez maior pra livro-reportagem, porque uma parte da população brasileira que lê tem interesse em receber abordagens mais calibradas, mais bem resolvidas quanto a realidade e não encontra isso nos periódicos. Se acostumou [referindo-se ao público] aos poucos, a descobrir nos livro-reportagem tratamentos que não encontram em outro lugar, então esse papel também o livro-reportagem está desempenhando cada vez com maior clareza, no caso brasileiro especialmente no sudeste, especialmente nas grandes metrópoles. Eu não sei muito bem a realidade de Londrina, mas seguramente em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e provavelmente Curitiba já há um comportamento do

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público de procura de determinados tipos de produção cultural, entre essas produções o livro-reportagem, mesmo que o consumidor não conheça por esse nome, as vezes vai buscar na livraria o livro de não-ficção ou a biografia, porque no caso brasileiro a modalidade de livro-reportagem que tem uma presença editorial melhor definida é a biografia.

Cristiane - No Páginas Ampliadas, você sugere algumas etapas a serem cumpridas, a captação [o correto seria: a definição da pauta], a coleta de dados, depois a redação. Você como autor de livro-reportagem, como que você trabalha essas etapas?

Edvaldo – A primeira etapa é a idéia que vai se transformar no livro-reportagem. Então, quanto a idéia eu fico disponível muitas vezes para inspirações e intuições. De repente algo aparece e eu sinto que aquilo pode dar um bom tema e aí eu manifesto uma resposta à minha própria curiosidade em tentar explorar preliminarmente se aquilo pode realmente se transformar em um tema abordável em livro-reportagem.

Cristiane - E isso se dá como? Edvaldo – Se dá assim: eu não gosto de falar do que estou fazendo agora, mas digamos, como nasceu esse livro Ayrton Senna-guerreiro de aquário? Nasceu assim, num curso de pós-graduação que eu conduzia na USP, os alunos precisavam fazer um trabalho final e eu não sou uma pessoa que trabalha só teoria, embora eu teorize bastante, meu objetivo é equilibrar as duas coisas, a teoria e a prática, né. E acho que o excesso de teoria atrapalha, mas a prática sem teoria não leva a muita coisa. Você pode, quando você não tem teoria e um bom conhecimento de fundo, você pode repetir modelos, mas você não inova, então os meus alunos são estimulados a fazer um trabalho prático e naquela ocasião, o trabalho prático seria escrever um livro-reportagem coletivo, cada aluno escolheria uma sessão dentro de um tema único de fundo que era o seguinte: nós queríamos encontrar na sociedade brasileira daquela época, e eu estou falando do início nos anos 90, setores da atividade econômica onde houvesse profissionais trabalhando com foco de mundo diferenciado, um foco mais integral e sistêmico, mais holístico, não no sentido pejorativo místico, mas aquela perspectiva que hoje, por exemplo, é falada na administração de empresas, uma visão mais integral das coisas, e aí nós mapeamos cinco áreas do conhecimento e fomos entrar nelas. Umas das áreas seria o esporte e aí o caso que o aluno encarregado do tema descobriu, seria mostrar o trabalho pioneiro do Nuno Cobra, que é o preparador físico que já naquela época usava não só recursos de preparo físico dos atletas, mas também um trabalho pioneiro de preparo mental e o grande caso de sucesso do Nuno Cobra era o Ayrton Senna. Então eu autorizei que fosse feita essa matéria sobre esporte focando o caso do Nuno Cobra, e daí eu me interessei muito ao ler os textos e tal, me interessei muito pelo trabalho do Nuno e quis me aproximei dele. Ao mesmo tempo os meus alunos falaram de mim pro Nuno “pô, mas tem um cara na Eca , um professor de jornalismo com essa visão diferente” eu quero conhecer. Então houve uma simpatia mútua, nos conhecemos, ficamos amigos e logo depois ele me convidou pra ajudar a trabalhar num livro. Ele queria escrever um livro que seria contar o método dele, então eu respondi a isso. Aí esse processo e mais um fenômeno intuitivo que começou a ocorrer comigo num tempo anterior, geraram a idéia do livro que é a seguinte: eu comecei a sonhar com o Ayrton Senna, sem mais nem menos, e achei muito estranho porque eu não admirava o Ayrton Senna, não acompanhava a Fórmula 1, eu tinha sido fã da Fórmula 1 anos antes, na época do Emerson Fittipaldi, então eu posso considerar que o Émerson foi meu ídolo na Fórmula 1, não como jornalista, como fã de automobilismo. Na época do Senna essa fase já tinha passado, eu não ligava mais, e aí comecei a sonhar com Ayrton Senna, antes de conhecer o Nuno inclusive e comecei a achar meio esquisito, mas comecei a prestar atenção porque eu acho que a gente observar os processos intuitivos é muito importante pra você sentir qual é o tema que realmente vai chamar você para fazer um mergulho importante. Se você não tiver uma conexão pessoal com o tema não adianta, não funciona. Livro-reportagem durante um tempo é um casamento, você se envolve muito. Então, se não houver esse prazer pessoal, essa motivação pessoal, por mais que o tema externamente e socialmente seja relevante, não vai grudar com você, então tem de ter também o fator pessoal. Então esses sonhos com o Ayrton, depois ter conhecido o Nuno, e como eu sou uma pessoa estudiosa dessas coisas novas, inclusive trago pro jornalismo elementos desses conhecimentos todos, eu fiquei muito interessado, mesmo, e aí eu falei pô então agora ta na hora de escrever um livro sobre o Ayrton, porque há vários aspectos do Ayrton Senna que a mídia não fala, por exemplo, o treinamento mental que ele tinha a mídia não falava, uma vez ou outra que ele tentou explicar, a mídia, por ignorância ridicularizou o Ayrton, então o que ele fez? Ele calou a boca e só falava sobre esse tema com a imprensa estrangeira.

Um dia eu estava na Suécia...eu estou alongando, mas é pra lhe dar o contexto...

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Cristiane – Não, por favor, continue...

Edvaldo – Um dia eu estava na Suécia pra fazer um trabalho pra minha revista... pra revista americana, aí quando pego o avião de volta pra Londres, abro a revista de bordo da empresa aérea que eu estava voando, uma empresa aérea da Suécia, ASAS, daí na revista de bordo tem uma grande matéria com o Ayrton Senna. O que ta falando? Contando tudo isso pro repórter de fora, porque? Porque ele sabia que os repórteres de determinados veículos europeus o respeitavam. No Brasil, porque a imprensa não entendia isso, o mínimo que ele merecia, é que a imprensa ficar neutra, não, mas muita gente fez piadinha do Ayrton Senna. Ele ficou muito chateado e calou a boca. Então eu disse: "olha esse é um assunto que não está explorado" e aí entra o Livro-reportagem. Porque, qual é o primeiro objetivo do livro-reportagem? É ampliar um conhecimento e explorar informações que não estão esclarecidas. Que às vezes o público até tem uma certa noção, mas ela não está compreendida, na medida em que o principal objetivo do livro-reportagem deve ser lançar luzes de compreensão sobre a realidade. O livro-reportagem em princípio, não existe para simplesmente denunciar, ou investigar, ou contar abobrinhas, ele existe como esforço de compreensão de um certo tema. Então, da idéia, da intuição e do que eu soube através do Nuno Cobra, começou a nascer já um esboço de um livro-reportagem sobre o Ayrton Senna e essa questão do que ele é em termos de um sujeito pioneiro em vários campos. Daí eu falei pro Nuno, que eu não conhecia o Ayrton, não tinha acesso a ele, daí eu falei pro Nuno: "olha, você ta querendo fazer um livro, eu to querendo fazer um livro sobre o Ayrton e tal", daí o Nuno gostou da idéia e falou: "quem sabe a gente faz uma coisa conjunta, você faz primeiro o meu livro, depois eu mesmo falo com o Ayrton pra falar, pra você fazer o dele, ou nós fazermos nós dois, ou um do Senna", uma coisa assim, com a seguinte estrutura: o primeiro seria o Nuno contando como era o método dele. Como era, como ele trabalhou, como foi desenvolvido. E o segundo era contando o caso de maior sucesso, o próprio Ayrton dizendo como ele usava aquele método. Então a idéia foi ficando madura, não é?! Daí não avancei porque comecei a ajudar o Nuno com o livro dele durante um certo tempo. Depois não deu certo, o projeto parou, não caminhou, por n fatores e a coisa ficou um pouco estancada, daí o Ayrton Senna morre. Quando o Ayrton Senna morre, eu pensei: "bom, aquilo que eu tava querendo fazer não pode ficar de lado, as pessoas não podem ficar sem saber disso. As pessoas tem que tem um conhecimento do que era o Ayrton Senna nesse aspecto também e o que está ligado a isso tudo", daí então eu retomei o projeto que tinha sido esboçado antes com um foco diferente, incluindo coisas do trabalho anterior e obviamente um ângulo diferente que era o impacto da morte dele, porque o esboço do primeiro livro era essa coisa de mostrar esse lado do Ayrton Senna, de onde vem isso, que visão de mundo está ali atrás e quais são as coisas que estão acontecendo nas ilhas de excelência da ciência transformando a nossa perspectiva de compreensão da realidade.

Com a morte dele esse objetivo permanece, mas entra um outro fator diferente que a morte...o impacto que aquilo causou. O impacto foi nacional e aqui em SP a coisa foi absurda, porque pessoas de diferentes extratos sociais foram impactadas pela morte do Ayrton de um modo inesperado. Algumas pessoas, mais apressadamente, dizem que foi um fenômeno na mídia. Pelo contrário, a mídia foi surpreendida com areação popular. Por exemplo, o dia que chega o corpo do Ayrton Senna ao aeroporto de Guarulhos ele vai ser transportado pela assembléia legislativa, ao longo da rodovia que vem do aeroporto, as pessoas se uniam, formavam correntes e davam as mãos nas ruas. Não foi a mídia que fez aquilo, pelo contrário, a mídia ficou surpreendida com o volume da reação popular e a espontaneidade genuína da reação. Crianças e adolescentes nas escolas, de repente, pediam pra parar a aula e ir rezar na capela da escola, quer dizer, não foi professor que instigou, alunos adolescentes pediam isso, quer dizer, então há algo muito fora do habitual. Então o livro incluiu esse toque na questão da morte e do impacto, então já tava esboçada a idéia, já tava esboçado o propósito, porque todo livro-reportagem tem de ter um foco, um propósito, o que ele vai fazer com aquilo, e um tema ou conjunto de temas subjacentes. Então o foco era o Ayrton Senna como um ídolo do esporte diferente, um ídolo que transcendeu o esporte, porque ele passou a ser um ídolo de pessoas que não tinham nada a ver com o automobilismo, por exemplo, né, e passou a ser também um exemplo e um modelo de perfeição, de você sobrepujar obstáculos, ter uma meta e ser determinado, quer dizer, ele passou a ser essa referência, né, e um cara que não teve vergonha de ser brasileiro.

