michel de certeau - a escrita da história

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MICHEL DE CERTEAU A ESCRITA DA HISTORIA Tradução de: Maria de Lourdes Menezes Revisão Técnica: Arno Vogel

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historiografia

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A Escrita da histria

MICHEL DE CERTEAU

A ESCRITA DA HISTORIA

Traduo de:

Maria de Lourdes Menezes

Reviso Tcnica:

Arno Vogel

FORENSE-UNIVERSITRIA

RIO DE JANEIRO

Primeira edio brasileira: 1982

Traduzido de:

LCRITURE DE L'HISTOIRE

Copyright ditions Gallimard, 1975

Capa de: Rimsky

CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C411e

82-0482Certeau, Michel de.

A Escrita da histria/Michel de Certeau; traduo de Maria de Lourdes Menezes ;*reviso tcnica [de] Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982.

Traduo de: L'criture de l'histoire.

Bibliografia.

1. Histria Filosofia 2. Historiografia I. Menezes, Maria de Lourdes, trad. II. Ttulo.

CDD 901

907.2

CDU 930.1

82-94

Reservados os direitos de propriedade desta traduo pela

EDITORA FORENSE UNIVERSITRIA

Av. Erasmo Braga, 227 grupo 309 Rio de Janeiro

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

http://groups.google.com.br/group/digitalsourceSUMRIO*Prefcio 2 edio ............................................................................................................ 5 Escritas e Histrias ............................................................................................................ 8 .

Primeira Parte

AS PRODUES DO LUGAR

I. FAZER HISTRIA ...................................................................................................... 23 1. Um indcio: O tratamento da ideologia religiosa em histria .................................... 25 2. Prticas histricas e prxis social ............................................................................... 34 3. A histria, discurso e realidade ...................................................................................40 4. A histria como mito ...................................................................................................50 .

II. A OPERAO HISTORIOGRAFICA ...................................................................... 56 1. Um lugar social .......................................................................................................... 57 O no-dito ..................................................................................................................... 58 A instituio histrica .................................................................................................... 60 Os historiadores na sociedade ....................................................................................... 65 O que permite e o que probe: o lugar ............................................................................ 69 2. Uma prtica ................................................................................................................ 70 A articulao natureza-cultura ...................................................................................... 72 O estabelecimento das fontes ou redistribuio do espao .............................................. 74 Fazer surgir diferenas: do modelo ao desvio ............................................................... 79 O trabalho sobre o limite .............................................................................................. 82 Crtica e histria ............................................................................................................ 86 3. Uma escrita ................................................................................................................. 89 A inverso escriturria...................................................................................................... 89 A cronologia, ou a lei mascarada ..................................................................................... 92 A construo desdobrada ............................................................................................... 96 O lugar do morto e o lugar do leitor ............................................................................. 104 .

Segunda Parte

A PRODUO DO TEMPO: UMA ARQUEOLOGIA RELIGIOSA

INTRODUO: QUESTES DE MTODO .............................................................. 109 .

III. A INVERSO DO PENSAVEL.

A HISTRIA RELIGIOSA DO SCULO XVII .......................................................... 116 1. A religio durante a idade clssica ............................................................................ 116 2. A interpretao histrica ........................................................................................... 130 .

IV. A FORMALIDADE DASPRATICAS.

DO SISTEMA RELIGIOSO TICA DAS LUZES (XVII-XVIII) ........................... 136 1. Da diviso das Igrejas "Razo de Estado" (sculo XVII) ..................................... 139 2. Uma nova formalidade das prticas: A politizao dos comportamentos .........................................................................................................................................146 3. A lgica do "praticante" ............................................................................................. 151 4. A tica filosfica: "legalidade" e "utilidade" no sculo XVIII .................................. 161 5. As leis prprias do grupo religioso ........................................................................... 173 .

Terceira Parte

OS SISTEMAS DE SENTIDO: O ESCRITO E O ORAL

V. ETNOGRAFIA

A ORALIDADE OU O ESPAO DO OUTRO: LRY................................................ 189 1. A "lio de escrita" em Jean de Lry (1578) ............................................................. 192 2. A reproduo escrituraria ........................................................................................... 196 3. Uma hermenutica do outro ....................................................................................... 199 4. A palavra erotizada .................................................................................................. 207 5. Visto e/ou escutado ................................................................................................... 211 .

VI. A LINGUAGEM ALTERADA.

A PALAVRA DA POSSUDA ..................................................................................... 219 1. Transgresso e interdio ........................................................................................... 223 2. Documentos alterados .............................................................................................. 226 3. "Eu um outro": a perverso da linguagem .............................................................. 229 4. Construo e demolio de um lugar ......................................................................... 232 5. O quadro dos nomes prprios: uma toponmia "mexida" ......................................... 235 6. A mentira da interpretao ........................................................................................ 238 .

VII. UMA VARIANTE:

A EDIFICAO HAGIOGRFICA ............................................................................ 242 1. Histria e sociologia .................................................................................................. 243 2. A estrutura do discurso ............................................................................................. 248 3. Uma geografia do sagrado ........................................................................................ 252 .

Quarta Parte

AS ESCRITAS FREUDIANAS

VIII. O QUE FREUD FEZ DA HISTRIA

A PROPSITO DE UMA NEUROSE DEMONACA NO SCULO XVII................ 256 O histrico, produo da Aufkhrung freudiana..............................................................257 Para uma histria do sculo XVII................................................................................... 261 Do passado legvel ao presente oculto ........................................................................263 Ocultar, trabalho da histria ....................................................................................... 266 As substituies do pai ................................................................................................. 268 O ato e a lei .................................................................................................................... 271 .

IX. A FICO DA HISTRIA

A ESCRITA DE "MOISS E O MONOTESMO"....................................................... 275 O discurso de fragmentos ou o corpo do texto ....................................................... 276 Escrever na lngua do outro, ou a fico ..................................................................... 283 A tradio da morte, ou a "escrita" ............................................................................. 290 O quiproquo, ou a comdia do "prprio" .................................................................... 297 O romance da histria ................................................................................................... 311 .

PREFACIO A 2 EDIO

Amrico Vespcio, o Descobridor, vem do mar. De p, vestido, encouraado, cruzado, trazendo as armas europias do sentido e tendo por detrs dele os navios que traro para o Ocidente os tesouros de um paraso. Diante dele a Amrica ndia, mulher estendida, nua, presena no nomeada da diferena, corpo que desperta num espao de vegetaes e animais exticos. Cena inaugural. Aps um momento de espanto neste limiar marcado por uma colunata de rvores, o conquistador ir escrever o corpo do outro e nele traar a sua prpria histria. Far dele o corpo historiado o braso de seus trabalhos e de seus fantasmas. Isto ser a Amrica "Latina".

Esta imagem ertica e guerreira tem valor quase mtico. Ela representa o incio de um funcionamento novo da escrita ocidental* Certamente, a encenao de Jan Van der Atraet esboa a surpresa diante desta terra, que Amrico Vespcio foi o primeiro a perceber claramente como uma nuova terra ainda inexistente nos mapas corpo desconhecido destinado a trazer o nome de seu inventor (Amrico). Mas o que assim se disfara uma colonizao do corpo pelo discurso do poder. a escrita conquistadora. Utilizar o Novo Mundo como uma pgina em branco [Pg. 009] (selvagem) para nela escrever o querer ocidental. Transforma o espao do outro num campo de expanso para um sistema de produo. A partir de um corte entre um sujeito e um objeto de operao, entre um querer escrever e um corpo escrito (ou a escrever) fabrica a histria ocidental. A escrita da histria o estudo da escrita como prtica histrica.

Se, h quatro sculos, todo empreendimento cientfico tem como caractersticas a produo de artefatos lingsticos autnomos (lnguas e discursos "prprios") e sua capacidade de transformar as coisas e os corpos dos quais se distinguiram (uma reforma ou revoluo do mundo envolvente segundo a lei do texto), a escrita da histria remete a uma histria "moderna" da escrita. Na verdade, este livro foi inicialmente concebido como uma srie- de estudos destinados -a marcar etapas cronolgicas dessa prtica: no sculo XVI,. a organizao "etnogrfica" da escrita na sua relao com a oralidade "selvagem", "primitiva", "tradicional", ou "popular" que ela constitui como seu outro (terceira parte deste livro); nos sculos XVII e XVIII, a transformao das Escritas crists, legibilidade de um cosmos religioso, em "representaes" puras ou em "supersties" marginalizadas por um sistema tico e tcnico das prticas capazes de construir uma histria humana (segunda parte); no limiar do sculo XX, o retomo da alteridade reprimida graas prtica escriturria de Freud (quarta parte); finalmente, o sistema atual da "indstria" historiogrfica, que articula um lugar scio-econmico de produo, as regras cientficas de um domnio, e a construo de um relato ou texto (primeira parte). A estes estudos se acrescenta aquele que concerne, em fins do sculo XVIII, luta de uma racionalidade escriturria "esclarecida", revolucionria e jacobina contra as flutuaes idiomticas das oralidades regionalizantes.

Mais do que proceder a esta reconstituio cronolgica, por demais dcil fico de uma linearidade do tempo, pareceu prefervel tomar visvel o lugar presente onde esta interrogao tomou forma, a particularidade do campo, do material e dos processos (da historiografia "moderna") que permitiram analisar a operao escriturria e os desvios metodolgicos (semi-ticos, psicanalticos, etc.) que introduziram outras possibilidades tericas e prticas no funcionamento ocidental da escrita. Donde este discurso fragmentado, feito de investigaes tticas obedientes, cada uma, a regras prprias: abordagem scio-epistemolgica (primeira parte), histrica (segunda parte), semitica (terceira parte), psicanaltica e freudiana (quarta parte). Recusar a fico de uma metalinguagem que unifica o todo deixar aparecer a relao entre os procedimentos cientficos limitados e [Pg. 010] aquilo que lhes falta do "real" ao qual se referem. evitar a iluso, necessariamente dogmatizante, prpria do discurso que pretende fazer crer que "adequado" ao real, iluso filosfica oculta nos prembulos do trabalho historiogrfico e da qual Schelling reconheceu maravilhosamente a ambio tenaz: "O relato dos fatos reais doutrinal para ns". Este relato engana porque acredita fazer a lei em nome do real.

A historiografia (quer dizer "histria" e "escrita") traz inscrito no prprio nome o paradoxo e quase o oximoron do relacionamento de dois termos antinmicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de articul-los e, onde este lao no pensvel, fazer como se os articulasse. Da relao que o discurso mantm com o real, do qual trata, nasceu este livro. Que aliana esta entre a escrita e a histria? Ela j era fundamental na concepo judaico-crist das Escrituras. Da o papel representado por essa arqueologia religiosa na elaborao moderna da historiografia, que transformou os termos e mesmo o tipo desta relao passada, para lhe dar aspecto de fabricao e no mais de leitura ou de interpretao. Desse ponto de vista, o reexame da operatividade historiogrfica desemboca, por um lado, num problema poltico (os procedimentos prprios ao "fazer histria") e, por outro lado, na questo do sujeito (do corpo e da palavra enunciadora), questo reprimida ao nvel da fico ou do silncio pela lei de uma escrita "cientfica".

