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DADOS PESSOAIS NÃO DISPONÍVEIS

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DADOS PESSOAIS NÃO DISPONÍVEIS

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INTRODUÇÃO

Considerando a vontade de entender mais o teatro que faz sentido para mim

enquanto arte, procurei durante essa pesquisa investigar a relação entre o real e o ficcional

dentro da cena teatral contemporânea. Meu objetivo foi aprofundar o estudo sobre a utilização

e a transformação de experiências pessoais, memórias e textos autobiográficos, em textos

cênicos. Tal abordagem se deveu ao interesse em compreender quais são os limites de uma

dramaturgia que parte do eu, e quais são as possibilidades de confronto com o real que a

autobiografia traz para a cena?

Pensando nisso, este trabalho se propõe a discutir essencialmente os caminhos de

um teatro que utiliza como mote propulsor as confissões de segredos íntimos, conformados

como dramaturgia, dirigidos a pessoas desconhecidas. Considero que é necessário fazer a

discussão acerca do alicerce que sustenta a construção dessa narrativa: o teatro do real.

Creio ser essencial explicar os caminhos que percorri no processo desta pesquisa.

O descontentamento e a incerteza fizeram parte do início do meu processo de escrita deste

Trabalho de Conclusão. Parece-me apropriado assinalar que a redação deste TCC se ancora

especialmente em minhas vivências pessoais. Isso reverbera de maneira significativa nos

desejos em relação à minha produção artística.

A ideia para a pesquisa que sustenta esse TCC foi instaurada a partir de

insatisfações pessoais e pela minha própria inquietude em relação a como me comunico com

o mundo, e o que ofereço a ele e às pessoas que compartilham de um mesmo espaço físico

comigo.

Refiro-me a oferecer algo, por ser consciente de que todo ato gera uma

consequência real no mundo. Desse modo, penso o teatro como uma operação que interfere

no real. Consequentemente, assumo a responsabilidade, no sentido de responder por algo.

Por isso, as dúvidas sobre o que produzo na minha vida e a partir dela se fazem sempre

presentes e constantes. Contudo, essas incertezas se tornam especialmente persistentes em

situações de crise, em circunstâncias de confronto. Nesse caso, o impulso para esta pesquisa

era geradora de um confronto, um embate que partia de mim e se direcionava novamente a

mim mesma.

Apesar de este material fazer referencia a um trabalho acadêmico, a natureza do

tema me permite dizer que se trata de uma situação de confronto gerada a partir do término de

um relacionamento que produziu, dentre outras coisas, muitos pensamentos e lágrimas. Nesse

momento de crise, não somente a minha vida pessoal foi posta em xeque, mas também os

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pensamentos e as convicções que eu tinha sobre a arte, ou sobre a forma como ela fazia

sentido para mim foram questionados. Nestas circunstâncias, diversas certezas passaram a ser

dúvidas. Fui obrigada a rever vários elementos da minha vida pessoal. Hoje percebo que esse

olhar permeado de insatisfação foi fundamental para gerar o impulso inicial da realização

dessa pesquisa. Desse modo, vejo que as minhas dúvidas de fórum íntimo interferiram

também na minha relação com o teatro, e repercutem particularmente na escrita deste TCC.

Na minha vida pessoal eu não queria ter a necessidade de provar nada a ninguém e

quanto mais genuína, crua e sincera eu fosse com os meus sentimentos, mais eu me sentia

confortável e madura para enfrentar aquele período de incertezas. Essa nova percepção mudou

a relação que eu mantinha com o mundo que me cercava e interferiu diretamente na minha

arte. Passei a trilhar um caminho de procura às formas mais “genuínas, cruas e sinceras”

dentro do teatro. Defino assim a perspectiva que orientou tanto a escolha do tema deste

trabalho como meu olhar sobre os procedimentos confessionais da autobiografia.

Nesse processo, comecei a questionar o teatro com o qual eu me relacionava. O

teatro que me era contemporâneo e que chegava até mim. Inquietava-me o fato do teatro ter

que ser cada vez mais inédito, de modo a ser sempre mais surpreendente e virtuoso. Não me

sentia contemplada (assistindo ou fazendo) por um teatro que se sustentava a partir de um

universo que é totalmente alheio ao artista que está em cena. Nesse teatro, cabe ao artista se

relacionar com os inúmeros elementos que estão fora dele. Eu me perguntava onde estava a

voz e o pensamento do sujeito na cena. Eu pouco via o trabalho íntimo do ator. Sentia-me

afastada disso que produzia pouca ou nenhuma aproximação entre a cena e o meu eu. Sentia-

me ausente.

Por mais que, como estudante de teatro, fosse estimulada a pensar sobre o

espetáculo de forma crítica, ainda assim me sentia em um permanente estado de

contemplação, afastada daquilo que se passava na cena e de mim mesma. Assisti durante esse

período a vários espetáculos e apenas percebia inúmeros recursos sendo utilizados, mas a

matéria-prima, o sujeito, era algo secundário, como uma peça de algo externo. Esse teatro

pouco fazia sentido pra mim. Em suma, incomodava-me o fato de que a busca por aquilo que

é genuinamente humano, o que é complexo dentro da sua simplicidade, fosse deixado de lado

ou simplesmente pouco explorado em formas teatrais atuais. Lógico que sei da limitação do

universo teatral ao qual eu tinha acesso. Estou segura de que em outro contexto cultural teria

tido contato com formas e experiências teatrais que possivelmente me ofereceriam respostas

mais imediatas. Mesmo assim, tomo minha experiência e a sensação de carência como uma

condição que me fez refletir como atriz e pesquisadora.

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Posso resumir minha sensação dizendo que me encontrava procurando algum

elemento ou sensação de realidade dentro daquele contexto ficcional. Nesse sentido, confesso

que desde a minha entrada em 2009 no curso de Teatro da Universidade do Estado de Santa

Catarina, incomodava-me profundamente a ideia do teatro unicamente como entretenimento.

Foi a partir da intranquilidade em relação à minha vida e à minha arte que iniciei o processo

de busca pela identificação da minha própria linguagem.

Nesse contexto, no primeiro semestre de 2012 cursei a disciplina de Prática de

Direção Teatral I, da sétima fase do curso de teatro. A disciplina era voltada essencialmente

para a aprendizagem e a prática da direção e produção de um espetáculo teatral. Com a

acadêmica Mirella Granucci, que cursava a mesma disciplina que eu, formei uma dupla a fim

de realizarmos a direção de um projeto teatral. Nossa primeira busca foi uma unidade de

pensamento em relação ao trabalho que estava por vir. Após dias regados a cafés, conversas e

trocas de experiências, vontades e ideias, desenvolvemos alguns consensos sobre aquilo que

queríamos e acreditávamos em relação ao teatro que desejávamos produzir: compartilhar

histórias de maneira sensível e suscitar a relação concreta entre o ator e a audiência através do

jogo do real e ficcional na cena. Essas definições guiaram todo o nosso trabalho. Mais do que

a expectativa da criação de um espetáculo como resultado, queríamos suscitar formas de

compartilhar o que era verdadeiro e latente em cada um que compunha a equipe: Mirella,

Marco Antonio Oliveira, Ivan Soares e eu.

Parto da ideia de Anne Bogart de que “todo ato criativo é um salto no vazio”

(2009, p. 37) para definir o lugar onde me encontrava quando assumi a construção do

espetáculo. Não sabia direito de onde estava vindo e muito menos onde queria chegar. Eu

possuía alguns pontos que se convertiam em ideias, e muitos outros pontos que se espalhavam

no vazio. O momento de saltar havia chegado e, como completa Bogart (2009, p.37), “a hora

de saltar nunca será estabelecida de antemão”.

Partindo do lugar do desequilibrado, do mal colocado e do incerto, buscávamos a

exposição justamente dessa falta de equilíbrio que existia na nossa vida e na nossa arte.

Desejávamos colocar às vistas da audiência a desorientação da vida real. E paralelamente a

esses quereres, eu ansiava pelo meu próprio equilíbrio na vida real.

A arte começa na luta por equilíbrio. Não se consegue criar em um estado de harmonia. Estar fora do equilíbrio produz um estado que é sempre interessante no palco. No momento do desequilíbrio, nossos instintos animais nos impelem a lutar pelo equilíbrio e esta luta é infinitamente cativante e proveitosa (BOGART, 2009, p. 37).

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Foi no meio desse processo, e das questões que ele nos propunha em relação à

dramaturgia do espetáculo, que descobri o que viria a ser o foco da minha pesquisa no

Trabalho de Conclusão de Curso. Esse processo de pesquisa pessoal e artística gerou o

espetáculo Engrama. Hoje penso que os atores serviam como objetos de uma investigação

sobre o ser humano. Mirella e Marco ficavam em cena durante quarenta minutos contando

histórias que transitavam entre os âmbitos do real e do ficcional. Exaurindo sensações e

percepções pessoais e coletivas.

Figura 01: Mirella Granucci e Marco Antonio Oliveira, em Engrama (2012). Foto: Emanuele Mattiello.

Não havia uma narrativa linear, histórias emergiam a todo tempo através do lodo

dos pensamentos dos dois atores. Um amigo comentou comigo depois de assistir ao

espetáculo: “o Engrama não começa e não termina”. Outro disse ter tido “uma overdose de

humanidade”. E como resultado, mais do que um espetáculo, o que foi concretizado de forma

verdadeira se refere ao fato de as fronteiras da produção terem sido extrapoladas, de modo

que os ecos da construção da peça ainda reverberam em relação a mim, e por isso sinto que

estão de alguma forma dentro dessa pesquisa.

Essa busca por um encontro com aquilo que é humano dentro de um contexto

espetacular me faz refletir sobre uma ideia que corta transversalmente a pesquisa desse

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trabalho: a exploração do íntimo dentro de uma sociedade espetacularizada1. Pode-se

perceber que a exposição e a procura de notícias íntimas de terceiros está conectada a um

espectador-consumidor de produtos jornalísticos televisivos, que considera o telejornal fonte

de informação – quase inquestionável - sobre o real. Um espectador voyeur que desfruta de

informações que pouco ou nada dizem respeito ao seu mundo para além do universo da

novidade. Neste contexto, “os meios de comunicação corroboram estrategicamente [...],

incentivando a crença na qual os produtos não-ficcionais trabalhariam com a apreensão direta

e neutra da realidade, estando próximos de uma verdade legítima” (SOLER, 2008, p. 39).

Bem, falo aqui de instituições que influenciam comportamentos não somente

individuais, mas também sociais, e que agem politicamente a fim de defender seus próprios

interesses e os desejos de uma economia capitalista de modo geral. Dentro desse contexto, o

noticiário precisa vender o “fato real”, a notícia vira entretenimento, e quanto mais novelística

for a passagem de informação, mais espectadores serão atraídos para o mundo da ficção-real

e, assim, mais contemplada essa mídia poderosa e imparcial está. Debord (1997, p. 14) define:

Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos - o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade (DEBORD, 1997, P. 14).

A partir do pensamento de Guy Debord, o pesquisador Marcelo Soler afirma que

“a ficcionalização da realidade [decorre] da ação dos produtos desses meios de comunicação

sobre nosso imaginário” (SOLER, 2008, p. 35). Enxergo o conceito de uma vida socialmente

indireta como uma vitrine de loja que se mostra o mais interessante que puder para atrair

olhares consumidores, mas que se mantém distante da realidade. Sobre isso, Debord (1997,

p.13) esclarece:

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação. (...) A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudônimo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em

1Tomo esse conceito partindo dos estudos sobre um mundo no qual quase tudo se torna espetacularizado, contido no livro A Sociedade do Espetáculo (1997), de Guy Debord. No estudo, o pensador questiona as fronteiras entre aquilo que é de caráter íntimo e aquilo que não é, dentro de uma sociedade de venda de qualquer coisa, deixando claro que esses limites estão de maneira contundentemente borrados na sociedade contemporânea. Além de fazer um estudo sobre a sociedade de consumo - que acaba por consumir ela mesma – o pensamento de Debord suscita a discussão sobre nossa sociedade atual, em que as relações sociais são mediadas pela imagem – por aquilo que parece ser, e não por aquilo que é.

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geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo (DEBORD, 1997, p.13).

Assim, esse universo onde tudo é passível de espetacularização, da venda do fato

real que adquire máscaras de ficção novelística, da tragédia cotidiana vista mais com o olhar

de entretenimento do que como informação, é esse lugar confuso que exige uma expectação

de modo contemplativo. Quando esse sujeito que consome o show business da tragédia da

vida real, que assiste a algo, mas não o vê na sua inteireza, é desafiado por um teatro que até

então era desconhecido por ele, colocado numa posição ainda também estrangeira, onde

assume um posicionamento contrário ao de espectador – que não somente assiste, mas que

vivencia algo – é que acontece o confronto com o real.

Cabe esclarecer que também seria necessário perguntar se uma cena do real, uma

cena biográfica, não poderia cair no mesmo espaço de consumo. Não há dúvida de que na

nossa sociedade tudo pode ser objeto dessa ânsia de consumo, e esse teatro não estaria imune.

No entanto, penso que como se trata de realizações não industriais, que se oferecem para o

público em uma chave que não reforça o consumir, mas o se encontrar, podemos perceber, no

âmbito deste trabalho, tais práticas cênicas como exercícios de resistência ao consumo.

Realizo na minha pesquisa uma análise do espetáculo Ficção, da Cia. Hiato, da

cidade de São Paulo. Proponho-me a refletir sobre a construção da dramaturgia da peça,

analisando como se deu a criação do texto cênico e como funciona a exposição de histórias

profundamente pessoais na cena.

A trajetória do grupo paulista sempre foi permeada pela investigação do eu do

próprio ator em suas montagens. Contudo, na última peça da Cia., essa investigação é

verticalizada em busca de pontos mais radicais de exploração de uma cena do real. Ficção

utiliza como material dramatúrgico e cênico a exploração da autorreferencialidade e de

histórias pessoais, caminhando entre os planos documental e narrativo da cena, jogando com

sua audiência de forma compartilhada e não somente contemplativa.

