habermas verbalização do sagrado

Upload: srgiocoutinho

Post on 05-Apr-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    1/13

    o Racionalisnlo da ticaArgumentativa em Faceda Secularizao Moderna Luiz Bernardo Leite Arajo ,.

    Resumoo artigo se interroga sobre a fundamentao racional proposta pela teoria discursiva da moralaps o esgotamento dos fundamentos metafsicos e religiosos da tica. As sociedades modernas,em razo do pluralismo cultural, dependem da existncia de um consenso neutro com respeito simagens de mundo. Mas as abordagens tericas no concordam quanto ao modo de justificaode um ponto de vista moral independente das diferentes vises religiosas e metafsicas de mundo.Nesse contexto, a concepo racionalista de Habermas permanece uma resposta original ques-to tipicamente moderna da fundamentao da moral em um mundo privado de um ponto deapoio ltimo de natureza transcendente. Procuramos apresentar a tica do Discurso como umateoria da secularizao, na medida em que seus traos principais resultam de uma tentativa de

    . O presente artigo, escrito originalmente em lngua francesa, foi apresentado no XXVII Congresde IAssociation des Socits de Philosophie de Langue Franaise (Qubec: 18 a 22 de agostode 1998) e no VIII Encontro Nacional de filosofia promovido pela ANPOF (Caxambu: 25 a30 de setembro de 1998).

    .. Doutor em Filosofia pela Universidade de Louvain, Blgica; Professor e coordenador do PGFIL-UERJ.

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    2/13

    Luiz Bernardo Leite Arajo

    substituio da autoridade da f pela autoridade de um consenso visado pela comunicao, ouseja, uma tica racional que, pela fora coerciva da argumentao, retoma o contedo das tradies religiosas.Palavras-Chave: Habermas; tica argumentativa; secularizaoRsum

    L'article s'interroge sur la fondation rationnelle propose par la thorie discursive de la moraleapres I'puisement des fondements mtaphysiques et religieux de I'thique. Les socits modernes,en raison du pluralisme culturel, dpendent de I'existence d'un consensus neutre I'gard desimages du monde. Mais les approches thoriques ne s'accordent pas quant au mode de justificationd'un point de vue moral indpendant des diffrentes visions religieuses et mtaphysiques dumonde. Dans ce contexte, la conception rationaliste de Habermas dmeure une rponse originale la question typiquement moderne de la fondation de la morale dans un monde priv d'un pointd'appui ultime de nature transcendante. Nous essayons de prsenter I'thique du discours commeune thorie de la scularisation, dans la mesure ou ses traits principaux rsultent d'une tentativede remplacement de I'autorit de la foi par I'autorit d'un consensus vis par la communication.c'est--dire, une thique rationnelle qui, par la force contraignante de I'argumentation, reprend lecontenu des traditions religieuses.Mots-c1: Habermas; thique de I'argumentation; scularisation

    Segundo a pragmtica universal, o modelo da "razo comunicativa" (kommunikative Vernunfd 1 s se tornou possvel com o advento da modernidade ocidental. No mbito das sociedades tradicionais, dominadas pelas imagens religiosas e metafsicas demundo, Lima tomada de posio clara diante das diferentes pretenses de validade no era possvel porque os conceitos formaisde mundo no estavam ainda suficientemente distinguidos, porquanto as vises de mundo confundiam-se com a prpria ordemmundana. Tomando por base a anlise de Max Weber a propsitoda diferenciao das esferas culturais de valor engendrada peloprocesso de desencantamento das imagens religiosas de mundo,2paradigmaticamente inscrita na arquitetnica kantiana da razo,Habermas tenta demonstrar que graas a esse processo de dife-I Ler os estudos sobre: Thories relatives la vrit (1972); e: La Signification de la pragmatiqueuniverselle (1976), in: Jurgen HABERMAS, logique des sciences socia/es et autres essai50 1987,

    p. 275-328 e 329-411. IN. do L Para dados bibliogrficos completos deste e dos outrosttulos, cf. as Referncias Bibliogrficas abaixo.]2 Cf. Max WEBER. Gesamme/te AufsJtze zur Re/igionssozi%gie. Habermas explora sobretudo oscaptulos sistemticos, que elaboram, em sua opinio, o tema central da obra weberiana em seu

    conjunto: o processo universal de racionalizao e de desencantamento do mundo, mutuamente relacionados. Sobre o assunto, permito-me remeter o leitor a meu artigo: Luiz B. LARAJO, Weber e Habermas: religio e razo moderna, Sntese Nova Fase, v. 64, 1994, p. 1541.