[Pg. 011]: Notas

[Pg. 012]ESCRITAS E HISTRIAS

"Estudioso e benevolente, terno como o sou para com todos os mortos..., ia assim, de idade em idade, sempre jovem, jamais cansado, durante milhares de anos...": O caminho "meu caminho" parece se apossar deste texto de caminhante: "Eu ia, vagava... percorri minha estrada... ia... viajante corajoso" : Caminhar e/ou escrever, o trabalho sem trgua, pela fora cio desejo, sob as esporas de uma curiosidade ardente que nada poderia deter. "Michelet multiplica as visitas, com "indulgncia" e "temor filial" para com os mortos que so os beneficirios de um "estranho dilogo"; mas tambm com a certeza de que "no se poderia reacender o que a vida abandonou". No sepulcro habitado pelo historiador no existe seno o "vazio". A "intimidade com o outro mundo" , pois, sem perigo: "esta segurana me tornou ainda mais benevolente para com estes que no poderiam me fazer mal" : Cada dia ele se torna mesmo mais "jovem" no trato com este mundo morto, definitivamente outro.

Aps terem percorrido, passo a passo, a Histria da Frana, as sombras "retornaram menos tristes aos seus tmulos". O discurso reconduziu-as para l. Fez delas entes apartados.* Ele as honra com um ritual que lhes fazia falta. Ele as "chora"; cumprindo um dever de piedade filial que tambm uma injuno de um sonho de Freud, inscrito numa estao de estrada de ferro: "Pede-se fechar os olhos". A "ternura" de Michelet vai [Pg. 013] de uns aos outros para os introduzir no tempo, "este todo-poderoso decorador de runas: O Time beautifying things!" Os caros desaparecidos entram no texto porque no podem mais fazer mal nem falar. Esses espectros so acolhidos na escrita sob a condio de se calarem para sempre.

Um outro luto, mais grave, se acrescenta ao primeiro. O Povo tambm apartado. "Nasci povo., tinha o povo no corao... Mas sua lngua, sua lngua me era inacessvel No pude faz-la falar". Silencioso tambm para ser objeto do poema que fala de si. Certamente, ele "autoriza" a escrita do historiador, mas por isso mesmo est ausente dela. Esta Voz no fala, In-fans No existe seno fora dela mesma no discurso de Michelet, mas lhe permite ser um escritor "popular" de "lanar fora" o orgulho e, tornando-se "grosseiro e brbaro"; "perder aquilo que me restava de sutileza literria".

O outro o fantasma da historiografia. O objeto que ela busca, que ela honra e que ela sepulta. Um trabalho de separao se efetua com respeito a esta inquietante e fascinante proximidade Michelet se estabeleceu na fronteira onde, de Virglio a. Dante, construram-se fices que no eram ainda histria Este lugar indica a questo posteriormente articulada pelas prticas cientficas e da qual uma disciplina se encarregou "A nica pesquisa histrica do "sentido" permanece, com efeito, a do "Outro". porm, este projeto contraditrio pretende "compreender" e esconder com o "sentido" a alteridade deste estranho ou, o que vem a ser a mesma coisa, acalmar os mortos que ainda freqentam o presente e oferecer-lhes tmulos escriturrios.

O discurso da separao: a escrita.

A histria moderna ocidental comea efetivamente com a diferenciao entre o presente e o passado. Desta maneira se distingue tambm da tradio (religiosa) da qual, entretanto, no conseguir jamais separar-se totalmente, mantendo com esta arqueologia uma relao de dvida e de rejeio. Finalmente, a terceira forma deste corte, que organiza tambm o contedo nas relaes do trabalho com a natureza, supe em toda parte uma clivagem entre o discurso e o corpo (social). Ela faz falar o corpo que se cala. Supe uma decolagem entre a opacidade silenciosa da "realidade" que ela pretende dizer, e o lugar onde produz seu discurso, protegida por um distanciamento do seu objeto (Gegen-stand). A violncia do corpo no alcana a pgina escrita seno atravs da ausncia, pela intermediao dos documentos que o historiador pode ver na praia de onde se retirou a presena [Pg. 014] que ali os havia deixado, e pelo murmrio que deixa perceber, longinquamente, a imensido desconhecida que seduz e ameaa o saber.

Uma estrutura prpria da cultura ocidental moderna est, evidentemente, indicada nesta historiografia: a inteligibilidade se instaura numa relao com o outro; se desloca (ou "progride") modificando aquilo de que faz seu "outro" o selvagem, o passado, o povo, o louco, a criana, o terceiro mundo. Atravs dessas variantes, heternomas entre si etnologia, histria, psiquiatria, pedagogia, etc. se desdobra uma problemtica articulando um saber-dizer a respeito daquilo que o outro cala, e garantindo o trabalho interpretativo de uma cincia ("humana"), atravs da fronteira que o distingue de uma regio que o espera para ser conhecida. A medicina moderna uma imagem decisiva deste processo, a partir do momento em que o corpo se toma um quadro legvel e, portanto, tradutvel naquilo que se pode escrever num espao de linguagem. Graas ao desdobramento do corpo, diante do olhar, o que dele visto e o que dele sabido pode se superpor ou se intercambiar (se traduzir). O corpo um cdigo espera de ser decifrado. Do sculo XVII ao X VIII, o que torna possvel a convertibilidade do corpo visto em corpo sabido, ou da organizao espacial do corpo em organizao semntica de um vocabulrio e inversamente , a transformao do corpo em extenso, em interioridade aberta como um livro, em cadver mudo exposto ao olhar. Uma mutao anloga se produz quando a tradio, corpo vivido, se desdobra diante da curiosidade erudita em um corpus de textos. Uma medicina e uma historiografa modernas nascem quase simultaneamente da clivagem entre um sujeito supostamente letrado, e um objeto supostamente escrito numa linguagem que no se conhece, mas que deve ser decodificada Estas duas "heterologias" (discursos sobre o outro) se construram em funo da separao entre o saber que contm o discurso e o corpo mudo que o sustenta.

Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porm, repete sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compe de "perodos" (por exemplo Idade Mdia, Histria Moderna, Histria Contempornea) entre os quais se indica sempre a deciso de ser outro ou de no ser mais o que havia sido at ento (o Renascimento, a Revoluo). Por sua vez, cada tempo "novo" deu lugar a um discurso que considera "morto" "aquilo que o precedeu, recebendo um "passado " j marcado pelas rupturas anteriores. Logo, o corte o postulado da interpretao (que se constri a partir de um presente) e seu objeto (as divises organizam as representaes a serem reinterpretadas). O trabalho determinado por este [Pg. 015] corte voluntarista. No passado, do qual se distingue, ele faz uma triagem entre o que pode ser "compreendido" e o que deve ser esquecido para obter a representao de uma inteligibilidade presente. Porm, aquilo que esta nova compreenso do passado considera como no pertinente dejeto criado pela seleo dos materiais, permanece negligenciado por uma explicao apesar de tudo retorna nas franjas do discurso ou nas suas falhas: "resistncias"; "sobrevivncias" ou atrasos perturbam, discretamente, a perfeita ordenao de um "progresso" ou de um sistema de interpretao. So lapsos na sintaxe construda pela lei de um lugar. Representam a o retomo de um recalcado, quer dizer, daquilo que num momento dado se tomou impensvel para que uma identidade nova se tomasse pensveL

Muito longe de ser genrica, esta construo uma singularidade ocidental Na Adia, por exemplo, "as novas formas no expulsaram as antigas". O que existe o "empilhamento estratificado" : A marcha do tempo no tem mais necessidade de se certificar pelo distanciamento de "passados", do que um lugar tem de se definir, distinguindo-se de "heresias". Pelo contrrio, um "processo de coexistncia e de reabsoro" o "fato .cardeal" da histria indiana. Da mesma forma entre os Merina de Madagascar, os tetiarana (antigas listas genealgicas), depois os tantara (histria passada) formam uma "herana das orelhas" (lovantsofma) ou uma "memria da boca" (tadidivava): muito ao contrrio de ser um objeto deixado para trs a fim de que um presente autnomo se tome possvel, um tesouro situado no centro da sociedade que o seu memorial, um alimento destinado manducao e memorizao. A histria o privilgio (tantara) que necessrio recordar para no esquecer-se a si prprio. Ela situa o povo no centro dele mesmo, estendendo-o de um passado a um futuro Entre os F do Daom, a histria remuho "a palavra destes tempos passados" palavra (ho), quer dizer, presena, que vem de montante e conduz a juzante. Nada de comum com a concepo (aparentemente prxima, mas, na verdade, de origem etnogrfica e/ou museogrfica) que, dissociando a atualidade e a tradio, impondo, pois, a ruptura entre um presente e um passado, e mantendo a relao ocidental da qual ela se contenta de inverter os termos, define a identidade por um retorno a uma "negritude "passada ou marginalizada.

intil multiplicar, fora de nossa historiografia, os exemplos que atestam uma outra relao com o tempo, ou, o que vem a ser o mesmo, uma outra relao com a morte. No ocidente, o grupo (ou indivduo) se robustece com aquilo que exclui ( a criao de um lugar prprio) e encontra [Pg. 016] sua segurana na confisso que extrai de um dominado (assim se constitui o saber de/sobre o outro, ou cincia humana). que ele sabe efmera toda vitria sobre a morte; fatalmente a desgraada retorna e ceifa A morte assombra o Ocidente. Por este motivo o discurso das cincias humanas patolgico: discurso do pathos infelicidade e ao apaixonada numa confrontao com esta morte que a nossa sociedade deixa de poder pensar como um modo de participao na vida Por sua conta a historiografla supe que se tornou impossvel acreditar nesta presena dos mortos que organizou (organiza) a experincia de civilizaes inteiras e, portanto, que impossvel "remeter-se a ela"; aceitar a perda de uma solidariedade viva com os desaparecidos, ratificar um limite irredutvel. O perecvel seu dado; o progresso, sua afirmao. Um a experincia que o outro condena e combate. A historiografia tende a provar que o lugar onde ela se produz capaz de compreender o passado: estranho procedimento, que apresenta a morte, corte sempre repetido no discurso, e que nega a perda, fingindo no presente o privilgio de recapitular o passado num saber. Trabalho da morte e trabalho contra a morte.