Há pouco material em língua portuguesa relativo ao teatro autobiográfico, teatro

documentário e sobre a confrontação com o real. Isso reflete as proposições práticas dos

artistas que desenvolveram suas pesquisas aqui. Diferentemente do Brasil, em outros países

da América do Sul e em países da Europa é possível encontrar uma pesquisa relativamente

jovem, porém densa, sobre teatro autobiográfico e documental e acerca do real na cena. Por

esse motivo acho pertinente a pesquisa sobre essa construção dramatúrgica feita aqui no

Brasil. Minha pesquisa não se bastou somente em pesquisadores brasileiros, contudo, para

desenvolver a investigação que abordo neste trabalho, procurei a Cia. Hiato justamente por ser

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um grupo contemporâneo brasileiro que desenvolve suas obras alicerçadas na pesquisa de

histórias pessoais, real e teatro.

Nessa pesquisa me instiga pensar quais os motes que levam o artista

contemporâneo a considerar pertinente a exposição de si como forma de atravessar o seu

público. Nesse sentido, procuro investigar uma cena que supera o âmbito do entretenimento

para se fazer ativa no momento de vivência com sua audiência. Indago-me como se constrói o

desejo de uma audiência que busca o real no teatro, bem como a escuta de histórias que são

alheias, mas ao mesmo tempo próximas daquilo que diz respeito ao humano. Mais que isso,

considerando um mundo constituído por inúmeros estímulos visuais, físicos, emocionais e

psicológicos, procuro entender como se constrói o vínculo sincero e frágil entre o artista

contemporâneo e sua audiência, questionando esse fazer que tenta borrar as fronteiras entre

real e ficcional em busca de uma cena onde não existam receptores e agentes predefinidos,

mas sim um lugar em que ocorra a perseguição de uma cena que seja compartilhada.

Divido a pesquisa desse TCC em dois capítulos. O primeiro detém sua

investigação acerca do confronto entre o real e o ficcional gerado a partir da dramaturgia

autobiográfica. No segundo capítulo minha pesquisa se debruça no trabalho da Cia Hiato com

o espetáculo Ficção. Discuto um pouco acerca da construção do espetáculo e sobre aquilo que

assisti. Identifico os pontos de confrontação entre real/ficcional dentro do espetáculo,

procurando refletir acerca de uma cena que possui o caráter expositor do íntimo no cerne de

sua construção.

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É o sonho do teatro moderno, romper a quarta parede, confundir o ator com o espectador, trocar seus papéis,

uma velha utopia que não há deixado de funcionar como motor de renovação e busca de novas fórmulas cênicas

(CORNAGO, 2006, p.2).

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CAPÍTULO 1

O CONFRONTO ENTRE O REAL E FICCIONAL A PARTIR DA AUTOBIOGRAFIA NA CENA: PANORAMAS E PENSAMENTOS

A diluição contínua das fronteiras entre o real e o ficcional na sociedade

contemporânea tem provocado mudanças concretas de olhares e percepções em relação à vida

humana. Essas transformações comportamentais que, por conseguinte, geram reflexões e

indagações sobre a maneira do traquejo da vida real hoje, repercutem de maneira contundente

nas artes. A linha tênue não mais separa, mas sim aproxima e filtra esses dois elementos

antagônicos – realidade e ficção, produzindo novas relações dentro do teatro, fazendo jogar a

verdade e a mentira e colocando em discussão as relações entre ator e espectador.

Propor uma pesquisa sobre um teatro que utiliza a realidade como

base/elemento/ponto de partida para a construção textual e construção das ações da cena,

estimula uma reflexão sobre a compreensão da autobiografia e da memória como peças-chave

de mecânicas criativas que têm se feito mais comuns na cena contemporânea. Investigar a

dramaturgia que nasce a partir de relatos pessoais, me fez partir do significado do que entendo

como memória.

1.1 Considerações acerca da memória e do real

Minha concepção acerca da memória se construiu a partir da minha experiência

pessoal relacionada com vivências de autoconhecimento. Para mim, a mente humana possui

mecanismos de escolha e seleção entre aquilo que se quer perceber, recordar ou aprender.

Relaciono tal concepção com elementos conceituais que propõe o campo científico da

Neurociência que tem buscado compreender os processos de memória tanto a partir dos

fenômenos da psique como da fisiologia.

Considero aqui o pensamento do médico e cientista argentino naturalizado no

Brasil, Ivan Izquierdo, que afirma que a memória, quando evocada, é diretamente afetada por

hormônios diversos. Tais substâncias modulam o registro dos acontecimentos que vivemos. A

memória seria uma “‘informação aprendida’ mais ‘o efeito do hormônio que for liberado

durante a experiência correspondente’” (IZQUIERDO, 2004, p. 05), pois os hormônios são

produzidos e sentidos pelo corpo a partir de experiências significativas. Nesse caso, essas

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mesmas substâncias, uma vez liberadas, criam um “estado” físico e psicológico, tornando a

aparecer quando situações semelhantes ocorrem. Assim, por exemplo, através da ação dos

hormônios que se combinam com o acontecimento, passamos a recordar “mais das memórias

de medo quando formos submetidos a novas situações de medo” (IZQUIERDO, 2004, p. 05).

Amparada por esse estudo, utilizo o termo memória como uma construção

ficcional da mente, o resultado de um registro produzido a partir de acontecimentos ocorridos,

mas necessariamente relacionado a um registro fisiológico, um resíduo inscrito no corpo e não

apenas no universo do afeto. Nesse sentido, a memória não pode ser tratada como realidade

estabelecida, ela é uma produção do nosso próprio entendimento sobre a coisa, sendo passível

de modificação. Ela é uma inscrição no corpo e resultado de uma construção seletiva.

Partindo dessa reflexão, pode-se dizer que a memória não é verdade absoluta, ela

é falha. Como aponta Izquierdo, nossa memória é o resultado de uma série de esquecimentos

seletivos que permite que lembremos aquilo que, aparentemente, nos importa. Fazemos assim

um mapa do que somos, através daquilo que escolhemos lembrar. A memória é um relato, um

relato de nossa vida.

A pesquisadora argentina Julia Elena Sagaseta (2006, p. 07) cita a opinião de

Beatriz Trastoy quando diz que “as convenções literárias e culturais impõem um

condicionamento pelo qual todo relato, é, em última instância, uma construção ficcional”23.

Por mais que o relato seja produzido e se finde na própria mente do produtor do pensamento,

já é uma construção ficcional, uma produção de história. Aponta André Carreira refletindo

sobre uma cena da intimidade:

Podemos dizer que todo relato, até mesmo o relato da memória tem uma dimensão ficcional se vinculamos ficção com a ideia de uma construção intencional, ou pelo menos consciente de sua tensão com um outro campo, o do não relato, do real. Sabemos que essa tensão só pode ser pensada como hipótese, pois não temos como nos assegurar de que a distância entre o ficcional e o real possa ser explicitado de forma cabal e precisa. Por isso, desconfiamos sempre daquilo que seria o não ficcional (PRELO, 2013).

Um exemplo que ajuda a compreender tal ideia pode ser tomado do filme de

produção francesa, Amour (2012). No filme de Michael Haneke, o personagem George (Jean-

Louis Trintignant) conta à sua esposa uma história sobre a primeira vez que foi ao cinema.

Fala que era ainda criança e que, após assistir a sessão, saiu completamente comovido da sala

2No intuito de tornar a leitura mais fluida, optei por colocar no corpo do texto as citações em português. Todas as citações constarão na língua original através de nota de rodapé. 3 No original: “Las convenciones literarias y culturales imponen un condicionamiento por el cual todo relato, es, en última instancia, una construcción ficcional”.

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de cinema. No caminho para casa encontrou um vizinho que lhe perguntou onde havia ido e,

ao tentar falar sobre o que tinha acabado de lhe ocorrer, as lágrimas e a vergonha natural

causada por elas surgiram em seu rosto. George, agora velho, diz à sua esposa que não lembra

exatamente qual era o filme que havia assistido, tampouco qual foi a reação do menino

perante suas lágrimas. Ele só se recordava da emoção causada pelo filme. A única memória

que ele possuía do fato era a lembrança de como ele sentiu o acontecimento. A memória, em

parte, se desfez. Mas as cicatrizes que nasceram a partir do acontecimento não.

Utilizo esse exemplo para também colocar em xeque como entendo o conceito de

real. Se considero a memória uma produção ficcional de algo ocorrido, pergunto-me o que

seria real para mim? Em que instância se pode identificar um teatro do real? Essa

consideração se alia ao pensamento do pesquisador José Sánchez, que aborda o conceito de

irrupção do real4, afirmando que tal irrupção expõe o confronto entre aquilo que é e o que

parecer ser. Em tais situações não se fala sobre o real, no entanto são abertas portas para que

o real desponte dentro da cena, modificando tanto as condições de enunciação do ator quanto

as condições de expectação.

Relacionado a essa busca do real enquanto experiência produtora, além de pensar

na memória factual como impulso criador, levo em conta não somente fatos “documentados”,

mas também penso em uma perspectiva criadora de um teatro no qual o cerne da sua gênese é

a memória falha (como a de George em Amour), uma memória criadora, que é capaz de

suscitar mudanças reais no agora, e modifica a perspectiva do futuro, transformando também

seu passado. Uma memória da qual o ator se apodera da história para revolucioná-la,

considerando a mudança profunda que pode ocorrer a partir da exposição dos fatos. Uma

memória que se cria muito mais a partir das sensações, das lembranças sensoriais, corporais e

sentimentais sobre os acontecimentos já vivenciados. Como lembra Luiz Humberto Arantes

(2011, p. 02): Trata-se aqui de uma memória não apenas cerebral, mas também daquilo que Hans-Thies Lehmann nomeia como uma memória do corpo, das cicatrizes, de uma memória nas paredes e na arquitetura dos espaços. Relatos de vida, biografias, autobiografias, cartas, fragmentos de uma trajetória de vida são material para o processamento da criação cênica e se apresentam como rico material de trabalho para criadores cênicos (ARANTES, 2011, p. 02).

Considero nesta pesquisa apenas espetáculos que se propõem a expor o fato real

na cena, espetáculos que suscitam a dúvida no espectador sobre a idoneidade daquilo que está

em cena. Espetáculos que também buscam desenvolver a sensação de que o acontecimento é 4O conceito pode ser visto com mais aprofundamento no livro “Prácticas de lo real en la escena contemporânea”, de José A. Sánchez.

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realmente verdadeiro. Portanto, não trabalho com propostas espetaculares que utilizam fatos

reais em sua construção, mas que não colocam isso em questão diante do espectador. Sobre

isso, pesquisador Marcelo Soler (2008, p. 37) comenta:

O dado não-ficcional só será percebido como tal quando a plateia, previamente ou durante a própria encenação, significa-lo desse modo. Não basta o ato de documentar se o espectador, protagonista da experiência artística, não percebe o que frui como documentário. Um espectador que, informado, chega para assistir a uma encenação documentário recebe a obra de maneira totalmente diferente daquela que faria frente a uma obra de ficção (SOLER, 2008, p. 37).

Ao estabelecer as margens do meu objeto de estudo, isto é, espetáculos que

expõem e tencionam os limites do real em cena, estou consciente de que não adentro minha

pesquisa ao teatro documentário, onde o real e a autobiografia estariam expostos somente

através do âmbito concreto da pesquisa do documento. Considero a descontinuidade e a

imprecisão do acontecimento, como lembrado por Bourdieu, elemento fundamental quando

abordamos o real na cena.

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como um relato coerente de uma sequencia de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (...) Como diz Allain Robbe-Grillet, “o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo, formado de elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório” (BOURDIEU, 1996, p. 185).

Diante do exposto, parece importante relacionar minha decisão de recortar o

campo de pesquisa considerando meu desejo de localizar as propostas que me oferecem a

possibilidade de refletir sobre uma cena que, relacionando com o pensamento de Bourdieu,

não mais mantém em seu desenvolvimento a ilusão retórica e a representação comum da

existência.

1.2 A performance art e as aproximações do eu

Dentro das práticas artísticas, principalmente com o desenvolvimento das

atividades da performance art, esfera que engloba e permeia fortemente as artes cênicas e as

artes visuais, percebe-se a aproximação entre arte e vida, um aumento contínuo do interesse

dos artistas pela exploração/exposição do íntimo em suas manifestações artísticas.

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É possível identificar um movimento de metamorfose dentro do teatro a partir do

fato de que os limites da representação são quase exauridos pelo desenvolvimento da cena

contemporânea. Stanislavski, Brecht, Grotowski e Artaud também traçaram suas pesquisas

cênicas a partir de trabalhos autorais nos quais a presença do elemento pessoal do artista em

cena (ou para a construção dela), era imprescindível e potente. Sedimentados nos terrenos das

vanguardas do século XX, a performance art e o teatro passam a explorar de forma

simultânea o corpo como foco de experimentação de linguagem, centrando-se no sujeito e sua

experiência como material de criação. Inserida nesse território onde o artista realiza ações sem

a completa proteção da representação, a arte assume práticas de resistência, de tal forma que

se pode observar a fusão entre diferentes linguagens artísticas. Nesse contexto, a exploração

do real surge, gerada pelo descontentamento daqueles que a praticam em relação à sua própria

arte, atravessando e transitando entre os limites já imprecisos entre o teatro e a performance.

