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1 DELIBERAÇÃO PRÉ-CONSTITUCIONAL: A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE BOLIVIANA DE 2006-2007 1 Andrey Borges Pimentel Ribeiro 2 RESUMO: A democracia deliberativa pressupõe a igualdade como condição ideal. Entendemos que o conceito de igualdade pode ser compreendido sob o prisma da teoria do reconhecimento para uma melhor apreensão da realidade em termos de conflito social. A partir da compatibilização entre teoria do reconhecimento e democracia deliberativa, buscamos contextualizar o momento constitucional como um momento propício para a deliberação pública, em que mesmo uma Assembleia Constituinte pode configurar como um ambiente de deliberação institucionalizado desde que mantido o direito fundamental da integridade para deliberação. Assim, podemos abordar o caso da Assembleia Constituinte da Bolívia entre 2006 e 2007 como um momento de democracia deliberativa. PALAVRAS CHAVES: Deliberação; Igualdade; Ativismo; Constituição; Assembleia. INTRODUÇÃO A democracia deliberativa enseja uma série de discussões políticas e sociais motivadas pelo seu teor e pretensões radicais, sendo que uma diversidade de reações teóricas compreende aprimoramentos e críticas, entusiasmo e ceticismo. A tendência bibliográfica tem sido uma verificação empírica dos quadros normativos da democracia deliberativa, que é também a motivação deste trabalho. O objetivo é investigar a Assembleia Constituinte da Bolívia de 2006-2007 a partir da teoria da democracia deliberativa, tendo em vista que o trabalho empírico não pode subtrair os exigentes requisitos normativos da teoria em tela. O presente trabalho é orientado pela seguinte pergunta: o caso da Assembleia Constituinte boliviana que promulgou a Constituição de 2009 foi um momento de deliberação democrática? Nossa hipótese é que esta pergunta pode ser respondida afirmativamente, desde que a condição de igualdade ganhe contornos normativos mais amplos pela teoria do reconhecimento. O primeiro tópico caracteriza o modelo democrático deliberacionista em Habermas. Essa opção tem duas justificativas metodológicas: primeiro, por ser Habermas o precursor e 1 O presente trabalho foi apresentado à disciplina optativa Teorias da Democracia Deliberativa ministrada pela Professora Doutora Heloísa Dias Bezerra no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Goiás (UFG), como requisito de composição de nota. Ademais, parte do desenvolvimento teórico e empírico deste trabalho é objeto da minha Dissertação de Mestrado em andamento, mas com outra perspectiva, pois não utilizo Teoria Deliberativa ou Teoria do Reconhecimento como aporte teorético em minha Dissertação. 2 Universidade Federal de Goiás. [email protected]. Mestrando em Ciência Política pela UFG. Bolsista da FAPEG. Especialista em Direito Constitucional pela UFG. Pós-graduado em Direito Administrativo e Processo Administrativo pela UCAM. Licenciado em História pela UEG. Bacharel em Direito pela UFG.

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DELIBERAÇÃO PRÉ-CONSTITUCIONAL: A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE BOLIVIANA DE 2006-20071

Andrey Borges Pimentel Ribeiro2

RESUMO: A democracia deliberativa pressupõe a igualdade como condição ideal. Entendemos que o conceito de igualdade pode ser compreendido sob o prisma da teoria do reconhecimento para uma melhor apreensão da realidade em termos de conflito social. A partir da compatibilização entre teoria do reconhecimento e democracia deliberativa, buscamos contextualizar o momento constitucional como um momento propício para a deliberação pública, em que mesmo uma Assembleia Constituinte pode configurar como um ambiente de deliberação institucionalizado desde que mantido o direito fundamental da integridade para deliberação. Assim, podemos abordar o caso da Assembleia Constituinte da Bolívia entre 2006 e 2007 como um momento de democracia deliberativa.

PALAVRAS CHAVES: Deliberação; Igualdade; Ativismo; Constituição; Assembleia.

INTRODUÇÃO

A democracia deliberativa enseja uma série de discussões políticas e sociais

motivadas pelo seu teor e pretensões radicais, sendo que uma diversidade de reações

teóricas compreende aprimoramentos e críticas, entusiasmo e ceticismo. A tendência

bibliográfica tem sido uma verificação empírica dos quadros normativos da democracia

deliberativa, que é também a motivação deste trabalho. O objetivo é investigar a Assembleia

Constituinte da Bolívia de 2006-2007 a partir da teoria da democracia deliberativa, tendo em

vista que o trabalho empírico não pode subtrair os exigentes requisitos normativos da teoria

em tela.

O presente trabalho é orientado pela seguinte pergunta: o caso da Assembleia

Constituinte boliviana que promulgou a Constituição de 2009 foi um momento de

deliberação democrática? Nossa hipótese é que esta pergunta pode ser respondida

afirmativamente, desde que a condição de igualdade ganhe contornos normativos mais

amplos pela teoria do reconhecimento.

O primeiro tópico caracteriza o modelo democrático deliberacionista em Habermas.

Essa opção tem duas justificativas metodológicas: primeiro, por ser Habermas o precursor e

1 O presente trabalho foi apresentado à disciplina optativa Teorias da Democracia Deliberativa

ministrada pela Professora Doutora Heloísa Dias Bezerra no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Goiás (UFG), como requisito de composição de nota. Ademais, parte do desenvolvimento teórico e empírico deste trabalho é objeto da minha Dissertação de Mestrado em andamento, mas com outra perspectiva, pois não utilizo Teoria Deliberativa ou Teoria do Reconhecimento como aporte teorético em minha Dissertação. 2 Universidade Federal de Goiás. [email protected]. Mestrando em Ciência Política pela UFG.

Bolsista da FAPEG. Especialista em Direito Constitucional pela UFG. Pós-graduado em Direito Administrativo e Processo Administrativo pela UCAM. Licenciado em História pela UEG. Bacharel em Direito pela UFG.

2

principal expoente do modelo deliberativo de democracia; segundo, porque sustenta seu

modelo absorvendo várias críticas, o que evidencia uma proposta madura em termos

normativos. A recomposição do modelo habermasiano desemboca no problema da condição

de igualdade, que entendemos necessitar de um diálogo com a teoria do reconhecimento. O

tópico primeiro aborda a questão da igualdade pela intersubjetividade conflituosa como

pressuposto inerente à sua materialidade, em que a igualdade consiste em uma constatação

da desigualdade que se vincula ao conflito, motivando o ativismo político dos movimentos

sociais na busca de seus objetivos coletivos. Então, é uma tentativa de alargar a exigência

normativa de igualdade da democracia deliberativa.

Na sequência, o trabalho busca estabelecer a Assembleia Constituinte como um

momento privilegiado de deliberação, desde que o direito fundamental da integridade para

deliberar seja observado. Nesse contexto, Bruce Ackerman e James Fishkin apontam que a

política constitucional atrai atenção dos sujeitos participantes da democracia, propiciando

maior engajamento. Ponderamos essa questão com Jon Elster e suas considerações sobre

racionalidade e pré-compromisso inerentes a uma Assembleia Constituinte. Vale consignar

que o direito fundamental para deliberar é inerente ao modelo habermasiano, todavia, os

demais direitos e mesmo a Constituição não são estáticos, podendo ser modificados.

O último tópico se propõe a analisar a Assembleia Constituinte da Bolívia de 2006-

2007 em função do modelo de democracia deliberativa adaptado à teoria do

reconhecimento. Consideramos que o ativismo político dos movimentos sociais foi

necessário para a inserção das causas indígenas no debate público e subsequente

consecução da condição de igualdade para constituir a Assembleia como um espaço

institucionalizado de democracia deliberativa. Assim, o caso da Assembleia Boliviana é

articulado em duas frentes: a primeira remete ao ativismo político anterior à Assembleia

como forma de desobstruir desigualdades que impediam sua realização; a segunda reflete o

trabalho etnográfico de Schavelzon sobre tal Assembleia recheada de discussão e debates

cujo resultado foi a Constituição da Bolívia de 2009.

Por fim, são apresentadas as considerações finais e referências bibliográficas

utilizadas no presente artigo.

