da tecnologia que existe em tudo que ingerimos … · em sua obra sobre o ato cozinhar como...
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DA TECNOLOGIA QUE EXISTE EM TUDO QUE INGERIMOS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO
PENSAMENTO SOBRE TECNOLOGIA EM BEE WILSON
ANGELA L. MIRANDA1
HALLYSSON J. M. NÓBREGA2
Resumo: Em seus escritos, sobretudo, na obra “Pense no garfo!”, Beatrice Dorothy
Wilson aborda explicitamente a relação entre culinária e tecnologia. O presente
trabalho, tem por objetivo descrever e analisar o conceito de tecnologia presente em seu
pensamento sobre o universo culinário. Segundo Wilson, a tecnologia pode ser
compreendida como os aparatos tecnológicos e também como o próprio saber inventivo
que viabilizou tais aparatos. Ela ressalta ainda que a tecnologia está condicionada ao seu
uso. Desta forma, a culinária, enquanto tecnologia, está estritamente ligada ao campo do
“fazer”. Desde esta perspectiva, percebe-se que o conceito utilizado pela autora alinha-
se, em grande medida, às visões tradicionais de tecnologia (BAZZO). E, ainda que
reconhecendo o esforço da autora em propor uma leitura sociológica e cultural sobre o
tema, os quais também serão tratados aqui, tem-se como resultado desta pesquisa que o
sentido de “tecnologia” por ela empregado, orbita na esfera instrumental e utilitarista de
tecnologia. A metodologia adotada para análise deste trabalho baseou-se no estudo
bibliográfico, considerando a eleição dos escritos da autora em questão, bem como os
escritos e comentadores desta temática (SAVARIN, CERTEAU, CASCUDO,
SANTOS, NASCIMENTO e outros).
Palavras-chave: Culinária; Tecnologia; Sociedade; Cultura; Bee Wilson.
INTRODUÇÃO
Beatrice Dorothy Wilson nasceu em 07 de março de 1974 em Oxford,
Inglaterra. Atua profissionalmente como jornalista e historiadora, no campo de estudos
culinários. Optou por abreviar seu nome, se apresentando em suas publicações como
Bee Wilson. Sua trajetória, antes de se tornar conhecida como escritora de culinária,
apresenta-a como pesquisadora visitante de história no St. John’s College, Cambridge.
1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, PHRÒNESIS – Grupo de estudos em
filosofia, ciência, tecnologia e sociedade, Brasil. E-mail: [email protected].
2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, PHRÒNESIS – Grupo de estudos em
filosofia, ciência, tecnologia e sociedade, Brasil. E-mail: [email protected].
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Foi ainda crítica gastronômica da revista New Statesman de 1998 a 2003. Por doze anos,
escreveu a coluna Kitchen Thinker no Sunday Telegraph's "Stella", pelo qual recebeu
nos anos de 2004, 2008 e 2009 o título de “Jornalista de Culinária do Ano”, pelo
renomado Guild of Food Writers. Além dessas marcantes atuações profissionais,
escreveu outros artigos e resenhas de livros para jornais como The Guardian, The
Sunday Times e The Times Literary Supplement, além de contribuir com artigos para o
London Review of Books. Atualmente é presidente do Oxford Symposium on Food and
Cookery.
Como escritora, lançou os seguintes livros: The Hive: The Story of the
Honeybee and Us; Swindled: From Poison Sweets to Counterfeit Coffee; Sandwich: A
Global History; Consider the Fork: A History of How We Cook and Eat; e First Bite:
How We Learn to Eat. No Brasil, suas obras são publicadas pela Zahar Editora,
publicando até o momento, duas obras, a saber, The Hive: The Story of the Honeybee
and Us, e o livro que será objeto do presente trabalho: Consider the Fork: A History of
How We Cook and Eat, que no Brasil, recebeu o título “Pense no garfo!: uma história da
cozinha e de como comemos”. Essa obra apresenta uma abordagem geral da história dos
instrumentos de cozinha em suas mudanças ao longo do tempo, bem como sua
importância para a determinação do modo de vida mediante a forma como se
alimentavam.