As narrativas que fundem relatos pessoais com histórias ficcionais transcendem o

simples fazer artístico. Instiga-me pensar quais são os motivos que levam um artista a

procurar a sua própria e real exposição diante de terceiros. Ao mesmo tempo em que o teatro

é a arte do encontro, esse fazer é extremamente solitário quando o artista-ator é colocado em

cena enfrentando seu espectador. Na exposição de fatos e percepções íntimas, o que ocorre é

uma troca, um compartilhamento de instantes sinceros com a audiência. Creio que essa

provocação pela relação concreta e verdadeira seja uma busca pessoal do artista por ele

mesmo. No encontro com o outro é onde o artista se encontra. E vice-versa. Nesse sentido,

As micronarrativas passam a ser consideradas também como um recurso utilizado pelo indivíduo, em sua solidão existencial, para se conectar com o outro e para reatar os fios partidos das narrativas identitárias, assumindo-se como centro de definição do sentido de sua própria vida. As narrativas locais de experiências vividas se oporiam tanto à temporalidade associada ao progresso pela modernidade quanto ao esvaziamento do tempo operado pelo cibercapitalismo e pela globalização (DE FIGUEIREDO, 2009, p. 134).

O pesquisador André Carreira comenta que espetáculos que utilizam a

dramaturgia autobiográfica, que exploram o jogo entre o real e o ficcional em cena, são

caracterizados pela “exposição do artista em um ato de desnudamento de seus fóruns mais

íntimos”, (CARREIRA, 2011, p. 332). A partir disso, o pesquisador desenvolve algumas

perguntas ligadas à exploração dessa dramaturgia, acerca do confronto do ator e do espectador

com o real, da relação/experiência que nasce entre ator versus texto, ator versus audiência,

audiência versus texto. Seguindo esse pensamento, Carreira traz à tona questões que me

impulsionaram a indagar e refletir mais sobre o caráter confessional dessa dramaturgia.

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O que impulsionaria um autor, um artista, um ator ou uma atriz de teatro a explorar uma cena na qual joga a realidade, e um alto nível de explicitação do pessoal, um teatro no qual a intimidade é o elemento vincular? O que buscam os artistas ao oferecer à audiência segredos pessoais nesse território no qual sempre se está frágil? O que busca o público que escolhe esse tipo de produção? (CARREIRA, 2011, p. 332).

Desse modo, o autor ainda questiona se a produção dessa forma dramatúrgica, e a

relação com o público a partir dela, não seriam respostas ao nosso tempo atual, em que a

exposição quase total é constantemente explorada em mídias sociais, por exemplo. Nesse

tempo em que o que era confidencial se tornou público, por uma razão óbvia de saturação da

informação fast food e por uma mudança de entendimento sobre o que é ou não de valor

íntimo, aquilo que era privado hoje já não tem mais graça. Percebe-se uma crescente

valorização do parecer, onde “toda realidade individual tornou-se social, diretamente

dependente da força social, moldada por ela. Só lhe é permitido aparecer naquilo que ela não

é” (DEBORD, 1997, p. 18). Nesse sentido, as novas buscas dramatúrgicas e essa relação

cúmplice entre artista e audiência, surgiriam como resposta a uma geração sedenta cada dia

mais por descobertas e relações pessoais?

Relacionado ao exposto, a pesquisadora Gabriela Monteiro propõe uma reflexão

sobre como o mundo globalizado propiciaria um ambiente de total exposição dos sujeitos.

Das redes sociais às próprias relações interpessoais, e também o teatro, tornaram-se mais

expositivos.

As noções do que é público e privado confundem-se na medida em que toda e qualquer pessoa pode barganhar seu espaço no que chamo de “rede” [...] o espaço da intimidade é partilhado e objeto de interesse público, enquanto o que antes era socialmente aceito de ser divulgado por seu caráter impessoal (da preservação do privado) perde continuamente interesse se não estiver conectado a impressões, apontamentos, detalhes que humanizam o biografado, expondo suas fragilidades e idiossincrasias na tentativa de provocar identificação com os consumidores/espectadores (MONTEIRO, 2010, p. 02).

Além disso, pode-se pensar no caso de países que experimentaram longos períodos de

regimes repressores – como o Brasil, Espanha e países da América Latina, no que diz respeito

à necessidade de exposição como uma resposta aos anos de repressão individual. Nesse

contexto, falar de si se tornou necessário e urgente, de forma que se pode considerar a

exposição de acontecimentos de cunho pessoal também como uma prática de denúncia de

uma sociedade organizada de forma doentia.

Nos últimos trinta anos do século XX, muito se difundiu a importância da leitura de biografias e autobiografias, formatos narrativos em que a memória é a matéria-prima

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por excelência. Para alguns, reflexo do ressurgimento das subjetividades no campo da política, num mundo pós-crise de ideologias (ARANTES, 2011, p. 04).

Assim, a autoexpressão assume um discurso intimamente político. “A perda da

realidade estava intimamente ligada à perda da intersubjetividade”5 (SÁNCHEZ, 2007, p. 14).

Portanto, recuperar o real e expor a subjetividade do ser humano é terapêutico, subversivo e,

ao mesmo tempo, politicamente vital a fim de manter o caráter de sujeito do ser.

1.3 O teatro e seu fado de realidade e ficção

Quando o teatro se instala como acontecimento, no momento em que o ator se

coloca em cena, o elemento ficcional já se faz presente. Tomo isso pensando que o teatro por

si só já possui uma convenção de signos que trazem à tona a ficcionalidade. O teatro é

armado, ensaiado, repetido dia após dia. A cena – justamente por ser cena – já possui a

mancha da ficção.

Contudo, a equação inversa dessa relação também é válida. O fato de o teatro

acontecer no tempo invariável do agora, com o artista presente em cena, possui o elemento do

real e de uma relativa escrita autobiográfica, pois quando estamos atuando, é “a vida real

realizando arte” (CARREIRA, 2011, p. 339), e por ser o ator um ser social, ele imprime suas

histórias pessoais, sua biografia em seu corpo, sua voz, olhares, gestos. Como diz Carreira

(2011, p. 341), “o teatro não pode velar a fabricação de si mesmo. O teatro está condenado ao

elemento do real, ainda que seja apenas no plano da emissão do discurso, pois sempre vemos

parte do não discurso”.

Portanto, considero que toda experiência artística do ator deve ser tomada como

uma escritura autobiográfica. Enfatizo isso a fim de focalizar a duplicidade que identifico no

processo de atuação, no qual o ator ficcionaliza e se apresenta também como sujeito da cena.

Nesse sentido, Monteiro comenta que a partir do momento em que a autobiografia e a própria

noção de real são novamente exploradas dentro do texto e da relação com o público, esse

efeito de realidade se duplica, “esvaziando o sentido de representação” (2010, p. 02). Assim,

essa duplicação do real que produz a perda da potência da representação faz com que a

presença física do ator como indivíduo ganhe muito mais força em cena.

Podemos identificar, neste contexto, uma brecha autobiográfica, isto é, um espaço

que permite a manifestação dos dados pessoais, e por isso é possível dizer que a presença de

elementos da realidade dentro de âmbitos caracterizados pela ficcionalidade e a presença 5 No original: “La pérdida de la realidad estaba íntimamente ligada a la pérdida de la intersubjetividad”.

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física do ator abrem espaço para a penetração da assinatura genuína do artista, bem como a

exploração dos conflitos verdadeiros dos atores. Quando o teatro incorpora essa abertura

autobiográfica, é levado a dimensões mais complexas que definem o estilo de cena. Conforme

aponta Sánchez, no teatro essa assinatura é implícita desde o princípio, através do corpo

presente do artista, portanto, podemos ver o “corpo como meio inevitável de relação com o

real”6 (2007, p. 16).

Mas somente o corpo colocado num estado de presença da verdade não é

suficiente para que o real seja posto de fato em cena em sua completude, ainda que isso seja

atualmente um elemento que reafirma a duplicidade ator/personagem. A presença física

daquele que conta a sua própria história é que dá sentido à pesquisa sobre a autobiografia

cênica. Essa presença seria capaz de gerar a dúvida no espectador. Contudo, mais do que uma

resposta concreta, o que faz com que a fronteira tênue imaginária do real e ficcional apareça

em cena é justamente a dubiedade suscitada pelo jogo entre verdade e mentira. Em sua

dissertação, a pesquisadora Heloisa Marina da Silva (2012, p. 18) pontua que “na discussão

contemporânea não interessa tanto o status do objeto autêntico, se é realidade ‘real’ ou

‘ficcional’, mas a pertinência da pergunta, da percepção investigativa, que ele permite

levantar”. Nesse sentido, sem a pretensão de conceder respostas à sua audiência, o teatro

autobiográfico se alicerça na investigação do jogo e da dúvida.

1.4 A audiência confrontada

Pesquisar e discutir quais mudanças o confronto com o real na cena provoca no

espectador de um teatro do real não é meu objetivo nesse trabalho, uma vez que a

complexidade de tal tarefa pede um texto de maior fôlego que um TCC. No entanto,

compreendo que essa abordagem é extremamente válida e enriquecedora para entender os

caminhos que o teatro está traçando dentro da sua história hoje. Estabelecer outro ponto de

vista sobre o que é real, ou por que eu busco relações reais dentro de um ambiente pautado

pela ficcionalidade, é essencial para uma reflexão sobre a lógica da vida contemporânea. Nesse sentido, em seu estudo acerca dos conceitos de real e realidade no teatro,

no livro “Prácticas de lo real en la escena contemporánea”, Sánchez elenca três tipos de

ações relacionadas com o real no teatro. São elas: a “representação da realidade”, a

6 No original: “Cuerpo como medio ineludible de relación con lo real”.

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“compreensão do real” e a “intervenção sobre o real”, sendo que nessa última o espectador se

assume como sujeito ativo do acontecimento teatral.

Tomando esses tipos de ações e relacionando com espetáculos que utilizam o real

em sua construção, tanto dramatúrgica como cênica, identifico sua aplicação como forma de

compor o acontecimento teatral. O primeiro ponto, a “representação da realidade”, se refere à

ligação entre o que é realidade e o que é ficção; o que podemos relacionar com o teatro em

sua forma mais primitiva. Seria a representação, o contar, a ficção no palco. O segundo ponto,

a “compreensão do real”, parte da premissa de que atores e público têm capacidade de

discernir o que é real e o que não é. E por fim, a “intervenção sobre o real”, seria o resultado

da experiência teatral, que não colocaria o espectador em uma posição contemplativa, mas

sim possibilitaria que o mesmo intervisse no acontecimento.

Atenho-me a esse último ponto – a intervenção sobre o real – que pode ser

identificado e analisado através de espetáculos que utilizam a autobiografia como cerne de sua

criação. Nas experimentações cênicas onde o real é exposto, onde o íntimo é lugar-comum

entre espectador e ator, surgem possiblidades de uma audiência ativa. O público é

continuamente confrontado a pensar, a sair do conforto de ser um mero espectador do plano

da ficção, podendo ser um sujeito atuante que jogue dentro do acontecimento teatral, isto é,

cumprindo uma função mais explícita na operação da construção da trama ficção-realidade.

Este teatro aposta que a partir do momento em que ele (o público) assume o papel de

cúmplice das confissões que o ator se propõe a expor, estaria se colocando em um estado de

vivência. Nesse caso, o espectador precisa estar disposto a apurar um pensamento ativo sobre

o caráter íntimo daquele momento. E é essa intimidade que amplia e coloca a audiência numa

posição de compartilhamento de pensamento e olhar sobre a cena. Nestas condições, o

público não pode deixar de funcionar, ainda que imaginariamente, como confessor que se faz

responsável do acontecimento que presencia. Portanto, “o entendimento do papel do

espectador no acontecimento artístico se distancia do de receptor contemplativo e passa a ser

o de co-autor que dialoga e atribui significado ao que assiste” (SOLER, 2008, p.38). Esta

operação é que atribui sentido à utilização do real, do verdadeiro no acontecimento cênico.

Esse olhar atrelado à bagagens pessoais e que a partir das propostas terceiras gera significado

para a cena.

Considerando a noção de teatralidade que propõe Féral no livro “Acerca de la

teatralidad”, a partir do pensamento do diretor da vanguarda Russa Evreinov, pode-se afirmar

que a especificidade do teatro se dá pela ação do olhar do espectador. A partir da criação de

um espaço potencialmente teatral, dentro da definição de Winnicott trazida por Féral, é que o

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público identifica a operação da ficção e sua possibilidade teatral. Nesse sentido, “Se o espaço

potencial do ator e o do espectador não se encontram, se não se reconhecem, não há teatro”7

(FÉRAL, 2003, p. 43). É o espectador, sempre, quem produz o entendimento e a visão sobre o

que se passa no teatro. É a audiência que coloca sentido e atribui relevância para a cena. Sem

a visão do espectador sobre aquilo que acontece não há acontecimento teatral.

A teatralidade tem a ver fundamentalmente com o olhar do espectador. Este olhar que observa/nota, identifica, cria o espaço potencial no qual a teatralidade vai poder ser localizada. O espectador reconhece este outro espaço, espaço do outro onde a ficção pode emergir. (...) este olhar é sempre duplo. Vê o real e a ficção, o produto e o processo. (...) a teatralidade pertence antes de tudo ao espectador. A teatralidade necessita do espectador no término do processo. Sem ele, o processo mimético e teatral não tem nenhum sentido (FÉRAL, 2003, p.44-45)8.

Esse olhar do espectador cumpre não apenas a função de dar significado para o

acontecimento, mas também a de criação de associações e aproximações com o que acontece

e com quem está em cena. Falo aqui do valor questionador de um teatro que abre portas para

pensamentos reais no acontecimento do agora. “[...] que o contato direto com os

acontecimentos históricos requeira do espectador seu posicionamento sobre os mesmos”

(SOLER, 2008, p. 39).