Este procedimento paradoxal se simboliza e se efetua num gesto que tem ao mesmo tempo valor de mito e de rito, a escrita. Efetivamente, a escrita substitui as representaes tradicionais que autorizavam o presente por um trabalho representativo que articula num mesmo espao a ausncia e a produo. Na sua forma mais elementar, escrever construir uma frase percorrendo um lugar supostamente em branco, a pgina. Mas a atividade que re-comea a partir de um tempo novo separado dos antigos, e que se encarrega da construo de uma razo neste presente, no ela a historiografia? H quatro sculos, no Ocidente, me parece que "fazer a histria" remete escrita. Pouco a pouco ela substitui todos os mitos da antiguidade por uma prtica significante. Como prtica (e no como os discursos que so o seu resultado), ela simboliza uma sociedade capaz de gerir o espao que ela, se d, de substituir a obscuridade do corpo vivido pelo enunciado de um "querer saber" ou de um "querer dominar" o corpo, de transformar a tradio recebida em texto produzido, finalmente de constituir-se pgina em branco que ela mesma possa escrever. Prtica ambiciosa, mvel, utpica tambm, ligada incansvel instaurao de campos "prprios" onde inscrever um querer em termos de razo. Ela tem valor de modelo cientfico. No se interessa por uma "verdade" escondida que seria necessrio encontrar; ela constituiu smbolo pela prpria relao entre um espao novo ,recortado no tempo e um modus operandi que fabrica "cenrios" susceptveis de organizar prticas num discurso hoje [Pg. 017] inteligvel aquilo que propriamente "fazer histria " Indissocivel, at agora, do destino da escrita no Ocidente moderno e contemporneo, a historiografia "tem, entretanto, esta particularidade de apreender a inveno escriturria na sua relao com os elementos que ela recebe, de operar onde o dado deve ser transformado em construdo, de construir as representaes com os materiais passados, de se situar, enfim, nesta fronteira do presente onde simultaneamente preciso fazer da tradio um passado (exclu-la) sem perder nada dela (explor-la por intermdio de mtodos novos).

Histria e poltica: um lugar.

Supondo-se um distanciamento da tradio e do corpo social, a historiografia se apia, em ltima instncia, num poder que se distingue efetivamente do passado e do todo da sociedade. O `fazer histria" se apia num poder poltico que criou um lugar limpo (cidade, nao, etc.) onde um querer pode e deve escrever (construir) um sistema (uma razo que articula prticas). Constituindo-se espacialmente e distinguindo-se sob a forma de um querer autnomo, o poder poltico, nos sculos XVI e XVII, tambm d lugar a exigncias do pensamento. Duas tarefas se impem, particularmente importantes, do ponto de vista da historiografla, a qual vo transformar atravs de juristas e de "politistas". De um lado o poder deve se legitimar, simulando acrescentar fora que o efetiva uma autoridade que o torna crvel. De outro lado, a relao entre um "querer fazer histria" (um sujeito da operao poltica) e o "meio ambiente" sob o qual se recorta um poder de deciso e de ao pede uma anlise das variveis colocadas em jogo por toda interveno que modifica esta relao de foras, uma arte de manipular a complexidade em frao de objetivos e, portanto, um clculo das relaes possveis entre um querer (aquele do prncipe) e um quadro (os dados de uma situao). Nisto possvel reconhecer dois traos da "cincia" que constroem, do sculo XVI ao XVIII, os "historigrafos"; freqentemente juristas e magistrados, junto ao e a servio do prncipe, a partir de um "lugar" privilegiado onde, para a "utilidade" do Estado e do "bem pblico" devem fazer concordar a veracidade da letra e a eficcia do poder "a primeira dignidade da literatura" e a capacidade de um "homem de governo". De um lado, este discurso autoriza a fora que exerce o poder; ele a prov de uma genealogia familiar, poltica ou moral; d crdito utilidade presente do prncipe quando a transforma em "valores" que organizam a representao do passado. Por [Pg. 018] outro lado, o quadro constitudo por este passado, e que o equivalente dos "cenrios" atuais da prospectiva, formula modelos praxeolgicos e, atravs de uma srie de situaes, uma tipologia das relaes possveis entre um querer concreto e as variantes conjunturais; analisando as derrotas e as vitrias, ele esboa uma cincia das prticas do poder. Em virtude disto, no se contenta em justificar historicamente o prncipe oferecendo-lhe um brazo genealgico. uma "lio" dada por um tcnico da administrao poltica.

Desde o sculo XVI ou, para usar referncias bem precisas, aps Maquiavel e Guichardin, a historiografia deixa de ser a representao de um tempo providencial, quer dizer, de uma histria decidida por um sujeito inacessvel e compreensvel apenas atravs dos signos que d de sua vontade. Ela toma a posio do sujeito da ao a do prncipe, a que tem como objetivo "fazer histria" : Confere inteligncia a funo de modalizar os jogos possveis entre um querer e as realidades das quais se distingue. Sua prpria definio lhe fornecida por uma razo de Estado: construir um discurso coerente que particularize os "golpes" de que um poder capaz em funo de dados de fato, graas a uma arte de "tratar" os elementos impostos por um "meio ambiente" : Esta cincia estratgica por seu objeto, a histria poltica; ela o igualmente noutro terreno, por seu mtodo de manejo dos dados, arquivos ou documentos.

Entretanto, por uma espcie de fico que o historiador se d este lugar. Com efeito, ele no o sujeito da operao da qual o tcnico. No faz a histria, pode apenas fazer histria: essa formulao indica que ele assume parte de uma posio que no a sua e sem a qual um novo tipo de anlise historiogrfica no lhe teria sido possvel Est apenas "junto" do poder. Recebe, tambm, dele, sob formas mais ou menos explcitas, as diretrizes que, em todos os pases modernos, conferem histria desde as teses at os manuais a tarefa de educar e de mobilizar. Seu discurso ser magisterial sem ser de mestre, da mesma forma que dar lies de como governar sem conhecer as responsabilidades nem os riscos de governar. Pensa o poder que no possui Sua anlise se desdobra "ao lado" do' presente, numa encenao do passado anloga que o projetista produz em termos de futuro, defasada tambm com relao ao presente.

Por se encontrar to prximo dos problemas polticos, porm, sem estar no lugar onde se exerce o poder poltico, a historiografia goza de um estatuto ambivalente que se mostra, mais visivelmente, na sua arqueologia moderna. Estranha situao, ao mesmo tempo crtica e fictcia. Ela est indicada com particular nitidez nos Discorsi e nas Istorie fiorentine de [Pg. 019] MaquiaveL Quando o historiador busca estabelecer, no lugar do poder, as regras da conduta poltica e as melhores instituies polticas, representa o prncipe que no ; analisa o que deveria fazer o prncipe. Esta a fico que abre ao seu discurso o espao onde se inscreve. Fico efetiva que por ser ao mesmo tempo o discurso do senhor e do servidor de ser permitida pelo poder e defasada com relao a ele, numa posio onde o tcnico, resguardado, como mestre de pensamento pode tornar a representar problemas de prncipe. Ele depende do "prncipe de fato "e produz o `prncipe possveli. Deve, pois, fazer como se o poder efetivo fosse dcil sua lio, ao mesmo tempo que contra toda evidncia, esta lio espera do prncipe que este se introduza numa organizao democrtica De modo que esta fico questiona e torna quimrica a possibilidade, para a anlise poltica, de encontrar seu prolongamento na prtica efetiva do poder. Nunca o "prncipe possvel"; construdo pelo discurso, ser o "prncipe de fato". Nunca ser ultrapassado o fosso que separa a realidade do discurso e que devota este ltimo futilidade, pelo prprio fato de ser rigoroso.

Frustrao originria que tornar fascinante para o historiador a efetividade da vida poltica (da mesma maneira, inversamente; o homem poltico ser levado a tomar a posio de historiador e a representar aquilo que fez para o "pensar" e autorizar), esta "fico" se traduz tambm o fato de que o historiador analisa situaes l onde, para um poder, se tratava de objetivos a realizar. Um recebe como j feito aquilo que o poltico deve fazer. Aqui o passado a conseqncia de uma falta de articulao com o "fazer a histria" O irreal se insinua nesta cincia da ao, usando a fico que consiste em fazer de conta que se o sujeito da operao, ou na atividade que refaz a poltica em laboratrio e substitui pelo sujeito de uma operao historiogrfica o sujeito de uma operao histrica. Os Arquivos compem o "mundo" deste jogo tcnico, um mundo onde se reencontra a complexidade, porm, triada e miniaturizada e, por tanto, formalizvel. Espao preciso em todos os sentidos do termo; de minha parte veria a o equivalente profissionalizado e escriturrio daquilo que representam os jogos na experincia comum de todos os povos, quer dizer, das prticas atravs das quais cada sociedade explicita, miniaturiza, formaliza suas estratgias mais fundamentais, e representa-se assim, ela mesma, sem os riscos nem as responsabilidades de uma histria a fazer.

No caso da historiografia, a fico se reencontra, ao final, no produto da manipulao e da anlise. O relato pretende uma encenao do passado, e no o campo circunscrito onde se efetua uma operao defasada [Pg. 020] com relao ao poder. Este j o caso dos Discorsi: Maquiavel os apresenta como um comentrio de Tito-Lvio. De fato se trata de um "faz-deconta"*. O autor sabe que os princpios em nome dos quais erige as instituies romanas como modelo "despedaam" a tradio e que seu empreendimento "sem precedente". A histria romana, referncia comum e assunto agradvel nas discusses florentinas, lhe forneceu um terreno pblico onde tratar de poltica no lugar do prncipe. O passado o . lugar de interesse e de prazer que situa, fora dos problemas do prncipe, ao lado da "opinio" e da "curiosidade" do pblico, a cena onde o historiador representa seu papel de tcnico-substituto do prncipe. O afastamento com relao ao presente mostra o lugar onde se produz a historiografia, ao lado do prncipe e prximo ao pblico, representando o que um faz e o que agrada ao outro, porm, sem ser identificvel nem com um nem com o outro. O passado , tambm, fico, do presente. O mesmo ocorre em todo verdadeiro trabalho historiogrfico. A explicao do passado no deixa de marcar a distino entre o aparelho explicativo, que est presente, e o material explicado, documentos relativos a curiosidades que concernem aos mortos. Uma racionalizao das prticas e o prazer de contar as lendas de antigamente ("o encanto da histria", dizia Marbeau) as tcnicas que permitem gerir a complexidade do presente, e a terna curiosidade que cerca os mortos da "famlia" se combinam no mesmo texto para dele fazer simultaneamente a "reduo" cientfica e a metaforizao narrativa das estratgias de poder prprias de uma atualidade.