    NlImen; revista de estudos e pesquisa da religi:io, Juiz de Fora, v. 3 n. I, p. 39-51

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    3/13

    o Racionalismo da tica Argumentaliva em Face da Seculariza30 Moderna

    renciao que as pretenses de validade especficas, frente s quaisos sujeitos podem tomar posio dizendo "sim" ou "no", estabelecendo-se assim um processo de comunicao, puderam aparecer.Destarte, na modernidade, e somente a partir de uma compreenso moderna de mundo, que os indivduos adquirem ascondies necessrias para uma conduta racional de vida, umaconduta autnoma liberada do peso inibidor da autoridade sagrada. Evidentemente, a anlise weberiana no leva apenas emconta a racionalizao cultural, mas tambm a racionalizao social, cujo processo de diferenciao dos sistemas cristalizados emtorno das esferas do Estado e da economia verificou-se igualmente na modernidade. Ora, as tendncias para uma autonomizaodo agir comunicativo e para uma separao entre as orientaesda ao intercompreenso e ao sucesso suscitam o problemade integrao das sociedades modernas secularizadas, nas quaisas ordens normativas devem ser asseguradas na ausncia de garantias meta-sociais.3No pretendo tratar diretamente dessas duas tendncias assinaladas por Habermas. O que me interessa particularmente aposio eminente atribufda por este filsofo idia da"verbalizao" (Versprach/ichung) do sagrado para um acesso coerente ao processo moderno de racionalizao, e a tentativa subseqente de uma fundamentao racional da moral aps o esgotamento de seus fundamentos religiosos. A teoria do agir comunicativo compreende aevoluO do mundo moderno tendo comopano de fundo as vises religiosas de mundo, j que o potencialelevado de racionalizao das religies universais tornou-se umelemento (paradoxalmente) importante do processo de secularizao.Mas se a religio crucial para a emergncia de uma moraluniversalista, governada por princpios absolutos, ela no o para amanuteno ou a estabilizao de um estdio ps-convencional daconscincia moral. As sociedades modernas, em razo do pluralismoreligioso e cultural, dependem da existncia de um consenso neutro3 o problema enunciado est no cerne das anlises habermasianas da Theorie des kommunikativenHandelns (1981) e de faktizitJt und Celtung (1992). Cf. HABERMAS. Thorie de {'agircommunicationnel, 1987; Direito e demoCl

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    4/13

    Luiz Bernardo leite Arajo

    com respeito s imagens de mundo.4 A tica do Discurso buscaprecisamente fundar o moralpointofviewem um mundo privado deum ponto de apoio ltimo de natureza transcendente.1 - A 'Verbalizao" do Sagrado

    Uma hiptese fundamental da teoria habermasiana damodernidade a de uma dissociao do medium da comunica-o, correspondente separao entre as esferas do sagrado e doprofano. O simbolismo religioso interpretado como uma razpr-lingstica do agir comunicativo e, neste sentido, exprime umconsenso normativo tradicional, que estabelecido e renovadona prtica ritual. Tal consenso normativo, garantido pelos ritos emediado pelos smbolos, constitui o ncleo arcaico da integraosocial. A "verbalizao" do sagrado significa, para Habermas, umadominao progressiva do agir comunicativo: as funes bsicasde reproduo simblica das estruturas do mundo vivido, origina-riamente garantidas pelo rito e fundamentadas no domnio sacra I,passam doravante s estruturas da comunicao lingstica. Desdeento,

    a autoridade do sagrado gradativamente substituda pela autori-dade de um consenso tido por fundado em cada poca. Isto impli-ca uma emancipao do agir comunicativo em face de contextosnormativos protegidos pelo sagrado. O desencantamento e adespotenciao do mbito sacral se efetuam por meio de umaverbalizao (Versprachlichung) do consenso normativo fundamentalassegurado pelo rito; com este processo destrava-se o potencial deracionalidade contido no agir comunicativo. A aura de encantamento e temor difundida pelo sagrado e sua fora fascinante sosublimadas, ecom isso reconduzidas ao cotidiano. na fora vinculantedas pretenses de validade criticveis. s