Se tomarmos como pressuposto que é através do espectador que a arte teatral

ganha sentido, a realização do encontro entre o ator e sua audiência pode ser vista como meio

e resultado dessa realização. O antagonismo das relações do ser humano com sua

contemporaneidade, onde relações efêmeras se diluem num mundo virtual, produz a

necessidade de encontros de verdade e com a verdade. Nesse sentido, Carreira comenta que

os espetáculos caracterizados pelo real em sua concepção buscam produzir vínculos concretos

com sua audiência durante as apresentações. Isso produziria um caráter dramatúrgico e

performático intimista e revelador ao seu público. Esse pensamento se conecta com a proposta

de Óscar Cornago (2006, p. 04), que pontua que:

A obra triunfa na medida em que consegue criar um sentimento de coletividade, que faz com que o público esqueça sua condição de comprador e consumidor de espetáculos, para fazer-lhe sentir-se parte desse algo; o fato cotidiano de assistir a

7No original: “Si el espacio potencial del actor y el del espectador no se encuentran, si no se reconocen, no hay teatro”. 8No original: “La teatralidad tiene que ver fundamentalmente con la mirada del espectador. Esta mirada señala, identifica, crea el espacio potencial en el cual la teatralidad va a poder ser localizada. El espectador reconoce este otro espacio, espacio del otro donde la ficción puede emerger. (...) Esta mirada es siempre doble. Velo real y la ficción, el producto y el proceso. (...) la teatralidad pertenece ante todo al espectador. La teatralidad necesita del espectador al término del proceso. Sin él, el proceso mimético y teatral no tiene ningún sentido”.

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uma obra teatral transformado na ação central desse espetáculo. O público se faz mais consciente de sua condição de espectador, de alguém que está percebendo com especial intensidade, sentindo algo que vai além dos canais convencionais para estes casos9 (CORNAGO, 2006, p. 04).

Pensando nisso, creio que esse seja o fator que, na maior parte das vezes,

aproxima o espectador não somente de histórias terceiras, mas nessa posição de

enfrentamento com o real a audiência é colocada num ambiente de reflexão sobre suas

próprias histórias. Em um lugar onde o imaginário pessoal é base para o imaginário social, o

autorretrato do outro impulsiona a produção do seu próprio retrato. Como um espelho que é

jogado contra a luz e acaba por iluminar o refletido, trazendo claridade àquilo que é real. Essa

proposta rompe por si só as expectativas pré-estabelecidas de uma audiência acostumada e

familiarizada ao escuro/escudo da cadeira do teatro. Rompe com a inércia do espectador que

assiste a algo e não faz parte de. Dá rosto e forma à escuridão da sala de teatro.

Brecht, em seu Pequeno Organon para o Teatro, nos provoca a pensar acerca

desse espectador contemplativo, que olha, mas não vê a ação. Que está inserido em um teatro

que não busca enxergar a sociedade a partir de uma posição política, mas sim simplesmente

retratá-la de forma a entretê-la. Mesmo Brecht desenvolvendo esse pensamento acerca de um

teatro da década de 1940, ainda hoje é fortemente constante e comum a presença da

contemplação teatral que beira à alienação social.

Entremos numa das habituais salas de espetáculos e observemos o efeito que o teatro exerce sobre os espectadores. Olhando ao redor, vemos figuras inanimadas (...). Quase não convivem entre si; é como uma reunião em que todos dormissem profundamente e fossem, simultaneamente, vitimas de sonhos agitados, por estarem deitados de costas, como diz o povo a propósito dos pesadelos. Têm os olhos, evidentemente, abertos, mas não veem, não fitam e tampouco ouvem, escutam. Olham como que fascinados a cena (...). Ver e ouvir são atos que causam, por vezes, prazer; essas pessoas, porém, parecem- nos bem longe de qualquer atividade, parecem-nos, antes, objetos passivos de um processo qualquer que se está desenrolando (BRECHT, 1978, n.26).

Assim, na busca por um caminho contrário ao de expectação, “o espectador de

teatro precisa travar diálogo com a peça. Ser espectador requer esforço, não há saída, um

esforço criativo” (DESGRANGES apud SOLER, 2008, p. 38). A partir dessas ideias é

necessário se questionar como agir e o que pensar quando encontramos mais pensamentos,

9No original: “La obra triunfa en la medida en que consigue crear un sentimiento de colectividad, en que hace que el público olvide su condición de comprador y consumidor de espectáculos, para hacerle sentir parte de ese algo; el hecho cotidiano de asistir a una obra teatral transformado en la acción central de ese espectáculo. El público se hace más consciente de su condición de espectador, de alguien que está percibiendo con especial intensidad, sintiendo algo que desborda los canales convencionales construidos para estos casos.”

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ações e relações reais dentro de uma sala de espetáculos do que na vida que, paradoxalmente,

chamamos de real. Ainda que resulte redundante e até exagerado, devemos considerar que

hoje em dia, cada vez mais, criamos relações virtuais e/ou superficiais como substâncias do

nosso cotidiano. O teatro poderia, então, ser o contraponto a essas infinitas práticas sociais

que se sustentam na hiperficcionalização da vida.

Fazendo parte de uma modernidade líquida10, constituída cada vez mais por

relações rarefeitas, “o corpo, o afetivo e a experiência” (CARREIRA, 2011, p. 336) trazem a

tona a criação de relações e vivências realmente palpáveis, onde se envolvem sentimentos e

compartilhamentos de forma real e tangível. O corpo: por sua materialidade e invariavelmente

seu poder de presença na cena. O afetivo: na criação de relação íntima entre ator e espectador.

Falo aqui de um teatro que funciona a partir da troca e da corrente de sentimento e

pensamento que conecta os dois pontos do teatro, ator-espectador. É só através dela que se

pode chegar ao terceiro ponto, a experiência genuína do acontecimento teatral. Vejo esses três

pontos investigados quando tratamos do autobiográfico, onde inevitavelmente utiliza-os como

alicerces da vivência, na busca pela cumplicidade e pelo cúmplice do processo de absorção do

real dentro do plano espetacular.

O vínculo concreto que espetáculos autobiográficos mantêm com a sua

audiência e o que se produz a partir disso constitui o principal elemento e resultado da criação

teatral. “O tecido invisível das relações concretas está diretamente vinculado com a percepção

do outro como sócio na produção de sentidos” (CARREIRA, 2011, p. 339-340). Partindo

disso, Carreira indaga sobre porque assistir a confissões de indivíduos que não conhecemos

seria tão interessante e prazeroso. Aproximar-se-ia de como se sentir testemunha de

confissões de segredos de alguém que rapidamente já se torna íntimo. Aproximar-se-ia da

mistura entre prazer e medo em ficar na ponta dos pés para observar por cima do muro a briga

do vizinho. A diferença é que o vizinho sabe que você o observa, é seu cúmplice, e em

nenhum momento diminui o tom da discussão. E essa troca é clara e faz com que tudo esteja

acordado entre as partes. A audiência desbrava alguns “elementos da vida íntima do

performer” (CARREIRA, 2011, p. 340).

1.5 O jogo através da dúvida

10 Conceito empregado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro A modernidade Líquida (2001), para representar as circunstâncias atuais da vida da sociedade humana, em que o tempo, as relações e as ações são permeados pela efemeridade dos acontecimentos. Inseridos em uma sociedade em que nada é feito para ser sólido, para durar, o ser humano mantém sua vida de forma instável - líquida.

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Justamente o caráter confessional e íntimo que o ator cria com o seu confidente –

o público – é o fator que mais me instiga a pensar sobre a autobiografia dramatúrgica. A

verdade duvidosa que é posta em xeque para esse público gera um interesse tentador. A partir

do momento em que a audiência escuta as revelações do ator, a verdade pessoal de caráter

confessional estabelece o vínculo interpessoal. De certa forma, esse vínculo compromete o

espectador, tirando-o da condição tranquila de mero voyeur do acontecimento teatral.

A partir da recepção dos textos e presenças autobiográficas, pode-se pensar uma

das respostas mais produzidas por esse teatro do real: o questionamento sobre a veracidade

das confissões. A audiência recebe e escuta segredos do artista, e dessa forma, pode passar a

se questionar sobre o que é real e o que não é. O que seria simplesmente representação de

algo, e o que está acontecendo ou já aconteceu genuinamente com o ator.

Chama-me atenção o quanto esse tipo de construção dramatúrgica propõe um jogo

com o seu público. Sem dúvida, o texto e a cena de desnudamento do ator foram ensaiados

exaustivamente, para justamente serem eficazes em provocar a desconfiança e o pensamento

do público sobre se e o que daquilo é de natureza real e o que é ficcional. Contudo, quando

ocorre a exploração da autorreferencialidade e do real na cena, o próprio teatro serve como

represa de tensão genuína com a verdade. Todos os “andaimes” que sustentam o

acontecimento teatral, - pode-se tomar como exemplo: figurino, cenografia, espaço, luz -

acabam por contribuir para um afastamento da realidade. Nesse sentido, esses elementos

trazem o espetacular. “No teatro, quando se pretende romper esse caráter com fortes marcas

hiper-realistas, o espaço cênico e suas convenções, introduzem a ficcionalidade”11

(SAGASETA, 2006, p. 07). A verdade nunca vai ser total (este não é o objetivo do teatro

autobiográfico e da confrontação com o real), e quem é responsável pela fixação desse

adverbio – nunca – é o próprio acontecimento espetacular, o teatro. É impossível escapar da

ficção. Mas outra vez e ainda que a experiência queira expandir os limites do teatro, tencioná-lo até introduzi-lo na vida, o teatro volta a aparecer como estrutura limitadora. Esse encontro se repete todas as semanas durante vários meses, essas conversas se fazem públicas diante de espectadores que pagam uma entrada para vê-los e escutá-los. Inevitavelmente o jogo e a repetição se impõem e vem a negar a pretensão da vida e autobiografia em sentido total em cena (SAGASETA, 2006, p.7)12.

11 No original: “En el teatro, cuando se pretende romper ese carácter con fuertes marcas hiperrealistas, el espacio escénico y sus convenciones introduce la ficcionalidad”. 12No original: “Pero otra vez y aunque la experiencia quiera expandir los límites del teatro, tensarlo hasta introducirlo en la vida, el teatro vuelve a aparecer como estructura contenedora. Ese encuentro se repite todas las semanas durante varios meses, esas charlas se hacen públicas ante espectadores que pagan una entrada para verlos y escucharlos. Inevitablemente el juego y la repetición se imponen y vienen a negar la pretensión de vida y autobiografía en sentido total en escena”.

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Penso que, dentro de um espetáculo que propõe sua construção a partir de um

texto teatral, quase tudo se mantém no âmbito representacional. Diante disso, questiono

quanto dessa mesma cena permanece aberta para intervenções do agora, da casualidade, da

espontaneidade – daquilo que é real? Como a dramaturgia é desenvolvida de modo a dar lugar

a acontecimentos imprevistos? Enfim, como a realidade se infiltra nas entranhas da sala de

teatro?

Faço essas perguntas a partir de minha perspectiva como espectadora de teatros

autobiográficos, onde identifico inúmeros pontos de abertura para intervenções acidentais de

fragmentos da vida real dentro de uma cena que parte da autobiografia. Normalmente, esses

teatros possuem como proposta justamente alcançar esse tipo de dinamismo.

Creio que uma possibilidade de resposta para meus questionamentos estaria em

uma cena que investe em momentos nos quais ocorre a irrupção do real. O surgimento de

fragmentos de realidade na cena irrompe justamente da confrontação com o real. Produzir

espaço, abrir caminhos para que intervenções reais do público sobre o espetáculo aconteçam,

gera a tensão entre os dois mundos antagônicos – ficção e realidade. E seria essa fricção entre

os dois “mundos” que aproximaria e geraria um resultado de investigação sobre atuação e

recepção do verdadeiro e do falso, das memórias e das invenções. Assim, esse teatro é

“realizado desde um lugar mais distanciado da representação e muito mais próximo da

apresentação” (CARREIRA, 2011, p. 341-342). Isso se associa intimamente a um

acontecimento de caráter mais performativo do que espetacular.

1.6 A radicalidade e as pequenas audiências

Podemos perceber o crescente interesse pelas discussões acerca de um teatro

autobiográfico, como força que repercute no aumento da atenção por parte do público sobre

produções teatrais que investigam histórias reais e que fazem irromper momentos verdadeiros.

Mesmo assim, esse interesse se mantém posto em um nicho específico do fazer teatral, que

envolve audiências e artistas, que pertencem a um universo que tem como base investigações

poéticas e estéticas que se dão como expressão do exercício da coragem. Uso aqui a palavra

coragem para traduzir o sentimento que tenho quando produzo ou assisto algo que investe na

confrontação com os seres abissais que habitam os vários “eus” de um indivíduo ou de uma

sociedade. “Um teatro que se faz para pequenas audiências, para um público de teatro e para

pessoas interessadas em experiências” (CARREIRA, 2011, p. 338).

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Nesse sentido, o caráter experiencial que teatros autobiográficos possuem, onde o

plano ficcional é extrapolado, pode produzir momentos de vivência e compartilhamento do

sujeito. Ir ao teatro para viver algo pode reverberar não somente no espaço da cena, mas

também no espaço cotidiano. Essas aproximações podem se dar a partir de um real que atinge

o material, construído na exploração das memórias e invenções.

Há um tipo de conversa paralela entre ator e espectador na apresentação de teatros

autobiográficos. O desejo de desvendar o enigma da veracidade das histórias, juntamente com

o sentimento de aproximação da vida do outro, geram uma espécie de dança do

descobrimento não somente entre ator e audiência, mas sim entre sujeitos. A exposição de

crises e fraturas verdadeiras, reverberam de forma quase desconfortável na interação dos

sujeitos viventes da cena (ator e público). Para mim, esse teatro imprime sua validade quando

atinge a capacidade de ultrapassar tão somente a exposição/discussão acerca de documentos,

histórias e fatos reais. O teatro verdadeiramente potente atravessa o outro, tira o fôlego. Para

que sejamos capazes de respirar de forma renovada após o acontecimento.

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“Ora, somos todos fingidores. Fingimos tão completamente que chegamos a fingir

que é dor a dor que deveras sentimos.”