1. CARACTERIZAÇÃO DO MODELO DEMOCRÁTICO DELIBERACIONISTA

A democracia é o cerne do debate político e canaliza esforços teóricos para uma

melhor compreensão e aplicação do regime. As ideologias que impregnam o termo disputam

entre si a proeminência conceitual em modelos normativos que consigam corresponder a

uma melhor apreensão da realidade. Nesse viés, todas as propostas de democracia são

normativas (HABERMAS, 1995) à medida que tentam estabelecer parâmetros de

3

operacionalização. A disputa tradicional opõe o liberalismo ao republicanismo, assim, a

democracia deliberativa se insere no debate democrático como um meio termo (TAVARES,

2012, p. 21) dessa disputa na tentativa de conciliar a legitimidade republicana com o

constitucionalismo liberal: “a política dialógica e a política instrumental podem entrelaçar-se

no campo das deliberações” (HABERMAS, 1995, p. 45). É, portanto, a democracia

deliberativa, um modelo normativo radical fundamentado na teoria do discurso e na filosofia

pragmática (HABERMAS, 2011, p. 19-25; p. 28; p. 43) cujo núcleo é a legitimidade3.

Em uma acepção genérica, o modelo deliberacionista de democracia se concentra

na estrutura procedimental, a qual deve proporcionar a comunicação entre as pessoas

visando à produção de um consenso (HABERMAS, 2011). O caráter procedimental assume

importância porque a deliberação adquire uma semântica de “discussão e avaliação no qual

os diferentes aspectos de uma determinada proposta são pesados” (AVRITZER, 2000, p.

26) em detrimento da decisão em si4. A centralidade do momento argumentativo inaugurado

por Habermas na década de 1970 é destacado por Avritzer (2000) como uma indicação da

primazia do aspecto qualitativo relacionado à legitimidade do procedimento desenvolvido por

“fluxos comunicacionais” (TAVARES, 2012, p. 25) entre os participantes que constituem

suas subjetividades nesse processo. É a própria consubstanciação do pragmatismo e da

teoria do discurso que anima seu modelo societal, em que os sujeitos deliberantes não são

os indivíduos atômicos do liberalismo majoritário de Weber a Downs motivados por

procedimentos decisionísticos (AVRITZER, 2000, p. 27-31), mas se perfazem na interação

social que afasta a tensão entre sociedade e indivíduo (TAVARES, 2012, p. 25). Dessa

interação entre os sujeitos participantes deve surgir a integração social para alcançar

resultados positivos “avaliados segundo medidas da racionalidade ética e moral” sendo que

“a estabilização concreta de uma ordem não é indicador suficiente para a racionalidade de

uma solução” (HABERMAS, 2011, p. 47).

A questão da racionalidade no modelo de Habermas aponta para a complexidade

das sociedades contemporâneas e seu pluralismo enquanto teoria social. A indicação do

pluralismo suscitou uma dificuldade para a legitimidade política, derivando duas teorias, a

saber, a teoria do sistema e a teoria econômica, as quais repetem o problema do consenso

reiterado no atomismo ao estabelecê-lo, respectivamente, na órbita do poder situado em

unidades fechadas, logo, incomunicáveis, e na formação da vontade por intermédio da

agregação de manifestações individuais. O problema é o mesmo em ambas as teorias: não

há comunicação, reduzindo a racionalidade à sua dimensão instrumental do agir estratégico

3 A questão da legitimidade é central para Habermas, afinal, é justamente essa categoria que

concentra suas críticas à suposta “empiria” dos modelos predominantes, os quais tendem a reduzir a legitimidade à estabilidade (HABERMAS, 2011, p. 12-18). 4 A deliberação enquanto decisão remete aos primórdios da democracia moderna associados à

Rousseau, tendo proeminência por quase dois séculos (AVRITZER, 2000, p. 26).

4

(HABERMAS, 2011, p. 61-65). O modelo habermasiano se propõe a avançar na

racionalidade desenvolvendo uma atmosfera de comunicabilidade voltada para o

entendimento, em que a ação presente na pretensão torna-se válida pelo agir comunicativo

(HABERMAS, 2011, p. 50), refletindo a própria racionalidade comunicativa em sua essência.

A disposição para a comunicação é percebida por Habermas como um fenômeno europeu

do século XVIII5, em que as pessoas conversavam orientadas para o entendimento,

independentemente da política e do direito (HABERMAS, 2011, p. 51). Em todo caso, a

sociedade moderna, para Habermas, possui condições de racionalidade que superam o

isolamento da vontade, seja na interação dos indivíduos, seja na interação entre sistemas.

Mais uma vez, a proposta é uma alternativa em prol da racionalização que “significa mais do

que simples legitimação, porém menos do que a constituição do poder” (HABERMAS, 2011,

p. 23). Assim, não há desconsideração do sistema ou da razão instrumental nesse modelo,

mas uma tentativa de superar suas formas isolacionistas de compor o poder, por isso a

conexão do sistema ao mundo da vida (HABERMAS, 2011, p. 84).

Uma vez pontuado o problema das teorias políticas derivadas da teoria social do

pluralismo, Habermas (2011, p. 84) sustenta a importância do poder comunicativo para seu

modelo societal em que “a política e o direito não podem ser entendidos como sistemas

autopoieticamente fechados”. O elemento diferencial na proposta social de Habermas (2011,

p. 86) é a questão da linguagem a qual viabiliza o poder comunicativo. A linguagem para

Habermas, embora não tenha necessidade de ser especializada, deve ser um código

comum no seio da sociedade que possibilita a circulação do poder; a circulação do poder

então transparece nos “processos de comunicação e de decisão do sistema político

constitucional (...) ordenados no eixo centro-periferia, estruturados através de um sistema de

comportas” (HABERMAS, 2011, p. 87). Os conceitos de esfera pública e de sociedade civil

ganham visibilidade em Habermas como retroalimentação do sistema. Enquanto a esfera

pública “pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos,

tomadas de posição e opiniões” (2011, p. 93), a sociedade civil6 tem um aspecto material

nas “associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram

as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da

vida” (2011, p. 100). Dessa forma, o mundo da vida se entrelaça ao poder político mediado

pela esfera pública, que é onde se desenvolve o agir comunicativo da racionalidade ideal

habermasiana visando o entendimento.

5 Esse indício de esfera pública que para Habermas se situa historicamente no século XVIII é

contestado e tratado como um anacronismo habermasiano, devendo voltar à Florença renascentista (BURKE apud TAVARES, 2012, p. 189). 6 Habermas (2011, p. 99-100) destaca que seu conceito de sociedade civil difere do de Hegel

(“sistema das necessidades”) e do de Marx (atrelado à economia).

5

A dimensão argumentativa reflete a racionalidade e permeia o debate público em

Habermas através de seu princípio do discurso, que remete à consecução de validade

(AVRITZER, 2000, p. 39-40), complementado pelo princípio da universalização cujo objetivo

é verificar a plausibilidade de casos particulares ao substrato comum em uma tarefa de

adequação reflexiva. Os princípios habermasianos permitem sintetizar a democracia

deliberativa como um procedimento que os “sujeitos racionais, autônomos e iguais entre si

participam de um intercâmbio comunicativo guiado apenas pela força dos melhores

argumentos, com vistas à produção de decisões que possam ser universalmente válidas”

(TAVARES, 2012, p. 29).

Joshua Cohen (1989, p. 31-33) estabeleceu uma concepção formal de democracia

deliberativa tendo em vista quatro características principais que se estabelecem para um

procedimento ideal baseado em liberdade (ausência de constrangimentos); racionalidade

(na fundamentação); igualdade (formal e substantiva); e, (orientado para o) consenso. O

conceito de democracia deliberativa explicitado por Cohen é retomado por Habermas (2011,

p. 28-33), mas este difere daquele ao estipular o procedimento deliberativo “não como

modelo para todas as instituições sociais (nem mesmo para todas as instituições do

Estado)”. Essa restrição de Habermas (2011, p. 28-29) refere-se ao alargamento da

deliberação política em Cohen, algo que não é não tolerado por Habermas. Segundo

Habermas a perspectiva de Cohen é impossibilitada pela limitação de regulamentação do

direito, em que a deliberação política se atrela ao mesmo, portanto, a proposta de Cohen, na

visão de Habermas, reduz a sociedade ao direito ou amplia este à sociedade (as duas

coisas são impossíveis). Ademais, Habermas (2011, p. 32) critica o modelo de Cohen

denunciando sua omissão em relação a “diferenciações internas importantes” bem como a

ausência de “enunciados sobre a relação existente entre as deliberações, que são reguladas

através de processos democráticos, e os processos de formação informal da opinião na

esfera pública”.

