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A EPOPEIA DO NEGRO BRASILEIRO: A PRODUÇÃO DA REPÚBLICA DOS PALMARES NA ESCRITA DE
ARTHUR RAMOS
THYAGO RUZEMBERG GONZAGA DE SOUZA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA:
CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS
A EPOPEIA DO NEGRO BRASILEIRO: A PRODUÇÃO DA REPÚBLICA DOS PALMARES NA ESCRITA DE ARTHUR RAMOS
THYAGO RUZEMBERG GONZAGA DE SOUZA
NATAL 2014
THYAGO RUZEMBERG GONZAGA DE SOUZA
A EPOPEIA DO NEGRO BRASILEIRO: A PRODUÇÃO DA REPÚBLICA DOS PALMARES NA ESCRITA DE ARTHUR RAMOS
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa II – Cultura, Poder e Relações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Renato Amado Peixoto.
NATAL 2014
THYAGO RUZEMBERG GONZAGA DE SOUZA
A EPOPEIA DO NEGRO BRASILEIRO: A PRODUÇÃO DA REPÚBLICA DOS PALMARES NA ESCRITA DE ARTHUR RAMOS
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:
_________________________________________ Renato Amado Peixoto
(Orientador)
__________________________________________ Rodrigo Turin
(Examinador Externo)
_________________________________________ Francisco Fernandes das Chagas Santiago Júnior
(Examinador Interno)
____________________________________________ Durval Muniz de Albuquerque Júnior
(Examinador Interno)
Natal, 08 de setembro de 2014.
Para Lucila.
AGRADECIMENTOS
Começo agradecendo a minha fonte de inspiração, Lucila Barbalho, minha amada, nos
últimos três anos tem me motivado para desenvolver esse trabalho. Não me deixou desanimar,
quando sorri, chorei ou gritei ela estava lá, suas palavras me animaram, suas mãos me
afagaram e seu amor me faz viver.
Tenho muito que agradecer a minha mãe, Cristina, por me ensinar a ser forte e
persistente, pelo carinho e amor incondicional.
Ao meu pai, Roberto, agradeço pela fé depositada em minha capacidade, além de ter
me ensinado a ser crítico e cabeça-dura, qualidades e defeitos que me singularizam.
A minha vó, Ana Bernardo, por insistir que a herança da família fosse a educação,
sertaneja forte e analfabeta que lutou muito para ver hoje seus netos na universidade.
Ao meu amigo e mentor Renato Amado, obrigado pela paciência e por acreditar em
mim e no meu projeto, aprendi a admirá-lo como professor e historiador, espero aprender
ainda mais com você.
Sou grato por ter sido formado no Curso de História da UFRN, tive excelentes
professores que adquiriram um carinho e uma admiração especial, os quais me espelho como
Juliana Teixeira, Durval Muniz, Santiago, Raimundo Nonato e Aurinete Girão, espero
conseguir ser na vida dos meus alunos uma fração do que vocês foram na minha.
Esse percurso não foi feito sozinho, tive a imensa sorte de fazer parte de uma
excelente turma nesse mestrado, muito obrigado por cada segundo com vocês.
Aos meus queridos e amados amigos Maiara Gonçalves e Diego Fernandes, devo-lhe
muito por nossa amizade e por tudo que vocês representam pra mim, são mais de cinco anos
juntos nessa empreitada com tantas experiências compartilhadas e com um apoio que não
pode ser medido.
Aos grandes amigos Elynaldo Gonçalves, Tiago Tavares, Felipe Tavares, Carlos
Henrique, Lêda e Robson Pottier, vocês ocupam um lugar especial na minha vida,
conseguiram nesses últimos dois anos tornar isso tudo mais fácil, sou grato pelos muitos
momentos de risadas e história nos nossos churrascos.
Ao colega Júlio Cláudio da Silva por ter dividido o conhecimento comigo, pelas
longas conversas via celular do Amazonas para o Rio Grande do Norte, pela sua paciência e
disponibilidade em sanar dúvidas de um pesquisador que sentia-se isolado por não ter
especialistas locais para dialogar, nossas ligações foram “orientações” valiosíssimas.
Durante o último ano dividi as minhas pesquisas com as atividades de professor
substituto do Curso de História da UFRN, agradeço a muito a todos os colegas que me
apoiaram e aos alunos que me ensinaram muito.
A Iris, Jerlimar e Zé Daniel e todo pessoal do Laboratório de Imagens da UFRN, o
trabalho de vocês foi de grande ajuda.
Aos familiares e amigos que me incentivaram e acreditaram em mim, pelo
companheirismo, pelo carinho, pela amizade, por compartilhar comigo esse feito.
Aos que torceram contra, tenham certeza que vocês estiveram comigo todo o percurso,
não tirei vocês da minha cabeça, obrigado por me motivar todos os dias.
Agradeço igualmente ao PPGH da UFRN por aceitar o projeto de pesquisa
apresentado e por ter proporcionado condições adequadas para o desenvolvimento da
dissertação.
O universo é feito de histórias,
não de átomos.
Muriel Rukeyser (The speed of the darkness)
SIGLAS E INSTITUIÇÕES PESQUISADAS
AAR – Arquivo Arthur Ramos
BCZM – Biblioteca Central Zila Mamede
BN – Biblioteca Nacional
IAGA – Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano
IAGP – Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano
IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IHGA – Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas
IHGRN – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
IHGCE – Instituto Histórico e Geográfico do Ceará
UFAL – Universidade Federal de Alagoas
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
A EPOPEIA DO NEGRO BRASILEIRO: A PRODUÇÃO DA REPÚBLICA DOS PALMARES NA ESCRITA DE ARTHUR RAMOS
Resumo: Na segunda metade do século XX houve a ascensão da imagem do Quilombo dos Palmares e de seu líder Zumbi como heróis da liberdade, do povo negro e da nacionalidade brasileira. Porém, no final do século XIX a imagem do Quilombo estava longe de ser positiva, representava tudo que as elites intelectuais e políticas brasileiras não gostariam que estivesse vinculada a nacionalidade. Em quase cem anos o Quilombo dos Palmares passou de inimigo da nação ao status de herói nacional; deixou de ser um grupo de africanos que impediria o progresso da civilização brasileira, para ser a grande epopeia do negro brasileiro. A quantidade de escritos que abordavam esse tema, aumentou consideravelmente, durante o século XX, demonstrando a importância atribuída a Palmares, pelos intelectuais deste período. Dentre os estudiosos, estava o médico e antropólogo alagoano Arthur Ramos, ministrante de uma conferência em 1938, intitulada “O espírito associativo do negro”, e autor do capítulo “A República de Palmares”, publicado em 1939 no livro “The negro in Brasil”. O objetivo, por conseguinte, foi analisar o espaço imaginário, o Quilombo dos Palmares, composto por Ramos nos seus escritos, relacionando a construção desse espaço com a tradição historiográfica sobre Palmares e a “cena de produção” em que o autor estava inserido. A pesquisa foi desenvolvida entre os campos da História Cultural dos Espaços e da História da Historiografia. O Quilombo dos Palmares foi compreendido como espaço imaginativo, seguindo as colaborações de Edward Said concentrando-se nos significados simbólicos ou poéticos. Para analisar a historiografia, utilizamos a análise do discurso, fundamentada na descontrução de Jacques Derrida, na qual pensamos como um procedimento de questionamento, de decomposição e de re-organização dos discursos. Juntamente, com a operação historiográfica de Michel de Certeau, possibilitou compreender os mecanismos da escrita da história. Nos textos de Arthur Ramos, estavam concentradas as principais conclusões de uma nova perspectiva sobre Palmares. O professor Ramos, colocou-se como herdeiro de Raimundo Nina Rodrigues, dando continuidade as pesquisas sobre as populações negras no Brasil, ocasionando uma narrativa concentrada nos próprios palmarinos, não nos seus conquistadores. No entanto, distanciou-se da perspectiva racista de Rodrigues, aproximando-se da antropologia cultural norte-americana, possibilitando a produção de Palmares como resistência ao processo de aculturação imposto aos escravos. Como leitor das produções dos Institutos Pernambucano e Alagoano, principalmente de Jaime Altavilla e de Manoel Arão, conhecia uma narrativa heroica do evento, ainda que ligada a construção das identidades estaduais. Arthur Ramos ampliou esse discurso, ao produzir o Quilombo dos Palmares, como obra da qualidade e capacidade do Negro brasileiro.
Palavras-chaves: historiografia; Negro brasileiro; Quilombo dos Palmares; Arthur Ramos.
EPIC BLACK BRAZILIAN: THE PRODUCTION OF THE NEGRO REPUBLIC OF PALMARES WRITTEN IN ARTHUR RAMOS
Abstract: In the second half of the twentieth century saw the rise of the Quilombo dos Palmares image and its leader Zumbi as heroes of freedom, black people and the Brazilian nationality. However, in the late nineteenth century the image of Quilombo was far from positive, represented everything that Brazilian intellectuals and political elites would not like that was linked to nationality. In almost a hundred years the Quilombo dos Palmares went from enemy nation to the status of national hero; ceased to be a group of Africans who impede the progress of Brazilian civilization, to be the great epic of the Brazilian black. The amount of writings that addressed this issue, has increased considerably during the twentieth century, demonstrating the importance attributed to Palmares, the intellectuals of this period. Among scholars, he was the doctor and Alagoas anthropologist Arthur Ramos, lecturer of a conference in 1938 entitled "The associative spirit of the black," and author of the chapter "The Republic of Palmares", published in 1939 in the book "The black in Brazil ". The goal, therefore, was to analyze the imaginary space, the Quilombo dos Palmares, composed by Ramos in his writings, relating to the construction of this space with the historiographical tradition of Palmares and the "scene production" in which the author was inserted. The research was conducted among field of Cultural History of Spaces and History of Historiography. The Quilombo dos Palmares was understood as imaginative space, following Edward Said collaborations focusing on symbolic or poetic meanings. To analyze the historiography, we use discourse analysis, grounded in the deconstruction of Jacques Derrida, we thought of as a procedure of questioning, decomposition and re-organization of discourse. Along with the historiographical operation Michel de Certeau, enabled us to understand the mechanisms of historical writing. The writings of Arthur Ramos, were concentrated the main conclusions of a new perspective on Palmares. Professor Ramos put himself as the heir of Raimundo Nina Rodrigues, continuing research on the black population in Brazil, resulting in a concentrated narrative Palmares themselves, not their conquerors. However, distanced himself from racist perspective Rodrigues, approaching the North American cultural anthropology, enabling the production of Palmares as resistance to acculturation process imposed on slaves. As productions of Pernambuco and Alagoas Institutes, mainly Jaime Altavilla and Manoel Aaron reader, knew a heroic narrative of the event, although linked to the construction of state identities. Arthur Ramos extended this discourse, to produce the Quilombo dos Palmares, according to their quality and capacity of the Brazilian Negro.
Keywords: historiography; Brazilian black; Quilombo dos Palmares; Arthur Ramos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
PRIMEIRA PARTE. O Teatro de Construção de Arthur Ramos 34
Os Estudos Afro-Brasileiros 35
"The Negro in Brazil" 102
SEGUNDA PARTE. Desconstruindo a República dos Palmares 138
Do Palmares ocultado ao “mestre” Nina Rodrigues com sua “Troya Negra” 139
Metáforas diferentes 160
"A República de Palmares" 197
CONSIDERAÇÕES FINAIS 231
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 237
14
INTRODUÇÃO
Em 1971, foi fundado, em Porto Alegre, o Grupo Cultural Palmares. Um dos seus
principais objetivos era propor o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, a ser
comemorado como o “Dia da Consciência Negra”. Durante a década de 1970 o Instituto
Cultural Brasil-Alemanha, localizado em Salvador, foi um importante ponto de encontro para
a formação do movimento negro e, em 4 de novembro de 1978, abriu suas portas para a
realização da segunda Assembleia Nacional do Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial (MNUCDR)1. Durante essa reunião, seguindo a proposta do Grupo
Cultural Palmares, o “Dia Nacional da Consciência Negra” passou a ser celebrado no dia 20
de Novembro. Essa nova data era um protesto em relação à data anterior que reconhecia o 13
de maio, data comemorativa da abolição assinada em 1888 pela princesa Isabel, “a
Redentora”, como o Dia da Consciência Negra.2
Anos depois, em Cannes/França, mais precisamente em 22 de maio de 1984, ocorreu
oficialmente a estreia do filme “Quilombo”, a película dirigida por Carlos (Cacá) Diegues que
concorria à Palma de Ouro no Festival de Cannes. O seu lançamento causou um frenesi na
imprensa nacional, tornando-se um marco da cinematografia brasileira, pois era a primeira
superprodução, totalmente brasileira, com orçamento previsto de, inicialmente, 1 bilhão de
Cruzeiros devido ao contrato de seus produtores com a distribuidora francesa Gaumont. O
lançamento no Brasil aconteceu em 04 de junho do mesmo ano, no Rio de Janeiro; dois dias
depois, em São Paulo, e no dia 09, em Porto Alegre. O filme apresentou a história do
Quilombo dos Palmares, destacando os líderes Ganga Zumba e Zumbi, como um grande
empreendimento do negro, mas com a participação importante do índio e do branco. Estava
formado, na telona e diante dos olhos dos espectadores brasileiros da década de 1980, mais
um produto da mestiçagem brasileira, em sua versão tropicalista.
Diegues deu visibilidade a Palmares como um dos elementos da nacionalidade, como
uma proposta à origem da nação, contendo diversos elementos culturais que são associados
aos três grupos, ou a sua mistura: carnaval, capoeira, futebol, candomblé, etc. Embora antes
do filme houvessem ações em torno do que foi proposto pelo MNUCDR e pelos intelectuais 1 Depois de 1979 MNUCDR, passa a ser denominado apenas como Movimento Negro Unificado (MNU). 2 Este parágrafo foi baseado na Tese de Amilcar Pereira, o primeiro trabalho acadêmico que li quando ainda estava procurando um objeto para pesquisa, esse trabalho acabou por me conduzir a reflexão sobre o papel de Palmares na sociedade brasileira. Ver: PEREIRA, Amilcar Araujo. “O mundo negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2010. 268 f.
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que escreveram a história do Quilombo dos Palmares, o público alcançado pelo cinema e pela
televisão era muito maior.
Ainda no início da década de 1980, os grupos do movimento negro lançaram um
projeto de construção do Memorial Zumbi dos Palmares, o qual deveria ser construído no
território que, há trezentos anos atrás, tinha sido dominado pelos palmarinos, na Serra da
Barriga, localizado no munícipio de União dos Palmares no estado de Alagoas. O projeto teve
como uma de suas vitórias o tombamento da Serra como paisagem natural do Brasil em 1988,
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 2003, o Memorial Zumbi dos
Palmares foi fundado no local e a partir de então é inegável que o Quilombo dos Palmares,
apesar dos muitos conflitos, passou a ocupar um lugar nos mitos da nacionalidade brasileira.
Esses acontecimentos provam a importância atribuída a Palmares na sociedade
brasileira contemporânea, sendo parte dos debates sobre a história, a memória e a identidade
da nação. Porém, no final do século XIX, a imagem do Quilombo estava longe de ser positiva,
representava tudo que as elites intelectuais e políticas brasileiras não gostariam que estivesse
vinculada a nacionalidade: escravos africanos e da terra, negros e mestiços, governando um
determinado espaço autônomo, produzindo uma cultura própria e sendo independentes dos
poderes coloniais. Em quase cem anos, o Quilombo dos Palmares passou do status de
‘inimigo da nação’ para o de símbolo nacional; sua historiografia deixou de apresentar um
grupo de africanos que impediria o progresso da civilização brasileira, para relatar a grande
epopeia do negro brasileiro.
Essa transformação foi lenta, passou por diversas fases e possuiu muitos sujeitos
envolvidos. Definir marcos numa trajetória como essa é sempre arbitrário e difícil, mas para o
historiador é necessário demarcar momentos específicos, historicizar os acontecimentos. A
identidade brasileira não é uma unidade homogênea e seus mitos fundadores, como Palmares,
são heterogêneos, se inscrevem num processo contínuo de reinvenção. Investigar esse
processo é fundamental para compreender a consolidação de um mito no imaginário de uma
sociedade. Compreendendo a importância que o Quilombo dos Palmares tem para a memória
e a história da sociedade brasileira atual, essa pesquisa, desde o início, procurou abarcar a
historiografia sobre o tema. Com isso, chegamos às primárias delimitações, observando que
as primeiras décadas do século XX foram fundamentais para consolidar alguns alicerces da
compreensão do Quilombo dos Palmares como um dos símbolos da nacionalidade brasileira,
16
portanto, havíamos determinado que a pesquisa deveria se focar nas produções de 1900 a
1940.
Percebemos que neste período havia duas vertentes da tradição historiográfica sobre o
Quilombo: a primeira, sediada em São Paulo, não trouxe mudanças significativas, pois repetiu
muitas conclusões das produções do século XIX, especialmente a visão de que Palmares foi
um inimigo para a civilização brasileira; a segunda, publicada nas revistas dos Institutos
Arqueológicos e Geográficos de Pernambuco e de Alagoas, produziu uma visão heroica sobre
Palmares. Essas conclusões nos ajudaram a estreitar a pesquisa apenas na segunda vertente da
tradição, ainda assim, havia um número considerável de autores, os quais se fossemos analisar
com o rigor teórico e metodológico que merecem, tornaria impossível esta dissertação.
Precisávamos encontrar o momento em que a representação de Palmares teria sido
consolidada como heroica e, se possível, ligada a formação da nacionalidade brasileira. A
nossa hipótese é que isso ocorreu com os escritos de Arthur Ramos, durante as décadas de
1930 e 1940, quando este intelectual produziu alguns pequenos escritos sobre o reduto
palmarino. Nesses textos, estavam concentradas as principais conclusões das produções dos
Institutos Pernambucano e Alagoano, porém, trouxe um novo elemento que possibilitou a
visão nacionalista que experimentamos atualmente: o Quilombo dos Palmares seria uma obra
do Negro brasileiro. É no rastro dessa hipótese que esta dissertação trilhou.
O nosso objetivo principal é analisar o espaço imaginativo Quilombo dos Palmares,
composto pelo médico e antropólogo Arthur Ramos em diversos escritos, mas,
principalmente, no livro The negro in Brasil3, de 1939, relacionando a construção desse
espaço com a tradição historiográfica sobre Palmares e o “teatro de construção” em que
estava inserido. Essa dissertação também procura entender como esse intelectual leu as
produções historiográficas sobre o Quilombo, particularmente, as de Raimundo Nina
Rodrigues, seu “mestre”, explorando o papel da herança na produção historiográfica. Além
disso, buscamos reconstruir o “teatro de construção” e as diversas “cenas de escrituras” em
que Arthur Ramos estava imerso, preocupando-nos em entender questões centrais na
intelectualidade das décadas de 30 e 40 e sua importância para pensar Palmares. Esse é o caso
3 Infelizmente nunca conseguimos a primeira edição desse texto, ela foi publicada nos Estados Unidos e para o público estadunidense. A edição que trabalhamos é a 1ª reimpressão da editora original, a “The Associated Publisher”, publicada em 1951, homenageando Arthur Ramos por motivo de sua morte 1949. Também trabalhamos com a 1ª edição brasileira da “Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil”, publicada em 1956, dentro de uma coleção que homenageava Arthur Ramos com diversos livros seus. Ver: RAMOS, Arthur. The Negro in Brazil. Washington, D.C.: The Associated Publishers, 1951.; RAMOS, Arthur. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1956.
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das categorias: nação, raça e cultura. Por último, procuramos compreender o papel dos
estudos sobre o negro no Brasil com relação ao conhecimento - histórico, sociológico e
antropológico - sobre os africanos e seus descendentes e a compreensão sobre a função desses
na sociedade brasileira.
Os autores que nos dedicaremos a analisar têm como característica principal pensar o
papel da cultura negra brasileira, no entanto, é importante salientar que, embora tenhamos
como premissa a importância de compreender a produção desses autores, o nosso objeto é a
produção voltada para Palmares. Entendemos que Palmares ganha visibilidade como símbolo
da cultura afro-brasileira nessa primeira metade do século XX, tomando novos significados,
sobretudo, tendo seu espaço reinventado de acordo com os debates contemporâneos e devido
a uma nova racionalidade constituidora da raça negra e da cultura afro-brasileira.
O que já foi dito sobre a historiografia de Palmares?
O historiador alagoano Moacir Medeiros de Sant’Ana pronunciou numa conferência,
que foi publicada em 1999 na Revista do IHGB com o título “Reflexões em torno da
historiografia dos Palmares”4, que tinha um objetivo muito claro de discorrer sobre o que foi
escrito a respeito do Quilombo dos Palmares, com a intenção de demonstrar a necessidade de
se rever determinados textos desses estudos históricos, em decorrência de impropriedades
neles contidos. O autor procurou essas imprecisões comparando os textos analisados aos
documentos históricos já descobertos até a época da produção, ou, comparando às produções
que antecederam os textos. Desenvolveu um trabalho de história da historiografia que se
encaixa na História dos Métodos, por se preocupar com as descobertas das fontes históricas,
assim como com as ocultações e obscuridades relacionadas aos documentos históricos.5
Sant’Ana apresenta alguns autores que escreveram sobre o tema, embora não explique
os critérios de seleção, nem determine um recorte temporal definido. Ele parece escolher as
obras de acordo com as “imprecisões”, pois em sua compreensão estas continham alguns
problemas de produção historiográfica. O lugar da morte de Zumbi aparece como uma
imprecisão de muitos historiadores, o seu argumento foi inspirado no documento “Consulta
do Conselho Ultramarino”, datado de Lisboa de 18 de agosto de 1696, o qual afirma que o 4 SANT’ANA, Moacir M. Reflexões em torno da historiografia dos Palmares. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Ano 160, n. 402, p. 229-246, jan/mar, 1999. 5 BLANKE, Host Walker. Para uma nova história da historiografia. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. p. 30.
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capitão André Furtado de Mendonça comandava a tropa que matou Zumbi. A origem dos
palmarinos e a época de fundação do Quilombo também seriam problemas dessa
historiografia. O índio lutando ao lado dos negros se tornou um problema e levou alguns
estudiosos a classificar o quilombo como “sociedade multirracial”, enquanto Sant’Ana
considera só ser possível provar, através dos documentos, o contrário: a utilização de
indígenas para o combate ao Quilombo.
Podemos destacar três características do trabalho de Moacir Sant’Ana. Primeiro, ele
aparenta valorizar o documento de tal forma que não percebe as possibilidades de
interpretação ou escolha dos demais historiadores, concebendo que a simples existência de um
documento provaria uma determinada versão. A segunda, consiste nas críticas feitas a uma
determinada corrente historiográfica, que ele não especifica qual é e nem muito menos quem
seriam os seus autores, onde observamos que aquilo que ele considera uma interpretação
errônea da história, aparece como produto de uma massa amorfa, com isso, ele ignora a
possibilidade de analisar uma tradição. A última, ele identificou esses “equívocos” ou
“imprecisões”, porém não procurou explicar os motivos que conduziram os autores a
determinadas interpretações, ou, o que os levou, segundo a sua concepção, a cometerem erros.
Moacyr M. Sant’Ana trouxe uma grande contribuição com suas comparações,
tornando possível perceber os caminhos e os problemas enfrentados pelos historiadores do
Quilombo dos Palmares. Por não explicar quais as causas que levaram ao que chamou de
“imprecisões” históricas, deixou uma possibilidade de pesquisa para outros pesquisadores da
historiografia: analisar as motivações que conduziram a escolha de determinados caminhos.
Ou seja, compreender como foi gerado aquilo que é colocado como “problema”, pois
podemos analisar essa condição, por Sant’Ana, dos historiadores não utilizarem os
documentos de “maneira correta”. Cabe pensar no papel das opções metodológicas, ou, ecos
de uma tradição que resiste, ou, visões de mundo, ou, concepções ideológicas que
possibilitaram uma perspectiva, a qual Sant’Ana chamou de errada.
Em 2004, Andressa M. B. Reis defendeu a dissertação de mestrado em História, na
Universidade Estadual de São Paulo, “Zumbi: historiografia e imagens”6, um dos trabalhos
mais completos sobre a historiografia palmarina, pretendendo fornecer um mapeamento dos
6 REIS, Andressa Mercês Barbosa dos. Zumbi: historiografia e imagens. 2004. 148 p. Dissertação (Mestrado). Franca: Faculdade de História, Direito e Serviço Social, UNESP, 2004.
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textos sobre Palmares e Zumbi, desde o século XVII até 1947. A autora determina o referido
século como seu recorte temporal inicial devido à importância de resgatar os relatos sobre o
Quilombo simultâneos a sua existência, para se poder entender como Zumbi era pensado na
época. O recorte temporal final da dissertação é a publicação da obra de Edison Carneiro,
“Quilombo dos Palmares”, justificado pelo fato da obra ser de grande importância para esta
historiografia. A historiadora preferiu não abordar as obras da segunda metade do século XX,
pois nelas já estariam consolidadas a visão heroica por causa das perspectivas colocadas pela
historiografia marxista e o movimento negro. O seu objetivo é apontar quais foram os autores
e obras mais referendados, as principais características destas obras e, a indicação dos
momentos de rupturas e continuidades das imagens de Zumbi.
Como a preocupação da autora é observar a imagem de Zumbi, o Quilombo dos
Palmares está em segundo plano nessa obra. O mapeamento foi construído a partir das
referências bibliográficas das principais obras da historiografia de Palmares, propondo-se a
abarcar o maior número de textos, com a preocupação de apresentar os documentos essenciais
para a construção da narrativa do episódio palmarino, destacando as alterações imediatas e
posteriores que estes trouxeram para a historiografia. Quatro contribuições dessa obra se
sobressaem: um enorme levantamento dos escritos sobre Palmares revelando textos
“esquecidos”; a demonstração de que as imagens de Zumbi e do Quilombo variaram ao longo
da história brasileira; a determinação de que a produção dos “Institutos Históricos do
Nordeste”, durante as primeiras décadas do século XX, foram responsáveis por moldar o
personagem Zumbi dos Palmares e atribuir-lhe a imagem de um herói que estava lutando pela
liberdade, não apenas pela raça negra; o entendimento de que a associação entre os ideais de
Zumbi e da raça negra ocorreu a partir da década de 1940, quando o movimento negro
começou a produzir uma história que falava sobre um passado de luta da raça negra no Brasil.
Como parte de seu método, Reis pesquisou lugares de produção, desenvolvendo
excelentes análises sobre a historiografia dos Institutos Históricos Pernambucano e Alagoano,
percebendo as transformações que ocorreram nessas instituições durante o século XIX e o
XX. Ela apreendeu que havia projetos locais nessas instituições, fazendo com que se
distinguissem do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e dos demais institutos.
Ocorreram, por vezes, disputas de identidades e representações históricas entre o Instituto de
Alagoas e o Instituto de Pernambuco. Foi nessas instituições que ela percebeu as maiores
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transformações na imagem de Zumbi e do Quilombo, onde os autores inauguraram uma
perspectiva heroica, especialmente no início do século XX.7
A dissertação de Andressa M. B. Reis é um trabalho inteiro dedicado à história da
historiografia, embora ela não utilize e não dialogue com os teóricos ou a bibliografia do
campo. Horst Blanke provavelmente a classificaria como “história dos problemas”, pois é
uma relação das diferentes historiografias sobre um evento histórico individual, ou ainda,
uma história dos mitos particulares.8 Ela concentrou a sua análise sobre a formação e a
produção de mitos nacionais ou sociais. A obra traz contribuições significativas para entender
a historiografia palmarina, a partir de novas problematizações – a construção do mito de
Zumbi – e abordagens – o mapeamento das imagens de Zumbi.
As duas obras seguintes elaboram visões panorâmicas do estado das pesquisas, não
são trabalhos de história da historiografia, devendo ser mais compreendidas como um
“balanço geral”9 da historiografia do Quilombo dos Palmares. Em 2005, Pedro Paulo Funari
e Aline V. de Carvalho lançaram o livro “Palmares, ontem e hoje”10, que foi divido em duas
partes. Na primeira, expuseram o que foi escrito sobre o Quilombo, denominando de
“Palmares ontem”; enquanto na outra parte, chamada de “Palmares hoje”, demonstraram as
suas conclusões com as pesquisas em sítios arqueológicos na Serra da Barriga em Alagoas.
Além de percorrer as principais obras sobre o tema, Funari e Carvalho observaram
dois pontos importantes. Primeiro, os autores perceberam que com as mudanças ocorridas nos
olhares sobre Palmares, principalmente na segunda metade do século XX, por causa da
historiografia militante marxista e do movimento negro contemporâneo, este acontecimento
foi colocado como símbolo da resistência à falta de liberdade na Ditadura e à discriminação
racial. Segundo, eles observaram que as produções sobre Palmares aumentaram, porém não
ocorreu de fato o diálogo entre as áreas da História, Arqueologia e Antropologia.
O outro livro foi escrito por Flávio dos Santos Gomes, um renomado pesquisador da
história dos quilombos e mocambos existentes no Brasil durante o período colonial e imperial.
Foi a partir desse campo de pesquisa que ele se aproximou da historiografia de Palmares. Ele
7 Ibid. p. 100 8 BLANKE, Host W. op. cit. 2006 p. 31. 9 Ibid. p. 30. 10 FUNARI, Pedro Paulo; CARVALHO, Aline Vieira. Palmares, ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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dedicou boa parte do seu “Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul”11 para expor a
historiografia palmarina, ainda que não tenha produzido uma pesquisa com o objetivo de
analisar a historiografia, percebeu que Palmares sempre esteve em meio a avaliações e
intenções ideológicas, proporcionando homogeneidade e exclusões de eventos.
“Palmares, ontem e hoje” e “Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul” são
livros de caráter introdutório, ambos apresentam exposições das produções historiográficas de
maneira sintética, relacionando-as ao contexto e à importância do autor para o campo.
Nenhuma dessas duas obras se dedicaram a observar a construção de Palmares operada pelo
discurso e seus diversos significados ao longo do tempo.
Recentemente, em 2012, foi publicado o livro “Três vezes Zumbi: a construção de um
herói brasileiro”12 dos historiadores Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre
Ferreira, que fazem uma análise da historiografia sobre este personagem desde o século XVII
ao XX. França é um pesquisador do período colonial e especialista na literatura dos viajantes
no Brasil; enquanto Ferreira trabalha a história da escravidão, analisando o sistema escravista
através da perspectiva dos senhores de escravos. Ambos aproximaram-se do Quilombo dos
Palmares de maneira tangencial nos seus objetos de pesquisa originais, o que não prejudicou a
sua análise.
Metodologicamente, os autores optaram pela análise discursiva, trazendo um elemento
novo para os trabalhos sobre a historiografia de Palmares, o discurso aparece tomando um
lugar central na análise. A partir da arqueologia de Michel Foucault, os autores
compreenderam as camadas dos discursos que construíram Zumbis diferentes, identificando
três linhas de tradição que coincidem praticamente com três períodos políticos distintos:
Colônia, Império e República. O objetivo apresentado é identificar a construção histórica de
Zumbi dos Palmares. Os autores acreditam que fazendo isso é possível também observar a
história da construção da “verdade” acerca de um acontecimento passado que é pactuado
como nacional, um acontecimento constituinte do que é chamado de “identidade nacional”.13
A primeira linha de tradição que os autores identificaram se passou durante os séculos
XVII e XVIII, quando Zumbi seria apenas um título pouco mencionado na bibliografia,
11 GOMES, Flávio. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005. 12 FRANÇA, Jean Marcel C.; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Três vezes Zumbi: a construção de um herói brasileiro. São Paulo: Três Estrelas, 2012. 13 Ibid. p. 15
22
ganhou importância gradual e aos poucos se destacou pela importância militar. A segunda
linha de tradição é inaugurada no século XIX e teria alguns adeptos até a metade do século
XX, Palmares era um foco de barbárie africana a ser combatido e o Zumbi criado por esses
autores só tinha alguma utilidade quando valorizava o grande feito do herói das batalhas
contra Palmares, o bandeirante Domingos Jorge Velho. A terceira linha de tradição surge no
início do século XX, quando a construção de Palmares e Zumbi ganhou uma coloração
heroica marxista e contestatória, embora na primeira metade desse século houvesse ecos da
tradição anterior.
Como já foi dito, a narrativa ganha centralidade, não só porque aparecem mais
citações diretas, algo que não é muito explorado nos trabalhos anteriores, mas há uma
preocupação em demonstrar o que foi escrito, como os textos foram organizados e o que eles
falam sobre Zumbi e Palmares. Por outro lado, não é analisado como os autores construíram
os textos. A obra apenas une diversos textos por uma característica em comum, como o
heroísmo de Zumbi, sendo deixada de lado a diversidade dos seus trabalhos.
França e Ferreira dedicaram-se a narrativa deixando de lado o que estava fora dela,
possivelmente porque se tratava de um trabalho amplo, cuja delimitação temporal
corresponde a quatro séculos, apesar de ter a delimitação espacial reduzida. Julgamos que foi
o problema inverso ao que ocorreu com o trabalho de Andressa Reis, que optou pelos lugares
de produção e pelo contexto, dialogando pouco com a narrativa.
É estranho que França e Ferreira não tenham dialogado com Reis, o que possivelmente
teria tornado o “Três vezes Zumbi” ainda melhor. Essa falta de diálogo nos causou
estranhamento, porque, como foi dito anteriormente, a dissertação de Andressa Reis foi
defendida em 2004, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
São Paulo, no Campus de Franca, instituição na qual França e Ferreira são professores, sendo
o primeiro é servidor desde 2001; enquanto o segundo teve toda a sua formação em História
vinculada à Instituição, desde a graduação, iniciada em 1997, até o doutorado defendido em
2006, ingressando na UNESP como servidor em 2010.
Os dois trabalhos têm objetivos muito parecidos, investigam a construção da imagem
de Zumbi e são dedicados à história da historiografia, realizando o que entendemos ser uma
“história dos problemas”, já que procuram pesquisar a historiografia sobre Zumbi e o
23
Quilombo dos Palmares.14 Por fim, acabaram chegando a conclusões parecidas, pois
identificaram a segunda metade do século XX como o momento da consolidação da imagem
heroica de Zumbi e do Quilombo dos Palmares, vinculado a uma literatura marxista e ao
simbolismo das lutas travadas pelos movimentos sociais, particularmente o movimento
negro.15 Isso significa que pouco a pouco Zumbi e o Quilombo foram constituídos como
símbolos de identidade nacional.
Com exceção do artigo produzido por Moacyr M. Sant’Ana, todos os outros textos
procuraram de alguma maneira abarcar, expor, explicar ou analisar a extensa produção sobre
Palmares. Sobre esses textos podemos afirmar que abordam a historiografia sobre Palmares,
dividindo-a em períodos de produção, no entanto, mesmo apresentando algumas diferenças
entre o número de fontes analisadas, ou, com pequenas mudanças na organização dos autores
que fazem parte desses períodos, há muita proximidade em suas abordagens. Percebemos que
esses trabalhos procuraram organizar grandes grupos coerentes de autores que construíram
uma imagem ou representação comum de Zumbi e de Palmares, pouco percebendo os
discursos históricos dentro desses grupos como múltiplos e até divergentes, num esforço de
síntese, procuraram justificar em longos períodos coerências entre autores diferentes.
Apesar de tímida, a produção sobre a historiografia do Quilombo dos Palmares traz
contribuições muito valiosas para a reflexão sobre o tema. A primeira é que foram feitos
diversos levantamentos dos textos que falam sobre o assunto, tendo sido encontrado um
número elevado de fontes históricas, todas atualmente referenciadas, o que torna mais fácil
encontrá-las, sendo essas compostas de: documentos, artigos, capítulos de livros, trechos de
livros e livros. A segunda consiste na demonstração de determinadas visões ou imagens de
Zumbi e do Quilombo dos Palmares que auxiliam na compreensão de como eram as relações
sociais e étnicas em períodos distintos. A terceira, é a exposição da longevidade da produção
sobre o Quilombo, que alcança mais de quatro séculos, permitindo acompanhar as
transformações epistemológicas da história no Brasil.
No entanto, vimos que essa bibliografia especializada ainda deixou algumas lacunas e
possibilidades para novas pesquisas. Chegamos à constatação de que essas obras, embora
tratem do mesmo assunto, não dialogaram ou debateram entre si, provavelmente pelo curto
14 BLANKE, Host W. op. cit. 2006 p. 29. 15 Cf. REIS, Andressa M. B. op. cit.2004. p. 117.; Cf. FRANÇA, Jean Marcel C.; FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. p. 151
24
período de lançamento de uma para outra, como é o caso dos historiadores Jean Marcel C.
França e Ricardo Alexandre Ferreira que ignoraram a pesquisa da Andressa Reis.
Outra lacuna é a falta de pesquisa mais aprofundada sobre os autores e suas obras.
Todos ignoraram as peculiaridades dos autores e de seus textos, procurando realizar
exposições mais superficiais, tornando possíveis as classificações adotadas. Junto com essa
questão, poderíamos colocar a necessidade de que sejam realizadas pesquisas sobre os lugares
de produção. Embora Andressa Reis tenha feito um ótimo trabalho, ainda é preciso realizar
pesquisas que se concentrem em grupos menores para poder perceber os conflitos e projetos
individuais e dos grupos.
Como vimos, os dois trabalhos mais completos estão preocupados em analisar a
construção de Zumbi dos Palmares, por causa disso, o Quilombo torna-se um objeto de
segundo plano, é uma grande possibilidade de pesquisa analisar o próprio quilombo como
espaço representado na historiografia. Por último, compreendemos que apenas dois dos cinco
trabalhos foram desenvolvidos com características de pesquisa de história da historiografia,
mesmo assim, nenhum deles dialogou diretamente com a produção especifica da disciplina ou
demonstrou uma reflexão voltada para isso; a preocupação de ambos era a imagem ou a
representação de Zumbi e de Palmares. Devido a esse fato, possivelmente, não houve um
aprofundamento maior na análise dos autores, dos lugares de produção, das narrativas, das
concepções de história e das condições, historicamente variáveis, das possibilidades das
experiências do tempo.
Teoria e Metodologia
Analisamos nessa dissertação um elemento historiográfico a escrita de Arthur Ramos
sobre o Quilombo de Palmares, a qual faz parte de um discurso que procura explicar algo
mais amplo, o negro na formação do Brasil. Compreendemos esse espaço como constructo
discursivo de um membro de um grupo de africanistas, que compartilhava objetivos comuns,
utilizando conceitos da antropologia cultural, mantendo uma rede de comunicação e
influências da qual Arthur Ramos é destaque e que procurou pensar o negro e sua
contribuição na composição da nação brasileira.
Também presumimos que o Negro é uma ideia que tem sua história e tradição
produzida pelo estudo do Negro, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e
presença, para a intelectualidade dos estudos antropológicos e etnográficos nas primeiras
25
décadas do século XX no Brasil. O Quilombo de Palmares é parte símbolo, ou, monumento
construído por essa tradição de “Estudos do Negro” no Brasil. Esta denominação que
identifica o grupo de pesquisadores não foi inventada por nós, foram os autores que
afirmaram suas posições na tradição iniciada por Nina Rodrigues e Silvio Romero e que
desenvolveram essa nomenclatura.
Embora demonstre certa homogeneidade, o termo Estudos do Negro esconde uma rede
de disputas que demonstra a diversidade das concepções, mas principalmente a multiplicidade
de grupos de pesquisa. Podemos destacar aqui as disputas entre os baianos, liderados por
Arthur Ramos e os pernambucanos, sob a chefia de Gilberto Freyre, onde cada um desses
grupos reivindicou para si a prioridade nos estudos sobre os africanos no Brasil. 16 Apesar
dessas disputas terem ocorrido, alguns aspectos apontam que essa tradição estava nas mãos de
um grupo coeso de pesquisadores: primeiro, a referência de Raimundo Nina Rodrigues como
precursor dos estudos e criador da tradição; segundo, a influência da antropologia cultural,
principalmente, a desenvolvida por Franz Boas e seus discípulos na década de 30; por último,
o aspecto dessa tradição baseou-se em ideologias hegemônicas, em que a cultura europeia, ou,
da elite “branca” brasileira, eram referências.
Diante desse complexo cenário, dois campos de pesquisa distintos convergem nessa
dissertação: primeiro, uma preocupação em desenvolver uma pesquisa de História Cultural
dos Espaços, concomitante a isso, temos que dialogar com a História da Historiografia. Para
isso, nos preocupamos em entender a produção e a historicidade de certo espaço simbólico
nos discursos históricos, a exemplo dos trabalhos de Manuel Luís Salgado Guimarães, Durval
Muniz de Albuquerque Jr. e Renato Amado Peixoto.17 Pensando a categoria de espaço,
trilhamos uma via consolidada pelo crítico literário e cultural Edward Said, que analisou uma
tradição de pensamento europeia denominada Orientalismo, que congregava em suas fileiras
vários artistas, historiadores, filósofos, políticos, administradores imperiais, etc. De acordo
16 Ver sobre essas disputas entre Gilberto Freyre e Arthur Ramos em: CORRÊA, Mariza. Ilusões da Liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. 2. Ed. rev. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001. 17 GUIMARÃES, Manuel L. S. Nação e civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.1, 1988. p.5-27; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. de. A invenção do Nordeste e outras artes. 2.ed. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Ed. Cortez, 2001. Ver desse autor também:________. Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008; PEIXOTO, Renato A. Cartografias imaginárias: estudos sobre a construção da história do espaço nacional brasileiro e a relação História & Espaço. Natal: EDUFRN; Campina Grande: EDUFCG, 2011.
26
com Said, o objetivo principal dessa tradição era produzir conhecimento sobre o Oriente e
estabelecer uma representação para esse espaço.
Na nossa leitura, o espaço pensado nos moldes de Said tem algumas características
importantes, que vamos expor e tentar relacionar com o nosso objeto. A primeira delas é a
existência de uma tradição de pensamento na produção do espaço, que ao mesmo tempo é
formativa, pois funciona através de um processo didático,18 e de conversão disciplinado,
como leva em consideração o papel do sujeito e sua subjetividade, que poderá ser observado
na maneira como ele se posiciona no texto com relação a tradição.
A segunda característica, coloca o espaço produzido na relação de alteridade e
identificação dos homens, através da qual Said considera perfeitamente possível argumentar
que alguns objetos diferenciadores são criados pela mente e que esses objetos, embora
pareçam ter existência objetiva, possuem apenas uma realidade ficcional, muitas vezes tão
poderosa quanto a realidade física, ou até mais. Essa realidade ficcional serve para estabelecer
os espaços familiares e os espaços estranhos, as fronteiras geográficas que delimitam e
determinam os espaços do “nosso” e o dos “outros”, e são acompanhadas de outras fronteiras
como as sociais, étnicas e culturais de maneiras previsíveis. Como o autor observou: “Basta
que ‘nós’ tracemos essas fronteiras em nossas mentes; ‘eles’ se tornam ‘eles’ de acordo com
as demarcações, e tanto o seu território como a sua mentalidade designados como diferentes
dos ‘nossos’.”19
A última, e principal característica desse espaço, é o papel importante dado a
subjetividade na sua construção. A partir das reflexões do filósofo Gaston Bachelard sobre a
análise da poética do espaço, Said reconhece que o espaço objetivo é muito menos importante
do que a essência da qual é poeticamente dotado, que é em geral uma qualidade com valor
figurativo ou imaginário, que é possível nomear e sentir. Ainda segundo Said, “o espaço
adquire um sentido emocional, ou mesmo racional, por uma espécie de processo poético, o
mesmo pelo qual as áreas distantes, vazias ou anônimas são convertidas em significado para
nós”20. A compreensão do espaço imaginativo está localizada além da atmosfera objetiva e
adentra em significados simbólicos ou poéticos, que podem determinar ou delimitar as
18 Esse processo é ensinado, tem suas próprias sociedades, periódicos, tradições, vocabulário, retórica, tudo basicamente conctado e suprido pelas normas políticas e culturais. Ver SAID, Edward. Orientalismo. op. cit. p. 108. 19 SAID, Edward. Orientalismo. nov. ed. 2. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 91 20Ibid. p. 92.
27
fronteiras do Outro e consequentemente do Eu.21 Um processo no qual o tempo também pode
ser pensado, já que as relações com o tempo são sempre imbuídas de valores, para esse
evento, ele determina a ação de uma história imaginativa.
A História da Historiografia tem uma importância fundamental para esse trabalho,
principalmente por questões de método. Para o historiador Estevão Rezende Martins, a
historiografia “produz e reproduz intrigas (enredos, tramas) sobre como o tempo é
experimentado e interpretado por uma determinada sociedade”, portanto, seria tarefa da
história da historiografia “analisar as interpretações do tempo, a estratégias da verdade, a
evolução e a construção de certezas assim como os respectivos modelos narrativos”.22
Essa nova especificação da historiografia faz da história da historiografia
uma análise do a priori histórico, isto é, das condições historicamente
variáveis da possibilidade das experiências do tempo, tal como registradas
nas memórias e refletidas no presente. Isso lhe é possível mediante a análise
do contexto dos modelos de narrativa, previamente dados na sociedade, e de
suas estratégias específicas de verdade. 23
Essa disciplina, que se dedica a refletir e analisar a produção da história, tem suas
origens no início do século XIX na Europa, segundo Host Walker Blanke na época do
Iluminismo com o livro de L. Wachler, “História da arte e da pesquisa históricas desde o seu
redescobrimento na cultura literária na Europa”.24 Para Valdei Lopes de Araújo, a história da
historiografia parece ter nascido junto com a consolidação da história como um discurso
autônomo no final do século XIX, uma de suas primeiras funções foi traçar o progresso da
pesquisa histórica desde a antiguidade até sua forma científica moderna.25
Trata-se de uma disciplina recente para o campo da História, dentro da realidade desse
saber na Europa. No Brasil, ela é ainda mais recente, pois o lugar de fundador da disciplina
Historiografia do Brasil só foi atribuído a José Honório Rodrigues na década de 1970.
Enquanto campo teórico, a História da Historiografia é uma novidade no Brasil, destacando-
se o trabalho de Manuel Luís Salgado Guimarães desde o final da década de 1980. Em 2003,
21 Edward Said também denomina esse espaço imaginativo como geografia imaginativa, além disso designa história imaginativa como tempo imaginativo. Ver: Ibid. p. 92-93. 22 MARTINS, Estevão Rezende. Historiografia: o sentido da escrita e a escrita do sentido. História & Perspectivas, Uberlândia, n.40, p. 55-80, jan/jun, 2009. p. 61. Acesso em: http://www.seer.ufu.br/index.php/historiaperspectivas/article/view/19208 23 Idem. 24 BLANKE, Host Walker. op. cit. 2006. p. 27. 25 ARAÚJO, Valdei Lopes. Sobre o lugar da história da historiografia como disciplina autônoma. Locus: revista de história. Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 79-94, 2006.
28
foi criado um lugar nacional para debates sobre o tema, o “Grupo de Trabalho em Teoria da
História da ANPUH”; posteriormente, foi formada a “Sociedade Brasileira de Teoria e
História da Historiografia” (SBTHH), em 2009. Nos últimos vinte anos houve uma
consolidação dessa disciplina, principalmente, com os programas de pós-graduação em
História e com a SBTHH.
O historiador Michel de Certeau já havia exortado que a escrita da história era uma
operação histórica, devendo ser compreendida como a relação entre um lugar (um
recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), os procedimentos de análise (uma disciplina) e a
construção de um texto (uma literatura), assim, a análise dessas premissas permitiria dar
contornos precisos as leis silenciosas que organizam o texto. 26 Essa operação faz parte da
“realidade” da qual trata, e que pode ser apropriada enquanto “prática” humana.
Essas ideias de Certeau nos permitem propor a análise dos textos historiográficos
sobre Palmares com a “análise de discurso” baseada nas ideias de Jacques Derrida27, sendo
assim, seria esse trabalho um exercício de “desconstrução”. Entendemos este exercício
enquanto um procedimento de questionamento, de decomposição e de reorganização dos
discursos. O objetivo da “desconstrução” é revelar no texto o que está contido nele, mas que
muitas vezes não está claramente visível; trazer à tona os significados dos discursos e mostrar
o trajeto de sua produção. O percurso é o principal alvo da “desconstrução”, mas não se pode
confundir com a vida do autor, pois compreende-se como o próprio ato de produzir.
Antes de prosseguirmos, é preciso afirmar que o discurso ou o texto é apenas uma
parte da escritura para Jacques Derrida28. Essa consistiria na forma do homem se imprimir no
mundo como um trajeto percorrido, ela estaria além da fala ou da escrita. Como percurso ou
operação, a escritura possui marcas, rastros do próprio trajeto, do próprio ser, que ficam
gravadas também nos discursos, mas nem sempre são visíveis e podem aparecer como
silêncios e espaçamentos.
Na composição da escritura existem muitas “cenas de escritura” ou “cenas de
produção”, com isso a multiplicidade da autoria é uma das compreensões que percebemos em
Derrida e surge como crítica enfática a ideia de que a autoria é uma fixação da identidade,
26 CERTEAU, Michel. A escrita da História. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. 27 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 4. reimp. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. 28 Ibid. p. 74-75
29
homogênea e coesa. Abordaremos a multiplicidade de Arthur Ramos com dois conceitos de
Renato Amado Peixoto29: “palcos de produção” e “teatro de construção”. Segundo o autor:
(...) podemos identificar um ‘palco de produção do espaço’, a
partir de suas especificidades, e um ‘teatro de construção do
espaço’, a partir do estudo da ‘interlocução da produção do
espaço’, ou seja, aqueles que produzem e aquilo que é
produzido numa instituição se relacionam com aqueles que
produzem e o que é produzido noutras instituições. No caso,
para que o teatro de construção exista, pressupõe-se um
entendimento recíproco da importância que este se firme como
um espaço de entendimento continuado e de pertencimento
recíproco de seus membros, onde o que é produzido é objeto de
elucubração, representação e reprodução.30
Ramos faz parte de diversos “palcos de produção”, instituições que possibilitariam a
construção de representações, de conhecimentos e de espaços. Na interlocução da produção
desses palcos é constituído o “teatro de construção”, que na nossa pesquisa trata-se dos
“Estudos sobre o Negro no Brasil”, ou “Estudos Afro-brasileiros”. Segundo as contribuições
de Peixoto, observar os “palcos de produção” e o “teatro de construção” faz parte do processo
de explicitação da “cena de produção”31. É nesta condição que estava inserido Arthur Ramos
no ato de criar o Quilombo dos Palmares, isto significa levar em consideração os movimentos
intelectuais, sociais e políticos com os quais o autor interagia, além disso, o seu diálogo com
os intelectuais, suas obras e ideias. Na análise, as indagações do crítico, devem levar em conta
não apenas os elementos integrantes da obra, mas também aqueles que, deliberadamente não
foram incluídos pelo autor em seus argumentos e interpretação.
Nem mesmo o escritor mais solitário conseguiria escrever uma linha sequer, se não
fosse um leitor ou ouvinte de outros. Todo intelectual faz parte de uma tradição de
pensamento, de pelo menos um locus de produção, de uma disciplina, de uma área de atuação.
De acordo com as reflexões de Jacques Derrida, podemos afirmar que faz parte da vida do
autor uma linha sucessória de “espectros” que o antecederam e que retornam, numa quase 29 PEIXOTO, Renato A. Cartografias imaginárias: estudos sobre a construção da história do espaço nacional brasileiro e a relação História & Espaço. Natal: EDUFRN; Campina Grande: EDUFCG, 2011. P. 49. 30 Idem. 31 PEIXOTO, Renato Amado. "Duas Palavras": Os Holandeses no Rio Grande e a invenção da identidade católica norte-rio-grandense na década de 1930. Revista de História Regional. Ponta Grossa, v. XIX, nº 1, p. 35-57, jan./jun. 2014. p. 49. Acesso em: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/viewFile/6016/4087
30
existência, durante as várias gerações anteriores e atuais.32 Essa autoria pensada como
multiplicidade que antecede o ato de produzir, pode ser compreendida também pelas
colaborações de Edward Said, para o qual os escritos nunca são totalmente livres, mas
limitados nas suas imagens, pressuposições e intenções.33 Os campos de estudos em torno de
temas específicos, tanto quanto as obras, são influenciados pela sociedade, por tradições
culturais, pelas circunstâncias mundanas e por influências estabilizadoras como as
instituições. Devemos abrir aqui um parêntese, pois estes dois intelectuais também pensaram
o papel da subjetividade e o indivíduo na produção.
A tradição é algo muito importante para a construção de discursos historiográficos ou
intelectuais. Devido a sua importância na composição do discurso, deve ocupar um lugar
privilegiado para quem deseja entender a historiografia. Podemos resumir o que entendemos
por tradição aproximando-nos da maneira de ver de Estevão C. de R. Martins34, para quem ela
é um acervo material e imaterial de conhecimentos e agires formados pela permanência na
consciência histórica da cultura social do presente, dos componentes que provém do “tempo
passado”. Não é uma manutenção acrítica de práticas ou convicções passadas pela mera razão
de ser passada, tão pouco é “o que vem trazido, no tempo, pelo pensar e agir dos homens em
sociedade até onde alcance a memória”.35
Procuramos ter cuidado quando pensamos a noção de tradição dentro deste trabalho
pois, como observou Michel Foucault, é necessário: “questionar essas sínteses acabadas, esses
agrupamentos que, na maioria das vezes, são aceitos antes de qualquer exame, esses laços
cuja validade é reconhecida desde o início; é preciso desalojar essas formas e essas forças
obscuras pelas quais se tem o hábito de interligar os discursos dos homens; é preciso expulsá-
las da sombra onde reinam.” Determinadas concepções de “tradição” trazem consigo um
perigo de construir ideias de unidade, estabilidade, homogeneidade, linearidade, continuidade
e origem comum a um grupo de fenômenos sucessivos e análogos. De outra maneira,
pensamos a tradição como heterogênea e dinâmica, pois ela pode estabelecer o diálogo entre
as continuidades e as rupturas, por ser sempre um movimento do presente ao olhar para o
passado, ela está em constante mudança, assim como, o tempo a que ela está condicionada ao
devir do presente.