    4 Esse tema tambm central no liberalismo poltico de John Rawls (John RA'NIS, ItJlitical liberalism,1993). Sobre as divergncias entre suas concepes, cf. os artigos no nmero especial da revistaThe Journal of Philosophy, v. 92, n. 3, March 1995: HABERMAS, Reconciliation through thepublic use 01 reason: remarks on John Rawls's Politicalliberalism, p. 109-131; RAWl5, Reply toHabermas, p. 132-80.

    5 HABERMAS, Thorie de Iagir communicationnel I/, p. 88.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religi:lo, Juiz de Fora, v. 3 n. I, p. 3 9 ~ 5 1

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    5/13

    o Racionalismo da tica Argumentativa em Face da Seculariza.1o Moderna

    A idia de verbalizao do sagrado traduz uma laicizao racional do vnculo social primitivo na fora ilocucionria da lingua-gem profana,6 cuja autoridade est ligada fora no-coerciva,motivada racionalmente, do melhor argumento. A tendncia racionalidade s pode ser percebida quando se passa do domniosacral ao domnio profano. Habermas representa, pois, a evoluohistrica pelo deslocamento gradual das esferas de ao profanade seu contexto religioso primordial.Graas a essa f1uidificao comunicativa do consenso religiosode base, que torna possvel a transformao da comunidade de fimpenetrvel racionalidade em comunidade de comunicaosubmetida autoridade da argumentao, as estruturas do agirorientado intercompreenso tornam-se importantes para preencher as funes de reproduo cultural, integrao social e socializao dos indivduos. Neste sentido, averbalizao do sagrado a mais profunda expresso de uma racionalizao do mundo vivi-do.Contudo, Habermas est atento ao fato de que a margem decobertura dos conflitos diminui sensivelmente em conseqnciada superao do contexto tradicional marcado pela fuso sacra Ientre facticidade e validade, que decide previamente quais so aspretenses de validade que podem obter efetivo reconhecimento.Com o aumento da carga a ser assumida pelos prprios indivdu-os para uma definio comum das situaes, cresce tambm orisco do dissenso e da boa coordenao das aes. Eis a razopela qual Habermas examina, de um lado, a gnese dos subsistemas do agir racional com respeito a fins que, oriundos doprprio processo de racionalizao do mundo vivido, tornam-seautnomos vis--vis seu contexto de origem; e, de outro lado, apluralizao e a diferenciao desse horizonte comum de convic-es profundas e no-problemticas que representa o mundo vivido, cujas certezas no so suficientes para compensar os dficitsnormativos resultantes da ruptura moderna com o sagrado.6 Razo pela qual, seja dito, Rainer ROCHLlTZ, thique postconventionnelle et dmocratie, seinsurge contra o termo "mise en langage", usado pelo tradutor francs de TAC 11 para verter aexpresso alem Versprach/ichung, fato que "(_1 sugere a manuteno do sagrado pela simplestransposio na linguagem", As verses espanhola e inglesa utilizam, respectivamente, os ter

    mos U'ingistizacin" e Ulinguis@cation", inadequados, ao nosso ver, em lngua portuguesa.Numen: revista de esmdos e pesquisa da religi:\o, JUIZ de Fora, v. 3 n. I, p. 39-51

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    6/13

    Luiz Bernardo Leite Arajo

    Ora, a idia de desencantamento do domnio sacral desenvolvida particularmente com base na evoluo do direito e damoral, desde a imbricao entre a tica mgica e o direito revelado das sociedades arcaicas, passando por uma certa distinoentre a tica da lei e o direito tradicional, at a separao entre asticas da convico e da responsabilidade e o direito formal dassociedades modernas. Segundo Habermas, a moral autnoma e odireito positivo se diferenciam e passam a constituir uma relaode complementaridade recproca aps o desmoronamento dosfundamentos sagrados da normatividade. Assim, no contexto deuma substituio da autoridade da f pela autoridade de um consenso racional visado pela comunicao, a moral , dentre as esferas culturais de valor - cuja diferenciao entre elas e aautonomizao de cada uma delas na modernidade assinaladacom veemncia por Habermas -, a mais importante a ser considerada. ela, com efeito, que assume a herana da religio:

    Pelo fato de que a esfera religiosa tenha sido constitutiva para asociedade, evidente que no so nem a cincia nem a arte as queassumem a herana da religio; somente uma moral convertida emtica discursiva, f1uidificada na comunicao, pode, nesta perspecti-V

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    7/13

    o Racionalismo da tica A r g u m e n r ~ i v a em Face da Secularizao Moderna

    tao da moral um problema tipicamente moderno na medidaem que, a partir do momento em que as vises religiosas emetafsicas comeavam a cair em descrdito, urgia encontrar umnovo fundamento para as aes morais, isto , um fundamentocapaz de suplantar horizontes teolgicos e cosmolgicosnorteadores do carter obrigatrio das normas.Como percebe Manfred Frank,9 a crise de credibilidade da chamada crena superior, mesmo tendo afetado todas as modalidades de julgamento, adquiriu sua maior amplitude no campo datica. Neste terreno, a privao de um fundamento slido, de carter transcendente, foi visto e sentido como um fato alarmante.Efetivamente, a idia de fundamento (Crund), embora importantepara a filosofia terica e a crtica esttica, longe de constituir tarefapuramente acadmica ou mero estabelecimento de um fatoemprico, resulta em algo essencial na esfera da moralidade, umanecessidade incontornvel de nossa vida concreta. Certamente,h mltiplas e complexas formas de reao em face da crise defundamento ltimo da tica, 10 mas a concepo habermasianarevela-se uma resposta original questo central de uma moralps-tradicional tornada independente de seu contexto religiosoe/ou metafsico de emergncia.

    A posio sustentada por Habermas a de uma tica comunicativa que retoma a substncia das tradies religiosas sob uma formaprofana, isto , de uma teoria moral que visa traduzir, em linguagemracional e secularizada, as exigncias das ticas da convico, outroraaliceradas na autoridade do sagrado. A derrocada do fundamentoltimo absoluto no implica, ento, a recusa da possibilidade dejustificao das convices morais, mas sim uma retomada da univer9 Cf. Manfred FRANK, Comment fonder une morale aujourd'hui? Remarques propos du dbatHabermas-Tugendhat.10 Cabe sugerir as direes da fundamentao radonal kantiana, do ressurgimento da perspeti

    va metafska da tica de Aristteles e da rejeio de qualquer fundamento na tradio inaugurada por Nietzsche. Segundo Tugendhat (Lies sobre tica, p. 27s), as ticas filosfkasatuais cometem o erro de supor que ou h apenas uma fundamentao absoluta (religiosa ouradonal) ou nenhuma fundamentao. Assim sendo, ele prope uma fundamentao "indireta" e simplesmente "plausvel" da moral. bvio que este pensador rejeita a tentativa desenvolvida pela tica do Discurso de fundamentao "direta" e "absoluta", assim como Habermascritica o voluntarismo em que se apia a argumentao de Tugendhat em matra de tica. Cf.HABERMAS, De lethique de la discussion, p. 130-38.

    Numen: reviSla de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 3 n. I, p. 39-51

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    8/13

    Luiz Bernardo leite Arajo

    salidade da razo prtica atravs da razo intersubjetiva. Nesta tica, ateoria discursiva da moral situa-se na tradio kantiana das ticascognitivistas que enfrentam, com vigor, as conseqncias da rupturamoderna entre o tico e o religioso, pela via de uma fundamentaoracional de princpios e procedimentos universais.Comenta Manfred Frank:

    Salvar asubstncia da legitimao religiosa nas condies de irreligios pode significar a manuteno de sua funo sem retomar suaforma tradicional. Esta forma nos proibida uma vez que nenhumfundamento substancial est anosso alcance. A idia de Habermas,se ouso simplific-Ia em excesso, que a falta de um princpiotranscendente (de Deus, do Absoluto) remete as sociedades modernas ao longo caminho do entendimento mtuo. Tal entendimento est presente como fim - ou melhor: como imperativo - emtoda comunicao real, e serve - contrafactualmente - de critrioprtico de racionalidade. esta idia que Habermas nos apresentasob o ttulo de uma "tica do Discurso", ou seja, de um entendimento racional que visa engendrar um consenso acerca daquiloque tenha a pretenso de valer para toda uma sociedade. 1I

    Para Habermas, a falta da ncora do princpio ltimo da freligiosa representa um ganho de racionalidade: as perdasirreparveis resultantes do processo de racionalizao do mundomoderno, tal como, em matria moral, o aumento do fosso entreo "ser" e o "dever-ser", so mitigadas pelo contrapeso representado pela possibilidade de se atingir um entendimento racional emque se impe apenas a autoridade do melhor argumento.O programa de fundamentao racional da moral com basenuma teoria discursiva comporta, segundo Habermas, dois aspectos essenciais, asaber: 12 a introduo do princpio de universalizaocomo "regra de argumentao" para os discursos prtico-morais ea demonstrao do valor universal de tal princpio a partir dacomprovao pragmtico-transcendental que estabelece a existncia de "pressuposies universais e necessrias da argumenta11 FRANK Comment fonder-. p. 368.12 Sobre o que segue, cf. HABERMAS. Conscincia moral e agir comunicativo. p. 143ss. O autorplDpe, em texto recente, um caminho de trs estgios na direo de uma fundamentao damoral, apontando certas transformaes importantes na teoria do discurso (cf. HABERMAS, Lecontenu cognitif de la morale. une approche gnalogique). Entretanto, a reconstruo docontedo cognitivo da moral, tendo como fio condutor a depreciao de sua base de validade religiosa. como me propus a apresentar. no apenas mantida, mas acentuada.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. ]' n. I, p. 39-51

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    9/13

    o Racionalismo da tica Argumentativa em Face da Secularizado Moderna

    o". A fundamentao racional do princIpIo kantiano deuniversalizao aquesto principal da teoria moral aps o declnio da religio, porquanto este princpio o nico a permitir oreconhecimento da validade de uma norma enquanto expressoda vontade geral dos indivduos e o nico tambm a evidenciar ocarter impessoal dos mandamentos morais.

    3 - Uma Teoria da Secularizao?o chamado moralpointo(view, portanto, o de uma apreciaoimparcial das questes morais, e a Diskursethik o encontra noprprio crculo da argumentao. Nesta tica, a teoria discursivada moral "no indica orientaes conteudsticas, mas um processo: o Discurso prtico. Todavia, este no um processo pa ra agerao de normas justificadas, mas, sim, para o exame da validade de normas propostas e consideradas hipoteticamente")3. Estamos diante de uma tica deontolgica (concentrada na questoda fundamentao da validez prescritiva de mandamentos ou normas de ao), cognitivista (fundada na idia segundo a qual adeciso de agir conforme uma certa norma, bem como a escolhada norma enquanto tal, so suscetveis de verdade) e formalista(pois fornece apenas um procedimento formal de argumentaomoral). Na medida em que Habermas defende cada um dessestraos, no mbito da filosofia prtica em geral, ele se demarca deoutras posies, embora no se possa obnubilar o fato de que atica do Discurso prope uma reformulao intersubjetivista dateoria moral kantiana, ao mesmo tempo em que incorpora crticasbem-fundadas erguidas pelo hegelianismo em face douniversalismo abstrato. Da sua caracterizao como uma ticakantiana ps-hegeliana, que se atm relao interna entre justiae solidariedade sem dissolver a moralidade na eticidade. 14Uma tica da justia e da solidariedade, que associe os princpios distintos, porm complementares e igualmente importantes,13 Ibid., p. 126.14 A esse propsito, cf. HABERMAS, Les objections de Hegel Kant valent-elles galement pourIthique de la discussion? (Note-se que a tese de uma complementaridade entre o direito e

    a moral deve-se justamente s insuficincias cognitivas e volitivas da moral ps-convencionalde sociedades marcadas pelo pluralismo das vises de mundo.)