Independentemente das divergências entre Habermas e Cohen, é muito caro a

ambos os autores a questão da igualdade. Tal exigência normativa suscitou e suscita várias

críticas7, todavia, nosso intuito é equacionar a condição da igualdade pela teoria do

reconhecimento a fim de adequá-la à complexidade das sociedades contemporâneas.

1.1. A IGUALDADE SOB O PRISMA DO RECONHECIMENTO

Para uma visualização da igualdade na teoria do reconhecimento, partimos das

análises de Charles Taylor, filósofo canadense. Axel Honneth, que é nosso referencial para

7 Não é escopo deste artigo uma revisão bibliográfica sobre a igualdade ou ausência dela na

democracia deliberativa, todavia, consignamos a crítica contumaz de Young (2000) quanto as desigualdade estruturais tangentes à inclusão.

6

uma teoria social envolta na categoria “reconhecimento” coaduna com a digressão filosófica

de Taylor na qual o canadense reinterpreta a obra de Hegel contextualizando-a para a

realidade complexa das relações sociais atuais. Além disso, Taylor continua a tradição

hegeliana de tratar os temas políticos atrelados aos dilemas éticos, sendo que ética e

política são componentes de uma mesma totalidade. A principal obra de análise de Taylor é

a “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, publicada em 1807 e o paradigma do capítulo IV

expressado na “Dialética do Senhor e do Escravo”. Embora Taylor admita a presença

pioneira do reconhecimento na obra hegeliana, o autor canadense faz um recuo histórico

para posicionar as origens do reconhecimento no pensamento ocidental e sua construção

anterior à Hegel (TAYLOR, 2000, p. 242).

A primeira percepção de Taylor para desencadear a ideia de reconhecimento foi o

advento da noção moderna de dignidade em substituição à honra típica do Antigo Regime.

Segundo Taylor (2000, p. 244), Rousseau é o primeiro filósofo a conceber o indivíduo como

um ser dotado de “sentimento de existência”, o que lhe permite discernir o certo do errado

baseado em princípios morais “na recuperação do contato moral autêntico com nosso

próprio ser”. Também de acordo com o canadense, em Herder o ideal de autenticidade é

acentuado com a definição de que “cada pessoa possui a sua própria medida” (TAYLOR,

2000, p. 244-245) o que significa dizer que cada pessoa tem uma maneira original de ser.

Assim, o ideal de autenticidade aparece como uma novidade do século XVIII, um fenômeno

historicamente recente e peculiar da cultura ocidental. O próprio Herder, segundo Taylor

(2000, p. 245), aplicou esse ideal moderno de autenticidade em dois níveis: “não só à

pessoa individual entre outras pessoas mas também ao povo dotado de sua cultura entre

outros povos”. Ao mesmo tempo, Taylor (2000, p. 246) concebe a condição humana ligada a

um processo dialógico que se manifesta na linguagem, a qual possibilita a intersubjetividade

e amplia as margens do ideal de autenticidade. A linguagem deve ser tomada em sentido

amplo, “incluindo as ‘linguagens’ da arte, do gesto, do amor etc (...); modos de expressão

por meio de intercâmbios com outras pessoas” (TAYLOR, 2000, p. 246). A linguagem

trespassa e formata a história individual e social dos sujeitos dialógicos. Nesse sentido, a

formação do indivíduo não é apenas um processo monológico, o qual não é descartado,

mas é complementar à dialógica, pois a identidade enseja rompimentos monológicos em

relação à dependência dialógica (negar o que é construído intersubjetivamente), e isto

mesmo em relação às pessoas que amamos, embora nunca haja uma libertação completa

(TAYLOR, 2000, p. 247). Interessante observar que Taylor coincide com Habermas quanto à

importância da linguagem na constituição social e individual, mas em Taylor, a linguagem

tem um aspecto mais amplo.

7

A questão da identidade é, nesses termos, algo construído socialmente por

processos dialógicos. O problema é que na modernidade surge o aspecto da autenticidade

que permite um potencial de identidade original no indivíduo, mas que não goza de imediato

reconhecimento. Até então, o reconhecimento não era um problema, pois não havia a noção

de originalidade: “o que surgiu com a era moderna não foi a necessidade de

reconhecimento, mas as condições em que a tentativa de ser reconhecido pode malograr.

Eis por que essa necessidade é agora reconhecida pela primeira vez” (TAYLOR, 2000, p.

248).

Após fazer o percurso histórico-filosófico do reconhecimento e referenciar

Rousseau e Herder, Taylor (2000, p. 248-249) confirma que Hegel é quem confere

tratamento influente à questão. Afirma que o reconhecimento tem, atualmente, importância

nítida, operando no plano interno e no plano social. Especialmente no plano social, a

identidade deve ser considerada com muita cautela, tendo em vista que “o reconhecimento

igual não é somente a modalidade apropriada a uma sociedade democrática saudável. Sua

recusa pode, de acordo com uma disseminada visão moderna (...) infligir danos àqueles a

quem é negado” (TAYLOR, 2000, p. 249). Sendo assim, a ética da autenticidade

estabeleceu um novo paradigma na política do reconhecimento (igual). Mas deve-se tomar

cuidado ao considerar a realização da política baseada apenas no aspecto da dignidade

com vistas à igualdade entre as pessoas. Ora, a igualdade alicerçada apenas na dignidade

sem considerar a autenticidade pode levar a políticas homogeneizantes contrárias ao ideal

de autenticidade, à medida que não reconheça ou reconheça a pessoa erroneamente: “o

reconhecimento errôneo não se limita a faltar ao devido respeito, podendo ainda infligir uma

terrível ferida (...). O devido reconhecimento não é uma mera cortesia que devemos

conceder às pessoas. É uma necessidade vital humana” (TAYLOR, 2000, p. 242).

A partir de uma dialética hegeliana, Taylor concebe o reconhecimento enquanto

uma luta intersubjetiva em aberto: um movimento contínuo sem um objetivo final único e

específico, compondo a própria ação democrática permanente, na qual o pertencimento do

ser a uma comunidade é decisivo na constituição de si e ampliação da margem

interpretativa no substrato social que condiciona a identidade, seja no plano íntimo ou social.

A operação política nesse diapasão imbrica os dois momentos acima explanados. Um

primeiro momento de universalização apoiado na ideia de dignidade igual para todos os

cidadãos, que ao mesmo tempo ensejou uma mudança na identidade apoiada na

autenticidade, originando uma política da diferença como um segundo momento (TAYLOR,

2000, p. 250-251). A política da universalidade deve abarcar as diferenças, formatando

então uma legítima política dessa diferença, que por sua vez, não deixa de apresentar uma

base universalista: “é aqui que o princípio de igualdade universal coincide com a política de

8

dignidade. (...) A exigência universal estimula um reconhecimento da especificidade”

(TAYLOR, 2000, p. 251). Em suma, a igualdade se construiu e se constrói histórica e

hodiernamente entre a tensão do universal com o diverso, consolidando um conceito de

igualdade sintetizado por sua desigualdade inerente em um processo dialético. O conceito

de igualdade conferido pela teoria do reconhecimento permite refletir sobre a democracia

deliberativa em função de uma igualdade/desigualdade que se faz e se refaz através de

lutas prévias e permanentes por condições de igualdade que tangenciam as diferenças8.

Muito embora Taylor reconstrua, filosófica e historicamente, o conceito de igualdade

abalizado pela diferença na tensão entre dignidade universal (igualdade) e autenticidade

específica (diferença) de cada um, é em Honneth que a categoria “reconhecimento” recebe

contornos de uma teoria social distinta do modelo societal habermasiano, mas que não

inviabiliza a política deliberativa, pelo contrário, desobstrui suas barreiras estruturais para a

efetivação procedimental democrática.

1.2. A TEORIA SOCIAL DO RECONHECIMENTO: IMPORTÂNCIA DO ATIVISMO

POLÍTICO

“Luta por Reconhecimento” é a obra central do autor alemão Axel Honneth,

publicada em 1992. Sua base filosófica hegeliana é evidenciada pelo próprio autor.