O presente trabalho tem por objetivo, analisar o entendimento de
culinária como tecnologia em Bee Wilson, buscando relacionar os conhecimentos da
culinária em seus aspectos sociais e culturais, bem como extrair do pensamento da
autora sobre a culinária, as visões de tecnologia que dele decorrem. Neste sentido trata-
se de analisar a culinária como tecnologia e como esta vincula os aspectos sociais e
culturais com base nos estudos de CTS.
REFERENCIAL TEÓRICO
Em sua obra sobre o ato cozinhar como “invenção do cotidiano”,
Certeau observa que “cada hábito alimentar compõe um minúsculo cruzamento de
histórias” (CERTEAU, 1996: 234). Do mesmo modo poderíamos dizer sobre os
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utensílios tecnológicos que permeiam cada hábito alimentar. Os utensílios de cozinha,
utilizados como instrumentos do ato de cozinhar em cada hábito alimentar, não existem
independente destes hábitos, mas sim compõem-se e representam estes “minúsculos
cruzamentos de histórias” (para usar a mesma expressão de Certeau). Logo, estes
utensílios, não carregam somente seu caráter instrumental (do “servir para”); antes de
tudo, eles revelam seu caráter histórico, cultural e social. Vista deste esta perspectiva e
ampliando este sentido, também se pode dizer da tecnologia. A tecnologia não
representa somente os aparatos tecnológicos. Compreendida dentro do seu contexto
(histórico, filosófico, econômico, social, político e cultural), a tecnologia transcende a
visão meramente instrumental. Ou seja, inserida dentro de seu contexto, trata-se de
pensá-la não somente como instrumentalidade, mas como finalidade, isto é, desde uma
perspectiva de sua intencionalidade; de como ela se insere e transforma a sociedade e de
como ela passa a ser uma prática reiterada e reificada socialmente.
Voltando ao caso específico dos utensílios de cozinha, e exemplicando a
tese do quão inseridos eles estão ao seu contexto, o exemplo citado por Wilson, parece
emblemático. Quando foi criado o forno de micro-ondas, como nova forma do ato de
cozinhar os alimentos, por exemplo, deve-se observar não somente o aparato em si, mas
todos os refratários resistentes que necessitaram ser pensados; todas as receitas
adaptadas ao novo processo de cocção ou ainda as novas possibilidades de comidas
prontas vendidas. Assim, pode-se imaginar a mudança social que o micro-ondas
provocou na própria reunião dos grupos sociais. A respeito disso, Bee Wilson faz a
seguinte reflexão:
Será que isso dá fim a vida social, tal como conhecemos? O historiador
Felipe Fernández-Armesto execra o micro-ondas como um aparelho que tem
o ‘poder de mudar a sociedade’ de um modo maléfico, desenvolvendo uma
fase ‘pré-social da evolução’. É como se nunca houvéssemos descoberto o
fogo. Ao longo da história, buscamos encerrar e controlar o fogo, esse foco
da nossa vida social, e termos domesticado com lareiras de pedra, cercado de
grandes salões construídos ao seu redor, encerrado em grelhas de metal,
isolado em fogões de ferro fundido, subjulgado à nossa vontade por meio do
fogão a gás. E por fim, descobrimos um modo de cozinhar sem ele no micro-
ondas (WILSON, 2010: 138).
Conclui-se, portanto, que a escolha pelo utensílio é tão cultural como o
próprio ato de preparar algo, ou a simbologia de um prato para determinada cultura.
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Assim, a afinidade por um utensílio, reflete a prática cultural de preparação da comida.
Do mesmo que também reflete a prática tradicional de uma determinada cultura.
Sobre este último propósito, o da conservação da tradição cultural do ato
de cozinhar, vale a pena trazer à colação aqui as reflexões sociológicas sobre certos
utensílios utilizados tradicionalmente na doçaria nodestina (o uso de utensílios de barro
e de madeira), apresentada pelo antropólogo brasileiro, Gilberto Freyre. Assim ele diz:
Note-se que as preferências por vasilhame de material tradicional - barro, por
exemplo – ou por colheres grandes de pau, para com elas mexer-se o
alimento em preparo ou tomar-se o seu ponto, não se limitariam a alimentos
dos chamados de resistência: estendem-se a doces de frutas, canjica,
sobremesas de milho. Também neste setor, supõe-se, dentro de velha tradição
brasileira, em geral, nordestina, em particular, conservar o vasilhame, pela
natureza como que telúrica, ecológica, do seu material, aquele “teor
gustativo” a que se referem especialistas em nuances de paladar. (...) Há
assim, uma íntima aliança entre a parte da doçaria nordestina mais
tradicional, além de mais tradicional, e o vasilhame e, sobretudo, a colher de
mexer – ortodoxamente, a de pau – que se empreguem no seu preparo. Nas
feiras da região, a colher de pau, como a cuia e a farinheira, também de pau,
o alguidar e a panela de barro continuaram a ter compradores não só rústicos
como sofisticados (FREYRE, 2007: 56-57).