32 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p.27. 33 SAID, Edward. op. cit. p. 274 34 MARTINS, Estevão C. de R. op. cit.2009. 35 IbIdem. p. 58-61
31
A homogeneidade em torno da tradição, da memória – ou da ausência de memória-, ou
da unidade do “arquivo”, é uma parte do que Derrida chama de “mal de arquivo”. A ideia de
arquivo para Derrida é extremamente ampla, porém pressupõe um suporte que pode ser
escrito ou não, a pulsão de conservação, o desejo de permanência e imortalidade, por isso uma
experiência irredutível de futuro.36
O arquivo é uma tentativa de construir uma homogeneidade, esquivar-se do
fragmentário ou lacunar e inscrever uma totalidade ilusória. Todos os elementos reunidos e
organizados nele procuram construir uma compreensão de totalidade, porém é formado por
escolhas, cortes, seleções e descartes. Isto significa que, por um lado, o arquivo expõe alguns
sentidos sobre uma determinada coisa, no entanto, silencia outros. O arquivo não é neutro,
mas o que é por ele guardado é como efeito de verdade. Portanto, o arquivo não comporta
tudo, não guarda tudo, mas o que é contido nele é visto como totalidade e verdade. Devemos
também levar em consideração que na leitura deste arquivo, um outro arquivo é composto
particularmente.
A perturbação do arquivo deriva de um mal de arquivo. Estamos com mal de
arquivo (em mal d’archive). Escutando o idioma francês e nele, o atributo
“em mal de”, estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não
sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia
nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente,
indeterminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás
dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É
dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um
desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de
casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto.
Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão,
nem compulsão de repetição, nenhum “mal-de”, nenhuma febre, surgirá para
aquele que, de um modo ou outro, não está já com mal de arquivo.37
O trecho acima demonstra a vontade de reconstituir ou remontar o todo, porém trata
do problema que isso implica, pois recuperar o começo absoluto do arquivo é impossível. A
tradição para nós é como este “arquivo”, no qual os intelectuais procuram construir as suas
referências, mas se para eles parece uma totalidade possível e coerente – mal de arquivo -,
36 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. 37 DERRIDA, Jacques. op. cit. 2001. p. 118.
32
para nós entendemos como uma, dentre muitas possibilidades de construção do arquivo, o que
pode ser analisado como uma produção do presente. Neste caso, as categorias de “herdeiro” e
de “herança” trabalhadas por Jacques Derrida no livro “Os espectros de Marx”38 são de suma
importância para a compreensão da relação intelectual estabelecida por Arthur Ramos com os
estudos sobre o negro no Brasil, desenvolvidos por seu antecessor Raimundo Nina Rodrigues.
A ideia de herança, em Jacques Derrida39, parte da escolha feita pelo herdeiro, por isso,
entendê-la como radicalmente heterogênea, pois existe devido a diferença entre o “espectro”
surgido da herança (uma determinada visão sobre o exemplo, uma releitura, uma
interpretação, uma corrente de pensamento, etc.) e o “morto” originário que já não pode mais
existir em vida (O sujeito original do exemplo, ex.: Marx, Nina Rodrigues, etc.). Por causa
dessa diferença, não existe uma oposição na herança, e sim um “disparate”, quase uma
justaposição sem dialética que possibilita existir diversos “espectros” e, também, diversas
heranças, assim a ideia de existir uma unidade na herança é ilusória, causada pela “injunção”
de “reafirmar escolhendo”.
Ao desenvolvermos a pesquisa, nos deparamos com o desafio de pensar, por um lado,
a tradição da historiografia sobre Palmares, por outro, o “teatro de construção” dos Estudos
Afro-brasileiros, para, a partir disso, pensarmos o sujeito e sua cena de produção e a escritura
da República de Palmares. Desse modo dividimos a dissertação em duas partes, cada uma
responsável por pensar um desses aspectos, porém não ignoramos os diálogos entre as
trajetórias.
Na Primeira Parte, intitulada “O Teatro de Construção de Arthur Ramos”,
especificamente no capítulo “Os Estudos Afro-Brasileiros”, abordaremos o pensamento sobre
o lugar do negro na nação, o teatro de construção que é o grupo de estudos sobre o negro no
Brasil, os palcos de produção em que Arthur Ramos esteve inserido. Como o médico e
antropólogo alagoano esteve envolvido com muitas instituições, acreditamos que algumas
delas são marcantes para entendermos a sua composição do Quilombo dos Palmares. Além
disso, procuraremos estabelecer as relações com outros intelectuais, membros desses palcos
de produção, para analisarmos a rede intelectual que Ramos estava construindo a seu redor.
38 Para Derrida o herdeiro é aquele que assume uma herança, que estabelece o exemplo. Por sua vez, a herança é para Derrida heterogênea ela não está ligada a similaridade, muitas vezes o herdeiro comete o parricídio ele estabelece a diferença entre ele e o exemplo e entre ele e os outros herdeiros. Ver sobre herdeiro e herança: DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da divida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Reblume-Dumará, 1994. p. 33; 54-55; 78-79. 39 DERRIDA, Jacques. op. cit. 1994 p. 33.
33
Com o capítulo “The Negro in Brazil”, pretendemos explicar o livro escrito entre 1938 e
1939, a sua composição e ao mesmo tempo estaremos explicitando a concepção de Arthur
Ramos sobre o “Negro brasileiro”.
Na Segunda Parte, chamada de “Desconstruindo a República de Palmares”, faremos
uma análise do discurso de Arthur Ramos, a partir da herança intelectual por ele construída
em torno de Nina Rodrigues e outros escritores da história palmarina; relacionaremos a sua
produção sobre os africanos e seus descendentes no Brasil, com a produção do Quilombo dos
Palmares como espaço do Negro brasileiro. No “De Palmares ocultado ao ‘mestre’ Nina
Rodrigues com sua ‘Troya negra’”, demonstraremos quais tipos de perspectivas sobre
Palmares existiam nos séculos XVIII e XIX. Expondo essas perspectivas, será possível
compreender a diferença fabricada pelos autores do início do século XX e demonstraremos a
tradição de pensamento sobre o Quilombo dos Palmares. Daremos destaque aos textos de
Rodrigues, “Troya Negra” e “As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX –
Palmares”, pois pressupomos que a renovação da tradição historiográfica operada por ele
iniciou novas perspectivas sobre o tema, tendo uma influência marcante nos escritos do
professor Ramos. No capítulo “Metáforas diferentes”, proporcionaremos uma análise da
herança a partir de uma comparação entre as estruturas narrativas, as metáforas e os
significados dos textos de Nina Rodrigues e de Arthur Ramos. Por último, em “A República
de Palmares” exploraremos melhor a visão heroica de palmares como símbolo de uma
nacionalidade.
34
PRIMEIRA PARTE
O Teatro de Construção de Arthur Ramos
Os Lusíadas? – devolveu-me o volume –
Somos sem dúvida o eco de outras vozes.
José Eduardo Agualusa (A casa secreta)
No vocabulário crítico, a palavra precursor
é indispensável, mas tem que ser purificada de toda
conotação de polêmica e derivação. O feito é que
cada escritor cria seus precursores. Seu labor
modifica nossa concepção do passado, como há de
modificar o futuro. Nesta correlação nada importa a
identidade ou a pluralidade dos homens.
Jorge Luís Borges (Kafka y sus precursores)
35
I. Os Estudos Afro-Brasileiros: a operação historiográfica com diversos
palcos de produção
Nesse capítulo, construiremos o “teatro de construção”, no qual Arthur Ramos esteve
envolvido até o momento da escrita dos textos sobre o Quilombo dos Palmares. Logo, demos
importância até o ano de 1942, ano da última publicação do texto “O espírito associativo do
Negro”40, composto, em sua maior parte, com o que já houvera feito em “A República de
Palmares”41. Os escritos são tão parecidos que, muitas vezes, trataremos o primeiro como uma
versão modificada do outro. O professor Ramos esteve envolvido com muitas instituições e
lugares de produção do saber, portanto, metodologicamente, trabalharemos apenas com
aquelas que são marcantes para entendermos a composição do Quilombo dos Palmares.
Procuraremos estabelecer as relações com outros intelectuais, membros desses “palcos de
produção”, para analisarmos a rede intelectual construída por Ramos. Deste modo, serão
verificados os conceitos e ideias debatidos nesses lugares, levando em consideração a
concepção de “rastro” desenvolvida por Derrida, a qual marca a “escritura” com uma
anterioridade.42
Optamos por elaborar uma narrativa fundamentada nos diversos analistas das obras e
nos biógrafos de Arthur Ramos, contudo, também foram importantes os trabalhos sobre as
instituições, o campo de saber (Estudos Afro-Brasileiros), a Antropologia no Brasil e outros
palcos de produção do nosso pesquisado. Fizemos essa escolha devido as limitações do tempo
de pesquisa, desenvolvida em apenas dois anos, e tendo em vista que era necessário, para o
sucesso da dissertação, um capítulo, ou um item, que tratasse disso, pois faz parte da nossa
metodologia, e teoria, a ênfase no “teatro de construção”, nos “palcos de produção” e na
“cena de produção”. Entendemos que, fazendo isso, podemos desconstruir a escritura de
40 Esse artigo foi uma conferência nas festividades de comemoração do Cinquentenário da Abolição da Escravidão, depois disso foi publicado em dois suportes, primeiro na Revista do Arquivo Municipal do Rio de Janeiro em 1939, depois no livro Aculturação Negra no Brasil . Ver: RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. Revista do Arquivo Municipal, Rio de Janeiro, v. XLVII, n.04, p. 103-126, mai., 1939. RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. In: ______. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1942. p. 117- 144 . 41 RAMOS, Arthur. The Negro Republic of Palmares. IN:_____. The Negro in Brazil. Washington, D.C.: The Associated Publishers, 1951. p. 55-65.; RAMOS, Arthur. A República de Palmares. In:______. O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1956. p.59-70. 42 Derrida desenvolve a ideia de rastro do rastro, ou significante do significante no qual compreendemos que ideias, conceitos, palavras, textos, silêncios etc., remetem-se a outros que os antecedem, sendo lidos na escritura. DERRIDA, Jacques. op. cit. 2011. p.75-90
36
Ramos, pois analisaríamos dessa maneira a relação entre o poder e o saber, as possibilidades
epistemológicas, os conceitos (re)lidos ou (des)lidos, o trajeto da “escritura” e a narrativa,
sendo esta compreendida como princípio.
O negro no pensamento sobre a Nação brasileira
O debate sobre a nação, a identidade brasileira e os problemas nacionais, foram
fundamentais na primeira metade do século XX. Praticamente todos os intelectuais que
conquistaram notoriedade, estavam inseridos nesse ambiente. A antropóloga Luitgarde Barros
coloca Arthur Ramos como um dos jovens da década de 1920 empenhados na transformação
do mundo. Não sei se o mundo nesse momento já seria uma preocupação dele, mas o Brasil
provavelmente era.43 Segundo Barros, em um livro inédito - “José Américo, sociólogo” -
escrito enquanto Ramos era aluno da Faculdade de Medicina da Baía, ele debateu o livro “A
Paraíba e seus problemas”, lançado em 1923. Nas suas colocações, condenava o Estado
brasileiro pelo problema da miséria da nação. Num primeiro momento, nos parece correto
pensar sobre a formação da nacionalidade no período pesquisado. Quais eram as
características do pensamento sobre a nação no qual Arthur Ramos estava imerso?
Quando foi anunciada a abolição da escravidão, o final do cativeiro foi festejado nas
cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, o Paço Imperial foi tomado pela multidão,
comemorando a assinatura da Lei Áurea, com direito a desfiles de grupos abolicionistas e
populares pela cidade. O jornalista José do Patrocínio, líder abolicionista negro, foi
homenageado em vários cantos da cidade, proclamando diversos discursos naquela noite,
sempre que possível exaltando o nome da Princesa Isabel. Tais festejos, transformaram-se em
grandes manifestações populares em várias cidades brasileiras, era um reflexo da amplitude
social do movimento antiescravista no Brasil. Era, portanto, um anúncio para as elites
brasileiras e para o Estado – aqui centrado na figura do Imperador e da família Real, mas
futuramente na República e nos representantes políticos - de que um grupo social, antes
desprezado, ou pouco levado em consideração na sociedade e pelo poder público44, agora
cantava sua liberdade plena e de direito e, gritava por sua cidadania e por igualdade.
43 BARROS, Luitgarde. Fazendo ciência, construindo o social: uma vida em tempos de utopias. In:_______ (Org.). Arthur Ramos. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2011. P.314-340. (Memória do Saber) p. 323. 44 Devemos considerar que os escravos, principalmente em centros urbanos, procuravam a justiça em ocasiões específicas de compra de alforria, ou de contestação dos seus senhores, procurando sempre uma liberdade. Sobre
37
O 13 maio de 1888 era mais do que o fim do cativeiro para os ex-escravos e o
restante da população negra. A abolição deveria possibilitar aos negros direitos de cidadania
iguais aos da população branca, o acesso à terra, ao trabalho, à educação e a outras condições
de vida que dariam paridade com o restante da população. 45 Os libertos queriam que seus
filhos tivessem oportunidades de ascensão social, tinham expectativas de um presente e futuro
melhores. As lutas continuaram, sejam pelos direitos, pela participação política, pela
representação política, os conflitos eram constantes e complexos, entre negros e brancos,
negros monarquistas (Guarda Negra) e republicanos, ex-senhores e ex-escravos.46 Após um
ano e meio da Lei Áurea, além da liberdade conquistada com muita luta por esses negros47, e
outros abolicionistas que aderiram a sua causa, a vida desses homens e mulheres não havia
mudado, a cidadania plena tão esperada e o direito a igualdade não foram contemplados, a
luta por esses direitos continuaram nas fazendas e nas cidades.
Foi então que, em 15 de novembro de 1889, o golpe de Estado foi dado e a República
proclamada, a esperança daquele povo continuava. O novo regime, a tal República, como nos
mostrou Maria Tereza C. de Mello48, era discutida nas ruas, nos meetings e nos jornais. Era o
progresso e a modernidade brasileira chegando; o governo para o povo; finalmente, a
cidadania plena seria conquistada; pelo menos, esse era o discurso dos republicanos
alimentando as esperanças da população de cor. Porém, essa população logo descobriria que a
República também negaria a cidadania, sendo excluídos e marginalizados por esse governo.
Para José Murilo de Carvalho49, o povo, formado em sua maioria por negros e mestiços, não
desfrutaram da cidadania plena na República; até teriam uma certa cidadania civil, porém era
isso ver: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas na escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 45 Sobre as diversas histórias de libertos e a luta pela cidadania, dando-lhes uma condição de “quase-cidadão”, ver: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos S. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. Ver também: FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia. Campinas: Ed. UNICAMP, 2006. 46 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Copanhia das Letras, 2009. 47 Atualmente temos uma bibliografia consolidada que demonstra o protagonismo da população negra e mestiça nas lutas pela sua liberdade, através de suas fugas, suicídios, quilombos, associações e a participação no movimento abolicionista como são os casos mais conhecidos de Luís Gama, José do Patrocínio e o Quilombo das Camélias. Diversos autores obras podem e devem ser citados pela importância nessa abordagem, destacam-se os trabalhos de: Hebe Mattos, Marta Abreu, João José Reis, Sidney Chalhoub, Célia Maria Marinho de Azevedo, Wlamyra Albuquerque, Flávio dos Santos Gomes, etc. 48 MELLO, Maria Tereza Chaves de. A república consentida. Rio de Janeiro: FGV, 2007. 49 Estamos totalmente cientes das oposições e críticas nos argumentos de Maria Mello à tese de Carvalho sobre o advento da República, porém sobre o tema abordado no parágrafo não existe impedimentos, pois não apresentam argumentos contrapostos sobre a realidade do negro e mestiço na República. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
38
totalmente negada a cidadania política, marcado pelo alto índice de analfabetismo e a
proibição do voto às mulheres que impossibilitava a participação política nos pleitos. Por
conseguinte, este cientista político destaca as constantes perseguições do regime republicano a
essa população, como as destruições de cortiços e o “bota-abaixo” do Rio de Janeiro. Apesar
da constante privação da cidadania e perseguições às práticas culturais e sociais dos negros e
mulatos, partimos da premissa de que enquanto sujeitos históricos, essa população construiu,
com suas práticas discursivas e não-discursivas, fissuras50 na concepção de nação hegemônica
e homogênea. É dessa maneira que interpretamos a constante procura por justiça, os protestos,
as revoltas, ou até mesmo a insistência em suas práticas culturais como o samba e a capoeira.
Podemos observar que no final do século XIX, diversos intelectuais brasileiros
estiveram preocupados em explicar o negro e seu possível papel na sociedade e na nação.
Alguns pensadores, como o jurista sergipano Silvio Romero, procuravam compreender o
Brasil, desde a década de 1870, com um vocabulário e arcabouço teórico composto pelas
“novas ideias” advindas da Europa e dos Estados Unidos da América. Esses conceitos
estavam em todos os tipos de obras e textos no final do século XIX e início do XX, nos
jornais, revistas científicas, romances, ensaios etc.51
No Brasil é a época do surgimento dos “homens de sciencia”: intelectuais que
acreditavam que seus escritos eram fundamentalmente científicos, utilizavam métodos e
teorias cientificas para construírem as suas explicações sobre temas como a literatura, o povo
brasileiro, o negro e o mestiço. Romero e o médico maranhense Nina Rodrigues podem ser
compreendidos como exemplos desses homens, pelo menos esse era o termo que atribuíam-
lhes na época. 52, mas não significa que os “homens de letras” deixaram de ser expoentes de
cultura. Machado Assis, como outros escritores, também se utilizou do pensamento científico
em suas obras, como em “O Alienista” de 1882. Como Mariza Corrêa observou, no momento
em que o negro se tornou “livre” coincidiu com a emergência de uma elite profissional que
incorporara os princípios liberais à sua retórica, assim como “com o surgimento de um
discurso científico, etnológico, que tentava instituir para ele uma nova forma de inferioridade,
50 BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 1998. 198-238. 51 SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil-1870-1930. 10 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 23-42. 52 Esta distinção foi cunhada por Sylvio Romero, entendendo-se como “homem de sciencia” vinculado a ideias das ciências modernas provenientes da Europa e América do Norte, em oposição a Machado de Assis que seria um “homem de letra”, um artista. Ver: SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1970-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 28-42.
39
retomando os ensinamentos de nossa história escravista recente”.53 Era grande o número de
eruditos envolvidos com esse discurso e suas ideias eram diferentes e conflituosas, apesar
disso, um termo era comum no pensamento desse período, a raça.54
A historiadora Wlamyra Albuquerque55 demonstrou que não foi uma coincidência a
ideia de raça ter repercussão no Brasil justamente nos últimos anos da escravidão e na
Primeira República. Os projetos emancipacionistas não excluíam a construção de novas
formas de dominação fundamentadas na noção de raça, eram tentativas cada vez mais
incisivas de adaptar a sociedade pós-abolição às hierarquias raciais montadas durante a
escravidão. Pensando por essa premissa, o Brasil republicano e pós-abolicionista não
significou para as elites – política, intelectual ou econômica - pensar uma sociedade de
oportunidades iguais. Na verdade, a preocupação estava em garantir que brancos e negros
continuariam sendo não só diferentes, mas desiguais.56 A ideia de racialização estava por trás
da tentativa da manutenção de privilégios, da manutenção da condição de “senhor”,
demarcando-se fronteiras e recompondo territórios que se desfizeram com a emancipação.
As teorias raciais constituíram como problema a consequência da miscigenação,
partindo evidentemente de um problema mais profundo: o negro enquanto raça. Para alguns,
fundamentados nas concepções do suíço Louis Agassiz – radicado nos Estados Unidos da
América - e/ou do francês Arthur de Gobineau, a “mistura racial” criava um tipo biológico e
social degenerado e incapaz mentalmente, o mulato57. Podemos destacar como locus desse
tipo de produção intelectual a Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), uma das mais
importantes instituições científicas do século XIX, na qual formou-se um grupo de
especialistas que adotou as teorias raciais para os estudos de medicina legal.58 Eram estudados
diversos males como a “doença mental”, a epilepsia e o alcoolismo, compreendidos como
53 CORRÊA, Mariza. op. cit. p. 49. 54 Ver sobre as diferenças e conflitos nas visões sobre a questão raça e nacionalidade: DANTAS, Caroline Vianna. O Brasil café com leite: debates intelectuais sobre mestiçagem e preconceito de cor na primeira república. Tempo. Niterói, v.13, n.26, p. 56-79, 2009. Captado em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-77042009000100004. 55 Muito interessante para o debate sobre a racialização da população brasileira o segundo e o terceiro capítulo do livro. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O Jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 56 Sobre as condições de diferença e desigualdade fundamentado na cor da pele no Brasil, ver: BARROS, José d’Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação social brasileira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. 57 O termo “mulato”, provêm da palavra mula, o animal estéril que nasce do cruzamento do jumento com a égua. 58 Sobre o papel dessa instituição no racismo científico, ver: SCHWARCZ, Lília M. op. cit. 2011. p. 202-217
40
consequências da mistura de raças, da mestiçagem. Neste sentido, a miscigenação era algo a
ser evitado, numa população que se pretendia saudável.
Contudo, no Brasil, a leitura dessas teorias raciais foi muito original. A via
interpretativa mais comum sobre a miscigenação entendia que ela era o fator que garantiria a
civilização no Brasil. Acreditava-se que por meio da miscigenação, a médio e longo prazo, em
vez de termos uma população infértil e degenerada, teríamos um povo predominantemente
branco e apto à civilização. Os estudos do sociólogo norte-americano Edward Telles59 e do
historiador André Mota60 afirmam que, desde o final do século XIX, houve investimentos na
imigração de trabalhadores europeus e, em contrapartida, barreiras para a vinda de negros e
asiáticos. Aos imigrantes brancos caberia o papel de remediar os danos dos séculos de
escravidão, de melhorar a “raça brasileira”, embranquecer a população e civilizar os
costumes. Esta ideologia, fundamentada no “racismo científico”, era encontrada em grandes
locus de saber, como a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e foi amplamente divulgada
nos “ensaios histórico-sociológicos” do jurista e historiador Oliveira Vianna nas décadas de
1920 e 1930. Quando parecia que as concepções de raça já não se sustentavam na
intelectualidade brasileira, nos anos 30, o discurso de Vianna ainda tinha leitores.
O “racialismo científico” influenciou diversas políticas públicas no Brasil. Desde
políticas mais brandas, no que diz respeito a questão racial, como o trabalho do doutor
Osvaldo Cruz e muitos que dedicavam-se ao “sanitarismo” e “higienismo”, procurando
“sanar” as doenças do povo brasileiro, sem necessariamente enfatizar a imigração.
Acreditamos que, neste caso, cabe a reflexão de Flávio dos Santos Gomes e Petrônio
Domingues sobre as estratégias do poder público brasileiro de raramente assumir uma
perspectiva abertamente racialista, mas “os efeitos de suas ações não deixaram de apresentar
efeitos bastantes perversos do ponto de vista das disparidades raciais”. 61 Por outro lado,
existiam propostas para políticas públicas vinculadas às correntes mais radicais, claramente
racialistas, um exemplo é o pensamento do médico brasileiro Renato Kehl, divulgador das
ideias do britânico Francis Galton, criador da concepção de eugenia. O Dr. Kehl, junto com
outros médicos, fundou a “Sociedade Eugênica de São Paulo”, formada por céticos frente a
59 TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Ford, 2003. 41-68. 60 MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. (Passado Presente) 61 GOMES, Flávio S.; DOMINGUES, Petrônio. Da Nitidez e invisibilidade: legados do pós-emancipação no Brasil. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2013. p. 324.
41
seleção natural e que defendiam políticas ou ações de esterilização dos degenerados, mestiços
e negros.62 As diversas vertentes que se estenderam até a década de 1940, em modelos
diferentes de explicação, com várias teorias e métodos de compreensão do social, fazem parte
do que Andreas Hofbauer chamou de “força homogeneizadora da Nação”.63
Sabemos que desde a independência do Brasil, em 1822, pensar a Nação passou a ter
fundamental importância. Para este fim, passou a existir – em 1838 – o IHGB, cuja concepção
dedicou-se a uma ideologia de nação vinculada ao Estado imperial e seu poder de unidade –
territorial, populacional, política e administrativa - bem como, a colonização e a herança
portuguesa de civilização. A questão dos escravos e dos indígenas pareceu, inicialmente,
importante nesta concepção de nação, pelo menos no famoso texto de Von Martius. Porém,
para estes dois grupos, como também para as amplas “massas”, não serviu à integração da
população, pois eles continuariam fortemente marginalizadas no decorrer do século XIX. Ao
indígena coube uma visão romântica, ligada a uma visão do bon sauvage, idílica e distante da
realidade dos autóctones.
Na virada do século XIX, a concepção de nação ligada a unidade do Estado já não era
mais funcional, principalmente devido a República, estabelecia-se uma nova visão do povo
sustentando o Estado. Neste período, o discurso de unidade nacional preocupa-se muito com a
composição do povo. Com isso, a participação dos negros nesse novo regime significou um
problema para as elites políticas e intelectuais, a construção da homogeneidade e unidade
nacional, sem possibilitar uma igualdade, ou seja, mantendo a hierarquia social. Nesse caso,
as preocupações com os indígenas parecem que eram menores, uma vez que os Museus
construíam uma visão desses povos como “selvagens”, como espelhos do passado,
possivelmente pela existência do afastamento geográfico e cultural, no qual podemos incluir o
papel do etnólogo que constrói uma noção de distância temporal, espacial e intelectual do
objeto.64
A nova nação brasileira, ao inscrever-se como civilizada, nesse caso, e de acordo com
as concepções da raciologia, era problemática pelo elemento negro que “maculava” a
62 MOTA, André. op. cit. 63 HOFBAUER, Andreas. Uma história do branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p. 237-261. 64 Sobre isso falaremos no capítulo “Desconstruindo a República dos Palmares” com o exemplo do negro, mas para compreender a construção dessa visão da etnografia sobre o indígena na nação brasileira, recomendo o trabalho: TURIN, Rodrigo. Tessituras do tempo: discurso etnográfico e historicidade no Brasil oitocentista. Rio de janeiro: EDUERJ, 2013.
42
formação. Para tal, surge como solução, a noção de uma nação mestiça, pois pela
miscigenação a nação brasileira poderia embranquecer-se e civilizar-se. O povo passaria a ser
um, o mestiço. Para Carolina Vianna Dantas65, os intelectuais brasileiros, das primeiras
décadas do século XX, assumiram a missão de buscar uma identidade para “o brasileiro” em
meio a uma população marcada pela heterogeneidade e tiveram a dificuldade de pensar: a
diversidade étnica e seus intercâmbios múltiplos; uma grande variedade de imigrantes
estrangeiros vindos em massa para o país (ao longo dos séculos XIX e XX); as diferenças de
classe, raça, de regiões, de costumes, de aparências e de falares.
A pesquisa de Dantas66 sobre a revista Klaxon (1904-1909) e o Almanaque Garnier
(1903-1914) é muito reveladora. Em sua análise, demonstrou que mesmo antes do
“Modernismo” da década de 1920, diversos intelectuais (o cronista Gil, Olavo Bilac, Affonso
Arinos, Pereira da Costa, Alexina de Magalhães, etc.) esforçaram-se para selecionar e
divulgar um acervo cultural comum e original à nação como: cordões, sambas e capoeira.
Dantas acredita ter sido um movimento indispensável para a inserção do país naquela
modernidade. Promoveu mudanças na visão sobre a cultura e identidade nacional, os
intelectuais participantes desses periódicos reconheciam a ação positiva dos negros e mestiços
na construção das originalidades culturais brasileiras, ainda que não escapassem de
determinados preconceitos, especialmente no que dizia respeito à influência africana.
A complexidade e heterogeneidade brasileira, conjuntamente com a realidade da sua
origem na escravidão e os limites epistemológicos, lançaram um desafio para aqueles que
queriam pensar a Nação. Para Renato Ortiz67, a resposta ao desafio foi o “mito das três raças”,
lançado desde o final do século XIX, passível de ser encontrado nos escritos de Sílvio
Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. No entanto, ao utilizar uma linguagem
antropológica, afirma que esse mito das três raças ainda não conseguia se ritualizar, pois as
condições materiais para sua existência seriam meramente simbólicas. Esse antropólogo
estava afirmando que a condição imposta por uma visão racista, que retirava do mestiço as
qualidades de racionalidade, possibilitou que no começo do século ele fosse visto como
problema ao desenvolvimento real do capitalismo no Brasil. E teria sido apenas o
65 DANTAS, Carolina Vianna. O Brasil café com leite: história, mestiçagem e identidade nacional em periódicos (Rio de Janeiro, 1903-1914). 264f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Departamento de História, 2007. p.15 66 DANTAS, Carolina Vianna. A nação entre sambas, cordões e capoeiras nas primeiras décadas do século XX. ArtCultura. Uberlândia, v. 13, n. 22, p. 85-102, jan.-jun. 2011 67 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. p.38
43
modernismo, como movimento cultural, que trouxe consigo uma consciência histórica, até
então, esparsa na sociedade, na qual as teorias raciológicas tornaram-se obsoletas, sendo
necessário superá-las, porque a realidade social do mundo moderno impunha outro tipo de
interpretação do Brasil.
Mário de Andrade (1893-1945) e Gilberto Freyre (1900-1987) parecem bons exemplos
de fundadores de um novo olhar sobre a nação, nos moldes da mestiçagem, da relação
popular/erudito e da cultura. Concordamos com as colaborações de Ortiz, pois, de fato, as
imposições epistemológicas prejudicavam pensar a nação brasileira, seja pelo mito da
mestiçagem ou não, pois a concepção de inferioridade racial, tanto dos povos originários
negros e indígenas, quanto do produto da miscigenação, o mestiço, apontavam sempre para o
atraso ou para impossibilidade de alcançar a civilização.68
As concepções de nação do Modernismo não romperam com o governo de 1930, pelo
contrário, foram fortalecidas por uma política de Estado voltada para cultura, tornou-se um
“negócio oficial”, implicando um orçamento próprio.69 Combinado com uma indústria
editorial ascendente, desde que Monteiro Lobato fundou a “Casa Editora Revista do Brasil”,
em 1918, mas principalmente na década de 1930 quando ocorre o “boom” do mercado de
livros.70 Tais características estão ligadas a Arthur Ramos. Devemos compreendê-lo como
intelectual dos anos 1930. Não estamos querendo resumi-lo ou defini-lo pelo contexto, afinal
foi a sua escritura que possibilitou que fizéssemos essa leitura.
Algumas acontecimentos fizeram da década de 1930 diferenciada na construção da
nacionalidade. Em primeiro lugar, ocorreu uma consolidação da concepção do Brasil como
país mestiço, fazendo parte de uma ideologia nacional produzida em todas as instituições
culturais vinculadas ao Estado. Segundo, o racismo científico torna-se obsoleto e amplamente
criticado pelos intelectuais desse período, um dos sintomas dessa mudança foi a
transformação da política de imigração com o início de medidas restritivas, que produziram
uma queda nas entradas de estrangeiros. 71 Terceiro, o recrutamento de intelectuais de todas as
68 Procuramos mostrar, na medida do possível, como a compreensão de nação com a participação das três raças e a concepção de um Brasil mestiço foram gestados. Evidentemente não demos ênfase, aos diversos personagens dessas construções, pois prolongaria demais o nosso argumento. 69 MICELI, Sérgio. Intelectuais a Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.p.199-237. 70 DUTRA, Eliana F. Cultura. GOMES, Angela do C. (Coord.) Olhando para dentro: 1930-1964. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. (História do Brasil Nação: 1808-2010; 4) p. 229-274; MICELI, Sérgio. op. cit. 2001.p. 141-198. 71 Foi criada uma nova legislação, resultante de estudos realizados por uma comissão especialmente nomeada para tal fim, que gerou inúmeros decretos-lei. Por exemplo, em 1938 foram criadas uma lei de nacionalidade,
44
áreas de atuação, que assumiram as diversas tarefas políticas e ideológicas determinadas pela
crescente intervenção do Estado nos mais diferentes domínios da atividade. Tal intervenção
ocorre em todos os setores de produção, difusão e conservação do trabalho intelectual e
artístico. Por último, mas não menos importante para nossa pesquisa, houve a consolidação do
“campo de estudo” conhecido, na época, como “Estudos Afro-Brasileiros”, o teatro de
construção da concepção de “negro brasileiro”.
Essa década foi muito importante na construção de Arthur Ramos como intelectual e
antropólogo, quando ocorreu a sua aproximação com participantes, já renomados, dos
movimentos culturais da década de 1920, provavelmente, depois de estabelecer residência no
Rio de Janeiro, em 1934.72 Em palestras do Dr. Théo Brandão (1907-1981), etnógrafo e
folclorista, discípulo e amigo de Arthur Ramos, falava-se de um grupo que se reunia na casa
do antropólogo, “nas quais Ramos tocava piano para os amigos, convivia com Mário de
Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Aurélio
Buarque de Holanda, Diegues [Manuel Diegues Jr.] (...)”.73 Luitgarde Barros afirma que
Arthur Ramos viveu a euforia idealista e esperançosa do movimento de 30, mas decepcionou-
se principalmente com o autoritarismo do momento.74
O Dr. Ramos e a Escola Nina Rodrigues
A seguir, apresentaremos Arthur Ramos e embora a narrativa siga um padrão temporal
linear, é apenas por uma função didática utilizada para situar o personagem. Não queremos
fazer uma biografia de Ramos, uma vez que não compreendemos a vida como uma série única
de acontecimentos sucessivos e constantes. Segundo as reflexões do sociólogo Pierre
Bourdieu, os acontecimentos biográficos são deslocamentos no espaço social, não é possível
compreender a trajetória, sem ter construído os estados sucessivos do campo em que se
desenrolou tais deslocamentos; ainda segundo ele, existe uma ilusão biográfica que consiste
em: “Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como a narrativa
uma lei de extradição, uma lei de expulsão de estrangeiros, uma lei para controle de imigrantes por nacionalidade, segundo cotas estabelecidas. Além de outras medidas. Não ignoramos o fato de que a participação dos imigrantes em movimentos operários, greves e boicotes, era visto pelo governo como fator de desagregação social e desordem política. GOMES. Ângela do C. População e sociedade. Sobre as mudanças das políticas de imigração e o fim da eugenia, ver: _____. (Coord.) op. cit. p. 41-90. p. 52. 72 BARROS, Luitgarde. op. cit. 2000. p. 28. 73 Ibid. p. 28. 74 Ibid. p. 30.
45
coerente de uma sequência significativa e coordenada de eventos, talvez seja ceder a uma
ilusão retórica (...).”75
Arthur Ramos de Araújo Pereira nasceu na cidade de Pilar, situada na zona açucareira
de Alagoas, no dia 7 de julho de 1903. A cidade era um grande porto lacustre a beira da lagoa
Manguaba, importante entreposto comercial de Alagoas, na qual eram escoados os produtos
locais.76 O filho do Dr. Manoel Ramos de Araújo Pereira e da Dona Ana Ramos de Araújo
Pereira teve sua formação educacional inicial em Pilar, depois foi para Maceió para terminar
os seus estudos no liceu. Em 1921, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB),
localizada em Salvador, formando-se doutor em Ciências Médicas e Cirúrgicas com a tese
“Primitivismo e Loucura”, em 1926.
O olhar médico de sua formação não pode ser esquecido como experiência,
principalmente, porque Ramos se aproxima da psicologia durante esse período e adota as
influências de Sigmund Freud, Paul Eugen Bleuler e Lucién Lévy-Bruhl, que se tornam
característica marcante do seu pensamento e chega a receber criticas de Gilberto Freyre , no
início de sua jornada pelo seu “psicanalitismo”.77 Veremos no capítulo "A República de
Palmares" como Arthur Ramos operacionaliza os conceitos de “mente primitiva”,
“inconsciente coletivo” e “mentalidade pré-lógica”. De fato, sua abordagem utilizando a
psicologia social diminuiu com o tempo em seus trabalhos, mas nunca desapareceu
totalmente.
Depois de formado, foi trabalhar no Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues (IMLNR).
A instituição foi criada como Instituto Médico-Legal da FMB, em 1905, por meio de um
acordo entre a faculdade e o governo do estado, através da Secretaria de Polícia e Segurança
Pública, e oficializado por um acordo assinado em 1907 pelo Prof. Oscar Freire (1882-1923).
O Instituto recebeu o nome Nina Rodrigues em homenagem ao professor catedrático de
Medicina-Legal, que militou pela integração entre a medicina e a polícia, falecido em 1906.
Este locus congregou alguns personagens que construíram suas identidades intelectuais
baseadas no interesse comum pelas temáticas de pesquisa e numa herança intelectual de
Raimundo Nina Rodrigues. Estamos falando da “Escola Nina Rodrigues”78, um grupo de
intelectuais e eruditos da década de 20, principalmente médicos, que procuraram desenvolver
75 BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Ed. Papirus, 1996. p. 76 76 BARROS, Luitgarde. Arthur Ramos e as dinâmicas sociais de seu tempo. Maceió: EDUFAL, 2000. p. 22. 77 CORRÊA, Mariza. op. cit. p. 228. 78 A partir daqui chamaremos de Escola.
46
pesquisas nas temáticas que o “mestre” Nina Rodrigues já havia trabalhado: a medicina-legal,
a psicologia, a antropologia – o problema do Negro. Em suas obras, Arthur Ramos está a todo
o momento mencionando seu vínculo com a Escola e, ao mesmo tempo, reivindicando um
lugar como herdeiro intelectual do “mestre”. Que tipo de lugar de produção é a Escola?
Quem participava desse locus? E quais eram os seus objetivos? Por que é importante para
Arthur Ramos construir uma herança vinculada a imagem de Nina Rodrigues?
Apesar da existência do IMLNR, a Escola não era uma instituição, não foi através da
pratica institucional que foi construída a identidade de seus intelectuais. Podemos colocá-la
como “lugar de fala”, vinculado a memória de Rodrigues, a partir do seu legado na medicina
legal e na antropologia. Para exemplificar que não é a instituição que define, vejamos dois
membros da Escola: Flamínio Fávero (1985-1982), discípulo de Oscar Freire, formado em
1919 na Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo; enquanto Leonídio Ribeiro (1893-
1976), discípulo de Afrânio Peixoto, formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
em 1916. Basicamente os membros da Escola eram médicos e juristas que se dedicaram a
prática da Medicina Legal no Brasil, durante a Primeira República. O outro eixo, era formado
por aqueles que além da medicina legal, tinham interesse na atividade antropológica.
Para Côrrea a vinculação a Nina Rodrigues não era baseada nos princípios teóricos e
metodológicos, tendo em vista que o “mestre” estava morto desde 1906, os conhecimentos
pareciam chegar até a terceira geração desse grupo um pouco diluídos pelas figuras
intermediárias de Afrânio Peixoto (1876-1947) e de Oscar Freire, ambos ex-alunos da FMB.
O Dr. Peixoto formou-se em 1897, morou desde 1902 no Rio de Janeiro, onde foi inspetor de
Saúde Pública e diretor do Hospital Nacional de Alienados (1904), além de ministrar aulas de
Medicina Legal na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a partir de 1907. Enquanto o Dr.
Freire formou-se em 1900, fundou o IMLNR e foi professor de Higiene e Medicina Legal da
FMB no ano de 1907; tornou-se o primeiro diretor do Instituto em 1911; mudou-se para São
Paulo em 1918, para assumir a cátedra de Medicina Legal na Faculdade de Medicina de São
Paulo.
Vejamos como Arthur Ramos aborda no livro “O Negro na civilização brasileira” o
início da pesquisa do “mestre” Nina Rodrigues e, também, a sua filiação a essa corrente de
pensamento:
47
Foram os aspectos sociológicos da Medicina que sempre lhe retiveram a atenção. E aí, ao lado de muitos trabalhos sobre Medicina Social, teve as suas vistas voltadas para o estudo dos grupos negros da população, na Bahia. Os seus estudos foram conduzidos inicialmente para as religiões e o folclore dos candomblés na Bahia, escrevendo em 1896, o seu primeiro trabalho sobre o assunto, depois reunido em livro, O animismo fetichista dos Negros baianos.(...)79
Continuando os seus estudos, Nina Rodrigues alarga os primeiros objetivos, confinados apenas as religiões e seitas dos Negros. Passa a estudar o folclore, as tradições artísticas, a história... reunindo as suas observações num plano vasto, que teria o titulo geral de O problema da raça negra na América Portuguesa. (...)80
De acordo com Arthur Ramos, o médico maranhense teria se aproximado da temática
do negro, por causa da Medicina Social. A sensação que é passada pelo seu texto é uma
natural aproximação entre a Medicina Social e os estudos sobre o Negro no Brasil. Essa
naturalidade poderia também justificar uma aproximação de Arthur Ramos com o tema, já
que o seu percurso profissional é muito semelhante ao do mestre, desde a Especialização em
Medicina Social e Psiquiatria na FMB até os trabalhos com a população negra e mestiça.
Antes, porém, é necessário falarmos de Raimundo Nina Rodrigues, para depois
retornar à Ramos, nos momentos de intersecção desses personagens. Nina Rodrigues, como
ficou conhecido nacionalmente, era filho de um senhor de terras, o Coronel Francisco Solano
Rodrigues, dono do Engenho São Roque, no interior da província do Maranhão. Sua mãe,
Luiza Rosa Nina Rodrigues, era descendente de uma família sefardita que veio para o Brasil
fugindo das perseguições aos judeus na Península Ibérica. Como era costume no século XIX,
os filhos integrantes da elite rural terminavam os estudos básicos no liceu na capital da
província, nesse caso São Luís. Rodrigues foi para a Faculdade de Medicina da Bahia, em
Salvador, no ano de 1882, pediu transferência para a Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, onde concluiu o quarto ano, porém, em 1886, retornou à FMB e voltou ao Rio de
Janeiro em 1887, para defender a sua tese. Após formado, voltou para seu estado natal,
clinicou em São Luís por todo o ano de 1888, quando já contribuía com a revista Gazeta
Médica da Bahia. Rodrigues fez concurso para adjunto da cadeira de Clínica Médica na
Faculdade de Medicina da Bahia, cujo titular era o conselheiro José Luiz de Almeida Couto,
79RAMOS, Arthur. op. cit.. 1971. p. 206. 80 Ibid. p. 207.
48
republicano histórico, abolicionista, político de projeção nacional, seu mentor e futuro
sogro.81
A antropóloga Mariza Corrêa observou que a prática médica foi um dos motivos que
levou Rodrigues para a Antropologia, mas também enfatizou a influência do contexto
maranhense na obra do autor. De acordo com ela, na segunda metade do século XIX em São
Luís do Maranhão, a modernização e as questões raciais pareciam estar tencionando a
sociedade com uma produção intelectual e literária sobre a vida da população negra e mestiça.
Nina Rodrigues, aparentemente, quebrou algumas regras ao se interessar pela pesquisa
empírica da questão racial82, já que a tradição intelectual, que possivelmente havia no
Maranhão, sobre a temática estava concentrada na literatura e no jornalismo, composta por
intelectuais como Raimundo José de Souza Gasoso, João Francisco Lisboa, Aluísio Azevedo,
Gonçalves Dias, Celso de Magalhães, etc.
Seria, por conseguinte, a partir dos problemas inicialmente levantados por essas
leituras, que Nina Rodrigues iniciou uma tradição de pensamento científico sobre a questão
do negro no Brasil. Não pode passar despercebido a estadia dele em cidades populosas,
marcadas por uma grande população negra e mestiça, como São Luís, Rio de Janeiro e
Salvador, sendo esta última a que ele morou por mais tempo, vinte e dois anos. Segundo
Robério S. Souza83, a Bahia, principalmente a capital Salvador, chegava à primeira década do
século XX na “contramão da história”. Com suas características de cidade tradicional,
contrariava os novos tempos do discurso da ordem republicana brasileira. A visão dos letrados
e visitantes sobre a Bahia no final do XIX, era o de um lugar em que ainda se vivia como no
passado, consequentemente, isso estava impedindo-a de ser inserida na era do progresso e da
civilidade. Para as elites progressistas, tudo estava pelo avesso: o nítido atraso econômico de
sua capital em relação às outras capitais e a incipiente industrialização; o projeto frustrado de
branqueamento racial das elites; a memória da escravidão que se fazia presente nas ruas, no
universo do trabalho, nos costumes e na cultura da grande maioria da população, composta
81 CORRÊA, Mariza. Raimundo Nina Rodrigues e a “garantia da ordem social”. REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 130-139, dezembro/fevereiro 2005-2006. 82 CORRÊA, MARIZA. op. cit. 2001. p. 67. 83 SOUZA, Robério Santos. Experiências de trabalhadores nos caminhos de ferro da Bahia: trabalho, solidariedade e conflitos (1892-1909). 2007. f. 159. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2007. p. 83-85.
49
por negros, mulatos e mestiços, nas cidades e nos campos; tudo isso constituía obstáculos à
ideia de civilização daqueles tempos.84
De diferentes formas, as pretensões das elites progressistas foram frustradas pela
realidade que se apresentava. Salvador, nos primeiros anos do regime republicano, era uma
cidade negra, comercial e com constantes crises econômicas. Como vimos no tópico deste
capítulo, “O negro no pensamento sobre a Nação brasileira”, para os intelectuais e elites
políticas nacionais, a coisa não era diferente; neste momento de “redescoberta da nação” eram
entendidos como obstáculos os indígenas, os africanos e os mestiços. Estes grupos,
principalmente os dois últimos, eram compreendidos como barreiras para alcançar o
esplendor da civilização, problemas para a formação de uma verdadeira identidade nacional,
desestabilizadores da ordem social desde o século XIX.85 No período pós-abolição, a visão
das elites políticas e intelectuais sobre a presença e a partição destes grupos na sociedade não
era positiva, fundamentada nas diversas correntes de pensamento que eram debatidas no
Brasil: o positivismo, o racismo científico e o evolucionismo.
A preocupação com a ordem social tornou-se fundamental na República,
especialmente em cidades grandes como Salvador, coube aos médicos e aos juristas
formularem teorias e políticas de controle dos grupos “desviantes”: loucos, criminosos,
criança-problema, pobres, doentes, negros, mestiços, etc., por isso que Nina Rodrigues se
tornar professor da FMB foi fundamental, pois o interesse pelo desenvolvimento das
pesquisas sobre negros e mestiços iniciou-se quando ele se tornou professor de Medicina
Pública, a partir de 1891, posteriormente corroborado com a assunção da cátedra de Medicina
Legal. Será importantíssimo para a aproximação com o tema a assistência médico-legal dada
a doentes mentais, cuja composição étnica era majoritariamente de negros e mestiços.
Utilizava-se da antropologia física e criminal, além das concepções teóricas do racialíssimo
científico para explicar essa população, suas características culturais, físicas, sociais e
mentais.
Em diversos textos de Nina Rodrigues sobre os “desviantes”, a ordem social, o
progresso e a civilização estão sempre ameaçadas pelas condições raciais do Brasil. Os
primeiros textos dele sobre o tema racial brasileiro foram publicados a partir de 1890. Neles
84 Ibid. p. 83). 85 QUEIROZ, Maria Isaura. Identidade cultural, identidade nacional no brasil. In: TEMPO Social 1. São Paulo: Edusp, 1989. p. 32.
50
observamos a utilização da condição de raça como determinante para caracterizar e explicar
esses grupos como inferiores, portanto impossibilitados de civilizar-se, ou pelo menos
retardados quanto a civilização, foi destas conclusões que desenvolveu a concepção de existir
“o problema do negro no Brasil”86.87 Outra característica de seus textos foi o diálogo com a
antropologia criminal do italiano Cesare Lombroso (1835-1909) e do francês Alexandre
Lacassagne (1843-1924), médicos e líderes das escolas de criminologia dos seus países, eram
adeptos das teses poligenistas, utilizavam a Antropologia Física especialmente a frenologia
para criar categorias e explicações para existência de diversas raças hierarquicamente
desenvolvidas, Rodrigues fundamentado nas teorias dos dois renomados criminologistas
defendia que as leis penais deveriam levar em consideração o estágio evolutivo do indivíduo e
as limitações raciais.88 Em alguns de seus escritos sobre os mestiços foi utilizado a análise da
psicologia coletiva, inspirada no trabalho do criminologista italiano Scipio Sighele (1968-
1913) membro da escola de Lombroso, consistindo no estudo clínico do líder e da multidão
que o segue entendendo as condições de contágio das emoções e os diversos tipos de
multidão, por meio desta teoria Rodrigues explicou Canudos como loucura epidêmica.89 A
observação e análise da cultura, da sociedade e da mentalidade desses grupos foi frequente
nos trabalhos do Dr. Nina Rodrigues, sendo talvez o primeiro intelectual brasileiro a
desenvolver um trabalho de observação das práticas culturais dos negros, com visitas
regulares a terreiros, porém quando explicou os fatos encontrados ainda estava preso à teorias
do racismo científico e da psicologia social evolucionista, colocando práticas como o “cair no
santo” como surto coletivo ou produto de mentalidade primitiva e inferior.90
Nina Rodrigues faleceu em Paris (França), durante uma viagem para participar de
congressos em Viena e Lisboa, no mês de julho de 1906, ele escreveu artigos para revistas
nacionais e internacionais, inclusive em revistas editadas por Lacassagne e por Lombroso,
tendo reconhecimento na área da Medicina Legal. Trataremos da teoria e da metodologia de
86 Arthur Ramos resinificará na década de 1930 esta frase, dando-a uma conotação que poderíamos interpretar como o negro como problemática intelectual para explicar a nação. 87 RODRIGUES, Raimundo Nina. Os mestiços brasileiros. Gazeta Médica da Bahia. Salvador, mar, Tomo XI, N. 9, p.401-407, 1890; _____. Estudos de craniometria: o crâneo do salteador Lucas de Feira e o de um índio assassino. Gazeta Médica da Bahia. Salvador, mar, Ano XXIV, n. 9, p. 385-388, 1892 88 RODRIGUES, Raimundo Nina. Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brazil. 3. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional/Brasiliana, 1938 [1894] 89 RODRIGUES, Raimundo Nina. A loucura epidêmica de Canudos. Antônio Conselheiro e os jagunços. Revista Brazileira. Rio de Janeiro, out./dez., Ano 3, Tomo 12, p. 129-144, 1897; _____. As Coletividades Anormais. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2006 [1939]. (Biblioteca de Divulgação Científica) 90 A Troya Negra: erros e lacunas da História de Palmares. Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. Recife, v.11, n.63, p. 645-672, set., 1904; ______. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010 [1932]. Disponível em: <http:/www.bvce.org>;
51
Nina Rodrigues, no capítulo “O ‘mestre’ Nina Rodrigues e a sua ‘Troya negra’, como modelo
de escrita”.
Voltando agora ao “discípulo” de Nina Rodrigues, o Dr. Arthur Ramos, vejamos como
ele narra a sua entrada na Escola do “mestre”:
Com a morte de Nina Rodrigues, em 1906, os estudos científicos sobre o Negro ficaram interrompidos por um largo espaço de tempo. Dentro deste período de silêncio, a única voz que se levantou na Bahia, cheia de entusiasmo e emoção, em defesa do Negro brasileiro, foi a de Manuel Querino, ele próprio de origens africanas. (...)
Em 1926, começamos [Arthur Ramos] a reunir, na Bahia, material de estudo sobre o Negro. Filiado à escola de Nina Rodrigues, como médico legista do Instituto que tem o nome do mestre baiano, encetamos pesquisas nos candomblés baianos, que deram origem aos seguintes trabalhos: Os horizontes míticos do Negro na Bahia (1932; A possessão fetichista na Bahia (1932); Os instrumentos musicais dos candomblés na Bahia (1932); O mito de Yemanjá (1932); O Negro na evolução social brasileira (Conferência na Universidade do Rio de Janeiro, 1933); As religiões negras no Brasil (Curso realizado em setembro de 1934). Ampliando os primitivos objetivos, estamos trabalhando na obra geral O problema do Negro no Brasil, da qual já há três volumes publicados, O Negro Brasileiro, O Folclore Negro do Brasil e As culturas Negras do Novo Mundo. Desejando sistematizar os estudos sobre o Negro, é criada a Biblioteca de Divulgação Científica, no Rio, que entre outros objetivos do seu programa de edições, tem reunido o maior número de trabalhos sobre o Negro no Brasil. 91 [grifo nosso]
Observe que ele data a entrada para o IMLNR, como a entrada dele na corrente de
pensamento da Escola. O termo “mestre” encontrado na citação foi repetido por Ramos em
muitos escritos; ele construiu essa herança, embora cunhasse críticas e correções aos escritos
do “mestre”, principalmente no que diz respeito à perspectiva teórica do racismo científico
marcante nas obras de Rodrigues. Foi justamente por seu trabalho no Instituto de Medicina
Legal e no Hospital São João de Deus – a partir de 1928 -, que teve contato com a população
negra e mestiça, iniciando suas pesquisas sobre o curandeirismo, cultos e rituais religiosos do
candomblé e estudos de antropologia física. Característica marcante do trabalho como médico
legista ou de psicólogo nestes tipos de instituições, durante a primeira metade do século XX,
era a preocupação com a manutenção da ordem social e a relação direta com o público negro e
mestiço. 92 Outro acontecimento que podemos destacar foi a recepção organizada pela FMB
para Afrânio Peixoto em 1926, após uma ausência de mais de 20 anos na instituição, o ex-
91 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 203; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 199. 92 CÔRREA, Mariza. op. cit. 2001. p. 170.