O real que se inscreve no discurso historiogrfico provm das determinaes de um lugar. Dependncia com relao a um poder estabelecido em outra parte, domnio das tcnicas concernentes s estratgias sociais, jogo com os smbolos e as referncias que legitimam a autoridade diante do pblico so as relaes efetivas que parecem caracterizar este lugar da escrita. Colocada do lado do poder, apoiada nele, mas a uma distncia crtica; tendo em mo, imitados pela prpria escrita, os instrumentos racionais das operaes modificadoras dos equilbrios de fora a ttulo de uma vontade conquistadora; reunindo as massas de longe (por detrs da separao poltica e social que as "distingue"), reinterpretando as referncias tradicionais que existem nelas; a historiografia francesa moderna , em sua quase totalidade, burguesa e como estranh-lo? racionalista.

Esta situao de fato est escrita no texto. A dedicatria mais ou [Pg. 021] menos discreta ( necessrio manter a fico do passado para que tenha "lugar" o jogo sbio da histria), concede ao discurso seu estatuto de estar endividado com relao ao poder que, ontem era o do principe e, hoje, por delegao, o da instituio cientfica do Estado ou do seu epnimo, o patro. Este "remetimento" designa o lugar autorizados o referente de uma fora organizada, no interior e em funo da qual, a anlise tem lugar. Porm, o prprio relato, corpo da fico, assinala tambm, atravs dos mtodos empregados e do contedo tratado, de um lado, uma distncia com relao a esta dvida, e por outro lado, os dois pontos de apoio que permitem esta distncia: um trabalho tcnico e um interesse pblico, o historiador recebendo da atualidade os meios deste trabalho e a determinao de seu interesse.

Por possuir esta estruturao triangular, a historiografia no pode, ento, ser pensada nos termos de uma oposio ou de uma adequao entre um sujeito e um objeto: isto no seno o jogo da fico que constri Tampouco se poderia supor, como ela s vezes leva a crer, que um "comeo'; anterior no tempo, explicaria o presente: alis, cada historiador situa o corte inaugurador l onde pra sua investigao, quer dizer, nas fronteiras fixadas pela sua especialidade na disciplina a que pertence. Na verdade, parte de determinaes presentes. A atualidade o seu comeo real J o dizia Lucien Febvre no seu estilo muito prprio: "o Passado", escrevia ele, " uma reconstituio das sociedades e dos seres humanos de outrora por homens e para homens engajados na trama das sociedades humanas de hoje. Que este lugar impea ao historiador a pretenso de falar em nome do Homem, Febvre no o teria admitido, porque ele acreditava estar a obra histrica isenta da lei que a submete lgica de um lugar de produo, e no apenas "mentalidade" de uma poca num "progresso" de tempo. Mas sabia, como todo historiador, que escrever encontrar a morte que habita este lugar, manifest-la por uma representao das relaes do presente com seu outro, e combat-la atravs do trabalho de dominar intelectualmente a articulao de um querer particular com foras atuais. Por todos estes aspectos, a historiografia envolve as condies de possibilidade de uma produo, e o prprio assunto sobre o qual no cessa de discorrer.

A produo e/ou a arqueologia.

Na verdade a produo seu princpio de explicao quase universal, j que a pesquisa historiadora se apossa de todo documento como sintoma [Pg. 022] daquilo que o produziu. A bem dizer, no to fcil "apreender do prprio produto a ser decifrado e ler o encadeamento dos atos produtores. Num primeiro nvel de anlise, pode-se dizer que a produo nomeia uma questo surgida no Ocidente com a prtica mtica da escrita. At ento a histria se desenvolve introduzindo sempre unia clivagem entre a matria (os fatos, a simplex historia) e o ornamentum (a apresentao, a encenao, o comentrio). Ela pretende reencontrar uma veracidade dos fatos sob a proliferao das "lendas" e, assim, instaurar um discurso de acordo com a "ordem natural" das coisas, ali onde proliferavam as misturas da iluso e do verdadeiro. O problema no mais se coloca da mesma maneira a. partir do momento em que o "fato" deixa de funcionar como o "signo"de uma-verdade, quando a "verdade" muda de estatuto, deixa pouco a pouco de ser aquilo que se manifesta para tornar-se aquilo que se produz, e adquire deste modo uma forma "escrituraria". A idia de "produo" transpe a concepo antiga de uma "causalidade" e distingue dois tipos de problemas: por um lado, o remetimento do "fato" aquilo que o tornou possvel; por outro lado, uma coerncia ou um "encadeamento" entre os fenmenos constatados. A primeira questo se traduz em termos de gnese e privilegia indefinidamente aquilo que est "antes"; a segunda se exprime sob forma de sries, cuja constituio provoca, no historiador, o sofrimento quase obsessivo de preencher as lacunas e substitui, mais ou menos metaforicamente, a estrutura. Os dois elementos, freqentemente reduzidos a no serem seno uma filiao e uma ordem, se conjugam no "quase conceito" de temporalidade. verdade que, sob este aspecto, " apenas no momento em que se dispusesse de um conceito especfico e plenamente elaborado de temporalidade que se poderia abordar o problema da histria". Enquanto isso, a temporalidade serve para designar a necessria conjugao dos dois problemas, e para expor ou representar, num mesmo tempo, as maneiras pelas quais o historiador satisfaz a dupla demanda de dizer o que existe antes e colocar fatos onde esto lacunas. Ela fornece a moldura vazia de uma sucesso linear que responde formalmente interrogao sobre o incio e exigncia de unia ordem. Ela , ento, menos o resultado da pesquisa do que a sua condio: a trama colocada a priori pelos dois fios atravs dos quais o tecido histrico cresce pela simples ao de tapar os buracos. Impossibilitado de transformar em objeto de estudo aquilo que a seu postulado, o historiador "substitui ao conhecimento do tempo o saber do que est no tempo".

Deste ponto de vista, a historiografia seria apenas um discurso filosfico que se desconhece a si mesmo; ocultaria as temveis interrogaes que [Pg. 023] traz em si, substituindo-as pelo trabalho indefinido de fazer "como se" as respondesse. Na. verdade, este recalcado no deixa de retornar no seu trabalho, e podemos reconhec-lo entre outros sinais, naquilo que a inscrevem a referncia a uma "produo" e/ou o questionamento colocado sob o signo de uma "arqueologia":

A fim de que, atravs da produo, no se contente apenas em nomear uma relao necessria, porm desconhecida, entre os termos conhecidos, quer dizer, de designar aquilo que suporta o discurso histrico, mas no constitui o objeto da anlise, necessrio reintroduzir o que Marx lembrava nas 'Teses sobre Feuerbach ", a saber que "o objeto, a realidade, o mundo sensvel" devem ser apropriados "enquanto atividade humana concreta"; "enquanto prtica". Retomo ao fundamental: "Para viver necessrio, antes de tudo, beber, comer, morar, vestir-se e ainda algumas outras coisas. O primeiro fato histrico (die erste Geschichtliche Tat) , pois, a produo (die Erzeugung) dos meios que permitem satisfazer estas necessidades, a produo (die Produktion) da prpria vida material, e isto mesmo um fato histrico (Geschichtliche Tat), uma condio fundamental (Grundbedingung) de toda a histria, que se deve, hoje como h milhares de anos, preencher dia aps dia... " A partir desta base, a produo se diversifica segundo estas necessidades sejam ou no satisfeitas facilmente, de acordo com as condies nas quais sejam satisfeitas. Sempre existe produo, mas "a produo em geral uma abstrao". Quando, pois, falamos de produo, trata-se sempre da produo num estado determinado da evoluo social da produo de indivduos vivendo em sociedade... Por exemplo, nenhuma produo possvel sem um instrumento de produo...; nenhuma, sem trabalho passado, acumulado... A produo sempre um ramo particular da produo". Enfim, " sempre um corpo social determinado, um sujeito social, que exerce sua atividade num conjunto mais ou menos grande, mais ou menos rico de esferas da produo. Assim, a anlise retorna s necessidades, s organizaes tcnicas, aos lugares e s instituies sociais onde, como diz Marx a propsito do fabricante de pianos, "s produtivo o trabalho que produz capital.

Eu me detenho nesses textos clssicos, e os repito, porque tornam precisa a interrogao que encontrei, partindo da histria dita das "idias" ou das "mentalidades ": a relao que pode estabelecer-se entre lugares determinados e discursos que neles se produzem. Pareceu-me possvel transpor aqui o que Marx chama de "o trabalho produtivo no sentido econmico do termo ": "o trabalho no produtivo a menos que produza seu contrrio", quer dizer, capital. Sem dvida o discurso uma forma [Pg. 024] de "capital" investido nos smbolos, transmissvel, susceptvel de ser deslocado, acrescido ou perdido. claro que esta perspectiva tambm vale para o trabalho do historiador que a utiliza como instrumento e que a historiografia, neste sentido, ainda depende daquilo que deve tratar: a relao entre um lugar, um trabalho e este "aumento de capital" que pode ser o discurso. O fato de que em Marx o discurso esteja na categoria daquilo que era o "trabalho improdutivo" no impede encarar a possibilidade de tratar nestes termos as questes propostas historiografia e por ela.

Isto j , talvez, dar um contedo particular a esta "arqueologia", que Michel Foucault envolveu com renovado prestgio. De um lado, nascido historiador, na histria religiosa, determinado pelo dialeto daquela especialidade, eu me interrogava sobre o papel que poderiam ter tido, na organizao da sociedade "escriturria" moderna, as produes e as instituies religiosas das quais tomou o lugar, transformando-as. A arqueologia foi para mim o modo atravs do qual tentei particularizar o retorno de um "reprimido", um sistema de Escritas do qual a modernidade fez um ausente, sem poder, entretanto, elimin-lo. Esta "anlise" permitia, ao mesmo tempo, reconhecer no trabalho presente um "trabalho passado, acumulado" e ainda determinante. Sob essa forma, que fazia aparecer, no sistema das prticas, continuidades e distores, eu procedia tambm minha prpria anlise. Esta no tem interesse autobiogrfico, porm, restaurando sob outra forma a relao de produo que um lugar mantm com um produto, levou-me a um exame da prpria historiografia. Entrada do sujeito no seu texto: no com a maravilhosa liberdade que permite a Martin Duberman fazer-se, no seu discurso, de interlocutor dos seus personagens ausentes e de contar-se, contando-os, mas maneira de uma lacuna intransponvel que, no texto, traz luz uma falta e faz andar ou escrever, sempre, e cada vez mais.

Esta lacuna, que assinala o lugar no texto e questiona o lugar pelo texto, remete, finalmente, quilo que a arqueologia designa sem o poder dizer: a relao do logos com uma arch, "princpio" ou "comeo" que seu outro. Este outro, sobre o qual se apia e que a torna possvel, a historiografia sempre pode coloc-lo antes; lev-lo cada vez mais para trs, ou ainda, design-lo atravs daquilo que, do real, autoriza a representao, mas no lhe idntico. A arch no nada daquilo que pode ser dito. Ela s se insinua no texto pelo trabalho da diviso ou com a evocao da morte.