Diferentemente de Taylor, Honneth concentra sua tese nos escritos primeiros de Hegel, em

Jena, pois, segundo Honneth (2003), é neste momento9 que Hegel expõe seu potencial

teorético em uma construção social cujo cerne é a luta por reconhecimento. O livro em tela é

proveniente da tese de livre-docência de Honneth, e, conforme o próprio autor deixa claro no

prefácio de sua obra, é uma tentativa de “desenvolver os fundamentos de uma teoria social

de teor normativo” (HONNETH, 2003, p. 23). Honneth se propõe a resgatar o potencial

conflitivo de Hegel. Essa tarefa tem duas metas preliminares: primeiro, transpor a metafísica

hegeliana para uma base empírica; segundo, atualizar essa estrutura tendo em vista a

sociedade contemporânea (HONNETH, 2003, p. 117-118). Mead, que também influencia a

obra de Taylor, é o referencial teórico de Honneth para cumprir os dois objetivos acima

destacados. No caso, Mead e sua psicologia social perfazem um caminho para “traduzir a

teoria hegeliana da intersubjetividade em uma linguagem teórica pós-metafísica”

(HONNETH, 2003, p. 123).

8 “A deliberação que defendemos é receptiva à diferença exatamente porque não requer o

apagamento do eu. Essa visão é facilmente conciliável com a teoria do reconhecimento” (MENDONÇA, 2011, p. 211). 9 Honneth retoma o jovem Hegel e seu potencial de luta por reconhecimento, potencial este, que,

segundo o próprio Honneth, se perde em suas obras posteriores. No caso, Honneth tenta revitalizar esse potencial hegeliano em uma inovadora teoria social que é o cerne de seu trabalho.

9

Tal qual Hegel, Mead parte da constituição do indivíduo através de relações

intersubjetivas. Também acompanha Hegel na tríade que vai desde o amor, passando pelo

direito até a sociedade. Em uma construção diferente com base na psicologia, Mead explica

a formação do ser desde a sua concepção no ventre materno até a sua inserção na seara

social em uma dinâmica reflexiva cujo movimento é constante na definição de si, partindo da

dupla consecução do ser enquanto sujeito e objeto, em que primeiro constitui o objeto de si

para depois entendê-lo como sujeito na interação intersubjetiva10. Todo esse processo tem

por escopo a formação da identidade no ser individuado progressivamente (HONNETH,

2003, p. 144). Mead coaduna com Hegel quanto ao significado da ampliação do

reconhecimento jurídico como uma evolução moral da sociedade, em que dois processos se

evidenciam: primeiro, um aumento da “dimensão do espaço para a liberdade individual”;

segundo, um incremento social tangente ao “número crescente de sujeitos pela adjudicação

de pretensões jurídicas” (HONNETH, 2003, p. 146). Mas, assim como Hegel, Mead se perde

em seu quadro explicativo. Quando Mead tenta conectar o ser à sociedade em sua luta por

reconhecimento, reduz a realização de si à “experiência do trabalho socialmente útil” e “não

se conclui daí uma independência em relação às finalidades éticas da coletividade

correspondente” (HONNETH, 2003, p. 150-151).

Em todo caso, a psicologia social de Mead permite uma “inflexão ‘materialista’” da

luta por reconhecimento hegeliana (HONNETH, 2000, p. 155). O trabalho de Honneth (2000,

p. 156) é contemporizar Hegel a Mead em uma justificação consoante aos “resultados da

pesquisa empírica”. Nas palavras de Honneth (2003, p. 157): “tanto em Hegel como em

Mead não se encontra uma consideração sistemática daquelas formas de desrespeito que

podem tornar experienciável para os atores sociais, na qualidade de um equivalente

negativo das correspondentes relações de reconhecimento, o fato do reconhecimento

denegado”. Um desenho normativo passa a ser delineado na explicação da resistência

social quanto à sua motivação, isto é, o reconhecimento opera de maneira dialética correlata

à sua própria negação. Primeiramente, o amor e sua integridade corporal têm como

contraponto os maus-tratos físicos cujo efeito é a perda de confiança em si mesmo

(HONNETH, 2003, p. 214-216). Em seguida, o direito e a integridade social têm como

antípodas a privação de direitos e a exclusão que geram a perda do respeito em si próprio

(HONNETH, 2003, p. 216-217). Por último, a solidariedade tem seu oposto na degradação e

na ofensa que impedem a dignidade resultando em perda de estima pessoal (HONNETH,

2003, p. 217-218).

10

Ressaltamos, neste ponto, que o reconhecimento adquire, para Honneth, inspirado em Mead, um aspecto pré-linguístico na formação do ser desde o amor maternal, o que não afasta a importância da linguagem (em sentido amplo, assim como em Taylor) na maior parte das relações sociais intersubjetivas voltados para o reconhecimento.

10

Em Hegel e Mead “faltava de certo modo o elo psíquico que conduz do mero

sofrimento à ação ativa” (HONNETH, 2003, p. 220), por isto, o autor de “Luta por

Reconhecimento” busca na psicologia pragmática de Dewey uma “concepção dos

sentimentos humanos nos termos da teoria da ação” em que “os sentimentos representam

de modo geral as reações afetivas no contrachoque do sucesso ou do insucesso de nossas

intenções práticas” (HONNETH, 2003, p. 221). Dessa forma, Honneth (2003, p. 224) situa a

luta por reconhecimento em função de impulsos motivacionais derivados de “reações

emocionais de vergonha” em que “os sujeitos humanos não podem reagir emocionalmente

neutros às ofensas sociais”.

A explicação da resistência em termos normativos parte de pressupostos sensitivos

de injustiça, sendo que seus motivos “se formam no quadro de experiências morais que

procedem da infração de expectativas de reconhecimento profundamente arraigadas”

(HONNETH, 2003, p. 258). Há, portanto, uma eticidade coletiva que leva o sujeito e sua

correlata experiência pessoal a se inserir em um “círculo de muitos outros sujeitos”

afastando qualquer posição de neutralidade diante do desrespeito, o qual não é

“passivamente tolerado” e “restitui ao indivíduo um pouco de seu autorrespeito perdido”

(HONNETH, 2003, p. 258-260). A busca de um critério normativo reflete a equação entre as

determinações formais e abstratas concernentes ao indivíduo e seu potencial e as

perspectivas concretas e externas esboçadas no teor comunitário (HONNETH, 2003, p. 271-

272). A despeito da insuficiência das teorias de Hegel e Mead, “ambos avançaram até o

limiar em que começa a se entrever um conceito de solidariedade social que aponta para

uma estima simétrica entre cidadãos juridicamente autônomos” (HONNETH, 2003, p. 279).

Neste ponto se engendra o critério de Honneth (2003, p. 279) considerando a tríade

tipológica de Hegel e Mead como uma retroalimentação sistemática com vistas à

“comunidade de valores” a qual define as “finalidades partilhadas em comum (...)

submetidas às limitações normativas postas com a autonomia juridicamente garantida de

todos os sujeitos, é o que resulta de sua posição num tecido de relações”.

A receita de Honneth para equilibrar a tensão entre o universal e a especificidade é

a simetria, a qual possibilita uma luta por reconhecimento que alargue o escopo ético em

uma espiral constante e evolutiva cujo resultado é um progresso moral da sociedade

apoiado em buscas por estima. Mas, essa indicação de critério normativo de cunho material

deve se atentar para a complexidade contemporânea e sua vasta gama de intenções, o que

estimula movimentos políticos a atuarem incisivamente (HONNETH, 2003, p. 280). Por isso,

Honneth (2003, p. 280) diz que o arsenal de valores materiais ainda precisa ser bastante

ampliado, o que renova o conflito e, na condição atual, demonstra ainda uma tensão

insuperável. O ativismo político dos movimentos sociais na teoria de Honneth é uma busca

11

por reconhecimento no binômio igualdade/desigualdade. Seu modelo normativo de

sociedade consiste em um complemento à condição de igualdade para a deliberação

pública, ou seja, é uma contribuição ao quadro sociológico de Habermas que não inviabiliza

o cerne da democracia deliberativa, mas deve considerar uma sociedade conflituosa em sua

essência, que se edifica pela luta intersubjetiva alargando a eticidade; nesse prisma, a

democracia deliberativa é uma forma política possível na teoria do reconhecimento. O

ativismo se justifica na busca de reconhecimento igual para deliberar, especialmente nos

momentos constitucionais.