Numa fase que o brasileiro tinha muita vergonha, eu próprio, numa fase, no final dos anos 80, que eu estava tão desgostoso com o Brasil, que eu procurei morar fora, como eu já tinha morado antes, mas dessas vez de uma outra maneira, eu fui ao Texas e concorri a uma vaga pra dar aula no programa de jornalismo deles. Havia uma vaga, eu tirei o segundo lugar, quer dizer, por pouco eu não

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consigo e teria ido embora, porque eu tava muito triste com o Brasil mesmo. Era uma época em que apareceram as primeiras grandes denúncias de corrupção, aquele problema todo o Collor, do PC Farias... o brasileiro tinha uma fama no exterior péssima. Você chegava lá fora, nos anos 80, o brasileiro era tido como malandro, no mal sentido, enrolão, não cumpre a palavra, então era uma fase de muito baixo astral e nessa fase o Ayrton Senna levanta a bandeira brasileira, ele não tinha a obrigação de fazer isso, então se criou uma empatia dele com a população muito grande, por esse lado também, daí o livro iria tentar compreender esse fenômeno. O 1º passo depois da morte dele foi procurar a família, eu queria ouvir a família. A família pediu um tempo, as pessoas disseram, "olha, e muito cedo, a gente ta muito chocado ainda, aguarde um pouco". Eu respeitei, deixei o livro parado, daí a uns meses voltei, daí a família disse, "olha ainda não estamos prontos". E eu comigo imaginei, "olha meu livro ele tem um timing também, ele tem um tempo de espera mas tem um limite", então quando a família realmente não se manifestou a disposição para dar entrevistas, eu resolvi escrever, sem a família, né, e escrevi. Ele saiu em 95, um ano depois da morte do Ayrton. Daí, para minha surpresa, a mãe do Ayrton fica sabendo, ela, por essas sincronias da vida, eu dei várias entrevistas promocionais do livro e uma delas foi num programa da TV cultura de SP, que na ocasião tinha uma grande audiência, chamado Opinião Nacional. Um programa de entrevistas e de jornalismo ao vivo. Então, ficou programado com produção que eu daria uma entrevista de 5 minutos, como o programa na ocasião permitia a participação do público, as pessoas ligavam, elas começaram a ligar, muito interessadas pelo tema, viram que era um livro diferente do Ayrton Senna e fazer perguntas e então a produção foi me mantendo no ar e foram 25 minutos ininterruptos. Um bloco extenso, inteiro, sobre o livro e isso foi muito bonito... E aí a mãe do Ayrton estava navegando pela televisão, querendo ver se tinha algum programa interessante. De repente, por casualidade, entre aspas, ela passa na tv cultura e está começando a minha entrevista. Daí ela ficou muito interessada, porque viu que era um tratamento muito diferente, né porque já tinham saído nessa ocasião vários livros do Ayrton, eram livros convencionais, da carreira dele, tal etc. Então ela pediu pra comprarem o livro e depois me chamou pra conversar com ela, e aí manifestou que gostou muito, confirmou algumas coisas que eu coloquei no livro, algumas informações eu tinha dados, outras não eu tinha e eu usei seguir a minha intuição, então eu digo num capítulo, por exemplo, que o Ayrton Senna já estava numa crise existencial mais de um ano antes da morte. Estava num processo interior de crise existencial muito forte, então por vário sinais, e a questão dos sonhos que eu dou muita importância também, eu cheguei não a afirmar isso no livro, a dizer, " olha, parece bem provável que estava acontecendo", e a mãe dele confirmou, que realmente ele estava num momento interno muito delicado, né, e que ele gostaria de ter conversado muito comigo sobre esse assunto. É uma pena que eu não cheguei a conhecê-lo.

Então aí esse exemplo acho que ilustra pra você um processo de nascimento de um livro, de como a coisa vem da idéia para um projeto de execução, para a captação. A minha captação foi entrevistando, como não pude entrevistar a família, entrevistando o Nuno Cobra, que era uma fonte decisiva, entrevistando muitas pessoas sobre como o impacto da morte do Ayrton Senna aconteceu com elas, escolhendo pessoas de diferentes extratos sociais, de diferentes padrões culturais, então médicos, arquitetos, bancários, e ouvindo adolescentes, porque o impacto sobre a criança e o adolescente foi muito grande, então eu queria ouvir adolescentes. Para ouvir adolescentes, eu pedi a ajuda de uma amiga, a Sílvia Rocha que na época e talvez hoje ainda eu não tenho muito jeito com criança eu não sei lidar muito bem, não tenho filhos, embora a minha mulher tenha netos, que são do filho dela do primeiro casamento, e eu lido bem com eles, mas genericamente assim, eu sou um pouco sem jeito com crianças, então eu pedi pra minha amiga fazer as entrevistas com os adolescentes e estabeleci uma pauta e ela fez isso. Então, surgiu de entrevistas, de observações, de levantamento bibliográfico, eu fiz um grande levantamento sobre o que a mídia tinha falado da morte do Ayrton Senna, alguns livros, porque a proposta do meu trabalho era apresentar alguns temas novos pra muita gente, e sustentar aquilo ns informações de fundo, por exemplo, a questão do treinamento mental, tinha como base a teoria dos hemisférios cerebrais, que foi uma teoria que deu um prêmio Nobel de medicina ao seu autor, então eu teria de explicar isso um pouco, então eu fui pesquisar bibliograficamente também, algumas coisas eu já sabia, já conhecia, já dominava, outros eu fui atrás. Então essa foi a etapa de captação depois que o plano estava pronto, e a última foi escrever.

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Cristiane - E como você faz o registro, físico mesmo eu digo. É com gravador, é na mão, como é que é? E até onde você vai na busca pelas informações. Quando você fala: "aqui ta bom, eu acho que dá a partir daqui"? Edvaldo - Ta. Primeiro, o que eu levanto de informação? Eu tenho de ter um plano. Na minha cabeça o propósito do livro tem de estar muito claro, qual o objetivo do livro, que aspectos ele vai abordar? Em função disso eu preparo um roteiro de captação que busque atender a aqueles itens, naqueles sub-temas, e aí tem várias formas de processamento da captação. Uma delas é a entrevista. Na entrevista eu uso gravador. Eu prefiro sempre usar o gravador, eu prefiro usar o gravador obviamente neutralizando ao máximo a presença do equipamento, para não provocar inibição nas pessoas, e tento fazer com que a pessoa se sinta a vontade pela a conversa. Esse é um processo. Outro recurso que eu uso hoje em dia, não usava na época do Ayrton porque eu acrescentei ao meu método depois, é fazer um mapa mental. Mapa mental é um registro das observações que eu estou fazendo durante a entrevista, então isso me facilita, porque? O gravador está cuidando de gravar a fala e eu estou observando outros sinais, o olhar, o gesto, o comportamento psicológico, emocional, se a pessoa fala alguma coisa com emoção na voz, se ela fala empostadamente, segurando a emoção, não é, o que o corpo dela está me transmitindo, o ambiente em torno eu observo. Então isso me facilita muito porque se eu ficasse tentando só gravar o que a pessoa diz, eu acho que me diminuiria a capacidade de observar os outros sinais que são importantes. Então uso o mapa mental como forma de registro também dessas informações e de síntese do conteúdo que está sendo falado também. Isso me facilita porque eu anoto cada item, cada tema que foi falado, não o conteúdo, mas o tema, e anoto em que ponto isto está no gravador, na hora de trabalhar o texto mais adiante eu não preciso transcrever tudo, eu já sei onde é que está cada conteúdo.

Então um processo de captação é a entrevista e eu trabalho desse modo. Nessa entrevista eu tenho uma pauta, mas obviamente eu procuro mais conversar do que perguntar, pra que a coisa flua e tenho flexibilidade, se a conversa sai do tema central, mas parece importante, eu deixo rolar um pouco e depois eu volto, porque muitas vezes na informação paralela é que surgem coisas importantes, então esse é um instrumento de captação. Um outro instrumento é a observação. Dependendo do tipo de matéria, do tipo de livro, eu passo um certo momento só observando os personagens em seus ambientes, sem entrevistar, sem perguntar nada, sem conversar, às vezes até de maneira anônima, não escondido da fonte, mas assim, se a fonte trabalha num determinado local e eu preciso mostrar como é aquele local, há momentos em que eu entrevisto e há momentos em que eu fico de maneira camuflada, não escondida, porque eu digo pra fonte: "Olha...", eu peço a concordância da fonte. "eu vou observar você trabalhar, por exemplo, só que não vou te perguntar nada e não vou interferir". Então eu vou e fico num canto em que eu tenha um ângulo de visão de tudo e fico meio neutro até que as pessoas me esqueçam. Então a observação é a outra maneira de fazer. O terceiro modo de captar mais convencional é a documentação bibliográfica, eu pesquiso muito, vou atrás de conhecimento mais profundo se é uma coisa que eu não sei, vou atrás de dados factuais, estatísticos, informações bem concretas. Se é um tema mais sofisticado vou atrás de teorias, não é, se for necessário eu posso entrevistar especialistas pra esclarecer um certo ponto ou testemunhas de uma situação, realmente dentro do objetivo de pauta que eu tenho. Isso completa a captação. Cristiane – E até onde vai? Edvaldo – Até onde vai...até eu sentir que é necessário. Geralmente, eu prefiro captar muito e ter o que jogar fora do que ficar faltando. Então eu sou muito exaustivo na captação, não é?! Apesar de eu ter um foco, eu procuro abarcar muita coisa porque na hora de escrever a gente nunca sabe se de repente um ângulo novo apareceu, que você não tinha percebido e pode ser rico. E daí se você não captou antes, aquilo fica pobre. Então eu prefiro exagerar na captação do que faltar coisas. E captar o que? De tudo que você possa imaginar, de detalhes, até como está vestido o personagem, que tipo de roupa, a pessoa usa brinco, usa anel, usa uns óculos de tal tipo, né, observar e captar todos os detalhes que me chamarem a atenção, até coisas intelectualmente muito relevantes, determinados estudos sobre o assunto, pesquisas e tal, então eu tento esgotar e eu aprender aquilo. Enquanto eu não sinto que mais ou menos eu estou compreendendo bem aquilo, eu não me sento pra escrever. Aquilo tem que se transformar numa natureza minha, então, por exemplo, Fórmula 1. Eu tinha conhecido Fórmula 1 como fã e quando chegou o Ayrton eu já tinha esquecido muita coisa, já não tava mais ligado, então havia coisas novas na época do Ayrton que não existiam na época do Emerson Fittipaldi , e aí o que eu fiz? Eu fui tentar entender um pouco mais, como aconteciam os