O historiador tambm s pode escrever conjugando, nesta prtica, o "outro" que o faz caminhar e o real que ele no representa seno por [Pg. 025] fices. Ele historigrafo. Endividado pela experincia que tenho disto, gostaria de homenagear esta escrita da histria.

[Pgs. 026 e 027: notas]

[Pgs. 028] Pgina em branco[Pgs. 029] Ttulo[Pgs. 030] Pgina em branco

Primeira Parte

AS PRODUES DO LUGAR

Captulo IFAZER HISTRIAProblemas de mtodo e problemas de sentido

A histria religiosa o campo de um confronto, entre a historiografia e a arqueologia da qual parcialmente tomou o. lugar. Secundariamente, permite analisar a relao que entrelaa a histria com a ideologia da qual deve dar conta em termos de produo. As duas questes se entrecruzam e podem ser consideradas em conjunto no setor estreitamente circunscrito do "tratamento" da teologia por mtodos prprios histria. De imediato, o historiador considera a teologia como uma ideologia religiosa que funciona num conjunto mais vasto e supostamente explicativo. Pode ele reduzi-la ao resultado desta operao? Sem dvida que no. Porm, como objeto de seu trabalho, a teologia se lhe apresenta sob duas. formalidades igualmente incertas na historiografia; um fato religioso; um fato de doutrina. Examinar, atravs deste caso particular, a maneira pela qual os historiadores tratam hoje destes dois tipos de fatos e particularizar quais os problemas epistemolgicos que se abrem assim o propsito deste breve estudo.

A histria, uma prtica e um discurso.

Esta anlise ser, evidentemente, determinada pela prtica bastante localizada da qual pude lanar mio, quer dizer, pela localizao do meu, trabalho ao mesmo tempo um perodo (a histria dita "moderna"), um objeto (a histria religiosa) e um lugar (a situao francesa). Este limite capital. A evidenciao da particularidade deste lugar de onde falo, efetivamente prende-se ao assunto de que se vai tratar e ao ponto de vista atravs [Pg. 031] do qual me proponho examin-lo. Trs "postulados" individualizam um e outro. Eles devem ser francamente colocados como tais (mesmo que paream resultar com evidncia da prtica histrica atual) j que no sero objeto de uma demonstrao.

1) Sublinhar a singularidade de cada anlise questionar a possibilidade de uma sistematizao totalizante, e considerar como essencial ao problema a necessidade de uma discusso proporcionada a uma pluralidade de procedimentos cientficos, de funes sociais e de convices fundamentais. Por a se encontra, j esboada, a funo dos discursos que podem esclarecer a questo, e que se inscrevem, eles prprios em seguimento a ou ao lado de muitos outros: enquanto falam da histria, esto sempre situados na histria.

2) Estes discursos no so corpos flutuantes em um englobante que se chamaria a histria (o "contexto"!). So histricos porque ligados a operaes e definidos por funcionamentos. Tambm no se pode compreender o que dizem independentemente da prtica de que resultam. De maneiras diferentes a existe uma boa definio de historiografia contempornea (mas tambm da teologia,- inclusive e particularmente a mais tradicional). De qualquer maneira uma e outra sero apreendidas nesta articulao entre um "contedo" e uma operao. Alm do que esta perspectiva caracteriza, hoje, os procedimentos cientficos, por exemplo, aquele que, em funo de "modelos", ou em termos de "regularidades", explica os fenmenos ou documentos, tornando manifestas regras de produo e possibilidades de transformao. Porm, mais simplesmente, levar a srio expresses carregadas de sentido "fazer histria", "fazer teologia" quando se mais propriamente levado a suprimir o verbo (o ato produtor) para privilegiar o complemento (objeto produzido).

3) Por esta razo, entendo como histria esta prtica (uma "disciplina"), o seu resultado (o discurso) ou a relao de ambos sob a forma de uma "produo". Certamente, em seu uso corrente, o termo histria conota, sucessivamente, a cincia e seu objeto a explicao que se diz e a realidade daquilo que se passou ou se passa. Outros domnios no apresentam a mesma ambigidade: o francs no confunde numa mesma palavra a fsica e a natureza. O prprio termo "histria" j sugere uma particular proximidade entre a operao cientfica e a realidade que ela analisa. Mas o primeiro destes aspectos ser nossa entrada no assunto, por diversas razes: porque a espessura e a extenso do "real" no se designam, nem se lhes confere sentido seno em um discurso; porque esta restrio no emprego da palavra "histria" indica seu correspondente (a cincia histrica) [Pg. 032] cincia, ou pelo menos funo particular que a teologia; finalmente para evitar a floresta virgem da Histria, regio de "brumas" onde proliferam as ideologias e se corre o risco de jamais reencontrar-se. Pode ser tambm que, atendo-se ao discurso e sua fabricao, se apreenda melhor a natureza das relaes que ele mantm com o seu outro, o real. A linguagem, no tem ela como regra implicar, embora colocando-a como outra que no ela mesma, a realidade da qual fala?

Partindo assim, de prticas e discursos historiogrficos eu me proponho considerar sucessivamente as questes seguintes:

1) O tratamento dado pela historiografia contempornea ideologia religiosa, obriga ao reconhecimento da ideologia j investida na prpria histria.

2) Existe uma historicidade da histria. Ela implica no movimento que liga uma prtica interpretativa a uma prtica social.

3) A histria oscila, ento, entre dois plos. Por um lado remete a uma prtica, logo, a uma realidade, por outro um discurso fechado, o texto que organiza e encerra um modo de inteligibilidade.

4) Sem dvida a histria o nosso mito. Ela combina o "pensvel" e a origem, de acordo com o modo atravs do qual uma sociedade se compreende.

I. UM INDICIO: O TRATAMENTO DA

IDEOLOGIA RELIGIOSA EM HISTRIA

A relao entre histria e teologia, inicialmente, um problema interno da histria. Qual o significado histrico de uma doutrina no conjunto de um tempo? Segundo quais critrios compreend-la? Como explic-la em funo dos termos propostos pelo perodo estudado? Questes particularmente difceis e controvertidas, quando no nos contentamos com uma pura anlise literria dos contedos ou da sua organizao e quando, por, outro lado, recusamos a facilidade de considerar a ideologia apenas como um epifenmeno social, suprimindo-se a especificidade da afirmao doutrinria.

Por exemplo, que relao estabelecer entre a espiritualidade ou a teologia jansenista e as estruturas scio-culturais ou a dinmica social da poca. Existe todo um leque de respostas. Assim, para Orcibal, o que se deve procurar uma experincia radical em seu estado primeiro, no texto mais primitivo. Porm, mesmo a, ela se aliena, nas imposies de uma linguagem [Pg. 033] contempornea; a histria de sua difuso ser, pois, a histria de uma degradao progressiva. Mesmo remontando incessantemente s fontes mais rimitivas, perscrutando nos sistemas histricos e lingsticos a experincia que escondem ao se desenvolverem, o historiador nunca alcana a sua origem,, mas apenas os estgios sucessivos da sua perda. Contrariamente, Goldmann l na doutrina jansenista o resultado e o signo da situao econmica na qual se encontra uma categoria social: perdendo seu poder, os magistrados se voltam para o cu da predestinao e do Deus escondido, e revelam, assim, a nova conjuntura poltica que lhes fecha o futuro; aqui a espiritualidade, sintoma daquilo, que no diz, remete anlise de uma mutao econmica e a uma sociologia do fracasso.

Os trabalhos sobre Lutero apresentam a mesma diversidade de posies: ora referem a doutrina experincia de juventude que seria seu segredo inefvel e organizador (Strohl, Febvre, por exemplo); ora se inscrevem no continuum de uma tradio intelectual (Grisar, Seeberg, etc.); ora vem nela o efeito de uma modificao nas estruturas econmicas (ngels, Steinmertz, Stern) ou a tomada de conscincia de uma mutao scio-cultural (Garin, Moeller, etc.), ou o resultado de um conflito entre o adolescente e a sociedade dos adultos (Erikspn). Finalmente, far-se- do Luteranismo a emergncia da inquietao religiosa prpria de um tempo (cf. Lortz, Delumeau), o acabamento de uma promoo dos "leigos" contra os clrigos (N. Z. Davis), um episdio inscrito no prosseguimento das reformas evangelistas que balizam a histria da Igreja, ou a vaga criada no Ocidente pela irrupo de um acontecimento nico (Holl, Bainton, Baarth)? Pode-se encontrar todas estas interpretaes e muitas outras.

Est claro que elas so relativas resposta que cada autor d a questes anlogas no presente. Ainda que isto seja uma redundncia necessrio lembrar que uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela anlise dos documentos, sempre dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, tanto uma quanto a outra se organizam em funo de problemticas impostas por uma situao. Elas so conformadas por premissas, quer dizer, por "modelos" de interpretao ligados a uma situao presente do cristianismo.

O modelo "mstico" e o modelo "folklrico": uma essncia escondida.

Globalmente, desde h trs sculos, no que concerne Frana, a histria religiosa parece marcada por duas tendncias: uma, originria das correntes espirituais, fixa o estudo na anlise das doutrinas; a outra, marcada [Pg. 034] pelas "Luzes", coloca a religio sob o signo das supersties. Em ltima anlise, teramos, l, verdades emergindo dos textos, e, aqui, "erros" ou um folklore abandonado na rota do progresso.

Sem ir muito longe, pode-se dizer que durante a primeira metade do sculo XX, a religio no aproveitou nada das novas correntes que mobilizaram os historiadores medievalistas ou "modernistas", por exemplo a anlise scio-econmica de Ernest Labrousse (1933-1941). Ela era muito mais o objeto que disputavam exegetas e historiadores das origens, crists. Quando intervinha na Histria das Mentalidades de Lucien Febvre (1932-1942), era como um ndice de coerncia prprio de uma sociedade passada (e, sobretudo, superado graas ao progresso), numa perspectiva muito marcada pela etnologia das, sociedades "primitivas".

Paradoxalmente, dois nomes poderiam simbolizar o lugar mais ou menos explicitamente dado anlise das crenas durante o entre-duas-guerras e o deslocamento. que nele se produziu: Henri Bremond e Arnold Van Gennep; um, inscrito na tradio da histria literria, atesta uma perda de confiana nas doutrinas, referindo-as a um sentido "mstico", a uma "metafsica" oculta dos santos ; o -outro, escrupuloso observador do folklore religioso, v a o ressurgimento de um imemorial das sociedades, o retorno de um irracional, de um originrio e quase de um recalcado. Suas posies no deixam de ter analogias, ainda que enunciadas em termos de mtodos bem distantes um do outro. O primeiro remete o sentido da literatura que estuda a um fundo mstico do homem, a uma "essncia" que e difracta, exprime e compromete com os sistemas religiosos institucionais ou doutrinrios. Os fatos doutrinrios so, pois, dessolidarizados do seu sentido, que permanece oculto em "profundezas", no fim das contas, estranhas aos cortes intelectuais ou sociais. A seu modo, inspirado na antropologia americana ou alem, e cada vez mais na escola de Jung, Van Gennep revela nos folklores religiosos os signos de arqutipos inconscientes e de estruturas antropolgicas permanentes. Atravs de uma mstica sempre ameaada (segundo Bremond) ou de um folklore (para Van Gennep), o religioso assume a imagem do marginal e do atemporal, nele, uma natureza profunda, estranha histria, se combina com aquilo que uma sociedade rejeita para suas fronteiras.