2. POLÍTICA CONSTITUCIONAL E DELIBERAÇÃO

A deliberação habermasiana é um momento político condicionado pelo direito. Há

uma vinculação muito forte nessa relação que desautoriza generalizar a deliberação política

para toda e qualquer emanação social como queria Joshua Cohen (1989). A concepção de

Cohen, inclusive, tangencia o republicanismo em seu ideal de sociedade como “totalidade

política”, o que Habermas (2011, p. 20) rechaça. Com seu modelo, Habermas está

interessado na deliberação voltada para a política, e nesse caso, necessita ser

regulamentada pelo direito. Em Habermas, o direito tem grande importância para que a

decisão política seja fruto de um processo legítimo de deliberação, por isso o direito deve

ser uma constante em seu modelo, sendo que o próprio autor afirma que “o modo de operar

de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser descrito

adequadamente (...) quando não se leva em conta a dimensão de validade do direito e a

força legitimadora da gênese democrática do direito” (HABERMAS, 2011, p. 9). Nesse viés,

a Constituição aparece como um meio de conformar validade e facticidade, ou seja, o direito

relativo aos processos políticos.

Mais uma vez, ressaltamos que a deliberação na esfera pública ocorre

independentemente da política e do direito. Aliás, mencionamos no desenrolar do primeiro

tópico a identificação histórica feita por Habermas desse fato no século XVIII. No entanto,

salienta-se que a deliberação democrática a qual orienta a política tornando-a legítima pelo

direito é a que importa ao modelo habermasiano. Assim, seu modelo tem uma historicidade

ligada ao constitucionalismo como uma delimitação da prática discursiva que respalda a

política, por isso eleva a “proteção individual do sistema de direitos fundamentais”

(TAVARES, 2012, p. 34) como a meta do direito que deve, nesses termos, garantir a

integridade dos sujeitos para que possam atuar na esfera pública.

O direito à deliberação é sustentado pela Constituição, mas esta é percebida em

seu dinamismo como algo inacabado, ou seja, é “carente de revisão, o qual tende a

reatualizar, em circunstâncias precárias, o sistema dos direitos, o que equivale a interpretá-

12

los melhor e a institucionalizá-los de modo mais apropriado” (HABERMAS, 2011, p. 119).

Aqui nos interessa o papel da Constituição enquanto objeto do ativismo político. O próprio

Habermas relaciona a expectativa dos direitos com a desobediência civil quando aquela não

é efetivada, justificando tal desobediência, o que sugere o ativismo político (TAVARES,

2012a). O limite para a alteração da Constituição, a nosso ver, em Habermas, está na

conservação dos direitos fundamentais para a deliberação: se os mesmos forem

respeitados, a deliberação é livre para modificar politicamente a própria Constituição.

A postura habermasiana quanto à modificação do direito não se contrapõe

diametralmente a teoria do reconhecimento de Honneth (2003). Aliás, a luta por direitos tem

por fundamento moral a solidariedade, a qual legitima a ação política do movimento social

quando este não encontra bases jurídicas para suas pretensões e à medida que conquista

seus anseios na forma de direito amplia o reconhecimento jurídico em um alargamento

espiral do todo ético societal. A ratificação do reconhecimento em termos jurídicos amplia a

margem do direito mesmo na perspectiva habermasiana, contribuindo para a democracia

deliberativa.

Na obra “Deliberation Day”, Ackerman e Fishkin (2004, p. 152) classificam o

momento deliberativo em “normal” e “constitucional”. Os autores reconhecem que em

períodos normais de política os cidadãos se comportam de forma a não se engajarem na

mesma e preferem seus negócios privados às questões públicas. Entretanto, esses

períodos normais de política são rompidos por políticas de mobilização de massas, que

seriam momentos de política constitucional. Assim, a maior parte dos momentos de forte

mobilização de massas em questões políticas é relativa a fatos extraordinários e relevantes,

que avalizam a evolução política. Tais momentos políticos diferem da política normal e

consistem em “modelos de política constitucional” (ACKERMAN; FISHKIN, 2004, p. 152). Os

autores ilustram essa diferenciação com exemplos históricos estadunidenses nos séculos

XVIII, XIX e XX (ACKERMAN; FISHKIN, 2004, p. 152-153) em que mobilizações resultaram

em mudanças constitucionais, sendo típico da democracia daquele país. Em suma, o

momento constitucional é privilegiado no debate político sustentando a deliberação pública.

O caso dos Estados Unidos pode parecer excepcional porque existe uma Constituição a

qual não é modificada em sua essência pela deliberação e pelo resultado que dela pode

derivar. Mas, os próprios autores referenciados ressaltam a confecção da Constituição

Estadunidense como um momento de democracia deliberativa. É esse aspecto que importa

ao nosso trabalho: momentos pré-constitucionais enquanto procedimentos de democracia

deliberativa. A seguir, tentaremos justificar que uma Assembleia Constituinte é um momento

de deliberação política.

13

2.1. ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

O caso dos Estados Unidos elucidado por Ackerman e Fishkin (2004) ajuda a

pensar sobre o momento ideal de deliberação pública em que temáticas constitucionais

invadem toda a política e motivam um engajamento social. Considerando que é comum que

“uma Constituição escrita regulamente os aspectos mais fundamentais da vida política”

(ELSTER, 2009, p. 133), parece óbvio o fato de o momento constitucional ter maior

repercussão, pois se trata da própria base jurídica que conforma a vida política por

excelência. Mas, uma ressalva quanto à estrutura da Constituição deve ser consignada: a

“constituição deveria ser uma estrutura de ação política, não um instrumento para a ação”

(ELSTER, 2009, p. 133), por isso, há uma dificuldade maior para se alterar o quadro político

constitucionalizado, pois se pressupõe ser seu próprio fundamento.

A Constituição considerada como garantidora dos direitos fundamentais,

teoricamente, consiste em um obstáculo para a própria mudança constitucional. Contudo,

essa mudança é factível não apenas em termos de reformas, mas também em vias de

substituição completa de uma Constituição por outra, o que torna importante considerar o

contexto de instituição de uma Assembleia Constituinte. O pré-compromisso constitucional é

evidenciado no momento em que se observa a existência de limites e garantias em uma

Assembleia Constituinte, independentemente de uma Constituição propriamente dita

(ELSTER, 2009), confirmando a primazia do constitucionalismo como pré-compromisso. Se

considerarmos os casos de Assembleias motivadas por comoção social traduzida em

participação e engajamento nas mesmas, podemos inferir que a Assembleia é um momento

de política constitucional deliberativa democrática.

Desde já, é importante ressaltar que “o processo formal de elaboração de uma

Constituição é um fenômeno relativamente recente” (ELSTER, 2009, p. 139). Os casos

pioneiros foram os Estados Unidos e a França no século XVIII. Uma dúvida pertinente para

dimensionar o pré-compromisso refere-se ao processo constitucional “como atos de

restrição de outros ou como atos de auto-restrição” (ELSTER, 2009, p. 139). Geralmente, as

Assembleias Constituintes “tendem a se considerar detentoras do (...) direito de definir seus

poderes”, todavia, a decisão de convocar a Assembleia e o mecanismo de eleição são

anteriores à mesma. O tipo mais interessante relativo à Assembleia Constituinte é “um velho

regime tentando restringir o novo ao qual está, relutantemente, dando origem”, imbricando a

restrição externa com a auto-restrição. A conclusão parcial é que embora a Assembleia não

tenha poder sobre sua convocação e delegação originais, “ela pode se apropriar do poder

sobre todas as outras decisões” (ELSTER, 2009, p. 141-142). Apesar disso, o

constitucionalismo influencia na Assembleia Constituinte que se propõe a confeccionar uma

nova Constituição: se as normas constitucionais anteriores eram boas, há uma tendência

14

em mantê-las como regras de deliberação (ELSTER, 2009, p. 147-149), sendo que o

contrário também tende a acontecer. Como a Assembleia se torna uma instituição com

muito poder e sua atuação reflete o respaldo popular, o pré-compromisso é importante para

acalmar a paixão e suas efemeridades (ELSTER, 2009, p. 154; 168-180). Assim, são os

constituintes que se pré-comprometem “eles mesmos contra as tentações da paixão e do

interesse” (ELSTER, 2009, p. 180). Os direitos fundamentais aparecem nas Assembleias

nos momentos em que, mesmo com um poder à primeira vista ilimitado, os constituintes

consideram os direitos inerentes àquela sociedade, isto é, o constitucionalismo em sua

acepção histórica (CANOTILHO, 2003). Em uma sociedade que reitere o direito fundamental

de integridade para deliberar, o mesmo funciona como pré-compromisso constitucional em

uma Assembleia na afirmação da política deliberativa. Obviamente que os casos

excepcionais que não conformam um regime democrático são descartados e não se

compatibilizam com a explanação.