52
aluno de Nina Rodrigues foi homenageado, e o discurso de Arthur Ramos como representante
dos estudantes impressionou-o.93
Arthur Ramos é membro da terceira geração da Escola, a sua formação como médico e
a vinculação ao Instituto ocorreram 20 anos após a morte do “mestre”. Possivelmente as
informações sobre Rodrigues se deu pela leitura dos textos, pela formação na FMB, pelo
trabalho no IMLNR, e principalmente pelo intermédio de Afrânio Peixoto, seu amigo. No
entanto, segundo Mariza Côrrea, Arthur Ramos foi o intelectual que mais utilizou a presença
na Escola e o nome de Rodrigues, como legitimidade de sua prática científica. No livro à qual
está dissertação é dedicada a analisar, ele fala sobre a primazia das pesquisas de Rodrigues,
mas disfere críticas:
Sobre o Negro e o mestiço brasileiros ainda escreveu Nina Rodrigues vários trabalhos, sobre questões de antropologia criminal e psicologia coletiva. Infelizmente, preso as teorias científicas do seu tempo, Nina Rodrigues defendeu algumas teses hoje inadmissíveis, como a das desigualdades raciais, da degenerescência da mestiçagem, com as consequências, na ordem política e social, destes pontos de vista. Ele atribuiu a contingências de raça o que hoje atribuímos a contingências de culturas. Mas não se pode negar a honestidade, a dedicação, o espirito cientifico, que nortearam os seus estudos.
Nina Rodrigues trabalhou com as hipóteses de trabalho da sua época. Quando nada existia de estudado sobre os grupos humanos que da África chegaram até o Brasil, e aqui se misturaram a outros sangues e a outras culturas, impulsionando o nosso ritmo econômico, foi a palavra do mestre baiano que tratou de penetrar os segredos da psique dos Negros, os mistérios das suas religiões, as instituições da sua vida social. Consagrou a sua vida à compreensão do Negro (...), procurando compensar aquilo que a ciência da sua época tomava como um dogma infalível.
É por isso que a sua Escola se projetou até os nossos dias, embora reinterpretada à luz das novas observações e das novas conquistas cientificas. Toda floração jovem da atual Escola Baiana filia-se cronologicamente, ao nome de Nina Rodrigues.94
Ainda em vida, Nina Rodrigues por sua atuação na Bahia não tinha suas ideias sobre
as raças e a formação nacional tão divulgadas no Rio de Janeiro, pelo menos em comparação
a outros intelectuais locados no Distrito Federal, como Silvio Romero. E devido ao seu
radicalismo nas concepções do racismo científico o seu nome foi lembrado apenas pelos que
discutiam a medicina legal e a criminologia, durante as décadas de 1910 e 1920. Os trabalhos
de Afrânio Peixoto e Oscar Freire, o primeiro no Rio de Janeiro e o segundo em São Paulo, os
93 BARROS, Luitgarde. op. cit. 2000. P. 64. 94 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 201-202; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 197-201.
53
grupos que foram formados por estes alunos de Rodrigues eram pequenos e sem expressão.95
Os seus discípulos praticamente não tinham conquistado uma participação ou um lugar
importante na área médica ou na criminologia, lutando ainda pelo reconhecimento da
medicina-legal e pela integração das Faculdades de Medicina com as instituições policiais e
de segurança pública, os seus projetos fundamentados no de Rodrigues de transformação do
gabinete de medicina-legal em Institutos Médico-Legais ainda não tinham conquistado espaço
no poder público. A constituição do grupo, ainda nos anos 20, estava mais para uma rede em
nível nacional de relações que se estabeleceu de discípulo a discípulo, ou melhor de professor
a aluno, vinculados ao debate iniciado na FMB sobre a medicina legal. 96
O nome do médico maranhense era uma referência indispensável entre os membros
dos grupos que os ex-alunos da FMB estavam formando. Os ex-alunos de Nina Rodrigues e
os médicos formados por eles tinham um apreço pelos discípulos de Lombroso e de
Lacassagne, dessa forma deram continuidade ao importante reconhecimento internacional de
Nina Rodrigues. O nome era mencionado por todos que se dedicaram a prática da medicina
legal neste período. Para Côrrea97 era uma espécie de pretexto para enunciar a unidade entre
médicos e juristas.
Os membros98 da Escola ganharam projeção na década de 1930, Mariza Côrrea
destaca o papel de Afrânio Peixoto neste processo:
Num período de cerca de trinta anos, o ‘discípulo dileto’ de Nina Rodrigues tinha se instalado com sucesso na capital do país, obtido algumas vitórias em terreno aberto à discussão pelas pesquisas e pela atuação de seu mestre – o ensino na perícia, a medicina legal
95 Ibid. p. 156. 96 Ibid. p. 191. 97 Ibid. p. 220. 98 Os lugares sociais ocupados por alguns membros da Escola: Oscar Freire morava em São Paulo desde 1918, onde era professor da Faculdade de Medicina de São Paulo, infelizmente faleceu em 1923, porém deixou discípulos como Flamínio Fávero (1895-1982) que assumiu a cátedra de Medicina Legal, tornou-se diretor da Faculdade, continuando no cargo de professor com a transição para a USP em 1933. José de Alcântara Machado (1875-1941), paulistano, foi vereador da Câmara Municipal de São Paulo de 1911 a 1915, deputado estadual de 1915 a 1924, senador estadual de 1924 a 1930 e senador da República de 1935 a 1937, além disso foi professor de medicina legal na Faculdade de Direito de São Paulo, chegando a direção da instituição, e membro da Academia Brasileira de Letras em 1933. João Batista Luzardo (1892-1982), aluno de Afrânio Peixoto formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1916 e pela Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, em 1918, foi deputado federal de 1924-1930, apoiando Getúlio Vargas no movimento de 1930, foi nomeado pelo presidente provisório para chefiar a polícia no Distrito Federal, em 1931, entrando em desentendimento com Vargas passará a oposição desde 1932. Leonídio Ribeiro (1893-1976), formado na Faculdade de Medicina do RJ em 1916, tornou-se médico legista, assumiu por escolha de Luzardo o gabinete de Identificação do Rio de Janeiro, em 1931, transformando no Instituto de Identificação do Departamento de Polícia, em 1933, implantou o registro dactiloscópico utilizado até hoje.
54
institucionalizada, a legislação federal para os alienados – e ele próprio conquistado alguns discípulos.
Peixoto se tornou membro da Academia Brasileira de Letras desde 1910, foi deputado
federal pela Bahia de 1924 a 1930, na década de 1930 foi professor da Universidade do
Distrito Federal, chegando a ocupar o cargo de reitor em 1935. Foi justamente neste período
Ramos construiu o seu nome no cenário intelectual no Distrito Federal, ou melhor
nacionalmente. Apesar de toda a construção do mito da Escola, colocado no discurso de
Ramos existindo desde quando o “mestre” ainda estava vivo, passando pelo IMLNR, até a
década de 1930. Para Côrrea a Escola só existiu a partir dos anos 30, com as projeções
políticas e intelectuais dos seus membros.
Mariza Corrêa99 afirma que a denominação de Escola Nina Rodrigues, será tarefa do
grupo que desenvolveu pesquisas antropológicas, particularmente de Arthur Ramos, definindo
aquele antigo grupo mantido através da rede de relações, passando a formar desde então o seu
mito de origem e o resgate intelectual de uma parte do trabalho de pesquisa de Nina
Rodrigues. Ela identifica como importante, para a construção da Escola, a mudança de Arthur
Ramos para o Rio de Janeiro, em 1933, quando junto com Afrânio Peixoto deram início à
reedição de livros esgotados de Nina Rodrigues. Corrêa também observou que Ramos passou
a redefinir sua atuação dentro do contexto da Escola, de maneira explícita e reiterada, somente
a partir do momento em que Gilberto Freyre se apresenta no cenário intelectual como
pesquisador interessado na questão das relações raciais. O primeiro texto em que Arthur
Ramos estabeleceu a linhagem completa da Escola foi o livro “Loucura e Crime, Questões de
Psiquiatria”, escrito e publicado no Rio de Janeiro em 1936, nele colocava Afrânio Peixoto
como seu chefe e com isso inscrevia-se na genealogia do “mestre”. Apesar do livro ser
dedicado a psiquiatria e medicina-legal, estava colocando os estudos sobre o negro como a
área na qual esta herança era reivindicada.
A mudança para o Distrito Federal, aparece como o momento de projeção de Arthur
Ramos no cenário intelectual nacional. Ao mesmo tempo, para nós é um evento que confirma
a união e a força da rede de relações sociais construída em torno da FMB e de Nina
Rodrigues, pois o motivo foi um cargo oferecido por indicação de Afrânio Peixoto. Mudou-
se para o Rio de Janeiro para assumir a chefia da Seção Técnica de Ortofrenia e Higiene
Mental da Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal, a convite do secretário
99 Ibid. p. 232.
55
Anísio Teixeira (1900-1971), jurista baiano que tornou-se um educador e divulgador da
Escola Nova. O trabalho na Seção estava relacionado ao exercício da medicina pública como
esforço de manutenção da ordem. A Seção buscava adaptar o indivíduo ao convívio social,
por meio da profilaxia almejava-se alcançar a higiene mental, acompanhado pela educação
cujo papel dos professores e pais era fundamental. Implantou o primeiro serviço de higiene
mental nas escolas públicas, a infância era o alvo do projeto por ser o momento mais propicio
à mudanças e correções. 100 Até 1939, Arthur Ramos trabalhou com mais de 2000 crianças,
consideradas “crianças- problema”, como fruto deste projeto publicou o seu último livro
voltado para área médica e psicologia social, “A Criança Problema: A Higiene Mental na
Escola Primária”.101
Os textos e livros citados anteriormente como lugares em que Arthur Ramos manifesta
a sua condição de herdeiro e estabelece o vínculo com a Escola, estão diretamente
relacionados a demarcação de território no campo intelectual, portanto são manifestações
públicas dessa herança. Um ótimo exemplo da importância da Escola e consequentemente do
“mestre” para os membros dessa rede de relações sociais, pode ser observado em algo mais
privado como a carta de Afrânio Peixoto à Arthur Ramos, enviada em 3 de setembro de 1937,
elogiando a publicação do livro “As Culturas Negras no Novo Mundo”:
Meu querido Ramos,
Como agradecer-lhe a reincidente bondade? Recebo, agora mesmo, ‘As Culturas Negras no Novo Mundo’. Que alegria teria nosso mestre Nina Rodrigues, de um tal discípulo! Meu coração bate, pelo dele. Muito bem Ramos! Recebo também ‘Loucura e Crime’, onde tanto você escreveu sobre mim, sobre nós, nova escola – que alegria, a minha, estar entre Nina e você! (...)102
Perceba que a condição de discípulo foi utilizada com naturalidade para falar de
Arthur Ramos, mesmo este nunca tendo sido aluno se definia como “o mais humilde dos
discípulos” de Nina Rodrigues. 103 Os membros da Escola se beneficiaram de alguma maneira
ao construírem uma memória vinculada ao nome e ao legado do “mestre”. Outra manifestação
íntima da consolidação da Escola, pode ser observado num cartão da viúva de Nina Rodrigues
100 TAMANO, Luana. Arthur Ramos e a mestiçagem no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2013. p. 36. 101 RAMOS, Arthur. A Criança Problema: A Higiene Mental na Escola Primária. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1939. (Atualidades pedagógicas, 37. Biblioteca pedagógica brasileira, 37) 102 PEIXOTO, Júlio Afrânio. Carta a Arthur Ramos agradecendo o envio dos livros As culturas negras no Novo Mundo e Loucura e crime e elogiando seu trabalho. Rio de Janeiro, 3/9/1937. Coleção Arthur Ramos – Fundação Biblioteca Nacional. 103 CÔRREA, Mariza. op. cit. 2001. p.224.
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em agradecimento a Arthur Ramos pela palestra para o jubileu científico do Prof. Afrânio
Peixoto:
Terminada a leitura, apresso-me em agradecer-lhe, sentindo-me profundamente emocionada, e bastante honrada confesso, em ter tido Nina o Afrânio como discípulo dileto, o qual, seguindo a escola do seu grande amigo e mestre, não deixa desaparecer num silêncio que se tornava tristíssimo, o nome e os esforços inauditos que desprendeu, para adquirir e colecionar documentos autênticos, cujo valor, hoje, aumentado, tal a dificuldade em adquiri-los em ambiente propicio, os torna mais valiosos ainda.
Àqueles que não o acompanharam pessoalmente, e mesmo não o conheceram, ele transmite a sua admiração sincera; os seus ensinamentos, e as obras, tornando-os assim, adeptos e admiradores profundos de uma escola, que ressurgindo agora, o teria por certo esquecido, não possuem dos dois bons amigos, que, possuindo igual valor e mérito, o veneram sempre, não perdendo a menor oportunidade para homenageá-lo.
Não há vocabulário que possa exprimir a minha imensa gratidão, por tudo quanto acabo de ler, agradecendo-lhe mais uma vez ainda, o quanto tem feito pela sua memória, não só como cientista e continuador zeloso dos seus estudos, como também, por lhe dispensar sempre e a mim, as maiores considerações.104 [grifo nosso]
Nesta carta o silencio vem à tona na memória da viúva, e a Escola não aparece como
uma constante continuidade, pelo contrário ela aparece na condição de resgate de uma
memória que havia se perdido. Ela contribuiu pra entendermos essa herança como um mito
construído por aqueles que se fazem herdeiros, de maneira curiosa a viúva afirma que Nina
Rodrigues “transmite a sua admiração sincera” e também coloca Arthur Ramos como amigo de seu
marido, a tradição da Escola traz à tona um espectro que se mantém presente. Os membros da
Escola deram visibilidade a Nina Rodrigues, principalmente na década de 1930 quando houve
uma ampla divulgação dos seus trabalhos com os negros. Com a ampla divulgação feita por
Arthur Ramos o mestre foi lido e conhecido no Brasil e nos Estados Unidos. Tratava-se agora
de construir a imagem do antropólogo Nina Rodrigues como fundador dos Estudos Afro-
brasileiros.
Até 1930 quando eram levantadas as questões raciais no Brasil, levava-se em
consideração diversos grupos étnicos, como os debates em torno da imigração. Porém nos
anos 1930 isto mudou, a Escola teve um papel fundamental na transformação do debate em
104 NINA RODRIGUES, viúva. Carta a Arthur Ramos acusando o recebimento do trabalho para o Jubileu Científico de Afrânio Peixoto e agradecendo o que tem feito pela memória de seu marido Nina Rodrigues. [S. l.], 20/2/1937. 3 p. Orig. I-36,3,2.337. Coleção Arthur Ramos - Fundação Biblioteca Nacional.
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torno da herança racial brasileira, principalmente com a produção de Arthur Ramos. Segundo
Mariza Côrrea105 as concepções sobre as relações raciais, sofreram duas alterações
importantes: as relações raciais no Brasil eram definidas como sinônimo quase exclusivo de
relações entre brancos e negros; e passaram a serem consideradas contexto privilegiado do
surgimento de uma cultura brasileira. Os membros da Escola, fariam leituras transformadoras
das pesquisas de Nina Rodrigues, algumas cujo objetivo original era comprovar a fraqueza da
hegemonia branca na cultura nacional criticando a mestiçagem e o sincretismo, seriam relidas
com o objetivo de demonstrar a harmonia nas relações culturais entre negros e brancos.
Foi de fato a recolocação da questão racial nesse momento, e aliada à disputa a respeito de a quem teria cabido a prioridade tanto dos estudos sobre o negro como do resgate da obra de Nina Rodrigues, o que colocou também a ‘escola Nina Rodrigues’, por um breve momento, no centro das atenções dos praticantes de uma disciplina que estava se constituindo como tal no Brasil, a antropologia.
Arthur Ramos e outros discípulos não conseguiram ver os conflitos raciais percebidos
pelo mestre. A ideia de raça como era colocado por Nina Rodrigues, foi desacreditada pelos
seus discípulos. Porém Arthur Ramos afirmou a prioridade do mestre na demonstração do
sincretismo cultural e no tratamento cientifico da questão do negro no Brasil. Excluiu de seus
argumentos a distinção hierárquica entre as raças, tanto quanto a possibilidade dessa distinção
gerar conflitos, a noção de aculturação se transforma em sinônimo de acomodação social. Esta
operação de Arthur Ramos que substituía as noções de raça pela de cultura, procurava incluir
Nina Rodrigues como um precursor da ciência dos anos 1930 que era definida por outros
parâmetros teóricos. Côrrea compreendeu que a herança reivindicada por Ramos, não foi sem
consequência para seu esquema teórico:
Por um lado, sua adesão explicita à escola o obrigava a mencionar criticamente as posições de Nina Rodrigues que não podia, sem violência visível ao contexto do mestre, substituir – caso de degenerescência dos mestiços, por exemplo; ele só as substituindo quando isto lhe parecia possível. Por outro, essa substituição e a crítica, ao deixar de lado o contexto teórico daquelas posições, como que o desobrigavam de prestar atenção a contribuições que não pareciam importantes isoladamente mas que, tomadas em conjunto e contextualizadas poderiam ter ameaçado a coerência de seu esquema culturalista. No caso da questão racial é o que ocorre com a noção de conflito, na perspectiva de Nina Rodrigues analisada do ponto vista da incompatibilidade das raças humanas – o que levou a apontar para a ameaça
105 Idem.
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cultural que uma raça supostamente inferior representava a sociedade baiana.106
Côrrea fez uma distinção entre as consequências dessa vinculação de Arthur Ramos à
Escola, no campo metodológico e no teórico. Para ela metodologicamente a consequência foi
mais retórica do que analítica, foi através da repetição de afirmações de Rodrigues numa
linguagem culturalista ou psicanalítica, os próprios exemplos de conflito citados por
Rodrigues apareciam em Ramos como “reações contra-aculturativas”. No campo teórico, ela
acredita que produziu um sincretismo intelectual na obra de Ramos, produzindo um esquema
interpretativo das relações raciais no Brasil, porém sem questionar o papel específico das
distinções de raça nessas relações, preferiu adotar que eram fundamentadas nas distinções de
classe, com isso aproximou-se da visão de Gilberto Freyre da harmonia nas relações raciais e
da importância do “complexo afro-luso-brasileiro” para a compreensão de cultura nacional.
Arthur Ramos por um lado reivindicava para si a herança de Nina Rodrigues no pioneirismo
do tratamento das relações raciais, porém dialogou com as visões de Silvio Romero e de
Gilberto Freyre da cultura e sociedade brasileira como “mosaico”.
Concordo com Mariza Côrrea, quando afirma que esses intelectuais construíram a
concepção da Escola e sua tradição tendo Nina Rodrigues como mito de origem. Mas
desconsidero o argumento dela, sobre o vínculo ter sido apenas “retórico” no caso dos estudos
de Arthur Ramos sobre o Negro. Tal vínculo constitui a base para os estudos antropológicos,
fundamentado no “método comparativo” elaborado por Rodrigues, e a utilização também do
conceito de “sobrevivência”. Pensarmos a herança como um vínculo construído e
heterogêneo, levando em consideração o sujeito que reivindica e todo o complexo cultural que
o rodeia nos possibilita explicar a influência de Nina Rodrigues na obra de Arthur Ramos. Na
verdade, as marcas da formação de Ramos na Escola foram tão fortes que provocaram tensões
com as concepções teóricas provenientes da “antropologia cultural”, adquiridas na segunda
metade da década de 1930. Faremos uma análise dessa herança na Segunda Parte
“Desconstruindo a República de Palmares”.
Os Estudos Afro-Brasileiros
A formação do campo de pesquisas sobre o negro brasileiro, denominado de “Estudos
Afro-Brasileiros” será marcado pela construção dessa herança da Escola, ao mesmo tempo
106 Ibid. p. 238
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pelas novas concepções teóricas e metodológicas da antropologia que estava se formando no
país. Como se constitui esse campo de estudo? Qual era o objetivo dos Estudos Afro-
brasileiros? Que tipos de lugares e instituições estavam envolvidas na produção do discurso
desse campo de saber? O que foi produzido pelos Estudos sobre o Negro brasileiro?
Em 1934 Arthur Ramos se tornou editor da coleção “Biblioteca de Divulgação
Científica”, da Editora Civilização Brasileira/Civilização Brasileira. Pelo qual lançou o seu
primeiro livro sobre os estudos dos negros no Brasil. Como já foi falado o surto editorial dos
anos 1930 é muito importante para o aumento da produção intelectual, como maior circulação
das obras e das ideias. Arthur Ramos publicou dez títulos107 durante essa década, quatro eram
referentes as pesquisas sobre os negros. Ao mesmo tempo que estava se firmando no cenário
intelectual carioca, estava construindo a sua identidade como antropólogo. Na década
seguinte, por exemplo, só publicou livros voltados para os estudos afro-brasileiros, a não ser,
o “Curriculum Vitae” que o título já descreve bem a proposta.
Para Heloísa Pontes108 e Sergio Miceli109 as mudanças editorias na década 1930,
configuraram o surto editorial, consolidando o recém formado mercado de livros editados no
país, pois até a década de 20 os livros eram editados na Europa. Porém a maior característica
desse mercado é a sua expansão possibilitando muitos escritores viverem de sua produção
como Gilberto Freyre, Jorge Amado e outros. Houve o crescimento na edição de livros
nacionais, e a valorização de escritores brasileiros, até a década passada a maior parte dos
livros no mercado brasileiro eram estrangeiros e importados. Essa mudança nitidamente
influencia a cultura, fazendo com que tenhamos um amplo debate público – no formato de
livros – sobre o tema da nação.
107 Lista dos livros publicados na década de 1930: Psiquiatria e psicanálise. Rio de Janeiro: Guanabara, 1933. Freud, Adler, Jung … Ensaio de psicanálise ortodoxa e herética. Rio de Janeiro: Guanabara, 1933. O Negro Brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1934. Educação e psicanálise. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1934. O Folk-lore Negro do Brasil: demopsicologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1935. Introdução à Psicologia Social. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. Loucura e crime: questões de psiquiatria, medicina forense e psicologia social. Porto Alegre: Liv. do Globo, 1937. As Culturas Negras no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. Saúde do Espírito - Higiene Mental. Rio de Janeiro: [Serviço de propaganda e educação sanitária], 1939. A Criança Problema: A Higiene Mental na Escola Primária. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939. The Negro in Brazil. Washington, D.C.: The Associated Publishers, 1939. 108 PONTES, Heloísa. Retratos do Brasil: Editores, Editoras e “Coleções Brasiliana” nas Décadas de 30, 40e 50. In: MICELI, Sérgio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Editora Sumaré, 2001.p. 419-476. 109 MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil. In: ______. Intelectuais a Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 69-292.
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Pontes110, observou o trânsito pelos intelectuais entre as esferas culturais distintas,
justificado pela indústria cultural embrionária e diante da ausência de campos profissionais
claramente delimitados – a consolidação das universidades matizariam os campos-,
apresentando duas grandes possibilidades: o Estado , pelo reconhecimento como espaço
privilegiado por onde passava a questão nacional durante o governo Vargas; o campo de
produção do saber da época, as academias de letras, institutos históricos e geográficos,
faculdades de direito, de medicina, de engenharia e as faculdades de ciências sociais e
educação. Como foi dito o trânsito será a marca desses intelectuais, vejamos Arthur Ramos
que em 1935 acumularia a chefia do Serviço de Ortofrenia (Estado, Distrito Federal), editor
responsável pela Biblioteca de Divulgação Científica da Cia Editora Nacional (campo de
saber), Professor de Psicologia Social da Universidade Distrito Federal (campo do saber,
Estado), outros campos de saber como Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano
(IAGA), a Sociedade Brasileira de Psicanálise, Sociedade de Etnografia e Folclore, etc.
Na análise de Pontes sobre as publicações e características das grandes coleções
(Brasiliana; Documentos Brasileiros), ela identificou que nas obras de caráter histórico-
sociológico predominaram t uma estrutura geral do similar ao “modelo euclidiano”, com as
seguintes características:
(...) trata-se de uma produção centrada sobretudo na caracterização da Terra (leia-se geografia, botânica, arqueologia), do Homem (viajantes e cronistas, antropologia e etnologia, folclore, memórias, etc.). A Luta, por sai vez, refere-se menos aos aspectos conflitivos da história por sua vez, refere-se menos aos aspectos conflitivos da história brasileira, e mais à tensão que se pode detectar (...) entre os ensaios de interpretação sobre o Brasil e os trabalhos de cunho historiográfico.111
Frutos do que a autora percebeu como movimento de “redescoberta” do Brasil, as
editoras e suas coleções pareciam ser uma plataforma ideal para divulgação da cultura e do
pensamento brasileiro. Estava presente uma preocupação em interpretar o país tendo como
ponto de vista um olhar sociológico, em desvendar aspectos variados da história do Brasil,
podemos dizer também de revelar as diferenças dentro da nação, mas de maneira integrada,
pensando nas obras de Gilberto Freyre e Arthur Ramos. O ensaio histórico-sociológico será o
modelo fundamental para esse tipo de obra interpretativa.
110 PONTES, Heloísa. op. cit. 2001. p. 448-452. 111 Ibid. p. 451.
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Voltemos a Arthur Ramos para compreendermos a importância desse locus, em sua
autoria e na construção da identidade como antropólogo e especialista sobre o negro. Dos
quatro títulos voltado para o estudo do Negro, publicados na década de 1930, três foram pela
Biblioteca de Divulgação Científica, “O Negro brasileiro” de 1934, “O Folk-lore Negro no
Brasil” de 1935 e “As Culturas Negras no Novo Mundo” de 1937. Esse lugar ocupado por
Ramos, gerava oportunidades de publicação para o próprio, como a criação de um locus para
publicação dos escritores que pesquisavam sobre o negro. Muitos dos intelectuais que fizeram
parte dos Estudos Afro-Brasileiros, como Donald Pierson, Edison Carneiro, Alfredo Brandão,
Dante da Laytano e outros, procuravam Ramos para publicar seus escritos, assim como
Ramos divulgava os trabalhos dos pesquisadores brasileiros enviando remessas aos
intelectuais estrangeiros.
Como o número de cartas que tratavam sobre a possibilidade de publicação na
“Biblioteca” é muito grande, preferimos trazer o exemplo de Edison Carneiro (1912-1972).
Nascido em Salvador, era negro formado na Faculdade de Direito da Bahia em 1936, tornou-
se jornalista e escritor, escrevia sobre a questão do negro na Bahia quando ainda era
estudante. Porém, foi conduzido nos Estudos Afro-brasileiros com a ajuda e influência de
Arthur Ramos, amizade iniciada provavelmente no 1º Congresso Afro-Brasileiro, em 1934 no
Recife. Esta amizade rendeu ao folclorista baiano duas publicações, “Religiões Negras”112,
em 1936, e “Negros Bantos”, em 1937. Numa carta escrita por Carneiro em 4 de janeiro de
1936, foram temas a possibilidade de publicação e as pesquisas sobre o negro:
Caro amigo sr. Arthur Ramos,
O meu amigo Jorge Amado ganhou. Afinal, sempre me decidi a escrever o livro sobre os negros que ele reclama insistentemente há coisa de três anos. (...) Naturalmente, V. será mais do que citado nesse O fetichismo negro na Bahia, V., o velho Nina e esse incrível Mané Querino... Mandei ao Jorge Amado um projeto de esquema, já agora modificado. O livro terá dez capítulos, uma introdução, vários apêndices (inclusive um sobre criminalidade negra, estudo que o velho Nina deixou incompleto – com estatísticas da Bahia). Vou fazer o possível para não citar o velho Marx. Si lhe dou todos esses pormenores sobre o monstrengo foi porque o Jorge Amado me falou no seu provável interesse por esse livro, para a Biblioteca de Divulgação Cientifica. Será que esse interesse existe mesmo? Há tempos desejo lhe presentear com um caderno que pertenceu a um negro filho da África e onde deve haver uma história interessante, que eu, provavelmente V. também, não podemos ler, porque está escrito num raio de língua que se
112 CARNEIRO, Edison. Religiões Negras: notas de etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1936.; CARNEIRO, Edison. Negros Bantos: notas de etnografia religiosa. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira 1937;
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chama mussulmí. (...) também pensei em lhe mandar um vocabulário maluco, nagô-português, que eu e Guilherme Dias Gomes (que por sinal está no Rio) tentamos em 1933, arrancar do pai-de-santo e babalaô do Engenho Velho, Martiniano Bonfim. (...)
V. já deve ter visto o meu artigo sobre o “folk-lore” e remendado o outro, conforme lhe mandei dizer pelo Jorge Amado, segundo o original – o do “Negro”.113 [grifo nosso]
Nesta carta podemos perceber algumas estratégias discursivas, a primeira é uma
referência constante a Jorge Amado, amigo de Edison Carneiro desde a juventude na década
de 1920, Amado já era um autor conhecido vivendo agora no Rio de Janeiro, tinha publicado
O país do carnaval (1931), Suor (1934) e Jubiabá (1935). Jorge Amado era também próximo
de Arthur Ramos e uma figura muito respeitada nessa geração de intelectuais “modernistas” e
ao mesmo tempo “regionalistas”, conhecidos posteriormente como geração de 30. Em várias
cartas encontraremos esse tipo de referência, aquele que escreve utiliza outro intelectual
consagrado ou conhecido que apresenta ou sugeri uma determinada obra para publicação,
garantindo desta maneira credibilidade ao pedido.
Uma prática comum dos remetentes, quando procuravam publicar na “Biblioteca” um
livro cujo tema era de interesse de Ramos, faziam questão de demonstrar que conheciam o seu
trabalho e ele seria uma referência no livro. Ao mesmo tempo que remetente procura uma
autorização de um intelectual especialista na condição de avaliador e responsável por uma
coleção editorial, para Arthur Ramos era um modo de legitimar a sua condição de especialista
e as suas teses. Nesta carta especifica, vemos a utilização dos mitos de origem dos Estudos
Afro-brasileiros da versão da tradição construída por Arthur Ramos – Freyre produziu outra
versão -, Nina Rodrigues e Manuel Querino. Não esqueçamos que segundo Ramos estes dois
foram os precursores das pesquisas que sua geração estava desenvolvendo, e ele era o
herdeiro de destaque nas pesquisas sobre o negro.
Para aproveitarmos a correspondência citada, gostaria de observar que era uma prática
muito comum o envio ou a troca de documentação entre esses intelectuais. A pesquisa era
limitada por causa da dificuldade de deslocamento e falta de financiamento, algo que foi
comum até para aqueles que ocuparam as cátedras das universidades. Isso contribuía com a
113 CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos informando sobre o andamento das pesquisas para o livro O fetichismo negro da Bahia e comunicando a descoberta de um caderno em escrita mussulmi e a tentativa de elaborar um vocabulário nagô-português. Bahia, 4/1/1936. 3 p. Orig. Ms. I-35,25,867. Coleção Arthur Ramos – Fundação Biblioteca Nacional.
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consolidação das redes de relações intelectuais, a qual virava também uma rede de apoio
mútuo, permitindo pesquisas com grandes delimitações de objeto, de espaço e de tempo.
Outra característica dessa rede é o costume de envio de textos. Sobre o acontecimento
citado na carta, acredito que Carneiro não enviou o seu escrito sobre o “folk-lore” somente
porque Ramos é responsável pela “Biblioteca”, visto que era comum procurar a crítica ou a
divulgação dos colegas para poder ser indicado a publicação em revistas, ou até para que seu
trabalho chegasse a outras paragens. Isso frequentemente ocorria com Arthur Ramos que
enviava textos para intelectuais internacionais e nacionais, mas também recebia muitos textos.
Essas práticas não eram isentas de relações de poder, pois quanto mais respeitado e maior era
o nome do intelectual o número de textos que ele recebia era mais significativo, por outro lado
os seus textos e livros eram mais requisitados através das cartas.
Em outra carta de Edison Carneiro à Arthur Ramos, demonstra como o lugar ocupado
pelo segundo na editora, estava cercado de disputas na liderança do campo intelectual. Em
carta de 27 de março de 1937, Edison Carneiro escreveu:
O meu NEGROS BANTUS está quase completo. Haverá lugar para ele, este ano, na Biblioteca? (...)
Penso que este é o meu livro, pois ele é feito, quase todo, de pesquisas pessoais. Eu abro caminho com este livro. Si você o quiser para a Biblioteca, estamos certos. Farei qualquer contrato com você. Só peço que o livro apareça este ano.
O Jorge Amado quer que eu o publique na Documentos Brasileiros, do Gilberto Freyre. Eu não vou nisso. Estou muito melhor com você.114 [grifo nosso]
Esta carta é um exemplo do poder investido naqueles que eram responsáveis por
coleções no mercado editorial em ascensão. Além da procura constante para publicação, eles
também estavam liderando a formação de campo dos Estudos Afro-Brasileiros, ciente disso
Edison Carneiro pressiona Arthur Ramos a viabilizar a publicação de seu livro, pois caso
contrário publicaria com Gilberto Freyre que disputava o primado das pesquisas sobre o negro
com Ramos. Sobre a disputa da liderança no campo falaremos mais à frente.
114 CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos sugerindo que publique os Anais do II Congresso Afro-Brasileiro pela Biblioteca de Divulgação Científica, enviando o índice do livro Negros bantus e indagando sobre a possibilidade de editá-lo. Bahia, 27/3/1937. 2 p. Orig. Dat. I-35,25,88. Coleção Arthur Ramos – Fundação Biblioteca Nacional.
64
Devemos levar em consideração também a luta pelo reconhecimento intelectual,
fazendo que Carneiro procure publicar em qualquer lugar. Para entender melhor a minha
observação, precisamos entender alguns acontecimentos antes desta carta.115 No final de
1936, Gilberto Freyre foi a público por meio dos jornais criticar o 2º Congresso Afro-
brasileiro que estava sendo organizado por Carneiro, causando reações dos organizadores e de
Arthur Ramos em defesa do evento. O congresso ocorreu em janeiro de 1937, sem a presença
de Freyre. Após isso Edison Carneiro incerto da possibilidade de publicar os Anais do evento
na “Biblioteca” com Arthur Ramos, procurou a Editora José Olympio na qual Freyre
trabalhava, porém a resposta foi negativa, não sei por qual motivo. Depois disso, Carneiro
procurou Arthur Ramos para poder publicar e tudo foi acertado, contendo nos Anais um
prefácio escrito por Ramos criticando Freyre. Então após todo o imbróglio, com Freyre
criticando o evento e a rejeição da editora, Edison Carneiro ainda envia uma carta
ousadamente tratando da possibilidade em procurar o pernambucano para publicar seu novo
livro. Essa necessidade de publicação nos conduz a outra questão presente com frequência
nas cartas, nelas aparecem constantes cobranças dos pagamentos dos direitos dos livros e das
porcentagens das vendas, por vezes beirando a súplica justificada pela necessidade desse
dinheiro. A baixa condição econômica desse grupo parece algo comum.
Na correspondência de Arthur Ramos, observamos um deslocamento, centralizará o
pensamento sobre o negro no Brasil. Novamente a correspondência com Edison Carneiro, em
30 de novembro de 1936, enviou uma carta falando sobre o livro “Religiões Negras”:
Soube, em Itabuna, (...) da saída do meu livro, do seu telegrama de parabéns. Francamente, não sei o que lhe diga. Nunca tive palavras para me explicar, nesses momentos. Estou contente, inteiramente envaidecido com a sua
115 Para narrar e observar esses eventos me fundamentei nesses documentos: RAMOS, Arthur. Carta a Edison de Souza Carneiro informando que o seu livro Negros bantus já está anunciado na Biblioteca e sugerindo mudança do título das teses do “Congresso”. Rio de Janeiro, 27/4/1937. 1 p. Rasc. Ms. I-35,14,74. Coleção Arthur Ramos - Fundação Biblioteca Nacional. CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos esclarecendo por que o II Congresso Afro-Brasileiro foi adiado, manifestando intenção de fundar a União das Capoeiras da Bahia e concordando em homenagear Nina Rodrigues durante o congresso. Bahia, 12/12/1936. 2 p. Orig. Dat. I-35,25,880. Coleção Arthur Ramos - Fundação Biblioteca Nacional. CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos informando que pretende editar uma revista sobre o II Congresso Afro-Brasileiro e que o III Congresso será realizado em São Paulo em 1939. [S. l.], 10/1/1937. 1 p. Orig. Dat. I-35,25,881. Coleção Arthur Ramos - Fundação Biblioteca Nacional. CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos sugerindo que publique os Anais do II Congresso Afro-Brasileiro pela Biblioteca de Divulgação Científica, enviando o índice do livro Negros bantus e indagando sobre a possibilidade de editá-lo. Bahia, 27/3/1937. 2 p. Orig. Dat. I-35,25,882. Coleção Arthur Ramos - Fundação Biblioteca Nacional. CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos remetendo uma letra de samba e outra de afoxé. Bahia, 9/4/1937. 2 docs. (3 p.) Orig. Dat. I-35,25,883. Coleção Arthur Ramos - Fundação Biblioteca Nacional.
65
amizade, com a sua colaboração, com o seu estimulo, sem o qual talvez esse livro e toda aminha atividade posterior, - nunca aparecessem à tona. Você é o pai das “Religiões” – e teve por ela, carinhos de pai mesmo. Eu lhe agradeço de todo o coração. (...)
Os amigos aqui me ofereceram um jantar. Ai, brindamos ao maior africanista do Brasil, o prof. Arthur Ramos. 116
Evidentemente não se limitou a publicar livros somente dos estudos sobre o negro,
mas na sua correspondência vimos que houve uma superioridade de procura de autores que
escreviam nesse tema. Ramos fala que a Biblioteca foi criada para sistematizar os estudos
sobre o Negro, “entre outros objetivos do seu programa de edições, tem reunido o maior
número de trabalhos sobre o Negro no Brasil”.117 Aproveitou também esse espaço para
publicar livros do “mestre" Nina Rodrigues, como “Animismo fetichista dos negros da
Bahia”, em 1934, “As coletividades anormais”, em 1939. Já havia publicado junto com
Afrânio Peixoto na Companhia da Editora Nacional o livro “Raças humanas e
responsabilidade penal”, em 1932.
“O Negro brasileiro” foi o primeiro livro publicado da coleção Biblioteca de
Divulgação Científica. A obra que tinha como subtítulo “etnografia religiosa e psicanálise”
tinha como objetivo claro continuar os estudos empreendidos por Rodrigues sobre os cultos e
religiões afro-brasileiros, escreveu sobre a magia, a música e a dança dos candomblés (Bahia)
e das macumbas (Rio de Janeiro). Empreendia nele o trabalho de campo, através da
observação do meio social e cultural, visitou diversos terreiros em Salvador e no Rio de
Janeiro, prática que caracterizava a “etnografia moderna”118. Segundo Maria José Campos119,
foi a partir da publicação dessa obra que Ramos começou a estabelecer uma comunicação
com diversos pesquisadores das Américas e da Europa, ou seja significou o início da projeção
internacional de Arthur Ramos. Provavelmente foi logo após essa obra que começou a figurar
como maior autoridade no assunto.
Meses antes do lançamento de “O negro brasileiro”, Gilberto Freyre publicou “Casa-
Grande &Senzala”, foi essa obra que introduziu percepções fundamentais da antropologia
116 CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos agradecendo o apoio dado à publicação do seu livro Religiões negras e indagando sobre os direitos autorais de Novos estudos afro-brasileiros. Bahia, 30/11/1936. 4 p. Orig. Ms. I-35,25,879. Coleção Arthur Ramos – Fundação Biblioteca Nacional. 117 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 203; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 199. 118 Abordaremos o tema da etnografia em outro momento. 119 CAMPOS, Maria José. Arthur Ramos: Luz e Sombra na Antroplogia Brasileira – Uma Versão da Democracia Racial no Brasil nas décadas de 1930 e 1940. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PPGAS-FFLCH-USP, 2002. p.17
66
cultural de Franz Boas para a intelectualidade brasileira. Uma síntese da concepção de
mestiçagem como formador da nacionalidade, essa obra constrói a concepção de civilização
brasileira formada pelo “processo de aculturação”, nos aspectos culturais e biológicos, nas
cozinhas e nos quartos das casas-grandes. É de fundamental importância a figura de Freyre na
construção dos Estudos Afro-Brasileiros e na obra de Ramos.
Freyre nasceu em Recife, em 1900, membro de uma família tradicional de
Pernambuco e filho do Dr. Alfredo Freyre, um educador, Juiz de Direito e catedrático de
Economia Política da Faculdade de Direito de Recife. Junto a condição familiar, desenvolveu
seus estudos no Colégio Americano Gilreath, instituição batista administrado por missionários
norte-americanos, onde concluiu o curso de Bacharel em Ciências e Letras, em 1917. A
formação no colégio batista foi decisiva para Freyre, no ano de 1918, decidir ir para os
Estados Unidos, fazer uma graduação de bacharel of arts na Universidade de Baylor, na
cidade de Waco, no estado do Texas. Nesse mesmo ano, começou a escrever para o jornal
Diário de Pernambuco, com uma série de cartas intituladas "Da outra América”. Segundo
Maria Lúcia G. Pallares-Burke120, como estudante de Sociologia, Freyre fez pesquisas sobre a
vida dos negros de Waco e dos mexicanos marginais do Texas. Concluiu o curso em Baylor,
em 1920.
Em 1921, inicia na Faculdade de Ciências Políticas (Ciências Sociais e Judiciais)
cursos de graduação e pós-graduação, da Universidade de Colúmbia, em Nova York. Durante
a sua formação nessa instituição fez dois cursos de Antropologia com Franz Boas, porém, de
acordo com Pallares-Burke, a fundamentação teórica de Freyre nesse momento estava longe
da antropologia boasiana, apesar da defesa elaborada por Freyre no prefácio à primeira edição
de “Casa-grande & Senzala” colocando a importância desses cursos na sua formação inicial.
Pelo contrário, estava muito preocupado em compreender o Brasil em meio a “civilização” e o
“progresso”, junto a isso, no ano de 1921, o interesse do intelectual recifense esteve nas
discussões do 2º Congresso Internacional de Eugenia, ocorrido em Nova York, embora nesse
período estivesse matriculado no curso de Boas que já era um crítico do racismo científico e
do evolucionismo cultural, e de intelectuais importantes do evento como Madison Grant e
120 Sobre as informações biográficas de Gilberto Freyre optamos pelo diálogo com o trabalho de Pallares-Burke, por apresentar uma “desconstrução” da obra e da vida de Freyre, analisando a formação dele, as leituras e os escritos. Ver: PALLARES-BURKE, Mária Lúcia G. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
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Charles B. Davenport. Pallares-Burke observa que, tanto no campo epistemológico, quanto
na política e sociedade norte-americana, o paradigma racial e evolucionista predominava.
Enfim, numa situação como essa, tão propícia à aceitação do racismo científico e de todas as suas implicações, deveria ser muito mais difícil para Freyre, é de supor, chegar à ideia nova e arrebatadora que o levaria a Casa-grande & Senzala: a de que a mestiçagem não só é, de um lado, etnicamente bela, sadia e culturalmente enriquecedora, como também, de outro, é um elemento central para o equilíbrio de antagonismos tal como este se estava desenvolvendo no Brasil como traço marcante e distintivo do caráter brasileiro. 121
Defendeu, em 1922, tese para o grau de M.A. (Magister Artium ou Master of Arts) na
Universidade de Colúmbia intitulada “Social life in Brazil in the middle of the 19th
Century”122, orientada pelo Dr. Wllian Shepherd especialista em América do Sul. Após uma
breve viagem à Europa, retorna ao Brasil em 1923, volta a colaborar no “Diário de
Pernambuco” e escreve artigos para a “Revista do Brasil” (São Paulo), a pedido de Monteiro
Lobato. Em 1924, funda com vários intelectuais em 28 de abril o "Centro Regionalista do
Nordeste”, dois anos depois promoveu no Recife o 1º Congresso Brasileiro de
Regionalismo.123 Segundo Pallares-Burke a mudança na interpretação sobre a nação e a
“questão racial”, ocorreu por volta de 1926, quando revisitou leituras de pensadores e ensaístas
britânicos, muitos dos quais já descobrira em Baylor, como o escritor Gilbert K. Chestertorn (1874-
1936) que criticou duramente a eugenia e escrevia sobre uma Grã-Bretranha misturada
racialmente.
Outro importante intelectual britânico relido por Freyre no período, foi o historiador
Alfred Zimmern (1879–1957), crítico do preconceito de cor colocado como pretensa ciência.
Somavam-se as contribuições do também britânico Hebert Spencer (1820-1903) e do seguidor
dele nos Estados Unidos o Dr. Franklin Giddings (1855-1931), professor de Freyre em
Columbia, seriam essas influências fundamentais para o novo modelo de abordagem do
sociólogo brasileiro. Pallares-Burke identifica-o como “equilíbrio de antagonismos”,
compreendendo que a natureza do homem é uma natureza em mudança, a vida é uma
adaptação do organismo ao ambiente, o conceito de equilíbrio tem um papel central na
doutrina da evolução, no universo, em todos os seus níveis, coexistem forças antagônicas que
121 PALLARES-BURKE, Mária Lúcia G. op. cit. 2005. p. 302. 122 Pallares-Burke afirma que a tese foi publicada em Baltimore pela “Hispanic American Historical Review”, no Brasil foi publicada, apenas em 1964, com o título “Vida social no Brasil nos meados do século XIX”, com muitas modificações e o dobro do tamanho. 123 Para compreender o papel de Freyre na invenção da espacialidade do Nordeste e no movimento regionalista, e sua ação no Centro Regionalista, ver: ALBUQUERQUE Jr. Duravl Muniz de. op. cit. 2001.
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necessitam do estabelecimento de um equilíbrio, é ele que permite um sistema – físico,
biológico ou social – adaptar-se a novas condições e sobreviver. Gilberto Freyre utilizou esse
conceito de modo singular, porque se desvincularia do louvor ao industrialismo e do descaso
por tudo que se relacionasse a antiguidade e tradições, bem como da visão negativa dos
chamados povos primitivos e da mistura entre raças “muito dessemelhantes” que o
spencerismo carregava. “Seria dessa maneira que em nome de uma pretensa harmonia social,
esse ideólogo-mestre teria eliminado as contradições do processo histórico brasileiro e criado
o mito de um Brasil exemplarmente miscigenado, socialmente democrático.” 124 A
miscigenação cultural e racial era a marca equilibradora distintiva da cultura brasileira e
elemento-chave da história brasileira.
Pallares-Burke também explica o que motivou a Freyre preterir os autores britânicos,
em contraposição a afirmação do legado de Franz Boas manifestado na obra. Os seus dois
professores na Columbia, não tinham uma boa relação, colocando-se em campos opostos,
principalmente por causa das críticas de Boas ao evolucionismo social. Foi uma vinculação
estratégica, pois Boas estava ainda vivo, enquanto Giddings havia falecido na época de “Casa-
grande & senzala”, ao mesmo tempo que consistiu mais uma vez na prática do “equilíbrio de
antagonismos” na obra freyriana. A releitura de Franz Boas, ocorreu durante o ano de 1926,
quando estava em contato no Rio de Janeiro com seu ex-colega de Columbia, Rüdiger Bilden
(1893-1980) que foi um divulgador das ideias do antropólogo culturalista, e estava
desenvolvendo pesquisas sobre a influência da escravidão no desenvolvimento do Brasil.
Coincidentemente, ou não, nessa mesma estadia no Rio, Freyre se encontrou com Sérgio
Buarque de Holanda e Prudente de Morais Neto em diversas ocasiões, uma delas pareceu
significativa no seu modo de ver a nação, foram escutar tocar Pixinguinha, Donga e Patrício,
todos amigos de Holanda e Morais Neto. Lançou nesse período o artigo “Acerca da
valorização do preto”, publicado em 10 de junho de 1926 no “Diário de Pernambuco”. Para
Pallares-Burke após essa data o racismo científico perdeu espaço nos textos Freyre, o qual
passou a adotar um tom crítico à “arianização”.
A historiadora também identificou três influencias significativas, na construção do
pensamento de Freyre. Primeiro a amizade do historiador e diplomata brasileiro Oliveira Lima
(1867-1928), seu grande interlocutor nos Estados Unidos, estava locado em Washington na
época de formação de Freyre. O diplomata apresentou ao público norte-americano o exemplo
124 PALLARES-BURKE, Mária Lúcia G. op. cit. 2005. p.377.
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do Brasil como solução do problema racial e segregacionista dos E.U.A. A miscigenação
praticada livremente no Brasil, ocasionou, por um lado a ausência da questão racial no país,
não havendo preconceito ou qualquer tipo de segregação; por outro, ocorria progressivamente
o embranquecimento da população. O primeiro exemplo pode ter sido fundamentado, no
discurso abolicionista norte-americano que desde o século XIX, apontava o Brasil como
exemplo de boas relações raciais, por meio da mistura racial que ocorria em larga escala, não
havendo segregação, portanto exemplo para a questão nos E.U.A.125 Em 1926, o jovem Freyre
havia se desencantado com a solução do branqueamento, distanciando-se da ideia de raças
enquanto determinismo biológico, mas defendeu cada vez com mais afinco a ausência da
questão racial, pois foi promovido pela mestiçagem uma harmonia étnica e social na
população brasileira.
A segunda influência, foi a inspiração antropológica de Edgard Roquette-Pinto (1884-
1954), os trabalhos desse antropólogo e diretor do Museu Nacional, foi apresentado a ele por
Bilden na sua estada no Rio, em 1926. Roquette-Pinto teve um importante papel na segunda
metade da década de 1920, como descartou o branqueamento como solução para o atraso do
país, apontando que o problema a ser solucionado não era racial, mas sim social e ambiental.
Pallares-Burke126 percebeu um momento introspectivo de Freyre, entre 1927 e 1933, a sua
produção escrita é diminuída até a quase inexistência, focando-se na leitura e estudos a
história e sociologia, “especialmente de etnografia e antropologia brasileira”. Nesse momento
a leitura de Roquette-Pinto foi muito importante, para a formação de sua visão de
antropologia e etnografia, principalmente na preocupação com a “evidencia científica”,
procurando abarcar dados de cientistas brasileiros de várias áreas – nutrição, antropologia,
medicina, psicologia, sociologia e agronomia - em “Casa-grande & senzala”. Porém será na
defesa da mestiçagem como combinação de características físicas e culturais que Roquette-
Pinto mais influenciou o trabalho de Freyre e, também o de Arthur Ramos. Explicaremos
melhor a abordagem de Roquette-Pinto, quando estivermos tratando das diferentes
concepções de etnografia e sua influência sobre Ramos.
Pallares-Burke127 acredita que Roquette-Pinto teria contribuído para que Freyre se
transformasse no discípulo de Boas, a última influência que gostaríamos de destacar. O
125 AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada século XIX. São Paulo: Annablume, 2003. 126 PALLARES-BURKE, Mária Lúcia G. op. cit. 2005. p.334. 127 Idem.
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antropólogo do Museu Nacional forneceu a Freyre dados de valor científico sobre a presença
dos indígenas no desenvolvimento da sociedade brasileira e ser seu colaborador no Primeiro
Congresso Afro-Brasileiro (Recife, 1934) e signatário do “Manifesto dos Intelectuais
Brasileiros contra o Racismo” de 1935, o qual Ramos também assinou. Sobre essas
influencias de Roquette-Pinto acreditamos que pode ser compreendida para Arthur Ramos,
identificamos que antes de ser um leitor de Freyre, já estava dialogando com o antropólogo do
Museu Nacional, pelo menos desde 1932.128
A hipótese de Pallares-Burke129 aponta que o diálogo com Bilden e a aproximação
com Roquette-Pinto, possibilitou a releitura de Freyre dos trabalhos do antropólogo da
Columbia. A ênfase de Franz Boas na falta de fundamentação cientifica para posições
dogmáticas e extremadas no que diz respeito a questões raciais, apontava que havia muitas
questões em aberto e muito de duvidoso e hipotético sobre ser a hereditariedade ou o
ambiente o fator determinante de vários aspectos do homem. A antropologia boasiana que
aparece em Freyre está relacionada ao trabalho de Bilden, pois ele elaborou a compreensão de
“Brasil, laboratório de civilização”130, e iniciou pesquisas teoricamente orientadas na
antropologia cultural sobre a miscigenação no Brasil e o hibridismo cultural historicamente
explicados e valorizados, a mestiçagem representava uma harmonia e de forças ou energias
diversas.131 Desse modo, foi como ocorreu o encontro com Franz Boas (1858-1942) e o
paradigma culturalista, havendo um reconhecimento positivo do africano e do mestiço na
“raça” e no ethos brasileiros, relativamente assentada em Freyre, a partir de 1927.
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha Mongólia pelo Brasil - a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar
128 PINTO, Edgar Roquette-. Cartão-postal a Arthur Ramos agradecendo o envio de seus trabalhos. Rio de Janeiro, 26/5/1932. 1 doc. Orig. A foto do cartão é de um índio Nambikuara, do rio Jurema, Rondônia. A foto é de E. Roquette-Pinto (1912). I-36,2,2.197. Coleção Arthur Ramos – Fundação Biblioteca Nacional. 129 PALLARES-BURKE, Mária Lúcia G. op. cit. 2005. p.342. 130 Em 1929, Rüdiger Bilden, publicou na The Nation, em New York, “Brazil, Laboratory of Civilization”. 131 PALLARES-BURKE, Mária Lúcia G. op. cit. 2005. p.378 – 406.
71
menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.132
A sociedade brasileira em Freyre é apresentada como mais humana e salutar, em
contraponto a sociedade violenta e segregada dos EUA. Formada por um sistema de
colonização caracterizado por três aspectos – monocultura latifundiária, escravidão e
miscigenação – que dera ao país condições para se desenvolver de modo sui generis como
modelo alternativo de civilização. A “propensão” adquirida pelos portugueses de se unir a
outras raças ao longo de sua experiência de dominação moura seguida por empreendimento na
costa africana, foi significativo para que os colonizadores se misturaram com índios e
escravos, dando início a uma sociedade em que não se criou uma rígida identidade de raça e
classe.