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treinos de Fórmula 1 na época do Ayrton, a questão da telemetria que chegou aos carros, na época do Emerson não tinha, o que era aquilo, então eu procurei compreender perfeitamente bem até aquilo se transforma algo natural sobre ...um assunto sobre o qual eu pudesse falar. Então quando eu cheguei nesse ponto, eu to pronto pra escrever. Mas enquanto não chega, ainda falta eu aprender um pouco mais sobre o assunto base. Cristiane – E quando você chega num ponto em que talvez você descobre, na hora que você vai trabalhar as informações, "ahh, esse ponto eu poderia ter trabalhado mais"? Como você faz? Você volta pra apuração ou você o descarta? Edvaldo – Normalmente eu volto, a não ser que seja uma coisa que eu deixei de abordar, mas é uma coisa super secundária e não precisa de maior abordagem. Mas se eu sentir que para o foco provável da matéria, aquilo é importante eu volto atrás. Com os entrevistados, por exemplo, eu sempre deixo a abertura pra eventualmente voltar e com as observações também. Então eu nunca fecho um assunto com a pessoa. Eu digo: "olha, parece que acabou, mas se precisar, eu posso voltar a contatar e tal"? A mesma coisa a documentação que eu leio, que eu acho que é suficiente, que ta feito, mas num outro momento, se eu percebo que faltou alguma coisa eu vou atrás pra completar aquilo, desprezo quando realmente me parece que não tem muita necessidade. Cristiane – É ...uma coisa que eu vou perguntar um pouquinho mais adiante, sobre o jornalismo holístico que você propõe....é... nessa forma de captação também trabalha com a consciência da pessoa, como você mesmo sugere, o fluxo de consciência, os sentimentos da pessoa. Como que você aborda isso? Edvaldo – Dependendo do tipo de matéria, dependendo do tipo de assunto e dependendo do foco da matéria. Se a matéria fosse um perfil, uma história de vida, eu entraria nesse aspecto, porque não me interessa só o ser humano externo, o papel social que a pessoa desempenha, as ações que ela tem no mundo. Me interessa o mundo interno dela, os valores, as percepções de mundo, as motivações interiores, então eu procuro também explorar isso. De que maneira? A primeira maneira é amaneira mais simples, mais clássica, que é perguntando. A gente no jornalismo está muito acostumado a fazer perguntas do mundo externo das pessoas, né, onde ela trabalha, porque ela fez isso etc. Mas o que ela pensa, quais são os sonhos escondidos dela, quais são sos desejos que ela almeja, quais são os valores que ela cultiva, que pra ela são muito importantes? A gente não pergunta. Eu pergunto. Dependendo da matéria eu pergunto e entro nesse assunto, observo, levanto processos internos da pessoa, às vezes pedindo pra ter acessos a documentos dela, documentos no sentido de informação não no sentido jurídico, por exemplo, cartas, diários, muita gente tem, pensamentos... Às vezes a pessoa não tem diário, nem carta, mas um dia ela escreveu um pensamento de um momento dela importante. Então eu peço pra ter acesso. No Canadá quando eu fiz o pós-doutorado, parte do meu trabalho foi escrever as histórias de vida de dois professores de lá, então eu pedi pra ter acesso a tudo o que eles sentissem que não fosse uma invasão. Mostrar cartas... um dos professores tinha perdido a mulher, a mulher tinha falecido, e ele não tinha mais usado aliança, porque ele ficou tão desgostoso, foi uma grande companheira dele, eles ficaram juntos muitos anos e a morte dela foi um grande impacto pra ele, então ele parou de usar aliança. Eu pedi pra ver a aliança que ele guardava na casa dele e não sei o que. Pedi pra ir a casa dele, ficar com ele na casa dele umas horas, um homem de meia idade, se tornando velho, sozinho, não quis mais ficar com ninguém. Teve oportunidades, enfim. Aí quis ver o cotidiano dele. Como ele come? Ele não vai pra rua, não come em restaurante, ele come em casa, como faz comida, como ele se cuida? E mostrar os objetos que ele tinha dela, e mostrar como era o mundo dele organizado daquela forma. Os filhos criados, moravam em outra cidade etc. Então eu vou levantando essas coisas que me trazem acesso ao mundo interior das pessoas, através da entrevista, da observação de objetos, e aí convidar a pessoa pra falar, esse caso da morte, interessante, eu fiz todo o trabalho e é óbvio ele tinha manifestado que a morte da mulher foi uma coisa muito marcante, muito importante, só que eu fiz a pauta e não forcei ele e a falar do assunto. Ele também não falou espontaneamente e eu deixei. Aí quando eu fiz a última entrevista, a entrevista foi feita no gabinete de trabalho dele, na universidade de Toronto, esse professor se chama Edmund O´Suliver, é um professor de educação, quando eu fiz a última entrevista, acabou a entrevista nós ficamos em silêncio os dois, uns dois minutos, terminou de uma maneira meio tocante, aí, eu muito suavemente agradeci a ele, falei muito obrigada e tal, e senti que tinha alguma coisa suspensa no ar mas fiquei na minha. Agradeci e fiquei em silêncio e daí ele começou muito timidamente, ele disse "olha, sabe, essa coisa da minha mulher, quem sabe... uma outra hora eu gostaria de falar" obviamente eu percebi que essa uma outra hora seria naquele momento, faltava um

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reforço. Aí eu disse "ótimo, tudo bem, mas se você quiser, podemos falar agora" e era o momento certo aí ele falou "OK, tudo bem", meio assim na dúvida mas consentiu, liguei o gravador, não perguntei nada e ele começou a contar, porque a mulher dele, que era o grande amor da vida dele, eles tinham estado juntos muito tempo, era uma grande companheira, com quem ele compartilhava as intimidades intelectuais dele também e tal, ela ficou doente, foi adoecendo e morreu nos braços dele, então foi um negócio extremamente forte, então ele começou a contar a morte dela em si. O ato dela morrer nos braços dele e com a presença de um amigo em comum que eles tinham, que é um intelectual, um filósofo americano e é sacerdote também. Foi quem tinha feito o casamento deles e os dois em comum, a mulher, obviamente sabendo que vai morrer, os dois em comum pediram que ele viesse pra dar e extrema unção pra ela. Você imagine a intensidade emocional disso. Então não perguntei nada, deixei ele falando no ritmo que ele sentia que devia, com algumas pausas, e ele foi ficando emocionado, mas falou tudo o que tinha que falar. Terminou, os dois choraram, a fonte e o entrevistador. Fazer o quê? Somos humanos. Então isso surgiu numa entrevista desse tipo, os pensamentos dele. Não foi só ele contar o que houve, mas o que ele sentiu, o que ele pensou, como ele ficou, são formas de interação humana que nascem de um primeiro critério que você tem que tem ao fazer um livro-reportagem envolvendo pessoas. O primeiro critério é um auto respeito pelo ser humano, uma consideração muito grande e uma empatia muito forte, você buscar se colocar na pele do outro, então eu pessoalmente não escrevo nada contra a vontade da pessoa, não digo o conteúdo, mas digo o seguinte, se a pessoa não topou falar, eu não faço contra a vontade dela. Eu posso buscar convencê-la ou deixar sutilmente que a oportunidade apareça, mas forçar, não posso. Se ele, por exemplo, não tivesse falado sobre a morte da mulher mais em detalhe e não quisesse falar, eu não forçaria e o texto sairia assim mesmo, entendeu? Isso eu respeito. Acima de tudo o respeito humano. Depois o interesse jornalístico, então a primeira coisa é ter essa empatia, esse respeito e essa vontade de conhecer o ser humano, porque na medida que você conhece o semelhante você está conhecendo a si mesmo. Todos nós somos parte da mesma humanidade, da mesma espécie, então descobrir o outro, lança luzes sobre você e sobre nós como raça, como um povo, como espécie como um todo. Então eu acho que isso responde essa questão sua. Cristiane – Agora a terceira etapa, quando você vai escrever. Edvaldo – Redação. Preferencialmente... eu sou uma pessoa que demora a escrever, demora a começar a escrever, porque eu vou juntando todas essas coisas, né. Junto muita informação, junto muita observação, dou muita importância às minhas intuições, e aos meus sonhos, às vezes eu começo a sonhar com temas que eu estou trabalhando, com pessoas que eu estou entrevistando, com a observação que eu fiz ontem, então eu dou muito espaço pra isso. Então há um momento em que a coisa fica pronta pra ser escrita e enquanto esse momento não chega, eu não avanço muito. Enquanto eu não sentir que eu dominei o assunto, principalmente se é um assunto que eu não conhecia, que eu realmente não compreendi as imbricações que existem no assunto, eu não sento pra escrever. Aí quando eu sento, hoje em dia eu não tenho muita oportunidade de fazer isso pelos n compromissos profissionais, até esse caso do Ayrton Senna, pra ficar num exemplo que já foi citado, eu preferia e hoje prefiro quando é possível, escrever coisas longas assim: eu paro e mergulho intensamente e escrevo. Se possível, eu fico mergulhado no assunto e escrevendo, não faço mais nada na vida. Então esse caso do livro do Ayrton Senna, quando foi o momento de escrever, eu comecei a escrever, parei todos os outros compromissos que eu pudesse, profissionais e pessoais, fiquei num apartamento sozinho, a minha companheira num outro apartamento. Eu tinha um apartamento meu e ela tinha o dela e o meu era o espaço de escrever, onde eu me isolava pra escrever, eu não gosto de ter gente em volta na hora de escrever coisas longas, e não gosto de ter barulho. Tem gente que escreve com música, Garcia Márquez escreve ouvindo música, se eu colocar música eu me atrapalho, então eu não quero ver nada, não quero ouvir nada, não quero gente a menos de 10 metros de mim, não quero nada, quero ficar isolado... então, presente com o que? Com as minhas fitas de gravação, com as minhas anotações, com os meus materiais de pesquisa, com meu roteiro do livro. Daí sentei e começava a escrever tantas horas quanto eu agüentasse por dia. Inclusive não parava pra almoçar na hora certa. Tinha uma fruta no apartamento...porque eu não cozinho, e nesse apartamento não tinha nem empregada, porque eu não gostava que fosse ninguém. Nem a minha mulher. Ia uma vez ou outra, mas eu não gostava que ela tivesse ficado quando eu tava trabalhando. Então o que acontecia? Quando dava fome, comia uma maça, uma fruta, qualquer coisa e continuava, só quando realmente apertava é que eu saía ia comer fora num restaurante. Não ia em casa também pra não quebrar a concentração. Não via televisão, não lia jornal, me isolava do mundo. E então, pra você ter idéia, tinha dia que eu saía pra almoçar, pra almoçar, cinco horas da tarde, felizmente em SP tem restaurante aberto qualquer hora do dia ou da noite, né? Isso foi 20 dias, eu