Uma Constituição não se confunde com o pré-compromisso em si11, tanto que,

conforme exposto acima, uma Assembleia não se apega à Constituição anterior, pois tem

poder para além desta. Todavia, o traço do constitucionalismo que se manifesta

historicamente (CANOTILHO, 2003) em uma determinada sociedade funciona como pré-

compromisso. O efeito disso está nos motivos dos constituintes os quais não se movem

exclusivamente por interesse próprio (ELSTER, 2009, p. 221). Retomando a questão sobre

o momento constitucional como o ideal para deliberação (Ackerman; Fishkin, 2004), parece

razoável supor que o momento constitucional mobilize mais as massas, tendo em vista que,

geralmente não há razões para que a política normal mobilize massas em deliberação

constante, pois a política normal decorre de uma questão constitucional anterior, o que

significa dizer que a Constituição em si já regulamentou a vida política considerando uma

deliberação que a direcionasse. Logo, o momento constitucional em sua possibilidade de

alterar o que é normal é que chama a atenção dos sujeitos para se engajarem em

deliberações. Nesse sentido, toda política é constitucional e considerou uma deliberação

prévia para se realizar. Por isso mesmo Jon Elster (2009, p. 218-219) em “Ulisses Liberto”

não supõem mais12 uma dicotomia entre constituintes e políticos que derivariam de

momentos políticos distintos, sendo que “muito da política constitucional é semelhante à

política rotineira no que diz respeito aos motivos, e que não podemos (...) esperar que os

constituintes imperfeitos criem constituições perfeitas que controlarão as imperfeições dos

11

O próprio Jon Elster (2009, p. 213) diz que “em Ulysses and the Sirens cheguei perto de admitir tanto que constituições são dispositivos de pré-compromisso (no sentido intencional) quanto que as sociedades devem se auto-restringir por dispositivos de pré-compromisso constitucionais. Como já disse diversas vezes anteriormente, essas alegações são altamente contestáveis, em termos conceituais, causais e normativos”. 12

Elster (2009, p. 218) ressalta que em trabalhos anteriores considerava existir essa dicotomia.

15

políticos futuros”. Em síntese, coadunamos com Ackerman e Fishkin quanto à dimensão do

momento constitucional balanceada com Elster por possuir características que interferem na

normalidade política, do qual decorre a mobilização das massas. Ainda com Elster, o

constitucionalismo se manifesta mesmo em casos de Assembleia Constituinte em que os

constituintes adotam pré-compromissos independentemente da Constituição anterior,

evidenciando o compromisso com os direitos fundamentais consolidados em uma

determinada sociedade. Para a realização da democracia deliberativa importa o direito

fundamental de integridade para deliberar, o que engloba momentos pré-constitucionais

como é o caso de uma Assembleia Constituinte. Em suma, desde que mantido o direito à

integridade para deliberação nos termos habermasianos, uma Assembleia Constituinte pode

se caracterizar como um espaço institucionalizado para a democracia deliberativa.

3. O CASO DA BOLÍVIA

Nesse tópico buscaremos posicionar o cenário político boliviano mesclando o teor

normativo da teoria do reconhecimento com a teoria da democracia deliberativa. Trata-se de

uma avaliação empírica baseada nos levantes sociais que tiveram por base ampliar seus

direitos, o que foi feito modificando-se radicalmente o quadro constitucional, mais

especificamente, através de uma substituição.

A Bolívia apresenta uma história constitucional bastante dinâmica. Desde a

proclamação da República no século XIX e sua primeira Constituição datada de 1826 até a

de 1967, foram 18 textos constitucionais. Durante este período, a Convenção de 1921 e o

Referendo de 1931 funcionaram, institucionalmente, como constituições, por isso são

contabilizadas como tais. A Constituição de 1967 foi ainda reformada em 1994 e 2004. De

certa forma, as variadas constituições seguem a linha política de funcionar como formas

jurídicas que garantem o poder legítimo dos que estão no governo (CARMAGNANI, 1984),

todavia, uma parcela numericamente significativa de bolivianos, sobretudo de origem

campesina e indígena, os quais muitas vezes foram tratados indistintamente, sempre foi

excluída do processo político constitutivo.

A Constituição de 2009, independentemente de suas inovações jurídicas e políticas,

difere das anteriores por resultar de uma ampla participação social, envolvendo discussões

até então mitigadas pelas instituições, mas que se faziam presentes na esfera pública pelo

menos desde 1952. A Assembleia Constituinte iniciada em 2006 foi um local privilegiado

desse debate político (SCHAVELZON, 2010) que só foi possível graças a uma trajetória

extensa de lutas e ativismo dos movimentos sociais em prol de mudanças baseada na ideia

de igualdade com suas devidas diferenças.

16

3.1. ATIVISMO BOLIVIANO: BUSCA DE IGUALDADE NA DIFERENÇA

A resistência na Bolívia13 tem relação direta com a colonização espanhola, sendo

que mesmo com a incorporação da Bolívia ao mundo hispânico, o país americano continua

marcado pela identidade autóctone e pelas raízes originárias, reproduzidas em idiomas que

vivem no seio comunitário revitalizando os grupos étnicos que nelas se expressam. O

ativismo político intensifica-se principalmente pela representação política indígena, a qual

ganhou corpo nos anos 1970 até culminar em uma consistente resistência contrária à ordem

estatal evidenciada nas eleições gerais de 2002 (CAMARGO, 2006, p. 11-12).

Conforme ressaltado, a resistência indígena é inerente à Conquista, mas seu

potencial político tem como ponto de partida o ano de 1952, em que a trajetória do índio

boliviano se fortaleceu em função de uma causa uniforme pelo reconhecimento. Assim, o

indígena passou a representar uma força política com projetos bem definidos até culminar

no movimento katarista no início dos anos 1970, em uma imbricação de atuação política

fundamentada em ideologias próprias e metas autênticas. (CAMARGO, 2006, p. 14-15).

A realidade boliviana consiste em uma situação complexa em que o arcabouço

étnico das civilizações pré-colombianas corrobora na construção de um discurso político

peculiar para o indígena como um todo, o qual é por sua vez, numericamente expressivo,

mas bastante segmentado na Bolívia. Mesmo assim há uma convergência de perspectivas

contra o domínio sobre o indígena. Entendemos que a cosmologia14 das civilizações pré-

colombianas fornece uma eticidade que motiva a resistência indígena na Bolívia devido à

sua alta ressonância simbólica e política condensada em uma “memória mítica coletiva dos

grupos autóctones” (CAMARGO, 2006, p. 17).

A ordem colonial subsequente à Conquista percorreu um caminho de exclusão do

indígena do quadro político e social com controles urbanos e repressão religiosa, relegando

o indígena como mão-de-obra em trabalhos forçados coletivos. Mesmo assim, a resistência

persistia em camuflagens litúrgicas e na permanência de componentes de produção agrícola

comunitária. Grandes insurreições indígenas aconteceram no século XVIII, como por

exemplo, a de Tupac Katari. A emancipação política boliviana no século XIX, que teve

atuação indígena, não trouxe qualquer melhoria para o mesmo. Pelo contrário, as

oligarquias típicas do século XIX na Bolívia revitalizaram “a visão de superioridade branco-

européia” que enquadrava o indígena como “selvagem” e inferior (CAMARGO, 2006, p.

13

Mesmo antes da colonização espanhola, existem relatos históricos de resistência dos povos autóctones da região contra o domínio incaico (CAMARGO, 2006, p. 51). 14

Essa cosmologia tem um complexo referencial histórico e étnico que sintetiza culturas distintas e agrupa processos de aculturação para fundamentar a resistência indígena atual. Destacamos os mitos andinos arrolados por Camargo (2006): Pachacuti (ciclos de criação e destruição nos Andes); Pachamama (figura mitológica da terra mãe); e, o Inkarrí (o Inca que retorna). Vários outros vínculos com o passado étnico multicultural são trabalhados por Camargo, mas não são objetos do nosso trabalho.

17

121). Uma reação contundente a essa postura foi a rebelião de Zárate Willka, o Mallku15,

unindo quéchuas e aimarás16.