Este modelo, bem visvel nesses dois autores, se reencontra depois sob outras formas (o sagrado, o pnico, o inconsciente coletivo, etc.).

Explica- se, sem dvida, pela posio que tinha o cristianismo na sociedade francesa antes de 1939 (partilhado entre um movimento de interiorizao com o Primaut du Spirituel de Maritain (1927) ou Esprit de [Pg. 035] Mounier (1932) e um positivismo religioso dos tradicionalistas). Explica tambm que a' histria religiosa tenha sido "pensvel" com dificuldade dentro de uma histria social e que tenha permanecido "aberrante" com relao histria que se inventava, particularmente com relao histria scio-econmica de Henri See (1921-1929), de Simiand (1932), de Hamilton (1934-1936), de Marc Bloch (1939-1940) ou de Ernest Labrousse. Porm, dirigindo cada vez mais as pesquisas que inspirava para o estudo das correntes espirituais ou da cultura popular, este modelo abria, histria religiosa, um belo fruto. A cincia constitua um campo de puros "fenmenos" religiosos, cujo sentido se retirava para uma outra ordem, oculta. Ela os situava ao lado da etnologia, e ligava um exotismo do interior a um essencial perdido, no territrio do imaginrio ou do simblico social. Ela podia, assim, buscar na religio a metfora de um fundo a-histrico da histria.

O modelo sociolgico: a prtica e o saber.

Tambm preciso ligar a uma arqueologia recente a importncia que tomou, com Gabriel Le Bras, a anlise das prticas religiosas. Ligado ao desenvolvimento da sociologia, da etnologia, mas tambm do folklorismo, este modelo de interpretao representa uma reao francesa em favor das prticas sociolgicas (pesquisas, etc.), e contra as tipologias tericas de Troeltsch (1912), de Weber (1920) ou de Wach (1931). Supe igualmente, porm, ao lado do cristianismo, uma situao nova que remonta poca "moderna". Um passado freqenta este presente.

Com efeito, a prtica, provavelmente, no tem o mesmo sentido no curso dos diferentes perodos histricos. Durante o correr do sculo XVII, ela adquire uma funo que possua, em muito menor grau, no sculo XIII ou no sculo XIV. O esboroamento das crenas em sociedades que deixam de ser religiosamente homogneas toma ainda mais necessrias as referncias objetivas: o crente se diferencia do incru ou o catlico do protestante pelas prticas. Tornando-se um elemento social de diferenciao religiosa, a prtica ganha uma pertinncia religiosa nova. A gente se reagrupa e a gente se conta em funo deste critrio.

Hoje, quando toma a prtica como uma mensurao quantitativa da religio, a sociologia faz ressurgir na cincia uma organizao histrica da conscincia crist (que por outro lado no era prpria do jansenismo). Acentua, tambm, um pressuposto j latente nessas origens velhas de quatro sculos: uma clivagem entre os gestos objetivos e a crena subjetiva. J [Pg. 036] no sculo XVII, a crena comea a se dissociar da prtica fenmeno que no cessou de se acentuar desde ento. Para se contarem e para marcar rupturas, os reformistas desconfiavam das doutrinas e insistiam nos atos sociais. Presentemente, nos trabalhos que levam em conta os gestos, o interesse se volta para as prticas, porque elas representam uma realidade social, e tem como reverso uma desvalorizao cientfica de sua significao dogmtica (remetida aos "preconceitos" desmistificados pelo progresso ou s convices privadas impossveis de introduzir numa anlise cientfica). A lgica de uma sociologia acresce, pois, o cisma entre os fatos religiosos sociais e as doutrinas que pretendem explicar-lhes o sentido.

Em seguida, um olhar sociolgico transformou as prprias crenas em fatos objetivos. Uma sociologia do conhecimento religioso desenvolveu-se na proporo da retrao do sentido para "o interior". O mesmo corte se encontra, ento, no terreno, aparentemente oposto ao precedente, das pesquisas consagradas ideologia. Porm, tampouco a podemos dissociar, em nossa relao dos historiadores com o sculo XVII, o conhecimento que temos dela e a influncia que exerce sobre nossos mtodos de pesquisa. O olhar sociolgico voltado para as ideologias e os aparelhamentos conceituais que organizam nossa anlise cultural (por exemplo, a distino entre elites e massas, o critrio de "ignorncia" para julgar a "descristianizao", etc. so ainda testemunhas da funo social que o saber recebeu no decorrer do sculo XVII. Quando a diversidade dos Estados europeus sucedeu unanimidade religiosa da "cristandade", foi necessrio um saber que tomasse o lugar das crenas e permitisse definir cada grupo ou cada pas distinguindo-o dos outros. Nesses tempos da imprensa, da alfabetizao (ainda fraca) e da escolarizao, o conhecimento se torna um instrumento de unidade e de diferenciao: um corpus de conhecimentos ou um grau de saber recorta um corpo ou isola um nvel social, ao mesmo tempo que a ignorncia associada delinqncia como causa desta, ou massa como ao seu prprio indcio. O que novo no so estas' divises sociais, mas, o fato de que um saber ou uma doutrina constituam o meio de as colocar, ou de as manter ou de as trocar. Tambm entre Igrejas, as diferenas entre saberes tornam-se decisivas. A determinao daquilo que se conhece, quando se Catlico ou Reformado, fornece comunidade seu modo de identificao e distino. Os catecismos mudam, remodelados pela urgncia dessas definies que circunscrevem ao mesmo tempo os. contedos intelectuais e os limites scio-institucionais.

Hoje, trabalhos novssimos, como o de R. Taveneauxreconstituem as redes. scio-culturais, esboam as circulaes mentais e podem estabelecer [Pg. 037] a geografia de grupos ocultos, a partir dos traos e dos pontos de ressurgncia das idias religiosas, da mesma maneira pela qual se determinam circuitos fisiolgicos atravs das viagens de um elemento visvel na opacidade do corpo. Em suma, refazem caminhos trilhados ontem pelo uso que uma sociedade fazia do saber. Privilegiando nessas idias seu papel passado, explorando-as, por sua vez, como restos (e s vezes os nicos visveis) de cortes entre grupamentos, R. Taveneaux explicita a utilidade que j tinham ontem subrepticiamente o servio que prestavam s sociedades que as veiculavam , mas ao preo do seu sentido "doutrinal" aquele que lhe davam ainda os contemporneos ou aquele que elas podem manter. O desmembramento dos mtodos teve, desde ento, como efeito separar cada vez mais, em cada obra doutrinal, um "objeto" sociolgico visado pelo historiador e um "objeto" terico que parece abandonado a uma anlise literria.

Um modelo cultural: das "idias" ao "inconsciente coletivo".

Baczko o observou: "a histria das idias" nasceu de reaes comuns, particularmente contra o parcelamento que levou, no mbito de uma obra ou de um perodo, compartimentao das disciplinas. Assim, em lugar de fragmentar arbitrariamente a obra de Newton e de repartir suas parcelas entre especialidades diferentes, segundo tratem do Apocalipse, dos calendrios, da "filosofia natural" ou da tica, procuramos compreender sua unidade e seus princpios organizadores. Do mesmo modo recusamos explicar uma obra em termos de influncias, de esgotar assim um corpus, remetendo-o ao indefinido de suas origens, e de provocar, por esse recuo sem fim atravs de uma poeira de fragmentos, o desaparecimento das totalidades, das delimitaes, das rupturas que constituem a histria.

Como este estudo se confere os seus mtodos? Desde a criao, nos Estados Unidos, do Journal of the History of Ideas (1940) em New YorkLancaster, a mais antiga das revistas que lhe foram consagradas, este estudo busca a si mesmo. No tem sequer um nome: na Alemanha, a Geistesgeschichte; nos Estados Unidos, a Intelectual History; na Frana, a Histoire des Mentalits; na U.R.S.S., a Histria do Pensamento...

Baczko poderia, entre estas tendncias, reconhecer origens filosficas comuns, longinquamente hegelianas, atravs de Dilthey, Lukacs, Weber, Croce, Huizinga, Cassirer, Groethuysen, etc., at os anos 1920-1930. As idias tornam-se uma mediao entre o Esprito (o Geist) e a realidade scio-poltica. Supe-se que constituam um nvel onde se reencontrem o [Pg. 038] corpo da histria e.sua conscincia, o Zeitgeist . Entretanto, a simplicidade do postulado se decompe, diante da anlise, em problemas complexos e aparentemente insolveis. Por exemplo, qual o verdadeiro Newton? De que tipo a unidade que se postula, a de sua obra, e, portanto, a de um perodo? Que suporte fornece a tantas "idias" diferentes a unidade emprestada s "idias do tempo", "mentalidade" ou a uma "conscincia coletiva" contempornea?

Esta unidade procurada, quer dizer, o objeto cientfico, se presta discusso. Deseja-se ultrapassar a concepo individualista que recorta e rene os escritos segundo sua "pertena" a um mesmo "autor", que, ento, fornece biografia o poder de definir uma unidade ideolgica, e supe que a um homem corresponda um pensamento (como a arquitetura interpretativa que repete o mesmo singular nos trs andares do plano clssico: o Homem, a obra, o pensamento). Tentaram-se identificar as totalidades mentais histricas: por exemplo, a Weltanschauug em Max Weber (concepo do universo ou viso do mundo), o paradigma cientfico em T. S. Kuhn, a Unit Idea em A. O. Lovejoy, etc. Essas unidades de medida se referem ao que Lvi-Strauss chamar de a sociedade pensada em oposio sociedade vivida. Elas tendem a fazer ressaltar dos conjuntos "sancionados" por uma poca, quer dizer das coerncias recebidas, implicadas pelo "percebido" ou pelo "pensado" de um tempo, sistemas culturais suscetveis de fundar uma periodizao ou uma diferenciao dos tempos. Desta maneira se opera uma classificao do material na base dos incios e fins ideolgicos, ou daquilo que Bachelard chama de "rupturas epistemolgicas".