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levei vinte dias pra escrever o livro. Intensamente. Na hora que o cansaço realmente era muito grande eu parava e dormia, qualquer hora, podia ser de manhã, de tarde ou de noite, na hora que desse o cansaço. Às vezes virava a noite, aí no outro dia parava lá pelas 7h, dormia até meio dia e continuava. Então uma coisa muito exaustiva. É uma coisa que eu chamo, é uma criação por impulsão. Quanto chegou no finalzinho do livro, eu escrevi a última linha do livro, mais ou menos às 5h da manhã. Eu fechei a última linha, salvei o programa, fechei o computador e fui pro hospital, porque eu tinha passado esses 20 dias de maneira tão maluca, fora do normal, não respeitando meus próprios ciclos, que por esse aspecto físico e por um aspecto emocional, porque o livro do Ayrton é uma coisa que eu trabalhei não só por interesse intelectual, eu também fui muito impactado pela coisa, tinha minha emoção na história, né. Então eu fui gerando uma prisão de ventre, porque é obvio, não comia na hora certa, não atendia às minhas necessidades direito, o organismo foi ficando meio truncado, então eu precisei ir pro hospital pra fazer uma lavagem intestinal, porque realmente eu atrapalhei meu organismo totalmente, mas assim que eu escrevo. Aí eu fui pro hospital, vi o hospital que tinha mais próximo do meu apartamento dentro do meu convênio que pudesse me atender, por sorte tinha um a três quadras, me internei, de lá liguei pra minha companheira, falei olha"to no hospital e acabei de escrever o livro", entendeu? Então, essa é minha maneira preferencial de escrever. O Páginas Ampliadas, que não é um livro-reportagem mas é uma tese, foi escrito mais ou menos assim, não dessa maneira tão caótica, quase insana, mas também foi assim, num fluxo intenso de um breve período. Eu levei um grande tempo pesquisando, estudando, entendendo, na hora que compreendi, foi assim. A dissertação de mestrado, que deu origem a outro livro, não publicado no Brasil, mas publicado no México, foi dessa maneira, eu sentei pra escrever e em um mês e meio estava tudo pronto. Eu prefiro assim. Hoje em dia, como eu tenho n compromissos e não dá pra ficar 10 dias afastado do mundo, eu tento fazer da melhor maneira possível desse jeito, mas estou tentando implementar uma coisa que não é muito o meu jeito, que é a disciplina do escrever um pouco todo dia. Eu custo um pouco pra entrar psicologicamente no tema, então eu tenho uma facilidade muito grande pra me distrair e pra me dispersar, então eu prefiro mergulhar, e daí como eu demoro um pouco pra... me demanda muita energia entrar no tema, quando eu entro, eu não quero também sair dele enquanto não esgotar, por isso que eu evito fazer de outro modo. Porém, por causa dos compromissos sociais, familiares e profissionais que são muito maiores que naquela época, eu estou tentando aprender a escrever de maneira mais balanceada, então um livro que eu escrevi recentemente, um livro-reportagem que está nas editoras, ele já foi um pouco mais assim, ele teve ainda aquela intensidade de mergulho minha, mas a produção foi um pouco mais disciplinada. Cristiane - Você falou em roteiro. Esse roteiro você estabelece antes...você terminou a pesquisa e daí você estabelece o roteiro? E eu quero saber se você segue esse roteiro ou se ele tem a liberdade de ser modificado... Edvaldo – Eu monto um roteiro em que eu imagino assim, eu vislumbro, a palavra não é imaginar, eu vislumbro o seguinte: qual é o tema central do meu trabalho? Quais são os sub-temas que esse tema vai trabalhar? Em se tratando de um livro-reportagem, eu estruturo os capítulos, um esboço dos capítulos, onde vai entrar tal informação, tal sub tema, como eu vou passar desse sub tema pra o outro, qual é o melhor que vem a seguir? Estruturo e coloco três pontos chave na estrutura do livro. Assim como o edifício tem de ter alicerces, o livro também, então os pontos chave são: um sub-tema e uma situação forte pra começar, um sub-tema muito forte novo, diferente do primeiro no meio, e um no final, então eu estruturo os capítulos a partir desses três alicerces, então eu reservo esses três sub temas pra posições estratégicas dentro do livro. E começo, mas naturalmente, no processo de escrever, pode ser que algo mude, pode ser que a estrutura que eu pensei não é a coisa adequada, pode ser que surja uma coisa nova, pode ser que eu tenha uma outra idéia, então eu vou me adaptando, normalmente sem fugir em demasia ao roteiro, porque não há necessidade, mas em algum caso em que realmente fuja muito, eu sinto o que é mais forte. Normalmente aquilo que apareceu espontaneamente, intuitivamente é o mais forte. Aí eu vou atrás. No entanto, na maioria da minha produção, noventa por cento, mesmo a tese que escrevi e tudo mais, não há necessidade de se fugir em demasia do roteiro. O que acontece é o seguinte... são acréscimos, mas encaixáveis dentro do sub tema, sem precisar quebrar a estrutura, e idéias novas, mas pra iluminar o que eu vou falar e não terminar de maneira abrupta e fazer as passagens adequadamente, porque se não o leitor perde o interesse, dificulta a vida do leitor, né. Cristiane – Edvaldo, no livro têm algumas classificações, são treze que você sugeriu. Mudou alguma coisa nesses dois anos que você acrescentaria ou...Como é que você avalia isso e em qual está encaixado o Ayrton Senna [Guerreiro de Aquário]

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Edvaldo – O Ayrton Senna ta encaixado numa categoria de livro-reportagem que na época do Páginas Ampliadas não tinha precisamente, que é o que eu chamo de livro-reportagem ensaio pessoal. E o que é isso? O ensaio é um gênero da literatura tradicional, só que o jornalismo literário começou a desenvolver um modo seu de fazer ensaio pessoal. E o jornalismo literário tem algumas características chave, por exemplo, o autor se coloca na matéria, as suas emoções, seus pensamentos, suas reflexões podem aparecer na matéria. Às vezes o autor é personagem também da própria matéria. Há no jornalismo literário uma abertura muito grande para a humanização. Você não fala de um tema só por números, e as pessoas nas matérias de jornalismo literário não são só fontes, as pessoas são gente, então eu tenho de detalhar muito as pessoas, porque é a busca da compreensão humana do tema, seja qual for. Desde um tema de política até um tema árido de ciência, quer dizer, qualquer coisa no jornalismo literário tem de ter a questão da humanização. Então, os livros-reportagem de melhor qualidade e principalmente aqueles inspirados pelos jornalismo literário tem essas características e uma das variantes que apareceu no livro-reportagem que eu já tinha apontado naquela ocasião, é o livro-reportagem ensaio aproveitando esse texto que é o ensaio. O ensaio é um gênero onde o autor está procurando filosofar um pouco, não é, refletir um pouco sobre um assunto. Esse é o ensaio clássico, que existe na literatura, na história, em todas as ciências humanas, na filosofia, assim por diante. Só que no jornalismo literário, eles começaram a ver que o ensaio poderia ser feito de uma maneira um pouco diferente que não é só essa coisa racional da filosofia. Como o jornalismo literário exige a humanização, a humanização que aparece é do próprio autor. Então o autor colocar seus pensamentos também, suas emoções, sua experiência de ter vivido aquele tema. Então isso foi evoluindo e de 2001 pra cá, por causa de 11 de setembro, nos Estados Unidos, surgiu o interesse muito grande pra que o jornalismo fale das pessoas comuns, não fale só de celebridades, e o leitor não quer só uma abordagem intelectual das pessoas, quer também a emoção. Aí os jornalistas literários que praticavam o ensaio pessoal, resolveram enriquecer o ensaio pessoal produzindo um texto que tem as reflexões do autor, mas também tem muita narrativa. Você conta uma cena, você conta episódios...episódios que envolvam o autor ou não. Então eu já tinha dito que uma possibilidade ao livro-reportagem ensaio... mas agora eu acho que já é possível te falar de uma variante dessa que é o livro-reportagem ensaio pessoal, porque nem todo livro-reportagem- ensaio ele é pessoal, mas quem pratica, quem já conhece isso, já faz o livro-reportagem ensaio, então mesmo sem eu saber disso naquela ocasião, intuitivamente, o Ayrton Senna- Guerreiro de Aquário se encaixa perfeitamente como livro-reportagem ensaio pessoal, ele tem todas as características de ensaio pessoal que hoje se pratica nos EUA, no jornalismo literário, então na ocasião, eu achava que ele era apenas um livro-reportagem ensaio, mas hoje não, ele é um livro- reportagem ensaio pessoal. Cristiane – Então você inclui essa categoria? Edvaldo – Eu acrescento às outras categorias que estão lá e outras podem aparecer porque ali não é uma camisa de força, não é uma tentativa de estabelecer a ferro e fogo que existem essas categorias, podem existir até outras. Você pode usar diferentes critérios pra categorizar, eu uso o critério do tema, o critério da velocidade de produção, o critério do foco narrativo, quer dizer, há vários critérios que você pode usar, então, como o livro-reportagem evolui, no caso brasileiro é um produto cultural cada vez mais presente no mercado, pode ser que daqui a pouco a gente encontre até outras categorias. Cristiane - Edvaldo, como que você...como foi a resposta dessa parte do seu livro, dessa primeira parte..que você sugere essas etapas...você teve resposta de quem está escrevendo agora..e como você entende a recepção do livro pra quem está escrevendo agora? Edvaldo – Eu não entendi a primeira parte da sua pergunta. Cristiane – Como foi a resposta? "ahh, eu usei aquilo que você falou, isso me ajudou a sistematizar meu trabalho"...você teve esse tipo de resposta? Edvaldo – Com relação ao Ayrton Senna ou com relação genérica? Cristiane - Com relação genérica, de outras pessoas que vieram até você. Edvaldo – Outros autores?

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Cristiane - Como que as pessoas... como você viu a recepção do Páginas Ampliadas? Edvaldo – Ahh, sim. Quanto assim...o detalhe de aproveitamento do Páginas Ampliadas, por exemplo, se alguém empregou lá as técnicas que estão lá, as técnicas narrativas, eu nunca tive a manifestação espontânea de alguém quanto ao uso das técnicas, mas quanto ao uso genérico do Páginas Ampliadas, né, o Páginas Ampliadas ter aberto os olhos das pessoas pra formas de fazer jornalismo, como o Páginas Ampliadas, trouxe luzes de entendimento quanto a isso, sim, muita gente comenta, tanto que o livro, ele se transformou num pequeno clássico, ele é adotado em muitos cursos de jornalismo, e de letras. Como ele está nesse território híbrido em que jornalismo que se aproxima da literatura, é interessante observar que muitos cursos de letras pelo Brasil afora usam o livro ou adotaram mesmo, como livro de bibliografia de disciplinas... isso me deixa muito feliz, porque é um sinal de que o livro acertou, é um sinal de que ele trás uma contribuição que muita gente considera importante e ajuda as duas áreas a se aproximar porque eu não acho que tem de haver esse separatismo xiita, não é, entre jornalismo e literatura. Se cada um entender qual é a sua função, a literatura está voltada para a ficção e o jornalismo está voltado para a realidade, tá tudo bem e se pode usar instrumentos um dos outros. Você pode trazer para o livro-reportagem elementos narrativos trabalhados pela literatura de ficção e a literatura de ficção pode aprender com o jornalismo elementos que enriqueçam a própria literatura de ficção ou pode-se praticar o que hoje nos Estados Unidos já é um segmento novo chamado literatura da realidade. É você usar tudo da literatura, porém voltado não pra uma situação imaginária, mas pra uma situação real, pra descrever uma situação real. Então, repetindo, manifestações genéricas tem muitas, agora, manifestações muito pontuais "usei, por exemplo, a construção cena-a cena que você discute no livro e que me foi útil", isso espontaneamente não aparece. Claro que conversando com alunos, principalmente alunos de pós, aí sim, a pessoa comenta, né, mas reações espontâneas não. Agora, o uso do livro, a adoção do livro, muitas vezes eu fico sabendo isso espontaneamente, às vezes as pessoas tomam a iniciativa de informar e outro parâmetro é ver que ele é muito citado em muitas obras de... teses, artigos, monografias, TCCs de graduação, ele é muito citado pelo Brasil afora, né, isso é um sinal indireto de que as pessoas estão usando e aproveitaram alguma coisa. Cristiane – Agora eu queria saber...e é uma pergunta que eu acho que você já respondeu várias vezes... Como é que surgiu essa idéia do Jornalismo Literário Avançado e ,depois, como é a recepção, porque, por exemplo, o Ayrton Senna, como você mesmo disse, não é uma literatura dessas que estão por aí com detalhes de eventos históricos e cronológicos e tal . Como é aceito o Jornalismo Literário Avançado? Edvaldo – Bom, a primeira coisa, a história do Jornalismo Literário Avançado nasceu da seguinte maneira: estudando o jornalismo literário, praticando, conhecendo, ensinando, pesquisando, eu constatei o que o que é obvio que o Jornalismo Literário é uma modalidade muito rica, muito eficiente de relatar o real e muito empolgante, não é, empolgante para nós que escrevemos e empolgante para o leitor, porque os textos felizes saem muito bem escritos. Então, conhecendo o campo, eu percebi que toda a história do Jornalismo Literário, desde o finalzinho do século XIX, quando ele começa a se esboçar, é uma história de desenvolvimento de uma tecnologia narrativa muito comprovada. Mas eu percebi que mesmo nos grandes mestres do jornalismo literário, a visão de mundo que está ali, muitas vezes, é uma visão de mundo que está ficando um pouco caduca, porque nos últimos 20, 25 anos, a ciência deu saltos quânticos de compreensão da realidade, não é, aquilo que nós entendíamos como realidade no começo do século XX, chegamos agora no século XXI, a ciência de ponta diz uma coisa completamente diferente, então se você pega a física quântica, como ela explica a realidade, é um modo muito distinto do que explicava a física clássica. E percebi que no jornalismo e mesmo no jornalismo literário, a visão de mundo quase sempre é uma visão de mundo dessa ciência do século XIX, ou seja, embora esses profissionais sejam muito hábeis no escrever, sensíveis para captar o real, nem sempre eles estão habilitados, preparados, familiarizados com essas concepções novas dentro da ciência que os ajudariam a compreender até melhor a realidade. Então eu achei que era momento de trazer alguns elementos dessas ciências de ponta para dentro do Jornalismo Literário, de modo que se enriquecesse a visão de mundo dos autores. Então o que eu fiz? Toda a tecnologia narrativa do Jornalismo Literário é a mesma, porque ela é eficiente, então a técnica do cena-a-cena, a técnica do fluxo de consciência, a técnica do símbolo do status de vida, tudo isso, tá mais do que comprovado, então não precisaria mexer. O que precisaria acrescentar, seria trazer elementos dessas ciências de ponta para que o jornalista que pratica o jornalismo literário tivesse uma visão de mundo mais contemporânea, então eu desenvolvi a idéia do Jornalismo