A reação e a resistência ao que é apresentado como “inovador”, dentro
da culinária, refletem as implicações sociais e culturais que dele deriva. Cozinheiros são
pessoas tradicionais, mestres em atos silenciosos e repetitivos, que em quase nada se
alteram de um dia para o outro. Culturas inteiras se constroem em torno de uma ou outra
forma de cozinhar. É normal os cozinheiros verem uma inovação tecnológica como um
ataque pessoal (WILSON, 2010). Dessa tese também corrobora o estudioso da cultura
Câmara Cascudo:
A cozinha, como elaboradora de alimentos, é um processo contínuo pelo
Tempo, aceitando muitas raras modificações quanto às formulas usuais da
técnica culinária. Para que o povo aprove uma alteração de melhor é
indispensável um longo período experimental. Não há na cozinha comum e
normal, a improvisação. Existe a combinação de elementos antigos em nova
proporção (CASCUDO, 2011. p. 394).
Se a tecnologia culinária não pode ser vista somente numa visão
artefatual, dado o fato de a culinária repercutir em outros aspectos importantes na rotina
humana, como fenômeno cultural e social, ela deve ser observada desde uma
perspectiva mais ampla e interdisciplinar, conforme WILSON argumenta:
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A tecnologia da culinária não concerne apenas ao bom funcionamento direto
deste ou daquele utensílio - se ele produz ou não comida mais deliciosa -,
mas tudo que a cerca: as instalações da cozinha, nossa atitude perante o
perigo e os riscos, a poluição, a vida das mulheres e dos criados, nossa
postura em relação à carne vermelha ou à carne em geral, as estruturas social
e familiar, o estado de metalurgia (WILSON, 2010: 102-103).
O fato é que, também do ponto de vista da tecnologia, a culinária vai
mais além do que as panelas no fogo ou uma cozinha vista desde seus aparatos
tecnológicos e utensílios à vista. Pensada desde uma perspectiva cultural, social e
política, tais objetos trascendem à visão meramente instrumental de técnica e de
tecnologia. Assim é que na política, ao redor das mesas, são tomadas as grandes
decisões. Basta analisar os jantares diplomáticos onde os lugares dos convidados são
estrategicamente pensados, além de orientações temáticas a respeito das conversas.
Nesses eventos, geralmente se faz uso do serviço à francesa, que proporciona aos
convivas somente se ausentarem da mesa para fins de usar o lavabo ou para outra
adversidade extrema. Com isso, garante-se o diálogo intenso entre as pessoas. A
propósito, Nascimento narra situações muito peculiares da política brasileira dos
últimos tempos:
Jornais e revistas ficam atentos não só aos aspectos políticos que motivam os
eventos gastronômicos, mas também ao que se come. E assim todo mundo
fica sabendo do que contém o freezer do Alvorada, em cada gestão
presidencial. E que muita fofoca do governo Collor veio à tona nas feijoadas
do ex-deputado Cleto Falcão. E que Sarney, quando presidente, reunia
políticos em cafés da manhã, no palácio, nos quais não faltava macaxeira. E
que o pão de queijo marcou o governo de Itamar Franco, bem como o sopão
de verduras que servia aos amigos de Juiz de Fora (NASCIMENTO, 2007:
106).
Ou ainda, como o próprio prato traz em si a simbologia de um período
histórico ou acontecimento, como no exemplo de Freyre:
É interessante notar que os nomes de alguns bolos e doces do Nordeste
recordam acontecimentos políticos de certas épocas, datas ou figuras
gloriosas, grandes feitos de brasileiros. Assim “Bolo Cabano”, que lembra o
movimento político-social que por anos agitou o Nordeste; “Bolo Legalista”,
“D. Pedro II”, “Santos Dummont”, “Treze de Maio”, “Bolo Republicano”.