O português não: por todas aquelas felizes predisposições de raça, de mesologia e de cultura a que nos referimos, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a extrema penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com mulher de cor. Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa e dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do que ele puro ao clima tropical. A falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação – contra o que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos – foi o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos. Vantagem para sua melhor adaptação, senão biológica, social.133
A intepretação de Freyre da colonização e consequente formação da nação brasileira,
consistiu em afirmar que seguindo a tradição portuguesa de estrutura social, a sociedade que
se desenvolveu no Brasil também foi mais moralmente flexível e humana, com isso os
antagonismos existentes eram mais entre classes, do que de raças. Houve uma hegemonia do
elemento branco na sociedade brasileira, a situação das outras raças é marcada pelo domínio
cultural e econômico desse elemento. Formação histórica da sociedade brasileira em “Casa-
grande & senzala” é caracterizada pelo patriarcado; pelas inter-relações das etnias e culturas
condicionada ou protegida pelas relações patriarcais; pelo trópico, meio específico que
condicionava todas as relações, por meio do clima, da nutrição, da geografia, da natureza e
das culturas dos indígenas. Formando uma civilização luso-tropical, marcada pela
“miscigenação”.
132 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 48. ed. São Paulo: Global, 2003. p. 367. 133 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. 48. ed. São Paulo: Global, 2003. p. 72-73.
72
Na interpretação sobre a concepção de mestiçagem explicado pelo processo de
aculturação. A matriz cultural lusitana, ideal desenvolvida por Freyre, também foi adotada por
Arthur Ramos, “transformando a mestiçagem em um mecanismo de integração e mobilidade
social dos povos colonizados”, para Guimarães o Dr. Ramos foi o principal intelectual
divulgador do Brasil como uma “democracia social” e um “laboratório de civilização”. A esta
explicação, na década de 1940, foi acrescentada a concepção de “democracia racial”. Apesar
do termo ser atribuído a Gilberto Freyre, segundo Antônio Guimarães134, esse termo é de
Arthur Ramos.
Gilberto Freyre reedita a temática racial, para constituí-la em chave de compreensão
do Brasil, como se fazia no passado. No entanto, por causa das novas concepções científicas,
uma vez que era inconveniente explicar em termos do ultrapassado “racismo científico”, a
antropologia cultural divulgada por Gilberto Freyre em “Casa-grande & senzala”, ainda que
de maneira difusa e sem uma maior matização conceitual, apareceu como ferramenta ideal
para o momento. A obra de Freyre propôs uma mudança conceitual e epistemológica, a qual
poderíamos definir como mudança do paradigma racial para o paradigma cultural. Afastou-se
da visão negativa da herança mestiça, transformando o mestiço em positividade,
O que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Só que as condições sociais eram agora diferentes, a sociedade brasileira já não se encontrava em num período de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode-se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionado nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pôde difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.135
Como nessa nação mestiça, que o discurso de Freyre pareceu construir como uma
nação homogênea, podem ser pensadas categorias ou grupos como os negros ou indígenas?
Segundo Amílcar Pereira136, no pensamento de Freyre os negros, índios e mestiços, tiveram
contribuições positivas na cultura brasileira, é reconhecido a dívida cultural que a nação tem
com essas populações. Ao nosso ver no discurso de Freyre, assim como nos daqueles que o
seguiram, a concepção de nacionalidade brasileira tem uma matriz cultural europeia – ou
lusitana -, colocando os demais grupos sociais como secundários, portanto contribuidores da
134 GUIMARÃES, Antônio S. Classes, raças e democracia. 2.ed. São Paulo: Editora 34, 2012.p. 148-152. 135 ORTIZ, Renato. Op. cit. 2006. p. 41. 136 PEREIRA, Amílcar Araújo. op. cit. 2010. p. 57.
73
cultura nacional, não geradores dessa cultura. Dessa maneira, podemos ler as concepções de
sincretismo e aculturação elaborado por Ramos, na qual ele vê o negro como contribuidor
dessa cultura, cuja matriz é lusitana. O Dr. Ramos adota a concepção de que o povo português
estava pronto aos processos de aculturação e apto a incorporar os demais povos:
Da mesma maneira que o Português entrou em contato de raça com os múltiplos povos com que se misturou, numa vasta obra de amalgamação que caracteriza o seu processo colonizador, da mesma maneira sempre possui a capacidade de compreender e incorporar os padrões de cultura desses povos. 137
A ideia de “incorporar”, colocou o português no centro do processo de aculturação, as
culturas inferiores foram incorporadas ou assimiladas, pela cultura superior, o colonizador
europeu. Andreas Hofbauer138 percebeu que a concepção de aculturação defendida por Ramos
procurou superar determinismos biológicos, mas ainda continuou permeada e orientada pela
ideia da imposição das “forças civilizatórias”. Arthur Ramos acreditava que no contato entre
duas ou mais culturas, “a mais adiantada” tendia a “suplantar a mais atrasada”. Dessa maneira
as “religiões inferiores” –fetichismo africano – “aperfeiçoam-se” quando entram “em contato
com uma forma religiosa mais adiantada”. Críticos como Kabengele Munanga139 e Hofbauer,
concebem a ideia de mestiçagem e aculturação como uma continuação do branqueamento.
Imagino que a natureza da interpretação de Freyre está vinculada ou presa a episteme da
colonização, a qual a antropologia cultural nesse momento ainda estava presa.
O Dr. Ramos procurou construir uma memória para os Estudos Afro-Brasileiros na
qual remeteu a existência desse campo a Nina Rodrigues, Manuel Querino e a Escola Nina
Rodrigues. Segundo Júlio Cláudio da Silva140, os estudiosos envolvidos com os Estudos Afro-
Brasileiros, na década de 1930, procuravam transformar suas produções em marcos históricos,
“ora como herdeiros de um determinado tipo de produção intelectual, ora como fundadores de
um determinado tipo de abordagem”. Concordamos com Júlio Silva, serem as décadas de
1930 e 1940 o momento de constituição e institucionalização de um campo intelectual dos
estudiosos do folclore e da etnografia.
137 RAMOS, Arthur. Introdução à Antropologia Brasileira: as culturas europeias. 3ed. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa de Estudante do Brasil, 1962. v:2. p. 97. 138 HOFBAUER, Andreas. Op. cit. 2006. p.255-256. 139 MUNANGA, Kabengele. Redescutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999. 140 SILVA, Júlio Claúdio. Movimentos sociais, intelectuais e comemorações: o cinquentenário da lei áurea e o centenário da Lei Eusébio de Queirós. In:______. O Nascimento dos Estudos das Culturas Africanas, o Movimento Negro no Brasil e o Anti-racismo em Arthur Ramos (1934-1949). Dissertação Mestrado em História Social. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005. p.19.
74
Este “teatro de construção” conhecido por Estudos Afro-Brasileiros será formado na
década de 1930, terá como marco inicial o 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em
novembro de 1934 em Recife, organizado pelo Doutor Ulysses Pernambucano de Melo
Sobrinho. Foi a primeira vez que um grupo de intelectuais se reuniram em torno desse nome,
Estudos Afro-Brasileiros, e desse objeto específico, o Negro. Gilberto Freyre apoiou e
idealizou junto com seu primo o evento, o projeto era reunir diversos pesquisadores e
cientistas para debater o papel do negro, juntando a pouca produção espalhada pelo Brasil
procurava organizar um campo do saber que não era institucionalizado, diferente do indígena
que tinha os museus para pesquisa-los. O congresso também lançou o conceito de “afro-
brasileiro”, que posteriormente será utilizado como identitário.
Segundo Clilton da Paz 141, a realização do Congresso estava relacionada a algumas
construções simbólicas em torno do estado de Pernambuco. Gilberto Freyre, bem como a
imprensa pernambucana, exaltaram a importância de Recife para a história da nação e como
núcleo para os primeiros movimentos de estudo em relação ao negro. O Congresso teve um
caráter aglutinador, reunindo desde intelectuais nacionais aos estrangeiros. Tornou-se livro
dividido em dois volumes, o primeiro volume intitulado de “Estudos Afro-Brasileiros”142 foi
prefaciado por Edgard Roquette-Pinto, o segundo foi publicado e prefaciado por Arthur
Ramos, na Biblioteca de Divulgação Cientifica, com o título de “Novos Estudos Afro-
Brasileiros”143. A partir da análise dos anais podemos identificar dois grupos ou tipos de
produção: o primeiro influenciado por pesquisas que observavam o negro como um problema
de ordem público, ou de políticas públicas, cujos trabalhos são das áreas de psicologia social,
medicina legal, medicina pública e psiquiatria; o segundo grupo, reconhecemos por trabalhos
de caráter mais humanísticos de áreas como história, antropologia, sociologia, folk-lore e
filologia.
O primeiro grupo de trabalhos revela como o desenvolvimento do campo esteve ligado
a tentativa de manutenção da ordem pública. Como já apontamos ao falar da Escola Nina
Rodrigues, a população negra foi objeto de interesse de muitos médicos e juristas, envolvidos
em áreas que tinham como preocupação o controle da população, saúde pública ou crimes. O
141 PAZ, Clilton Silva da. Um monumento ao negro: memórias apresentadas ao Primeiro Congresso Afrobrasileiro do Recife, 1934. Dissertação de Mestrado em História Social. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGHIS, 2007. p.132. 142 FREYRE, Gilberto (org.). Estudos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro, Ariel, 1935. 143 FREYRE, Gilberto (org.). Novos Estudos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. Coleção Biblioteca de Divulgação Científica.
75
organizador do evento desenvolveu pesquisas com esse perfil, o doutor Ulysses
Pernambucano (1892-1943) era o diretor do Hospital da Tamarineira, médico e psiquiatra, o
seu contato com a população negra se deu por causa do trabalho com os alienados. Para Paz a
ideia do Congresso teve origem no trabalho que Pernambucano realizava em relação às seitas
africanas do Recife, pois foi responsável por conseguir, desde 1932, o afastamento da polícia
estadual na fiscalização dos terreiros.
Ainda de acordo com Paz144, teria sido Ulysses Pernambucano quem garantiu a
presença a babalorixás e iyalorixás do velho Recife. A ideia original pro evento era de
Pernambucano e não seria de estudos panorâmicos de assuntos afro-brasileiros, mas um
congresso de “seitas” ou “religiões” de origem africana, que reunisse babalorixás ou
delegados das principais seitas “africanas” existentes no Brasil. O Primeiro Congresso Afro-
brasileiro do Recife só ocorreu, por causa da não concretização da ideia original e da
colaboração de Freyre que traria uma nova ideia que estaria relacionada ao seu trabalho,
“Casa-grande & senzala”.
Os participantes visitaram o terreiro do babalorixá Pai Anselmo, de culto jêjê, para
participar de uma cerimônia religiosa, na qual houve toque solene aos orixás e ancestrais,
pedindo proteção e bênçãos para o evento.145 Participou também do Congresso o babalorixá
Pai Oscar de Almeida, junto com Pai Anselmo foram colaboradores para a realização do
evento. Paz observou que para os demais líderes de terreiros, o Primeiro Congresso foi visto
como uma primeira tentativa de resgate e preservação da cultura africana, bem como um
evento importante para a formação da identidade brasileira e do patrimônio cultural
brasileiro.146
Para Gilberto Freyre, segundo Paz147, o Congresso foi marcado por um pensamento de
vanguarda que procurou se opor ao velho e arcaico pensamento que permeava os centros
letrados cujas bases do saber estavam na biologia evolucionista e em uma antropologia física.
O Congresso teve uma boa repercussão nacional e internacional, com a participação de
intelectuais estrangeiros, como o americano Melville Jean Herskovits (1895-1963) que enviou
os trabalhos “Procedência dos Negros no Novo Mundo” e a “A arte do bronze e do panno em
144 PAZ, Clilton Silva da. op. cit. 2007. p.136. 145 PAZ, Clilton Silva da. op. cit. 2007. p.128. 146 Ibid. p.137. 147 Ibid. p.142.
76
Dahomé”. Foi a partir da década de 1930, principalmente pela influência de Freyre que o
intercâmbio entre antropólogos, etnógrafos e africanistas brasileiros e estrangeiros cresceu.148
O segundo volume traz a marca da disputa que ocorreu no campo, na maior parte do
tempo ocorreu de maneira velada, mas no prefácio de Arthur Ramos, em 1937, ficou claro
que existia uma querela em torno do primado dos Estudos e da memória da tradição. Mariza
Côrrea149 afirmou que tratava-se de uma concorrência em torno do legado e do primado das
pesquisas, dividindo o campo entre Pernambuco e Bahia, Gilberto Freyre e Arthur Ramos.
Em alguns momentos esses dois grupos parecem estar unidos em torno de um campo e
objetivo comum, pesquisar o papel do negro na formação da nação, porém em outros
momentos aparecem divergências nas concepções ou abordagens sobre o tema. O prefácio de
Arthur Ramos no “Novos Estudos” apontava o ineditismo desse evento, reunindo intelectuais
e trazendo para os Estudos novos métodos de pesquisa.
O principal ponto do prefácio de Ramos foi a crítica sobre a pouca importância dada
ao “mestre” Nina Rodrigues, no evento e no prefácio de Roquette-Pinto ao primeiro volume.
A produção do prefácio está relacionada ao lugar ocupado como responsável da Biblioteca de
Divulgação Científica, como sabemos a coleção faz parte do projeto de Arthur Ramos na
construção do campo e da memória de uma tradição, as quais ele reivindica a representação.
Esse lugar institucional, tanto possibilitou a publicação do segundo volume, quanto a crítica a
Roquette-Pinto e a Freyre no texto de abertura do livro. No texto, a Bahia é colocada como
lugar de desenvolvimento dos Estudos Afro-Brasileiros, e a geração que, desde 1926, tomou
para si o legado de Nina Rodrigues era quem havia mantido as pesquisas e estava
reinterpretando a obra do precursor. Nesse caso Arthur Ramos, colocou-se como responsável
pelo legado do “mestre”, responsabilidade que lhe foi conferida por Afrânio Peixoto, o
discípulo dileto. O continuador da tradição nos estudos de medicina legal e criminologia era
Peixoto, enquanto este conferiu a Ramos a responsabilidade pelos estudos de psicologia e
antropologia do negro e mestiço. Arthur Ramos coloca Freyre e Ulysses Pernambucano na
trilha da tradição do “mestre” Rodrigues, reconhecendo o “grupo do Recife”, como os
primeiros a trazerem uma nova proposta metodológica para o problema do negro, obviamente
que a partir da produção de Nina Rodrigues.
148 Ibid. p.143 149 CÔRREA, Mariza. op. cit. 2001. p.204
77
As disputas no campo foram mais reveladas durante a preparação do Segundo
Congresso Afro Brasileiro, ocorrido em Salvador, em janeiro de 1937. Sob a égide de Edison
Carneiro e Aydano Couto Ferraz, provavelmente consolida esse campo. Em 1936, quando foi
anunciado a organização do Segundo Congresso pelos baianos da Escola Nina Rodrigues,
Gilberto Freyre dará uma entrevista ao “Diário de Pernambuco” que foi reproduzida no jornal
“O Estado da Bahia”, ele criticava os organizadores e demonstrando um pessimismo sobre o
futuro do evento. Pedimos desculpas pela longa citação a seguir:
Pouco lhe posso adiantar sobre o assunto. Só há dois ou três dias soube, por uma carta do escritor Edison Carneiro que ia realizar-se um segundo Congresso Afro-Brasileiro na Bahia. Receio muito que vá ter todos os defeitos das coisas improvisadas. Deveria ser muito maior o prazo para os estudos, para as contribuições dos verdadeiros estudiosos. Os verdadeiros estudiosos trabalham devagar. A não ser que os organizadores do atual Congresso só estejam preocupados com o lado mais pitoresco e mais artístico do assunto: as “rodas” de capoeira e de samba, os toques de “candomblé”, etc. Este lado é interessantíssimo e na Bahia terá um colorido único. Mas o programa traçado no 1º Congresso foi um programa mais extenso e incluindo a parte árida, porém igualmente proveitosa, para os estudos sociais, de pesquisas e trabalhos científicos.
Discordo, ainda, da orientação do 2º Congresso Afro- Brasileiro que vai se realizar na Bahia tocante às relações com o Governador do Estado. Estou informado pelo escritor Edison Carneiro que é, seja dito de passagem, um dos nossos africanologistas mais inteligentes, que se pleiteará uma subvenção do Governo do Estado para o 2º Congresso Afro-Brasileiro. Discordo radicalmente. Creio que esses Congressos de estudiosos deviam ser como foi o 1º Congresso Afro-Brasileiro reunido no Recife, inteiramente independente dos Governos ou de qualquer organização política com interesses partidários ou fins imediatos. Essa independência foi um dos traços característicos do 1º Congresso – o do Recife, e para afirmá-lo, José Lins do Rego, Cícero Dias, Mário Lacerda de Melo, eu e alguns outros tivemos de propor resistência enérgica aos que pretenderam deformar aquela reunião de pesquisadores e de estudiosos, prestigiada pela colaboração de africanologistas como o professor Herskovits, num ajuntamento demagógico e de cor partidária.
Creio que os problemas do negro e do mulato no Brasil devem ser discutidos e apresentados com a maior franqueza, com honestidade e com desassombro, indicando-se os efeitos sociais e mesmo políticos da opressão da gente de cor que ainda se observam entre nós.
Creio que o fato do Congresso Afro-Brasileiro do Recife ter encarado o negro e o mestiço negro, não como um problema de patologia biológica, a exemplo do que fez o próprio Nina Rodrigues – que era um convencido da absoluta inferioridade do negro e mulato – mas como um problema principalmente de desajustamento social, representa uma conquista notável para os estudos sociais brasileiros e de profunda repercussão política. Mas não me parece que os congressos afro-brasileiros devam revelar para a apologia política ou demagógica da gente de cor. Seria
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sacrificar todo o seu interesse científico de esforço de pesquisa e de colheita e interpretação honesta de material que ainda está sendo reunido.
Estou certo, entretanto, que os organizadores do 2º Congresso – na Bahia – saberão lhe assegurar um ambiente de independência e de propriedade científica.150 [grifo nosso]
Na entrevista de Gilberto Freyre muitas das críticas à organização do 2º Congresso,
parece ter ignorado o que ele havia feito no 1º Congresso, principalmente a participação dos
terreiros e dos babalorixás. Desqualificou a proposta do evento afirmando a ausência de
cientificidade, destacou os avanços do Congresso de Recife que haveria se distanciado das
propostas racismo científico de Nina Rodrigues e, questionou se o próximo daria
continuidade. Essa entrevista repercutiu negativamente para os membros da Escola Nina
Rodrigues. Carneiro escreveu para Ramos dizendo que o “Gilberto Freyre deu uma entrevista
no Recife, escangalhando o Congresso, falando em coisa improvisada, não sei mais quê.”151
No jornal Gazeta de Alagoas, em 17 de janeiro de 1937, Arthur Ramos aponta a contradição
das “afirmações levianas de Freyre em dizer que 2º Congresso Afro-Brasileiro terá caráter
mais pitoresco e artístico do que científico. Já que o 1º Congresso Afro-Brasileiro também
teve sua parte artística”.152
Segundo Mariza Côrrea, essa disputa existia em torno da memória ou da tradição das
pesquisas sobre o negro. Gilberto Freyre negará a primazia dos estudos aos baianos,
reivindicando o reconhecimento dos pernambucanos nesse posto pela organização do 1º
Congresso, também reclamou o seu papel como figura central desse processo ao criar no
Brasil uma cátedra de Antropologia Social e Cultural na Universidade do Distrito Federal, em
1935, a convite do baiano Anísio Teixeira, fundador da instituição. Após o acontecido do 2º
Congresso, com o passar do tempo Freyre passou a criticar a ideia de que Nina Rodrigues ou
Arthur Ramos foram “os pioneiros ou fundadores dos modernos estudos brasileiros de
Antropologia Social, História Cultural e Social”153. Para Freyre os estudos que situaram o
negro africano e seu descendente na vida e na cultura brasileira e no meio tropical-americano,
compreendendo a condição de inferioridade social, na condição de escravo, da sua condição
150 Em torno do segundo Congresso Afro-Brasileiro: falando ao Diário de Pernambuco o escritor Gilberto Freyre diz do seu receio que o certame se marque dos defeitos das coisas improvisadas. O Estado da Bahia. 13/11/1936. Apud. OLIVEIRA, Waldir F.; LIMA, Vivaldo da C. (org.). Cartas de Édison Carneiro a Arthur Ramos: de 4 de janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987. p. 128-129. 151 CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos agradecendo o apoio dado à publicação do seu livro Religiões negras e indagando sobre os direitos autorais de Novos estudos afro-brasileiros. Bahia, 30/11/1936. 4 p. Orig. Ms. I-35,25,879. Coleção Arthur Ramos – Fundação Biblioteca Nacional. 152 RAMOS, Arthur. 15 minutos com Arthur Ramos. Gazeta de Alagoas. 17/01/1937. 153 FREYRE, Gilberto. Apud. CORREA, Mariza. op. cit. 2001. p. 206.
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de raça. O desenvolvimento das ciências teria sido antes por José Bonifácio, Silvio Romero,
Alberto Torres, depois seguidos pelos antropólogos do Museu Nacional, João Batista Lacerda,
Roquette-Pinto e Froes da Fonseca. Cabe aqui lembrar que Freyre deu importância ao
trabalho de Roquette-Pinto como renovador das concepções antropológicas e sobre a
população da nação ainda no final da década de 1920, reconhecimento declarado com o
convite para a escrita do prefácio do Congresso de 1934.154
A historiador Júlio Silva, pesquisou as participações de alguns intelectuais no Segundo
Congresso, constatou como um dos objetivos desses intelectuais a superação do corpo
teórico-metodológico característico do racismo científico. Ela percebeu que os trabalhos
demonstraram aproximações com o culturalismo boasiano, ainda em processo de apreensão,
porém influenciando a intelectualidade atenta a novidades teóricas. Os trabalhos apresentaram
uma tentativa de substituição da noção biológica de raça pelo conceito de cultura. Esse fator é
significativo se levarmos em consideração o papel de cientistas sociais estrangeiros, que
fizeram do Brasil seus objetos de pesquisa, ou mantiveram comunicação com intelectuais
brasileiros. Alguns deles participaram presencialmente dos congressos como o norte-
americano Donald Pierson que estava pesquisando em Salvador, outros enviaram textos para
serem publicados nos anais, destaca-se nesse meio os estadunidenses Melville Herskovits e
Richard Patee (reitor e pesquisador da Universidade de Porto Rico), participaram com
publicações Fernando Ortiz (Cuba) e Salvador Garcia Aguero (Cuba). Ocorreu o início da
formação de um arquivo nos Estudos Afro-brasileiros com os anais155 dos congressos,
juntamente com os livros publicados na Biblioteca de Divulgação Científica e em outros
espaços. Como observou Said156 na construção de um campo de estudo é importante a
elaboração de um arquivo internamente estruturado e construído a partir das experiências.
A dimensão política dos congressos, abordado tanto por Júlio Silva157, quanto pela
historiadora Sarah Silva158, foi uma característica, ou o princípio, do trabalho intelectual de
Arthur Ramos que assumiu a responsabilidade de lutar contra o preconceito racial. No 1º
Congresso houve a presença de membros de “associações negras contemporâneas”, porém 154 Para ler sobre essas disputas, ver: CORREA, Mariza. op. cit. 2001. 155 Congresso Afro-Brasileiro. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Editora Massagana, 1988 [1935].; Congresso Afro-Brasileiro. O Negro no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1940. 156 SAID, Edward. Op. cit. 2007. p. 96 157 SILVA, Júlio Claúdio. op. cit. 2005. 158 SILVA, Sarah Calvi Amaral. Africanos e afro-descendentes nas origens do Brasil: raça e relações raciais no II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937) e no III Congresso Sul-Rio-Grandense de História e Geografia do IHGRS (1940). Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Departamento de História. Porto Alegre, 2010.
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estavam praticamente ausentes, destacaram-se o intelectual ativista Edison Carneiro, os líderes
religiosos Ialorixá Santa e os Babalorixás Oscar Almeida e Apolinário Gomes e o representante da
Frente Negra Pelotense, Miguel Barros. Podemos compreender o discurso político se observarmos os
discursos de Edison Carneiro e de Miguel Barros. O primeiro apresentou um trabalho com
interpretação materialista, “Situação do negro no Brasil”159, a antropologia cultural não
aparece no trabalho de Carneiro, sendo a sua proximidade com Ramos a motivadora da
mudança teórica e metodológica posterior, nesse momento estava sob influência mais clara
das leituras do Partido Comunista Brasileiro. Enfatiza a situação deplorável dos negros
brasileiros, porém atesta que ela não depõe contra a raça negra, pois não a “raça” tem a
importância que querem lhe dar no desenvolvimento social.
É importante abrir aqui um parêntese, para explicar que os membros dos Congressos
estavam propondo novas visões e abordagens sobre a participação do negro na formação do
Brasil, contrapondo-se a um interlocutor poderoso que era Oliveira Viana (1853-1951),
historiador do IHGB desde 1925. Viana havia publicado na década de 1920 vários livros
fundamentados nos determinismos biológicos – ou raciais – do francês Arthur Gobineau
(1816-1872) e do suíço Louis Agassiz (1807-1873), destacavam-se o “Populações
Meridionais do Brasil” (1920), “Pequenos Estudos de Psicologia Social” (1921) e “Evolução
do Povo Brasileiro” (1923). No governo de Getúlio Vargas, o professor de direito Oliveira
Viana teve uma maior projeção social junto a seu trabalho consultivo no Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio e na Constituição. Voltou a escrever sobre a questão racial no
Brasil, em 1932, com os mesmos referenciais teóricos lançou o polêmico livro “Raça e
assimilação”160, na qual defendia a inferioridade das raças negras e indígenas e do povo
mestiço brasileiro que estava se degenerando com a miscigenação. Exemplo da reação a suas
ideias na década de 1930, foi o trabalho de Arthur Ramos que desde 1933 desqualifica e
critica o trabalho de Viana em seus textos, o primeiro tendo sido a conferência ‘‘O Negro na
evolução social brasileira’’ pronunciada no “Centro Oswaldo Spengler” e publicada no
“Jornal do Commércio”, no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 1933.
Voltando à Edison Carneiro, em seu texto para o Congresso fez questão de matizar a
inexistência de inferioridade e superioridade racial fixa, pois para ele equivalia a negação do
159 CARNEIRO, Edison. Situação do negro no Brasil. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Massagana, 1988. p.237-242. 160 Curiosamente a obra de Oliveira Viana foi publicada pela editora que Arthur Ramos dirigia a coleção, embora tenha sido em outra coleção “Biblioteca Pedagógica Brasileira” dirigida por Fernando Azevedo. Ver: VIANA, Oliveira. Raça e Assimilação. 3. ed. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional/Brasiliana, 1938 [1932].
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movimento permanente da matéria, ou melhor da desigualdade de desenvolvimento
econômico como determinante. A condição de inferioridade estava “condicionada em
primeiro lugar pelo meio geográfico e em segundo lugar pelas possibilidades técnicas da raça
no momento histórico”161, que caracterizariam a gradual libertação do homem em relação a
natureza. O problema do negro brasileiro consistia na ausência de iniciativas pela
incorporação do negro à comunidade nacional, deixando-os na condição de miséria desde a
escravidão e que agora estendia-se na forma do pauperismo, analfabetismo, nas doenças, nas
habitações insalubres e na violência do Estado contra ele. A culpa da condição do negro não
era do “branco”, mas de toda a sociedade burguesa, coincidentemente representada quase
exclusivamente pelos brancos. Por último, enfatizou o papel dos negros que estão se
adaptando à superestrutura política da sociedade brasileira, pois desejam o reconhecimento
dos seus direitos, em igualdade com o branco, na colaboração da reconstrução econômico-
político no Brasil: “Os negros começam a tomar papel ativo na conquista desse objetivo”162.
O curto discurso de Miguel Barros163, representante da Frente Negra Pelotense,
demonstra que os intelectuais pesquisadores não estavam distantes dos grupos sociais que
estavam organizados em torno da luta pelo direito. Barros expôs o lema da organização
“União, Cultura e Igualdade”, tratava-se de um movimento de “elevamento moral, intelectual
e social do negro”. Defende a causa de um grupo que foi abandonado a própria sorte,
sobrevivendo por sua capacidade de “trabalho e inteligência virgem”, sofrendo ao longo da
história com a submissão, empreendida sem a noção de humanidade, impedido de sair do
marasmo e da inatividade. Necessita romper a condição atual do analfabetismo para
conquistar a “segunda abolição”, desenvolvendo a mente e o interesse pelos problemas, que
lhe dizem respeito, seguindo o caminho da “evolução humana”. O representante do
movimento social continua a sua análise da realidade do negro, a nosso ver reveladora da
circulação de ideais, afirma: Raça de um passado glorioso, de figuras que afirmaram suas
possibilidades, hoje, postas fora de duvidas pela ciência”164. Compreende que apenas a ciência
– está falando dos intelectuais que compõe as odes do Congresso - e os negros que se
sobressaíram – o intelectual Edison Carneiro, o político Monteiro Lopes, etc. -, nada poderiam
fazer contra a má vontade, a ignorância e a ausência de razão, “frutos exclusivos de
161 CARNEIRO, Edison. op. cit. 1988. p239. 162 Ibid. 240. 163 BARROS, Miguel. Discurso do representante da Frente Negra Pelotense. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Massagana, 1988. p.269-271. 164 BARROS, Miguel. op. cit. 1988. p.270.
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inconscientes reprimidos, que foram transmitidos pelos que ostentam o chicote”165. Barros
acreditava que a condição do negro só mudaria com um grande despertar, marcado pela
evolução coletiva, marcha que deveria ser iniciada pela “própria raça” com a “resolução nítida
dos capacitados”, pois é o “homem de cor” que teria que construir. “Seus músculos
desenvolvidos, demonstram sua ação, mas é preciso, que o traquejo material, junte-se a
capacidade de pensar, raciocinar, deduzir, dominar vícios, ambicionar, para conseguir uma
diretriz elevada, para suprimir exploração, preconceitos, desigualdade”.166 De modo
paradoxal, após tamanha ênfase na deficiência educacional do negro como principal problema
na sua condição de explorado, Barros afirma que mesmo quando tem instrução e está
preparado lhes é negado os melhores lugares, prejudicado pela escolha de funcionários
“brancos”, utiliza o exemplo das “jovens etíopes”167 – jovens negras brasileiras - que se
diplomavam educadoras, mas não conseguiam lecionar além das aulas particulares, devida a
impossibilidade de trabalhar para o Estado.
Enquanto no 2º Congresso houve uma ampla mobilização desses membros, cuja
fundação da União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia durante o evento é o melhor exemplo.
Apesar do apoio de muitas sociedades brasileiras e internacionais, como a Frente Negra
Pelotense, o 2º Congresso terá uma participação significativa dos grupos culturais negros,
terreiros, capoeiristas, baianas do acarajé, irmandades, etc. Desde a disponibilidade de receber
em suas casas os membros do evento, como a Mãe Aninha (1869-1938) do iyalorixá do “Ilê
Axé Opó Afonjá” que recebeu com cerimônia os intelectuais, ou na organização com o
Professor Martiniano Bonfim (1859-1943) um babalorixá. Este desde as pesquisas de Nina
Rodrigues, no início do século XX, abriu a porta de seu terreiro e ajudou com consultas aos
pesquisadores da religião e cultura afro-brasileira, tornou-se referência nas pesquisas de
Manuel Bonfim, Edison Carneiro e Arthur Ramos. Ele também apresentou um trabalho no 2º
Congresso, no qual falava sobre a história - “mito” – de Xangô e a origem do seu culto no
povo ioruba na África, e a defesa de seu culto no Brasil e a festa para ele organizado pelo axé
Opó Afonjá.168 No congresso também participara diversos outros líderes negros, Manuel
Vitorino dos Santos (Manuel Formiga), Manuel Bernardino da Paixão, Eugenia Anna dos
165 Ibid. p.270 166 Idem. 168 BONFIM, Martiniano. Os ministros de Xangô. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. O Negro no Brasil: trabalhos apresentados no 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1940. p. 233-238.
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Santos (Mão Aninha), com notas relacionadas as vivências nos terreiros sobre signos
religiosos, as comidas, a linguagem, os mitos, etc. Entre o 1º e o 2º Congresso, parece que a
participação dos grupos negros está mais envolvida na própria organização e na contribuição
com os estudos, seja como objeto de estudo ou através de seus próprios textos.
Edison Carneiro publicou quatro textos nos anais. O primeiro é o texto “Congresso
Afro-Brasileiro da Bahia”169, no qual ele junto com o outro organizador, Aydano Couto
Ferraz, apresentam ao leitor o que foi o evento e as pessoas envolvidas, nele aparece críticas a
Gilberto Freyre por ter desprezado a iniciativa deles. O segundo texto, “Uma revisão da
etnografia religiosa Afro-Brasileira”170, por meio da etnografia das práticas religiosas da
Bahia, ou melhor da observação e descrição das práticas dos terreiros, e do método
comparativo desenvolvido por Nina Rodrigues, preocupou-se em comparar com as práticas
culturais africanas, com isso queria entender as origens das práticas brasileiras e apontando as
continuidades e as diferenças, concluindo que a cultura na Bahia são representadas pelas
nações nagô, jêjê, angola e congo. No terceiro, intitulado “O médico dos pobres”171, procurou
explicar as origens mitológicas e do culto ao orixá Omolú, que é compreendido como aquele
que causa e cura a doença, deixando os “filhos da África” longe das doenças, no final do texto
aponta a função desse orixá que atende ao pobre que não tem assistência médica. O último
texto, Edison Carneiro172 decidiu por fazer uma homenagem a Nina Rodrigues, colocando-o
como precursor das pesquisas apresentadas no Congresso e primeiro a pesquisar o negro
brasileiro, esse texto assim como o primeiro é de certo modo uma resposta a Gilberto Freyre,
reivindicando o primado dos estudos aos baianos da Escola Nina Rodrigues, não por acaso,
será esse e o texto de Arthur Ramos sobre o “mestre” que encerraram o livro. Curiosamente
foi o prefácio de Arthur Ramos e o escrito de Carneiro e Ferraz que abriram o livro, também
afirmando a Escola e seus membros como continuadores de uma tradição de pesquisa sobre o
negro.
169 CARNEIRO, Edison; FERRAZ, Aydano Couto. Congresso Afro-Brasileiro da Bahia. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. O Negro no Brasil: trabalhos apresentados no 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1940. p. 7-14. 170 CARNEIRO, Edison. Uma revisão da etnografia religiosa Afro-Brasileira. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. O Negro no Brasil: trabalhos apresentados no 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1940. p.61-70. 171 CARNEIRO, Edison. O médico dos pobres. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. O Negro no Brasil: trabalhos apresentados no 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1940. p. 203-210. 172 CARNEIRO, Edison. O médico dos pobres. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. O Negro no Brasil: trabalhos apresentados no 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1940. p. 331-336.
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Apesar das mudanças nos perfis das participações e produções dos negros entre os
dois Congressos, podemos constatar a proximidade dos pesquisadores com os grupos sociais
que eram seus “objetos de estudos”. Outro ponto que nos chamou a atenção é a semelhança do
pensamento intelectual e do discurso social, principalmente no que se refere ao problema do
negro brasileiro ser antes de tudo educacional, da necessidade de integração na sociedade e da
inferioridade cultural do negro, debilitada ou produzida pelos anos de escravidão. Por outro
lado observamos uma ênfase maior no preconceito racial e de cor, tanto nos escritos de
Carneiro e Barros, quanto na necessidade de organização de uma União das Seitas Afro-
Brasileiras para o fim da perseguição religiosa. Sabemos que a defesa ideológica de Gilberto
Freyre e Arthur Ramos em torno da imagem do Brasil como “democracia racial” foi intensa
no período, mas a pesquisa de Júlio Silva173, também demonstrou que no caso de Ramos essa
defesa era paradoxal, no discurso muitas vezes assumiu a existência do racismo ou
preconceito, porém enfatizava que no Brasil tais relações eram amenizadas comparadas aos
norte-americanos, e projetava o Brasil como lugar onde essas práticas poderiam ser abolidas.
Não devemos em compreender a dimensão política dos Estudos apenas pela presença
de membros de associações negras nos congressos, outro exemplo é a proximidade entre os
intelectuais e esses grupos. Nesse caso, Arthur Ramos é um excelente exemplo, pois em
diversas ocasiões esteve em contato com tais grupos, através de conferências e eventos. É
também o caso de suas conferências em maio de 1938, em comemoração das Festividades do
Cinquentenário da Abolição da Escravatura, na qual em São Paulo reuniu-se com membros do
Clube Negro de Cultura Social. Bem como, a quantidade de textos publicados nos periódicos
dessas associações, como no “Senzala”, “A Voz da Raça” e “Quilombo”. Ou a participação
em 1935 na produção do “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra o preconceito racial”, e
o Manifesto contra o Racismo, lançado pela Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnografia (SBAE).
O Segundo Congresso proporcionou algumas mudanças significativas: em primeiro
lugar, o evento confirmou e consolidou a existência do campo de Estudos Afro-Brasileiros
reunindo mais uma vez um grupo de pesquisadores sobre tema; colocou de um lado
estudiosos que não priorizavam o tema, apenas tangenciava-o em seu trabalhos como Freyre,
do outro estavam os estudiosos que dedicavam-se prioritariamente as pesquisas sobre o negro,
como Arthur Ramos e Edison Carneiro; terceira mudança, estreitou as relações entre
173 SILVA, Júlio Claúdio. op. cit. 2010.
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intelectuais de várias partes das Américas que pesquisavam sobre o tema, ou seja os
africanistas, exercendo um papel fundamental na condição da Antropologia Cultural como
perspectiva para abordar o objeto no Brasil, de preferência a antropologia desenvolvida por
Franz Boas e seus discípulos; a última mudança, a Bahia após o evento se tornou
progressivamente lugar ideal - e idealizado - para as pesquisas sobre os africanos e seus
descendentes nas Américas. Júlio Silva apontou as características dos congressos, que a nosso
ver, também são as do campo, qual seja a multiplicidade de subtemas e abordagens
epistemológicas como: o folclore, a literatura, a língua, a religião, a história, a saúde, a
condição social, a arte (escultura, música, teatro), a culinária e a educação. “Ou seja, tratar do
ponto de vista acadêmico de temáticas perpassadas pela dimensão política.”174
Os trabalhos de Arthur Ramos publicados no 1º e no 2º Congresso são exemplos das
mudanças epistemológicas e de representação que estão ocorrendo no campo. No Congresso
de Recife, o psicólogo social apresentou o trabalho “Os mythos de Xangô e sua degradação
no Brasil”175, nesse texto não existe uma metodologia ou teoria clara no trabalho do tema. O
objetivo parece ser analisar as mudanças na visão religiosa sobre Xangô no Brasil, orixá do
candomblé. Metodologicamente sugere o método comparativo, o mesmo desenvolvido pelo
mestre Nina Rodrigues, para isso propõe um “analise dos seus motivos míticos nas terras de
origem”176, consultando os escritos do Coronel A. B. Ellis, membro do exército imperial
britânico, do cientista Leo Frobenius, e do antropólogo Edward B. Tylor, e comparando os
usos registrados por Nina Rodrigues, João do Rio, Manuel Querino e ele mesmo. Observa que
o culto e o mito de Xangô, assim como os significados e as práticas religiosas brasileiras se
mostraram cada vez mais modificadas, ou “degradadas” como é de sua preferência. No
entanto acreditou que o elemento básico de Xangô, como culto fetichista, cujo fetiche estava
na “pedra do raio” (meteorito), não haveria modificado, em parte a preservação do mito pode
ocorrer pelo imenso poder dinamogénico da cultura negra, ou seja despertava reações
corpóreas às sensações.
A parte mais significativa na sua interpretação, consiste na explicação que a
preservação da ligação com o raio, o temor e o prestígio que o fez crescer de popularidade nas
práticas religiosas “reside nos motivos míticos que o inconsciente coletivo guardou, nas
174 SILVA, Júlio Cláudio. Op. cit. 2011. p. 24. 175 RAMOS, Arthur. Os mythos de Xangô e sua degradação no Brasil. CONGRESSO AFRO BRASILEIRO. Estudos Afro-Brasileiros. Recife: FUNDAJ, Massagana, 1988. p. 49-55 176 RAMOS, Arthur. op. cit. 1988. p. 49
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transformações do fetichismo iorubano em habitat brasileiro”177. Utilizando o conceito da
psicologia social “inconsciente coletivo”, explicou que embora o mito tenha sofrido diversas
transformações por causa do sincretismo e do novo habitat, sobreviveu como uma força que
atravessou gerações mantido pela “mentalidade primitiva” da população negra brasileira. O
elemento fetichista persiste, pela ausência de um pensamento lógico, e pelas práticas passadas
de geração em geração sem uma reflexão racional, ao abordar um objeto claro da antropologia
estava na verdade dialogando com o pensamento da psicologia de Lévy-Brhul, por isso para
ele ficou claro que “Xangô é um orixá; é o próprio lugar das cerimonias fetichistas ou o
fetichismo negro-brasileiro, tout court; é uma entidade fantasmal escondida dentro do nosso
inconsciente folk-lorico. Xangô é uma ponte de união psíquica entre a África e o Brasil.”178
Três anos depois publicou o trabalho “Culturas Negras: problemas de aculturação no
Brasil”, a mudança na narrativa é significativa, o texto anterior foi escrito como “notas”
dividido em dez breves anotações, enquanto esse texto tem a estrutura de um artigo. Definiu
logo no início os debates teóricos e seu posicionamento em frente a eles, defendendo a relação
do método histórico-cultural em etnografia com a psicologia, a proposta era utilizar a
metodologia do professor Melville Herskorvitz ao definir e dividir a África em regiões
culturais e sua demonstração que nas Américas isso torna-se impossível pelo processo
histórico de migração, aculturação com o branco e outros elementos que a modificaram. Com
a explicação teórica da psicologia de Lévy-Brhul sobre a “mentalidade primitiva” e sua
relação com a sobrevivência de práticas culturais arcaicas e primitivas nos grupos menos
desenvolvidos, ou inferiores culturalmente. Demonstrou que estava por dentro das mudanças
no campo da antropologia, citando Edward Sapir como antropólogo que dialogava com a
psicanálise, como da psicologia exemplificando as contribuições de Kurt Lewin na Gestalt.
Não podemos ignorar como ele se coloca no cenário da antropologia, anunciando a sua
frequente correspondência com Herskorvits e a mais esporádica, porém existente, com Lévy-
Brhul.
Para ele deve ser levado em consideração quando pesquisa o Brasil e a população
negra: as culturas de origens que não foram trazidas em proporção equivalente e em
momentos migratórios diferentes, por exemplo a primeira onda “banto” e a segunda grande
leva “sudanesa”; o regime de escravidão que apagou o negro do Novo Mundo muitos traços
culturais de origem, salvando-se da distorção das crenças devido ao poder dinamogénico. Por 177 RAMOS, Arthur. op. cit. 1988. p. 50 178 RAMOS, Arthur. op. cit. 1988. p.54.
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último propôs o método da antropologia cultural como ideal para compreender o negro
brasileiro, através de alguns elementos adaptação, (mecanismo biológico), acomodação
(mecanismo social), assimilação (mecanismo social), ajustamento (mecanismo psicossocial),
e aculturação (mecanismo cultural). A sua proposta consiste na ênfase da aculturação como
conceito e metodologia para entender o sincretismo e as sobrevivências: “Nenhum estudo da
civilização brasileira poderá ser realizado sem a discriminação prévia dos padrões de culturas
de origem, e do trabalho da aculturação posterior. É o único método capaz de nos levar ao
conhecimento exato de nós-mesmos.”179 É possível perceber nesse texto e no livro “Culturas
Negras no Novo Mundo”, ambos de 1937, a ambiguidade que marcou seu trabalho, a tentativa
de diálogo da sobrevivência, ou paradigma da sobrevivência, e o paradigma do sincretismo.
A antropologia cultural, a etnografia e o método histórico-cultural
A antropologia cultural proporcionou mudanças epistemológicas para os Estudos
Afro-Brasileiros. Afastando-se da raciologia esses intelectuais construíram pressupostos
novos, como o reconhecimento da diversidade cultural, a aceitação de concepções de difusão
e aculturação, o método etnográfico, o método histórico-cultural. O percurso da antropologia
e da etnografia e suas diversas construções no Brasil são significativas para compreendermos
como Arthur Ramos compreende essas ciências. Com isso, precisamos distinguir etnografia
praticada anteriormente e simultaneamente a escrita do nosso autor. Para isso, dialogaremos
com o trabalho de Rodrigo Turin, “Tessituras do tempo”180, no qual procurou compreender o
discurso etnográfico no brasil oitocentista.
Salientamos que coube ao IHGB e ao Museu Nacional, e seus respectivos congêneres
estaduais e locais, as pesquisas de história e etnografia, pelo menos até a fundação das
universidades nos anos 1930. Segundo Rodrigo Turin181 a etnografia praticada no Brasil no
século XIX em instituições como o IHGB, foi concebida como um tipo específico de escrita
histórica voltada aos povos desprovidos dos marcos de historicidade reconhecidos pela cultura
histórica oitocentista. Esta ciência pesquisava os povos indígenas, devido a impossibilidade
da história desses selvagens, acreditava-se que a etnografia tinha o papel de dar visibilidade
179 RAMOS, Arthur. Culturas Negras: problemas de aculturação no Brasil. In: CONGRESSO AFRO-BRASILEIRO. O Negro no Brasil: trabalhos apresentados no 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1940. p. 147-162. p.. 157 180 TURIN, Rodrigo. Tessituras do tempo: discurso etnográfico e historicidade no Brasil oitocentista. Rio de janeiro: EdUERJ, 2013. 181 Ibid. p. 27-90.
88
àquilo que os próprios indígenas não poderiam resgatar com a memória. Turin denominou
esse pensamento de “topos da obscura história indígena”182. Nesta etnografia os únicos
métodos considerados capazes de fornecer os fatos sobre esses povos eram a arqueologia e a
gramaticalização da língua indígena. O indígena era representado como “selvagem” em seu
estado de natureza, mas era por vezes aproximado dos antigos, demonstrando o valor positivo
das origens nacionais, tudo isto fundamentado no debate do IHGB de “atribuição de um
passado aos indígenas e a possibilidade de sua catequização”.183 Os resultados eram
acompanhados pela comparação com outros povos, desde outros indígenas as sociedades
antigas, tratava-se uma ferramenta fundamental na construção do “fato etnográfico”. O IHGB
desenvolveu a imagem do indígena tendo como base documental os relatos de viagens e dos
missionários, os pesquisadores do instituto apresentavam o olhar tomado por questões
metafísicas e filantrópicas, marcas da prática da antropologia bíblica nos seus quadros.
O mesmo topos da obscura história indígena estava presente na etnografia praticada
nos museus brasileiros do final do século XIX e início do XX.184 Porém, a crítica aos relatos
de viagens e cronistas se tornaram constantes, o alvo era o “maravilhamento” sofrido por
esses estrangeiros, portanto era uma crítica metodológica que notava a ausência de um olhar
treinado para perceber a realidade do fato etnográfico. Nos museus os pesquisadores
procuravam se distanciarem dos olhares “desprovidos de aparato conceitual científico”185, o
laboratório foi o espaço para prática antropológica. Os cientistas precisavam evitar as
emoções, pois o saber positivo é fundamentado na empiria, para isso procuravam reproduzir
ou analisar os eventos em ambientes controlados. A antropometria teve um papel fundamental
nos estudos dos museus, o objetivo era classificar os tipos e experimentar eventos, para depois
formular a explicação ou as leis gerais. Construíram uma tradição no naturalismo,
preocupados com a história natural e fundamentados no evolucionismo. A etnografia era
marcada pela antropologia física, principalmente a Craniometria, porém ainda levavam em
consideração a arqueologia e filologia, obviamente com críticas a maneira como elas eram
desenvolvidas pela tradição humanista do instituto. A representação do indígena afastou-se da
condição de “selvagem” produzida no instituto, sendo representado como “primitivo”. Dessa
maneira, foi posto na escala evolutiva seja ela física ou moral/social, sendo mais importante
compreender as diferenças e a hierarquias de desenvolvimentos das raças humanas. 182 Ibid. p. 28. 183 TURIN, R. Entre antigos e selvagens: notas sobre os usos da comparação no IHGB. Revista de História (USP), v. --, p. 131-146, 2010. p. 139. 184 TURIN, Rodrigo. op. cit. 2013. p. 139-188. 185 Ibid. p. 161.
89
Paralelo as etnografias do IHGB e dos museus, um grupo de intelectuais sem lugares
institucionais claros, lançavam na década de 1880 outra possibilidade de trabalho etnográfico
desenvolvido por meio do folclore, destacam-se Silvio Romero, José Verissimo, Celso
Magalhães, José de Alencar, etc.186 Esses intelectuais questionavam a obscuridade da
história da nação, a etnografia deveria revelar o passado profundo desta. Traziam no discurso
folclórico o conceito de povo para o cenário cientifico e político. O objeto privilegiado era a
poesia popular, a relação com o documento estava envolta do saudosismo ou de experiências
pessoais. Existindo conflitos de visões sobre o método: uns preferiam ver nas poesias um
passado possível de ser resgatado e, portanto o documento precisava ser limpado removendo
as marcas do tempo procurando uma origem pura; enquanto outros, como Sílvio Romero,
preferiam vê-los como manifestação de seu tempo, em vez de limpar as variações era mais
importante explicar ou entendê-las como camadas de tempos históricos que se impuseram. Os
folcloristas procuraram estabelecer critérios imanentes à história, por meio do evolucionismo.
Segundo Turin187 essa operação consistia em dois pilares: “estabelecer uma unidade
coerente para a poesia popular e, paralelamente, determinar-lhe os elementos de desvio, de
modificação, de adequação, causados pelo clima, pela raça, pelo meio.” Prcuravam nos
“resíduos de diferença” a especificidade do povo brasileiro. Coube a esse grupo estabelecer o
primado da observação como método etnográfico no Brasil, dando importância a observação
pessoal como documentação da verdade, preocupando-se com o olhar objetivo – longe de
julgamentos precipitados ou morais. Dentre eles, estava Nina Rodrigues que acreditava que a
observação permitia ver a verdade do conceito.
Já sabemos que Arthur Ramos era leitor de Nina Rodrigues, mas devemos salientar
que também era de João do Rio (1881-1921)188 e de Manuel Querino (1851-1923)189. Leituras
estas que figuram em seus textos antes mesmo de dialogar com a antropologia cultural.
Observamos que esses três autores são a bibliografia fundamental para Arthur Ramos na
produção de “O Negro brasileiro” e de seus outros textos sobre a cultura e religião dos negros
brasileiros. Sobre os dois últimos, eram praticantes dessa etnografia próxima da elaborada
pelos folcloristas, cuja observação era fundamental como efeito de verdade e a influência do
186 Ibid. p. 189-246. 187 Ibid. p.219. 188 BARRETO, João. As religiões do Rio. Paris: Garnier, 1904. 189 Utilizamos o livro “Costumes africanos no Brasil” organizado pelo médico baiano Thales de Azevedo, em 1938, o livro juntaria três textos importantes de Querino, “A raça africana e os seus costumes na Bahia” (1916), “O colono preto como fator da civilização brasileira” (1918), “A arte culinária na Bahia” (póstumo, 1928). Ver: QUERINO, Manoel. Costumes africanos no Brasil. Recife: FUNDAJ, Massagana, FUNARTE, 1988.
90
evolucionismo cultural era marcante para explicar as diferenças no Brasil, colocavam a
cultura negra dentro de uma manifestação primitiva e os “negros” observados eram
considerados inferiores apenas cultural e socialmente. A educação aparecerá como principal
forma de transformar a condição do negro e do mulato brasileiro, juntamente com a igualdade
social e de condições econômicas. A diferença significativa na contribuição desses
intelectuais foi a crítica destinada as explicações da inferioridade racial ou “qualidade
congênita”, muitas vezes defendidas pelos intelectuais que escreviam sobre os indígenas, os
negros e os mestiços.190
No livro “O Negro brasileiro” observamos que são eles as principais fontes sobre as
práticas culturais e sociais dessa população, Ramos compara ou corrobora os documentos
proveniente de seu próprio trabalho etnográfico com os negros de Salvador e do Rio de
Janeiro. Por um lado João do Rio não aparece nas genealogias do campo de Estudos Afro-
brasileiros escritas por Ramos, por outro Querino foi sempre incluído na condição de único
que continuou os estudos sobre o negro na década de 1910.
Dentro desde período de silêncio, a única voz que se levantou, na Bahia, cheia de entusiasmo e de emoção, em defesa do Negro brasileiro, foi a de Manuel Querino, ele próprio de origens africanas. Manuel Querino pôs-se a estudar os míltiplos problemas da psicologia e da sociologia do Negro brasileiro: religiões, tradições, folclore, sobrevivências sociais, culinárias ... A memória sobre A raça africana e seus costumes na Bahia, apresentada ao 5º Congresso Brasileiro de Geografia, em 1916, é uma das mais consideráveis que temos sobre o Negro, que foram reunidos, recentemente, no volume Costume Africanos no Brasil, com prefácio e notas de Arthur Ramos e publicado na Biblioteca de Divulgação Científica.191
O eminente artista negro não era membro da dita escola - ainda inexistente -, não era
ligado ao IMLNR e não era um “cientista”. O destaque dado ao papel de Querino nesta
tradição está relacionado à sempre menção ao trabalho de Nina Rodrigues nos textos do
artista; ao fato de ser ele baiano lugar onde o campo foi desenvolvido, no qual Arthur Ramos
teve a sua formação intelectual e reivindica o primado das pesquisas aos baianos; e por
último, talvez o mais importante, pela abrangente coletânea do folclore e cultura negra
considerado uma rica fonte documental.