A Bolívia viveu uma espécie de “apartheid” (CAMARGO, 2006, p. 130-134) cujo

ápice compreendeu do final do século XIX até a primeira metade do século XX. Essa

situação tornou-se insustentável para o indígena que teve sua cultura subjugada ao longo

de todo o processo colonial, condição que piorou com a independência política do país

encabeçada pelas oligarquias, deflagrando verdadeiros ciclos de rebeliões entre 1910 e

1930. Nesse meio tempo, ocorreu a Guerra do Chaco contra o Paraguai entre os anos de

1932 e 1935. A derrota escancarou, mais do que qualquer perda material, a ausência

completa de uma unidade política em torno de uma ideia de nação. Desenvolveu-se uma

consciência social boliviana de que não existia qualquer concretização de “povo boliviano”,

pois o indígena fora alijado do processo nacional (CAMARGO, 2006, p. 134-139). Após essa

guerra contra o Paraguai os movimentos indígenas ganharam corpo sob um discurso

pedagógico que culminou na Revolução de 1952. Até então, o índio teve papel subalterno

no cenário político (CAMARGO, 2006, p. 143).

A Revolução de 1952 é fundamental para a compreensão da Bolívia

contemporânea. A essência revolucionária está em incluir politicamente novos grupos

sociais em uma redefinição de Estado representativo de tais grupos. Com propostas de

reformas educacional e agrária, a inspiração da Revolução é a questão da identidade

nacional. O índio é aglutinado a uma visão de classe, tratado como campesino. Se por um

lado deu visibilidade para o índio, por outro, negou-lhe sua condição étnica, em que o índio

passou a ser um mero elemento revolucionário reduzido à classe. A negação da etnicidade

indígena continuou no Estado boliviano pós-revolucionário, que, embora mais sutil do que

no regime oligárquico, igualmente explorou os indígenas. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se

o katarismo como uma vertente acadêmica e religiosa, que disseminou a identidade aimará

em projetos de educação bilíngue amadurecido na década de 1970. O Manifesto de

Tiahuanacu de 1973 proveniente do katarismo reconheceu a contribuição da Revolução de

1952, mas inovou ao evocar as lutas anticoloniais dos séculos anteriores, elaborando uma

noção de maioria étnica nacional consciente de sua força e reinterpretando mitos andinos

em sua composição ética para uma projeção pública do movimento (CAMARGO, 2006, p.

149-169). O katarismo estimulou a criação de uma organização política própria que

desencadeou uma série de ações coletivas, mais notadamente os bloqueios de estradas.

Seu apelo ético ancestral serviu como fonte moral de resistência (CAMARGO, 2006, p. 170-

15

O mallku é um líder comunitário indígena (CAMARGO, 2006). 16

Quéchua e aimará são as duas principais etnias bolivianas histórica e atualmente. As nomenclaturas étnicas derivam do idioma quéchua, de raiz incaica, e do idioma aimará, enraizada nos povos originários bolivianos diferentes dos Incas (CAMARGO, 2006).

18

175) em discursos contundentes pela autonomia indígena. Obviamente que o movimento

encontra dificuldades e fragmentações, mas consegue vincular o indígena em uma unidade

ética comum. Nesse ponto, é possível vislumbrar o rol de ações contrárias à ordem

estabelecida na Bolívia como conflitos morais, em que a resistência se faz e se refaz a partir

da negação do reconhecimento, assim, o ativismo assume uma dimensão tocante à luta por

reconhecimento. Mas, para vincular esse ativismo com a democracia deliberativa deve

haver, “ao menos potencialmente, compatibilidade entre o tipo de ação exercido pelo ativista

e o ideal normativo deliberacionista” (TAVARES, 2012a, p. 44).

Tavares (2012a, p. 47-50) sugere que uma interpretação coerente da teoria

habermasiana17 não nega o conflito, sendo que os ideais normativos deliberacionistas, seja

em Habermas, em Cohen ou mesmo em Karl-Otto Appel, não desconsideram as

complexidades sociais que podem emperrar a deliberação pública. Por isso mesmo, a

igualdade não é uma situação pronta, pelo contrário, exige sua busca constantemente: “a

luta por igualdade, com efeito, pode se enquadrar, não importa o grau de combatividade em

que se processe, como uma luta pela deliberação, antes de uma prática antideliberativa”

(TAVARES, 2012a, p. 51). No caso, o ativismo político tem a missão precípua de desobstruir

as barreiras estruturais que impedem a comunicação social em que até a recusa do ativista

a participar de espaços institucionais é justificável, pois sua participação apenas contribuiria

para legitimar espaços que não são efetivamente deliberativos, por isto a proposta de

protestos de Young (apud TAVARES, 2012a, p. 58-61).

O ativismo político dos movimentos sociais auxilia a enxergar a luta por

reconhecimento como momento prévio à deliberação ideal na busca por igualdade, uma

igualdade apreendida sob os auspícios da diferenciação entre as pessoas, legitimando uma

desigualdade possível na deliberação que não compromete o conceito formal e sua

normatividade ideal. O caso boliviano se enquadra nessa perspectiva em que a trajetória do

ativismo dos movimentos indígenas possibilitou dar visibilidade à sua condição de excluídos,

a qual importava em uma desigualdade estrutural que impossibilitava qualquer deliberação

pública em espaços institucionalizados. A evolução do ativismo desembocou na Guerra da

Água em 2000. O levante radical era um prelúdio da mudança política viabilizada pelos

movimentos sociais que se evidenciaram nas eleições gerais de 2002 em que o Congresso

da Bolívia foi dividido entre neoliberais e indígenas (SANJINÉS, 2004, p. 203). O grau mais

elevado de manifestações foi a Guerra do Gás em 2003 quando as ações se concentraram

nas paralisações das cidades mais importantes e nos bloqueios das principais estradas do

país (CAMARGO, 2006, p. 188-191).

17

Vale consignar que o próprio Habermas estipula a Revolução Francesa como marco histórico da modernidade para a ocorrência da deliberação pública. A Revolução, nessa perspectiva, foi um ativismo pela igualdade, para buscar uma das condições ideais de deliberação.

19

Os enfretamentos e mobilizações tinham causas indígenas e nacionais como um

todo, as quais afetavam o contingente populacional gerando discussão. A esfera pública

abrigou debates intensos sobre questões cruciais para todo o país. A convocação de uma

Assembleia Constituinte surgiu no final da década de 1990 em um contexto cujo debate

tangenciava o déficit de representação partidária. Nas campanhas eleitorais de 2002,

inclusive, o tema era suscitado enquanto proposta de vários partidos políticos. Durante a

Guerra do Gás em outubro de 2003, a ideia de uma Constituinte ganhou força. O tema

central desde então era a questão do Estado e sua insuficiência para abarcar a diversidade

de identidades, sobretudo a (s) indígena (s) (CAMARGO, 2006, p. 240-243). Apenas com a

eleição de Evo Morales para a presidência da Bolívia, o primeiro presidente indígena do

país, é que se efetivou o poder constituinte em uma Assembleia a partir de 2006. Evo

Morales, de origem aimará, é produto do ativismo político na Bolívia para uma melhor

condição de igualdade que possibilitou uma redefinição do Estado a partir de uma

Assembleia Constituinte.

3.2. A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE 2006-2007 E A DELIBERAÇÃO IDEAL

Evo Morales chegou à presidência da Bolívia pelo partido MAS (Movimento ao

Socialismo)18 com 54% dos votos, trazendo consigo todo o debate relativo à convocação de

uma Assembleia Constituinte que amadureceu na década de 1990 e parecia cada vez mais

urgente. No dia 06 de agosto de 2006 foi inaugurada a Assembleia Constituinte em Sucre,

polarizada na chegada ao Estado de novos atores, especialmente indígenas, diferente do

que havia sido até então, em que a minoria sequer assimilava “os ‘constituintes’ com a

fisionomia das maiorias do povo, agora no Estado, e com a maioria na Assembléia

Constituinte” (SCHAVELZON, 2010, p. 2-3).

A Assembleia Constituinte foi dividida pela tradição indígena e sua respectiva

cosmologia, apresentada nas vestimentas, assustando as elites trajadas de terno e gravata

consolidadas historicamente a partir da exclusão do outro. É claro que tal novidade não

passaria isenta de tensões no crivo da Assembleia a qual, após aprovada sua instituição em

2006, foi regulamentada para operar a partir de 21 comissões temáticas distribuídas pelo

território boliviano. Seu funcionamento foi estendido até dezembro de 2007. O tumulto foi

constante nos trabalhos da Assembleia, “e somente após um acordo no Congresso, com

numerosas modificações no texto, é que a Constituição seria conduzida até sua aprovação”

(SCHAVELZON, 2010, p. 4).