Os antagonismos políticos várias vezes refletiam nomes de bolos (FREYRE,
2007: 95).
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Se comer é algo tão vital, tão presente na rotina do ser humano, como
não reconhecer a magnitude da culinária enquanto tecnologia e cultura? A própria
sociedade capitalista viabiliza o fenômeno tecnológico culinário enquanto tenta
diminuir o tempo de permanência do ser humano no preparo de seus alimentos. Cada
dia novas “engenhocas” são inventadas para fomentar o consumo.
METODOLOGIA
O presente trabalho trata-se de um pesquisa qualitativa e descritiva da
literatura sobre Bee Wilson a respeito da culinária e da gastronomia. Dela se buscou
extrair as visões de tecnologia presentes no pensamento da autora.
Com base na análise crítica acerca da culinária como tecnologia para Bee
Wilson este trabalho tem caráter essenciamente bibliográfico, fazendo coincidir os
escritos da autora com os dos comentadores que orbitam em torno à esta temática. Neste
particular, cabe destacar a escassez dos escritos sobre a autora, objeto de análise deste
trabalho. Por isso, desta forma, primeiramente foi realizada uma leitura detalhada e
exaustiva da sua principal obra (“Pense no Garfo!”), além de outros escritos.
Posteriormente, entrelaçou-se seu pensamento a respeito do assunto com o
posicionamento de outros autores sobre o tema, como Certeau, Savarin, incluindo
autores brasileiros, como: Gilberto Freyre e Nascimento.
Considerado este trabalho dentro do enfoque dos estudos de CTS, para
ilustrar a crítica aqui adotada quanto ao posicionamento da autora acerca da relação
entre culinária e tecnologia, a pesquisa se serviu dos autores deste campo, como: Bazzo,
Cerezo, etc. Somado a este enfoque, também ressaltou-se aqui os aspectos
antropológicos de análise (Freyre, Savarin, Certeau, Santos, entre outros).
RESULTADOS
Para justificar a culinária como uma tecnologia, Wilson parte do próprio
conceito de tecnologia para dele apresentar seu entendimento:
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A palavra “tecnologia” vem do grego. Tékhné significa arte, habilidade ou
arte manual, e logia é o estudo de algo. A tecnologia não é uma forma de
robótica, mas algo muito mais humano: a criação de ferramentas e técnicas
que atendam a certas necessidades de nossa vida. Ora o termo ‘tecnologia’
significa as próprias ferramentas, ora se refere ao saber inventivo que as
possibilitou, ou ao fato de as pessoas usarem essas ferramentas específicas, e
não outras. A descoberta científica não depende do uso para sua validade; a
tecnologia, sim. Quando um equipamento deixa de ser usado, ele perde a
validade. Por mais bem-pensada que tenha sido a sua concepção, um batedor
de ovos só atinge plenamente seu objetivo quando alguém o pega e bate ovos
(WILSON, 2010: 10).
Buscando analisar os elementos importantes presentes no conceito de
tecnologia ao abordar a culinária, destacam-se aqui alguns aspectos da visão de Bee
Wilson.
O primeiro aspecto é que os artefatos tecnológicos (como também o
saber inventivo que os tornaram possíveis) são criados para atender as necessidades
humanas, portanto, eles fazem parte da própria condição humana de existir e estar no
mundo, tal como diz: a tecnologia é “algo muito mais humano: a criação de ferramentas
e técnicas que atendam a certas necessidades de nossa vida” (WILSON, 2010: 10).
Como se pode observar, trata-se da visão antropológica de tecnologia (BAZZO, 2003;
MIRANDA, 2015), também defendida por Ortega y Gasset em sua obra “Meditações
sobre a Técnica” (ORTEGA y GASSET, 1996). Segundo Ortega o homem é um ser
técnico e a técnica faz parte do próprio processo de humanização de sua condição de
estar no mundo.