Para fazer justiça, devemos levar em consideração a proposta das mudanças
epistemológicas ocorridas na antropologia e etnografia no Brasil, promovidas no seio do 190 Ibid. p. 22. 191 RAMOS, Arthur. Scientific studies on the Negro in Brazil.In:______. op. cit. 1939. p. 186.; RAMOS, Arthur. Os estudos científicos sobre o Negro no Brasil. In:_____. op. cit. 1956. p.202
91
Museu Nacional, pelo médico e antropólogo Edgar Roquette-Pinto (1884-1955). Professor de
Antropologia do museu desde 1906, destacou-se nesse campo a partir da década de 1910,
chegando a diretor da instituição em 1926, seguramente, a partir desse momento o nome mais
respeitado da antropologia brasileira. Para o historiador Vanderlei Souza192 a etnografia
realizada por Roquette-Pinto, não pode ser completamente identificada com a desenvolvida
pela escola de etnografia britânica liderada pelo antropólogo social Bronisław Malinowski
(1884-1942), durante a década de 1920, cujo livro mais influente foi “Os Argonautas do
Pacífico Ocidental”193. Esta escola britânica investia no treinamento acadêmico dos modernos
métodos de trabalho de campo e no estabelecimento da observação participante intensiva
como uma norma profissional, o antropólogo devia viver entre os nativos, olhando, ouvindo,
perguntando, registrando, experimentando o funcionamento da sociedade e interpretando a
sua cultura.
Souza194 colocou a etnografia de Roquette-Pinto junto com a da “geração
intermediária” da antropologia internacional, na qual se destacaram dentre outros, Edward
Tylor e Franz Boas – este no começo da carreira, pois a partir da década de 1920
compartilhou da perspectiva de trabalho etnográfico da escola britânica -, era uma
antropologia fortemente ligada aos estudos das ciências naturais, mas lançavam os
fundamentos dos componentes empíricos e teóricos da pesquisa antropológica social e
cultural. Estes etnógrafos não viviam longos períodos nos campos de estudo e nem
procuravam fazer parte da cultura observada, mas mantinha, a despeito disso, uma atitude
documentária e observadora que se esforçava em descrever os costumes dos nativos.
Edgar Roquette-Pinto fez parte da Missão Rondon em 1912, cujo fruto foi o livro
“Rondônia - Antropologia etnográfica”, sendo o primeiro antropólogo brasileiro a passar
semanas entre os indígenas realizando trabalho de observação de sua cultura, colhendo
cantigas, lendas e expressões linguísticas. Era defensor da observação como necessária para o
empreendimento etnográfico, destacando a importância da convivência e do contato mais
próximo com o nativo observado. Ainda era muito influenciado pela tradição etnográfica 192 As nossas observações sobre o trabalho etnográfico e antropológico desenvolvido por Edgar Roquette-Pinto está fundamentado na tese: SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropológico brasileiro (1905-1935). Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) –Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2011. 382 f. p. 104-108 193 O livro foi publicado em 1922, influenciado por James Frazer, antropólogo que já havia empreendido timidamente a observação e introduzido a fotografia como fonte de análise das culturas. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1976. 194 SOUZA, Vanderlei Sebastião de. op. cit. p. 105.
92
construída no Museu Nacional, fundamentada nas ciências naturais e na antropologia física.
Vanderlei Sousa195 identificou que a base do trabalho etnográfico do antropólogo brasileiro
estava na leitura da obra do etnólogo alemão Paul Ehrenreich (1855-1914), que na visita ao
Brasil entre 1984 a 1985 desenvolveu uma pesquisa sobre os indígenas, tanto de etnografia
quanto de estudos anatômicos, fisiológicos e patológicos. Roquette-Pinto tinha o olhar de
cientista natural, mas também empregou o fazer etnográfico, ainda que dialogasse com os
princípios metodológicos da pesquisa de campo divulgado nas recém criadas cátedras de
“Antropologia Social”196 nas universidades estrangeiras.
Sabemos que quando Arthur Ramos começou a se interessar pela questão racial como
possibilidade de pesquisa, estabeleceu contato com Edgar Roquette-Pinto, chegando a enviar
alguns de seus trabalhos em 1932 para o antropólogo do Museu Nacional.197 A procura pelo
reconhecimento dos seus esforços e o alcance de uma “permissão” para a entrada no campo
da Antropologia, parece ser a motivação inicial desse ato. Porém não podemos descartar a
leitura do trabalho de Roquette-Pinto como influencia, sendo este o maior nome da
antropologia brasileira naquele momento, principalmente sobre a formação racial da
população brasileira.
Nos anos 1910, Roquette-Pinto iniciou sua coleta de documentos e dados para uma
pesquisa sobre a composição da população brasileira, analisando os tipos raciais que
compõem o povo desde o período colonial até o momento das suas pesquisas.198 Interesse
que foi favorecido por ter sido auxiliar do médico e naturalista João Batista Lacerda (1846-
1915), então diretor do Museu Nacional, numa pesquisa estatística sobre a constituição racial
brasileira que foi apresentada no 1º Congresso Universal de Raças. Na década de 1920 este
projeto pessoal/científico foi intensificado, junto com a condição de diretor do Museu a partir
de 1926, lançou nesse período a tese da existência de várias nações no Brasil que não eram
antagônicas, pelo contrário se completavam. Desenvolveu em suas pesquisas as classificações
195 Ibid. p. 107 196 A primeira cátedra de Antropologia Social foi fundada em 1908, cátedra honorária de Sir James Frazer em Liverpool. Foram fundadas a partir da década de 1880 na Europa as primeiras cátedras de Antropologia e de Etnologia. 197 PINTO, Edgar Roquette. Cartão-postal a Arthur Ramos agradecendo o envio de seus trabalhos. Rio de Janeiro, 26/5/1932. 1 doc. Orig. A foto do cartão é de um índio Nambikuara, do rio Jurema, Rondônia. A foto é de E. Roquette-Pinto (1912). I-36,2,2.197. Arquivo Arthur Ramos- Fundação Biblioteca Nacional. 198 No final dos anos 1910, Roquette-Pinto iniciou a organização de uma equipe de pesquisadores do Museu Nacional na “Seção de Antropologia, Etnografia e Arqueologia”, entre eles Irineu Malagueta de Pontes, Otávio da Silva Jorge, Raul Baptista, Mario Raja Gabaglia, José Lopes Ferreira Pinto e Fábio Barros, com o objetivo de realizar o projeto de mensurações antropométricas, que deverão servir de base à determinação ulterior dos nossos principais tipos antropológicos. SOUZA, Vanderlei. Op. cit. 201. p. 156.
93
raciais da população brasileira que vários antropólogos adotaram, dentre eles, Arthur Ramos
que também adotou as suas estatísticas sobre as mudanças na composição da população
brasileira. O resultado completo da pesquisa foi publicado em 1928 e foi apresentado no
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, intitulado “Nota sobre os typos anthropológicos do
Brasil”199, encontrado como referência nas obras de Ramos pelo menos desde 1934, junto
com o “Antropologia brasiliana”200 outro importante livro de Roquette-Pinto. Arthur Ramos
identifica que
Entre nós, foi o professor Roquette-Pinto quem mais procurou estudar a biologia, e a antropologia física dos quatro grupos, que ele chamou: 1) Leucodermos (Brancos), 2) Faiodermos (Branco X Negro), 3) Xantodermos (Branco X Índio) e 4) Melanodermos (Negros), considerando os demais tipos (Cafusos, Xibaios, Caborés), numericamente insignificantes.( Estes estudos precisam ser continuados, no Brasil, e conduzidos sob o rigoroso critério dos métodos científicos sem prejulgados raciais e sem o aligeiramento literário que se nota nas obras de muito dos nossos ensaístas.
Resta-nos o exame das relações de cultura, que interessam especialmente a este trabalho. Os contatos culturais não implicam necessariamente o contato de raças, porque podem ser indiretos, isto é, quando os membros do grupo não chegam a uma associação pessoal imediata. É o que ocorre, nas influências à distância, entre os povos. Na América, certas tribos indígenas, como destaca Reuter, introduziram a cultura europeia, através do seu contato com outras tribos. No Brasil, o negro também foi um fator de transporte indireto da cultura europeia, como no caso referido pelo professor Roquette Pinto e acentuado por Gilberto Freyre, da ação civilizadora dos escravos fugidos entre os índios da serra dos Parecis. Houve aqui um contato indireto de cultura, fenômeno que atinge à sua mais alta expressão na imitação à distância, das culturas de povos mais adiantados pelos outros mais atrasados (lei de imitação do superior pelo inferior de Tarde).201
O texto é um trabalho eminentemente de antropologia física, área muitas vezes
ignorada por Ramos que preferiu desenvolver a etnografia e a antropologia cultural. Mas, o
que despertou o interesse de Arthur Ramos por um trabalho que se distanciava do campo de
estudo que estava enveredando em 1934? Em primeiro lugar, a tese de Roquette-Pinto
criticava e ignorava a ciência antropológica que procurava por meio da craniometria e outros
argumentos biologizantes inferir a habilidade e qualidade física e mental dos indivíduos,
como o antropólogo do museu afirmou: “A antropologia não se limita mais a medir crânios e
a calcular ‘índices’ discutíveis, na esperança de poder separar as ‘raças superiores’ das raças
199 ROQUETTE_PINTO, Edgar. Nota sobre os typos anthropológicos do Brasil. Archivos do Museu Nacional, vol. XXX, p.302-331, Rio de Janeiro, 1928. 200 ROQUETTE_PINTO, Edgar. Ensaios de antropologia brasiliana. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1933. 201 RAMOS, Arthur. As Culturas Negras no Novo Mundo. 2.ed. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional/ Brasiliana, 1946 [1937]. p. 356.
94
inferiores’. Hoje a doutrina da igualdade vai ganhando terreno: ‘superiores’ e ‘inferiores’ são
agora ‘adiantadas’ e ‘atrasadas’.”202 Segundo, as mudanças nas concepções antropológicas
promovidas por Roquette-Pinto, propondo que além da antropologia física era importante
desenvolver os estudos sobre os cruzamentos raciais, a imigração, a influência do meio, a
hereditariedade e o temperamento psicológico das raças. Terceiro, Roquette-Pinto tornou-se
um crítico da ideia de existência de raças puras, demonstrando através dos diferentes tipos
antropológicos a tese que o Brasil era um país mestiço, o qual com a “combinação de
caracteres” estaria cada vez mais estabilizado em seus tipos.
Encontramos no discurso de Arthur Ramos sobre a contribuição do “negro na
evolução social do povo brasileiro”, as três características do discurso de Roquette-Pinto
apontadas a cima: a desqualificação dos determinismos raciais; a adoção da ideia de que
existem diferenças culturais produzidas pelas condições históricas e sociais, sendo elas
adiantadas e atrasadas, primitivas e civilizadas, inferiores e superiores, etc.; a ideia de que a
mestiçagem caracterizava o povo brasileiro, sendo ela positiva como elemento de
estabilização da cultura e produtora da singularidade. É bem verdade que os pontos de
aproximação do discurso dos dois intelectuais, será revestido de novos conceitos e
argumentos fundamentados para Ramos na Antropologia Cultural e na psicologia.
Para podermos compreender o que Ramos entende por Antropologia e etnografia,
optamos por analisar o seu livro “As Culturas Negras no Novo Mundo”, por dois motivos
escolhemos essa obra: primeiro, porquê é uma produção específica do momento histórico que
estamos pesquisando, pois fora publicada em 1937, lembre-se que delimitamos o nosso
trabalho até 1942, quando ele publica o segundo texto sobre Palmares; o segundo e mais
importante motivo, parte desse livro contém uma revisão da antropologia, seus métodos e
conceitos, na qual ele demonstra a sua erudição e procura se posicionar como um antropólogo
e africanista, elaborou uma defesa do método histórico-cultural.
Dos muitos intelectuais que influenciaram a intelectualidade brasileira, nas décadas de
1930 e 1940, um deles foi muito importante para os Estudos e para Arthur Ramos, seu nome
era Melville Herskovits, professor de antropologia da Northwestern University. O africanista
norte-americano foi orientado por Franz Boas, desenvolveu pesquisas sobre as sobrevivências
de traços culturais africanos nas sociedades do continente americano. Ele apareceu com textos
202 RAMOS, Arthur. op. cit. 1946. p.90
95
nos dois anais, provavelmente a sua influência, se deve por ser o pesquisador que desenvolveu
as colaborações de Boas para análise sobre a população negra norte-americana e sobre a
África.
Herskovits teve grande contribuição no processo de transformação da antropologia
produzida por Arthur Ramos. Para Olívia Maria G. da Cunha203 essa mudança foi resultado de
um longo processo de transformação e reflexão sobre os seus próprios envolvimentos
institucionais. Tentou romper com o determinismo racial do “mestre”, a partir de “O Negro
Brasileiro” afastou-se gradualmente do “psicologismo”, aproximando-se das interpretações
mais sofisticadas e próximas às posições culturalistas, principalmente do seu interlocutor
Melville Herskovits. Tinham um objetivo comum constituir os “estudos afro-americanos”
com status de “científico”, preocupações relativas ao caráter institucional das pesquisas,
constitui-los como “especialidade”. Na tentativa da institucionalização do campo de estudos
Arthur Ramos aproveitou as comemorações do Cinquentenário da Abolição, em 1938. O
evento foi organizado pelo Ministério da Educação e o ministro Gustavo Capanema
encomendou a Arthur Ramos um projeto, nesse período sugeriu a criação de um centro de
estudos sobre os problemas de raça e cultura no Brasil.204
O Dr. Herskovits desenvolveu estudos sobre a aculturação, bem como analisou as
sobrevivências culturais na sociedade moderna. Estudou o “Novo Mundo” como lugar
privilegiado para os contatos raciais e a diáspora dos negros até as Américas. Segundo Sarah
Silva, o contato com o mundo afro-brasileiro ocorreu somente por meio das conversas com
Arthur Ramos, correspondência iniciada no ano de 1935. Teria sido essa comunicação com
intelectuais estrangeiros que estabeleceu uma concepção de estudos sobre o negro. Ramos
difundiu os trabalhos de Herskovits entre a intelectualidade brasileira, “colocando na pauta de
discussão das ciências sociais daqui os conceitos e problemáticas da antropologia cultural
africanista”.205
O antropólogo norte-americano desenvolveu por meio do método histórico-cultural o
estudo comparativo das áreas culturais da África. Segundo Arthur Ramos tal método
analisava as culturas locais, delimitando os ciclos ou círculos de ação, observando os contatos
203 CUNHA, Olívia Maria G. da. Sua alma em sua palma: identificando a “raça” e inventando a nação. In: PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo.: Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p. 257-288. p. 264. 204 Ibid. p.265 205 SILVA, Sarah Calvi Amaral. op. cit. 2010. p. 46.
96
empreendidos entre culturas distintas e suas transformações, mas também identificava os
“focos culturais” ou centros de uma cultura. A história tinha um papel central por possibilitar
identificar as rupturas e continuidades dessas culturas e sociedades no tempo, procurando
historicizar a construção de uma determinada sociedade observando, as migrações, os
contatos culturais, as mudanças na organização social, etc. O método estava preocupado em
compreender a cultura no tempo presente, enquanto visão de mundo e ordenadora dos grupos
sociais. O papel da etnografia era fundamental, cabia a ela identificar a estrutura cultural,
entendendo os fatos etnográficos - família, economia, religião - como conjunto cultural, com
seus elementos de cultura material e espiritual.206
A condição histórica do método consiste em observar as mudanças no tempo, o
processo histórico de cada sociedade ou cultura como única e local, procurando explicar a
singularidade de cada grupo humano. Arthur Ramos criticou o estudo da cultura empreendido
por critério evolucionista puro, linear, antes dos modernos métodos da antropologia cultural.
Para ele consistia em erro compreender que a sociedade humana passaria universalmente por
fases lineares de desenvolvimento. 207 Arthur Ramos aponta para a importância das pesquisas
do alemão Robert Fritz Graebner (1877- 1934), como inaugurador do método histórico-
cultural. E observa que foi o também alemão Leo Frobenius (1873-1938) que primeiro
classificou as culturas na África. Arthur Ramos observou que
Com a orientação dos novos métodos histórico-culturais, o estudo das populações africanas e suas culturas materiais e espirituais viria a modificar-se profundamente. O Africano não mais seria olhado como um tipo uniforme, inferior, colocado nas escalas baixas da civilização. Descobriram-se nas áreas culturais da África padrões de cultura que se iriam emparelhar com velhas culturas de ciclos históricos mais adiantados.
Foi o também alemão Franz Boas que desenvolveu o método histórico-cultural nos
Estados Unidos, tornando-se um dos maiores críticos do racismo, etnocentrismo e do
evolucionismo, propunha que cada grupo humano tinha sua própria história e cultura. Não
chegando a formular uma crítica ao princípio da evolução do desenvolvimento histórico, visto
por ele como um processo de adaptação da humanidade, ocorrendo de maneiras diversas e
sem um modelo padrão definido, a sua crítica destinava-se a ortogênese que dominava o
pensamento científico. Terá um grande impacto na obra de Arthur Ramos a ideia de Boas da
existência de diferentes desenvolvimentos históricos, resultantes de diferentes processos em
206 RAMOS, Arthur. op. cit. 1946. p. 45. 207 Ibid. p. 39.
97
que intervieram inúmeros fatores e acontecimentos, culturais e não culturais. O antropólogo
brasileiro procurou as diferentes culturas afro-brasileiras, identificando como produtos de
processos históricos diferentes. O Dr. Ramos construiu críticas ao racismo baseado na ideia de
autonomia do fenômeno cultural, desenvolvida por Boas e por seu discípulo Herskovits.
O professor Melville Herskovits utilizando o método histórico-cultural que
desenvolveu a divisão das áreas culturais africanas. A divisão das culturas africanas
organizada por Herskovits foi utilizado por Arthur Ramos para pôr em prática o método
comparativo de Nina Rodrigues, que consistia em comparar os elementos culturais
encontrados no Brasil com os encontrados na África, procurando a origem cultural das
culturas brasileiras e ao mesmo tempo observando as continuidades, compreendidas como
“sobrevivências”, e as rupturas, compreendidas como “sincretismos” ou “misturas culturais”.
Para pesquisar as fontes etnográficas Arthur Ramos optou por desenvolver um tímido trabalho
de campo nos terreiros da Bahia e do Rio de Janeiro e a consulta e entrevista com líderes
religiosos, complementando com os trabalhos desenvolvidos por seus colegas de outros
estados e áreas – linguística, musicologia, folclore, história, etc. -, e pelos trabalhos
desenvolvidos por Nina Rodrigues, João do Rio e Manuel Querino, como já foi dito. Para as
fontes etnográficas africanas, de grande importância no método comparativo, optou por
consultar os trabalhos de Leo Frobenius e Herskovits, porém a sua principal referência sobre
as culturas africanas foi o coronel A. B. Ellis, um membro do exército imperial britânico.
Segundo Livio Sansone208 o olhar específico dos estrangeiros contribuiu para a criação de um
tipo particular de “África” no Brasil, tanto o discurso de Herskovits, quanto o discurso de
Ellis priorizaram os iorubas e as culturas do Benin como mais adiantadas. Consequentemente
observaremos nos trabalhos de Ramos e outros estudiosos que utilizaram as mesmas
referências, repetindo hierarquias coloniais, na qual povos bantos seriam inferiores
culturalmente aos iorubas.
Outra importante influência de Herskovits foi o conceito de “áreas culturais”, Ramos
utilizou para compreender as diversas culturas locais, explica
uma área cultural compreende aquela região onde as culturas dos povos que a habitam são relativamente semelhantes quando comparadas às culturas de outras regiões". Não há, contudo, linha nítida de separação, não há limites entre estas áreas culturais. O classificador anota as similaridades encontradas
208 SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador: Edufba ; Pallas, 2003. p. 100-101.
98
entre as culturas, assinalando no mapa as regiões onde os padrões culturais semelhantes se tornam mais aparentes.209
Para determinar as áreas culturais o antropólogo devia anotar as similaridades
encontradas entre as culturas, assinalando no mapa as regiões onde os padrões culturais
semelhantes. Segundo Ramos não existe uma linha nítida de separação, não há limites entre as
áreas culturais, com isso foi possível para ele entender que a predominância da cultura ioruba
na Bahia, não significando a ausência da cultura banto nessa região. No Novo Mundo as
culturas africanas teriam perdido as referências das habituais áreas culturais, formando novas
áreas, Ramos defendia a característica sincrética da cultura afro-brasileira, por meio do
processo de aculturação. Porém definia que as culturas iorubas ou terreiros de candomblé
eram mais puros, por causa do maior avanço cultural desses povos na África, enquanto as
culturas bantos, representadas pelos terreiros de umbanda, tornaram-se mais sincréticas pois
essa cultura africana era inferior e mais suscetível a aculturação. Sobre a aculturação,
procuramos abordá-la na análise sobre Palmares.
Arthur Ramos passou a ser divulgador dos trabalhos do professor Herskovits. Sarah
Silva observou que o antropólogo brasileiro desenvolveu um curso de etnografia para a
Sociedade de Etnografia e Folclore210, em 1937, no qual utilizou os textos do colega norte-
americano. Na recepção do culturalismo, os intelectuais brasileiros promoveram uma
ressignificação das teorias de Herskovits para interpretações calcadas na presença branca,
negra e indígena no Brasil. O sociólogo Antônio Guimarães211 analisou a correspondência
entre Ramos e Herskovits, encontrando intercâmbios de materiais referentes aos estudos das
culturas negras no Novo Mundo (artigos, livros, conceitos e considerações etnográficas). A
influência do antropólogo norte-americano permitiu que Ramos desenvolvesse novas análises
sobre o seu material etnográfico, observando como “processo aculturativo” das influencias
étnico-culturais no Brasil.
Segundo Guimarães, as trocas de informações com o autor brasileiro significaram a
abertura do mundo afro-baiano para a antropologia africanista estadunidense. Em 1939,
assumiu a cátedra de Antropologia e Etnografia da Faculdade Nacional de Filosofia da recém-
criada Universidade do Brasil. Nesse momento ele ainda não havia formado a sua identidade
209 RAMOS, Arthur. op. cit. 1946. p. 59. 210 Instituição inaugurada por Mário de Andrade, em São Paulo, finais de 1936. 211 GUIMARÃES, Antônio A. S. Africanismo e democracia racial: a correspondência entre Herskovits e Arthur Ramos (1935 -1949). Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Africanismo%20e%20democracia%20racial.pdf.
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de antropólogo212, pois estava no início da carreira e ainda estava consolidando a sua rede de
relações internacionais. Por outro lado, tinha uma posição de liderança em meio aos eruditos e
intelectuais dos estudos do Negro no Brasil.
Parte dessa identidade de antropólogo, também está vinculada ao seu reconhecimento
pelas suas pesquisas sobre o negro e pelo exercício da licenciatura. Desde de 1935, ocupou a
cadeira de professor de Psicologia Social da Universidade do Distrito Federal, foi indicado
por Afrânio Peixoto213. A partir desse período a preocupação com o estudo das relações
raciais assume uma posição cada vez mais central na sua produção intelectual, paulatinamente
passa também a se definiria como antropólogo.214 Podemos selar essa exposição dos lugares
sociais de Arthur Ramos com o seu último cargo em 1949, quando foi convidado a assumir a
direção do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, função esta que lhe permitiu
aprimorar a sua defesa da democracia racial no Brasil como maneira de integração do
negro.215
A sua produção intelectual sobre os negros no Brasil foi dividida em três fases.216 A
primeira fase foi iniciada com os estudos ainda na FMB em 1927 se prolongando até 1937,
são obras desse período: “O Negro brasileiro: ethnografia religiosa” (1934) e “O Folk-lore
Negro no Brasil: Demopsicologia e Psicanálise” (1935). Com características teóricas da
medicina, como observou Octavio da Costa Eduardo217, conceitos como “doença” e
“anormalidade” foram utilizados para compreender o fenômeno da “possessão” nos cultos de
origem africana. Eduardo aponta também características de suas obras através da aproximação
com as teorias de dois pensadores: de Lévy-Bruhl, adotou o conceito que explica as razões
das sobrevivências religiosas e a mentalidade dos negros, a ideia de mentalidade pré-lógica 212 “Apenas após a sua passagem pelo seminário de Herskovits e de sua introdução ao mundo da antropologia norte-americana, se sentirá plenamente um antropólogo”. GUIMARÃES, Antônio Sérgio A. Africanismo e democracia racial: a correspondência entre Herskovits e Arthur Ramos (1935 -1949). p. 6. Captado em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Africanismo%20e%20democracia%20racial.pdf. Acessado em: 19 ago. 2012. 213 Também membro da Escola Nina Rodrigues e denominado como o discípulo dileto de Nina Rodrigues. 214 O cientista social Antônio Sérgio Alfredo Guimarães observa parte dessa mudança de autodenominação como profissional da medicina para antropólogo, através da composição do papel timbrado utilizado por Arthur Ramos na troca de correspondências, que aos poucos deixa de identifica-lo como médico. GUIMARÃES, Antônio A. S. Africanismo e democracia racial: a correspondência entre Herskovits e Arthur Ramos (1935 -1949). Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Africanismo%20e%20democracia%20racial.pdf. 215 Existem várias outras instituições da qual o autor fez parte e contribuíram para sua visão de mundo, no entanto escolhemos essas por estarem mais presentes nos textos que analisaremos. 216 Essa divisão foi proposto por Octavio da Costa Eduardo, num artigo escrito em 1950, junto com Florestan Fernandes e Hebert Baldus, o objetivo do texto era prestar uma homenagem póstuma a Arthur Ramos. Ver: BALDUS, Hebert; FERNANDES, Florestan; EDUARDO, Octavio da C. Arthur Ramos 1903-1949. Revista do Museu Paulista. São Paulo, v. IV, 1950. p. 439-459. 217 Ibid. p. 445-446.
100
dos primitivos, com suas crenças de origem africana; e partindo dos textos de Freud, uma
interpretação dos mitos africanos e do totemismo, por meio do constructo psicanalítico,
aproximando, por vezes, os mitos africanos do complexo de Édipo.218
A segunda fase ocorreu entre 1937 e 1944, quando Arthur Ramos dialogou com várias
correntes antropológicas, tornando seu pensamento mais etnológico e ampliando também o
seu objeto de estudo ao procurar observar o Negro em toda a América. O livro que abriu essa
fase foi “As Culturas Negras no Novo Mundo” (1937), que ele chamaria de “ensaio de
psicologia social e antropologia cultural”219, inspirado no trabalho do antropólogo norte-
americano Melville J. Herskorvits. O contato de Arthur Ramos com esse antropólogo foi
importantíssimo, pois eles mantiveram uma correspondência desde 1935 até 1949. Em 1941 o
antropólogo brasileiro participou de um curso sobre aculturação dirigido por Herkorvits, de
fevereiro a abril, na Northwestern University, situada em Illinois, nos Estados Unidos.220
Segundo o sociólogo Antônio Sérgio A. Guimarães221, ao analisar a correspondência entre os
dois pensadores, é perceptível que o professor Herskorvits assumiu aos poucos o seu papel de
ensinar, recomendar, sugerir e viabilizar o treinamento profissional do médico Arthur Ramos.
É principalmente por causa do diálogo com a teoria deste antropólogo e de outros
discípulos de Franz Boas - Ruth Benedict, Margareth Mead, e outros - que ele se aprofundou
na antropologia cultural. É importante compreender que ele fez parte de uma rede de relações
intelectuais, com a participação de eruditos brasileiros e internacionais. O conceito de
“aculturação” passou a ser primordial em seus estudos, e por meio desse processo que ele “vê
as sobrevivências, e as perdas culturais africanas e os sincretismos afro-americanos,
procurando, com acerto, indicar a influência da escravidão sobre esses resultados”.222 Fazem
parte também dessa fase as obras “The Negro in Brazil” (1939), “A aculturação negra no
Brasil” (1942), “Introdução a Antropologia Brasileira” (1943) e outros.
218 É possível ver a utilização dos dois referenciais teóricos numa única obra, “O Negro brasileiro”. Ver: RAMOS, Arthur. O Negro brasileiro: etnografia religiosa. 3. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1951. 219 Prefácio da 1ª edição. Apud. BALDUS, Hebert; FERNANDES, Florestan; EDUARDO, Osctavio da C. op. cit. 1950. p.448 220 Arthur Ramos iniciou a sua viagem aos Estados Unidos em setembro de 1940 no estado da Louisiana correspondendo ao convite de Lynn Smith para ministrar um curso – Races and Cultures of Brazil - na Louisiana State University, curso foi terminado em janeiro de 1941. Depois ele faz uma serie de palestras em diversas universidades norte-americanas agendadas com o auxilio de Herskorvits, e segue para Illinois para acompanhar o curso sobre aculturação. Ver: GUIMARÃES, Antônio S. Africanismo e democracia racial. s/a. op. cit. 221 Ibid. p. 9. 222 BALDUS, Hebert; FERNANDES, Florestan; EDUARDO, Osctavio da C. op. cit. 1950. p.449.
101
A última fase foi iniciada em 1944, com o desenrolar do final da Segunda Guerra
Mundial. Guimarães percebeu que Arthur Ramos, “buscando firmar-se como uma liderança
internacional latino-americana, do mundo pós-guerra, fará da democracia racial brasileira uma
arma de “antropologia aplicada” e mote de um amplo projeto de pesquisa”.223 Seguiu, a partir
desse momento, na direção contrária a de Melville Herskorvits, pois o antropólogo cultural da
Northwestern procurava defender a sua ciência em contraposição ao engajamento político e
emocional dos estudos conduzidos por W. E. Du Bois e dos teóricos do New Negro. O fato de
sua produção e atividade intelectual nesse momento ter mudado, não significou o abandono
da antropologia cultural, na verdade foi uma afirmação dentro de um ambiente dominado pela
antropologia aplicada. Em agosto de 1949, na Direção do Departamento de Ciências Sociais
da UNESCO, quando Arthur Ramos reivindicou espaço para a antropologia cultural,
afirmando a importância dos estudos comparativos de cultura para o estabelecimento da
igualdade étnica.224 Esse momento foi encerrado com a sua morte no dia 30 de outubro de
1949.
223 GUIMARÃES, Antônio S. A. Africanismo e democracia racial. op. cit. s/a. p.1 224 Sobre essa reivindicação Luitgarde Barros apresenta um texto escrito por Arthur Ramos na UNESCO – Perspectives sur le Département des Sciences Sociales - falando sobre a necessidade de inserir a antropologia cultural para as funções e ações do Departamento de Ciências Sociais. Ver: BARROS, Luitgarde O. C. op. cit. 2000. p. 145.
102
II. "The Negro in Brazil": o livro sobre o Negro na civilização brasileira.
Em 15 de dezembro de 1935, Richard Pattee, emitiu uma carta para Arthur Ramos,
recebida em 16 de janeiro de 1936.225 Este historiador estadunidense era membro da equipe da
Divisão de América Latina do Ministério das Relações Exteriores dos Estados Unidos, nesse
período exercendo a função de professor de história da América Latina e reitor na
Universidade de Porto Rico. A carta falava das pesquisas sobre os negros nas Antilhas,
realizadas por Pattee, em Porto Rico, Fernando Ortiz, em Cuba e Louis Prince Mars, no Haiti.
O objetivo dessa comunicação era estabelecer contato com o intelectual brasileiro e obter
informações sobre os negros no Brasil, pedindo que fosse enviado os livros “O Negro
brasileiro” e “Folk-Lore Negro do Brasil”, lançados por Ramos em 1934 e em 1935. Em
troca, Pattee ofereceu-lhe algumas notas sobre as obras em revistas de língua espanhola e
inglesa
O historiador norte-americano obteve contato com Ramos por indicação de Antônio de
Sousa Amorim, secretário da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Instituição pela
qual acompanhava, desde o início da década de 1930, as pesquisas realizadas sobre a África
de colonização portuguesa, principalmente através do periódico Moçambique e do Atividade
Econômica de Angola, assim como por vários livros. Chegou a colaborar com textos na
revista Serra Nova e no Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Essa
proximidade com Amorim e a Sociedade explica como Richard Pattee sabia da existência das
obras de Ramos.
Com essa carta iniciava-se uma nova veia de divulgação do trabalho de Arthur Ramos
e, por outro lado surgiam possibilidades de conhecer a produção dos estudos sobre o negro na
América. Como resposta à carta de Pattee, o intelectual brasileiro enviou os dois livros
pedidos mais a obra Os Africanos no Brasil de Raymundo Nina Rodrigues. Além de tentar
projetar suas pesquisas internacionalmente, Ramos também constituía o nome de Rodrigues
225 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos relatando seus estudos sobre a cultura negra nas Antilhas, solicitando o envio de exemplares de "O Negro Brasileiro" e "O Folclore Negro do Brasil", anunciando a publicação de um livro sobre o Haiti, de sua autoria, em conjunto com outros intelectuais e pedindo exames de especialistas e de associações brasileiras interessadas no negro]. Rio Piedras [Porto Rico]: [s.n.], 15/12/1935. 2 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299490.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014.
103
como precursor no Brasil das pesquisas sobre a população negra.226 Lembremos que a
publicação do referenciado livro, foi realizado postumamente pelos seus “discípulos” em
1932, dentre eles o próprio Ramos.
Pouco tempo depois do recebimento dos livros, Pattee cumpriu a sua promessa
publicando as notas na “The Hispanic American Historical Review” em agosto de 1936.227
Por causa dessa relação, Arthur Ramos passou a se corresponder com diversos intelectuais
fora do Brasil, como Fernando Ortiz e Prince Mars e também com associações e revistas
norte-americanas que pesquisavam o negro.228 Pattee também indicou Ramos como uma
autoridade em assuntos brasileiros para colaborar com o professor Rayford Logan,
encarregado de organizar uma enciclopédia do negro.229
Numa carta escrita em 27 de fevereiro de 1937, o historiador estadunidense informa a
Arthur Ramos que havia submetido a um periódico o estudo sobre os livros O Negro
brasileiro e O Folk-Lore do Negro no Brasil. Esse é mais um exemplo do importante papel
dos intelectuais estrangeiros, não apenas Richard Pattee, na divulgação do trabalho de Ramos,
para além das fronteiras brasileiras. Nesse caso específico o amigo historiador faz o papel de
intermediário entre uma importante publicação e o intelectual brasileiro, lançando também
ideias para possíveis publicações no futuro. Vejamos como foi operada essa intermediação:
Tenho tido o prazer de escrever para a revista, Journal of Negro History dos Estados Unidos um breve estudo sobre os dois livros de V.Ex.ª que conheço. Esta revista dedica-se exclusivamente ao estudo do negro na sua evolução, história e condição atual. Conhece V.Ex.ª esta publicação? Teria gosto em remeter-lhe um exemplar no caso de interessar-lhe. O Diretor expressou-me numa carta o empenho de ter alguns estudos sobre o Negro brasileiro e
226 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos, acusando o recebimento de três livros sobre a questão dos negros do Brasil, comunicando que escreverá um estudo sobre sua obra para a imprensa de língua espanhola e se oferecendo para remeter publicações sobre a situação do negro em Porto Rico, Cuba e Haiti. Envia ainda endereços de associações negras norte-americanas e de revistas]. Rio Piedras [Porto Rico]: [s.n.], 25/02/1936. 2 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299491.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014. 227 PATTEE, Richard. The Hispanic American Historical Review. Vol. 16, No. 3 (Aug., 1936), pp. 378-382. Published by: Duke University Press. Article Stable URL: http://www.jstor.org/stable/2507562 228 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos, acusando o recebimento de três livros sobre a questão dos negros do Brasil, comunicando que escreverá um estudo sobre sua obra para a imprensa de língua espanhola e se oferecendo para remeter publicações sobre a situação do negro em Porto Rico, Cuba e Haiti. Envia ainda endereços de associações negras norte-americanas e de revistas]. Rio Piedras [Porto Rico]: [s.n.], 25/02/1936. 2 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299491.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014. 229 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos comunicando a indicação de seu nome ao professor Rayford Logan, encarregado de organizar uma enciclopédia sobre a raça negra. Solicita sua colaboração para os assuntos brasileiros e a indicação de outras autoridades na área]. Lima [Peru]: [s.n.], 06/12/1936. 1 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299493.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014.
104
antilhano. Não seria possível a publicação de alguma monografia sobre o negro brasileiro? Parece-me que talvez a tradução ao inglês de alguma monografia não excessivamente longa, seria útil.230
Como podemos observar no trecho citado da carta, é colocado para o estudioso do
negro brasileiro a possibilidade de realizar trabalhos voltados para o público dos Estados
Unidos. A maior contribuição da amizade231 com Richard Pattee para a carreira de Arthur
Ramos foi a possibilidade de produzir uma obra sobre o negro no Brasil. A divulgação do
trabalho do intelectual brasileiro, gerou o interesse de um público estadunidense sobre a
realidade do negro na sociedade brasileira. É nessa conjuntura que Patee comunica à Ramos a
proposta do The Journal of Negro History, que na década de 1930 era uma das principais
publicações acadêmicas sobre o estudo da vida e história do Americano Africano. Esta
publicação existia desde janeiro de 1916, e fora fundada pelo historiador Carter Godwin
Woodson, especialista em história “americana africana” e filho de ex-escravos, importante
líder intelectual negro da primeira metade do século XX. O periódico era administrado por
militantes e intelectuais negros. Numa carta de 18 de maio de 1937, Richard Pattee explica
melhor como Carter G. Woodson estava pensando o livro:
Tendo a sua carta a mão e tendo já enviado também as notas que mandei publicar no Journal of Negro History, que suponho V. Exª. deve ter recebido já, recebi uma comunicação do diretor da revista indicada o Dr. Carter Woodson de Washington, Estados Unidos, com a sugestão da publicação de um livro em inglês sobre o Negro brasileiro, sendo preferivelmente uma tradução do português, feito por uma autoridade brasileira na matéria. Escrevo-lhe esta carta para explicar-lhe em termos gerais a ideia e pedir-lhe que a maior brevidade tenha a bondade de dar-me a sua resposta.232
O nome de Arthur Ramos parece ser o mais indicado para tal empreendimento, por
este já ser reconhecido como o grande especialista sobre o negro brasileiro. De maneira
alguma devemos entender que isso ocorre pela falta de conhecimento de outros nomes, dado
que Pattee tinha contato com outros intelectuais brasileiros como Mário Mello e Renato de
Mendonça. O que suponho confirmar a autoridade do intelectual alagoano, são seus dois
livros que demonstravam o domínio da bibliografia sobre o tema e propunha uma leitura
230 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos, comunicando que indicou seu nome aos organizadores da "Enciclopédia do Negro" e que escreveu resenhas de seus livros para a revista "Journal of Negro History". Solicita o envio de estudos sobre o negro brasileiro para a dita revista e informes sobre o II Congresso Afro-Brasileiro]. Humacao [Porto Rico]: [s.n.], 27/02/1937. 1 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299495.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014 231 Coloco aqui como amizade, respeitando o tratamento entre eles construído em suas correspondência. 232 PATTEE, Richard. Carta a Arthur Ramos propondo a adaptação ou redação de livro sobre o papel do negro na civilização e história social do Brasil, visando atender aos interesses do público norte-americano. Porto Rico, 18/5/1937. 1 p. Orig. Dat. I-35,36,2.043
105
científica da realidade do negro; a direção da Biblioteca de Divulgação Científica da Editora
Nacional, na qual estava construindo uma coleção de estudos sobre o negro brasileiro; os
diversos artigos publicados em jornais e periódicos e a participação destacada como grande
personalidade dos dois Congressos Afro-Brasileiros.
O Dr. Woodson propôs o seguinte. O Journal of Negro History tem todos os meios necessários para a publicação da obra, e quer aproveitar estas facilidades para lançar em inglês um trabalho de conjunto sobre o Negro brasileiro. Eles obrigam-se a ocupar inteiramente da publicação da obra. (...) Eu escrevi com franqueza que não conheço um só livro que reúna todas as condições que eles desejam. O seu livro O Negro Brasileiro é o mais adequado que conheço, mais é preciso pensar que o livro vai destinado a um público estrangeiro, que desconhece até os elementos da questão do Negro no Brasil. Deveria ser uma coisa pouco técnica, com ampla consideração histórica, e especialmente social.Seria uma combinação de história do negro, aculturação, posição atual, folklore etc. Um aperçu [exame] como dizem os franceses do desenvolvimento e status atual do negro brasileiro. Deveria abranger o negro em todas partes do país, com bibliografia a mais completa possível. Não sei de quanto seria a edição, mas suponho que chegaria a dois ou três mil exemplares.233
Ainda nesta carta, ele pergunta se Ramos estaria disposto a colaborar escrevendo tal
obra para “The Journal of Negro History”. Prontificando- se a representar o brasileiro diante
do pessoal que quer publicar, faria também a tradução e o prefácio para edição em inglês.
Porém o grande questionamento de Pattee diz respeito a necessidade de escrever uma obra
inteiramente nova, levando em consideração que está seria uma obra voltada para o público
estrangeiro. Como ele exortou Ramos, ainda não existe uma obra dessa magnitude que “A
ideia é de dar uma visão do papel do Negro na civilização e história social do Brasil em todos
os aspectos principais”234
Arthur Ramos respondeu com urgência, em carta escrita no dia 28 deste mês,
inclusive, verificamos que foi a resposta dada em menor tempo, nesse diálogo. Isto confirma o
interesse na proposta do periódico, oportunidade única para um pesquisador brasileiro, afinal,
este seria o primeiro ensaio histórico-sociológico sobre o negro brasileiro publicado no
estrangeiro. Antes disso tinha-se apenas alguns artigos em revistas. Ele afirma que:
Não tenho dúvidas, por isto, em aceitar a sua proposta. Posso preparar-lhe um trabalho de conjunto sobre o Negro no Brasil, destinado a um público estrangeiro. Trabalho que trataria de história social, (tráfico, escravidão,
233 Idem. 234 Idem.
106
estado atual), tradições e folk-lore e os resultados de aculturação do Negro no Brasil com o coeficiente que trouxe à esta civilização. 235
Para isto, era necessário um livro todo novo, contendo novas pesquisas, sem muitos
termos técnicos, com ênfase sobre o papel do negro na civilização brasileira. Prometeu que
prepararia o trabalho com mais de 200 páginas, em um a dois meses. Porém, depois de
receber a carta de 22 de junho236 trazendo especificamente os desejos do Dr. Carter Woodson,
percebeu que se tratava de um livro inédito, no qual não poderia aproveitar inteiramente as
suas obras anteriores, pois deveria escrever sobre temas novos o que demandaria maior
tempo, com isso, Ramos pede que o prazo seja estendido para poder realizar novas
pesquisas.237
Richard Pattee procurou esclarecer as orientações e objetivos do Dr. Woodson com a
publicação deste livro, na correspondência do dia 22 de junho transmitiu à Ramos um trecho
da mensagem de Woodson. Segue o trecho:
Tinha pensado num livro de 200 a 300 páginas para introduzir o estudo do Negro brasileiro ao público norte-americano. Tenho a opinião que o estudo detalhado da escravidão, tradições e folclore não interessaria tanto como a apresentação do Negro na cultura e o desenvolvimento do Brasil. Até certo ponto o estudo da escravidão acha-se em outras obras e neste livro desejaríamos que os antecedentes do Negro sejam tratado brevemente para logo dedicar o resto da obra ao estudo da contribuição do negro no desenvolvimento econômico do Brasil, o papel do Negro como soldados e na defesa do solo e a contribuição da raça nas letras, ciências, arte, filosofia e música.238 [grifos nosso]
A obra “The Negro in Brazil”, nasceria como um trabalho introdutório, portanto era
uma síntese da história e antropologia do negro no Brasil, não uma pesquisa específica, uma
monografia sobre a escravidão ou a cultura. Era uma história geral do negro no Brasil e se o
título fosse este, consideramos que não seria estranho. O Dr. Woodson e o Dr. Pattee queriam
uma apresentação, uma visão ampla que pudesse norteá-los em estudos mais específicos ou
235 RAMOS, Arthur. Carta a Richard Pattee aceitando proposta para preparar um trabalho sobre o negro no Brasil, destinado ao público estrangeiro. Rio de Janeiro, 26/5/1937. 2 p. Rasc. Ms. I-35,18,325. Seção de Manuscritos. Arquivo Arthur Ramos. Biblioteca Nacional. 236 PATTEE, Richard. Carta a Arthur Ramos solicitando que elabore, a pedido do Journal of Negro History, uma obra sobre a contribuição do negro na cultura e na história do Brasil, para fins de divulgação junto ao público norte-americano. Porto Rico, 22/6/1937. 1 p. Orig. Dat. I-35,36,2.044 237 RAMOS, Arthur. Carta a Richard Pattee informando sobre a necessidade de um prazo maior para escrever o trabalho sobre o negro brasileiro, destinado ao público estrangeiro. Rio de Janeiro, 16/7/1937. 2 p. Rasc. Ms. I-35,18,326 238 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos solicitando que elabore a pedido do "Journal of Negro History", uma obra sobre a contribuição do negro na cultura e na história do Brasil, para fins de divulgação junto ao público norte-americano]. Rio Piedras [Porto Rico]: [s.n.], 22/06/1937. 1 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299497.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014.
107
comparativos sobre o negro americano. Alguns temas deveriam ser tratados no livro, eram
eles: a origem dos negros trazidos ao país, a escravidão, as lutas pela liberdade, a abolição, a
participação nas forças armadas, a contribuição na literatura, a participação nas ciências, a
arte negra, a influência na filosofia. Esse ensaio deveria narrar a história do negro desde a sua
chegada ao Brasil até a década de 1930. Além disso deveria expor o negro na sociedade,
política e cultura brasileira. Foi por esse caminho que seguiu a explicação de Pattee:
Em outras palavras, seguindo as sugestões do Dr. Woodson o que se deseja é um estudo panorâmico do Negro como fator na cultura e história do Brasil e não exclusivamente as suas tradições, folclore etc. O Dr. Woodson observa, com justiça que este será o primeiro livro sobre o Negro brasileiro a publicar-se nos Estados Unidos. O importante é interessar para mais tarde pensar na tradução duma obra mais científica e mais dedicada aos problemas folclóricos. (...) O livro deve responder à pergunta, Que é o Negro no Brasil? Que tem feito e qual é a sua contribuição ao desenvolvimento geral da nação?239
O historiador também explicou-lhe que a obra seria publicada por negros da The
Association for the Study of negro Life and History, de Washington. Isso significava que o
seu interesse principal para a maior divulgação do conhecimento do negro brasileiro, era que
fosse popular. Por esse motivo deveria se preocupar em destacar os negros que, nas diferentes
esferas da vida nacional, têm contribuído para a grandeza do Brasil. Na carta do dia 31 de
julho, Richard Pattee, indica também a necessidade de colocar uma bibliografia mínima de
obras gerais sobre o Negro, um resumo do progresso dos estudos africanistas no Brasil.240
A produção durou um ano meio, pois além de tratar de uma obra nova, tinha uma
linguagem voltada para um público estrangeiro e não-acadêmico, sendo que os trabalhos
anteriores de Arthur Ramos dedicavam-se a cultura, a religião e a psicologia social. Ainda
neste trabalho diversos temas seriam tratados por ele pela primeira vez como objeto de
pesquisa. Esse é justamente o caso dos Quilombos dos Palmares. Na correspondência
percebemos que por muito tempo o livro não tinha título, sendo muitas vezes chamado por um
termo genérico: “o Livro sobre o Negro Brasileiro”.241 Na carta que Ramos informava o
provável sumário ou “tábua de matérias”, apareceu a denominação, “Pequena História do
239 Idem. 240 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos tratando de aspectos editoriais de seu livro "The Negro of Brazil", especialmente quanto à da tradução e ao tempo hábil para publicação. Indaga também se havia sido anteriormente enviado um exemplar de "Religiões Negras", de Edison Carneiro]. Rio Piedras [Porto Rico]: [s.n.], 31/07/1937. 1 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299498.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014. 241 RAMOS, Arthur. Carta a Richard Pattee remetendo os quatro capítulos iniciais do livro sobre o negro brasileiro. Rio de Janeiro, 17/3/1938. 1 p. Rasc. Ms. I-35,18,330
108
Negro Brasileiro”. Tal título provisório revela tratar-se de um ensaio histórico, com o objetivo
de narrar a trajetória do negro brasileiro, as transformações ocorridas nesses quase
quatrocentos anos. Diferente dos demais trabalhos do autor, esse livro teve como prioridade
construí uma narrativa fundamentada no tempo diacrônico, reservando pouco espaço ao
tempo sincrônico, consequentemente é uma narrativa que prioriza pensar o passado através da
história, em vez de concentrar-se no presente como na antropologia.
Somente após um ano o livro ganharia o seu título definitivo em português, em junho
de 1938, o intelectual brasileiro pediu conselho a Pattee com relação ao nome “O Negro na
civilização brasileira”.242 No entanto, na versão em inglês, denominada de “The Negro in
Brazil”, predominou o termo genérico “o Livro sobre o Negro Brasileiro” ou “O Negro no
Brasil”. Possivelmente o título da versão brasileira não se chamou “O Negro no Brasil”,
porque desde o 2º Congresso Afro-Brasileiro, realizado na Bahia em 1937, Edison Carneiro e
Aydano de Couto Ferraz organizaram o livro dos Anais que levaria esse nome e a ideia da
publicação fora do próprio Ramos,243 ainda, os dois pesquisadores estavam negociando com
Arthur Ramos para publicá-la na coleção “Biblioteca de Divulgação Científica” da Editora
Civilização Brasileira.244
A tradução foi concluída em novembro de 1938 e enviada ao Dr. Woodson.245 O livro
foi lançado em maio de 1939 apenas nos Estados Unidos. Arthur Ramos recebeu os seus
exemplares em julho. A obra ficou restrita apenas aos Estados Unidos e à língua inglêsa, pelo
menos até 1956, quando foi lançada no Brasil pela Livraria-Editora da Casa do Estudante do
Brasil. Apesar disso, podemos afirmar seguramente que muitas das ideias e textos contidos no
livro circularam na intelectualidade brasileira durante a década de 1940. Em primeiro lugar,
porque essa obra circulou entre os estudiosos sobre o negro, cedida por empréstimo pelos
poucos que a possuíram, ou por aquisição no estrangeiro.246 Em segundo, porque partes ou
242 RAMOS, Arthur. Carta a Richard Pattee informando que remeterá os dois capítulos finais do seu trabalho e sugerindo outro título para o livro. Rio de Janeiro, 27/6/[1938]. 2 p. Orig. Ms. I-35,18,333 243 CARNEIRO, Edison; FERRAZ, Aydano de Couto (Orgs.). O Negro no Brasil: trabalhos apresentados ao 2º Congresso Afro-brasileiro (Bahia). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940. 244 CARNEIRO, Edison de Souza. Carta a Arthur Ramos solicitando informações sobre a edição dos Anais do Congresso Afro-Brasileiro. Bahia, 6/12/1938. 1 p. Orig. Dat. I-35,25,903 245 PATTEE, Richard. Carta a Arthur Ramos comunicando a entrega dos originais da tradução de O negro brasileiro ao editor Woodson e enviando contrato de direito autoral e cópias para sua assinatura. Washington, 4/11/1938. 1 p. Orig. Dat. I-35,36,2.059 246 Temos como exemplos da circularidade do The Negro in Brazil, algumas cartas: AGUIAR, Jaime de. Carta a Arthur Ramos informando que conseguiu por empréstimo o seu livro The Negro in Brazil, aguarda a remessa de um exemplar e que está recolhendo algumas informações para lhe enviar. São Paulo, 19/3/1940. 2 p. Orig. Ms. I-35,21,49
109
capítulos foram publicados nos livros “A aculturação negra no Brasil”247e “Introdução a
Antropologia Brasileira: os contatos raciais e culturais”,248 respectivamente de 1942 e de
1947.
A primeira versão do livro publicada pela The Association Publishers, continha uma
capa-dura, o papel era de 20 centímetros e era composta por 203 páginas. Temos a
reimpressão de 1951, lançada para homenagear Arthur Ramos falecido em 1949. Não houve
modificações da versão de 1939 para a de 1951, a não ser no tamanho da página e
espaçamento das linhas, o que fez com que a reimpressão tivesse seis páginas a mais. Todas
as versões não possuem fotografias ou ilustrações no seu corpo, não por falta de desejo do seu
autor, afinal, notamos que ele havia perguntado a Pattee: “Acha que o livro poderia conter
ilustrações?”249. Era desejo dele utilizar esse recurso, chegando a enviar junto com os
capítulos, as fotos que deviam estar neles. Não foi utilizada a foto que deveria acompanhar a
introdução escrita por Richard Pattee, espécime de biografia e análise bibliográfica sobre o
intelectual brasileiro. A ausência de ilustrações ocorreu em razão de a editora querer produzir
um livro simples e de baixo custo.
É uma característica dos livros de Arthur Ramos conterem imagens, era possuidor de
um amplo acervo iconográfico sobre o negro, com fotografias e desenhos de pessoas de vários
“stocks raciais” e objetos de cultura material, hoje salvaguardado pela Biblioteca Nacional.