    Numel1: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. J n. I, p. J9-St

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    10/13

    Luiz Bernardo leite Arajo

    dos direitos dos indivduos (igual respeito) e do bem da comunidade (responsabilidade solidria) - eis aqui uma idia-chave dateoria do agir comunicativo - pode estabilizar-se sem nenhumfundamento religioso. Assim, de um lado, a "verbalizao" do sagrado indica a caducidade da forma tradicional de legitimaoreligiosa da tica e da poltica, com a instaurao progressiva deum acordo normativo fundado sobre a validade racional dos atosde fala, e, com isto, da institucionalizao de procedimentosdiscursivos com vistas formao democrtica da vontade. Deoutro Jado, ao adotar uma separao estrita entre prefernciasaxiolgicas e validez prescritiva de normas, em virtude de umacompreenso deontolgica da moral inspirada de Kant, a ticadiscursiva associa a dimenso religiosa a contedos morais concretos, os quais, graas s exigncias do pensar ps-metafsico, devem ser submetidos aos procedimentos formais da argumentao.Penso que esta concepo, que central para algo como uma"teoria habermasiana da secularizao", no implica a construode uma espcie de religio secular cujo carter bsico seria o deenglobar integralmente a esfera religiosa num momento superiorqualquer, como o de uma sntese comunicativa. Se abstramos desua caracterizao da modernidade por uma extenso cada vezmais ampla do domnio profano em relao esfera do sagrado epor uma reflexividade crescente das relaes com o mundo, inclusive dos modos de crena, Habermas no sugere a idia deuma absoro da religio pela comunicao. O agir comunicativo,em definitivo, no pode ser erigido em equivalente profano daidia de eternidade. A despeito de sua posio enftica quanto desvalorizao da religio nos contextos modernos de ao, emque o pluralismo inevitvel das formas de vida permitiu a rupturada unidade substancial de um mundo vivido construdo em tornoda mensagem religiosa, a teoria do agir comunicativo assume aimpossibilidade de desalojar ou substituir a religio, cuja linguagem sui generis veicula, sem dvida, contedos semnticos noapenas inspiradores mas tambm necessrios. Nas palavras deHabermas,

    a razo comunicativa no se apresenta no palco assumindo a figurade uma teoria tornada esttica, como se fosse o elemento negativoapagado de religies que distribuem consolo. Nem ela se arvora em

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religi:io, Juiz de Fora, v. 3 n. I, p. 39-51

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    11/13

    o Racionalismo da tica Argumenlativa em Face da Seculariza30 Moderna

    consoladora. Ela tambm renuncia exclusividade. Enquanto noencontrar no meio da fala argumentativa palavras melhores paracaracterizar aquilo que a religio sabe dizer, ela coexistir sobriamente com esta, sem apoi-Ia, entretanto.\SParece-me que Habermas subscreveria convico de CharlesLarmore segundo a qual "Deus to grande que no precisa existir" a essncia do processo moderno de secularizao. '6 Tal concepo possui duas conseqncias importantes, semelhantes aoque j assinalei a propsito da leitura habermasiana damodernidade. A primeira que a emergncia da sociedade moderna ocidental explicada em termos de um desencantamentodo mundo, no qual as grandes religies, particularmente omonotesmo judaico-cristo, desempenharam um papel preponderante. A segunda conseqncia que a autonomizaco dasesferas culturais de valor, que ocasionou justificaes humanas damoral e explicaes naturalistas da natureza, no implica o desaparecimento da religio, e sim o fato de que ela no pode maispreencher, nas sociedades modernas, certas funces outrora assumidas fundamentalmente por ela.Evidentemente, a teoria weberiana da racionalizao tem mui