O segundo aspecto diz respeito à condição de existência e validade do
artefato tecnológico, posto que depende do seu uso. Portanto, os artefatos estão
condicionados à sua condição de instrumentalidade (“o servir para”). Assim diz Bee
Wilson: “Quando um equipamento deixa de ser usado, ele perde a validade. Por mais
bem pensada que tenha sido a sua concepção, um batedor de ovos só atinge plenamente
seu objetivo quando alguém o pega e bate ovos” (WILSON, 2010: 10). Ainda acerca
desta visão, cabe frisar que Bee Wilson condiciona a tecnologia à sua eficiência; o que
ressalta o sentido utilitário, porque somente admite como válido aquilo que é útil, no
sentido de “servir para”.
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Em sua obra, WILSON tenta simplificar o entendimento de tecnologia,
quando afirma que um simples artefato como uma colher de pau pode ser considerado
altamente tecnológico, pois está imerso em tecnologia pensada para o seu melhor uso.
Esta visão parece coincidir com o sentido comumente designado para a tecnologia, onde
“os conhecimentos são apresentados como claros, óbvios, de sentido comum,
esquecendo-se que a construção científica parte do questionamento sistemático do
óbvio” (BAZZO, 2003: 20). Ou quando afirma que a culinária como tecnologia remonta
à milhares de anos atrás, como no caso dos homens da idade da pedra que usavam
lascas de pedra para cortar a carne. Aqui novamente aparece a visão simplista e
evolutiva da tecnologia (BAZZO, 2003).
Tecnologia para a autora é algo simples, algo cotidiano, algo palpável.
Que vai determinar a forma de vida de determinada civilização, em determinado recorte
histórico. Justifica isso através dos alimentos, quando afirma que um alimento só é
ingerido de determinada forma em determinado período histórico. O que comemos
determina em que época nós vivemos. Toda época tem a sua tecnologia, que pode ser
uma faca, uma colher, um copo medidor ou uma cafeteira automática. Tratam-se de
utensílios simples, que são considerados tecnologia.
Acreditar que cada sociedade tem a sua própria forma de cozinhar, que
varia segundo alguns indicadores sociais, históricos ou geográficos, é afirmar que
“nenhuma outra atividade será tão permanente na história humana. Qualquer concepção
do conjunto social no plano econômico ou metafísico, implica necessariamente o
desenvolvimento dos processos aquisitivos da alimentação” (CASCUDO, 2011: 339).
Ainda, Santos corrobora com tal pensamento:
A experiência de comer é fundadora da identidade tanto do indivíduo quanto
coletiva. Ela se situa dentro de um jogo de distinção e alteridade no qual os
homens registram seu pertencimento a uma cultura ou a um grupo qualquer
seja pela afirmação de sua especificidade alimentar ou pela diferença em
relação aos outros (SANTOS, 2008: 33).
Ainda, cabe ressaltar que ao identificar a tecnologia como um fazer do
homem, Bee Wilson busca ao máximo simplificar a ciência, bem como aproximar o
conhecimento popular ao método científico. Assim, afasta as visões tradicionais elitista
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e absolutista de ciência, expandindo as possibilidades de compreensão do método
científico:
O método científico é muito mais aberto do que se costuma admitir. Não é
um conjunto dogmático de números, mas um processo de formação e
verificação de conjecturas baseadas nos resultados de experimentos
controlados, que propõem novas conjecturas. O processo de se preparar o
jantar todas as noites certamente pode ser entendido por esse prisma
(WILSON, 2010: 174).
O mais interessante no conceito acima é a demonstração de que a simples
experimentação de uma receita pode ser considerada uma coisa altamente científica, da
mesma forma que um teste laboratorial altamente controlado. A experiência popular, a
experimentação simples, pode, desta forma, ser considerada altamente científica e digna
de respeito. Para isso, afirma que “parte do método científico consiste em aceitar que
nem tudo está dentro do campo da ciência” (WILSON, 2010: 175), ou seja, que existem
mais coisas no no mundo da vida que cabem nos rigores de uma visão tradicional de
ciência.
Quanto à indagação da neutralidade da tecnologia, WILSON diz que “os
utensílios não são objetos neutros. Modificam-se com a evolução do contexto social”
(WILSON, 2010: 20). Mais adiante, ela explica como os artefatos modificam-se pelo
contexto social: “o caldeirão tendia a decidir pelo individuo como ele poderia comer”
(WILSON, 2010: 43). Desta forma, segundo a autora, deve-se pensar na
intencionalidade da tecnologia desde sua criação até as consequências do seu uso.