A questão indígena e sua busca por reconhecimento passou a compor a agenda

pública a partir da Revolução de 1952. Desde então, através de ações incisivas, a situação

18

O MAS está inserido no rol de conquistas do ativismo político boliviano em que a questão indígena é central (CAMARGO, 2006).

20

de exclusão social do indígena e a denegação de reconhecimento étnico foram alimentadas

na esfera pública, a ponto de o Censo boliviano de 200119 registrar crescente aumento do

número de indígenas em relação ao Censo anterior realizado na década de 1990, sendo

que mais de 60% da população total do país se reconheceu como membro de povos

originários. A amplitude do debate público sobre a questão indígena é proporcional à

evolução do ativismo político dos movimentos indígenas desde 1952. Os protestos drásticos

da década de 2000 como a Guerra do Gás e a Guerra da Água precederam a instauração

da Assembleia Constituinte em 2006 a qual funcionou como uma institucionalização de um

espaço para deliberação. A extensão temporal da Assembleia até 2007 mostra um fluxo

comunicacional interativo entre o espaço institucional máximo e as comissões que

intermediavam as propostas debatidas em ambientes mais localizados, o que permite

concordar com Mendonça (2011, p. 214) quanto à sua perspectiva de que “os processos

deliberativos são percebidos a partir de uma ótica transversal. (...) A deliberação ganha

forma em trocas discursivas não unificadas que atravessam setores sociais e arenas

comunicativas”. Essa concepção ampliada de deliberação coaduna com a teoria do

reconhecimento quanto à dinâmica comunicacional orientada para o movimento, em que há

uma busca constante para melhorar o todo social. Ainda com Mendonça (2011, p. 212),

deve ficar claro que “a racionalidade não é uma característica dos atores, nem dos

enunciados, mas da própria estrutura comunicativa”, logo, a racionalidade comunicativa não

desconsidera as expectativas dos participantes e suas ações estratégicas, pelo contrário,

elas são importantes para a construção de enunciados que serão discutidos e levados como

pontos de reflexão. Nesse esquema, é possível conceber a ideia do fluxo comunicacional

aproximando oprimidos de opressores, pois a extensão das diferentes esferas e suas

camadas de porosidade permite um debate aberto passível de revisão e discussão, o que

compatibiliza, mais uma vez, a deliberação com a teoria do reconhecimento: “[As lutas] Elas

se conformam em fluxos discursivos públicos, por meio dos quais novas gramáticas

interacionais são sugeridas” (MENDONÇA, 2011, p. 217). Com esse diagnóstico, a própria

deliberação adquire uma dimensão de luta por reconhecimento.

Na confecção do texto constitucional durante a Assembleia, os propósitos indígenas

foram se materializando nos artigos. A reestruturação do Estado tendo em vista sua etnia

multifacetada deu a tônica das discussões que engendraram a nomenclatura Plurinacional

ao Estado da Bolívia. O artigo 5º da Constituição de 2009 evidencia isto com o

reconhecimento oficial de 36 línguas indígenas, sendo que o inciso segundo do mesmo

dispositivo impõe a obrigatoriedade de cada departamento manter documentos oficiais em

pelo menos duas línguas: espanhol e outra língua indígena (SCHAVELZON, 2010, p. 4-5).

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Dados disponíveis em http://www.ine.gob.bo/ (acessado em 27/01/2014).

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Dessa maneira, vale destacar que “a ideia de Estado Plurinacional aludia a formas ou

sentidos políticos diversos e, às vezes em conflito (...) [mas] não seria o único tema aberto a

controvérsias” (SCHAVELZON, 2010, p. 8).

Vários temas foram debatidos na Assembleia Constituinte e nas suas extensões

institucionais de deliberação alimentadas pelo debate na esfera pública desde um viés

histórico, como exemplos, podemos citar as nacionalizações de recursos naturais, sobretudo

os hidrocarbonetos; as autonomias regionais e da capital do país; e, os poderes de governo.

As temáticas diversas e complexas deram fôlego à Assembleia Constituinte e mesmo assim,

não foram completamente resolvidas, ou seja, apesar da promulgação da Constituição de

2009, não houve um consenso em termos definitivos sobre alguns pontos controversos.

Mendonça (2011, p. 211) traz a ideia de metaconsenso de Dryzek e Niemeyer em que não

se exige necessariamente um consenso perene sobre um determinado assunto, pois o

metaconsenso “visa a acordos que atribuam legitimidade às perspectivas dos interlocutores,

mesmo que se discorde deles”. Assim, “a Constituição é um bom exemplo da maleabilidade

de significados ao redor de cada conceito no âmbito político” (SCHAVELZON, 2010, p. 9).

Disto, é possível inferir que há algo mais do que os dispositivos constitucionais aprovados e

que só são perceptíveis no nível de interação do debate público que se desdobra além do

texto da Constituição de 2009. A Constituição está em aberto assim como o debate que a

efetivou, pois se evidencia “uma concepção política vinculada ao conflito, mais que à

homogeneidade de opiniões ou cumprimento de leis e administração” (SCHAVELZON,

2010, p. 10).

O momento constitucional engloba toda uma construção política na história da

Bolívia pelas desobstruções de suas barreiras estruturais em razão do ativismo dos

movimentos indígenas sustentado pela necessidade essencial do reconhecimento, dada sua

denegação. Não é possível, nesse diapasão, localizar um momento constitucional que

motive a deliberação pública, mas é algo que se constrói e se reconstrói dialeticamente, em

conflitos e lutas, em expansão contínua aumentando o escopo ético societal até adentrar

espaços institucionalizados, se estabelecer em Assembleia Constituinte e fazer o movimento

inverso que ricocheteia na esfera pública e volta para essa mesma Assembleia; e mesmo

com a Constituição aprovada, não se esgota o debate, reabastecendo a política

constitucional à medida que afeta a população. Com isso, o povo volta a debater e a dar

suporte racional ao fluxo comunicativo: “um espaço como a Assembléia Constituinte permitia

comprovar o poder da política de invadir qualquer situação, sem nada que não possa ser

‘politizado’, pondo em questão o seu caráter estabelecido e abrindo todo significado à

contínua redefinição” (SCHAVELZON, 2010, p. 10).

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A Assembleia Constituinte encerrou seus trabalhos de discussão das comissões

institucionais em dezembro de 2007, contudo, o lapso temporal do desfecho da constituinte

até a promulgação do texto final na cidade de El Alto em 07 de fevereiro de 2009 demonstra

o amplo debate público em torno da Constituição, pois sua promulgação estava

condicionada a ratificação por Referendo, o qual aconteceu apenas no dia 25 de janeiro de

2009, ou seja, mais de um ano após a elaboração do texto em Assembleia. A Constituição

com vários dispositivos em aberto depende de implementação política e também, de

respaldo popular (SCHAVELZON, 2010, p. 7-8). Isto revitaliza o cenário deliberativo em um

viés democrático fazendo o momento constitucional ter efeitos extensos e abarcar a política

normal sempre que houver necessidade de definir uma determinada temática que afete a

pluralidade ética boliviana. Então, a Assembleia Constituinte da Bolívia no seu propósito de

promulgar a atual Constituição do país transpõe sua própria temporalidade institucional

através de um debate público histórico motivado pela busca de uma igualdade nos termos

da teoria do reconhecimento, atrelado ao ativismo político dos movimentos indígenas

projetado para a evolução ética do país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pergunta que animou esse trabalho referia-se a possibilidade de a Assembleia

Constituinte da Bolívia que promulgou a Constituição de 2009 ser considerada um momento

de deliberação democrática. Buscamos no desenvolvimento deste trabalho responder à

questão adequando a condição de igualdade para a democracia deliberativa com a teoria do

reconhecimento. Nesses termos, nossa hipótese inicial se confirmou empiricamente

analisando o ativismo político dos movimentos indígenas baseado no reconhecimento como

uma busca por condições ideais de deliberação, em que a própria deliberação assume um

aspecto de luta por reconhecimento.

Destacamos ainda, que no bojo do trabalho, as exigências normativas da

democracia deliberativa não são incompatíveis com a teoria social do reconhecimento, pelo

contrário, a teoria de Axel Honneth não invalida a proposta política de Habermas, mas a

contemporiza em um modelo societal mais adequado à realidade das sociedades

contemporâneas marcadas pelo conflito e sua dinâmica intersubjetiva em prol de melhorias

coletivas.

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