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Literário Avançado pensando algumas teorias, alguns campos de conhecimento com as contribuições que essas áreas traziam para o jornalismo. Ao mesmo tempo... então eu trouxe coisas da física quântica, da psicologia humanista, das neurociências e da biologia, particularmente desses campos e da nova história francesa também. Cristiane - E na área da comunicação também já tinha algum estudo nesse sentido? Edvaldo – A única coisa que havia aproximando um pouco na área da comunicação era a Teoria Geral dos Sistemas. A Teoria Geral dos Sistemas já havia sido aplicada algumas vezes em comunicação, tinha sido aplicada experimentalmente em São Paulo na área de jornalismo empresarial e aí eu usei a Teoria Geral dos Sistemas como base teórica da minha dissertação de mestrado. Quanto chegou no doutorado, que vai dar origem à idéia do Jornalismo Literário Avançado, eu já tinha incorporado a Teoria Geral dos Sistemas como um dos alicerces, mas acrescentei outras coisas, as outras eu não tinha visto ainda no jornalismo, trazidas pro jornalismo, então conhecimentos desses campos que eu comentei agora há apouco. E além de trazer conhecimentos que ajudassem a compreender o mundo, eu desenvolvi alguns métodos de trabalho, aplicados ao Jornalismo Literário, no caso dentro do Jornalismo Literário Avançado, trazendo elementos dessas ciências, mas traduzidas em métodos práticos que ajudassem o autor. Por exemplo [Edvaldo tem uma crise de tosse]...ainda não me recuperei da gripe...você tem bala? Cristiane – Não tenho, Edvaldo... Edvaldo – Por exemplo, eu descobri, nas minhas primeiras aulas de Jornalismo Literário, eu descobri que muitos dos meus alunos, embora já fossem jornalistas profissionais, já com carreira avançada, alguns até muito experientes, que eles tinham dificuldade em escrever Jornalismo Literário. Porque? Porque eles estavam acostumados com a forma de texto mais condicional do jornalismo noticioso, e se você for fazer Jornalismo Literário com as técnicas de jornalismo noticioso, você faz uma coisa muito pobre, você precisa escrever de um modo mais elaborado e eles tinham dificuldade, eles já estavam tão condicionados a fazer daquele jeito, a fazer o lide e tal, que na hora que você pedia um perfil, observar um ambiente, descrever um ambiente, a dificuldade era muito grande. Então eu fiquei imaginando o que eu poderia fazer para ajudá-los e eu descobri que tinha de desenvolver um método que liberasse o texto deles. Então eu fui estudar na teoria dos hemisférios cerebrais o que eles já tinham propostos, que algumas iniciativas que já aconteciam no Estados Unidos pra liberar texto. Então fui aos Estados Unidos fazer cursos, conhecer métodos, ler etc, pesquisar, vi alguns dos métodos que já tinham sido criados baseados na teoria dos hemisférios cerebrais, e criei meu próprio método que é uma mistura disso tudo e da minha própria experiência chamado escrita total e comecei a aplicar com os alunos de jornalismo, de pós-graduação, e começou a funcionar. Então o Jornalismo Literário Avançado incorpora um conhecimento de mundo diferente e alguns métodos de trabalho que vêm dessas ciências de ponta e a escrita total é um deles. Outra coisa que eu fiz mais adiante... a escrita total, por sua vez, é um guarda-chuva que usa várias outras técnicas que procedem das ciências novas. Por exemplo, visualização criativa. Eu dou muita atenção pra intuição como eu disse, e a visualização criativa é um método que o Ayrton Senna usava pra correr e que eu apliquei na escrita total pra você escrever, pra você pensar numa pauta, pra você pautar um assunto, pra você entrevistar... Então a visualização criativa é uma técnica que eu desenvolvi bastante bem, na pós-graduação pra facilitar o trabalho de captação, observação e escrita. Outra coisa que eu fiz foi trazer pro Jornalismo Literário Avançado o mapa mental, que é um recurso gráfico de você sintetizar informação ou despertar a sua criatividade. Isso foi criado por um psicólogo inglês, chamado Tony Buzzan, passou a ser aplicado na área educacional na área de empresas, de administração de empresas e eu trouxe pra área de texto.. Cristiane – Como é que escreve Buzzan? Edvaldo – B-U-Z-Z-A-N...Depois, mais adiante, eu resolvi focalizar a narrativa de pessoas, em Jornalismo Literário que a gente faz muito perfil, a gente escreve muitas histórias de vida e biografias, então eu resolvi trazer pro Jornalismo Literário uma maneira de trabalhar a realidade mais compatível com a visão moderna de entendimento do que é o ser humano. E aí descobri nas minhas pesquisas que há um método narrativo empregado na ficção, principalmente no cinema, oriundo de uma junção entre estudos da psicologia e estudos da mitologia que é a jornada do herói. Por exemplo, é a estrutura narrativa que o Steven Spielberg usa nos filmes dele. Então eu fui conhecer a jornada do herói e traduzi a jornada do herói para a aplicação com a história de gente real, até então só tinha

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sido usada com personagens de ficção. Então esse é um outro exemplo de métodos que eu incorporei ao Jornalismo Literário Avançado, então apresentando uma diferença em relação ao Jornalismo Literário. A primeira...o ponto em comum é que a forma narrativa é mais ou menos a mesma, o modo de fazer, de mergulhar na realidade, os alicerces do Jornalismo Literário estão presentes, mas a visão de mundo é um pouco mais ampla, alguns instrumentos de trabalho são diferentes, e o propósito é um pouco mais amplo. Então, por exemplo, se você olha no Gay Talese. Você conhece o Fama & Anonimato dele? Cristiane – Sim. Edvaldo – E o perfil do Frank Sinatra? Cristiane – Sim. Edvaldo – Aquele perfil do Frank Sinatra foi maravilhoso, mas ele ta preocupado com o quê? Só com o Frank Sinatra externo. O Frank Sinatra o grande ídolo, o Frank Sinatra cantor, o Frank Sinatra farrista, que gosta de sair com os amigos pra jogar nos cassinos de Las Vegas, o Frank Sinatra pai durão, que fica vigiando a filha Nancy, não é, então, digamos assim, as facetas mais externas do Frank Sinatra. Mas e o mundo interior dele, as motivações dele? Isso não está presente. Então no Jornalismo Literário Avançado a gente tem, pelo menos assim, o desejo, a proposta de ampliar. Então se eu vou fazer um perfil, eu vejo o mundo externo da pessoa, mas vejo sentimentos profundos, valores profundos, vou dar um exemplo. Cristiane – Isso com o objetivo interligar o que ele sente com as ações externas? Edvaldo – Isso! Porque uma coisa explica a outra, não é?!. Então...pra fazer um perfil do Ronaldinho Gaúcho. Ele foi pra Copa de 2006 e não jogou bem a Copa. Não só a seleção fracassou, mas ele também fracassou e ele ter fracassado deve ter contribuído pro fracasso da seleção. Se eu faço um perfil externo, é mais ou menos só isso, não é? Ele vai pra Copa, não se dá bem, acontece alguma coisa...mas quais são as razões interiores? O que acontece com o Ronaldinho gente, não o Ronaldinho ídolo, não o Ronaldinho manipulado pela mídia, pelo marketing do Barcelona e pelo marketing das empresas pras quais ele empresta o nome pra vender produto. Ele é um ser humano de carne e osso. A gente se acostumou...a imprensa criou a idéia de que o Ronaldinho era infalível, um artista da bola, então a copa já ta ganha, porque nós temos a melhor seleção e além de tudo temos um gênio que é o Ronaldinho. E o homem vai pra copa e não joga nada, entende?!. Daí a imprensa fica ou fica no muro, às vezes critica um pouco "ah, ele não joga na seleção o que ele joga no Barcelona". Mas uma matéria de Jornalismo Literário, não pára por aí, ela quer saber "porque será que no Barcelona ele joga diferentemente da seleção"? Cristiane – O Jornalismo Literário Avançado... Edvaldo – É!...e não é só explicação obvia: no Barcelona ele tem um esquema tático diferente. O Parreira também em um determinado jogo deixou ele jogar como ele jogava no Barcelona e ele continuou jogando nada, então porque? Quais são os fatores psicológicos, quais são as pressões que esse homem vive? Qual a auto imagem que ele criou a partir do sucesso dele? De repente, ele que é um garoto que vem de uma situação média em Porto Alegre, não vem de uma família muito pobre...família classe média, mas é uma classe média, de repente o cara é um milionário, está exposto o tempo todo, é considerado o maior jogador do mundo. Um homem de 26 anos e de repente precisa representar um país. Que aconteceu na cabeça dele? O que acontece na emoção dele? Quais são as coisas que ele sonhou nessa época? Que medos ele teve, que emoções...entende? Então se é Jornalismo Literário Avançado eu vou explorar esses ângulos, porquê? Eu não quero no Jornalismo Literário nem endeusar e nem sacrificar ninguém, eu quero compreender o ser humano. Não quero compreender a figura pública, porque a figura pública é o estereótipo. O Ronaldinho que está sempre sorridente, sempre fazendo samba, sempre jogando alegre... obviamente isso é parte dele, mas ele não é só isso. E o Ronaldinho na hora que fica triste, na hora que tem algum receio, e o Ronaldinho que também pisa no tomate, ele é ser humano, também erra. E o Ronaldinho que vai no banheiro? O Ronaldinho não está só nos jatos do mundo viajando pra lá e pra cá, não está só nos estádios, não está só dando entrevista pra televisão, não está só nos restaurantes finos. Ele é um ser humano, ele tem seus momentos de fraqueza. Então, buscar os momentos de fraqueza não é pra diminuir ninguém, é pra compreender, entendeu?. Então esse caso hipotético ilustraria como um perfil