Em outros termos, o artefato não é simplesmente um molde elaborado
pelo homem, que passa a ser utilizado como instrumento, ferramenta ou utensílio;
através dele (do artefato), de seu uso, se descobre e se transforma a própria natureza.
Como no caso das panelas de cerâmica feitas através da exposição do barro ao calor: o
barro das panelas interage com o alimento para dar propriedades que não chegariam se
não fosse por meio dessa interação. Assim, a tecnologia é influenciada e também
influencia a cultura, a sociedade e a própria natureza.
Logo, no exemplo da culinária, a tecnologia interage com o meio,
modificando propriedades, sabores, etc. A sensibilidade quanto a este aspecto aparenta
ser invisível quando os aparatos em questão é um computador, um software, um gerador
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mecânico. Mas, quando se questiona a interação da tecnologia com o meio, em se
tratando de culinária, este processo torna-se evidente e muito mais palpável: o ferro
fundido de uma panela pode contaminar o conteúdo cozido nela, que será ingerido pelo
seu usuário, podendo ocasionar contaminações graves no organismo. Ainda sobre este
aspecto, Bee Wilson, observa:
É fácil esquecermos que a tecnologia da cozinha ainda é uma questão de vida
ou morte. Os dois mecanismos primários da culinária – cortar e aquecer – são
repletos de perigos. Durante a maior parte da história humana, cozinhar foi
uma tarefa eminentemente sinistra, um modo de brincar com o perigo num
espaço confinado, esfumaçado e suarento (WILSON, 2010: 18).
O senso de compromisso com a tecnologia culinária, necessariamente
orbita no cuidado com os utensílios e no resultado do uso deles. Por meio da cozinha,
pode-se alimentar ou matar uma pessoa. Pode-se receber aplausos pelo sabor, ou
processos por toxico-infecção alimentar. Inclusive, o cozinheiro pode se cortar,
queimar, intoxicar, cair, derrubar, dentre outros tipos de acidente. É costumeiro
conversar com um cozinheiro sobre sua história com a cozinha e ele apresentar as suas
cicatrizes, contado como as ganhou. Desta forma, “(...) a ciência que alimenta os
homens, vale, tanto, pelo menos, quanto a que ensina a matá-los” (SAVARIN, 1995:
56-57). O uso da tecnologia em si, traz consequências. Quando se escolhe esta ou
aquela tecnologia, quando se julga mais conveniente adotar um método e não outro. Isso
tudo transcende à uma mera escolha para uma determinação do recorte histórico em que
se vive (WILSON, 2010).
A tecnologia pode ser usada para a própria sobrevivência como também
usada para o próprio prazer. Além de determinar a condição de vida ou o recorte
histórico, existe uma verdadeira fetichização a alguns artefatos. Um verdadeiro apego
aos utensílios que absorvem todos os valores sentimentais e que passam a representar
algo muito próximo. É a panela velha, a colher-de-pau decorada, a frigideira herdada da
mãe. “Os utensílios são inicialmente adotados por atenderem a uma dada necessidade
ou resolverem um problema particular, mas, com o tempo, aqueles que sentimos prazer
em usar são determinados sobretudo pela cultura” (WILSON, 2010: 08). Ou seja, a
tecnologia se insere no contexto cultural passando a figurar como elemento e
determinante cultural, cujo valor é carregado de simbologias.