As ambigidades desses sistemas de interpretao foram vigorosamente criticadas, particularmente por Michel Foucault. Elas se prendem, essencialmente, ao estatuto incerto, nem carne nem peixe, dessas "totalidades" que no so legveis na superfcie dos textos, mas no interior deles, realidades invisveis que conduziriam os fenmenos. Em nome de qu supor e como determinar essas unidades a meio-caminho entre o consciente e o econmico? Elas ocupam o lugar de uma "alma coletiva" e permanecem como vestgio de um ontologismo. Logo sero substitudas por um "inconsciente coletivo". Na impossibilidade de poder ser realmente controlvel, esse sub-solo extensvel; pode se estender ou contrair vontade; tem a amplitude dos fenmenos a "compreender". De fato, mais do que ser um instrumento de anlise, representa a necessidade que tem dele o historiador; significa uma necessidade da operao cientfica, e no uma realidade apreensvel em seu objeto. [Pg. 039]

Esta concepo manifesta que impossvel eliminar do trabalho historiogrfico as ideologias que nele habitam. Porm, dando-lhes o lugar de um objeto, isolando-as das estruturas scio-econmicas, supondo, alm disso, que as "idias" funcionem da mesma maneira que essas estruturas, paralelamente e num outro nvel, a "histria das idias" no pode encontrar a inconsistente realidade na qual sonha descobrir uma coerncia autnoma, seno atravs da forma de um "inconsciente". O que ela manifesta realmente, o inconsciente dos historiadores, ou mais exatamente, do grupo ao qual pertencem. A vontade de definir ideologicamente a histria particularidade de uma elite social. Ela se fundamenta numa diviso entre as idias e o trabalho. Costuma negligenciar igualmente a relao entre as cincias e suas tcnicas, entre a ideologia dos historiadores e suas prticas, entre as idias e sua localizao ou as condies de sua produo nos conflitos scio-econmicos de uma sociedade, etc. Nada espantoso, portanto, que esta diviso, ressurgncia e reforo de um "elitismo" j bem definido em fins do sculo XVIII (Franois Furet, entre outros, acentuou-o freqentemente), tenha como smbolo a justaposio entre uma "histria das idias" e uma "histria econmica".

A procura de uma coerncia prpria a um nvel ideolgico remete, pois, ao lugar daqueles que a "elaboram no sculo XX. Gramsci, sem dvida, indica sua verdadeira proporo, quando, reexaminando a histria das idias, a substitui pela histria dos "intelectuais orgnicos", grupo particular, e do qual analisa a relao entre sua "posio" social e os discursos que eles produzem.

II. PRTICAS HISTRICAS E PRAXIS SOCIAL

O exame desses "modelos" (dos quais se poderia prolongar lista e a anlise) revela dois problemas conexos: a evanescncia da ideologia como realidade a explicar, e sua reintroduo como referncia em funo da qual se elabora uma historiografia. Enquanto objeto de estudo, ela parece eliminada ou sempre malograda pelos mtodos atuais de pesquisa. Por outro lado, ressurgiu como o pressuposto dos "modelos" que caracterizam um tipo de explicao; est implcita em cada sistema de interpretao, pelas pertinncias que ele retm, pelos procedimentos que lhe so adequados, pelas dificuldades tcnicas encontradas e pelos resultados obtidos. Dito de outra maneira, aquele que faz histria, hoje, parece ter perdido o meio de apreender uma afirmao de sentido como um objeto de seu trabalho, para [Pg. 040] encontrar essa afirmao no prprio modo de sua atividade. Aquilo que desaparece do produto aparece na produo.

Sem dvida, o termo ideologia no mais convm para designar a forma sob a qual a significao ressurgiu na tica ou no "olhar" do historiador. O uso corrente deste termo data do momento em que a linguagem se objetivou; quando, reciprocamente, os problemas de sentido foram deslocados do lado da operao e colocados em termos de escolhas histricas investidas no processo cientfico. Revoluo fundamental, preciso diz-lo imediatamente, pois ela substitui o fazer historiogrfico ao dado histrico. Ela transforma a pesquisa de um sentido desvendado pela realidade observada, em anlise das opes ou das organizaes de sentido implicadas por operaes interpretativas.

Isto no significa, de forma alguma, que a histria renuncia realidade e se volta para si mesma, contentando-se em observar os seus passos. Quer dizer, antes, ns o veremos, que a relao com o real mudou. E se o sentido no pode ser apreendido sob a forma de um conhecimento particular que seria extrado do real ou que lhe seria acrescentado, porque todo "fato histrico" resulta de uma prxis, porque ela j o signo de um ato e, portanto, a afirmao de um sentido. Este resulta dos procedimentos que permitiram articular um modo de compreenso num discurso de "fatos".

Antes de esclarecer esta situao epistemolgica, que no permite mais buscar o sentido sob a aparncia de uma ideologia a mais ou de um dado da histria, preciso lembrar os seus indcios na historiografia atual. Isto significa retomar, atravs dos estudos histricos, o problema levantado, anteriormente, pela tese clssica de Raymond Aron. Porm, no nos podemos contentar, como ele o fazia, em buscar a interpretao histrica apenas ao nvel da filosofia implcita dos historiadores, porque, ento, se chega a um jogo indefinido de idias relativizadas umas pelas outras, jogo reservado a uma elite e combinado com a manuteno de uma ordem estabelecida. A organizao de cada historiografia em funo de ticas particulares e diversas se refere a atos histricos, fundadores de sentidos e instauradores de cincias. Sob este aspecto, quando a histria leva em considerao o "fazer" ("fazer histria"), encontra ao mesmo tempo seu enraizamento na ao que "faz histria". Da mesma forma que o discurso, hoje, no pode ser desligado de sua produo, tampouco o pode ser a prxis poltica, econmica ou religiosa, que muda as sociedades e que, num momento dado, toma possvel tal ou qual tipo de compreenso cientfica. [Pg. 041]Dos "preconceitos" histricos s situaes que eles revelam.

A distncia do tempo, e, sem dvida, uma reflexo mais epistemolgica permitem hoje revelar os preconceitos que limitaram a historiografia mais recente. Eles aparecem tanto na escolha dos assuntos quanto na determinao dos objetivos dados ao estudo. Mas, sempre, esto ligados s situaes que conferem ao historiador uma posio particular com relao a realidades religiosas.

Assim, os conflitos entre a Igreja e o Estado ou os debates acerca da escola "livre" e da escola leiga, entre outros efeitos, tiveram o de privilegiar, dentre os fenmenos religiosos, aqueles que se apresentavam sob a forma de uma oposio s ortodoxias, e, por conseqncia, de favorecer a histria das "heresias", privilegiando-as contra a das instituies eclesisticas e das "ortodoxias". Menos do que as intenes pessoais, ento, as localizaes scio-culturais mobilizam o interesse e o tipo de pesquisa.

Por exemplo, no estudo do incio do sculo XVI prendemo-nos "pr-reforma" mais do que s correntes escolsticas, no entanto, majoritrias e igualmente importantes. Considera-se mais o "humanismo" sob um aspecto de ruptura com relao tradio crist, do que inscrito, tambm, no prolongamento da patrstica, ou de reformismos sucessivos, ou de uma srie de retornos Antiguidade no decurso da Idade Mdia.. Da mesma forma, identificou-se o sculo XVII, religioso, com o jansenismo, "rebelio" proftica, quando ele , apenas, um dos fenmenos da poca, e, quando muitos dos elementos considerados como caractersticos do jansenismo se encontram em outras correntes espirituais. Ou, ainda, da obra dos grandes "sbios" dos sculos XVI e XVII suprimiram-se seus escritos teolgicos ou exegticos, considerados como restos de pocas encerradas, indignos de interessar uma sociedade de progresso, etc.

A anlise recortava, ento, no tecido da histria, "assuntos" relativos aos lugares de observao. No de espantar que os estudos visando corrigir esses recortes, para fazer prevalescer outros, provenham no apenas de tradies ideolgicas diferentes, mas de lugares justapostos e freqentemente opostos aos primeiros, por exemplo, de meios eclesisticos ou de Centros estranhos aos quadros da Universidade francesa. Assim, os tratados do Pe. Bernard-Matre e outros, at o grande livro de Massaut, sobre os telogos "conservadores" no incio do sculo XVI; os trabalhos do Pe. de Lubac ou do Pe. Bouyer sobre a repetio da exegese apostlica e patrstica do humanismo erasmiano; e do Gilson sobre o vocabulrio tradicional retomado por Descartes; o de Bremond ou de tantos outros, desde ento, [Pg. 042] dentro do amplo mostrurio de correntes msticas do qual o jansenismo faz parte. A contribuio considervel destes estudos no disfara seu carter mais ou menos discretamente apologtico. Talvez mesmo a riqueza de seu contedo tenha se tomado possvel graas a esse aspecto de rplica ou de cruzada, que os assemelhava a um cavalo de Tria.

A marca das compartimentaes scio-ideolgicas particularmente visvel na historiografia religiosa francesa. um trao, muitas vezes sublinhado, da sociedade francesa. Os trabalhos cientficos forneciam, pois, a posio universitria neste mapa. Privilegiavam os "catlicos liberais" frente aos "catlicos intransigentes" ( parte a obra de Rene Rmond, estes ltimos foram estudados principalmente por ingleses ou norte-americanos, que no eram afetados da mesma forma pelos problemas franceses); ou, ento, preferiam ao "modernismo", cientfico ou social, frente ao "integrismo" (do qual Poulat acaba de mostrar o interesse histrico). Os debates internos da sociedade francesa provocaram um fixismo historiogrfico e, durante muito tempo, a reproduo indefinida de cortes formais, mesmo quando uma nova erudio lhes modificava o contedo.

Este esquematismo teve como efeito um reaproveitamento presente dos "partidos" antes opostos Reformados ou Catlicos, Jansenistas ou Jesutas, modernistas ou integristas, etc. E deles fizeram bandeiras, menos de convices pessoais do que de situaes. As polmicas antigas organizaram, sem o saber, a pesquisa cientfica. Os historiadores chegaram a "meter-se na sotaina, na cogula ou na toga de seus antecessores, sem se dar conta de que eram vestes de polemistas ou de pregadores, cada um defendendo sua causa"

Alguns silncios permanecem hoje como vestgios desse passado recente, at mesmo em estudos magistrais sobre a sociedade e o pensamento clssicos: a discreo de Goubert a respeito das teologias ou mesmo a respeito da religio; a ausncia de referncia literatura religiosa na interpretao que M. Foucault faz da episteme clssica. Mas, tambm, e reciprocamente, o silncio do Abade Cognet a respeito da histria scio-econmica em La Spiritualit Moderne , ou ainda, ao contrrio, em numerosos trabalhos consagrados s atividades temporais nas Abadias, a presso social que fez tantos historiadores clrigos desatentos vida religiosa destas mesmas Abadias.

A mutao dos "preconceitos" em objetos de estudo.