    to mais importncia na reconstruo histrica do processo moderno de secularizao em Habermas. Ademais, a idia de umaliberao de Deus concomitante a uma liberao do homem, emvirtude da exonerao da divindade de tarefas cognitivas enormativas, mesmo se no comporta, a meu ver, qualquer prejuzoaos resultados de sua abordagem terica, no considerada pelateoria ps-metafsica de Habermas. Entretanto, ele concordaria quea propalada opinio situada no cerne da secularizao moderna"Deus to grande que no precisa existir" - no significa que suainexistncia "seja uma implicao da modernidade", e sim "queele no precisa existir, ainda que possa muito bem existir. Nsno precisamos mais de Deus para explicar o mundo e para fundar as regras de nossa vida comum. Se Deus no existisse, noseria mais necessrio invent-lo.}}'7 Na verdade, a teoria do agir15 HABERMAS, Pensamento ps-metafsico, p. 181-82.16 Cf. Ch. lARMORE, Au-del de la religion et des Lumieres. A formulao a seguinte: "Di euest si grand qU'il n"a pas besoin d"exister.'17 Ibid., p. 74.

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religiao, luiz de Fora, v. 3 n. I, p. 39-5\

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    12/13

    Lujz Bernardo leite Arajo

    comunicativo tambm est "alm" da religio,'8 mas ela permanece vinculada s idias diretrizes do Esclarecimento, sobretudo herana racionalista no campo da moral.Referncias Bibliogrficas

    ARAJO, Luiz B. L. Weber e Habermas: religio e razo moderna,Sntese Nova Fase, v. 64, 1994, p. 15-41.--o Religio e Modernidade em Habermas. So Paulo: EdiesLoyola, 1996.FRANK, Manfred. Comment fonder une morale aujourd'hui? Remarques propos du dbat Habermas-Tugendhat, RevueInternationale de Philosophie, n. 166, 1988, p. 361-82.HABERMAS, Jrgen. Logique des sciences sociales et autres essais.Traduit par R. Rochlitz. Paris: PUF, 198Z--o Thorie de lagir communicationne12 Tomes. Traduit par J.-M. Feny, l-L. Schlegel. Paris: Fayard, 198Z--o Conscincia moral e agir comunicativo. Trad. Guido A deAlmeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.--o Pensamento ps-metafsico. Trad. Flvio B. Siebeneichler. Riode Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.--o Les ob;ections de Hegel Kant valent-elles galement pourI'thique de la discussion? In: De /'thique de la discussion.Traduit par M. Hunyadi. Paris: Cerf, 1992, p. 15-32.--o De lethique de la discussion. Traduit par M. Hunyadi. Paris:Cerf, 1992.--o Reconciliation through the public use of reason: remarks onJohn Rawls's Political Liberalism, TheJournalofPhilosophy,v. 92,

    n. 3, March 1995, p. 109-31.--o Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 v. Trad.Flvio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.--o Le contenu cognitif de la morale, une approche gnalogique.In: L'intgration rpublicaine. Traduit par R. Rochlitiz, Paris:Fayard, 1998, p. 11-63.18 Para uma viso de conjunto da perspectiva habermasiana sobre a religio, cf. Luiz B. L ARAJO, Religio e Hodemidade em Habermas.

    Numen: revista de estudas e pesquisa da religi:lo, Juiz de Fora, v. 3 n. I, p. 39-51

  • 8/2/2019 habermas verbalizao do sagrado

    13/13

    o Racionalismo da tica Argumentativa em Face da Secularjzao Moderna

    LARMORE, Ch. Au-del de la religion et des Lumieres. In: Modernitet morale. Paris: PUF, 1993, p. 71-92.RAWl5, John. Political Liberalism New York: Columbia UniversityPress, 1993.--o Reply to Habermas, The Journal 01 Philosophy, v. 92, n. 3,March 1995, p. 132-80.ROCHLlTZ, Rainer. thiq ue postconventionnelle et dmocratie,Critique, n. 486, 1987, p. 938-61.TUGENDHAT, Ernst. Lies sobre tica. Trad. de Ernildo Stein etalii. Petrpolis: Vozes, 1997WEBER, Max. Cesamme/te AufsJtze zur Religionssoziologie. 3 Bd.8. Aufl., TiJbingen: Mohr, 1986. [1920.]

    Luiz Bernardo Leite ArajoRua So Francisco XavieJ; 524Bloco E - Sala 9103MaracanRio de Janeiro - Ri20550-013

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 3 n. \, p. 39-51