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Inobstante tantos outros aspectos, ainda resta refletir sobre a
consequência do uso da tecnologia para o indivíduo. Numa leitura influenciada pela
visão evolucionista da biologia e da antropologia, Bee Wilson, faz alusão à forma os
utensílios utilizados na cozinha e na culinária, transforma o próprio corpo humano,
alterando-o não somente desde uma perspectiva cultural e antropológica, mas também
biológica. Ao analisar a sobremordida no ser humano, ela observa:
O que os ortodontistas não dizem é que a sobremordida é um aspecto muito
recorrente da anatomia humana e resulta, provavelmente, da maneira que
usamos nossas facas de mesa. Esqueletos preservados mostraram que esse é
um alinhamento ‘normal’ da arcada dentária humana há apenas duzentos a
250 anos, no mundo ocidental. Antes disso, a maioria dos seres humanos
tinha uma oclusão topo a topo, comparável a dos símios. A sobremordida não
é produto da evolução – o intervalo temporal é curto demais. Ao contrário,
parece provável que seja uma resposta à maneira de cortarmos nossos
alimentos durante nossos anos de formação. Quem descobriu isso foi o
professor Charles Loring Brace (nascido em 1930), um admirável
antropólogo norte-americano cuja grande paixão intelectual era o homem de
Neandertal. Durante décadas, Brace construiu a maior base mundial de dados
sobre a evolução dos dentes dos hominídeos. É possível que ele tenha tido
entre as mãos mais mandíbulas humanas antigas do que qualquer outra
pessoa no século XX (WILSON, 2010: 92).
Por mais plausível que seja a ideia de que o aparato tecnológico seja um
objeto inanimado, ele influencia a própria estrutura orgânica das coisas, que se
transformam com o seu uso. “Costumamos pensar que nosso corpo é fundamental e
inalterável, enquanto coisas como as maneiras à mesa são superficiais: podemos alterá-
las de vez em quando, mas não podemos ser alterados por elas” (WILSON, 2010: 95).
Bee Wilson também observa que muitos dos utensílios de cozinha
vieram de pesquisas científicas e muitas vezes, em pesquisas para uso militar. Como no
exemplo do forno de micro-ondas, que resultou de pesquisas em armamentos bélicos na
segunda guerra mundial. Geralmente, as novas tecnologias apresentam o propósito
explícito de facilitar a vida dos seus usuários, com um mínimo de interferência.
Contudo, as tecnologias que exigem um mínimo de contribuição humana estão levando
a extinção às habilidades culinárias. A inovação tecnológica promete mudar a nossa
vida, contudo, por muitas vezes, ela não muda da forma que desejávamos: “Toda nova
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tecnologia representa uma troca: algo se ganha, mas algo se perde. (...) Muitas vezes, o
que se perde é o conhecimento” (WILSON, 2010: 15).
Com o advento do multiprocessador, não é mais preciso saber cortar
legumes em brunoise, bastonete ou julienne3. Basta apenas saber onde abre o utensílio e
como é feito o comando para que os legumes fiquem nesses cortes. Termômetros de
alta precisão expulsam a intuição da cozinha. Os cozinheiros passam a confiar mais em
aparatos tecnológicos do que na própria capacidade.
Mas, nem tudo está submetido à automação tecnológica; muitas vezes,
uma nova tecnologia, faz apreciar a tecnologia antiga. O prazer passa a ser determinante
no processo de produção dos alimentos. Abrir mão de aparatos tecnológicos tendo em
vista o prazer de cozinha de maneira tradicional move aqueles que têm na culinária,
além de fonte de nutrição, um prazer ou hobby.
Um grande exemplo dessa tendência é o movimento do Slow Food: em
retaliação ao dogma do fast food, o movimento da comida lenta surge do desejo de
trabalhar lentamente o prato. Sem as correrias habituais de aparatos tecnológicos,
preparando de maneira artesanal, sem preocupação com tempo, e vai muito além do
simples conceito de uma preparação lenta, uma vez que tem por objetivo também:
(...) salvaguardar o patrimônio culinário. Por meio de exposições e de
manifestações nacionais como os Ateliês do Sabor, o Slow Food deseja
perenizar a agricultura local, apoiando os produtores, conservar a diversidade
gastronômica e, mais amplamente, preservar o planeta e a biodiversidade.