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de JLA seria diferenciado, precisaria mergulhar profundamente nesses aspectos. O que exige isso do profissional? Muita sensibilidade, muita empatia pelo ser humano, muita vontade de compreender e não de condenar, de endeusar. E aí o que acontece? Quando você demonstra isso pra sua fonte e a pessoa percebe que você é genuíno, o que ela faz? Normalmente ela se abre. Porque? Porque há uma necessidade humana profunda de falar de si mesmo e na sociedade não tem como pra falar. Se você quer falar você mesmo vai pagar lá um dinheiro violento e vai fazer uma terapia. Os amigos não tem tempo, às vezes sua mulher não tem tempo, seu marido não tem tempo, porque? Nós vivemos num mundo muito louco, então você está junto mas ao mesmo tempo não está, há um quê de solidão. E essas pessoas de muita projeção social, elas tem um quê de solidão também, que a exigência sob os ombros delas, a pressão, é enorme e isso elas não podem compartilhar com ninguém. Cristiane – E nisso aí você já ta aplicando o que você chama de visão proativa? Edvaldo – Claro! Atitude que antecede os acontecimentos e trás um outro propósito pro Jornalismo Literário Avançado que é não só narrar o que acontece, falar das pessoas etc, mas fazer com que o texto ajude as pessoas que lerem a transformar sua compreensão da realidade. De maneira que os textos sejam instrumentos de auxílio à construção de um mundo realmente melhor. E o texto tem esse poder. Se você fizer uma coisa bem feita, com um propósito de compreensão, você está iluminando certas formas de compreensão de mundo que podem ser úteis pra muita gente. Cristiane – Edvaldo, agora questões mais gerais. Precisa ser jornalista pra escrever? Edvaldo – Pra escrever livro-reportagem não. Pra escrever livro-reportagem fora dos periódicos não há necessidade. Porque? Desde que você conheça Jornalismo Literário, e qualquer pessoa medianamente culta que gosta de escrever pode conhecer. Conheça, saiba como é, pratique, se tem cultura e sensibilidade você pode escrever. Vou dar um exemplo pra você. O livro-reportagem que ganhou o prêmio Jabuti de livro-reportagem, acho que há dois anos atrás, não foi escrito por um jornalista, foi escrito por um médico, o Dráusio Varela, aquele trabalho sobre o Carandiru. E se você olhar o livro, é um ótimo livro-reportagem. Ele é jornalista? Não é, e daí. Eu não tenho esses pruridos. Eu acho que nas redações de jornais e revistas sim, deve haver uma certa proteção de categoria, proteção de mercado, mas saiu dali, a produção em livro, a produção em documentário, a produção em Internet, a produção sei lá em projetos culturais especiais, sei lá, pode ser de qualquer um, que tenha o talento, que tenha habilidade e que aprenda o que é. Nos Estados Unidos não tem essa diferença. Então, vários repórteres muito famosos nos Estados Unidos ou muito bem sucedidos, não tem formação em jornalismo, eles são sociólogos, antropólogos, psicólogos, não são nada, são escritores de ficção, que de repente descobrem o Jornalismo Literário e aprendem e fazem muito bem. Então eu não tenho reservas. No nosso curso de pós-graduação da ABJL nós aceitamos formados em qualquer área de humanas. Por exemplo, em Campinas dois dos nossos melhores alunos são físicos quânticos, mas são físicos quânticos especiais, que gostam de escrever, já escreviam muito antes do Jornalismo Literário, conhecem muito de Jornalismo Literário, estudam pra burro e estão aprendendo como fazer. Em Brasília, um dos nossos alunos é um escritor de ficção, com livros publicados, que resolveu aprender Jornalismo Literário e está se saindo muito bem. Porque o talento pra ver o mundo e escrever sobre o mundo, ele é universal. Você não nasce com uma carteirinha de que vai poder escrever livro-reportagem porque você é jornalista. È uma vocação, não é?! Então eu acho que nesse patamar em que você não se está tirando o emprego de ninguém, porque quem vai escrever o livro-reportagem não está empregado, não está sendo pago por ninguém, não é... Nesse espaço em que não há dano à categoria de jornalistas, está aberto a quem tenha talento, seja da onde for. Aqui em SP um dos alunos de pós-graduação de melhor qualidade que eu tive, que acabou de participar de um livro-reportagem que foi lançado aqui em São Paulo há dez dias, é um engenheiro... e o rapaz mudou a vida dele totalmente, largou engenharia e hoje ele não pode dizer que ele é um jornalista, porque ele não pode trabalhar como jornalista porque ele não tem o registro. Mas em livro, em projetos culturais, ele é um escritor da realidade e faz muito bem. Cristiane – Edvaldo, voltando um pouquinho, a gente pulou uma resposta, eu tinha perguntado como que é recebido o Jornalismo Literário Avançado. Edvaldo – Bom, pouco a pouco... primeiro como é recebido o Jornalismo Literário. Porque há 15 anos atrás, 90% do universo do jornalismo no Brasil tinha se esquecido que existe jornalismo literário.

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Nós tivemos aqui fases aqui muito boas, mas isso foi sendo abandonado e novas gerações de jornalistas cresciam sem nem saber que o jornalismo literário existia. Então nos anos 90, quando eu dava aulas de Jornalismo Literário na ECA, e comecei a trabalhar isso, quase ninguém sabia o que era e os poucos que sabiam, a metade dos poucos que sabiam era contra sem saber direito o que era. Então havia uma resistência muito grande. Com o passar dos anos, com a nossa insistência, com o trabalho da Cremilda Medina, que é uma professora lá da ECa muito brilhante, com o meu trabalho, com os nossos orientandos que passaram por lá e começaram a modificar isso pelo Brasil afora, o conhecimento do Jornalismo Literário aumentou e a resistência diminuiu, pelo menos na área acadêmica. Nas redações, pouco a pouco, na medida em que primeiro a profissão constatou um fato óbvio: "estamos perdendo leitores, estamos perdendo leitores em parte pelo menos porque o texto é chato, o texto é massante, não tem nenhuma novidade". Se você pega um jornal e pega outro, parece que os dois se pautaram iguais, não é? Você pega certas revistas e você lê do princípio ao fim da a impressão de que foi uma pessoa só que escreveu. O texto é tão pasteurizado, tão mastigado, tão industrializado, que não tem graça, então muita gente começou a perceber que isso já não tava muito legal, as pessoas queriam textos mais interessantes, mais brilhantes, com focos mais inovadores. Algumas nem sabiam que existia o Jornalismo Literário, mas já demonstrava preocupação e aí como o Jornalismo Literário começou a chegar, eles falaram, "Pô, talvez seja isso que gente precise", e aí mais e mais jornalistas começaram a chegar no mercado entendendo o que é, a coisa começou a amenizar. Então, eu diria que em primeiro lugar eu diria que a aceitação do Jornalismo Literário melhorou muito nos últimos anos. Você vê, hoje surge no Brasil uma revista chamada Piauí, ninguém estranha mais, todo mundo já aceita. Vários documentaristas estão fazendo Jornalismo Literário no cinema, porque o Jornalismo Literário antes de tudo não é uma coisa só do impresso, é um espírito de como reportar. Aí você pega João Moreira Salles, Eduardo Coutinho, Isabel Jaguaribe, esse povo faz Jornalismo Literário no documentário, e o público aceita. Não sei em Londrina, mas aqui em SP e no Rio, documentário hoje, são uma categoria muito bem aceita. Se você pegar hoje em São Paulo, dia 12 de outubro, e abrir o jornal, tem três ou quatro documentários brasileiros em cartaz nos cinemas de SP. Porque que as pessoas vão? Porque eles estão fazendo o que os jornais deixaram de fazer, reportagens reais, vivas, sobre pessoas de carne e osso, não é só sobre celebridades, sobre pessoas, algumas célebres, outras pessoas comuns. Mas fazem com vivacidade, com força. Então eu diria que embora ainda haja resistência e muita ignorância do o que é, o Jornalismo Literário já não causa tanta estranheza, então ele já é mais aceito. O jornalismo Literário Avançado, que é um segmento do JL é ainda muito pouco conhecido, então em alguns segmentos, tipo, nas universidades, em algumas universidades, a proposta e o que se faz já é melhor aceito. Fora daí eu acho que ele é muito pouco desconhecido, até pra saber a reação, em princípio... Cristiane – Muito pouco conhecido, né?! Edvaldo –...muito pouco conhecido. Uma reação que eu lhe dou é do Ayrton Senna Guerreiro de Aquário, que é uma peça típica de Jornalismo Literário Avançado. Quando ele saiu, primeiro ele saiu remando contra a maré, porque na ocasião havia vários livros sobre o Ayrton Senna no mercado, todos meio biográficos da carreira do Ayrton. Então o público estava acostumado a querer ver aquilo e quem foi pro meu livro, se decepcionou, se tinha essa idéia, porque o livro não é biográfico, é um livro diferente, estranho, então causou um pouco de estranheza pra algumas pessoas, porque não era o que elas esperavam. Por outro lado, eu tive um pouco de falta de sorte, talvez, porque na época em que o livro foi lançado, a editora Brasiliense entrou numa crise interna muito grande, a editora na ocasião era uma das editoras mais importantes do país, entrou numa crise interna, tanto que esteve a beira da falência várias vezes, hoje ela é uma editora que sobreviveu, mas é muito pequena. Então o que aconteceu? Como ela entrou em crise, exatamente naquela época, ela não pôde dar um apoio que o livro precisava, de divulgação, de promoção, então o livro ficou um pouco abandonado. Ele não circulou muito comercialmente, tanto que até hoje essa edição não está esgotada. Mas o que aconteceu? Vou te dar um exemplo há pouco tempo, uma pessoa, não vou citar o nome porque eu não pedi a autorização pra ela...se eu tivesse adivinhado que iria entrar nesse assunto eu até pediria autorização, mas é uma pessoa que tem um cargo importante no Instituto Ayrton Senna. Quando o livro do Ayrton saiu, evidentemente essa pessoa leu o livro, conversei com ela algumas vezes e tal, e aí o tempo passou, cada um foi pro seu canto, o ano passado essa pessoa me encontrou, me convidou pra almoçar, aí disse: "Olha Edvaldo, agora eu entendi seu livro. Naquela ocasião eu não estava pronto pra isso. Agora eu entendi, agora eu estou maduro pra compreender o teu livro. Ele agora é meu livro de cabeceira". Porque? Há livros que chegam no mercado, tanto de ficção quanto de não-ficção, um pouco a frente ao seu tempo ou à média da visão de mundo das pessoas, então isso causa estranheza, porque eles são diferentes, as pessoas não estão acostumadas. Aí tempos