Também não foram introduzidas imagens no texto da edição brasileira de 1956, essa versão
ganhou uma capa-mole ilustrada, esse livro fazia parte de uma série de publicações das obras
de Ramos da Casa do Estudante do Brasil. Sobre o texto é importante observar que na versão
brasileira, consiste a versão da escrita original do professor Ramos, é a versão em inglês que é
uma tradução. De acordo com o autor a tradução de Richard Pattee foi excelente e os
GÓES, Fernando. Carta agradecendo o envio de The negro in Brazil, solicitando colaboração na revista Roteiro e informando sobre a situação dos órgãos União Negra e Club Negro de Cultura Social e sobre o problema da prostituição do negro em São Paulo. São Paulo, 13/9/1939. 3 p. Orig. I-35,30,1.353 ROMERO, Fernando. Cartão a Arthur Ramos agradecendo o envio do volume do II Congresso da Bahia, que infelizmente se perdeu, informando que não recebeu The Negro in Brazil e Negros escravos, que estão editando os trabalhos do Congresso de Americanistas, que não tem publicado nada e que espera conhecer a opinião de Ramos sobre suas obras. Lima, [s. d.]. 2 p. Orig. Dat. Em espanhol. I-36,3,2.350 247 RAMOS, Arthur. A aculturação Negra no Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliana, Companhia Editora Nacional, 1942. 248 RAMOS, Arthur. Introdução a Antropologia Brasileira. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora-Livraria Casa do Estudante Brasileiro, 1962. (Os contatos raciais e culturais. Vol. 3) 249 RAMOS, Arthur. Carta a Richard Pattee aceitando proposta para preparar um trabalho sobre o negro no Brasil, destinado ao público estrangeiro. Rio de Janeiro, 26/5/1937. 2 p. Rasc. Ms. I-35,18,325
110
acréscimos do tradutor foram muito oportunos para a compreensão perfeita do leitor norte-
americano. 250
Em 30 de novembro de 1937, o professor Ramos envia a Pattee um sumário prévio251,
demonstrando que a organização do livro estava de acordo com as orientações do Dr.
Woodson. Devemos lembrar as orientações contidas na carta já citada de 22 de junho, na qual
entendemos exigir que fossem abordados os seguintes temas: os antecedentes do Negro; contribuição
do negro no desenvolvimento econômico; o papel do Negro como soldados e na defesa do solo; a
contribuição da raça nas letras, ciências, arte, filosofia e música.252 A obra segue uma organização
temporal diacrônica, indo desde a origem dos escravos o tráfico e a escravidão no século XVI, até a
participação dos negros na política e os atuais estudos sobre essa população no século XX.
Enquanto escrevia o livro, precisamente no início de 1938, foi promovido pelo Ministério da
Educação e Saúde celebrações pelo cinquentenário da abolição da escravidão, que incentivou e
divulgou estudos e planos de trabalho sobre o negro e “sua influência na vida e na civilização
brasileira”. Dentre as ações do Ministério, existia o plano de fundar um centro de estudos sobre o
tema e publicar a Enciclopédia do negro brasileiro. Foi pedido ao antropólogo alagoano para integrar
a equipe que participaria da organização da enciclopédia, com isso foi elaborado um esboço da
estruturação e dos assuntos da Enciclopédia, a partir de dois eixos: “O problema da escravidão e do
abolicionismo”253 e a “Influência do negro na vida e na civilização brasileira”. 254 O historiador Júlio
250 RAMOS, Arthur. Carta a Richard Pattee elogiando a tradução para o inglês do livro The Negro in Brazil e informando que recebeu comunicação da Guggenheim sobre extensão da bolsa de estudo ao Brasil. Rio de Janeiro, 6/8/1939. 1 p. Rasc. Ms. Ocorrem correções feitas pelo autor. I-35,18,337 251 Segue a organização do sumário prévio: Introdução – Apresentação do assunto; Capítulo I – História do Tráfico. Tribos negros importados ao Brasil; Capítulo II – Rápida história da escravidão; Capítulo III – O movimento abolicionista no Brasil; Capítulo IV – A república de Palmares; Capítulo V – Insurreições negras nos séculos XVIII e XIX; Capítulo VI – Leaders negros no movimento abolicionista; Capítulo VII – A herança cultural do Negro brasileiro. Religiões, cultos e tradições; Capítulo VIII – O Negro nas letras e nas artes; Capítulo IX – O Negro na ciência e na arquitetura; Capítulo X – O Negro na história militar brasileira; Capítulo XI – O Negro nas indústrias e no comércio; Capítulo XII – O Negro na política. O movimento da Frente Negra Brasileira; Capítulo XIII – O estado atual do Negro brasileiro; Capítulo XIV – Movimento cientifico sob o Negro brasileiro. Ver: RAMOS, Arthur. Carta a Richard Pattee agradecendo a divulgação dada a seu livro As culturas negras no Novo Mundo e remetendo anexo sumário do livro sobre a cultura do negro brasileiro. Rio de Janeiro, 30/11/1937. 2 docs. (3 p.) Rasc. Ms. I-35,18,328. 252 PATTEE, Richard. [Carta a Arthur Ramos solicitando que elabore a pedido do "Journal of Negro History", uma obra sobre a contribuição do negro na cultura e na história do Brasil, para fins de divulgação junto ao público norte-americano]. Rio Piedras [Porto Rico]: [s.n.], 22/06/1937. 1 p. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/mss1299497.pdf>. Acesso em: 11 jul 2014. 253 Segundo Arthur Ramos, a equipe organizadora decidiu que a enciclopédia projetada deveria conter os seguintes assuntos sobre “O problema da Escravidão e do Abolicionismo”: História do tráfico de escravos no Novo Mundo; Povos negros entrados no Brasil; Navios negreiros, mercado de escravos, distribuição dos Negros escravos no Brasil; Trabalho escravo, escravidão rural e urbana; Castigo dos escravos, instrumentos de suplício, o capitão-do-mato; O negro escravo e o trabalho nacional; O negro escravo e o ciclo do açúcar; O negro escravo e o ciclo de café; O negro escravo e o ciclo da mineração; Paralelo econômico e cultural entre o negro e o índio brasileiros; Os quilombos de Palmares; As juntas de alforria e o movimento pré-abolicionista; A repressão internacional ao tráfico de escravos; A atividade parlamentar brasileira concernente ao tráfico de escravos, a
111
Cláudio da Silva reparou que “The Negro in Brazil” foi redigida em função de dois grandes eixos
temáticos: “o período escravista e a abolição da escravidão”, e “o pós-abolição e o legado cultural
afrodescendente”.255 Essa organização é compatível com a proposta de Ramos para a estrutura da
enciclopédia.
Como dissemos os projetos foram desenvolvidos simultaneamente, portanto inferimos
que influenciaram um ao outro. Praticamente todos os assuntos propostos pela equipe para a
Enciclopédia do negro brasileiro, também estavam no “The Negro in Brazil”, evidentemente
não foram abordados da mesma maneira que seriam na enciclopédia.
Como o projeto da enciclopédia nunca foi concluído, paradoxalmente, restou ao “The
Negro in Brazil” ou “O Negro na civilização brasileira” introduzir e orientar o público norte-
americano e também o público brasileiro.
O livro é iniciado com um capítulo256 que esboça a introdução dos negros através do
tráfico de escravos. Ramos escreve sobre o papel do desenvolvimento da cultura da cana-de-
açúcar e a utilização de mão-de-obra escrava, para a entrada dos Negros africanos no Brasil.
Da mesma maneira, enfatiza o papel dos jesuítas, como fervorosos defensores da causa para
substituírem o trabalho dos índios, destaca o papel dos padres Manuel de Nobrega, José de
Anchieta e Bartolomé de las Casas. A escravidão, como demonstrou, era uma prática que
abolição do tráfico e a questão inglesa; Sociedades emancipadoras no Brasil; Atividades parlamentares anteriores à Lei Áurea, a Lei do Ventre Livre; A Lei Áurea; Figuras de abolicionistas no Parlamento Brasileiro; Os líderes negros da Abolição; A Abolição e a Imprensa; Literatura e Abolição; Consequências econômicas da Abolição; Situação econômica e cultural na vida do Negro brasileiro. Ver: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1939. p. 189-190; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 205 – 206. 254 No que diz respeito ao segundo eixo temático, “Influência do Negro na vida e na civilização brasileiras”, os assuntos deveriam ser: As culturas negras no mundo; As culturas negras introduzidas no Brasil; Sobrevivências religiosas do Negro no Brasil: macumbas e candomblés; O sincretismo religioso, o catolicismo popular do Brasil e sua influência negra; Ritual de feitiçaria, Práticas mágicas do Negro brasileiro; Sobrevivências artísticas: a música e os instrumentos de música de origem negra; O canto e a dança de influência negra; Pintura e escultura de influência negra; A tradição oral, folclore negro, contos populares, provérbios e adivinhas de origem negra; Festas populares, o ciclo de Congados; Maracatus e reisados, o culto popular a Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito; Línguas africanas introduzidas no Brasil, estudo de conjunto; Estudo comparativo sobre a influência do yoruba e do quimbundo na língua nacional; Antropologia do Negro brasileiro, tipos negros e sua filiação racial; O problema da mestiçagem no Brasil; A criança negra, o Negro no meio escolar; O Negro e o problema da alimentação no Brasil, a culinária afro-brasileira; Aspectos psicopatológicos do Negro brasileiro; Doenças africanas introduzidas no Brasil; O Negro brasileiro nas letras e artes; O Negro brasileiro na indústria, no comércio e na história militar do Brasil; O Negro na política, associações e movimentos negros contemporâneos; Estudos científicos sobre o Negro brasileiro, a escola de Nina Rodrigues. Ver: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 206 – 207. Ver a verão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 190-191; 255 SILVA, Júlio Claúdio da. O negro na civilização brasileira. In: BARROS, Luitgarde O. C. (Org.). Arthur Ramos. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2011. p. 383-390. p. 383-384. 256 RAMOS, Arthur. The slave trade in Brazil. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 15-28.; RAMOS, Arthur. O tráfico de escravos no Brasil. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 19-32.
112
estava sancionada em leis especiais das Ordenações Afonsina (século XVI), Manuelina
(começo do século XVI) e Filipina (publicada em 1603). No entanto, essa prática sofreria uma
reviravolta a partir do século XVIII, quando sucederam-se as leis que coibiam tal comércio,
coincidindo com os movimentos antiescravistas encabeçados na Inglaterra. Apesar disso,
entre os séculos XVIII e XIX continuaram sendo trazidos negros africanos para servirem de
escravos.
Diante da impossibilidade declarada de conseguir mapear o número de escravos
africanos introduzidos no Brasil, ou a procedência exata, Arthur Ramos procurou dar
estimativas da quantidade e analisar as possíveis origens desses negros. Um dos problemas
encontrados por ele na pesquisa demográfica da escravidão, consistia nas falhas dos censos
com relação a população negra, porém Ramos condena principalmente o Decreto de 14 de
dezembro de 1890, expedido por Rui Barbosa, então ministro da Fazenda, e a Circular nº29,
de 13 de maio de 1891, que ordenava-se queimar os documentos históricos da escravidão.
Para Ramos, os problemas enfrentados nas pesquisas demográficas da escravidão fazem as
estimativas dos estudiosos oscilarem entre 4 milhões e 15 à 18 milhões de africanos entrados
no Brasil em quatro séculos.
Apesar disso, ele acredita ser possível observar que a distribuição dos escravos
africanos foi feita de maneira desigual pelas várias províncias. As regiões que mais tiveram
escravos, eram: Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Maranhão. As
estimativas da população negra no Brasil encontradas pelo professor, margeiam entre 10 a 30
% da população, sem contar os mulatos, em períodos distintos e em estatísticas que eram
consideradas nada confiáveis.
Qual a procedência dos Negros africanos introduzidos no Brasil, com o tráfico? Este
foi problema que procurou resolver nesse capítulo, seguindo caminho antes percorrido pelo
mestre Nina Rodrigues. Afirmou que no começo do tráfico, o maior número de escravos
importados no Brasil era proveniente de Angola, do Congo e da Guiné. No entanto, quando se
iniciou o tráfico na Bahia, a procedência dominante era da Guiné e do Sudão Ocidental,
nomeado por ele como a grande avalanche dos Negros nagôs (iorubas), minas (da Costa do
Ouro), gêges (daomeanos), e negros maometanos (haussás, tapas, mandingas, fulahs). Define
que os grupos gerais que entraram no Brasil foram: os negros sudaneses, como os nagôs
(iorubas), os gêges (daomeanos), os fanti-ashantis, etc.; os negros sudaneses islamizados,
113
como os haussás, os tapas, os mandingas, os fulahs ...; a grande família dos negros bantus,
entre os quais entraram no Brasil, os negros Angolas, os Congos, os Moçambiques ...
Arthur Ramos caracteriza cada um dos grupos expondo características físicas comuns,
personalidades dos grupos, e mentalidades coletivas. Segundo ele o melhor método para
entender a contribuição dos negros na civilização brasileira, era o “método comparativo”,
introduzido no Brasil por Nina Rodrigues, consistindo em comparar as práticas culturais do
negro brasileiro com as práticas do negro na sua “origem”, África. Na segunda parte dessa
dissertação explicaremos esse método.
No capítulo “Rápida história da escravidão”257, Ramos demonstrou empatia com o
negro escravizado. Não bastava narrar ou descrever a instituição da escravidão, era necessário
valorizar o papel do negro na construção da nação, já que “Foi o braço negro que argamassou
a civilização brasileira. Ele trabalhou a cultura da cana de açúcar e do café e extraiu os metais
das minas”.258 Todavia, era também preciso demonstrar o sofrimento empregado “em quatro
séculos de um labor contínuo, até a época da abolição da escravatura, quantos sofrimentos,
quantos vexames, que história longa e dolorosa a do escravo negro, no Brasil, como em outras
partes do Novo Mundo!”. Construiu esse capítulo enfatizando a importância do trabalho do
negro e as crueldades da instituição da escravidão.
O escravo sofria um martírio, desde a sua captura por outros africanos, à sua venda aos
mercadores e sua comercialização a troco de ninharias. Mas eram nos navios negreiros que
viviam uma epopeia, verdadeira história de sobrevivência. “Na maior parte das vezes, os
negros vinham algemados, muitos deles presos dois a dois, pelo pescoço, numa dupla canga
de madeira. Ao entrarem no navio, eram marcados a ferro em brasa, nas costas, no peito ou
nos braços, com o sinal convencionado.”259 Expôs os horrores do tráfico, dos navios negreiros
(tumbeiros) e da escravidão. Falou das condições de trabalho nas plantações de cana-de-
açúcar, a jornada cruel de trabalho regida pelo chicote do feitor, a alimentação de carne seca
com farinha feita duas vezes ao dia, as habitações coletivas conhecidas como senzalas, indica
como referência sobre o assunto Gilberto Freyre e seu livro, Casa Grande & Senzala.
257 RAMOS, Arthur. Survey of slavery: slave labor in Brazil. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 29-37.; RAMOS, Arthur. Rápida história da escravidão. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 33-40. 258 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 33. Ver a verão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 29; 259 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 33.; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 29.
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Ramos trata da capacidade de trabalho dos negros, lembrando-nos que foram forçados
a trabalhar em diversas funções nos engenhos, nas casas dos senhores, na pecuária, nas minas,
nos centros urbanos, etc. Contudo, para ele as habilidades dos africanos mostraram-se maiores
do que o simples braço escravo regulado pelo chicote do feitor, não era um animal que rendia
um simples serviço muscular. “Nos trabalhos pastoris, nas fainas da mineração, ou ainda
como arquiteto, ferreiro, sapateiro, escultor ... o Negro se revelou um elemento inteligente e
capaz.”260 Arthur Ramos se distanciava de Oliveira Viana e outros historiadores
contemporâneos, enfatizaram que o negro era apenas uma mão-de-obra necessária, somente a
força para o desenvolvimento econômico do Brasil, utilizando como base justificativas da
inferioridade do negro e necessidade da escravidão. 261
Explica como a vida do negro na nova terra foi sofrida, pois não havia folga, nenhuma
atividade espontânea durante a escravidão, qualquer “falta cometida” sofria castigos, eram
usados contra eles instrumentos variados de suplício. Ainda por cima, para caçar os escravos
que fugiam surgiu o capitão-do-mato, uma “figura singularmente odiosa”, como observou o
autor. Como poderemos ver, na citação que segue, o autor enfatiza o sofrimento:
Subalimentado, maltratado, castigado, o Negro teve diminuída a sua resistência física. A doença e a morte coroaram muitas vezes a obra sinistra. A reação pelo suicídio, pela fuga e pelo crime, foi outra consequência dos maus tratos. O banzo é um estado psicológico especial que acometeu o Negro, no Novo Mundo: é uma doença de tristeza, de nostalgia, uma espécie de suicídio lento.
Eram comuns os suicídios. Muitas vezes o capitão-de-campo ia encontrar o Negro fugido dependurado numa corda, enforcado num galho de árvore, em plena selva.
As doenças dos Negros, algumas de importação africana, outras conhecidas no Brasil, eram frequentes. O maculo, a bouba, o gundú, a ainhum, o bicho-de-pé, bem como a anemia tropical, as disenterias, o alastrim, a filariose ... produziram grandes estragos, diminuição de resistência física, mortandade entre os escravos negros do Brasil.
As deformações físicas, as mutilações de corpo, as cicatrizes ... apareceriam ainda como consequência dos maus tratos, do excesso de trabalho, das condições deficitárias de higiene, enfim, marcas de surras, cicatrizes no dorso, nas nádegas, no pescoço, queimaduras, deformações de pernas, de braços, de cabeça, deformações profissionais, etc. Daí surgiu o preconceito da inferioridade do Negro e do mulato, quando tudo isso não era mais
260 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p.36.; Ver a ver em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 32. 261 VIANA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. p. 122
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do que a consequência de um trabalho excessivo realizado em condições desfavorabilíssimas de meio: má alimentação, má higiene, castigos.
Não obstante todas essas condições desfavoráveis, não seria criada a economia brasileira, não seria escrita a história da civilização brasileira, sem o concurso do trabalho do Negro, lavrando o solo, explorando as minas, desbravando as terras virgens do Novo Mundo. 262 [grifo nosso]
Esse é um dos trechos mais reveladores desse livro, por isso optamos por uma citação
extensa. Em primeiro lugar, Arthur Ramos não compreende que as relações entre negros e
brancos na escravidão foram harmoniosas, como fez Gilberto Freyre, a escravidão foi violenta
e exploradora.263 Em segundo lugar, a escravidão aparece como algo injustificável pela
violência, o negro aparece vitimado por um sistema explorador e debilitador dessa população,
relegando-a a sua condição atual de inferioridade na sociedade. Esse tipo de argumento
lembra aquele que foi desenvolvido por sociólogos das décadas de 1950 e 1960,
principalmente Florestan Fernandes e seu conceito de “anomia social”,264 mas não
encontramos em Ramos a “dialética hegeliana entre senhor e o escravo” dessa geração.265 Em
terceiro lugar, para ele as más condições – físicas, psicológicas, sociais, econômicas, ...- do
negro e do mestiço são produtos das sequelas da escravidão sofrida por esse povo, essas
condições foram interpretadas como inferioridade racial pela sociedade brasileira,
principalmente no século XIX e início do XX. Por último, Arthur Ramos escreve o negro
brasileiro como sujeito ativo.
O ativismo do povo negro pôde ser visto em “Insurreições Negras no Brasil”266,
capítulo que demonstra a falta de passividade do escravo diante do sistema escravista. Note-
262 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 39 – 40.; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 36-37. 263 Em Gilberto Freyre encontramos uma concepção de relações harmoniosas entre os senhores e escravos, assim como a formação da nação a partir das relações sexuais entre senhores e suas mucamas. A ideia de “democracia social” freiriana está relacionado a tais relações ocorridas entre a casa-grande e a senzala, ele procura no passado a formação da nação brasileira mestiça e sem preconceitos raciais. No caso de Arthur Ramos a “democracia racial” é pensada como constatação das relações sociais do presente e do futuro no Brasil, como vimos na citação ele não nega os conflitos ocorridos no passado. Sobre a relação dos senhores e escravos, ver: FREYRE, Gilberto. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. In: ______. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48 ed. São Paulo: Global, 2003. p. 366-574.. Sobre a concepção de “democracia racial” de Arthur Ramos, ver: TAMANO, Luana T. O. Arthur Ramos e a Mestiçagem no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2013; SILVA, Júlio Cláudio da. O Nascimento dos Estudos das Culturas Africanas, o Movimento Negro no Brasil e o Anti-racismo em Arthur Ramos (1934-1949). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005. 264 FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe. São Paulo: Editora Nacional, 1965. 265 Não estamos ignorando que foi essa geração formuladora de críticas duríssimas a Ramos, especialmente na sua concepção de “democracia racial”. 266 RAMOS, Arthur. Slaves insurrections in Brazil. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 38-54.; RAMOS, Arthur.Insurreições negras no Brasil. In: ______. O
116
se que no início do século XX, era um consenso entre os historiadores e sociólogos brasileiros
a compreensão do Negro como elemento passivo e resignado ao regime da escravidão,
enquanto o índio não seria. Leiamos as palavras de Oliveira Viana, um desses historiadores:
Na classe dos escravos, o elemento vermelho predomina, a princípio. Mais tarde, é progressivamente substituído pelo negro. Enquanto o índio, pela sua indolência e indomesticabilidade, é aplicado nas atividades guerreiras do latifúndio, ou na guarda dos currais longínquos, pouco a pouco, sobre o negro dócil, operoso, sóbrio, resistente, cai todo o peso do trabalho rural. Esses escravos residem em comum dentro do solar do latifúndio. Habitam o vasto colmeial das senzalas. São partes integrantes da família senhorial!267
De acordo com essa versão teria sido a docilidade do negro a causa da substituição da
escravidão índia pela africana. Arthur Ramos discordava dos historiadores que sustentavam
essa versão. Formulou outra resposta com os pressupostos da antropologia cultural, para a
qual
(...) a adaptação do Negro aos trabalhos agrícolas, no Brasil, foi uma consequência de encontro de regimes. O índio foi esplendido escravo antes da fixação agrária que o iria arrancar do seu sistema cultural. Na passagem do nomadismo ao trabalho sedentário, o Índio fracassou. Ao passo que o Negro se adaptou maravilhosamente à faina agrícola, consequência de seu estádio de cultura, superior ao do índio.268
A resposta para essa troca seria a superioridade cultural dos africanos, pois já haviam
praticado a agricultura e viviam sedentariamente. O evolucionismo cultural havia deixado a
sua marca no trabalho de Arthur Ramos. Vivenciava a transição das concepções teóricas da
antropologia, com isso, ainda que dialogasse com a antropologia cultural boasiana, continuava
a afirmar os estágios evolutivos da cultura. Refuta o argumento da docilidade do africano, de
sua submissão e incapacidade de reagir:
O Negro embora sendo mais capaz do que o índio, no trabalho agrícola, pelas causas culturais já apontadas, contudo reagiu, por vezes violentamente, ao regime da escravidão. Foi bom trabalhador, porém mau escravo. Os quatros séculos do regime escravocrata mostra-nos as suas reações e as suas revoltas, não só no Brasil, como em outras partes da América. Desde as fugas até o suicídio. Desde a fuga individual até os grandes movimentos de insurreição coletiva. Nestes movimentos, destacaram-se as suas qualidades
Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 41-57. 267 VIANA, Oliveira. Op. cit., 2005. p. 125. 268 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 41..; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 38.
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de liderança, de organização, o ímpeto de combate e os sentimentos de afirmação da dignidade pessoal.269
O negro é um sujeito social na obra de Ramos, resta-nos saber se esse sujeito está
reservado ao momento de luta ou reação, próximo a concepção da dialética do ser de Hegel,270
na qual, o homem só é humano na medida em que ele quer se impor a um outro homem, a fim
de ser reconhecido. Por outro lado, essa condição de sujeito em Arthur Ramos pode ser
independente de seus atos, nesse caso o negro manso e humilde, o Pai João seria sujeito
histórico, tanto quanto Zumbi.
As fugas dos escravos sempre foram frequentes durante toda a escravidão. Os
senhores quando não conseguiam resolver sozinho, recorreram frequentemente ao poder
público, aos serviços dos capitães-do-mato ou bandeirantes paulistas. Arthur Ramos,
encontrou registros de uma insurreição dos haussas, ocorrida em 1607. O maior exemplo de
insurreição dos negros foi o Quilombo dos Palmares. Os escravos fugidos, foram
denominados quilombolas, reuniam-se muitas vezes em agrupamentos organizados, os
quilombos. Dialogando com a pesquisa de Aderbal Jurema, o professor Ramos afirma que
houve muitos quilombos espalhados pelas terras do Novo Mundo.271 Por exemplo, em 1650,
os escravos do Rio de Janeiro já se organizaram em quilombos.
Arthur Ramos acentuou as grandes insurreições citadinas dos negros islamizados, os
haússas, principalmente os nagôs e tapas, ocorridas na Bahia de 1807 à 1835. Em sua
interpretação tais insurreições tinham aspectos de guerra-santa maometana, por esse motivo a
guerra não era somente contra os brancos e os senhores, mas também contra todos os negros
que não quisessem aderir ao movimento, com isso o ódio atingiu também aos “negros
crioulos” e aos “cabras” que não aderiram ao maometismo. Ramos escreve sobre diversos
líderes desses movimentos, assinala a coragem, a lealdade e o heroísmo desses negros. Nesse
capítulo, escreveu também sobre a participação dos negros em vários movimentos populares
de rebeldia, colaborando com brancos e mestiços: Cabanada, Balaiada, Quebra-quilos,
Revolta da chibata. Como podemos ver o negro é sujeito ativo, manifesta-se contra o sistema
escravista em diversos momentos, para Ramos o mais eminente exemplo foi o Quilombo dos
Palmares.
269 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 42; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 39. 270 HEGEL, Georg W. F. A fenomenologia do espírito. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. Ver também: FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. p.180 – 184. 271 JUREMA, Aderbal. Insurreições negras no Brasil. Recife: Edições Mozart, 1935.
118
No entendimento do professor Ramos, o sofrimento dos escravos inspirou um
profundo sentimento de simpatia que empolgou todas as classes sociais, é para explicar esse
contexto que o autor escreverá o capítulo “O movimento abolicionista do Brasil”272 e “O
negro no movimento abolicionista”273. Novamente pareceu antecipar perspectivas posteriores,
é o caso do trabalho da professora Célia Maria Marinho de Azevedo sobre as revoltas dos
negros e o movimento pela libertação dos escravos em São Paulo. Não estou afirmando que
os argumentos desses dois intelectuais são totalmente compatíveis, gostaria de deixar claro
que estou ciente que as perspectivas teóricas e o trabalho metodológico são diferentes, porém
é inegável que em 1939 as conclusões de Ramos são surpreendentes por dar destaque ao
negro na luta por sua liberdade:
O próprio Negro foi um artífice da sua própria libertação. O seu valente protesto, nas fugas, no suicídio, na formação dos quilombos, das juntas de alforria, não ficou sem resposta. O Negro desde os primeiros tempos da escravidão, demonstrou cabalmente a ilegalidade de um regime de opressão a mais desumana que poderia existir no mundo. Bradou o seu imenso protesto, em todas as terras do Novo Mundo. E no Brasil, a sua voz fez-se ouvir, e os atos acompanharam-lhe a intenção.274
Ramos também lembra que havia um movimento mundial contra a escravidão, destaca
a importância de uma literatura abolicionista mundial do século XVIII e XIX. Essa literatura
funcionava como um apelo de piedade branca, que teve a sua repercussão nas massas
brasileiras, ela precedeu e mesmo acompanhou, o movimento político da Abolição no Brasil.
É em momentos como esses que ele demonstra o seu papel como um intelectual de transição
na antropologia e nos estudos do negro no Brasil, pois em sua obra aparece uma contradição:
é impossível colocar o negro como sujeito ativo sem colocar o branco em sua tutela ou como
facilitador. Como escrevemos anteriormente, não esperávamos que o argumento dele fosse
igual ao de Azevedo, fato que demonstra isso é a sua retomada da versão de Gilberto Freyre
sobre a escravidão:
A causa dos escravos encontrou um eco fortíssimo no coração brasileiro. Foi enorme a onda de piedade que provocou. E pode dizer-se que no Brasil, apesar dos maus tratos, já referidos, que sofreu o negro escravo, a sua vida
272 RAMOS, Arthur. The abolitionist moviment in Brazil. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 66-77.; RAMOS, Arthur. O movimento abolicionista no Brasil. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 71-82. 273 RAMOS, Arthur. The Negro abolitionist moviment in Brazil. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 78-90.; RAMOS, Arthur. O Negro no movimento abolicionista. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 83-96. 274 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 71. Ver a verão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 66.
119
foi até certo ponto amenizada pela ternura com que ele foi recebido pelos senhores e sinhás.275
Não poderíamos ter deixado passar essa clara referência a tese de Freyre, Casa Grande
& Senzala. Arthur Ramos afirma que havia falta de linha de cor no Brasil como em outras
colônias do Novo Mundo. A “linha de cor” era uma característica da sociedade norte-
americana que era segregada racialmente, existindo uma diferença clara na condição de
cidadania civil e política, o negro sofria com a ausência do direito a voto, a proibição de
casamento inter-raciais, segregação dos espaços, etc.. As leis de Jim Crow, leis estaduais e
locais decretadas nos estados sulistas, em vigor entre 1876 e 1965, exigiam que as escolas
públicas e a maioria dos locais públicos (incluindo trens e ônibus) tivessem instalações
separadas para brancos e negros. A linha de cor, dividia a sociedade norte-americanos entre
brancos e pretos, gerando condições sociais desiguais de empregos, salários, habitações e etc.
O discurso de Ramos é paradoxal, hora colocou o negro como sujeito histórico e
demonstrou que as relações entre senhores e escravos, brancos e negros, eram regidos por
uma violência imposta pelo sistema escravista. Noutro momento flertava com a tese de
Freyre, cuja harmonia das relações entre senhores e escravos foram a base do argumento,
assim como a passividade do negro, essas relações haviam construído uma nação mestiça,
diferentemente do Estados Unidos e outras colônias.
Na década de 1940, Arthur Ramos consolidou esse argumento da falta de linha de cor
– color line – no Brasil, divulgando o país como uma “democracia racial”, melhor exemplo de
solução para os problemas raciais do mundo que vivenciou a experiência do nazismo.
Retomando o argumento das relações entre senhores e escravos, o professor afirma:
Coincidindo com o movimento abolicionista, a ação espontânea de muitos senhores fazia-se manifestar. Eram frequentes os apadrinhamentos, isto é, a proteção dispensada por um senhor padrinho ao negro fugido, e ao qual implorava misericórdia; o padrinho livrava-o do castigo e da morte. As alforrias espontâneas ocorriam também com frequência. A um escravo que servira bem durante vários anos de labor honesto, o senhor concedia carta de alforria. Nos dias festivos, nos testamentos, ou ainda por ocasião do batismo católico dos negros escravos, as cartas de alforria eram ainda concedidas. Houve senhores que, no auge da campanha abolicionista, libertaram, de uma só vez, todos os seus escravos. Fundaram-se caixas de fundo de emancipação, irmandades e confrarias de negros e brancos e outras associações com o fim de libertarem, com a compra da alforria, os negros
275 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 72..; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 67.
120
escravos. Os próprios negros uniam-se nas juntas de alforria, para a compra de sua liberdade e originaram-se daí episódios comoventes.276
Ele lembra-nos que os últimos anos antes da abolição a opinião pública dava como
fato consumado a escravidão. O capitão-do-mato tornou-se uma figura odiada, até os
soldados ignoravam as fugas e os abolicionistas mais exaltados as promoviam, para as matas
dos quilombos livres, que forças armadas se recusava combater. A imprensa abolicionista agia
e aplaudia, o movimento empolgou as massas e várias províncias alforriavam os seus
escravos, o Ceará, por exemplo, em 1883, e no Amazonas, em 1884. O autor não deixou de
mencionar jornalistas e escritores, negros e mulatos que estimulavam o movimento, como
Castro Alves, José do Patrocínio e Joaquim Nabuco. Como sabemos, a Lei Áurea foi
promulgada em 13 de maio de 1888 e José do Patrocínio foi ovacionado pelos negros e
mulatos do Rio de Janeiro que festejavam a libertação.
Em “The Negro in Brazil” a abolição da escravidão teria ocorrido de maneira lenta e
gradual, como um processo, o resultado final ocorreu após anos e anos de luta e diversas leis.
Ele trata sucintamente diversos acontecimentos de grande importância nesse processo, é o
caso da repressão ao tráfico de escravos e a campanha da Inglaterra, a lei de 1845 autorizando
navios ingleses prenderem navios negreiros no Oceano Atlântico, conhecida como Bill
Aberdeen.
Todavia, Ramos também acreditava na autonomia brasileira na repressão ao tráfico,
demonstrando haver leis anteriores ao Bill Aberdeen. É o caso dos projetos de José Bonifácio
de Andrada e Silva e de José de Clemente Pereira na década de 1920; e da Lei de 7 de
novembro de 1831, declarando livres os escravos vindos de fora do Brasil; ou da lei de autoria
do senador Eusébio de Queirós, em 1850 que tomava medidas de repressão do tráfico. Na
década de 1860, projetos incentivavam a libertação de escravos pertencentes a união,
associações civis ou religiosas, o próprio Imperador apoiava essas propostas. Em 28 de
setembro de 1871 sob ministério do Visconde do Rio Branco, a Lei do Ventre Livre foi
sancionada pela Princesa Regente D. Isabel, conhecida abolicionista.
No livro é argumentado que a abolição do tráfico impulsionou à ideia emancipadora,
com isso foram fundadas associações abolicionistas como a Sociedade Contra o Tráfico de
Africanos, da década de 1850. Outro exemplo da circulação dessas ideias é o livro “A
escravidão no Brasil”, o autor Perdição Malheiro propunha em 1862 várias medidas para a 276 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 72..; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 67.
121
abolição gradual da escravidão. Multiplicam-se as sociedades e clubes abolicionistas:
“Sociedade Emancipadora dos Escravos”, em 1870; a “Sociedade Brasileira Contra a
Escravidão” e a “Associação Central Emancipadora”, em 1880; a “Confederação
Abolicionista”, fundada em 10 de maio de 1883, e elabora um “Manifesto”, em 26 de agosto,
redigido por Patrocínio, Aristides Lobo e André Rebolças.
Os políticos cindem-se em duas correntes estanques: abolicionistas e não
abolicionistas. Nesse período surgem vozes poderosas de um Joaquim Nabuco, de um José do
Patrocínio, de um Joaquim Serra, de um André Rebouças e muitos outros. As discussões
descem do Parlamento e interessam todas as camadas sociais. Promovem encontros de todos
os tipos e o comparecimento em grosso do público de todas as profissões e classes sociais. A
opinião pública quer mais, quer a libertação definitiva, a campanha recrudesce – no
parlamento, no jornalismo, entre as camadas populares. Fundam-se jornais abolicionistas e em
1881 José do Patrocínio assume a direção da Gazeta da Tarde.
Arthur Ramos afirma a relação do Ministério Cotegipe com lavradores escravocratas,
mas não esquece que a alforria dos escravos sexagenários foi proclamada sob esse ministério
em 28 de setembro de 1885. Nos últimos anos da escravidão, muitos fazendeiros começaram
a libertar em massa seus escravos; uma grande parte da magistratura, da capital e das
províncias, aderiu ao movimento em prol dos escravos, “aceitando causas que os favoreciam e
recusando as causas escravocratas”.277
Na segunda regência da Princesa D. Isabel, “As sociedades abolicionistas redigiam
petições, em que solicitavam a libertação total dos escravos”. O golpe final, segundo Ramos,
foi a demissão do Ministério Cotegipe que defendia a causa dos lavradores, e a organização
de um novo gabinete pelo Conselheiro João Alfredo, em 10 de março de 1888. O projeto foi
aprovado de forma fulminante em 13 de maio e sancionado pela Princesa. Houve grande
entusiasmo da multidão nas ruas. Um ano depois o trono caiu, e o movimento imigratório
cresceu extraordinariamente com o fim da escravidão.
Apesar de uma longa exposição do que seria a participação na Abolição de políticos e
intelectuais da elite e em sua maior parte de ascendência branca, Arthur Ramos surpreende ao
leitor quando demonstra o ativismo negro na causa. Acreditamos que dessa maneira,
demonstra ao público estadunidense que aqui também houve uma grande luta promovida pelo
277 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 81..; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 76.
122
negro, ao mesmo tempo, para o público brasileiro insere e confirma a participação desse
sujeito na história nacional.
É dessa maneira que compreendemos a sua afirmação: “O Negro foi, no Brasil, o
principal artífice da sua própria emancipação”278. O professor Ramos compreendeu que antes
de tudo, o protesto contra o regime da escravidão, já tinha se manifestado de muitas maneiras:
“A princípio, foi a reação violenta, nas fugas e na formação dos quilombos. Depois, foi a
organização estudada de um plano de emancipação. E recorreu ao próprio trabalho,
amealhando lentamente a quantia que ia comprar a sua liberdade.”279 Não podemos ignorar
que aparece na obra de Arthur Ramos muitos temas e acontecimentos que tornaram-se
centrais para historiadores da “nova historiografia social da escravidão”.280 Uma reformulação
ocorrida na década de 1980 no Brasil, na qual pesquisas passaram a entender o negro como
sujeito histórico, influenciado pelo pensamento da “história social inglesa” de Edward P.
Thompson.
O esforço individual e coletivo de escravos para alcançar a sua liberdade foram
objetos de pesquisa de Arthur Ramos. Observa que individualmente muitos escravos
pagaram, com o trabalho, a sua alforria, enquanto coletivamente, fundaram as confrarias, as
irmandades, as juntas, onde se quotizavam para os fundos de alforria. Essa coletividade na
luta ocorre devido “A necessidade de defesa e de proteção, obrigava os negros a se unirem em
agremiações, onde pugnassem pelos seus anseios de liberdade.”281 O autor traz-nos vários
exemplos desse esforço coletivo: as irmandades religiosas ou irmandades dos homens de cor,
na maioria devotos de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito; e as confrarias; as festas
dos Reisados e dos Congos, início no século XVII; Ranchos; e Ternos. Na maioria dessas
associações negros contribuíam com uma quota, produto do seu trabalho, para a compra de
suas cartas de alforria. As congadas, os reisados, os ternos e os ranchos, cujas características
festivas eram evidentes, para Ramos iam além do aspecto de tradição folclórica, pois tinham
uma significação social: “revelavam a tendência dos negros de se agruparem para a sua defesa
e organizarem pacificamente a sua libertação.”282
278 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 83..; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 78. 279 Idem. 280 Poderíamos fazer uma lista enorme de estudiosos que endossaram essa nova perspectiva sobre a história da escravidão. Alguns dos mais conhecidos são: Sidney Chalhoub, Hebe Mattos, Célia Maria M. Azevedo, Martha Abreu, João José Reis, e muitos outros. 281 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 83..; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 78. 282 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 83..; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 78.
123
Ele dedica a sua atenção a história de Chico Rei, ocorrida em Minas no começo do
século XVIII, e não ignora que ela é construída sob uma atmosfera de lenda. Apesar disso,
mostra através da trajetória desse homem um exemplo de luta de escravos que conseguiram
comprar as suas cartas de alforria, o desfecho teria sido a liberdade de todos que Chico Rei
encontrou de sua antiga tribo, denominou-o como primeiro líder negro abolicionista.
Enfatizou também a existência das juntas de alforria desde o século XVIII, ou seja
reuniões de negros que tinham como objetivo principal a compra de cartas de liberdade, elas
organizavam caixas de empréstimo, juntando quantias arrecadas constantemente entre os
membros, era emprestado o dinheiro com juros ao escravo que necessitasse. Só
posteriormente, no século XIX, e a exemplo dessas organizações foi que foram criadas as
sociedades abolicionistas e fundos de emancipação que serviriam de caixas de empréstimo
ou caixas de emancipação. Demonstrando a existência das juntas, antes das sociedades e dos
fundos, devolve em seu texto o protagonismo ao negro. Conforme Ramos, não somente antes,
mas também durante toda a fase da campanha abolicionista, foram os negros os mais ardentes
defensores da causa, distinguiram-se entre os mais devotados paladinos da jornada
libertadora, no jornalismo, na oratória e na ação. Para demonstrar o seu argumento, escreve:
Castro Alves, Luís Gama, José Ferreira de Menezes, Teodomiro Pereira, Manuel Querino e
José do Patrocínio - o maior dos líderes negros da abolição.
Em resumo, o Negro desempenhou papel de importância decisiva na campanha abolicionista. Líderes e agitadores negros não se limitaram a espectadores ou observadores do grande movimento social que culminou com a emancipação da raça. A liderança do Negro exerceu uma larga influência nesta luta pela obtenção dos direitos humanos.283
Concordo com Júlio Claúdio da Silva284 quando afirma que Arthur Ramos em “The
Negro in Brazil”, percebe serem os negros na escravidão ou no pós-abolição, agentes
históricos, sujeitos ativos. Por isso é importante para ele nomeá-los, ainda que dessa maneira
formule listas enormes de nomes sem necessariamente se dedicar a escrever sobre a vida ou o
papel de cada um desses homens. O escravo mesmo em momentos que não são de
resistências, ainda aparece como sujeito. Mesmo que em determinados momentos dialogue
com teses que abordam o negro como passivo ou que em outros momentos do seu texto
pareça que o escravo só se torna sujeito ao rebelar-se, isto não significa que a sua visão sobre
o negro esteja fechada nessas perspectivas. Ao nosso ver, essas são contradições que
283 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 95.; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 90. 284 SILVA, Júlio Claúdio da. Op. cit.. 2011. p. 383-390. p. 385.
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denunciam os diversos pensamentos ou textos que a sua escritura dialogou em seu processo
de construção, marcas de um período. Não esqueçamos que ele é intelectual de um período de
transição, na qual as ciências sociais e a antropologia estavam se estabelecendo como ciências
acadêmicas nas universidades brasileiras. Por outro lado, o trabalho etnográfico modifica as
comunidades que recebem os antropólogos, mas modifica também o antropólogo em campo.
Arthur Ramos enxerga como personagem histórico ou sujeito ativo de sua história tanto o Pai
João, quanto Zambi dos Palmares.
Um dos objetivos do livro foi estudar a herança cultural do Negro no Brasil, de acordo
com o autor para isso torna-se necessário investigar nas suas culturas de origem, o que ele fará
por meio da análise das religiões e cultos285, e das festas populares286. Para executar essa
tarefa lança mão do método comparativo iniciado por Nina Rodrigues, pois segundo Ramos,
os documentos históricos são falhos sobre esse tema, portanto é preciso investigar as
sobrevivências culturais no Brasil fazendo o cortejo comparativo com culturas idênticas no
Continente Negro. Esse método foi utilizado no estudo das sobrevivências religiosas e
folclóricas, realizado pela Escola Nina Rodrigues.
Nessa tentativa de reconstrução da herança cultural do Negro, Arthur Ramos monta
um quadro de sobrevivências culturais, com três grandes grupos culturais: Culturas
Sudanesas, introduzidos pelos negros da Costa dos Escravos, do Dahomey, da Costa do Ouro,
etc. (negros yorubas, ewes, fanti-ashantis ...); Culturas Sudanesas Negro-maometanas,
introduzidas pelos haussás, tapas, mandingas, fulahs, etc; Culturas Bantos, introduzidas
pelos negros angola-conguenses e moçambiques, principalmente.
A macumba é a prática cultural que o deixa intrigado, tanto religião como ritual, como
uma sobrevivência de cultos africanos que transformou-se e adquiriu formas novas,
mesclando as crenças religiosas e mágicas que encontrou no novo território. A macumba seria
expressão da religiosidade primitiva dos Negros do Brasil, herdeiros dos seus antepassados do
Continente Negro de tradição de Angola e Congo. Geralmente praticada em solo urbano,
passou por um intenso processo de transformação da cultura original, tornando-se uma prática 285 RAMOS, Arthur. The cultural heritage of the brazilian Negro: religion and worship . In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 91-103.; RAMOS, Arthur. A herança cultural do Negro brasileiro: religiões e cultos. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 97-110. 286 RAMOS, Arthur. The cultural heritage of the brazilian Negro: religion and worship . In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 104-115.; RAMOS, Arthur. A herança cultural do Negro brasileiro: festas populares. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 111-124.
125
religiosa sincrética que combina elementos das culturas, bantos, ioruba, espiritismo e do
catolicismo.
Em contraposição a prática sincrética da macumba, Arthur Ramos é um estudioso
preferencialmente do candomblé, religião de origem ioruba. Por causa das perseguições pelos
brancos, pela polícia, os Negros esconderam os segredos, de suas práticas religiosas e
mágicas, em zonas afastadas dos centros urbanos. Devido ao isolamento houve a conservação
de um verdadeiro candomblé, culto exotérico, que por muito tempo permaneceu quase
completamente desconhecido, fechado no recôndito dos seus terreiros, guardaram a tradição
africana.
A macumba e o candomblé, são os melhores exemplos do paradoxo de Arthur Ramos
analisado pelo antropólogo Roberto Motta.287 Um dos assuntos centrais na obra de Ramos é o
“sincretismo”, chegando mesmo a criar um “paradigma do sincretismo”. No Brasil foi
operado um grande sincretismo cultural, uma das melhores mostras é o sincretismo religioso,
que ocorre na confusão ou partilha de atributos “mágico-religiosos” de origens distintas.
Em “O Negro brasileiro”288 o professor Ramos afirmou que os vários cultos africanos
se amalgamaram a princípio entre si, e depois com o catolicismo e o espiritismo, religiões
brancas, de modo que temos em ordem crescente e de longevidade de sincretismo: gegê-nagô;
gegê-nagô-musulmi; gegê-nagô-bantu; gegê-nagô-musulmi-banto; gegê-nagô-musulmi-banto-
caboclo; gegê-nagô-musulmi-banto-caboclo-espírita; gegê-nagô-musulmi-banto-caboclo-
espírita-católico. Esta última modalidade predomina no Brasil, entre as classes atrasadas da
população – negros, mestiços e brancos. O grande exemplo para Ramos é a macumba
encontrada por ele nos morros do Rio de Janeiro. Essa operação forma o “sincretismo afro-
católico no Brasil”, na qual Deus e os santos do catolicismo encontram correspondência nos
Orixás dos cultos africanos. A fusão de tais elementos nas práticas religiosas sincréticas é
tamanha que as pessoas envolvidas não conseguem distinguir ou separá-los, até mesmo
porque o sincretismo distancia-se das origens e produz algo novo. Quando reza-se a São
Jorge, Ogum responde com sua espada, deixa-se um ebó – oferenda - pro santo junto com
uma reza pro orixá, a medalha de São Jorge é levada no peito junto com o colar de contas
azuis.
287 MOTTA, Roberto. Arthur Ramos, sincretismo e mentalidade pré-lógica em O Negro brasileiro. In: BARROS, Luitgarde O. C. (Org.). Arthur Ramos. Rio de Janeiro: Fundação Miguel de Cervantes, 2011. p. 30-80. 288 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1934. p. 127.
126
No pensamento de Ramos o “paradigma do sincretismo” coexiste com o “paradigma
da pureza”. A procura pela “pureza africana” na cultura do Negro brasileiro, também foi a
marca do seu trabalho, dessa maneira a análise da “origem” no “método comparativo” serviria
para identificar a “pureza” cultural ou a “sobrevivência” da cultura originária. Nesse caso teve
um papel fundamental a ideia de “mentalidade primitiva” que guarda no “inconsciente
primitivo” os significados de determinados elementos, com isso acreditava que bastava
estudar os mitos nas fontes originais para descobrir os verdadeiros motivos de seu culto.
Elementos das culturas primitivas que puderam “sobreviver” nas culturas modernas, pois
nelas ainda teriam grupos sociais dos estágios culturais inferiores, como os negros, os índios e
os mestiços. Os traços de uma “mentalidade pré-lógica”, primitiva ou africana
representavam uma fase do pensamento da humanidade, um estágio de cultura dos povos
primitivos que subsistem nos terreiros.
Na compreensão da mentalidade africana, da cultura negra, e da religião do negro
brasileiro, o professor Ramos dialoga com o pensamento de Lucien Lévy-Bruhl.289 para quem
à “mentalidade primitiva” tem duas características básicas: mística, no que se refere ao
conteúdo das suas representações, não no sentido do misticismo religioso, mas no sentido da
crença em forças, influências ou ações imperceptíveis aos sentidos e, no entanto, reais, quer
dizer que os povos primitivos se movem numa realidade mística, onde todas as coisas
possuem poderes ocultos; e, por outro lado, e pré-lógica, no que se refere às ligações entre
essas representações, não no sentido de ser anterior no tempo à aparição do pensamento
lógico, ou no sentido de ser antilógica ou alógica, mas no sentido de não se sujeitar a abster-se
da contradição, quer dizer que a mentalidade das sociedades inferiores obedece menos ao
princípio de identidade do que a uma lei de participação, em virtude da qual, nas suas
representações coletivas, os objetos, os seres, os fenómenos podem ser simultaneamente eles
próprios e outra coisa diferente deles mesmos.
A partir dessa compreensão da mentalidade dos negros brasileiros como primitiva são
explicadas as sobrevivências de cultos religiosos africanos no Brasil, como práticas totêmicas
ou fetichismos. De acordo com Ramos, existem poucos exemplos de pureza cultural africana
nas religiões negras no Brasil, alguns deles são candomblés baianos, de tradição gêge-nagô,
que pelo seu isolamento acabou preservando a cultura.
289 LÉVY-BRUHL, Lucien. A mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus, 2008.
127
Macumbas e candomblés brasileiros estão se transformando rapidamente. Existe a fusão curiosa, já assinalada de passagem, com outras religiões e cultos, especialmente com o catolicismo e o espiritismo. É o fenômeno do sincretismo que prossegue a sua obra de apagamento dos traços culturais de origem. As linhas de macumbas cariocas são hoje sessões e mesas de baixo espiritismo, com a intromissão de elementos rituais de origem africana. Aí, a frequência de brancos e mestiços é mesmo intensa.
O catolicismo popular, no Brasil, com o seu aspecto de paganismo supérstite, na expressão de Sébillot, absorveu no seu imenso bojo as velhas religiões e cultos negros, aqui fragmentadas e diluídas.290
A etnografia teve papel fundamental nesse trabalho, parte do livro é dedicada a
explicar os funcionamentos dos terreiros e dessas religiões, demonstrando como
características de diversas culturas religiosas estavam presentes. O próprio Arthur Ramos
visitou e analisou terreiros na Bahia – terreiros de candomblé – e no Rio de Janeiro – terreiros
de macumba ou umbanda. Diversos elementos foram relatados por ele, sempre procurando
comparar com as práticas religiosas africanas: orixás; santos; caboclos; pais-de-santo; filhas
e filhas-de-santo; cair-no-santo, queda-no-santo, estado-de-santo – possessão por um orixá
ou espírito; mandingas – talismãs dos negros malês ou mussumis. Uma realidade riquíssima
da cultura brasileira, foi evidenciada no seu trabalho etnográfico e Arthur Ramos se tornaria
um dos intelectuais defensores das religiões afro-brasileiras durante o governo de Getúlio
Vargas.
Para Arthur Ramos também houve “sobrevivência” folclórica no Novo Mundo, pois
havia elementos negros do folclore brasileiro, ainda identificáveis, a ponto de podermos falar
ainda em folclore negro. Por outro lado, o trabalho da aculturação estava incorporando
rapidamente estas sobrevivências ao patrimônio folclórico geral. Novamente, o método
comparativo foi utilizado como maneira de compreender um aspecto da cultura, nesse caso o
folclore. No esforço de reconstituição das instituições sociais, dos costumes, dos autos
cerimoniais de procedência negra no Brasil, Ramos examinou o que acreditou ser as culturas
negro-africanas de origem. Ele de fato acreditou que era possível reconstituir as culturas
originárias, de procedência sudanesa e banto, nos autos cerimoniais, nas danças dramáticas e
festejos populares, de origem negra, no Brasil. Os negros adaptavam suas próprias instituições
aos velhos autos populares trazidos pelo colonizador português, é dessa maneira que surgiram
os autos populares dos Congos em várias partes do Brasil, e o auto dos quilombos, em
Alagoas, a este dedicaremos atenção especial futuramente.
290 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 109.; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 103.
128
Tendo em vista que Arthur Ramos compreende os gêges e os bantos como povos
totêmicos na sua origem cultural africana, isso explicaria para ele o motivo pelo qual os
negros brasileiros criaram os pastoris, ternos e ranchos, festividades folclóricas nas quais
animais eram personificados como elemento de culto. Concordava com Nina Rodrigues que
os ranchos correspondiam com as instituições totêmicas negro-africanas. No texto abaixo,
podemos observar como Arthur Ramos opera essas aproximações entre as “culturas de
originais africanas” e as “culturas negras brasileiras”:
Essa tendência dos Negros brasileiros, a se reunirem em clãs ou confrarias, reconhece, de um lado, uma sobrevivência do totemismo (clã totêmicos), do outro, a defesa natural contra a opressão dos senhores. Encontraram no Brasil o símile destas agremiações nas confrarias católicas e adaptaram-se facilmente a elas. Aliás, no próprio Congo, já havia essas confrarias negras como santo da sua proteção, introduzido pela catequese dos missionários portugueses: Nossa Senhora do Rosário. No Brasil, os Negros congos continuaram a sua devoção a Nossa Senhora do Rosário e a outros santos.291
As associações negras no Brasil, na compreensão de Ramos, serviram não apenas para
construir uma nova identidade, ou proteger-se e reagir contra a escravidão, mas como lugar de
conservação da cultura africana, também denominada de “reação contra-aculturativa”. Mesmo
quando o sincretismo estava avançado, os elementos da cultura africana sobreviveram, como
nos autos populares do folclore brasileiro, onde o professor acreditou ter encontrado
esfacelamentos de suas antigas instituições culturais africanas. “Hoje, os Negros utilizam-se
destes jogos populares para derivarem os seus anseios, as tendências do seu inconsciente
coletivo. E daí, o forte poder mágico-emocional que deles se depreende.”292 Dois exemplos
contemporâneos do que Arthur Ramos chamou de “sobrevivências totêmicas” são os
maracatus de Pernambuco, como o bumba-meu-boi do Nordeste brasileiro.