Afastados das situaes conflitantes, cada vez mais distantes, mais [Pg. 043] fcil para ns revelar a sua marca nestes estudos. Estamos, ns mesmos, adiante disto. medida que se diluem as divises que, ontem, organizaram ao mesmo tempo uma poca e sua historiografia, elas podem ser analisadas nos prprios trabalhos deste tempo. O desaparecimento do perodo condiciona uma tal lucidez, mas esta compreenso, pretensamente "melhor", que de agora em diante a nossa, se refere ao fato de estarmos deslocados: nossa situao nos permite conhecer a deles de outra maneira que eles a puderam conhecer.

O que torna possvel a relativizao desses debates de ontem, e, portanto, o balizamento das imposies que exerceram sobre o discurso cientfico, a posio nova da religio na nossa sociedade. Bem longe de ser uma fora, uma ameaa, um conjunto de grupos e de corpos constitudos, como era o caso de ontem, o cristianismo francs se livra hoje de seu peso social, liberando-se dos fracionamentos recentes. Ele deixa de constituir lugares prprios, vigorosos, porm fechados, na nao. Torna-se a uma regio mal definida e mal conhecida pela cultura francesa. Uma historiografia religiosa pode, desde ento, fazer-se o objeto de um novo exotismo, semelhante quele que conduz o etnlogo aos "selvagens" do interior ou aos feiticeiros franceses. Socialmente, o cristianismo existia em mais alto grau, quando, ontem, se lhe dava menos espao no Tempo do que se lhe d no Mundo hoje. Quando se tratava de adversrios, de oponentes, ou de grupos fechados a respeito de sua prpria vitalidade, ficava-se calado ou se era parcial. Fala-se mais dele agora que no mais uma fora e, que, por necessidade se "abriu", "adaptou" e conformou com a situao na qual se tomou o objeto de uma curiosidade "imparcial" e o signo longnquo de "valores". As renovaes da histria religiosa no significam, pois, uma recrudescncia do cristianismo, mas a diluio de suas instituies e de suas doutrinas nas novas estruturas da nao sua passagem de estado de corpo opaco e resistente a um estado de transparncia e de movimento.

Os "preconceitos" da histria ou dos historiadores desaparecem quando se modifica a situao qual se referem. A organizao ontem viva de uma sociedade, investida na tica de seus historiadores, se transforma, ento, num passado suscetvel de ser estudado. Ela muda de estatuto: deixando de ser, entre os autores, aquilo em funo de que eles pensavam, passa para o lado do objeto que, como novos autores, temos que tornar pensvel. Em funo de uma outra situao, desde ento nos possvel examinar como "preconceitos", ou simplesmente como os dados de um tempo, o modo de compreenso de nossos predecessores, de revelar suas relaes com outros elementos da mesma poca, e de inscrever sua historiografia [Pg. 044] na histria que constitui o objeto de nossa prpria historiografia.

Sob este aspecto, os modos de compreenso prprios da historiografia de ontem se encontram na mesma posio que as ideologias ou as crenas crists. Estas ltimas representam apenas uma distncia maior percorrida pela convico que forneceu a um passado os seus princpios de inteligibilidade, e que hoje deve ser compreendida de acordo com outros quadros de referncia. O afastamento entre essas duas posies indica o prprio problema do procedimento historiogrfico: a relao entre o "sentido" que se tornou um objeto e o "sentido" que hoje permite compreend-lo.

Desde que se procure o "sentido histrico" de uma ideologia ou de um acontecimento, encontram-se no apenas mtodos, idias ou uma maneira de compreender, mas a sociedade qual se refere a definio daquilo que tem "sentido". Se existe, pois, uma funo histrica, que especifica a incessante confrontao entre um passado e um presente, quer dizer, entre aquilo que organizou a vida ou o pensamento e aquilo que hoje permite pens-los, existe uma srie indefinida de "sentidos histricos". A crena oferece apenas um caso extremo de relao entre dois sistemas de compreenso atravs da passagem de uma sociedade ainda religiosa (a do sculo XVI, por exemplo) a uma sociedade, a nossa, onde o "pensvel" se secularizou.

III. A HISTRIA, DISCURSO E REALIDADE

Duas posies do real.

Se recapitularmos esses dados, a situao da historiografia faz surgir a interrogao sobre o real em duas posies bem diferentes do procedimento cientfico: o real enquanto o conhecido (aquilo que o historiador estuda, compreende ou "ressuscita" de uma sociedade passada) e o real enquanto implicado pela operao cientfica (a sociedade presente a qual se refere a problemtica do historiador, seus procedimentos, seus modos de compreenso e, finalmente, uma prtica do sentido). De um lado o real o resultado da anlise e, de outro, o seu postulado. Estas duas formas da realidade no podem ser nem eliminadas nem reduzidas uma a outra. A cincia histrica existe, precisamente, na sua relao. Ela tem como objetivo prprio desenvolv-la em um discurso. Certamente, segundo os perodos ou os grupos, ela se mobiliza, de preferncia, em um de seus dois plos. [Pg. 045] Com efeito, existem dois tipos de histria, conforme prevalea a ateno a uma destas posies do real. Mesmo que as imbricaes dessas duas espcies predominem nos casos puros, elas so facilmente reconhecveis. Um primeiro tipo de histria se interroga sobre o que pensvel e sobre as condies de compreenso; a outra pretende encontrar o vivido, exumado graas a um conhecimento do passado.

A primeira dessas problemticas examina sua capacidade de tornar pensveis os documentos de que o historiador faz um inventrio. Ela obedece necessidade de elaborar modelos que permitam constituir e compreender sries de documentos: modelos econmicos, modelos culturais, etc. Esta perspectiva, cada vez mais comum hoje em dia, leva o historiador s hipteses metodolgicas de seu trabalho, sua reviso atravs de intercmbios pluridisciplinares, aos princpios de inteligibilidade suscetveis de instaurar pertinncias e de produzir "fatos" e, finalmente, sua situao epistemolgica presente no conjunto das pesquisas caractersticas da sociedade onde trabalha.

A outra tendncia privilegiada a relao do historiador com um vivido, quer dizer, a possibilidade de fazer reviver ou de "ressuscitar" um passado. Ela quer restaurar um esquecimento e encontrar os homens atravs dos traos que eles deixaram. Implica, tambm, um gnero literrio prprio: o relato, enquanto a primeira, muito menos descritiva, confronta mais as sries que resultam de diferentes tipos de mtodos.

Entre estas duas formas existe tenso, mas no oposio. Pois o historiador est numa posio instvel. Se d prioridade a um resultado "objetivo", se visa colocar no seu discurso a realidade de uma sociedade passada e a reviver um desaparecido, ele reconhece, entretanto, nessa reconstituio, a ordem e o efeito de seu prprio trabalho. O discurso destinado a dizer o outro permanece seu discurso e o espelho de sua operao. Inversamente, quando ele retorna s suas prticas e lhes examina os postulados para renov-las, o historiador descobre nelas imposies que se originaram bem antes do seu presente e que remontam a organizaes anteriores, das quais, seu trabalho o sintoma e no a fonte. Da mesma forma que o "modelo" da sociologia religiosa implica (entre outros) o novo estatuto da prtica ou do conhecimento no sculo XVII, tambm os mtodos atuais trazem, apagadas como acontecimentos e transformadas em cdigos ou em problemticas de pesquisa, antigas estruturaes e histrias esquecidas. Assim, fundada sobre o corte entre um passado, que seu objeto, e um presente, que o lugar de sua prtica, a histria no pra de encontrar o presente no seu objeto, e o passado, nas suas prticas. Ela habitada pela estranheza [Pg. 046] que procura, e impe sua lei s regies longnquas que conquista, acreditando dar-lhes a vida.

O intermdio, situao da histria e problema do real.

Um incessante trabalho de diferenciao (entre acontecimentos, entre perodos,-entre dados ou entre sries, etc.) , em histria, a condio de todo relacionamento dos elementos distintos e, portanto, de sua compreenso. Mas este trabalho se apia na diferena entre um presente e um passado. Supe sempre o ato que prope uma novidade, desligando-se de uma tradio, para consider-la como um objeto de conhecimento. O corte definitivo em qualquer cincia (uma excluso sempre necessria ao estabelecimento de um rigor) toma, em histria, a forma de um limite original, que constitui uma realidade como "passada" e que se explicita nas tcnicas proporcionadas tarefa de "fazer histria". Ora, esta cesura parece negada pela operao que funda, j que este "passado" retorna na prtica historiogrfica. O morto ressurge dentro do trabalho que postulava seu desaparecimento e a possibilidade de analis-lo como um objeto.

O estatuto desse limite, necessrio e denegado, caracteriza a histria como cincia humana. Efetivamente, ela humana, no enquanto tem o homem por objeto, mas porque sua prtica reintroduz no "sujeito" da cincia aquilo que se havia diferenciado como seu objeto. Seu funcionamento remete os dois plos do real, um ao outro. A atividade produtora e o perodo conhecido se alteram reciprocamente. A cesura que foi colocada entre eles por uma deciso instauradora do trabalho cientfico (e fonte de "objetividade") comea a mover-se. Ela se inverte, se desloca, avana. Este movimento se deve, precisamente, ao fato de que ela foi proposta e de que no pode ser mantida.

Durante a movimentao que desloca os termos da relao inicial, esta prpria relao o lugar da operao cientfica. Mas um lugar cujas mutaes, como um flutuador no mar, seguem os movimentos mais amplos das sociedades, suas revolues econmicas e polticas, as relaes complexas entre geraes ou entre classes, etc. A relao cientfica reproduz o trabalho que assegura a certos grupos a dominao sobre os outros, a ponto de fazer deles objetos de sua posse; mas atesta, tambm, o trabalho dos mortos que, por uma espcie de energia cintica, se perpetua, silenciosamente, com as sobrevivncias de estruturas antigas, "continuando", diz Marx, sua "vida vegetativa" (Fortvegetation).

O historiador no escapa dessas latncias e dessa gravidade de um [Pg. 047] passado ainda presente (inrcia que o "tradicionalista" chamar de "continuidade", tendo a esperana de apresent-la como a "verdade" da histria). Ele no pode, entretanto, fazer abstrao dos distanciamentos e das exclusividades que definem a poca ou a categoria social qual pertence. Em sua operao as permanncias ocultas e as rupturas instauradoras formam amlgama. A histria o mostra tanto mais quanto tem por tarefa de as diferenciar. A frgil e necessria fronteira entre um objeto passado e uma prxis presente se movimenta, desde que, ao postulado fictcio de um dado a compreender, se substitua o exame de uma operao sempre afetada por determinismos e sempre a retomar, sempre dependente do lugar onde se efetua numa sociedade e, no obstante, especificada por um problema, mtodos e uma funo prprios.

A histria est, pois, em jogo nessas fronteiras que articulam uma soci