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depois pode ser que ele caia a ficha e que pode ser que ele tenha sucesso, ou pelo menos que as pessoas passam a aceitar melhor. Eu acho que é um caso do Guerreio de Aquário, porque? Certos conteúdos ali são muito novos, campos morfogenéticos, inconsciente coletivo, arquétipos, não é, são coisas que há 12 anos atrás não circulava muito fora do circuito acadêmico especializado, e eu fiz pra o grande público, em uma linguagem acessível. Hoje, 12 anos depois, a palavra arquétipo está em tudo quanto é lugar, inconsciente coletivo está em tudo quanto é lugar, não é?! Então, os conceitos que estão ali já são um pouco mais assimiláveis, então o livro começa a ser mais assimilável também, e ver o Ayrton Senna ligado a esses temas já não causa tanta estranheza, então, eu acho que, pouco a pouco, na medida em que o público evolui também pra conhecer esses assuntos, o JL, que ta casado com essas idéias, começa a ter mais penetração. Por exemplo, em medicina, ha 10 anos atrás, se você falasse de medicina holística, não entendia, achava que era bruxaria. Aí você vai pra Curitiba hoje, pra citar um exemplo do Paraná, em Curitiba tem uma clínica chamada, se não me engano, Centro de Medicina Integrada Dr Roberto César Leite, que é uma referência sul-americana de medicina que tem uma visão de mundo holística, então é uma medicina que tem todos o elementos da medicina tradicional, equipamentos, tratamentos convencionais, mas tem também tratamentos de medicina alternativa não convencional, muito bem casados, tudo junto, então dependendo da situação do paciente, os médicos da equipe vão dizer, "olha, tome antibiótico, faça uma cirurgia", ou não, "você vai tomar, vai fazer aquele tratamento de ozônio, ou vai tomar um chá não sei do que", então eles tem o equilíbrio de tratar a pessoa sobre vários aspectos, sejam tradicionais ou não e ninguém estranha, e eles tem sucesso, são referência sul-americana, vem médico de tudo quanto é lugar da América do Sul pra fazer curso de especialização com eles, então já é mais aceito. Você fala de acupuntura hoje, as pessoas já não estranham tanto quanto há 15 anos, você fala de meditação, há 15 anos atrás meditação era coisa de místico, hoje em dia a empresa faz meditação, Ayrton Senna fazia meditação, escritor pode fazer meditação pra escrever, porque não? Então já não se causa mais aquela coisa de estranhamentos, já há uma aceitação, então eu vejo que o JLA é um jornalismo pra o século XXI, na medida em que as pessoas vão compreendendo, vão sentindo, vão avançando, as novas gerações já chegam pra esse campo mais abertas. Eu tive uma experiência com meus alunos de graduação da ECA do ano passado, muito boa. Há 10 anos atrás os alunos de graduação tinham muita resistência a essas coisas, porque eles estavam educados numa cultura de jornalismo muito tradicional, então eu vinha a falar leve, porque é óbvio que eu não ia colocar isso na graduação de maneira tão ampla porque não era o caso, mas mesmo o pouco do que eu trazia do JLA, havia muita resistência. Aí, de dois ou três anos pra cá eu senti uma diferença no perfil dos alunos impressionante. Muitos alunos diziam: "eu vim por jornalismo e antes de terminar o curso eu já estou decepcionado, eu não vim pra fazer lide, eu vim porque eu quero escrever, quero ter uma visão de mundo melhor", eles sabiam que estava inquietos com o jornalismo tradicional, alguns desistiam do curso, mas não sabiam direito o que eles queriam, então quando eles encontraram o JL, e mais ainda o JLA..."Pô, me salvou, essa é minha carreira, é isso que eu quero fazer". Então eu tenho sentido, ao contrário, nas novas gerações, um crescimento de uma aceitação intuitiva do JL, e do JLA, muito grande, que algumas gerações imediatamente atrás não tinham. Então as pessoas hoje em dia estão mais receptivas a essas coisas de uma maneira geral, né, você falar de meditação, não é todo mundo que torce o nariz como torcia há dez anos atrás, você fala de reiki, há 15anos atrás era bruxaria, era charlatanismo. Hoje, já tem hospital público que usa reiki, e aí? Entendeu? Então eu acho que o JLA é uma proposta em crescimento, em evolução. Eu acho que agora as pessoas vão compreender mais, vão tomar isso e vão aperfeiçoá-lo, porque ali está uma proposta inicial sujeita a melhoras, a aperfeiçoamentos, a erros e acertos. Cristiane - Um pouquinho ainda no plano geral, como você avalia a produção de livros-reportagem hoje? Edvaldo – Primeiro, no caso brasileiro, o volume de livros-reportagem aumentou muito graças a Deus. Então a gente... eu acho que eu já posso dizer que no Brasil, o livro-reportagem já tem um espaço sólido no mercado editorial. Você vai nas livrarias grandes, ou nas livrarias de grandes redes, quase todas elas já tem uma seção que eles chamam ou de reportagem, ou de jornalismo, ou de fatos de atualidades, ou simplesmente atualidades, ou de não ficção, definida, não é, tem uma seção lá de livros assim e tem lançamentos freqüentes. Aqui em São Paulo e no Rio, a gente vê, a cada três meses, tem três ou quatro livros reportagens novos, todo ano. Agora em outubro, por exemplo, só o

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que chegou pra mim foram convites pra três, só aqui em São Paulo, de uma vez, no espaço de 10 dias, quer dizer, acho que em primeiro lugar, o volume de produção, edição e publicação melhorou... Cristiane – E a qualidade? Edvaldo - A venda também melhorou, se ta produzindo é que tá aumentando. A qualidade tem melhorado pouco a pouco, porque a qualidade vem da quantidade. Quanto mais gente produzir, melhor pra qualidade aparecer, porque? Se alguém vai fazer e não está muito bem preparado, não sabe o que é livro-reportagem, faz uma coisa mal feita, não vai vender bem, numa próxima, vai falar, "Pô, deixa eu ver o que as pessoas andam fazendo. O que elas introduziram e estão aproveitando de maneira melhor". Porque a concorrência vai aumentando, a medida que o livro-reportagem se torna presente, também a exigência aumenta, a exigência do público e a exigência das editoras. E aí os profissionais também tem de melhorar a sua performance, né então eu acho que no momento há de tudo. Há livros-reportagem muito ruins, há livro-reportagem de temas fracos, às vezes de temas bons maus trabalhados, às vezes temas bons, trabalhados bem do ponto de vista da apuração, mas trabalhados pobremente no sentido de texto, porque você não pode fazer um livro-reportagem, com o mesmo texto de jornal, não dá, texto de jornal é pra jornal, texto de livro-reportagem é mais elaborado. Então eu acho que há de tudo, livros pobres e livros ruins, livros interessantes, livros oportunistas, livros de picaretas, livros de gente séria que acerta, livros de gente séria que não acerta, é normal. E alguns livros de grande qualidade. Por exemplo, se você pega do Abusado, do Caco Barcellos, do ponto de vista do texto, de narrativa, é um livro extraordinário, é um livro sensacional. Do ponto de vista de biografias, de pesquisa e apuração, esses grandes autores nossos de biografia, o Ruy Castro, o Fernando de Morais, o Jorge Caldeira, são profissionais muito competentes quanto à pesquisa histórica, são profissionais excepcionais, então os livros deles nesse aspecto de apuração e documentação são muito, muito bons, né, então tem casos de livros de textos ótimos, casos de pesquisas muito boas, casos de investigação também muito bem feitas e casos em que o equilíbrio de tudo isso está muito bom. Eu acho que dessa maré de produção, a qualidade excepcional de uma certa porcentagem existe e a qualidade média, no meu entendimento, pouco a pouco está melhorando. Mas admitindo que realmente tem muita coisa que é frágil e circula no mercado. Cristiane - Agora eu queria perguntar sobre o incremento de livros teóricos. No site texto vivo tem a indicação de 39 livros teóricos, mas dois que versam sobre exatamente o fazer do livro-reportagem, que são justamente os seus. Teve um incremento de 2 anos pra cá, desde que você lançou o Páginas Ampliadas? Edvaldo – Teve um incremento mas não de livros publicados ainda, mas de teses e dissertações. Por exemplo, o Sérgio Villa Boas, que é o editor executivo do Texto Vivo, um dos quatro responsáveis pelo projeto Texto vivo, pelo curso, ele acabou de defender uma tese de doutorado na USP, que eu orientei, e essa tese explora mais amplamente a produção de biografias jornalísticas, então essa tese, mais dia menos dia ele vai conseguir publicar. Então a nível de tese e dissertações já tem muita coisa, a nível de livros à público ainda não, mas ta crescendo a produção. No começo do ano, uma outra orientanda minha, a Denise Casad, defendeu o mestrado, no mestrado ela trabalha a relação do autor com o personagem no jornalismo literário, e traz outras coisas que os textos dos livros que estão publicados não trazem, então ela já defendeu, foi aprovada, mais dia menos dia ela consegue publicar. No momento está terminando a orientação de um candidato a doutorado meu, o Alex Criado, está examinando o uso da oralidade no Jornalismo Literário, então ele faz um paralelo, assim como o Guimarães Rosa usou a oralidade de uma certa região pra escrever ficção, que tal nós usarmos a oralidade pra praticar um JL com um ritmo narrativo mais fluente? Então essa tese dele, ele terminando, sendo bem sucedido, provavelmente ele vai conseguir mais dia menos dia publicar. Então aos poucos a abordagem teórica aumenta. E alguns TCCs, alguns de boa qualidade que também exploram determinados aspectos que ainda não foram explorados, então esses TCCs aumentam, digamos assim, a massa crítica de conhecimento teórico conceitual sobre o JL. Cristiane – Mas..é especificamente, que eu falei...que versam sobre o fazer o livro-reportagem... Edvaldo – Ahh, o fazer o livro-reportagem... Cristiane – Tem só o seu, o Páginas Ampliadas ou teria algum outro?

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Edvaldo – Só o Páginas Ampliadas, tem uma versão simples dele que é O que é livro-reportagem, e recentemente me falaram que saiu, mas eu ainda não vi, um livro chamado Livro-Reportagem, da editora Contexto. Você viu esse livro? Cristiane – Eu vi pela Internet, mas não cheguei a ler. Edvaldo – Então, eu não sei o que é, mas geralmente essa coleção da Contexto, ela produz livros simples, geralmente para alunos de graduação, e trata um pouco do assunto, são livros meio introdutórios. Então eu não sei, eu não vi o livro, não sei quanto o autor aprofundou ou não o fazer do livro-reportagem, não sei....então realmente tem pouca coisa no mercado....teórica. Cristiane – Agora uma provocação, você já começou a falar, mas eu queria sabe o que você acha desses três autores que eu te falei? O Caco Barcellos, o Fernando Morais e o Mylton Severiano? Edvaldo – Primeiro são profissionais que merecem o maior respeito de todos nós porque fazem um trabalho sério, fazem um trabalho muito abalizado, são profissionais que ajudam a nós todos, porque quanto mais sucesso eles tiverem, graças a Deus, porque mais as editoras se interessam, mais o público gosta, mais o público vai querer lê-los, as outras produções deles e outras produções novas também, quer dizer, é bom que eles sejam bem sucedidos, então que eles continuem produzindo bem aí, nos anos a frente. Então eles tem esse valor e tem a característica pessoal de cada um. Eu acho que deles todos, o Fernando Morais, o Jorge Caldeira, que você não citou, mas eu acho que é um profissional também muito respeitável, e o Ruy Castro, eles têm essa qualidade fantástica da pesquisa, eles são ótimos pesquisadores, eles estruturam os livros muito bem, eles trabalham assuntos de fôlego, você vê a biografia da Carmem Miranda não é pra qualquer um, não é? E o Ruy Castro é exaustivo, ele pesquisa uma quantidade bárbara de gente, então eu acho que todos ele são muito bons de pauta, pesquisa e produção. Quanto a estilo de texto, todos escrevem muito bem, mas eu acho que estilisticamente, na minha opinião de todos eles, o que se sai melhor é o Caco Barcellos, então eu acho que o Caco Barcellos estilisticamente ele tem um grau de elaboração do texto que pode ser meio subjetivo, mas a mim, pessoalmente, agrada muito. Do ponto de vista estilístico me agrada mais do que os outros, respeitando o estilo de cada um e a capacidade de produção de cada um, então eu acho que são profissionais ícones de uma linha de produção que está aí, agora, o livro-reportagem e o Jornalismo Literário tem uma característica que é o estilo pessoal, então esses são estilos conhecidos e que tiveram sucesso no mercado, outros estilos, outras forma de fazer vão aparecer e que seja assim, porque quanto mais diversificado for o livro-reportagem, mais sólida é a modalidade do livro-reportagem. Cristiane – De uma maneira resumida, o que tem que ter o livro-reportagem pra ser bom? Edvaldo – Primeiro o coração e a alma do autor. Segundo, o tema tem que ser um tema de apelo universal, mesmo que o assunto seja um assunto em Londrina, se o tema por trás daquilo é um tema que interessa ao Brasil inteiro, às pessoas, porque trata de valores muito profundos, vida e morte, nascimento crescimento, amor e ódio, coisas desse tipo, se o tema universal for muito forte, o livro tem possibilidade de ser muito bom. Então motivação, empenho e dedicação do profissional, tema interessante, apuração muito bem feita e texto bem elaborado. Se essas quatro coisas se casam bem, a possibilidade do êxito cultural e comercial é alta. E atrás de tudo uma responsabilidade, um senso de responsabilidade do autor e uma postura ética, porque na minha visão, nada justifica você não ser ético por causa de um livro. Então eu vou citar um caso de um grande cara de jornalismo literário, eu não quero falar mal dele porque ele não está mais aí pra se defender, mas eu acho que do ponto de vista educativo pedagógico é até interessante, que é o Truman Capote. Ele escreve A sangue Frio e quem viu o filme percebeu, ele tem uma relação manipulativa com as fontes deles...Se aproximou daquelas pessoas, dos dois condenados, com o objetivo puramente jornalístico, digamos assim, e com o passar do tempo, aparentemente criou-se uma intimidade entre eles, e um dos dois, agora não me lembro qual deles, parece que projetou no Truman Capote uma amizade, um sentimento de amizade, alguns dizem que pelo Truman Capote ter sido homossexual tiveram até alguma outra situação, não sei, mas independente disso, um grau de amizade que parece ter nascido, pelo menos da parte do executado. E aí essa pessoa, que era uma pessoa sozinha no mundo, projetou no Truman Capote uma necessidade, uma tábua de salvação, então apelava pro Truman Capote que era um intelectual respeitado, conhecido, um jornalista de fama, apelava pra ele, pra fazer reivindicações junto ao governo, até pra ver se escapava da pena de morte, pra fazer literalmente apelos judiciais, e o Truman Capote o ajudou até um certo ponto e depois parou, porque