Como foi pedido pelo Dr. Carter Woodson, o professor Arthur Ramos preocupou-se
em demonstrar a contribuição do negro na civilização brasileira: na música293; na pintura,
escultura e arquitetura294; letras e nas ciências295. Enfatizou que metodologicamente para um
291 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 122.; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 115. 292 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 123.; Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 115. 293 RAMOS, Arthur. The Negro in music. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 116-129.; RAMOS, Arthur. O Negro na música. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 125-138. 294 RAMOS, Arthur. The Negro in painting, sculpture and architecture . In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 130-140.; RAMOS, Arthur. O negro na pintura, escultura e arquitetura. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 139-150. 295 RAMOS, Arthur. The Negro in literature ande the sciences. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. p. 141-156.; RAMOS, Arthur. O negro nas letras e nas
129
estudo das influências artísticas do Negro no Brasil, primeiramente devia-se examinar os seus
fundamentos folclóricos. Destacou a importância dos negros na cultura brasileira, como disse:
“O Negro é o artista por excelência. E no Brasil ele confirmou esta qualidade”.296
Retirado de seus lares, trazidos para o para o novo habitat, vivendo sob o regime de
escravidão os negros não podiam celebrar as mesmas cerimonias de suas terras de origem.
Para Arthur Ramos foi o novo meio social que obrigou-os a uma adaptação forçada e
caricatural. “Danças primitivas de guerra, de caça, dos ritos de passagem, etc., não podiam
mas ser realizadas com a pureza primitiva. Houve uma distorção uma transformação imposta
pelas restrições do branco civilizado.”297 As cerimonias africanas não desapareceram, apenas
adaptaram-se, ficaram sobrevivências no folclore. “Cerimônias totêmicas, danças guerreiras,
danças de caça, ritos sexuais ... vamos encontra-los todos disfarçados nos autos dos reisados,
maracatus e blocos carnavalescos, ranchos e cucumbis, congos e taieiras, etc.”298 As
primitivas instituições africanas, de acordo com Ramos, fusionaram-se com sobrevivências
análogas do ameríndio e com os festejos populares de origem europeia.
Existe uma série de danças negras que influenciaram a música brasileira: batuques,
semba (samba), tambores, maracatus, candomblés, batucagés, etc. Segundo Arthur Ramos as
danças negras misturaram-se com outras danças de origem europeia e ameríndia, isso dificulta
a discriminação para o etnógrafo, pois progressivamente vão perdendo o seu caráter puro,
adquirem novos aspectos e tomam novas denominações. Estabeleceu três épocas ou etapas,
em que foi delineado uma tendência à fixação de uma forma geral da dança negro-brasileira:
na primeira etapa, é encontrado a forma genérica batuque, que é a dança de roda, com
execuções individuais, originadas dos Negros angola-congoleses; a segunda etapa, assinala o
aparecimento do maxixe, dança brasileira que aproveitou o elemento negro dos batuques, a
etapa atual é a do samba, forma de dança ainda indefinida, mas de uma extraordinária riqueza
de elementos musicais, melódicos e rítmicos e elementos coreográficos, onde intervém o
negro africano e o negro de todas as Américas e danças europeias adaptadas.
É muito difícil para o etnógrafo encontrar a música pura, primitiva, Ramos acredita
que ela está presa aos terreiros, que guardam as tradições africanas, haja vista que a música
ciências. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 151-166. 296 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 125. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 116. 297 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 128. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 119. 298 Idem.
130
religiosa e mágica estava desaparecendo. A música negra, saída dos terreiros transformou-se
ao contato de outras músicas. Arthur Ramos compreende que o processo de criação de uma
música originalmente brasileira, e sua afirmação nativista, o contingente maior foi o Negro.
A rítmica e a melódica, da música brasileira os processos são essencialmente de inspiração
negra. Foram utilizados como exemplos os compositores e musicólogos brasileiros, Luciano
Gallet e Heitor Vila Lobos, por terem aproveitado dos motivos musicais negros, como fonte
de inspiração para as suas criações, no final do século XIX e início do XX surgiu uma série de
compositores populares com influencias negras em suas músicas. Ramos demonstrou também
que a música brasileira tinha compositores negros e mulatos. No período que o texto foi
escrito a difusão do rádio estava ocorrendo e o Negro, de acordo com Ramos, inundava as
estações pelas suas qualidades insuperáveis de virtuose instrumentalista, cantor e compositor.
Todos os povos trouxeram para o Brasil a sua arte e a sua técnica. A grande influência
da arte africana no Brasil, se deu principalmente na escultura, com a entrada dos negros
originários do Benin, tinha uma arte muito desenvolvida no bronze, ferro e outros metais. As
qualidades inatas de artista que possui o Negro brasileiro exerceram profunda influência na
história da arte no Brasil. Negros e brancos exploraram os motivos africanos na criação
artística, não só na arte popular, nos usos e costumes, na indumentária, na cerâmica, nos
instrumentos de música, etc., como na arte pura, na pintura e escultura. Na arquitetura e a
escultura religiosas do período colonial e imperial negros e mulatos terão grande contribuição
desde a função de aprendizes dos mestres portugueses, até alcançaram a maior importância
construindo uma arquitetura e escultura própria brasileira, esse foi o caso do mulato Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Na Pintura tivemos grandes nomes como o mulato Pedro
Américo, mulato, o desenhista e pintor Manuel Querino. No século XIX e XX tiveram papeis
fundamentais os Liceus de Artes e Ofícios de vários Estados, bem como da Academia
Nacional de Belas Artes, na formação de vários artistas negros e mulatos. Foi fundado no
Recife o Centro de Cultura Afro-Brasileira, primeira instituição em colaboração com Vicente
Lima.
Segundo Arthur Ramos, até a década de 1930 no Brasil a literatura anônima de
procedência africana tem sido pouco estudada, existem apenas as pesquisas empreendidas por
Sílvio Romero e Nina Rodrigues. O professor Ramos indica três grupos gerais de contos
populares, sem exemplos precisos de cada grupo: o primeiro grupo provém de esfacelamentos
míticos e heroicos, são os contos onde intervêm entidades mitológicas, antepassados, heróis
131
criadores, civilizadores e transformadores; o segundo grupo engloba todos os contos de
sobrevivências totêmicas, é o numeroso fabulário africano, grande conglomerado, onde
intervêm não só elementos totêmicos, animais-heróis e animais-deuses, antropomórficos; o
terceiro grupo abrange as demais formas do conto popular, reminiscências históricas, contos
morais. Apesar da ausência dos exemplos, ele deixou claro que acredita na sobrevivência de
todo um folclore africano na poesia popular no Brasil, nos engenhos, nas plantações ou nas
cidades, é o folclore de Pai João, são provérbios, ditos satíricos, adivinhas, de origens
sudanesas ou bantos.
Voltamos aqui à metáfora do Pai João, para Ramos este é muito além do negro manso
e resignado, ele “é um símbolo: é o negro velho dos engenhos, quase centenário, figura
trôpega, fala engrolada e olhos mansos. Ele contava, nos engenhos, velhas histórias da Costa
(da África), contos, anedotas, adivinhas, parlendas”.299 Conforme o pensamento de Ramos o
folclore negro é originado na opressão branca, nas senzalas onde os corpos eram controlados e
a sua liberdade era retirada, restou a muitos suas histórias passadas de uns aos outros,
reformuladas e criadas para fugir da opressão de uma nova cultura, através dos contos e
lendas as tradições africanas sobreviviam na oralidade. O “folclore de Pai João”, foi assim
que ele nomeou, conta as tradições africanas, toda a longa e odiosa história da escravidão, de
opressão e martírio. Essas sobrevivências são encontradas também nos cantores populares,
como Inácio da Catingueira, Teodoro Pereira, Manuel Caetano, Azulão, Manuel Preto, José
Antônio, Chica Barbosa ...
A literatura do negro não esteve tão distante da literatura erudita, pois Ramos acredita
que os escritores teriam buscado fontes de inspiração em motivos negros, mas, também, com
artistas negros, com autores negros e mulatos. Arthur Ramos nunca formulou claramente o
que seriam esses motivos negros, encontrado por ele na música, dança, pintura, escultura e
outros tipos de arte, até mesmo na literatura, apesar disso acreditamos que um desses motivos
seria a dor e sofrimento imposto a eles de várias maneiras, pelo menos é isso que esse texto
nos permite pensar: “O regime da escravidão, com toda a epopeia de um povo martirizado,
criou toda uma literatura: a literatura da escravidão, à maneira da americana H. Beecher
Stowe.”300 Uma série de escritores de poesia e da prosa estão cheios de influências e motivos
do negro e do mulato, de acordo com ele, um desses exemplos seria Gregório de Mattos,
299 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 152. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 142. 300 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 154. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 144.
132
vivendo no século XVII introduzia tais motivos nas suas produções. O próprio negro e mulato
teria se saído:
Como autor, como representante individual, da literatura erudita brasileira, o Negro não teve oportunidade de se revelar no período da escravidão. Oprimido, sem instrução, somente por um esforço sobre-humano ele pode demonstrar as suas qualidades de artista. Não frequentando academias, nem sequer escolas primárias, não podia competir com os nomes dos luso-brasileiros, que, já na Colônia, apareciam com exuberantes escolas literárias.301
No período colonial existiram poucos escritores de origem negra, porém no século
XIX, houve uma brilhante floração de negros e mulatos na literatura, ele cita os seguintes
nomes: Antônio Gonçalves Teixeira, Antônio Gonçalves Dias, Laurindo Rabelo, Tobias
Barreto, Castro Alves, Luís Gama, Gonçalves Crespo, Francisco de Paula Brito, Cruz e Souza
e Lima Barreto. A maioria deles, tiveram como temas principais a exclusão, o sofrimento, a
dor, a condição de marginalidade na sociedade e o popular. O professor Ramos também
afirma a importância de alguns escritores da moderna geração brasileira, como Jorge de Lima
e Raul Bopp, integrantes da geração de modernistas das décadas de 1920 e 1930, Negros e
brancos, poetas e romancistas, refletiram uma profunda influência de motivos negros.
O negro e o mulato também tiveram papel importante no desenvolvimento da ciência e
na filosofia. Mas em menor proporção do que em outras áreas da cultura, já que a educação
formal das faculdades de medicina e direito, ou das escolas de engenharia e artes e ofícios,
estiveram distantes dessa população. Mesmo assim, alguns negros e mulatos conseguiram
inserir-se na engenharia. Arthur Ramos destaca algumas pessoas que tiveram influência em
sua vida, o pesquisador baiano da cultura negra Manuel Querino único que estudou as
religiões negras na década de 1910, o seu professor Juliano Moreira, médico negro da
Faculdade de Medicina da Bahia, e não esqueceu do seu amigo e “discípulo” Edison Carneiro,
etnógrafo e folclorista baiano.
Como vimos o Dr Carter Woodson havia orientado que no livro deveria ser abordado
“o papel do Negro como soldados e na defesa do solo”. É com este proposito Ramos escreve
o capítulo sobre “O Negro como soldado”302, e retoma ao valor militar já referido do negro,
como em Palmares. Grande exemplo por ele dado da contribuição do negro nas armas no
301 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 154. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 144. 302 RAMOS, Arthur. The Negro as a soldier. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. P. 157-169.; RAMOS, Arthur. O Negro como soldado. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 167-180.
133
Brasil, foi Henrique Dias, negro que liderou terços de homens contra os holandeses nas
guerras de reconquista durante o domínio holandês em províncias do Norte. Por causa da
importância desse homem na expulsão dos holandeses, a coroa portuguesa lhe deu o título de
“governador dos negros” e batizou os terços de negros, de terço dos Henriques.
O elemento negro foi muito importante para a conquista do litoral pelos portugueses e
colonizadores, mas foi tão importante quanto, quando começou a exploração do interior
desconhecido, dominado pelo indígena. Para Ramos houve um reconhecimento por todos do
valor do Negro no Exército e na Marinha. Muito embora, ao que parece, ele acredita que
nessas instituições não existe diferenciação racial: “Entre nós, atualmente, o Negro não se
separa dos restantes dos componentes brancos e mulatos, do Exército. E por isso, não há
estatísticas oficiais para o computo de soldados e marinheiros negros nacionais”303. Essa foi
uma afirmação muito estranha, no mínimo deslocada, pois negava as tensões raciais que
provocaram a Revolta da Chibata, acontecimento de seu conhecimento e que foi citado por ele
como uma das revoltas em que os negros participaram. 304 A menos que ele tenha
compreendido que em diversas revoltas, o negro e o mulato participaram, mas não tiveram
motivações nos conflitos raciais, e a revolta da Esquadra seria uma delas. Por último, elogia a
participação dos Negros e mulatos brasileiros na Grande Guerra, e a participação da Legião
Negra do Brasil na Revolução Constitucionalista, de 1932.
Como contribuição do Negro para o desenvolvimento do Brasil, Arthur Ramos escreve
sobre a participação do negro na política e as associações negras contemporâneas.305 Como já
foi mostrado anteriormente, Arthur Ramos demonstrou que a primeira atividade política do
Negro, no Brasil, foi para o movimento da sua própria libertação. O Negro havia se
organizado em irmandades ou juntas de alforria, que visavam à compra da sua carta de
liberdade. Por isso quando começou o movimento abolicionista, os líderes negros se alistaram
na linha da frente da campanha memorável. Porém, como expôs Ramos, é na República que o
Negro e o mulato participaram em maior número na vida política, destacou-se nos postos
parlamentares ou administrativos, e na história política do Brasil. “A inexistência de linha de
cor e de desigualdade política e social impedem que se destaquem os seus nomes, em
303 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 178. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 168. 304 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 57. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 54. 305 RAMOS, Arthur. The Negro in politics: presente day Negro organizations in Brazil. In: _______. The Negro in Brazil. Reimp. Washington D.C.: The Association Publishers, 1951. P. 170-182.; RAMOS, Arthur. O Negro na política. Associações negras contemporâneas. In: ______. O Negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1956. p. 181-198.
134
biografias separadas de vultos negros na política brasileira.”306 Para Arthur Ramos era uma
prova da ausência de impedimentos legais e a consequente amenização do racismo na
sociedade brasileira, o fato dos negros e mulatos terem atingido até os altos postos políticos
nos Estados e na Federação, chegando a presidência com Nilo Peçanha.
O Negro brasileiro na República procurou se organizar em associações, que
representariam a defesa política e cultural desses homens de cor. A historiadora Luana
Tamano307 observou que Arthur Ramos reconhece a existência de preconceitos de cor no
Brasil, mas entende-os atenuados, por isso na sua compreensão as associações negras não
tinham caráter isolado e de segregação em relação aos brancos. O negro não teria tido
impedimento:
Depois da abolição da escravidão, o Negro tomou parte na vida social e familiar, no Brasil. Não houve leis proibitivas para as suas atividades. O intercasamento fez-se em larga escala, permitindo a formação de um povo mulato que vem colaborando com o Negro e o branco na obra comum de criação da nossa nacionalidade.308
Em sua visão os direitos políticos eram iguais. Portanto as reivindicações feitas por
associações negras ou pela imprensa negra seriam de ordem econômica, social e cultural. Tais
reclamações foram intensificados, conforme as regiões e sua historicidade com relação a
utilização de mão-de-obra negra, isso significou que em áreas que utilizou em larga escala o
escravo, o problema do Negro na República é o mesmo problema das classes pobres, de nível
cultural baixo. De acordo com ele: “A reinvindicação aí é comum. Trata-se de dar a essas
classes oportunidades melhores. A linha de cor é atenuada, quase inexistente. O Negro, o
mulato e o branco participaram da vida comum, as suas lutas e reivindicações se
confundem.”309
Para Ramos só existiram preconceitos de cor mesmo no Sul do Brasil, onde a
imigração branca ocorreu com maior intensidade e o negro se sentiria uma minoria oprimida.
A linha de cor aí assume aspectos mais intensos, embora não existam aparatos legais
proibitivos. Em consequência dos preconceitos de cor que se formaram em São Paulo,
surgiram associações que visavam à afirmação dos direitos sociais e políticos, em igualdade
de condições com os brancos. Em consonância com reconhecimento do preconceito de cor
306 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 183. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 172. 307 TAMANO, Luana. Arthur Ramos e a mestiçagem no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2013. p. 147. 308 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 184. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 173. 309 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 184. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 173.
135
nos estados do Sul e o surgimento de associações em prol da igualdade racial, compreende o
papel desse grupo como um protesto à atitude de vergonha da cor da epiderme, que muitos
negros sentiam, em face da comunidade branca, assim, no restante do Brasil foram fundadas
várias associações que seguiram o exemplo das de São Paulo.
A exemplo de outros temas Arthur Ramos elabora uma lista, nesse caso das
agremiações, mostraremos apenas alguns deles: o jornal paulista “O Clarim d’Alvorada”,
fundado por Jaime d’Aguiar, em janeiro de 1924, e que se propunha reivindicar os direitos do
Negro brasileiro; Após 1930 surgem novas associações significativas, como o paulistano
Centro Cívico Palmares; Em 1931 surgiu a Frente Negra Brasileira, que em 1937 por causa do
Estado Novo foi forçado a acabar com suas atividades de partido político, e modificaram o
seu nome e estatuto para União Negra Brasileira; o periódico quinzenário “A Voz da Raça”;
foi fundada em Santos, a Associação dos Brasileiros de Cor, tinham os mesmos objetivos da
Frente Negra Brasileira; Durante o 2º Congresso Afro-Brasileiro surgiu a União das Seitas
Afro-Brasileiras da Bahia, em 3 de agosto de 1937; Também em 1937 foi fundado em Recife
o Centro de Cultura Afro-Brasileira.
Sabemos que muitas dessas associações tinham contato com Arthur Ramos,
considerado um dos maiores estudiosos sobre o negro no Brasil não de estranhar que houve
diálogo entre o intelectual e os grupos sociais, ambos procuravam uma legitimação de sua
condição, essa relação é provada pelos artigos de jornais e pela correspondência encontrada
no Arquivo Arthur Ramos salvaguardado pela Biblioteca Nacional. Estamos falando sobre
essa relação, porque nos intrigou muito um trecho do “Manifesto do Centro de Cultura Afro-
Brasileira” reproduzido por Ramos em seu livro: “Não faremos lutas de raças contra raças,
porém ensinaremos aos nossos irmãos Negros que não há raça superior nem inferior e o que
nos faz distinguir um dos outros é o desenvolvimento cultural.”310 Salta aos olhos, a
similaridade entre esse trecho e o pensamento de Ramos sobre as relações raciais no Brasil
como amistosas, bem como sobre os motivos que tornam os negros inferiores aos brancos, as
diferenças entre “estágios de desenvolvimento cultural”.
No final, parece que, para Arthur Ramos, as diferenças entre “raça negra” e “raça
branca” na sociedade brasileira, seriam antes produto do estágio inferior de cultura do
primeiro, mas também dos problemas gerados pelos muitos anos de escravidão como já
310 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 195. Ver a versão em inglês: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 181.
136
mostramos anteriormente. Para ele essas diferenças não são problemas gerados pelas tensões
raciais do presente, do pós-abolição: pela negação da cidadania a esse povo; pela perseguição
deles nos terreiros, nas capoeiras ou nos sambas; pelo preconceito de cor manifestado no
cotidiano com seus padrões estéticos e na animalização da figura do negro e mulato; pela
separação dos espaços de sociabilidade das cidades brasileiras, na segregação dos corpos e
ordenação urbana que marginaliza as habitações dos negros e mulatos.311
Podemos afirmar que as suas conclusões, sobre a falta ou amenização dos conflitos
raciais no Brasil312, são baseadas em sua perspectiva da estabilidade do processo de
aculturação formando a nação brasileira como mestiça, assim como de uma possível
“democracia racial” vivida no Brasil, juntamente com o seu projeto de combate a intolerância
racial iniciado na década de 1930, na qual apontava o Brasil como país modelo para o resto do
mundo, um “paraíso racial” devido a mestiçagem.313
O argumento de Arthur Ramos sobre a inexistência de racismo no Brasil, parece
incoerente quando observa-se a fundação de diversas instituições de reunião e defesa do
negro. Ele fala sobre a possibilidade dessas organizações resolverem um problema de
sentimento de inferioridade do próprio negro, da forma que o argumento foi construído, é
colocado a culpabilidade das desigualdades raciais no próprio negro por sentir-se inferior.
Outra parte importante do seu argumento, é o papel dado a escravidão e a República,
pois afirma que os problemas da população negra estão relacionados aos anos de exploração
do sistema escravista e a omissão do Estado. Nesse caso, o mais intrigante é a negação do
problema do racismo na sociedade contemporânea: ele acreditava que o negro não deveria
lutar contra o preconceito podendo gerar uma segregação aos moldes do norte-americano, na
verdade deveria preocupar-se com a integração racial.
311 Essa perspectiva sobre as tensões raciais entre negros e brancos na sociedade brasileira do pós-abolição é uma construção de um grupo da historiografia atual, pelo menos desde de a década de 1980. Ver: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flávio dos S. (Org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007 312 Arthur Ramos não deixa claro se acredita na inexistência ou apenas amenização dos conflitos raciais no Brasil. Ver: TAMANO, Luana. Mestiçagem e democracia racial no pensamento de Arthur Ramos: o Brasil na agenda da Unesco. IN______: Arthur Ramos e a mestiçagem no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2013. p. 141-218. 313 Sobre esse projeto de combate a intolerância racial, ler o “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra o preconceito racial”, assinado em 1935 por ele e outros intelectuais. Ver: Manifesto dos intelectuais brasileiros contra o preconceito racial. Apud: TAMANO, Luana. Arthur Ramos e a mestiçagem no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2013. p. 249-251.
137
Observar esses pontos do livro e do discurso de Ramos, leva-nos a pensar que essas
condições estariam em concordância com as realidades encontradas por Edward Said314 e
Gayatri Spivak315 sobre a representação intelectual do subalterno: a representação de Ramos
do negro brasileiro, era antes de tudo, um meio de controlar a representação do negro sobre
ele mesmo e a sua participação social.316 Revelando ambiguidade do sujeito que representa
aqueles que não foram representados, mas silencia-os não possibilitando falarem de seus
problemas através de suas próprias representações. O discurso do líder da Frente Negra
Pelotense que abordamos no primeiro capítulo revela um pouco o conflito de representações e
de perspectivas sobre a condição social dos homens de cor. Pois Miguel Barros enfatiza o
preconceito de cor como uma prática desqualificadora no Brasil, enquanto os intelectuais da
harmonia racial pregavam a ausência de conflitos e limitações. Por outro lado, muitos desses
movimentos também compartilhavam com os intelectuais algumas ideias, a tese da
inferioridade cultural do negro era muito comum.
314 SAID, Edward. Op. cit. 2007. p. 98. 315 Gayatri Spivak analisa esse papel de representante – que “fala por” ou “re-presentar” - exercido pelos intelectuais e pelas elites que silenciam o Outro da sociedade ou o subalterno – o representado. Ver: SPIVAK, Gayatri C.. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. 316 Essa é uma interpretação válida para todos os intelectuais dos Estudos sobre o Negro no Brasil.
138
SEGUNDA PARTE
Desconstruindo a República dos Palmares: os sentidos da escritura
Ninguém ouviu Um soluçar de dor No canto do Brasil Um lamento triste Sempre ecoou Desde que o índio guerreiro Foi pro cativeiro E de lá cantou Negro entoou Um canto de revolta pelos ares No Quilombo dos Palmares Onde se refugiou Fora a luta dos Inconfidentes Pela quebra das correntes Nada adiantou E de guerra em paz De paz em guerra Todo o povo dessa terra Quando pode cantar Canta de dor E ecoa noite e dia É ensurdecedor Ai, mas que agonia O canto do trabalhador Esse canto que devia Ser um canto de alegria Soa apenas Como um soluçar de dor
(Paulo Cesar Pinheiro, Mauro Duarte. Canto das três raças. 1976)
139
III. Do Palmares ocultado ao “mestre” Nina Rodrigues com sua “Troya
negra”
A destruição do principal refúgio dos palmarinos, o Mocambo dos Macacos, ocorreu
no ano de 1695. Dois anos depois o líder Zumbi foi assassinado. Esses eventos foram
seguidos de revoltas ou resistências que os negros promoveram na virada para o século XVIII,
guiadas por sobreviventes que permaneceram na região de Pernambuco – naquele momento
incluindo também o que entendemos atualmente por Alagoas – e lideranças fortes como a do
negro Camuanga. Segundo a maioria dos pesquisadores sobre o tema, os Mocambos dos
Palmares foram destruídos nos eventos de 1695 e 1697. No entanto, de acordo com o
historiador Flávio dos S. Gomes, talvez o maior especialista no assunto atualmente, eles
teriam continuado até meados do século XVIII com a reorganização dos sobreviventes.317
Durante a existência dos Mocambos dos Palmares foram feitos muitos relatos de
visitantes, de combatentes ou políticos que são documentos históricos importantíssimos, mas
que não serão analisados nessa dissertação. Isso significa que não serão abordados alguns
escritos que são considerados como produções historiográficas especialmente se
considerarmos a concepção de história para o momento específico em que foram escritos –
século XVII –, como é caso dos textos dos holandeses Gaspar Bárleus, “História dos feitos
recentes praticados durante oito anos no Brasil”, de 1647; e Willem Piso e George Macgrave,
“Historia Naturalis Brasiliae”, de 1648. Examinaremos apenas os escritos a partir do século
XVIII, cujo destaque é a “História da América Portuguesa”, escrito pelo baiano Sebastião
Rocha Pita, datado de 1727, uma vez que entendemos que este texto congrega as principais
características dos escritos anteriores.
Observando os períodos apresentados pelos especialistas para o fim dos Mocambos,
divididos entre 1695-1697 ou primeira metade do século XVIII, comparando-os com a data
do primeiro escrito sobre o tema, que é a década de 1720, percebemos a proximidade
temporal entre os escritos e o momento final. Isso significa que para os primeiros
historiadores a lembrança de Palmares era de um acontecimento recente, assim como para a
memória da sociedade colonial e até da metrópole. Para muitos habitantes da província de
317 GOMES, Flávio dos Santos. De olho em Zumbi dos Palmares: histórias, símbolos e memória social. São Paulo: Claroenigma, 2011. p. 7.
140
Pernambuco, provavelmente este inimigo estava vivo, ainda que estivesse agonizando, não
havia sido destruído completamente, pois ainda existiam sobreviventes organizados na região.
É de se imaginar que os Mocambos dos Palmares que incomodaram tanto os poderes
coloniais, num século de lutas, tivessem uma atenção especial dos historiadores que viveram
nessa época ou em períodos próximos. Segundo Jean Marcel C. França e Ricardo Alexandre
Ferreira, esse interesse pode ser observado por meio da comparação entre as poucas obras
produzidas no período e a quantidade de vezes que o tema foi abordado:
O tema parece ter despertado relativo interesse dos contemporâneos do quilombo – lusitanos e holandês – e também de um minguado números de homens de letras da colônia no século XVIII. Ora, se levarmos em conta que pouco se escreveu e publicou – em língua portuguesa ou em qualquer outra língua – sobre o Brasil ao longo dos séculos XVII e XVIII, a recorrência com que o quilombo aparece nos escritos é um indicativo bastante seguro de que tanto a sociedade que os colonos portugueses estavam construindo no Brasil, quanto a que os holandeses implantaram temporariamente no litoral nordestino se preocuparam com aquele núcleo de rebeldia que teimava em perturbar a ordem de uma sociedade erguida sobre os alicerces da escravidão.318
Se por um lado era um tema que despertou um interesse principalmente no momento
da sua existência, por outro, durante os séculos XVIII e XIX foi produzido um silenciamento
sobre o modo de vida dos palmarinos, concomitante ao agravamento da visão negativa sobre
Palmares. Enquanto que, com o passar do tempo o número de livros e escritos sobre a
América Portuguesa e o Brasil aumentava, Palmares detinha pouquíssimo espaço nessas
obras. Durante esses dois séculos, as passagens dedicadas à história palmarina nos livros ou
escritos ocupavam somente alguns parágrafos ou poucas páginas.
A historiografia palmarina dos séculos XVIII e XIX teve duas fases distintas de sua
produção, elaborando duas construções de Palmares com características próprias, mas não
totalmente distantes uma da outra.319 As duas construções correspondem a momentos
políticos e sociais diferentes da história do Brasil, o período colonial e o imperial. Nesse
tópico segue uma exposição dos escritos de história sobre o Quilombo dos Palmares até o
final do século XIX. Na verdade, será uma apresentação das características mais comuns dos
discursos, das duas fases ou representações de Palmares.
318 FRANÇA, Jean Marcel C.; FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. p. 54. 319 Essa divisão pode ser observado nos dois trabalhos que já citamos: REIS, Andressa. op. cit. 2004.; FRANÇA, Jean Marcel C. e FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. 2012.
141
O objetivo não é percorrer autor por autor, mas promover uma síntese do que foi
produzido. Montaremos uma vitrine da produção antecedente, dialogando com as
contribuições dos dois principais trabalhos sobre o tema: a dissertação de Andressa M. B.
Reis320 e o livro dos professores Jean Marcel C. França e Ricardo Alexandre Ferreira321.
Fazendo isso, melhorará a compreensão das novidades inseridas por Arthur Ramos e pelos
que compartilharam de uma nova construção no início do século XX.
Tentaremos responder os seguintes questionamentos: Quais são as produções sobre
Palmares que antecederam a renovação ocorrida no início do século XX? Quais as
características que diferem essas construções historiográficas? Que representações do
Quilombo foram produzidas? Qual a importância atribuída ao evento e aos palmarinos
durante os séculos XVIII e XIX? O que, proveniente desses períodos, teve continuidade na
tradição historiográfica do século XX e o que mudou, sobretudo nos escritos de Raimundo
Nina Rodrigues e Arthur Ramos?
A primeira fase pode ser demarcada no século XVIII, e até a fundação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838. Principalmente os primeiros escritos
estavam motivados pelo calor dos recentes conflitos entre as tropas coloniais e os
quilombolas. Além disso, durante esse período os negros estavam incorporados a sociedade
da América portuguesa como escravos nas fazendas e nas cidades, a população da colônia era
no século XVIII em sua maior parte negra.322
Como principal característica as narrativas descrevem a organização das tropas
coloniais que combatiam Palmares, destacando principalmente a formação e o desempenho
das entradas punitivas ao Quilombo. É um discurso que se esforça por mostrar o quão
dispendioso foram tais conflitos, mas a necessidade de tais feitos. Estabelecem cronologias
das entradas, nomeando os seus líderes e os governantes que estavam por trás desses eventos.
Servirá como exemplo dessa produção o escrito do senhor de engenho Sebastião da
Rocha Pita, por ser a primeira e a mais importante narrativa dessa fase. “História da América
Portuguesa” foi a primeira obra da historiografia palmarina que teve a sua leitura difundida no
Brasil nos séculos XVIII e XIX. E também uma das mais referendadas dessa historiografia,
320 REIS, Andressa. op. cit. 2004. 321 FRANÇA, Jean Marcel C.; Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. 322 BOXER, Charles R. A idade do ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade colonial. 3 ed. 2 reimp. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000. p. 28.
142
possuindo ainda ressonância nos textos atuais, legando uma estrutura narrativa da história
palmarina, a caracterização do Quilombo como uma República e a lenda do suicídio de
Zumbi.
Propõe-se a narrar uma história que une metrópole e colônia, realçando os feitos
portugueses na colônia e rechaçando qualquer um que ameaçasse seu poder. Por isso
Palmares é observado enquanto ameaça, narrado como mais um capítulo da história militar da
colônia e encontrando o seu “fim tão útil como glorioso”323. Palmares é visto como uma
atração para negros e mulatos que fugiam tanto dos seus senhores como da justiça colonial. O
crime foi uma constante para se qualificar várias ações dos palmarinos, por exemplo, o
comércio travado com os vizinhos na região, ocorrendo por coação dos negros e não por
interesse dos livres. Integrou considerações mais desenvolvidas sobre o tema, descrevendo
aspectos da religião praticada pelos negros amotinados, generalidades sobre a estrutura
jurídico-administrativa, sobre o hábito de sequestrar negras e mulatas escravas, de roubar e
saquear as fazendas e casas, e açoitar criminosos e fugitivos.
Na análise de Andressa Reis,324 diversos autores repetiram Rocha Pita quase
integralmente, mudando apenas o tom da narrativa. Foram os casos: de Loreto Couto no seu
texto “Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco”, de 1757; do viajante inglês Thomas
Lindley em “Narrativa de uma viagem ao Brasil”, de 1805; e do também inglês Robert
Southey no livro “História do Brasil” que foi publicado na Inglaterra entre 1810 e 1822, mas
que só foi traduzido para o português em 1869. Os autores ingleses utilizaram a mesma
estrutura narrativa e repetiram os acontecimentos descritos por Pita, mas, possivelmente,
empregaram outros significados, por terem interpretado o Quilombo conforme os valores do
humanismo que circulavam na Europa, em meados do século XIX. Por exemplo, o suicídio de
Zumbi foi qualificado como expoente da luta pela liberdade.
Os historiadores França e Ferreira325, lembram que o fato dos textos serem bastante
repetitivos, corresponde ao hábito da originalidade não constituir um valor e a repetição é
tomada como uma espécie de prova da verdade. Eles compreenderam a estrutura narrativa
desses escritos, composta pela descrição dos seguintes acontecimentos e características:
formação da comunidade insurgente; situação geográfica do quilombo; a disposição espacial
323 PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Lisboa: Academia Real, 1724. p.486 324 REIS, Andressa. op. cit. 2004. p. 35 325 FRANÇA, Jean Marcel C.; Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. p. 56.
143
dos mocambos; o número estimado de seus moradores; seus meios de subsistência; suas
estratégias e aparatos defensivos; e, por vezes, a sua organização administrativa. Sobre essa
última característica, França e Ferreira afirmaram que poucos foram aqueles que atentaram
para a composição étnica, porque: “Poucos também se aventuraram a tecer considerações
acerca daquilo que somente poderiam supor, pois jamais tinham visto com os olhos da cara: o
modo de vida dos habitantes do quilombo, aquilo que denominamos o seu cotidiano.”326
Os autores dessa fase construíram o Quilombo dos Palmares como inimigos das armas
coloniais e estabeleceram alguns elementos importantes que acabaram repercutindo nos
trabalhos de muitas gerações posteriores: deram ao Quilombo características republicanas,
atribuídas ao sistema político; construíram uma narrativa da grande batalha final entre os
quilombolas e as tropas coloniais; designaram Zumbi como título honorífico do Quilombo e
não um indivíduo, o que só foi definitivamente modificado no século XX; consolidaram a
versão do suicídio de Zumbi, a qual somente foi totalmente descartada no século XX; o
suicídio foi construído como uma fuga da luta contra o poder colonial, ou até mesmo uma
fuga do cativeiro. Como afirmaram França e Ferreira, esses escritos são repetitivos e não
trazem grandes novidades, a organização do Quilombo não foi analisada e a visão que
predominou foi externa, demarcando um espaço inimigo da colonização:
Mais do que isso não iremos encontrar nos escritos coloniais, os quais, redigidos pela parcela culturalmente branca e livre da sociedade que se formara nos trópicos, estavam interessados antes em relatar os sucessos alcançados pelos colonos e seus “capitães” no combate ao quilombo do que em glosar o dia a dia dos rebelados ou as virtudes e defeitos de seus líderes. O que interessava, em suma, era louvar os méritos de uma sociedade que, não obstante as dificuldades, soubera enfrentar e debelar uma de suas maiores ameaças.327
O escrito de Thomas Lindley, revela o medo de uma revolução negra ou uma nova
Revolução Haitiana, uma característica importante para compreender as produções sobre
Palmares de 1800 até o início do século XX. De acordo com a interpretação de Reis328, o
Quilombo foi lembrado por Lindley em meio às preocupações por causa da recente revolução
de negros e mulatos que tornou independente a colônia francesa de São Domingos,
manifestando as incertezas do homem livre diante da massa escrava. Teria ficado espantado
com o volume de escravos comercializados no Rio de Janeiro, indagando os motivos que
326 Ibid. 327 Ibid. 328 Ibid. p. 40
144
levariam aos colonos no Brasil não terem temor com relação à revolução haitiana. O viajante
chega à conclusão de que a falta de medo seria por causa da política mais branda no trato com
os escravos no Brasil, em decorrência do episódio de Palmares.
Alguns autores do início do século XVIII fizeram parte da segunda fase da tradição
historiográfica, pelo menos, de acordo com pensamento de França e Ferreira.329 Destacam-se
personagens como: Southey, Alphonse Beauchamp, Manuel Ayres de Casal e Ferdinand
Denis. Vejamos o que eles falam sobre o primeiro dessa lista, percebido como anunciador da
mudança na representação de Palmares: “O quilombo de Southey, mais do que um polo de
resistência escrava, era um incômodo extra a ser enfrentado pela colonização portuguesa, que
na época já sofria os deletérios efeitos da guerra contra os holandeses.”330 França e Ferreira
perceberam que para o inglês, o Quilombo seria um reduto de criminosos unidos pela
comunhão da cor, pois os palmarinos moviam guerra implacável e sem piedade contra todos,
exceto contra os da sua cor.
Embora a proposta dos dois historiadores seja interessante e bem justificada,
preferimos compreender os autores mencionados acima como um grupo intermediário.
Transitando entre duas representações possíveis, a primeira que estava vivendo os seus
momentos finais e a outra que escrevia os primeiros rabiscos. Se fosse prudente demarcar algo
como o inicio de uma nova fase, estabeleceríamos, a fundação do IHGB, em 1838, como a
sua gênese. Os autores dessa fase foram responsáveis por uma alteração considerável na
historiografia do Quilombo, pois reduziu-se, abruptamente, na história nacional, o peso do
episódio palmarino.
É de senso comum para os historiadores, desde o estudo publicado de Manoel Luís
Salgado Guimarães331, que após a fundação do IHGB foi iniciado um projeto de construção de
história nacional. Esse projeto foi acompanhado por instituições similares organizadas em
algumas províncias e subordinadas ao IHGB, exemplos como o Instituto Arqueológico e
Geográfico Alagoano (IAGA) e o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano
(IAGP), fundados respectivamente em 1869 e 1862, que foram importantíssimos na
historiografia palmarina,. O projeto histórico do IHGB pensou a nação conforme padrões
europeus de civilização, por causa disso, determinou que a historicidade do elemento branco e
329 FRANÇA, Jean Marcel C.; Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. p. 12. 330 Ibid. p. 64. 331 GUIMARÃES, Manuel L. S. Nação e civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma História nacional. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.1, 1988. p.5-27;
145
europeu fosse preponderante na história nacional em detrimento do entendimento da
participação do africano e seus descendentes na formação da nação, depreciando os episódios
que envolvessem os negros e configurando esses como inimigos.
Segundo Andressa Reis332, devido à proposta dos institutos locais de privilegiar os
episódios históricos relativos às suas localidades, foi o IAGA que deu maior destaque à
temática palmarina. A história do Quilombo esteve incorporada à história dos munícipios da
província e de personalidades como Bernardo Vieira de Melo, divulgando também uma série
de documentos. Havia diferenças entre o tratamento dado ao Quilombo no centro de produção
intelectual do Brasil, localizado na “metrópole” do Império, o Rio de Janeiro, em comparação
aos periféricos institutos locais. Nesse contexto, foi comum a disputa historiográfica entre o
IHGB com o IAGA, o primeiro defendendo a tese de que o responsável pela derrota de
Palmares foi o bandeirante Domingos Jorge Velho, o segundo atribuindo esta ao capitão-mor
Bernardo Vieira de Melo, habitante das redondezas. Por um lado, o IAGA teve destaque em
perpetuar a memória do Quilombo, por causa de Alagoas ter sido palco dos episódios. Por
outro lado, a versão do heroísmo do bandeirante propagada pelo IHGB ficou mais conhecida.
A Revista do Instituto Arqueológico Alagoano (RIAGA) da década de 1870 em diante,
publicou quase duas dezenas de escritos dos séculos XVII e XVIII relativos ao quilombo.
Na passagem do Brasil colônia à nação independente, ocorreu um enorme empenho de
grupos ligados à condução dos destinos do país, no sentido de lançar as bases daquilo que
então se denominava uma cultura nacional. Uma cultura que pudesse legitimamente se auto
intitular brasileira e civilizada. Também, a mudança de regime político no Brasil repercutiu
sensivelmente na maneira de se apreender não só o episódio quilombola, mas também a
história do negro no Brasil. Uma parte significativa dos abolicionistas queria por um fim na
escravidão, por pensarem que o escravo e seus descendentes causavam uma série de males à
sociedade que se queria branca e civilizada. Não havia lugar para os negros no Brasil
independente e civilizado do século XIX.333 Azevedo334 percebeu nos discursos da elite
escravista do início do século o imaginário de que os escravos eram inimigos internos
domesticados que estavam sempre se rebelando contra a crueldade com que eram tratados.
332 REIS, Andressa M. B. dos. op. cit. 2004. p. 45. 333 FRANÇA, Jean Marcel e FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. p. 61. 334 AZEVEDO, Célia Maria. M. op. cit. 2004.
146
Durante o século XIX a “História Geral do Brasil” de Adolfo Varnhagen, publicado
em 1854, se destacou na historiografia nacional, e também na palmarina, com uma crítica
direta a Rocha Pita e seu legado na historiografia. O seu projeto estava ligado ao IHGB e à
preocupação com a construção da nacionalidade. Para Varnhagen, o modelo a ser seguido no
Brasil era a Monarquia e os valores europeus, principalmente a tradição lusitana. Nessa
realidade, Palmares teria sido apenas um Estado formado por escravos fugidos, sem nenhuma
condição de estabelecer uma organização política, o que possibilitou serem derrotados pelos
paulistas a serviço da Coroa. A ideia do Quilombo como república organizada com leis
especiais é posta em dúvida. Também questionou o termo Zumbi, esse seria o nome do chefe
do Quilombo, não mais de um príncipe. A memória de Palmares é diminuída, tornando-se
apenas um dos acontecimentos que engrandeceriam as tropas paulistas, associadas aos ataques
empreendidos contra o Quilombo.335 França e Ferreira sintetizam perfeitamente essa
construção:
O quilombo passa a simbolizar um empecilho ao avanço da civilização europeia no Brasil, um núcleo de barbárie africana no coração da colônia, um “cancro” que os colonos tiveram extirpar. Zumbi não deixa de encarnar um grande guerreiro, mas somente na medida em que sua bravura dava ainda mais valor ao empenho do grande herói do episódio de Palmares nos escritos dessa época, o homem que eliminou o tal cancro, o paulista Domingos Jorge Velho.336
Varnhagen pensava em Palmares como um fato datado e encerrado em um passado
longínquo, graças às armas coloniais, estas sim dignas de memória na história nacional.
Durante esse período e com muitas características próximas estão as obras de Perdigão
Malheiro, Oliveira Martins e Mattoso Maia. Talvez o mais destoante desses autores tenha sido
o português Oliveira Martins que coloca Palmares como “nobre protesto da liberdade
humana”, comparando ou aproximando o ato dos palmarinos a Tróia. Fora isso, na construção
desses autores, os palmarinos passaram a ser vistos como antigos inimigos da nação
brasileira. E sua derrota foi pensada enquanto uma vitória da civilização sobre a barbárie. Até
o final do século XIX a historiografia que abordava Palmares não tinha como objetivo estudar
a comunidade palmarina, o seu objetivo era entender como foi efetuado a vitória sobre
Palmares. Reis compreendeu que:
335 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: Antes de sua separação e independência de Portugal. 7° edição. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1962, t. 3. 336 FRANÇA, Jean Marcel e FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. p. 13.
147
Neste aspecto o Quilombo dos Palmares representou um capítulo na história das conquistas bandeirantes, as quais agiriam conforme as ordens da Coroa. Contudo, durante o Império as tropas bandeirantes não possuíam relevância que obtiveram no início do século XX, o que significa dizer que Palmares estaria associado a um valor de menor importância na fala oficial do período imperial. Ou seja, a narrativa de Palmares esteve quase anulada neste período, sendo que Zumbi não foi totalmente esquecido por causa da divulgação do manuscrito Relação.337
Como podemos observar, o século XIX foi marcado pelas discussões em torno do fim
da escravidão e da libertação do grande número de escravos que compunha a sociedade
brasileira ao longo do século. Dessa maneira o Quilombo dos Palmares ocupou no repertório
dos indivíduos letrados que se empenhavam em construir uma cultura que se queria nacional e
civilizada, um lugar diminuto: um incidente, sem dúvida preocupante para uma sociedade
escravista, mas nada que o poder dos senhores de então, encarnado no herói paulista, não
soubesse bem contornar.338 Isso não significa que essa produção historiográfica estava
resumida a isso, mas essas eram as suas características predominantes e que se sobrepunham
as demais. Um exemplo de possibilidade metodológica, de certa maneira, positiva,
introduzida por autores que vivenciaram esse momento da tradição, são as comparações e
associações feitas da sociedade palmarina com as já existentes no continente africano. Este
período encerra-se no ano de 1901, pois a partir desta data foram publicados documentos que
possibilitaram uma valorização da história palmarina.
Nina Rodrigues como modelo de escrita
Até a década de 1950 a pesquisa sobre o negro no Brasil teria vivenciado, pelo menos,
dois momentos distintos ou duas gerações. O primeiro momento é o da fundação, no qual são
iniciados na virada para o século XX no Brasil os estudos sobre os africanos e seus
descendentes, desenvolvidos por intelectuais que interpretariam as teorias do racismo
científico339 no século XIX – divulgadas e produzidas por intelectuais europeus e
estadunidenses – de uma maneira original ao explicar a realidade do negro e do mestiço. O
segundo momento acontece na década de 1930, quando os estudos consolidam-se com a
fundação das universidades no Brasil, pois, junto com estas instituições, surgiram os
337 REIS, Andressa M. B. dos. op. cit. 2004. p. 45. 338 FRANÇA, Jean Marcel e FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. 2012. p 82. 339 O termo racismo científico é utilizado por diversos antropólogos e historiadores, para designar as teorias cientificas do século XIX que dividiam e explicavam a humanidade a partir do conceito de raças, existem duas correntes: a poligenista, cuja as diversas raças teriam origem distintas e desenvolvimentos diferentes; e a monogenista, na qual a origem das raças seria única com níveis diferentes de desenvolvimento. Existem outras designações para as teorias do racismo científico, também conhecidas como: racialista ou raciologia.
148
primeiros especialistas das humanidades, profissionalizando as áreas de atuação intelectual.
Ocorre nessa transformação um aprimoramento do rigor científico, devido à adoção de teorias
e metodologias específicas, a entrada de teorias da antropologia cultural norte-americana que
trouxe grandes mudanças epistemológicas em trabalhos que procuram analisar as
problemáticas da nação.
Nina Rodrigues foi um dos precursores da primeira geração, realizando as primeiras
pesquisas sistematizadas sobre a população negra. Em “Os Africanos no Brasil” acha-se uma
epígrafe de Silvio Romero, intelectual e jurista sergipano que realizou importantes pesquisas
sobre a literatura e cultura brasileira a partir da década de 1870, nos moldes das teorias do
racismo científico. Reproduziremos integralmente o trecho encontrado no livro:
É uma vergonha para a ciência no Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e religiões africanas.
Quando vemos homens, como Bleek, refugiarem-se dezenas e dezenas de anos nos centros da África somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido nesse sentido! É uma desgraça.
Bem como os portugueses estanciaram dois séculos na Índia e nada ali descobriram de extraordinário para a ciência, deixando aos ingleses a glória da revelação do sânscrito e dos livros bramânicos, tal nós vamos levianamente deixando morrer os nossos negros da Costa como inúteis, e iremos deixar a outros o estudo de tantos dialetos africanos, que se falam em nossas senzalas! O negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e mau grado sua ignorância, um objeto de ciência.
Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas ... vão morrendo. O melhor ensejo, pode-se dizer, está passando com a benéfica extinção do tráfico. Apressem-se, porém, senão terão de perdê-lo de todo.340
Como observamos no texto, Romero clama para que os especialistas se apressem, pois
os últimos africanos estariam prestes a desaparecer do Brasil. Ao colocar essa epígrafe,
Rodrigues colocou o seu trabalho como uma resposta ao clamor de Silvio Romero,
posicionando-se na posição do pesquisador que respondeu ao chamado e assumiu sua
responsabilidade. No final da Introdução do livro, fica bem claro o seu papel como precursor,
ao afirmar que: “É a um ensaio de sistematização destes estudos que consagro o presente
livro, destinando-o ao conhecimento de uma das preliminares do problema, a história dos
340 ROMERO, Silvio. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. Apud: RODRIGUES, Raimundo Nina. op. cit. 2010. p. 7
149
Negros colonizadores.” 341 De acordo com Rodrigues não lhe constava quem houvesse feito
isso.
Membro destacado da segunda geração dos estudos sobre os negros no Brasil, Arthur
Ramos surgiu no ambiente acadêmico, aproximadamente vinte anos depois da morte de Nina
Rodrigues. Faz parte de uma geração que junto com Gilberto Freyre, Edson Carneiro e outros,
procuraram pensar o papel do negro na sociedade e culturas brasileiras, a partir da perspectiva
da antropologia cultural estadunidense, dialogando com o pensamento de Franz Boas e de
seus discípulos, tema que será melhor explicado em outro capítulo. Se Arthur Ramos e
Raimundo Nina Rodrigues são membros de gerações distintas, quais as semelhanças e as
diferenças entre eles? Por que é tão importante para o desenvolvimento dessa dissertação a
comparação entre seus textos?
Para nós é notório que Arthur Ramos, ao revisar os conceitos e as ideias de seu
“mestre”, aproveita muito do que ele tinha produzido, compreendendo as obras dele como
clássicas nos estudos dos negros e utilizando-as como fonte para suas pesquisas. Isso acaba
também por dar nome a Nina Rodrigues e um reconhecimento que estranhamente ele não
alcançou em vida, principalmente pelo radicalismo de suas ideias. Outra importante
proximidade é o método comparativo desenvolvido por Rodrigues, que Ramos adotou para
suas pesquisas sobre o Negro brasileiro, cujo objetivo era “investigar as sobrevivências
culturais no Brasil, fazendo o cotejo comparativo com culturas idênticas no Continente
Negro”.342
Esses pesquisadores não produziram um discurso sobre os africanos e seus
descendentes alheio à sociedade, pelo contrário, havia um diálogo entre eles, como
representantes, e seus objetos de pesquisa, o Outro.
Nina Rodrigues e Arthur Ramos, tornaram-se ogãs de candomblés na Bahia, ou seja,
receberam um título honorífico que é conferido pelo chefe do terreiro – ou por um orixá
incorporado –, aos beneméritos do ilê que contribuíram com sua riqueza, prestígio e poder.
Ao receberem esse título assumiram uma postura de proteger esses grupos religiosos. Dessa
maneira podemos concluir que essa representação era negociada ou dialogada. Para Ramos
isso seria mais evidente, devido a sua influência dentro do movimento negro e da imprensa
341 RODRIGUES, Raimundo Nina. op. cit. 2010. p. 18 342 RAMOS, Arthur.op. cit. 1956. p. 97 ; RAMOS, Arthur.op. cit. 1951. p. 93.
150
negra como intelectual e defensor da democracia social e étnica, pois, na década de 1940 ele
confirmaria a ideia de “democracia racial”.343
Desde a década de 1890 o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues inicia a sua
vasta produção. Radicado desde 1891 na Bahia como professor da Faculdade de Medicina,
dedica-se primeiro a medicina legal, mas posteriormente expandiu sua atuação também para
outros campos, como a psicologia, a criminologia e a etnologia. Dentre as suas últimas
produções estão os textos sobre o Quilombo dos Palmares, uma série iniciada no dia 20 de
agosto de 1905 no jornal “Diário da Bahia” e continuada nos dias 22 e 23 do mesmo mês.
Embora sejam escritos históricos, ou melhor, historiográficos, podem ser compreendidos
como próximos às suas produções de etnologia, como discorreremos no decorrer deste
capítulo.
Estes textos foram condensados num formato único e republicados com o nome de
“Troya Negra” outras três vezes, quase sem alteração de conteúdo. Esta versão foi publicada
pela primeira vez ainda em 1905 na “Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano”344 (RIAGP). A segunda publicação ocorreu em 1912, desta vez na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), confirmando a importância de sua
produção bem como a relevância de Nina Rodrigues como intelectual, pois, era uma versão
igual a do RIAGP.345 A última publicação aconteceu em 1933, no seu livro póstumo “Os
africanos no Brasil”346, um projeto interrompido por sua morte inesperada em 1906.
Com relação aos documentos, o escrito do médico não trouxe grandes novidades,
retomou a utilização dos relatos do batavo Gaspar Barleus, produzidos durante o domínio
holandês em Pernambuco. Esse relato foi publicado com o título “História dos feitos
recentemente praticados durante oito anos no Brasil”347, apenas uma pequena parte desse
343 Jeffrey Lesser demonstra que as identidades étnicas no Brasil foram negociadas entre os grupos marginalizados e a elite políticas e intelectuais, uma negociação que com certeza não parte da premissa de igualdade entre as partes, pelo contrário serviria para os grupos marginalizados conquistarem melhores condições na sociedade e, por outro lado, serviria para as elites controlarem e manterem a ordem, Ver LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Ed. UNESP, 2001 344 RODRIGUES, Nina. A Troya Negra: erros e lacunas da História de Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. Recife, v.11, n.63, p. 645-672, set., 1904. 345 RODRIGUES, Nina. A Troya Negra: erros e lacunas da História de Palmares. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. t. 75, v. 125, p. 231-258, 1912. 346 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010. Disponível em: <http:/www.bvce.org> 347 BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. São Paulo: Edusp: Itatiaia, 1974.