- Fernando Pessoa

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CAPÍTULO 2

FICÇÃO E A BUSCA PELA REALIDADE

“Nesse espetáculo sou só eu, eu lanço, eu corto, eu sou o time inteiro.”

Thiago Amaral (2013)

2.1 A busca pela sobrevivência

De certa forma a escritura sobre um fato serve como uma tentativa de perpetuação

histórica do acontecimento. Na escrita autobiográfica não é diferente. O caráter documental

acerca da própria vida do autor é ainda mais profundo quando se trata do registro do íntimo. O

que é escrito e documentado é mais difícil de ser apagado/esquecido quando comparado

simplesmente àquilo que foi vivido ou pensado. Desse modo, as (auto) biografias seriam um

modo de sobrevivência dos fatos e dos sujeitos. Também seria uma forma de refabricar essa

vida. Por isso, toda autobiografia não pode deixar de ser também uma autoficção.

As artes da cena, seja teatral ou performática, são linguagens artísticas que mais

assumem o caráter essencial de manifestação do sujeito vivo (por exigir a presença física do

ator), portanto, são as artes que mais se aproximam do real, da vida e consequentemente da

morte. Sendo assim, penso que a busca pela sobrevivência, nesse caso, está presente de forma

latente. Sobrevivência tanto do ator, quanto da própria cena.

Durante o desenvolvimento desse trabalho indaguei-me se o falar de si mesmo no

teatro poderia representar um exercício de busca pela própria sobrevivência pessoal e também

uma forma de insistir na permanência do teatro como linguagem viva.

Considero que a exposição pessoal dentro da arte, é um meio de aproximação e

inscrição do real e sendo assim, seria um modo de sobrevivência, porque trata de valorizar a

ideia de vivência. Partindo desse pensamento, pergunto-me como o falar de si próprio

constitui estratégias para a manutenção do teatro, do ator e suas histórias como instrumentos

vivos.

Féral comenta que “o teatro é realidade que aponta à ilusão”13 (FÉRAL, 2003,

p.33). Isso se relaciona ao fato de que o teatro possui além do seu caráter ficcional, uma

qualidade de prática do real que é intrínseca à sua natureza de ação cultural. Todo teatro é

13 No original: “el teatro es realidad que punta a la ilusión”.

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feito como experiência humana. Sendo assim, pergunto-me se não poderíamos assistir à uma

ilusão que aponta à realidade quando pensamos, por exemplo, em teatros que jogam com a

irrupção do real(quando o real surge de forma inesperada e verdadeira dentro do espetáculo),

ou a partir de atuações que buscam desfazer máscaras e proteções, para assumir um caráter

mais íntimo possível, ou ainda em espetáculos que transformam o ator em autor do próprio

material dramatúrgico.

2.2 Quantas coisas cabem dentro de um Hiato?

Contemplando o nome que a Cia carrega, Hiato - que remete à lacuna, fenda,

abertura, o grupo investe incansavelmente suas pesquisas sobre o comportamento humano. O

grupo paulista surgido em 2007, nasceu da/para a investigação acerca de um teatro que se

desenvolva a partir das lacunas da existência humana, apostando na procura por perguntas

acerca do sujeito e seu comportamento. Um teatro de pesquisa, feito essencialmente a partir

de questionamentos, em busca de possibilidades e experimentações. Quantas coisas cabem

dentro de um hiato?

O interesse do grupo pelo confronto com o real na cena e pela pesquisa

dramatúrgica autobiográfica surgiu já em seu primeiro trabalho. Cachorro Morto, com

direção de Leonardo Moreira, que tratava sobre a Síndrome de Asperger, um grau do autismo.

A fim de explicar os motivos que levaram o grupo até essa pesquisa pessoal, o

ator e integrante da companhia, Thiago Amaral, comenta que para entender o processo do

autismo, além de visitarem instituições ligadas à síndrome, o grupo passou necessariamente

pelo processo de se colocar no lugar de pessoas com essa condição. Desenvolvendo o

exercício imaginativo de experienciar um pouco da vida de diagnosticados com a síndrome,

foi imediata a identificação de pontos em comum com as próprias vidas dos atores.

No processo de desenvolvimento de trabalhos teatrais como o do espetáculo

Cachorro Morto, nos quais os atores realizam suas pesquisas partindo de personagens

ficcionais, ou mesmo da investigação de procedimentos para a atuação, ocorre um processo de

imersão na personagem. Para pensar sobre a ideia de imersão no trabalho do ator é necessário

fazer referência ao tronco stanislavskiano das escolas de atuação. Particularmente o trabalho

de Lee Strassberg, nos Estados Unidos com o Actor’s Studio, representa uma referência

central.

Strasberg desenvolveu a partir dos anos de 1950 sua pesquisa acerca do ator e de

procedimentos de atuação. Durante esse tempo, elaborou o que se conhece por “método”. O

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método, inspirado nos ensinamentos de Stanislavsky, consistia em uma série de vivências em

que o ator era submetido a fim de submergir totalmente na pesquisa dentro do personagem.

Essa investigação partia essencialmente das experiências pessoais do ator, buscando uma

interpretação que se acercasse mais fielmente da vida real, e que utilizasse as próprias

emoções e memórias do ator como motes para a construção do personagem. Um exemplo do

método de atuação que era desenvolvido pelo Actor’s Studio era a utilização da memória

afetiva, onde o ator aproxima do personagem seus próprios sentimentos e vivências íntimas, a

fim de alcançar uma atuação que beira o real.

Já o trabalho desenvolvido por Stella Adler, atriz e professora americana, que

estudou com Stanislavsky em 1934, partia essencialmente do estudo profundo do texto teatral,

para que a partir dele as emoções e as aproximações com a vida real do ator acontecessem de

forma natural. Adler, que havia desenvolvido o método junto com Strassberg inicialmente no

Group Theatre, pautava sua pesquisa direcionada ao estudo do texto. Se o ator acreditasse no

que estava falando, se compreendesse a dramaturgia de forma inteira - incluindo o

entendimento sobre o personagem, sua história, sua cultura, sua época - as aproximações,

emoções e memórias surgiriam de forma quase intrínseca, partiriam mais da imaginação dos

atores e menos da memória pessoal.

Ao pensar a proposta que sustenta a criação de Cachorro Morto, pautada na

atuação de maneira imersiva, é inevitável observar ressonâncias dos modelos apontados

acima. Nesse sentido, observo que o caráter de vínculo entre o ator e seu personagem, como

propunha o diretor ucraniano, e a apropriação do texto de forma próxima, como sugeria a atriz

americana, são elementos presentes em espetáculos que se debruçam sobre o real. Thiago

comenta que o diretor Leonardo Moreira estimulou a procura das pequenas obsessões de cada

um. O ator observa que a partir dos apontamentos do diretor, passou a encontrar nele mesmo,

algumas “manias”, que se repetidas e agravadas, poderiam desencadear algum tipo de

transtorno psicológico. As reflexões estimuladas a partir do vínculo com o que se estava

pesquisando, aproximou ainda mais o objeto de estudo para as vidas pessoais dos artistas, que

passaram a identificar as aberturas existentes nas suas condições como sujeitos, onde

poderiam encontrar pontos de contato com a síndrome, por exemplo.

No segundo trabalho da companhia, Escuro, a pesquisa partiu da investigação de

condições de vida diferentes das que os atores possuíam. O grupo se debruçou em

compreender questões relacionadas à deficiências humanas físicas e psíquicas. Nesse sentido,

foram escolhidas lacunas de possibilidades de vida que o grupo gostaria de explorar mais

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profundamente. A cegueira e a dificuldade na linguagem e comunicação foram abordadas no

espetáculo.

Sobre a aproximação do contexto ficcional (as deficiências) com a vida dos

próprios atores, Thiago Amaral observa que em todos os momentos vividos pelo sujeito,

realizam-se escolhas consideradas aleatórias. Contudo, essas escolhas que na maior parte das

vezes foram feitas de maneira intuitiva, mais tarde acabaram fazendo sentido com a vida

pessoal de cada um, se aproximando com a realidade pessoal do artista. Nesse caso, no

Escuro Thiago explorou uma dificuldade na fala. Para o ator, o trabalho desenvolveu um

olhar mais refinado dele com ele mesmo. Thiago passou a ver as suas próprias deficiências de

comunicação, por exemplo.

Talvez ali eu estivesse vendo o meu lado “sombra” também, o meu “escuro”, o lado em que às vezes eu não falo, me omito, guardo. Foi muito difícil. O fato de partir de um material íntimo faz com que a gente entre num processo pessoal, que isso seja transformado na vida. E é a partir daí que eu posso colocar isso como um resultado cênico, de algo que eu experienciei (AMARAL, 2013).

É impossível não observar que tal narrativa nos faz lembrar elementos que

poderíamos relacionar com a experiência psicodramática. É claro que isso não faz parte dos

elementos de sustentação utilizados pelo grupo. No entanto, o ator visualizou a proximidade

entre a escolha feita por ele para a pesquisa ficcional e às suas próprias questões pessoais.

Nesse caso, o exercício de memória e imaginação se faz concomitantemente, ainda que não

cumpra uma tarefa sanadora, pois a busca é expressiva – e não curativa.

No processo de construção do espetáculo do terceiro trabalho do grupo, O Jardim,

cada ator desenvolveu uma pesquisa cênica a fim de encontrar uma forma para falar da sua

própria vida, e abordar a memória como material criativo. A experimentação consistia em

criar uma vivência em que cada pessoa do grupo expunha questões, acontecimentos e

experiências íntimas aos outros membros da equipe, com lugar e tempo a serem definidos

pelos próprios atores, autores das suas pesquisas/performances sobre suas vidas. Dessa forma,

cada um dos participantes foi observando o outro, tomando consciência das várias facetas

individuais, e assim, conhecendo mais os outros, compreendiam a si mesmos. Thiago reflete:

Observando o momento atual de cada um, separações, perdas familiares, questões íntimas, (...) resolvemos falar desses assuntos, um olhar nosso de amadurecimento, olhando pra velhice. Isso acaba virando tema, pois não dá pra dissociar - pela maneira que a gente entende - o que a gente está vivendo, do assunto que a gente vai tratar. Ele tem que ser pertinente, tem que instigar (AMARAL, 2013).

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Este seria um ponto comum nos trabalhos que partem de histórias íntimas, da

autobiografia de um sujeito real. Olhar para as próprias questões humanas e trabalhá-las de

forma artística e investigativa. Por mais que nos três primeiros espetáculos da Companhia,

aquilo que é material pessoal do ator não se estabeleça cenicamente de maneira clara,

considerando as colocações explicitais já no primeiro capítulo deste trabalho, penso que toda

experiência artística realizada por um indivíduo, possui uma carga de autobiografia intrínseca

pelo fato de o sujeito realizar a ação, munido de bagagens pessoais.

Outro motivo que estimulou a investigação e exploração de si mesmo dentro do

trabalho do grupo foi a utilização dos nomes reais de cada ator em cena desde o primeiro

trabalho da Companhia. Amaral (2013) observa que essa exploração “já é uma característica

da nossa linguagem. [Para o ator] se questionar: ‘isso é personagem, ou uma fatia sua?’. Para

a gente se questionar enquanto criador”, e conclui: “acaba sendo uma fatia minha ampliada”.

Nesse sentido, penso que a utilização do nome próprio funciona como identificação imediata

de determinado sujeito dentro de um contexto social.

O nome próprio é o atestado visível da identidade do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais, o fundamento da unidade de suas sucessivas manifestações e da possibilidade socialmente reconhecida de totalizar essas manifestações em registros oficiais (BOURDIEU, 1996, p. 187).

Apesar de este procedimento ter sido comum na cena dos grupos brasileiros nos

anos 70 e 80, aqui isso adquire uma nova função, estreitando o vínculo entre o acontecimento

e sua repercussão afetiva. Antes havia uma maior identificação com o campo político.

A aproximação com a realidade causada a partir da ação do ator ouvir seu próprio

nome em cena, além do estranhamento gerado na audiência que se vê cara a cara com uma

verdade, criaria uma aproximação àquilo que é real dentro do plano ficcional do teatro. Isso

contribuiria para o desenvolvimento do pensamento do ator sobre o papel que ele assume

dentro de cada espetáculo. Quanto daquilo que é meu existe dentro desse ou daquele

personagem? Além de expor o artista em cena com ainda menos máscaras, sem a proteção de

um nome ficcional, o público por sua vez, também é colocado na posição de presença de algo

verdadeiro.

Partindo dessa trajetória feita de perguntas sobre aquilo que é latente em nossa

sociedade – como o conceito de verdade, a Cia Hiato optou pela crescente radicalização do

uso das histórias pessoais. Considerando que esta experiência embasou o pensamento do

grupo que buscava uma forma de compartilhar diferentes percepções de mundo, incertezas e

comportamentos diversos, a aproximação mais estreita com o universo de pesquisa acerca do

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real e, sobretudo, a questão de como falar sobre histórias pessoais no teatro, aconteceu de

forma quase natural. Até então, as histórias pessoais se espalhavam pelos atores, e a história

que era de um, podia aparecer na trama dita por outro. Contudo, no último trabalho da

Companhia, Ficção, com estreia em 2012, a proposta era buscar esse ponto de risco, de

radicalidade. Assim, as histórias pessoais vieram na boca de seus próprios donos, mesmo que

estivessem permeadas por memórias inventadas, ficções e mentiras.

Desse modo, restrinjo minha investigação ao Ficção por considerá-lo um trabalho

de grande potência quando se pensa acerca de produções teatrais brasileiras contemporâneas

que investem suas pesquisas acerca do real, do íntimo e da autobiografia dentro da arte.

2.3 O meu prólogo-confissão essencial sobre Ficção

Talvez o momento em que eu tenha sido mais confrontada com a verdade - com a

vida, dentro de uma sala de teatro, foi quando assisti um dos monólogos do espetáculo Ficção

da Cia Hiato.