Assim, a rede mundial Terra Madre, criadora do Slow Food, prolonga a
salvaguarda das pequenas produções nas comunidades rurais do mundo
inteiro (MORIN, 2013: 298).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como proposta levar o leitor a mergulhar no
sentido da culinária para Bee Wilson, fazendo emergir dali as visões de tecnologia que
perpassam seu pensamento sobre a gastronomia. Mas, como conclusão, cabe inserir
ainda um outro aspecto significativo da relação entre culinária e tecnologia. Bee Wilson
3 Tipos de cortes usados para a composição de pratos na gastronomia.
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diz que “A tecnologia é a arte do possível. É movida pelo desejo humano” (Wilson,
2010: 19). Esta citação tem cabida como arremate do percurso teórico que fizemos até
aqui. Primeiramente, por tratar a tecnologia emparentada com a arte. Ambas, técnica e
arte figuram no âmbito da poiésis, como produção material, tal como dizia Aristóteles
(MIRANDA, 2015.b). Mas, em segundo plano a referida cita também traz à tona um
dos grandes dilemas da atualidade: a culinária pode ser considerada arte?
Freyre, inicialmente, traz a doceria como resposta para a presente
indagação:
A receita de doce é quase que só arte: para sobreviver não depende de
constantes alterações nas verdades científicas embora precise – é certo – de
condicionar-se, em alguns de seus aspectos, a transformação do caráter
sociocultural. (…) Pode a ciência dos nutrólogos nos advertir contra excessos
neste ou naquele ingrediente que dê sabor a um doce. Contra excessos do
próprio açúcar. Mas sem que a ciência, com suas frequentes inovações,
chegue a desatualizar ou invalidar receitas de doces com facilidade com que
desatualiza ou invalida receitas médicas. A ciência raramente consegue
sobrepor-se de todo ao que é constante nas artes ou nas religiões ou nas
filosofias (FREYRE, 2007: 33).
Para o autor, as receitas culinárias mais resistem à ciência do que as
próprias receitas médicas. A arte culinária permanece no tempo: sempre existirá uma
panela de barro, uma colher de pau, um fogão à lenha, que resistirá ao despertar de um
novo aparato e perdurará, como garantidor do sabor original, autêntico e tradicional.
Assim, pode-se afirmar que “(...) cozinhar é o suporte de uma prática
elementar, humilde obstinada, repetida no tempo e no espaço, com raízes na urdidura
das relações com os outros e consigo mesmo, marcada pelo ‘romance familiar’ e pela
história de cada um, solidário das lembranças de infância como ritmos e estações”
(CERTEAU, 1996: 218) e desta forma dura, resiste.
Entretanto, de todas as artes por que a culinária é tratada como uma arte
subalterna? Ou mesmo por alguns, nem mesmo arte é? Câmara Cascudo, por exemplo,
assim fala da arte culinária:
A cozinha realmente é uma arte, mas uma Arte Menor. Costureiros,
sapateiros, cabeleireiros, perfumistas, denominam criações seus trabalhos,
disputando lugar nas revistas ilustradas, ao lado e a par com os assuntos
preferenciais do momento. O velho soberano das cozinhas continua, como a
rainha das abelhas, invisível e fecundo nas profundezas da colmeia
palpitante. Perdeu o ritmo gravitador ao derredor dessa classe de
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emanaciones impressas, de que falava Ortega y Gasset. Suas obras-primas,
mais efêmeras que as rosas, nem o espaço de uma manhã resistem na visão
exterior dos apreciadores (CASCUDO, 2011: 361).
Se o tradicional e a resistência acompanha a arte culinária, também a
efemeridade e a passagem a habita, como a própria morte acompanha o ato de cozinhar.
Os aspectos transcendentes do ato de nutrir vão muito além de um mero desejo
momentâneo, de um reles engolir e gostar do que comeu. Assim, quando se come, se
prepara para a vida, mas também para morte:
Amanhã será outro dia, tudo vai recomeçar outra comida será feita, outro
sucesso virá. Cada invenção é efêmera, mas a sucessão das refeições e dos
dias tem valor efêmero. Nas cozinhas, luta-se contra o tempo, o tempo desta
vida que sempre caminha para a morte. A arte de nutrir tem a ver com a arte
de amar, portanto, também com a arte de morrer (CERTEAU, 1996: 233).
Desta dialética da culinária enquanto técnica e enquanto arte, Savarin tão
bem resume todo o presente artigo e tão completamente sintetiza o dito até aqui: “A
gastronomia governa a vida do homem; pois os choros do recém-nascido reclamam o
seio de sua ama-de-leite, e o moribundo recebe ainda a poção suprema que,
infelizmente, não pode mais digerir” (SAVARIN, 1995: 58).
REFERÊNCIAS
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