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chegou um momento em que parecia que para o livro era mais importante que eles morressem, que o livro teria mais impacto. Então há uma cena no filme, se aquilo é verdade...eu não conheço a biografia do Truman Capote em detalhes, se aquilo é verdade, há uma situação em que o sujeito escreve pro Truman Capote e pede pra fazer um novo apelo junto ao Supremo Tribunal, uma coisa assim e o Truman Capote ignora as cartas porque pra ele enquanto autor é melhor que o cara morra logo porque o livro vai ficar interessante. Então naquele momento ele agiu como autor e não como ser humano, tudo bem, o livro saiu foi um grande estouro, um grande sucesso no mundo inteiro, amplificou a fama do Truman Capote que já era um cara bastante conhecido. Mas que preço o Truman Capote pagou? Embutiu, bloqueou a criatividade dele, nunca mais ele escreveu nada que preste. Começou a ficar um cara auto-destrutivo, depressivo etc, e quando ele estava pra morrer, ele deu uma famosa entrevista ao vivo na televisão americana ele disse que se considerava uma pessoa extremamente infeliz, morreu com culpa, com um monte de coisa, então o que adiantou? Então eu acho que no século XXI nós estamos em uma nova fase, num novo momento da humanidade em que nós precisamos de um mundo mais ético, ta todo mundo cansado das podridões que existem, o escritor de não-ficção, o autor de jornalismo literário ele tem de pensar nesses aspectos. Nenhum assunto, nenhuma pauta é superior ao valor da vida humana. A sua enquanto autor, nem de ninguém. Nenhuma pauta é superior à destruição de um ser humano ou a se causar um dano muito fundo em um ser humano. Nada, nenhuma pauta merece isso. Entre a vida e a pauta, melhor a vida, e se você faz uma coisa pela ambição profissional, o que vai acontecer? Nós temos mecanismos psicológicos dentro de nós que são os nossos verdadeiros juízes e esses mecanismos entram em ação mesmo. Quem estuda um pouco de psicologia humanista sabe disso, não é necessário que haja um julgamento externo do mundo. A própria psique, da pessoa que mais ou menos foi programada pela existência pra controlar um pouco, então vai haver problemas, no caso do Truman Capote, secou a fonte criadora dele. Claro, ele ainda escreveu algumas coisas e tudo.... nunca mais escreveu nada que prestasse, nunca mais foi reconhecido por ter escrito uma outra obra de qualidade, e entrou num declínio pessoal que foi até a morte dele. Ele morreu se vendo, se considerando infeliz, então, vale a pena? Não vale. Então essa postura ética do respeito ao ser humano tem de ser sempre algo chave para um livro-reportagem funcionar bem e o autor estar em paz com ele mesmo, porque não adianta você ter sucesso e a tua alma estar caótica.

Então por isso, eu citei o Truman Capote, vou citar um outro caso do lado contrário, de alguém que até hoje, na sua carreira, tem tido uma postura extremamente ética, e reta, fabulosa, que é o Gay Talese. O Gay Talese é um homem hoje de uns 70 e poucos anos, já é um velho, então ele tem uma produção de 50 anos... e o Gay Talese nunca escreve um perfil, por exemplo, sem o consentimento de sua fonte... ele não escreve às escondidas ou contra a vontade das pessoas. Não é que o teor e o conteúdo vai ser o conteúdo que a fonte quiser, não. Ele é o dono da matéria e o outro tem que aceitar, mas é assim, é feito um pacto: "Vou fazer o seu perfil, preciso mergulhar no seu mundo, você me aceita?" Teve uma vez que ele foi fazer um perfil de um mafioso, imagine só, e num perfil de jornalismo literário, você não pode fazer uma matéria rasa, você tem que mergulhar no universo da pessoa, tem de conviver com a pessoa, tem de ver a família da pessoa, então ele diz pro mafioso "eu trabalho assim, vou fazer isso, você me aceita?" Obviamente o cara não queria... se passaram meses e meses e meses e meses, mas o Gay Talese não começou, não é porque cara era mafioso e ele ficou com medo de o cara matá-lo, ele não faz isso com ninguém. Pode ser o verdureiro da esquina, se ele quiser fazer o perfil do verdureiro, enquanto o verdureiro não aceitar que ele faça, ele não começa às escondidas. Mesmo o caso do Frank Sinatra, o Frank Sinatra concordou e não voltou atrás, ele não queria dar entrevista naquele período, mas ele não disse "não faça", tanto que o Gay Talese continuou a fazer, o assessor do Frank Sinatra ajudava, ele não falou com o Frank Sinatra, mas o assessor ajudou, levou ele pra televisão e tudo, então todo mundo sabia o que ele estava fazendo e o Frank Sinatra também e não disse não, então nem o Frank Sinatra ele fez contra a vontade do Frank Sinatra. Então eu acho essa a melhor postura. É obvio que tem certos jornalismos que não pode ser assim, jornalismo investigativo... tem coisas que você tem que fazer contra a vontade da pessoa porque a matéria é aquela, de repente a sua matéria é uma matéria de denuncia e a pessoa não vai querer se confessar, mas eu, pessoalmente, jamais faria uma matéria investigativa, eu reconheço a validade disso, respeito os profissionais que fazem, mas eu não tenho temperamento pra isso, eu prefiro outro tipo de trabalho, né, e a minha linha é a do Gay Talese, se não há o consentimento, não faço. Cristiane – Então, resumidamente, agora a característica do autor. Ética, paixão pelo tema estudado...

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Edvaldo – Conhecimento sobre a sua ferramenta de trabalho. O que é um livro-reportagem? Pra que serve? O que é Jornalismo Literário? Quais são os instrumentos de narrativa que eu tenho? Como eu entrevisto? Quem foram os grandes caras que se eu ler eu vou aprender alguma coisa com eles? Entendeu? Então conhecer, depois, cultura geral, e terceiro, cultura do tema que você vai trabalhar. Se você não conhece, aprenda antes de fazer a primeira entrevista. Cristiane - Então a característica pessoal, força de vontade... Edvaldo – Persistência, criatividade.. encontrar um ângulo diferente. De repente você pega um assunto que muitos já escreveram, o Ayrton Senna, dezenas já tinham escrito, e daí? Eu tenho que o que dizer, eu tenho o meu ângulo. Se eu não tivesse, eu iria procurar, então, qual é o seu diferencial? E por último, um respeito muito grande pelo leitor, pela inteligência do leitor, e um compromisso com o leitor. Se a pessoa vai comprar o seu livro, vai gastar 40 reais, tem que ter substância, então ela vai se compensada, porque você está dando uma coisa séria pra ela, você está dando algo que é o seu esforço, mas é uma contribuição genuína pra ela, ela vai ver um ângulo que não viu, vai ver de uma maneira diferente, vai explorar um assunto que não estava presente, não é, vai descobrir o que não sabia, então você tem que ter esse compromisso. Se você não está pronto pra escrever, não escreva. Se você não tem o que dizer, não force a barra, aguarde, não é?! Então ter esse tratamento respeitoso pra com o leitor. Cristiane - E pra escrever precisa ter talento? Edvaldo – Precisa ter talento sim. Se o talento não estiver manifestado, precisa desenvolvê-lo. O talento potencial todos que escrevem...A história do escritor que escreve por inspiração ela é válida assim, se você quiser escrever um livro na vida, pode ser que um dia você tenha uma bela idéia, uma bela inspiração, está abençoado pelos anjos criadores e você escreve, mas o segundo você não vai conseguir escrever. Então se você pensa numa carreira, você não pode contar só com a inspiração, tem de ter disciplina, empenho, determinação e aplicação do desenvolvimento do seu texto. Vou dar um exemplo, o Caco Barcellos quando lançou o Abusado deu uma entrevista, acho que pra Folha, contou que ele leu e releu A Sangue Frio vária vezes...porque ele queria... Cristiane – Ele falou que leu mais de 30 vezes... Edvaldo - Ele falou pra você? Cristiane - Falou. Edvaldo - Contou pra você o motivo, né?! Cristiane – Não... Edvaldo - Que ele queria descobrir a carpintaria do Truman Capote. As técnicas, o modo de escrever, como é que ele armou o livro, como ele estruturou, como ele tratava os personagens, entendeu? Aí, quando ele...depois de ter lido trinta vezes, ele sacou qual era. "Pô, desses recursos, quais eu posso empregar?". Veja o Abusado. Já leu o Abusado? Cristiane - Já. Edvaldo – Viu alguma semelhança com o A Sangue Frio? Não só pelo tema de polícia, mas a estrutura, entendeu? Então isso é investir no seu talento. Se você olha um livro-reportagem anterior do Caco Barcellos, o Rota 66, é um livro socialmente importante, mas estilisticamente é um livro muito pobre, extremamente pobre estilisticamente. Pega o Abusado, veja o salto de qualidade que ele teve, porque? Porque ele investiu no talento. Cristiane – Então agora a última. Você poderia dar alguma dica pra quem quer fazer livro-reportagem? Edvaldo – Várias. Ler bons livros-reportagem, pra, né, pegar o gosto, sentir como é, então escolher autores que você goste, ou temas que de repente te chamou a atenção... e leia, de autores diferentes, brasileiros, estrangeiros, homens, mulheres, porque a mulher tem um olhar, o homem tem

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outro, não é...temas conhecidos, temas desconhecidos, leia sei lá, 10, 15 livros reportagem num espaço de 6 meses pra sentir o que é. Segunda coisa, compreenda a tecnologia do Livro-reportagem, leia o Páginas Ampliadas, debulhe o Páginas Ampliadas, disseque, veja ali as técnicas e tal. Terceiro, comece a praticar, experimentar com matérias menores, tudo o que você ver, aprender, descobrir... se a pessoa estuda e há cursos de livro-reportagem na universidade, na faculdade, aproveite bem, experimente bem e mão na massa, porque não tem outro jeito, você trava contato, conhece, absorve, e experimenta como você se sai na tarefa, basicamente por aí.

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