Enquanto a atriz Luciana Paes desenvolvia o seu monólogo no Ficção, eu

suplicava internamente para que ela interrompesse a cena. Senti então, uma sensação de

encolhimento do meu ser. Vendo algo muito maior que eu na minha frente, o medo de ser

absorvida por uma força completamente estranha e potente que compartilhava coisas, fatos e

momentos comigo, era tão intensa que a única resposta física que tive para aquele

acontecimento foi deixar que as lágrimas viessem a tona. A emoção que vivi, me fez chorar

como um bebê. Experimentei um choro que até então nunca havia surgido em mim em uma

sala de teatro. E dentro dessa confusão de sensações eu me percebi pensando sobre a razão de

estar chorando compulsivamente a ponto de querer sair correndo da sala de teatro. Para mim,

a história, o texto, não era emocionante. A questão não era essa.

E em busca de uma resposta plausível para aquilo que eu estava sentindo, peguei-

me tentando racionalizar sobre aquele acontecimento, e a resposta que eu obtive para a minha

emoção incontrolável naquele momento foi: a entrega que Luciana oferecia para aquilo que

ela estava fazendo; uma entrega de uma grandeza tão sincera e intensa, que eu, espectadora de

algo ainda desconhecido por mim, não pude ficar impassível ante as ações da atriz. Reitero

que nunca havia me sentido assim no teatro. Senti-me totalmente conectada àquele ser,

presenciando algo que realmente acontecia com ela – atriz, e ao mesmo tempo comigo, sua

audiência. Eu estava na primeira fila, derramando aquele tipo de lágrima que não pede licença

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para sair, simplesmente escorre pelo rosto como se respondesse a um soco no estômago.

Penso que talvez seja isso – um soco –que eu senti assistindo Ficção.

Figura 02: A voracidade cênica de Luciana Paes em Ficção. Foto: Bob Sousa.

A sensação de proximidade com a atriz gerada em mim, remeteu-me à ideia de

encontro. O acontecimento teatral que alcança a conexão entre os dois vértices do teatro –

público e artista – aproximar-se-ia da possibilidade de realização de encontro reais dentro e

através da arte. Tenho dúvidas sobre qual seria a função, ou o sentido da arte se não gerasse

algo de concreto naqueles que a praticam, desfrutam, participam ou contemplam? Entretanto,

como falar de algo “concreto”, se quase sempre se anda em caminhos sinuosos de resultados

extremamente pessoais e por isso, pouco palpáveis na arte? O resultado mais genuíno e

simples que um acontecimento artístico propõe, seria a noção de encontro entre pessoas e

ideias.

No meu caso, o encontro entre a atriz e eu, entre a arte e meu pensamento sobre

ela. O acontecimento espetacular funcionou nesse momento como meio de produção de

encontro entre seres até então desconhecidos, a partir de um gesto ficcional, mas que se insere

na realidade e faz conexão com aquilo que é real.

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2.3.1 A realidade do Ficção

Ficção é um espetáculo composto inicialmente por seis14 monólogos

independentes entre si, mas que dialogam esteticamente e se conectam a partir do pensamento

acerca do ser humano e questões existenciais. A dramaturgia do espetáculo percorre caminhos

de fatos das vidas dos atores e transita entre os conceitos de verdade e mentira daquilo que é

dito em cena. O espetáculo é considerado uma pesquisa pelos membros do grupo porque se

sustenta no compartilhamento de incertezas sobre o sujeito. Esses fatos assinalam o

espetáculo como um exercício de entrega e investigação, tanto por parte dos atores quanto

pela audiência, pois ambos fariam parte da vivência cênica, munidos de poucas proteções

“teatrais”.

Os atores Aline Filócomo, Fernanda Stefanski, Luciana Paes, Maria Amélia

Farrah e Thiago Amaral, desenvolvem seus monólogos tencionando os limites entre o

ficcional e o real na cena. Durante todo o texto e através de ações, cada artista procura uma

forma de contar à audiência algo de cunho pessoal e realizar uma experiência que mais se

aproxime com o real. A dramaturgia do espetáculo propõe uma conversa com o público,

como se fosse quase um momento de confissão para aqueles com quem os atores se revelam.

Durante cerca de sessenta minutos cada ator expõe, revela, discute, vivencia e

compartilha histórias verdadeiras, emprestadas, vontades e mentiras para uma audiência que

se coloca no lugar de ouvinte que recebe as confissões. A dramaturgia se apropria de um tom

confessional, percorrendo uma linha tênue de investigação acerca da cena e suas

possibilidades de confronto com a audiência a partir do jogo entre real e ficcional, bem como

uma reflexão sobre a impossibilidade de fuga da ficção da vida real.

A partir de relatos biográficos de cada um dos atores, criam-se instalações dramatúrgicas e cênicas acerca de questionamentos sobre a necessidade de ficção e nossa impossibilidade de abandoná-la, dissecando em cena um processo cênico e expondo os limites (ou intersecções) entre vida e criação artística. Centrados nas relações dos atores com seus familiares (com a presença de pais e irmãos reais), são apresentados depoimentos ficcionais em que as ideia de “intimidade” e “documento” são indissociáveis (CIA HIATO, 2013).

Nesse sentido, a plateia pode perceber o espetáculo como uma cena do real, pois

algumas informações são dadas de forma a validar aquilo que está presente no espetáculo, 14 Pouco tempo depois da estreia de Ficção, a atriz da Companhia Paula Picarelli se retirou do espetáculo. Infelizmente não tive a oportunidade de conversar com Paula para entender melhor esse processo. Contudo, conversando com outros membros do grupo, compreendi que a rememoração cênica dos fatos da vida da atriz não funcionou como mecanismo atenuante das dores pessoais tratadas no espetáculo. Na realidade, tornou-se o impulso para a renúncia da vivência de apresentação da peça.

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mas que é real da vida do ator. Contudo, considero também que mesmo com os elementos que

são verdadeiros em cena, sempre pode haver espectadores que não tomam esses elementos

como conexão imediata com o real. É importante essa observação para não generalizar o

pensamento do espectador acerca de uma cena do real. Às vezes a identificação pode

simplesmente não ocorrer.

Tomo como exemplos de elementos reais postos em cena os nomes próprios dos

atores; fotografias verdadeiras dos momentos narrados por eles; a atuação desprovida de

artifícios cênicos; e até mesmo familiares postos em cena. Essas informações verídicas

produzem margem para que ocorra o envolvimento e a identificação por parte do espectador

com um material que remete à realidade. Assim, através desses elementos que trazem a vida

real para a cena, o espectador poderia perceber a duplicidade entre as histórias inventadas e

autobiográficas. Responder a essa dualidade, de fato, não cobra extrema importância, pois o

exercício de investigação sobre a veracidade das histórias começa e termina como forma de

colocar a audiência no estado de vivência e pensamento sobre a cena. Mais do que responder

a algo, esse teatro se propõe a indagar aqueles que compartilham a experiência cênica.

O ponto disparador das pesquisas para a criação do Ficção foi a investigação

sobre o “eu e meu duplo”. Os atores passaram a investigar as questões sobre aquilo que

podiam considerar, como mencionado pelo grupo, ser um “duplo retrato” de cada um.Nesse

sentido, o processo de pesquisa cênica do espetáculo consistiu em investigações individuais

acerca de questões pessoais dos atores, enfatizando a reflexão não apenas em um relato

factual da vida íntima, mas as possibilidades de existência de um “outro eu”, um retrato feito

duas vezes, a partir de duas perspectivas: a realidade e ficção. Os atores foram estimulados a

desenvolverem o exercício de imaginar as diversas possibilidades de outros contextos, outras

histórias, diferentes alternativas ficcionais e hipotéticas para as suas próprias vidas.

2.3.2 A experiência Ficção

Antes de chegar ao meu lugar na sala do espetáculo, passei por uma penteadeira,

iluminada por luzes que circundavam o espelho, como se fosse um pequeno camarim. Em

cima daquele móvel ficavam vários objetos: algumas tiaras de orelhinhas de coelho, velas,

diversas fotos pessoais dos atores, bichinhos de pelúcia. Como um grande relicário, os objetos

expostos ali eram os elementos sagrados dos atores, objetos que de alguma forma dialogavam

com os seus monólogos. Ao lado desse móvel, colado na parede, havia um caminho de

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fotografias dos atores, dos familiares, momentos de vidas reais daqueles que de alguma forma

fizeram parte do projeto.

Depois desse caminho de retratos pessoais, estavam os atores que apresentariam

seus monólogos naquele dia, interagindo com aqueles que entravam no espaço. A trilha

sonora instrumental composta para o espetáculo, que servia de base para todos os monólogos,

tocava ao fundo, como se quisesse emoldurar um espetáculo que não possuía início, pois não

se via atores em cena, enxergava-se gente vivendo, como toda a audiência. Até que a atriz

Maria Amélia Farrah entrou um pouco mais para o centro do espaço, e iniciou uma conversa

com uma plateia de estranhos.

2.3.3 Maria Amélia e sua Hudud

Em seu monólogo, a atriz Maria Amélia Farah discute a sua relação com seus

pais, através de uma perspectiva que partia das expectativas que eles tinham em relação à sua

profissão: dançarina de dança do ventre. Em seu discurso, a atriz diz que em determinados

momentos da vida, o sujeito se depara com sua própria hudud, uma palavra árabe que

significa limite, fronteira. E no caso de Maria Amélia, esse limite se estabelece em dois

níveis: o da história que a atriz conta, e a fronteira tênue que se mantém durante todo o

espetáculo entre aquilo que é real, e o que não é.

A proposta de construção do monólogo da atriz, assim como o dos outros atores,

busca uma dramaturgia e atuação que se aproximem a depoimentos reais postos em cena.

“Estar em cena sem coisas cênicas, somente contando uma história” (FARAH, 2013). Dessa

forma, Maria Amélia inicia o espetáculo (ou a confissão? O jogo? A conversa? A

apresentação?) falando da relação com o seu próprio filho, Pedro. O bebê, com menos de dois

anos, participou durante algumas temporadas do monólogo da mãe. Quando assisti, fazia

pouco tempo que a atriz tinha decidido tirar o filho da cena, dado que ela começou a perceber

um eco daquilo que a sua própria mãe fazia com ela quando era pequena: enquadrar-lhe

dentro de expectativas que eram somente da própria mãe. Colocá-lo em cena com essa idade,

sem o poder de escolha, seria ético da sua parte como mãe? Essa reflexão foi o que virou

dramaturgia em função da saída de Pedro.

Contudo, conversando com a atriz pessoalmente após o espetáculo, Maria Amélia

confessa que a razão maior do filho não estar mais em seu monólogo era por motivos

logísticos. O espetáculo exigia um esforço realmente grande da atriz, em função das viagens e

horas de ensaio, e Pedro necessitava de atenção e cuidado, que requeria a presença do marido

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da atriz ou de uma babá em todos os lugares que fossem. Por essa razão, a atriz achou melhor

parar de colocá-lo em cena.

Assim, o início do espetáculo, que antes consistia na interação da atriz com o filho

às vistas dos espectadores, foi substituído por uma fala sobre ele, expondo as razões da

decisão de não ter mais a presença do Pedro no espetáculo, e colocando em xeque suas

expectativas em relação ao seu duplo - o seu filho. No início do monólogo, Maria Amélia diz

sobre o filho: “Ele é quase uma cópia de mim. Mas eu acho que vou fazer com que ele seja

melhor do que eu. Eu acredito que ele é uma versão muito melhor de mim”.

Figura 03: Maria Amélia Farah dançando em Ficção. Foto: Bob Sousa.

Na pesquisa sobre as possibilidades dos seus duplos pessoais, a atriz explica que

foi a partir do seu vasculhar íntimo que chegou até à sua mãe. A mãe seria um duplo dela

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mesma, bem como o seu próprio filho seria um outro desdobramento do seu ser. Os

questionamentos sobre sua vida que surgiram a partir da investigação do eu, foram essenciais

para a criação das cenas. Conta que o que

[...] instigou muito no processo foi a questão das ‘outras vidas’. Como seria a minha vida se eu tivesse sido uma bailarina de dança do ventre realmente? Em que momentos que as nossas escolhas se bifurcam? Como aquilo que eu imaginei ser também é um duplo de mim? Ou aquilo que eu visualizo ser no futuro em algum lugar também é um duplo de mim? (FARAH, 2013)

Desse modo, o monólogo da atriz se articula de forma poética para uma tomada de

consciência sobre as reproduções, as duplicações e repetições de expectativas que os pais

possuem em relação aos seus filhos. Não sabemos se esse pensamento é realmente da atriz,

mas com o decorrer da peça, a relação entre essa maneira de ver o filho e a repetição de

pensamentos e atitudes dos próprios pais dela, ficam mais claros ao espectador.

Maria Amélia, diz que matou sua mãe diversas vezes, e durante todo o monólogo

tenta arranjar explicações diversas para esse pensamento. De história em história ela conta

como isso se deu: um véu não dedicado ao seu pai durante uma das suas primeiras danças; a

recusa de dançar de última hora num evento; quando virou hippie; quando decidiu perseguir

um sonho; e quando parou definitivamente de dançar. Desse modo, quando o monólogo vai se

findando, a vida da mãe também vai chegando ao fim.

A dramaturgia é construída de modo a evidenciar a noção de fracasso e fazer

reinventar uma possível biografia pessoal. A atriz transita entre primeira e terceira pessoa

durante todo o texto. Um exemplo disso é em falas como: “a minha mãe deixou a Maria

Amélia mudar pra São Paulo (...)”, e “ela (a Maria Amélia) percebeu que: eu (a Maria

Amélia) não podia mais dar o truque. Ela percebeu que: eu não podia mais estar em cena

sabendo que se atua terrivelmente mal com meus quatro passos. Que eu não podia mais fingir

que eu sabia onde colocar as mãos”. Jogando entre eu e ela, a atriz se coloca fora, criando o

ponto da dúvida e estabelecendo uma distância, um afastamento entre a história e a atriz.

Contudo, ao mesmo tempo esse distanciamento proposital gerado pelo texto

aproxima aquilo que poderia ser de outra pessoa, ou estar na boca de outro, para a própria

realidade de Maria Amélia. Há um diálogo paralelo entre o texto e a atriz, feito de ações e

intenções, que faz emergir momentos mais próximos do real. Quando a atriz fala do seu

desconforto em não saber onde colocar as mãos, ela olha para as próprias mãos de modo que

fica claro (ou pelo menos dá a sensação de) que esse incômodo pode estar ocorrendo também

no agora.

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Nesse sentido, assistindo ao monólogo da atriz, o que mais me chamou atenção é

a forma como Maria Amélia inicia sua cena de maneira aberta às intervenções do público que

está presente no acontecimento. Pude assistir duas vezes ao espetáculo, e foram perceptíveis

as modificações tanto textuais, quanto de ação de cena que partem da atriz. Além de interagir

de forma diferente com o público, a atriz colocou o texto inicial de maneira diversa nos dois

dias. Não obstante, durante todo o monólogo, percebi o exercício de resposta ao agora de

forma aguçada na interpretação da atriz, num estado permanente de alerta. Isso reforça de

forma significativa o caráter de proposta de jogo que Ficção possui. Tratarei disso mais a

diante.

2.3.4 Pé de coelho

Na busca sobre as questões que seriam pertinentes para entrar no espetáculo, cada

ator trilhou um caminho muito próprio e individual. Para Thiago Amaral, a investigação

tornou-se mais latente a partir de uma viagem para a Índia, onde o ator iniciou um processo de

questionamento e revisão de várias questões da sua própria vida. Após a viagem, a pesquisa

com o grupo começou a acontecer de fato, e ali, durante esse período de pesquisa e reflexão,

Thiago encontrou a questão que era mais latente pra ele no momento: a não aceitação, o

bloqueio, a cisão que existia entre ele e o pai. Contudo, durante a criação dessa pesquisa

cênica, Thiago se viu vitimado dentro da dramaturgia, e obter essa reação não era o objetivo

do ator com a cena.

Então, a partir disso, Thiago assinala o que considero o poder transformador que a

arte possui tanto para quem vê como para quem faz. O ator indaga “como nesse processo

artístico eu posso tentar modificar, alterar a minha realidade e trazer isso como conclusão

desse momento todo?”. Nesse momento da criação, o ator propõe chamar o próprio pai para

participar ativamente do processo de pesquisa e descoberta do espetáculo e, por conseguinte,

descoberta de si mesmo. E o ator é enfático sobre a possibilidade de ter uma resposta negativa

do pai: “mesmo se ele falasse não, isso entraria na dramaturgia. Eu falaria: eu fui até as

últimas consequências, eu chamei meu pai e ele falou não” (AMARAL, 2013). Dilson do

Amaral, o pai de Thiago disse sim. E a partir dessa resposta positiva, começou o processo de

inserção das ideias que o novo integrante propunha.

Thiago inicia seu monólogo com um áudio com informações e instruções sobre a

reprodução de coelhos. Durante cerca de sessenta minutos o ator articula seu monólogo de

modo a relacionar a sua própria vida (e a vida humana) com a vida dos coelhos. Enquanto

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escutamos o áudio de instruções, o ator e o pai estão dentro do camarim, que se mantém

aberto durante toda a cena. Thiago se despe, coloca uma roupa preta e Dilson o veste com um

casaco de pelos e uma tiara com orelhas de coelho. Nesse momento ainda não temos a

informação de que aquele senhor é o pai verdadeiro de Thiago. Quando isso é explícito na

dramaturgia do espetáculo, a presença do pai verdadeiro que contracena com o filho ator,

produz um fio de tensão extremamente latente entre aquilo que é real e o que não é. Quando

assisti, pensei ser inegável a presença da realidade quando levei à consciência a presença do

pai em cena. Esse fator tornou as histórias que Thiago contava extremamente críveis.

Quando o áudio acaba, o ator entra no espaço e começa a ler alguns pontos

explicativos sobre a vida dos coelhos selvagens. O texto é construído de modo a fazer

conexão com vários pontos da vida humana. O coelho serviria como analogia a uma

dramaturgia que pretende aproximar o animal – nesse caso o coelho – do homem, e assim,

propor diversos questionamentos acerca da relação entre pai e filho. Através das metáforas de

um “vocabulário coelhístico”, essa analogia pode ser ampliada de modo a conseguir falar de

um sujeito social.

No espetáculo, Thiago se coloca como “Coelho 2” e o seu pai como “Coelho 1”.

O ator explica que para o pai estar ali, foi necessário o estabelecimento de algumas regras: a

peça não teria nenhum ato obsceno; os participantes usariam um “vocabulário coelhístico”

para pular os assuntos que não gostariam de abordar; e a peça não seria emotiva. Desse modo,

o pai do ator concorda em estar em cena e a dividir e compartilhar a intimidade familiar dos

dois coelhos.

O assunto abordado é a dificuldade de relação entre pai e filho, sobre as

expectativas e desejos que Dilson tinha em relação a Thiago, e vice-versa. Os dois romperam

relações durante seis anos em razão da separação de Dilson com a mãe do ator, pela “natureza

selvagem” de Thiago, e pelo fato do ator “ser coelho e não procriar”. O pai não aceitava, e

eles só voltaram a manter uma relação quando o ator propôs o projeto Ficção para ele.

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Figura 04: A intimidade de Dilson do Amaral e Thiago Amaral em cena. Foto: Ligia Jardim.

Através da iniciativa de Thiago, reflito sobre aquilo que creio como artista: essa

verticalidade, o “salto no vazio”, o assumir riscos, as quedas, os tropeços, a tentativa como

objetivo maior do que o próprio resultado. Sendo assim, creio que foi a isso que Thiago se

propôs ao arriscar a sua própria relação – até então quase inexistente - com o seu pai, a favor

de um projeto artístico. Esse convite de Thiago ao seu pai extrapolava a mera realização

artística. Consistiu-se em um projeto de vida, de reconstrução de relação, partindo da

construção de um espetáculo. Isso sempre e quando aceitemos como verdadeira a narrativa do

ator Thiago Amaral sobre seu pai.

Observar o filho vestido de coelho; vestir-se igual ao filho; expor momentos

delicados da vida pessoal dele mesmo; expor-se em cena; reconciliar-se com o filho distante;

assumir um pensamento que pode ser visto como preconceituoso e discriminatório; enfim,

todos esses fatores fazem surgir uma cena que ultrapassa o limite daquilo que é teatral. Faz

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parte da vida, e atravessa os sujeitos envolvidos de maneira contundente. E acima disso,

carece de coragem por ambos os lados envolvidos. Impossível não se sentir confrontado com

uma cena que propõe um jogo que não existe só na ficção, mas que anda paralelamente

também no campo afetivo e íntimo real dos seres.

Ao mesmo tempo, conhecendo o contexto e a trajetória dessa relação é inevitável

não pensar a cena como processo curador. Afinal, se pode constatar que pai e filho estão mais

próximos – extremamente próximos e em frente a um público de desconhecidos.

2.4 Enganando o público: sobre a sensação de real e autobiografia

A fala coloquial, o tom confessional, a utilização dos nomes reais, tudo está a

serviço de chegar o mais próximo do real possível. Mas, além de todas as “intenções” reais

passarem por um processo exaustivo de criação, os textos são permeados por ficções. A

dramaturgia autobiográfica, que joga com os elementos de real e ficcional em cena, gera

diversas dúvidas em sua audiência, que se mantém num constante limite entre aquilo que se

sabe e o que não se sabe. O primeiro estranhamento seria a indagação do que é ou não real?

Conversando com Maria Amélia (2013), a atriz comenta sobre o quanto daquilo tudo que está

em cena é ficcional. [Pude] colocar muitas coisas ficcionais, pois nessa maneira de contar é muito mais fácil das pessoas acreditarem. Mas isso também não está no nosso poder, pois coisas que são reais elas [as pessoas] duvidam, e coisas que são ficcionais elas acreditam.

A colocação da atriz me faz pensar que no jogo em que o poder do saber e do não

saber é tomado diretamente pelos atores, que criam uma rede de informações verdadeiras e

falsas a fim de construir o jogo da cena. Ao mesmo tempo, se produz uma tensão que é

sempre limítrofe entre a pura ficção e a possibilidade do real. Assim, temos uma dinâmica da

incerteza, pois não se pode saber o que a audiência pensa sobre aquilo que está sendo exposto.

Podemos construir hipóteses e até mesmo extrapolar, mas nunca se terá certeza.

Podemos observar as operações dessa polaridade quando a atriz Maria Amélia

mantém ao mesmo tempo uma conversa com o público, falando sobre questões que

aparentemente se aproximam muito da verdade, e joga indícios de ficção dentro dessa

conversa quase real. Isso funciona como instrumento para que a atriz nos diga: “não esqueça

que estamos no teatro”. Outro exemplo disso se dá quando a atriz, falando sobre a relação que

o ator tem com uma estreia de espetáculo, nos informa que: “parece que toda essa estrutura

social que é o teatro, só existe por causa de uma estreia. Que depois que uma peça sai de

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cartaz, cada um vai pra sua vida, mas parece que a sua vida não faz mais tanto sentido, sem

aquela outra vida, a da peça”. É difícil saber exatamente quais são suas intenções ao dizer esse

texto; isso produz confusão e a audiência está impedida de discernir quanto à veracidade dos

fatos. Em outro momento, Maria Amélia conta uma história sobre quando foi para a cidade do

Cairo passear com um homem árabe, por quem havia uma reciprocidade sentimental latente.

Durante mais ou menos cinco minutos a atriz relata em detalhes essa paixão vivida de forma

intensa. Entretanto, no fim da história, a atriz desconstrói sua narrativa dizendo que: “mas isso

não aconteceu, essa é uma outra vida que eu ficava imaginando lá no hotel para mim”. Nesse

momento, o silêncio quase total na plateia me chama atenção. Antes se ouvia burburinho,

risadas e remexer de cadeiras. Nos segundos posteriores à revelação da atriz, a quietude

refletiu a perplexidade da audiência diante do escancarar da realidade. A construção

dramatúrgica deixa claro que aquilo que se encontrava dentro de uma carcaça com aparência

de realidade, era somente a ficção. Num contexto em que verdade e mentira se confundem, o

ato de quebra da confissão, estabelece um foco somente nela, na ficção. É nesse momento de

confrontação que questionei o que mais de tudo aquilo é ficção?

Poderíamos tomar a dramaturgia como simplesmente verdade ou mentira, mas a

forma como o pensamento é colocado em cena é o instrumento para que se estabeleça o jogo

de reflexão, onde a crença ou a dúvida sobre aquilo que acontece se faça presente. E é a partir

da interpretação da atriz, isto é, através dos modos e detalhes desta interpretação que tal jogo

seja efetivamente posto. Isso implica dizer que para além do fato de que a dramaturgia relate

fatos reais, o contato com a realidade é possível pelas escolhas de uma interpretação que

busca uma qualidade de intimidade e confissão que permite que o público perceba o efeito do

real.

Minha experiência como espectadora foi muito contundente, por isso, foi somente

depois de assistir ao espetáculo, analisando-o, que voltei à consciência de que sim, eu estava

no teatro, e durante algum tempo tive a sensação de ter sido friamente manipulada – pela atriz

e pela minha própria consciência. A ideia de ter sido enganada, mais do que me deixar

incomodada ou produzir uma impressão ruim, me deixou surpreendida por ter me deixado

envolver a ponto de crer realmente em algo dentro de um espetáculo.

2.4.1 A autoficção

Quando a pesquisa dramatúrgica parte de uma criação ficcional a fim de produzir

uma aproximação com o real, surge o que se denomina autoficção. Muitos espetáculos

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autobiográficos utilizam em sua construção dramatúrgica a autoficção para suscitar a dúvida e

diminuir as distâncias entre verdade e mentira.

Essa perturbação excitante da incerteza, a possibilidade de construir cenicamente uma dúvida (mais que uma afirmativa) sobre o real, tem estimulado uma série de criações artísticas contemporâneas que colocam suas criações na fronteira entre realidade e ficção, e nesse contexto, a chamada autoficção desponta como estratégia perspicaz para a confirmação dessa zona de confronto (DA SILVA, 2012, p.18).

A autoficção não seria constituída pelo relato do real, mas sim, faz referência a

uma construção textual ficcional dita pelo ator de forma autobiográfica. Esse discurso

normalmente vem atrelado a uma condição de atuação que busca caminhar junto com a

realidade.

Aquele que narra passa a ser valorizado como lugar de ancoragem contra a vertigem do tudo ficcional, sem que seu relato precise respeitar o pacto de uma referencialidade biográfica. Como não se trata do retorno à ideia de transparência entre o narrado e a realidade, abre-se espaço, então, para a autoficção, que mantém o elo com o real em função de seu atrelamento à voz que narra, de sua autorreferencialidade, em contraste, por exemplo, com o anonimato das redes comunicacionais ou com a virtualidade da imagem (DE FIGUEIREDO, 2009, p.138).

Tomemos aqui o universo cinematográfico como exemplo. Dentro do cinema,

esse recurso é explorado pelo diretor brasileiro Eduardo Coutinho em suas obras, onde ocorre

um “deslizamento do documentário para o campo da ficção. (...) diluindo os limites entre

depoimento e interpretação” (DE FIGUEIREDO, 2009, p.139). A exemplo de “Jogo de

Cena” (2007), onde atrizes respondem a um entrevistador que não se vê, contando “histórias

pessoais”, de maneira mais própria, realista e convincente possível. “Não é a verdade ou a

mentira que interessam, o imaginário é o que me interessa (...) se sabe contar, me interessa.

Vira verdade. Eu cito Deleuze, quero ‘pegar o outro em flagrante delito de fabulação’”

(COUTINHO apud DE FIGUEIREDO, 2009, p.139).

Pensando nisso, pergunto-me sobre a função de tentar criar uma ficção que se

aproxime o máximo possível do real. Identifico isso de forma contundente no espetáculo

Ficção. Seria somente a relação entre ator e espectador suscitada a partir do jogo entre

verdade e mentira e aproximação com real que valida essa pesquisa artística?

Volto a pensar sobre o porquê nós, espectadores participantes de acontecimentos

teatrais buscamos ser confrontados com uma pseudo-realidade, uma autoficção dentro de

salas de espetáculos? Essa interpretação quase real não teria ainda mais máscaras do que uma

atuação que parte de personagens representativos?

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A sensação que comentei anteriormente de ter sido “enganada”, é gerada a partir

da possibilidade de manipulação do espectador que ficções aparentemente reais possuem.

Pensando a partir de um contexto ético, creio ser um pouco contraditório o jogo de exposição

da “verdade” que é mentira, dentro de um teatro que propõe a radicalização de atuação e

expectação. Vejo essa manipulação da audiência, como busca, por parte daqueles que o

fazem, por um efeito estético inovador, que pode ser associado à oferta do íntimo como

produto de consumo. Em uma cena que extrapola os limites teatrais, e que, teoricamente,

aposta e investe na relação de compartilhamento e vivência com o seu público, não haveria

uma perda potencial da arte, a partir do momento da “venda” do íntimo como narrativa

ficcional?

2.4.2 É real... mas nem tanto

Enquanto eu assistia ao espetáculo, no meio de tanta exposição do real, tantas

questões escancaradas sobre o ser humano, peguei- me remexendo na cadeira, querendo poder

ter um contato mais sincero e direto com os atores. Perguntei-me se não haveria uma hora de

abertura para um diálogo “de verdade”, sem roteiro ou dramaturgia pré-estabelecidos. Apesar

de o real ser perceptível na cena, o fato da ideia da dramaturgia já completamente fechada me

incomodava um pouco. Pude assistir mais de uma vez, e percebi que o monólogo de Maria

Amélia possui aberturas pra modificações do agora. Já o de Thiago se mantém fiel ao texto.

“Pela filosofia do projeto não tem muito essa abertura”, comenta Maria Amélia. Thiago

(2013) explica que Cada um tem uma maneira de operar. O frescor é uma característica de todos. Tem que ter esse ineditismo. “Estou fazendo isso e é a primeira vez”. Tem uma dificuldade de falar, de começar, de não saber como me portar ali, alguns erros de fala. Fazemos algumas trocas para dar essa impressão.

No início do monólogo de Thiago, o ator explica aos espectadores que sempre que

eles se sentirem emocionados com algo podem levantar a mão e falar a palavra “merda”, e

que nesse momento, como tentativa de fuga da emoção, seria contada uma “história de

merda”. Quando assisti, pensei que em qualquer momento que me sentisse assim eu pudesse

falar e iríamos realizar a proposta de contar uma “história de merda”. Contudo, percebi que as

inserções dessas histórias eram bem marcadas nos momentos que Thiago se emocionava.

Após o espetáculo, Thiago me explicou que as colocações dessas histórias são claramente

marcadas. A abertura está somente nos momentos que realmente já existe a lacuna na

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dramaturgia. Esse recurso é usado somente para dar ainda mais a sensação de que “isso é

realmente ao vivo e vivo” como explica o ator.

Nesse caso, o jogo proposto ao espectador é o da produção da sensação de

verdade e ineditismo. De fato, o monólogo de Thiago não se mantém totalmente aberto para

intervenções da audiência a qualquer momento. O discurso do ator sobre a “história de

merda” funciona como uma noção a ser comprada pelo espectador que aquilo que está

acontecendo no agora é passível de modificação a partir de propostas da audiência. Contudo,

entendo ser a proposta do espetáculo que muito pouco dessa cena esteja realmente aberta para

essas intervenções. Thiago comenta que já houve situações em que o espectador interviu na

cena em momentos não emocionais. Nesse caso, essas intervenções assumem a característica

de irromper o real dentro do plano ficcional da narrativa. A partir disso, cabe ao artista lidar

com a proposta do seu partner – o público, além de (co)responder à ideia do espetáculo.

A partir desse jogo de cena proposto à audiência, dentro dos monólogos íntimos, a

conversa entre ator e público se estabelece de maneira muito confessional. Thiago Amaral

comenta que a resposta direta da audiência obtida pelo ator, se faz quando o público

movimenta a cabeça em sinal de consentimento, de compreensão sobre aquilo que o artista

está expondo em cena, como se concordasse, compartilhasse ou simplesmente entendesse a

sensação do ator. Isso nos esclarece as noções de compartilhamento apontadas acima. Como

abordei no primeiro capítulo dessa pesquisa, a cena, explorada de maneira íntima e

confidente, propõe ao seu público uma expectação não somente contemplativa, mas sim uma

posição ativa no acontecimento. Contudo, esse “estar ativo” é limítrofe. Ainda que a cena se

proponha a ultrapassar as margens da narrativa ficcional, o jogo palco-plateia é mantido no

Ficção. Isso reforça a noção de espetáculo, por mais “cotidiana” que seja a proposta cênica da

peça.

2.5 Por que é importante falar de si para desconhecidos? A fuga do ego

Uma das críticas mais fáceis que essa proposta cênica pode gerar é a questão do

“egocentrismo”, da “autopiedade” posta em cena. Por que seria importante expor as minhas

próprias questões pessoais para uma plateia de desconhecidos? Até que ponto isso é válido?

Segundo o grupo, essa questão foi colocada em discussão inúmeras vezes, pois esse não era o

objetivo da pesquisa dramatúrgica e de atuação. Durante todo o processo de construção havia

uma preocupação muito grande em não cair somente no próprio umbigo. “[através deste]

teatro mostrar um ponto de vista. Mostrar desde que lugar você está falando. E emitir de

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alguma forma uma opinião, não cair no total extremo de objetivismo, nem no total extremo de

subjetividade” (SILVA, 2013).

Pensando nisso, Maria Amélia (2013) frisa que quando é abordada

uma questão muito profunda da gente mesmo, as pessoas acabam se identificando. Porque eu não estou lá dando um currículo factual da minha vida. (...) Por mais que tenham coisas ficcionais, como é muito verdadeiro, nesse sentido de exposição, o que a gente tem tido como retorno - é lógico que não é unânime, há pessoas que possam achar que aquilo é uma terapia-, mas o que tem chegado à gente é que isso chega no espectador, e que ele também começa a revisitar as suas próprias memórias.

Thiago diz que os atores assumem papeis de contadores de histórias no

espetáculo. Desse modo, Maria Amélia comenta que muitas pessoas saem do espetáculo

indagando a si mesmas: “como seria o meu solo?”. Isso caracteriza a proximidade que essa

abordagem cênica seria capaz de gerar com a sua audiência. Você não só está se deleitando esteticamente com aquilo, como também você se volta para a sua própria realidade, pras suas memórias. Que história minha eu colocaria em cena? Então não é só você vendo uma pessoa ali contando a sua história. Isso acaba colando um espelho (no espectador). E aí as pessoas saem fazendo essa terapia individual. Elas mesmas (FARAH, 2013)

Talvez essa exposição do que é completamente humano, de fatos de vidas

terceiras, possa ser uma pincelada de algo “arquetípico, universal”, como diz Amaral.

2.6 Sobre aquilo que fica

É relevante o reconhecimento de que um projeto de exploração da autobiografia e

do íntimo, de investigação acerca da vida humana a partir das próprias histórias do ator que as

apresenta, possua significados e marcas reais nas vidas dos envolvidos. Tomo como exemplo,

a relação reconstruída de Thiago Amaral com Dilson do Amaral a partir do projeto Ficção.

Uma relação familiar rompida por seis anos se restabelece a partir de sua exposição a

desconhecidos dentro do teatro. Isso atravessa qualquer significado estético que a arte possui.

Parece que foi um renascimento. Eu sou outro ator a partir dessa peça. Ter segurança, autonomia de fazer um solo. Esse projeto deu muita força. Tudo está muito aparente, se você não está ali, se está frágil... É um lugar de muita exposição. Foi difícil fazer tudo isso. Mas mesmo antes de estrear foi uma peça que eu falei “já valeu!” (AMARAL, 2013).

A conexão entre aquilo que é valorosamente íntimo do sujeito, com a arte e sua

exposição, resulta em modificações, vínculos, descobertas e relações que ultrapassam a sala

preta. Nesse sentido, para Maria Amélia (2013) o projeto

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Foi um divisor de águas. Estar lá, não estando “a serviço” de uma peça como uma engrenagem, é: eu sou a peça. Viver aquela coisa de verdade, não duvidar. Eu tenho que acreditar mesmo que aquelas histórias são minhas. Em determinados momentos eu preciso que as pessoas acreditem que eu estou mal. São momentos em que eu não posso titubear em nada. Então parece que estar mal, pra mim, não é mais tão catastrófico quanto antigamente. “Tá tudo bem, daqui eu vou pra outro lugar”. Consegui me distanciar muito mais da minha história. Consegui ver de fora, criticamente.

Os processos de questionamento e investigação do artista, além de refletirem na

construção de todo o grupo, trazem luz às questões do humano. O conteúdo íntimo, colocada

em cena, cria um distanciamento entre aquilo que foi vivido e o que está sendo contado. Sem

desfazerem-se totalmente os momentos do prazer da imersão teatral, essa distância é tomada a

fim de clarear noções humanas e cênicas. Creio ser esse o maior mérito do Espetáculo Ficção:

através do jogo entre aparência e verdade, o desnudamento daquilo que é extremamente

íntimo e singular é trazido a um âmbito em que é capaz de atingir e suscitar reflexões

temáticas sociais e coletivas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciar o processo de escrita desse TCC, meu desejo em relação a essa

pesquisa era de aprofundar o meu próprio conhecimento acerca de um assunto que até então

não havia estudado de maneira aplicada dentro da graduação. Interessava-me, antes de tudo,

saber quais eram os caminhos e contornos para uma dramaturgia que nasce do eu - sujeito.

Desde as primeiras leituras acerca do tema, as noções de real e ficcional foram postas de

maneira intrínseca dentro do meu estudo. Empreender esta pesquisa representou para mim a

abertura de um canal acerca de uma cena contemporânea vinculado ao teatro do real.

É inevitável mencionar novamente que essa pesquisa reverbera na maneira como

vejo as artes da cena. Tomei como o maior desafio desse trabalho a construção de um olhar

crítico acerca de um trabalho que admiro muito, o Ficção. Pensar suas nuances desde um

ponto de vista academicamente crítico, abriu novas perspectivas de pesquisa sobre uma

análise profunda da cena. Contudo, ao mesmo tempo, creio que esse modo de ver faz com que

a visão livre de julgamentos para a vivência se torne mais difícil de ser acessada. Acredito no

olhar desprovido de juízos de valores, e mais próximo ao deleite da vivência cênica. Creio que

assim, pode-se estar mais próximo à proposta que este teatro propõe: abalar o conforto.

Desprovida de uma situação segura, perguntei-me: até onde poderia ir a

exploração do outro em um projeto pessoal? Os atores de Ficção falam invariavelmente sobre

relacionamentos; relações deles com outros, deles com eles mesmos, ou deles frente ao

mundo. Abordam suas questões pessoais, mas, ao mesmo tempo, é impossível escapar à

exposição de outras pessoas que dividem as suas vidas com eles. Suas narrativas estão

permeadas e apresentadas de forma difusa em histórias de terceiros - pessoas que fazem parte

das vidas dos atores e acabam tendo suas próprias histórias investigadas e expostas em cena.

Sobre isso, a atriz Maria Amélia Farah foi enfática ao me explicar que segundo

seu ponto de vista muitas vezes o que achamos que pode expor o outro, não é aquilo que faz

com que outro se sinta exposto. Além dessa exposição de pessoas que fazem parte do

universo verdadeiro das vidas dos atores (o lugar da vida, não do espetáculo), a exposição do

ator nesse teatro do real é evidente e vital para o acontecimento da apresentação.

Nesse sentido, realizar esse TCC me apontou um caminho de investigação acerca

da arte que acredito fazer sentido para mim como atriz, pesquisadora e espectadora. Interessa-

me agora debruçar-me ainda mais sobre esse assunto, relacionando-o desde um ponto de vista

de atuação e de direção. Instiga-me pensar as consequências palpáveis dessa exploração

cênica no âmbito da “vida real”. Penso na situação da atriz Paula Picarelli, em que rememorar

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e expor suas questões íntimas, reverberou de maneira forte e modificadora na vida pessoal da

atriz. Como conciliar e integrar a arte e a vida através de uma condição profundamente

construtiva?

Nesse sentido, vislumbro diversos pontos de abertura para novas investigações.

Permanecem algumas perguntas: como o ator se expõe e constrói essa narrativa íntima? Como

se dá a função de diretor em processos autorais? Qual é o espaço do diretor na criação dessas

vivências cênicas?

Não é prematuro pensar que, em pouco tempo, haverá pensamentos dentro dessa

pesquisa que já não mais irão condizer com o que entendo sobre autobiografia, ficção e

realidade. Considero essa tomada de consciência essencial para o processo de pesquisa

acadêmica. Mesmo durante os meses que passei escrevendo, por vezes bastavam-se horas

para eu mudar minha opinião acerca dos pensamentos aqui apresentados.

Essa impossibilidade de permanência de pensamento é o ponto chave para

voltarmos ao início dessa pesquisa, e de outras pesquisas. Ideias que nascem do desequilíbrio,

que se transformam em dúvidas, e se sustentam e desenvolvem no conhecimento sempre

limitado que a consciência pode gerar.

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