151
documento trata do combate aos mocambos dos Palmares. Um dos grandes méritos do texto
de Nina Rodrigues é que, após sua utilização do relato de Barleus, este passou a ser uma das
principais referências para o estudo do quilombo em suas origens, como observou Andressa
M. B. Reis.348
Outra contribuição seminal de seu trabalho foi a indicação de que os mocambos dos
Palmares teriam sido destruídos por várias vezes, para depois serem reorganizados em outros
lugares da mata. Essa conclusão contrariava a versão corrente na historiografia até então, a de
que haveria um mesmo e contínuo Palmares da sua fundação até o final. Nina ainda constituiu
a cronologia de Palmares em três fases: Fase holandesa, de 1630 até a entrada de Rodolfo
Baro em 1644; Fase da Restauração Pernambucana, que teria ocorrido de 1654 até a entrada
de Fernão Carrilho em 1678; e Fase terminal, correspondendo ao período de 1679 até a
destruição total em 1697. Nina considera também que houve conjugada a grande mobilidade
territorial da sede do Quilombo uma mudança nas lideranças, assim, Zumbi seria um título de
chefia e houve, portanto, vários zumbis durante a existência dos Quilombos dos Palmares.
A maior colaboração de “Troya Negra” para a historiografia sobre o Quilombo dos
Palmares está na ênfase dedicada à observação da composição racial, organização política,
estrutura social e produção cultural desse espaço negro. Antes dos escritos de Nina Rodrigues
não existiam trabalhos que explicassem, de maneira aprofundada como eram os mocambos.
Os escritos que mencionavam algo sobre a organização interna desses espaços eram sempre
curtos. Até o século XVIII, as narrativas históricas sobre Palmares se dedicavam as guerras
impostas pelos colonizadores batavos ou portugueses. E durante o século XIX, a
historiografia narrou o heroísmo dos que teriam derrotado o Quilombo, principalmente o
grupo do bandeirante paulista Domingos Jorge Velho.349 Os historiadores França e Ferreira
afirmaram acertadamente que a grande novidade do ensaio de Rodrigues era que ele teria feito
“de Palmares um problema a ser discutido pelos estudiosos brasileiros, uma questão
importante para entender o papel do negro na sociedade de então e o porquê da incapacidade
de tal sociedade em avançar rumo à dita civilização.”350
348 REIS, Andressa M. B. dos. op. cit., 2004. p. 23 349 Essas colocações sobre a historiografia palmarina do século XVII ao XIX podem ser observadas em dois trabalhos: REIS, Andressa M. B. op. cit. 2004; FRANÇA, Jean M. C.; FERREIRA, Ricardo A. op. cit. 2012. p. 92. 350 FRANÇA, Jean M. C.; FERREIRA, Ricardo A. op. cit. 2012.
152
O silêncio da produção anterior a Rodrigues sobre a composição dos refúgios poderia
ser facilmente explicado pela falta de documentos produzidos pelos próprios palmarinos.
Porém, preferimos a explicação de que antes do período vivenciado por Nina Rodrigues não
havia um interesse351 das elites letradas em compreender o Quilombo dos Palmares ou
qualquer espaço dos negros.
O interesse por parte dos intelectuais e das elites sobre os negros surgiu com as
transformações ocorridas depois da década de 1870, quando começaram a ser escritos os
primeiros ensaios e debates sobre o “racismo científico” no Brasil pari passu com o
acirramento dos debates sobre a abolição. Consequentemente, ocorreu o início das discussões
sobre o papel dos africanos e seus descendentes na nação e, da mesma forma, sobre a
substituição da mão de obra escrava pela mão de obra livre branca e europeia.
Transversalmente, cresceu a participação econômica e social dos negros nas grandes
cidades352, aumentando ainda as reações violentas promovidas em muitas fazendas e
engenhos do interior353. Funda-se nesse momento a importância dos negros como um
problema a ser estudado e discutido pelas elites, intensificada após dois acontecimentos, a
promulgação da Lei Áurea e o início da República, quando os negros e mestiços se tornaram
um grupo social livre e “participativo” politicamente.
Essa explicação está de acordo com a perspectiva do historiador brasilianista Thomas
Skidmore, para o qual desde a década de 1870 as ideias racistas foram recepcionadas no
Brasil, alcançando uma posição predominante no pensamento entre os anos de 1888 a 1914.
354 Perspectiva que foi consolidada por outros autores, como os sociólogos Renato Ortiz e
Sergio Costa.355 É necessário fazer uma observação sobre o ponto de vista de Skidmore, uma
vez que este considerou que as ideias racistas tenham sido copiadas ou importadas pelos
intelectuais brasileiros. Discordamos dessa suposição, pois acreditamos que houve uma
351 Sobre o papel da evolução dos interesses sociais e culturais nas mudanças dos projetos de pesquisas que lançam suas perguntas à tradição da qual emergem, ver: MARTINS, Estevão C. de R. Historiografia: o sentido da escrita e a escrita do sentido. In: História & Perspectivas. Uberlândia (40): 55-80, jan.jun.2009. p. 58-61 352 A pesquisa de Sidney Chalhoub demonstrou que os negros e crioulos eram sujeitos ativos nas grandes cidades, utilizando até o sistema judiciário em seu favor. Ver: CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas na escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 353 A historiadora Celia Maria M. de Azevedo observou a pressão ocasionada pelas ações violentas de escravos nas fazendas de café e a reação de senhores de escravos, políticos e intelectuais em São Paulo aos eventos. Ver: AZEVEDO, Célia Maria M. op. cit. 2004. 354 SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 54-95. 355 COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 151-194.; ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. p. 13-35.
153
singularidade do “racismo cientifico” brasileiro, como Lilia M. Schwarcz afirmou, gerado
pela incompatibilidade entre a expectativa negativa das teorias estrangeiras sobre os mestiços;
e as expectativas dos “homens de ciência” do Brasil que ao pensar a nação se depararam com
a realidade de um país mestiço.356
O interesse das elites era movido por uma preocupação com o lugar do negro na
sociedade, partindo de um “consenso” sobre a inferioridade dos africanos e seus descendentes
e, também, partindo do desejo de afastar o negro do seio da sociedade. No entanto, essas elites
sofreram com uma tensão gerada pela impossibilidade desse afastamento, porque, apesar dos
pesares, desde o início da colonização o negro já integrava a sociedade e, com a República,
esse grupo passou a se tornar ainda mais participativo junto aos políticos, jornalistas, literatos,
associações, etc. Por causa desse crescimento na participação social e política do negro,
tornou-se urgente para as elites brasileiras pensar como o afrodescendente participou,
participa, ou poderia e deveria participar da formação da nação brasileira.
Nina Rodrigues denominou essa preocupação como o ‘problema “O Negro” no
Brasil’357 e acabou tornando-se o primeiro intelectual brasileiro a realizar pesquisas científicas
sobre os africanos e seus descendentes, pioneirismo já reivindicado por ele no seu livro “Os
africanos no Brasil”.358
Existem dois pontos de vista sobre a obra de Nina Rodrigues e sobre sua interpretação
da história de Palmares. O primeiro o coloca como inaugurador dos estudos culturalistas sobre
os negros no Brasil. Essa perspectiva parte da releitura feita por Arthur Ramos, junto com os
grupos de intelectuais da “Escola Nina Rodrigues” e dos “Estudos Afro-brasileiros”, em
atividade nas décadas de 1920 e 1930.359 Essa visão foi compartilhada por diversos
historiadores que analisaram a historiografia sobre o Quilombo dos Palmares.360 O segundo
ponto de vista, foi iniciado por cientistas sociais que estudam os escritos sobre raça no Brasil
desde a década de 1960, tendo uma de suas formas mais bem acabadas no livro “Ilusões da
356 SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1970-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 357 Essa denominação foi feita por Nina Rodrigues.Ver: RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. op. cit. p.9. 358 Ele reivindica esse pioneirismo ao colocar como epígrafe um texto de Sylvio Romero que convoca pesquisadores para investir no tema. A cientificidade é afirmada durante toda a obra. Ver a epígrafe em: RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 7. 359 Infelizmente nesse artigo é impossível explicar que grupos são esses, mas é preciso dizer que esses grupos reivindicaram a herança intelectual do “mestre” Nina Rodrigues com relação aos estudos dos negros. 360 Os seguintes trabalhos compartilham dessa perspectiva: GOMES, Flávio dos S. op. cit. 2005. p. 33; FUNARI, Pedro Paulo; CARVALHO, Aline Vieira. op. cit. 2005. p.35; FRANÇA, Jean Marcel C.; FERREIRA, Ricardo Alexandre. op. cit. 2012.
154
liberdade”, escrito pela antropóloga Mariza Corrêa que afirma o “racismo científico” como
uma característica marcante e fundamental nas produções do médico maranhense, sendo
impossível colocá-lo simplesmente dentro de uma abordagem culturalista.361 A historiadora
Andressa Reis, em sua dissertação, coaduna com a interpretação de Mariza Corrêa, e observa
no Palmares construído por Rodrigues a influência das teorias do “racismo cientifico”.362
Nossa diferença em relação às duas proposições anteriores é entender que os escritos
de Nina Rodrigues sobre o Quilombo dos Palmares não devem ser ligados unicamente ao
“racismo cientifico”, ou tomados exclusivamente como uma abordagem “culturalista”:
partimos de uma perspectiva que estes foram produzidos numa dialética, pois propomos que
existe uma tensão que incide na sua construção de Palmares, gestada no debate entre o
determinismo biológico e as ideias atingidas por ele em pesquisas etnográficas sobre os
negros. O trabalho de alguns autores nos permite pensar dessa maneira. De acordo com o
trabalho de Lilia M. Schwarcz, os intelectuais brasileiros não faziam a mesma leitura dos
pensadores do “racismo cientifico” na Europa, sendo que, para ela, esse pensamento era
transformado pelos pensadores locais. O historiador Ricardo S. Bechelli363, em sua tese,
apontou que Nina Rodrigues sofria com uma contradição ou tensão constante, tanto os seus
estudos abordaram e levaram ao conhecimento da cultura e vida do povo negro, quanto eram
marcados pela perspectiva da inferioridade biológica.
Essa tensão possibilitou a inovação da historiografia sobre o Quilombo com o enfoque
na organização interna, e ao mesmo tempo, uma utilização da classificação racial para
explicar essa organização. Entendemos que ao promover a mudança na abordagem
historiográfica sobre o Quilombo dos Palmares, Rodrigues lançou mão de elementos
linguísticos para construir novos significados. A estrutura narrativa de seus textos e a sua
semântica foram construídas a partir das tensões vivenciadas pelo autor, assim como estas
geraram novas tensões ao atribuírem outros significados aos elementos linguísticos antigos.
Nos tópicos seguintes procuraremos demonstrar: como ocorreu a transformação
produzida por Nina Rodrigues na historiografia sobre o Quilombo dos Palmares; como Arthur
Ramos leu os escritos de Rodrigues sobre o tema; que tipos de continuidade Ramos promoveu 361 CORRÊA, MARIZA. op. cit. 2001. p. 177; 223. 362 REIS, Andressa M. B. dos. op. cit. 2004. p. 84. 363 BECHELLI, Ricardo. Metamorfoses na interpretação do Brasil: tensões no paradigma racial (Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna). 2009. f. 420. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. 2001. p. 198.
155
da versão de Rodrigues; quais mudanças foram construídas por Arthur Ramos; o papel da
herança de Rodrigues nos escritos sobre Palmares de Ramos.
Consideramos uma prioridade a compreensão da produção dos ensaios e dos
significados construídos por Rodrigues, para poder compará-los aos de Arthur Ramos. Como
afirma Estevão Rezende Martins, seria tarefa da história da historiografia “analisar as
interpretações do tempo, as estratégias da verdade, a evolução e a construção de certezas
assim como os respectivos modelos narrativos”.364 Para realizar esse trabalho utilizamos a
desconstrução de Jacques Derrida como método. A proposta é enfrentar os textos por meio de
um mecanismo de abordagem que consistiria fundamentalmente no desmonte mesmo do texto
visando revelar tudo que nele existe, inclusive os significados que não se oferecem
explicitamente ao leitor.365
O modelo narrativo encontrado nos escritos de Nina Rodrigues é o que foi seguido
pelo Arthur Ramos, a estrutura do texto é o mesmo, apenas com pequenas alterações na
ordem dos temas. Provavelmente as pequenas alterações encontradas foram ocasionadas por
escolhas teóricas diferentes e devido às contingências enfrentadas por Ramos, já que seu texto
era parte de um livro introdutório e escrito sob encomenda. Em muitos momentos,
aparentemente Ramos repetiu o que já havia sido escrito por Rodrigues, esse tipo de situação
confirma o nosso argumento de que ele assume a herança do “mestre”, também, no seu estudo
sobre Palmares. Procurarei, a partir de agora, expor a organização dos textos “A Troya
negra”366 e “As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX – Palmares” 367, de
Nina Rodrigues, comparando com “A República dos Palmares”368, de Arthur Ramos.
Podemos verificar em ambos uma introdução destacando a importância do tema para
história do negro no Brasil. Nina Rodrigues abriu o seu escrito afirmando que algumas
insurreições dos negros escravos “(...) se tem feito grandiosas epopeias da raça negra. E a
mais sabida, sem dúvida a mais notável, dentre todas a que melhor escapou ao ingrato ouvido
364 MARTINS, Estevão Rezende. In: História & Perspectivas, Uberlândia, n.40, p. 55-80, jan/jun, 2009. p. 61. 365 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 4. reimp. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. 366RODRIGUES, Nina. A Troya Negra: erros e lacunas da História de Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. 1904. op. cit. p. 646-671. 367 RODRIGUES, Nina. As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX – Palmares. In: ______. Os africanos no Brasil. 2010 (1933). op. cit. p. 78-101. 368 RAMOS, Arthur. A República dos Palmares. In: ______. O Negro na civilização brasileira. 1971 (1939). op. cit. p. 65-75.
156
dos pósteros, foi aquela que impropriamente se crismou de República dos Palmares.”369 O seu
discípulo destacou a importância de Palmares, utilizando termos como: “(...) a primeira
grande epopeia que o Negro escreveu em terras do Brasil.”370
Logo em seguida, ambos delimitaram o recorte temporal em que sobreviveu Palmares,
que seria entre 1630 a 1697, mas, utilizando praticamente os mesmos termos, os dois afirmam
que os negros fugidos já se instalavam pela região desde o início do século XVII.371 O
próximo tema abordado dentro desses textos, foi o crescimento de Palmares durante o
domínio holandês pois a luta dos batavos com os portugueses teria dado forças a Palmares,
permitindo sua organização e crescimento. Nesse caso, Arthur Ramos cita Nina Rodrigues
como referência.372
Nina Rodrigues373 interpretou a existência do Quilombo dos Palmares como
descontínua devido às várias vezes que aquele foi destruído pelas expedições e devido a sua
capacidade de se reconstruir em outros lugares da mata. De acordo com ele, seria por causa
disso que Palmares teve vários líderes durante a sua história, explicando o que foi escrito por
Rocha Pita sobre a existência de vários Zumbis.
Essa interpretação dos eventos permitiu que o “mestre” lançasse mão de uma teoria da
divisão da história de Palmares em três fases: o Palmares holandês, do início até ser destruído
por Rodolfo Baro em 1644; o Palmares da Restauração Pernambucana, de 1644 até ser
destruído em 1678 pela expedição enviada pelo governador Dom Pedro de Almeida; e o
Palmares terminal, definitivamente destruído em 1697. O “discípulo” também trilhou esse
caminho, adotando a teoria das três fases e identificando seu “mestre” como seu autor, porém
ele não deu continuidade a perspectiva de que Zumbi era um cargo de liderança. Para Arthur
Ramos, Zumbi, ou Zambi (é assim que ele prefere denominar) foi um indivíduo, o sobrinho
do rei Ganga Zumba, que assumiu o trono após assassinar o seu tio acusando-o de traição.374
O “discípulo” adotou a versão do documento doado pelo Conselheiro Drummond ao IHGB,
369 RODRIGUES, Nina. A Troya Negra: erros e lacunas da História de Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. 1904. op. cit. p. 646; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 2010. op. cit. p. 79. 370RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 59.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 55. 371 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1904. p. 646; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. op. cit. 2010. p. 79; RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 59.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 56. 372 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 60.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 56. 373 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1904. p. 646; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010.. p. 79 374 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956 p. 60.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 56.
157
“Relação das guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do governador D. Pedro
de Almeida de 1675 a 1678”, publicado na Revista do IHGB.
Essa versão sobre a existência de Zumbi, foi utilizada por Mario Behring (1876-1933)
no artigo “A morte de Zumbi”, na Kosmos em 1906, revista literária que ajudou a fundar, e a
primeira vez que Zumbi recebeu estudo específico. Partimos do pressuposto que além da
leitura do próprio documento publicado na RIHGB em 1876, Arthur Ramos teria lido o texto
de Mário Behring375, pois ele foi publicado, novamente, na RIAGA em 1930 – quando
Behring ocupava o lugar de diretor da Biblioteca Nacional desde 1927 - e dificilmente como
membro do IAGA e pesquisador do negro ele ignoraria essa publicação. Procuraremos
discutir em outros momentos dessa dissertação o papel do Instituto alagoano na visão de
Ramos sobre o negro e sobre Palmares. Por ora podemos afirmar que a narrativa de Behring já
destinava tons heroicos aos feitos dos Palmarinos, especialmente do seu ultimo líder Zumbi.
O perfil do médico maranhense Nina Rodrigues para a etnologia é reconhecido, porém
nesses textos que fazem parte dos poucos escritos de história, ele desenvolve uma
surpreendente preocupação com a crítica documental. Ele expõe as documentações
encontradas que podem auxiliar a compreender cada fase de Palmares, além disso, durante o
texto ele faz diversas análises críticas aos documentos, utilizando a comparação na maioria
dos casos. Dois documentos foram destacados por Rodrigues376 como especiais para o estudo
do Quilombo, o primeiro foi o relato escrito durante o domínio holandês pelo batavo Gaspar
Barleus, o segundo foi o relato anônimo sobre as expedições enviadas por D. Pedro de
Almeida contra Palmares, esse documento foi publicado pelo IHGB em 1859. A partir desses
documentos Rodrigues construiu uma descrição da organização das povoações e das
disposições das habitações dentro dessas povoações, também obteve o nome de diversos
mocambos.
Sem a mesma sofisticação para explorar os documentos no texto como fez seu
“mestre”, Ramos apenas falou sobre esses dois documentos, sua importância para o seu texto
e os utilizou para demonstrar a organização das povoações e moradias.377 Junto com a
exposição desses dois documentos históricos, os dois autores afirmam que o relato doado pelo
conselheiro Drummond ao IHGB em 1959 delimita o território ocupado ou dominado pelos
375 BEHRING, Mário. A morte de Zumby. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. n. 14, v. 27, 1930. p. 143-151. 376 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1904. p. 648; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 80. 377 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 61-62.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 57-58.
158
quilombos em sessenta léguas, em vasta zona de palmeiras cortadas de matas, indo da parte
superior do rio São Francisco até o sertão do cabo de Santo Agostinho.
Evidentemente é muito possível que dois autores em momentos distintos consigam
organizar os seus textos de maneira muito parecida, até mesmo escolher os mesmos
documentos históricos, ou afirmar as mesmas coisas, respaldados por esses documentos.
Porém não podemos ignorar que nesse caso específico, o autor da geração posterior foi
introduzido nos estudos sobre o negro lendo o autor que ele alcunha de “mestre” e, com
relação ao conhecimento sobre o Quilombo dos Palmares, não deve ter sido diferente.
Contanto, também é muito possível que a leitura das fontes históricas feita por Arthur Ramos,
tenha sido feita, muitas vezes, através dos textos ou olhos de Raimundo Nina Rodrigues.
Na próxima etapa existe uma diferença nas estruturas dos textos. Nina Rodrigues
dedicou-se nesse estrato a expor primeiro a organização social, política, jurídica e a
desenvolver uma comparação de Palmares com Estados Africanos.378 Somente depois disso é
que Rodrigues narra as expedições contra Palmares, até o suicídio de um dos Zumbis e a
dissolução do Quilombo dos Palmares.379 Enquanto Arthur Ramos procurou primeiro expor a
sucessão de eventos que ocorreram em Palmares, principalmente utilizando os dois
documentos mencionados a pouco, percorrendo de maneira linear a história até o suicídio de
Zumbi e a destruição definitiva do Quilombo.380
Para encerrar, o “mestre” analisou a composição racial e a produção cultural dos
palmarinos, sendo esta a sua maior contribuição para uma nova perspectiva historiográfica
sobre o Quilombo, uma vez que procurou explicar como este havia se organizado e mantido
por tanto tempo e os motivos raciais de sua destruição. O seu discípulo encerrou seu texto de
modo parecido, explicando as organizações política, social, econômica, militar e cultural de
Palmares. As estruturas narrativas são homólogas, o que nos possibilita afirmar que os
trabalhos de Raimundo Nina Rodrigues foram compreendidos por seu “discípulo” como
modelos literários. A sensação causada pela leitura comparativa desses textos, em diversos
momentos, é que Arthur Ramos escreveu com os textos de Nina Rodrigues em mãos, se
preocupando apenas em impor o seu estilo próprio: os trechos abaixo demonstram como em
alguns momentos os textos dos dois autores são homólogos.
378 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1904. p. 649-653.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 82-86. 379 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1904. p. 653-665.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 86-95. 380 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 63-67.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 59-63.
159
Observem-se os seguintes trechos de Nina Rodrigues: “Macaco era então a cidade
real, a capital da federação. Tinha para mais de 1500 casas e era fortificada de um cerco de
pau a pique e de fojos e estrepes de ferro.”381; “Depois de sanguinolentas e brilhantes lutas em
1695 e 1696 que o Visconde de Porto Seguro lamenta não tenham tido cronistas, Palmares
tocava o seu termo.”382 Comparando-os aos trechos encontrados em Arthur Ramos na mesma
ordem apresentada anteriormente, as mudanças não são significativas tornando possível o
leitor reconhecer a proximidade imediatamente: “Cerca Real do Macaco era a capital daquela
confederação negra. Tinha mais de mil e quinhentas casas e era fortificada com uma cerca de
pau-a-pique com estepes de ferro.”383; “Infelizmente, esta última parte da história de
Palmares, não teve o seu cronista como lamentou o historiador brasileiro Varnhagen. Sabe-se
que as lutas se prolongaram anos seguidos e atingiram a sua intensidade máxima em 1695 e
1696.”384 O Visconde de Porto Seguro referenciado por Nina Rodrigues, é o historiador
Adolpho Varnhagen citado em Ramos.
381 RODRIGUES, Nina. A Troya Negra: erros e lacunas da História de Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. 1904. op. cit. p. 649.; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 2010. op. cit. p. 82. 382 RODRIGUES, Nina. A Troya Negra: erros e lacunas da História de Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano. 1904. op. cit. p. 663.; RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 2010. op. cit. p. 93. 383 RAMOS, Arthur. A República dos Palmares. In: ______. O Negro na civilização brasileira. 1971 (1939). op. cit. p. 68. 384 Ibid. p. 73.
160
IV. Metáforas diferentes
Nos próximos três capítulos, analisaremos alguns topoi importantes no discurso sobre
o Quilombo dos Palmares. Para alcançarmos tal propósito dialogamos com a “teoria da
interpretação” de Paul Ricœur385 e a sua concepção de que uma metáfora só tem sentido numa
relação com todo o texto, por isso podemos dizer que “Troya negra”, “República dos
Palmares” e “Estado Negro”, são enunciações metafóricas. Essas “enunciações metafóricas”
geram “impertinências semânticas”386, ou seja criam uma contradição dentro da enunciação,
na qual um termo que em seu uso normal é distante e estranho com relação a outro é utilizado
em seu lugar ou o caracteriza, com isso fazendo emergir um estranhamento que atribui um
novo significado. Assim como as enunciações geram as impertinências, também são criações
dessas impertinências uma vez que a metáfora é uma inovação semântica, uma criação
instantânea e é nesse estranhamento que surge um parentesco que a visão ordinária não
percebe.
Para realizar nossa análise, identificaremos as “impertinências semânticas” nas
enunciações metafóricas, através da comparação das tensões geradas pelas interpretações
anteriores à de Arthur Ramos. Acreditamos aqui que a intepretação de Ramos é produzida no
tempo “disjuntivo”, ou seja, na diferencia, estabelecida entre ele e a tradição que o antecedeu
e de quem ele é leitor. Por conseguinte, nosso objetivo é construir um “percurso” desses
significados e da escritura, considerando que esses elementos linguísticos constituem
“rastros” do processo de escritura e partiremos deles para investigar a produção dos
significados.387 Lembrando que esse tipo de abordagem que estamos propondo para os
próximos tópicos, depende diretamente da concepção de uma produção do Quilombo dos
Palmares como um espaço imaginativo,388 conceito explicado na Introdução. O que propomos
é observar uma esfera subjetiva, uma cena da produção da construção do espaço, Quilombo
dos Palmares.
A “Troya Negra”, foi como Nina Rodrigues chamou o Quilombo dos Palmares no
título do seu trabalho publicado na RIAGP, portanto, não é por acaso que esse é o primeiro
385 RICŒUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70, 1976. 386 RICŒUR, Paul. op. cit.1976. p. 61 387 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. . 4. reimp. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. p. 33-90. 388 SAID, Edward. op. cit. 2007. p. 54.
161
topos que analisaremos. O lugar de onde ele retirou esse está exposto de maneira clara no
próprio texto, ao utilizar o termo ele adicionou uma nota de rodapé: “Troya Negra chamou
Oliveira Martins a Palmares e Ilíada a sua história”389. Rodrigues repetiu o que o historiador
português lançou no século XIX, contudo não promoveu o mesmo sentido, pelo contrário, fez
críticas a versão liberal promovida por Oliveira Martins, embora partilhassem de algumas
concepções parecidas, como a compreensão que os negros eram uma raça de bárbaros. Por
sua vez em Arthur Ramos o termo Tróia Negra é utilizado apenas uma vez, mas devemos
compreender que o fato de ele ter repetido o topos se deve a importância que este ganhou
dentro da tradição.
O historiador português desenvolveu uma aproximação entre um povo da antiguidade
a “civilização” de Tróia e um grupo de negros “bárbaros” do século XVII.390 Em seu breve
relato utilizou o epíteto para qualificar e elogiar o ato heroico dos negros palmarinos,
afirmando que esse era mais um protesto contra a civilização e a condição miserável de
escravo, a exemplo dos que aconteceram na antiguidade. Para Martins, o final de Palmares foi
épico, mesmo quando a Tróia dos negros foi arrasada, “a memória dos seus heróis ficou e
ficará como um nobre protesto da liberdade humana contra a dura fatalidade da natureza,
cujas ordens impuseram à exploração da América a condição do trabalho escravo”.391 Se por
um lado, ele partilha de uma visão do processo histórico como, irremediavelmente, a
civilização se impondo a barbárie, por outro aproxima os negros aos romanos, parte dessa
mesma civilização, comparando os sequestros de mulheres índias e mestiças realizados pelos
palmarinos, com o rapto das sabinas promovido pelos homens de Roma. Rodrigo Turin392
pesquisou uma operação discursiva semelhante que ocorria no IHGB, durante o século XIX, a
aproximação entre “antigos” e “selvagens”. Para Turin a aproximação “era regulada por
aquilo que se esperava extrair da comparação simultaneamente enquanto efeito de
conhecimento e artifício retórico de persuasão: seja para enobrecer os indígenas, seja para
acusar sua irrecuperável inércia histórica”. 393
A ideia de Oliveira Martins obedecia a um pensamento que acreditava ser positiva, a
instalação dos negros em quilombos no interior da América Portuguesa, pois se estes negros
389 RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1905. p. 663.; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1912.p. 250 ; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 2010. Op. cit. p. 94. 390 MARTINS, Oliveira. O Brasil e as colônias portuguesas. 5. ed. Lisboa: Livraria Editora Parceria A. M. Pereira, 1920. [1880] 391 MARTINS, Oliveira. op. cit. 1920. p. 66. 392 TURIN, Rodrigo. op. cit. 2010. 393 Ibid. p. 136.
162
voltassem a África retornariam ao nível de barbárie inicial.394 Observe que, nesse caso,
Palmares é um espaço intermediário entre o totalmente civilizado dos estados brancos e o
bárbaro das demais raças, assim como Tróia estava entre a civilização grega e a Ásia.
Nina Rodrigues transforma o sentido da metáfora em algo ainda mais complexo:
inicialmente os negros e mulatos são considerados inferiores aos brancos, uma vez que é
impossível “conceder, pois, aos negros como em geral aos povos fracos e retardatários,
lazeres e delongas para uma aquisição muito lenta e remota da sua emancipação social”,395
Depois estabelece hierarquias raciais internas aos negros, distinguindo diversas raças dentro
dessas escalas hierárquicas – chamitas africanos, negros bantos, negros sudaneses e negros
insulani. Essas raças subdividem-se em povos “que entre eles existem graus, há uma escala
hierárquica de cultura e aperfeiçoamento” e sofrem “diante da necessidade de, ou civilizar-se
de pronto, ou capitular na luta e concorrência que lhes movem os povos brancos, a
incapacidade ou a morosidade de progredir, por parte dos negros, se tornam equivalentes na
prática”.396 Nina Rodrigues sempre buscou entendê-los como inferiores e superiores entre si:
“se comparam os povos Bantos aos Sudaneses, tem-se a impressão de que, através de toda a
culta e sanguinária barbaria dos últimos, povos há no Sudão que atingiram a uma fase de
organização, grandeza e cultura que nem foi excedida, nem talvez atingida pelos Bantos”.397
Nina Rodrigues, diferentemente de Oliveira Martins e dos demais autores que haviam
escrito sobre Palmares, procurou na composição racial as respostas para a existência,
organização e crescimento do reduto. A partir de um estudo das línguas africanas, ele
procurou identificar a raça predominante que dirigia o Quilombo. No seu entendimento, a
língua era o veículo em que os negros transportaram para Palmares as suas tradições do
governo e as suas crenças em África.398 Ao analisar os termos e denominações de corrente uso
em Palmares nos escritos dos viajantes e nos relatos de guerra e aliar isso ao estudo das
origens dos escravos que entraram em Pernambuco, concluiu que: “esculpiu-se indelével na
República dos pretos a influência diretora dos negros meridionais ou bantos”.399
394 REIS, Andressa M. B. dos. op. cit. 2004. 395 RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p.290 396 Ibid. p.290 397 Ibid., P.297 398 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1905. p. 667.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 1912.. p. 253.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 97. 399 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1905. p. 667.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 1912. p. 254.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 97.
163
Esse grupo da África Meridional é entendido por Rodrigues como inferior aos demais
negros, caracterizados por uma “pobreza mítica”, que segundo ele, está “perfeitamente
reconhecida e demonstrada”, e lhes possibilitou adotar uma “caricatura da religião católica
dos colonos”.400 O médico maranhense afirma que eram “negros fetichistas os que ali se
congregaram, ou pelo menos os que deram organização e governo a Palmares”401. De acordo
com o antropólogo Kabengele Munanga, especialista nos estudos sobre os afro-brasileiros:
“Nina lança a ideia da incapacidade psíquica das ditas raças inferiores para assimilar as
elevadas abstrações do monoteísmo”402. Mesmo quando ocorre uma suposta adoção do
catolicismo, há a persistência do fetichismo africano como expressão do sentimento religioso
inferior do negro e mestiço.
Ao entender o Quilombo de Palmares como um espaço banto, ele também está
definindo-o como um espaço inferior racialmente. Essa inferioridade se aplica a uma
hierarquia que está além da branco-superior em oposição ao negro-inferior. Ela diz respeito à
afirmativa de que era um espaço inferior dentro de uma hierarquia das diversas raças negras.
Logo, mesmo que Palmares suscite algumas boas impressões para o autor, a sua luta e a sua
sublevação é, antes de tudo, resultado da inadequação dessas raças ao espaço da civilização
branca ocidental. Analisando a produção da espacialidade de Palmares, entendemos que é um
espaço dentro dos espaços Negros, inferior racialmente e de uma “pobreza mítica” ou cultural
reconhecida.
O significado “positivo” que foi colocado por Oliveira Martins do Quilombo como um
espaço intermediário entre a barbárie e a civilização, é transformado por Rodrigues num
entrave, um inimigo do avanço civilizacional da nação brasileira. Acaba negando qualquer
possibilidade do Quilombo ter uma herança da civilização, pois estaria em um estágio
subalterno de raça, mentalidade e, consequentemente, de cultura. Exemplo disso é uma crítica
negativa feita aos “historiadores entusiastas de Palmares” que haviam comparado a atitude
dos palmarinos de raptar as mulheres nos engenhos e fazendas, com o feito histórico do roubo
das Sabinas. Segundo ele, essa comparação errada servia “(...) para firmar, para os Negros,
neste traço acidental de fortuita parecença com os dominadores do mundo antigo, novo título
400 RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 97, 247. 401 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1905. p. 666. ; RODRIGUES, Nina. op. cit. 1912. p. 252.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 96. 402 MUNANGA, Kabengele. Negros e mestiços na obra de Nina Rodrigues. In: ALMEIDA, Adroaldo J. S. et. al. (org.). Religião, raça e identidade: colóquio do centenário da morte de Nina Rodrigues. São Paulo: Paulinas, 2009. V. 6. Coleção estudos da ABHR. p. 21.
164
de admiração”.403 Essa comparação com o “rapto das sabinas” havia sido feita primeiro pelo
historiador Sebastião da Rocha Pita404 em 1724. Todavia se recordarmos agora o que foi dito
anteriormente sobre Oliveira Martins, vemos que ela foi repetida pelo historiador português
em 1876, portanto a crítica de Rodrigues está direcionada a Martins e aos historiadores que
deram continuidade a sua versão.
Fator intrigante da interpretação de Nina Rodrigues da “Troya Negra”, é que o termo
aparece apenas duas vezes nos ensaios de 1905 e de 1912, no título e próximo ao final do
texto. Na versão de “Os africanos no Brasil”, só aparece uma vez, na parte final, pois é
retirado do título, já que o capítulo sobre o tema é intitulado: “As sublevações de negros no
Brasil anteriores ao século XIX – Palmares”. O momento de sua aparição no corpo do texto é
especificamente quando o autor relata o fim do Quilombo: “Em 1695 estava, pois, destruída a
Troya Negra.”405 É possível que para ele a familiaridade entre Tróia na antiguidade e o
Quilombo dos Palmares, se coloque no entendimento de que ambos foram destruídos para o
avanço da civilização.
Como já havíamos escrito Arthur Ramos só menciona o epíteto uma vez.
Evidentemente que a análise sobre o uso e a interpretação da metáfora em seu texto não está
resumido a quantidade de vezes que o termo aparece, mas a sua importância e ao que ele
revela sobre a perspectiva de seu autor. Uma análise da “escritura”, mas do que de uma
oração, nos fará compreender o percurso dessa significação. Em primeiro lugar devemos
retomar a questão da herança construída por Ramos, como havíamos afirmado anteriormente,
não podemos confundir a herança com uma repetição, na realidade ela é algo novo ligado ao
passado, ou melhor, a uma determinada perspectiva do passado. De fato Arthur Ramos repetiu
a estrutura narrativa de Rodrigues, utilizando os textos do seu “mestre” como modelo
narrativo, mas ele construiu impertinências semânticas no enredo e revestiu de uma nova
representação.
O debate sobre a morte de Zumbi é um bom instrumento para medir como foram
complexas as mudanças na representação sobre Palmares. Estamos em busca de demonstrar
que Arthur Ramos utilizou o topos estabelecido por Nina Rodrigues, porém operando
403 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1905. p. 649.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 1912. p. 235 ; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 82 404 REIS, Andressa. op. cit. 2004. p. 35. 405 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1905. p. 663.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 1912. p. 249.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 94.
165
transformação de sentido da enunciação metafórica, para o antropólogo alagoano a Tróia
Negra seria uma maneira de ver Palmares como épico e heroico. Nos Institutos Arqueológicos
e Geográficos de Pernambuco e Alagoas, o tema Palmares tonou-se importante durante a
segunda metade do século XIX, principalmente com propósitos de uma construção da história
local conjuntamente com a história nacional promovida pelo IHGB406, como demonstramos
anteriormente essa narrativa ou perspectiva estava preocupada em abordar a imagem dos
expedicionários e destruidores do Quilombo promovendo uma história dos “heróis” locais.
Porém no início do século XX, particularmente durante as décadas de 1910 e 1920 as
narrativas dessas duas instituições foram paulatinamente modificando-se, primeiro Palmares
ganharia centralidade como objeto de estudo seguindo a linha de Nina Rodrigues, depois
esses estudos desenvolveriam um modo de ver próprio em que o Quilombo seria um ato
heroico, épico e a colonização portuguesa seria alvo de críticas. Escolhemos apenas um
subtema comum para analisarmos diversos escritos ao longo de cinquenta anos, acreditamos
que observar as diversas narrativas sobre morte de Zumbi, possibilitará mostrar o percurso de
uma metáfora ou rastro, na escritura de Ramos.
Oliveira Martins pode ser o começo dessa trajetória, pois a ideia de heroísmo dos
negros palmarinos é parte do seu discurso e, é fundamental para que ele tivesse chamado
Palmares de Troya negra, como já mostramos. Antes de lermos a citação, devemos
compreender que a sua concepção de Zumbi, não é muito clara, aparentemente ele
compreende apenas como o título de rei. A cena descrita por ele dessa forma:
Caiu a república, destruída pelas armas portuguesas, mas caiu epicamente como uma Troya de negros voltados à vida bárbara. Vencidos, mortos, esmagados pela força, rotas as fortificações, aberto de par em par aos invasores o ninho da sociedade nascente, os palmarinos não se submeteram, suicidaram-se. O zambi com os rotos destroços do seu exércitos precipitou-se do alto de um penhasco, e os cadáveres dos heróis vieram rolando despedaçados cais aos pés dos portugueses vitoriosos. (...)
A Troya dos negros foi arrasada, mas a memória dos seus heróis ficou e ficará como um nobre protesto da liberdade humana contra a dura fatalidade da natureza, cujas ordens impuseram à exploração da América a condição do trabalho escravo.407 [grifo nosso]
406 Sobre o projeto de uma construção da história e identidade nacional, ver: GUIMARÃES, Manuel L. S. op. cit. 1988. op. cit. p.5-27. 407 MARTINS, Oliveira. op. cit. 1920. p.66-67
166
A ideia de luta pela liberdade contra a escravidão está presente em sua concepção, o
Quilombo tornou-se um símbolo da inata concepção de liberdade do homem. Contudo, como
está colocado no ultimo parágrafo da citação, em que pesam as palavras: a dura fatalidade da
natureza; os povos africanos e nativos da América viveriam no estágio de barbárie, com isso
coube aos europeus totalmente civilizados, dominá-los e submetê-los ao processo de
civilização. Ideias muito comum nos intelectuais do final do século XIX, principalmente
depois da divulgação das teorias do evolucionismo cultural defendidas por Lewis Henry
Morgan, Edward Burnett Tylor e James George Frazer. Em 1877, Morgan escreveu um livro
conhecido como “A sociedade antiga”, nele estava desenvolvida a sua ideia de três estágios
evolutivos: Selvageria-Barbarie-Civilização; o primeiro seria o estágio primitivo ou menor de
uma sociedade, o segundo o estágio intermediário e, o último o estágio de uma sociedade
desenvolvida, cujo o ápice eram as sociedades modernas da Europa ou Ocidente. Portanto, a
concepção heroica impressa por Martins colocava a impossibilidade dos negros vencerem a
sociedade colonial, devido a sua inferioridade cultural.
Contraditoriamente, pelo menos aparentemente contraditório para nós, o pensador que
proporcionou os primeiros estudos do negro nos meios intelectuais e analisou a organização
social e cultural dos negros, foi o grande opositor da ideia de heroísmo dos negros palmarinos
na historiografia do século XX. Essa ambivalência era comum para as ideias do período de
transição, especialmente entre 1870 a 1930, pois esse foi um período profícuo de ideias para
explicar a nação, a sociedade e a raça, basicamente as ideias de centros culturais da Europa e
Estados Unidos eram traduzidas408 por intelectuais brasileiros gerando novas ideias a partir
delas.
Nina Rodrigues, assim como Martins, era um grande leitor das teorias do
evolucionismo cultural, basta ler “Os africanos no Brasil” para perceber isso. Todavia ele
promoveu uma interpretação diferenciada quando misturou com a sua base teórica, o
radicalismo das teorias raciais poligenistas. Rodrigues percebia os negros, mais ainda os
mestiços, como inferiores racialmente, isso significava que esses grupos deveriam ser
inferiores nos âmbitos biológicos (genético), físicos, mentais e culturais, sendo assim, ou era
impossível para esses povos civilizar-se ou o processo de civilizar-se era muito mais lento do
408 O conceito de tradução utilizado é referente a ideia de Jacques Derrida sobre a impossibilidade de traduzir, nada é totalmente traduzível, pois existe uma diferencia na linguagem daquele que enunciou primeiro e de seu tradutor. Portanto toda tradução produz uma coisa nova. Ver: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002.p. 127.
167
que o dos brancos (europeus). Por isso, em sua perspectiva era necessário o domínio dos
brancos sobre os negros, evidentemente era a partir desse domínio que ele interpretou a
formação da sociedade brasileira. Vejamos a sua crítica direcionada a interpretação de
Oliveira Martins e aos propagadores dessa leitura:
O sentimento de simpatia pela misera sorte dos negros escravizados, que é a generosa característica da nossa época; a justa admiração pelo valor e denodo com que Palmares soube defender-se; e ais ainda o sacrifício de seus chefes, preferindo o suicídio ao cativeiro ou à punição, no que se quer encarnar um culto heroico à liberdade, tem fascinado a muitos historiadores e publicistas que, na exaltação da republica, quase chegam a lamentar o seu extermínio.409
O funcionário da Biblioteca Nacional e criador da revista Kosmos, Mario Behring escreveu em
1906 um pequeno texto sobre Palmares, no qual de caso pensado faz uma narrativa diferenciada sobre
a existência de Zumbi e sobre a sua morte. Reafirmo que ele sabia o que estava por fazer com a
historiografia sobre o Quilombo, já que intitulou o texto de “A morte de Zumby”. Para Andressa
Reis410, “a maneira como Mario Behring descreveu a morte de Zumbi, causou uma mudança
definitiva sobre o modo de se entender a figura de Zumbi”. Predominaria nos textos dos membros
dos institutos pernambucano e alagoano o tom epopeico dos acontecimentos e uma visão heroica
sobre os negros palmarinos, principalmente sobre Zumbi:
Entretanto a morte em combate assim verificada não lhe diminui em nada a grandeza de valor. E os próprios documentos oficiais se encarregam de dar grande proporção ao vulto do herói negro que resistiu impávido a um exército de 7.000 soldados aguerridos, digno sem duvida de figurar na gloriosa galeria dos mártires da liberdade. 411 [grifo nosso]
A ideia de luta pela liberdade prevalece nas concepções posteriores sobre Palmares.
Uma hipótese apresentada por Andressa Reis é que teria essa concepção a ver com a origem
maçônica de Behring e de outros autores posteriores, como é o caso dos dois escritores
pernambucanos Manoel Arão (1876-1930) e de Mário Melo.412 Vejamos como o escritor
pernambucano e membro do IAGP abordou a morte de Zumbi:
Mas bem se nos afigura que a lenda fique de pé e é justo que tal seja. Por que ela é o lógico remate dessa brava epopeia que traça por alma tão rudes, é destinada a restar como um símbolo vivo e doloroso: o símbolo do próprio espírito da liberdade, tão instrutivo e tão humano que veio das nossas
409 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1904. p.652 410 REIS, Andressa M. B. op. cit. 2004. p. 75. 411 BEHRING, Mário. A morte de Zumby. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. n. 14, v. 57, p. 142-151, 1930. p. 151 412 REIS, Andressa M. B. op. cit. 2004. p. 76.
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primitivas etapas civilizadoras para ganhar mais tarde as almas superiores, atrai-las e subjugá-las. (...)
É o único símbolo digno para gravar na posteridade a estrada de sangue e de sacrifício por onde caminha a humanidade para afirmar-se.413 [grifo nosso]
Sobre esse evento Mário Melo ousou pouco, ficou com a versão de Nina Rodrigues
que existiam vários Zumbis, mas acreditava que o principal foi o que cometeu suicídio, sobre
o ato escreveu: “Não querendo sobreviver à desgraça e horrorizado com a escravidão, Zambi –
supremo chefe da República – ter-se-ia suicidado atirando-se ao abismo. A morte gloriosa de Zambi é
lendária. A última página da epopeia dos Palmares não teve cronista. 414
Assim como Andressa Reis ficou com dúvidas sobre a hipótese que a atuação na
maçonaria desses três autores – de fato, são reconhecidamente maçons – teria possibilitado o
elogio a Palmares como ato heroico, acredito que essa hipótese é pouco provável. Pelo menos
para explicar todos os três autores, teria que ser melhor analisado cada um deles sobre esse
tema. Os três têm características comuns em suas perspectivas sobre Palmares, é inegável o
elogio ao espírito heroico dos palmarinos, a luta pela liberdade e a solidariedade. Por outro
lado, Behring e Melo afirmam claramente que era necessária a destruição do Quilombo para
prevalecer a civilização brasileira, enquanto em Arão aparece de maneira clara uma crítica a
colonização ibérica e a maneira como ela estabelecia o seu domínio. Dessa forma ele
descrevia os senhores de engenho como de: “inferior origem e cuja falta de educação moral,
eram como tristes criaturas que constituem a negação implícita da humanidade no homem”.415
Outro autor importante do período para lançar um olhar heroico sobre Palmares foi o
historiador do IAGA Alfredo Brandão (1874 - 1944) que procurou fazer uma história da sua
terra natal a cidade de Viçosa em Alagoas, porém destinou parte de sua narrativa ao papel
exercido pelos negros palmarinos na região e a possibilidade de diversas cidades surgirem
devido as lutas de Palmares. Além da ser membro do IAGA, existe uma peculiaridade que nos
permite ligá-lo imediatamente a Arthur Ramos, pois integrou o grupo de intelectuais e
participou com Ramos do 1º Congresso Afro-brasileiro de 1934, realizado em Recife. Um
trecho de sua conferência nesse evento ilustra bem o seu pensamento: 413ARÃO, Manuel. O Quilombo dos Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. v. 24, n. 115-118, p. 210-256, 1922. p. 255-256 414 MELO, Mário. Dentro da história. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1931. p. 107. 415 ARÃO, Manuel. Op. cit. 1922. p. 218.
169
Existiam vários Zumbis, é verdade, mas o que se tornou notável, o “general”, como o chama o manuscrito [carta de agosto de 1696], o chefe supremo, o rei, era denominado O Zumbis, primos ou parentes, não passavam de molengos, sem energia, como por exemplo o filho do Ganga Zumba, que foi, acovardado, se prostar aos pés do governador D. Pedro de Almeida, pedindo a paz e oferecendo em troca a vassalagem, a humilhação, o servilismo.
O Zumbi – o chefe, o rei, esse era capaz de todos os heroísmos, de todos os sacrifícios.416 [grifo nosso]
O advogado, escritor e “historiador” alagoano Jaime Altavilla (1895-1970) –
pseudônimo de Amphilóphilo de Oliveira Mello – tem concepções parecidas com Manuel
Arão, especialmente no que diz respeito ao heroísmo dos negros palmarinos e a crítica a
colonização. É importante ressaltar a possibilidade de contato de Arthur Ramos com as ideias
de Altavila, aproximação provavelmente provocada pela origem alagoana e a participação no
Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano, ambos membros durante o mesmo período.
Porém, o mais importante é a referência do romance histórico de Altavilla, “O Quilombo dos
Palmares”, feita por Ramos no “Negro na civilização brasileira”. Sobre o acontecimento da
morte de Zumbi o exemplo de Altavilla é muito importante para compreendermos como a
visão heroica estava estabelecida no período que Ramos escreveu:
Coube ao barão de Studart a missão histórica de mutilar a lenda da queda do capitão negro, no momento em que tomavam os comandados de Jorge Velho o último reduto da serra. A revelação, saída dos arquivos portugueses, esmagou a poesia dos últimos instantes do titã negro, mas não lhe tirou o heroísmo, Zumbi, ou Suéca, como o chamavam, e daí a origem do povoado que lhe tem o nome no município de União, - foi, infelizmente traído. (...)
Bem preferível seria que Zumbi houvesse, de fato, marcado homericamente com um salto o final da tragédia de 1695. (...)
O despenhadeiro, áspero e selvagem como é, prestar-se-ia maravilhosamente á queda heroica (...)417 [grifo nosso]
Sem sombra de dúvidas é o texto do período que melhor deixa transparecer uma
perspectiva heroica sobre Palmares e Zumbi. Independente da versão sobre a morte, seja ela o
suicídio ou o assassinato, para os autores que estavam ligados a essa tradição o heroísmo
tornou-se inquestionável. Isso não significa que não houvesse outras versões sobre Palmares,
em São Paulo a historiografia estava preocupada em construir uma visão heroica dos
bandeirantes e continuar uma narrativa do papel civilizador dos colonos, consequentemente
416 BRANDÃO, Alfredo. Os negros na história de Alagoas. In: BRANDÃO, Alfredo; MELO, Mário; et. al.. Estudos Afro-brasileiros. Recife: Ariel, 1988 [1937]. In: p.77 417 ALTAVILLA, Jaime. A redenção de Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. v. 11, p. 58- 67, 1926. p. 64-65.
170
Palmares continuava sendo visto como o inimigo da civilização brasileira, tal qual ocorria no
século XIX. Essa escrita da história era dos paulistanos está possivelmente submetida a uma
construção da identidade local paulista que vinha ocorrendo na virada do século, mas que é
intensificada durante a década de 1930.
Depois dessa trajetória longa sobre as visões da morte de Zumbi, podemos voltar ao
“Negro na civilização brasileira”, observemos o que escreveu Arthur Ramos:
O reduto caiu em 1695 (em 1697, segundo outros historiadores), mas os Negros não se renderam. Quando os chefes expedicionários penetraram na praça sitiada, o Zambi com os seus principais capitães e subchefes se haviam refugiado nos altos de um penhasco. Preferindo a morte à rendição, o Zambi e seus heroicos companheiros se precipitaram do rochedo, “valentia que, ainda misturada de um furor brutal, mostrou a todo o nosso exército um espetáculo que se não pode deixar de ouvir com espanto...”418 [grifo nosso]
A principio pode surpreender o leitor a objetividade das palavras do antropólogo
alagoano, principalmente depois das tantas narrativas demonstradas anteriormente. Primeiro
devemos prevenir de que Arthur Ramos é membro de uma geração que procura distanciar o
trabalho cientifico do literário, nesse período ele estava assumindo a cadeira de Antropologia
da Universidade do Brasil, por isso em sua narrativa o teor literário perde espaço para uma
pretensa “objetividade”.419
Essa característica é marcante em seus textos, isso não significa que ele não se coloque
ou nunca faça narrativas com tons poéticos ou literários, mas ele procura se afastar o máximo
possível dessa abordagem, isso ocorrerá cada vez mais em seus livros, também devido a sua
ação como professor e pesquisador da cadeira de Antropologia. No entanto ainda é possível
observar os ecos de uma narrativa épica sobre a morte de Zumbi produzida pelos autores dos
Institutos de Pernambuco e Alagoas. Concomitante as transformações desenvolvidas por
autores dos Institutos, principalmente o Alagoano, durante o início do século XX na
concepção sobre o papel do Quilombo na história do Brasil e do heroísmo do negro em
contraposição a colonização, a versão do assassinato foi prevalecendo e dando tons mais
heroicos e epopeicos sobre o reduto negro. Arthur Ramos teria reconhecido Zumbi como
indivíduo, mas repete a versão do suicídio, como outros autores fizeram anteriormente ele 418 RAMOS, Arthur.op. cit. 1956. p. 57 ; RAMOS, Arthur.op. cit. 1951. p. 53. 419 Poucos personagens como Gilberto Freire conseguem manter um diálogo entre a literatura e ciência em seus trabalhos, pelo menos de maneira clara, sobre isso ver: NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. São Paulo: Editora Unesp, 2011
171
tece um elogio ao ato do líder e seus companheiros que se lançaram ao precipício em vez de
se renderem.420
Na sua dissertação Reis deixou claro que acredita que a morte de Zumbi é evidenciada
de diversas maneiras, seja assassinato ou suicídio, devido a indisponibilidade de documentos
e não pela subjetividade. De fato, concordamos que a indisponibilidade de documentos
proporcionou a ocasião, mas foi a subjetividade dos autores que escreveram sobre o momento
que os conduziu a construírem narrativas adotando uma dessas perspectivas, assim é possível
identificar o papel das impressões subjetivas nas maneiras como muitos deles narram o
acontecimento em qualquer uma das versões da morte.
O termo Tróia Negra com certeza ganhou em Arthur Ramos uma leitura heroica. Se o
termo aparece apenas uma vez em seu texto, ele na verdade está ocultado em outros termos,
ou no mínimo, toma significado por outras figuras de linguagem. Uma das maneiras de
compreender o novo significado é a nomeação do enredo do Quilombo dos Palmares de
epopeia, um costume que não foi introduzido por ele, pois foi iniciado por Oliveira Martins ao
comparar a história do Quilombo a uma Ilíada.421 No livro escrito por Ramos o termo epopeia
tem dois significados: pode ser apresentado como a narrativa dos feitos memoráveis, dos
heróis históricos ou lendários que representam os Negros brasileiros, como uma espécie de
poema épico ou poema heroico divulgado por historiadores ou pelo “inconsciente coletivo”
como é o caso dos Autos dos Quilombos,422 representações dramáticas realizadas por negros
do sertão de Alagoas; ou pode se referir aos próprios atos dos palmarinos, as suas ações como
gloriosas e eventos extraordinários que demonstraram a capacidade do Negro brasileiro. Para
o primeiro modo pensar o termo, podemos observar o seguinte texto do documento, que
consiste na sua análise das entrevistas com os brincantes alagoanos dos Autos dos Quilombos:
“(...) procuravam uma explicação qualquer, mas sem a menor ligação com a epopeia
palmarina”423. O segundo modo é o mais comum, são as ações dos negros que adquirem o
destaque: “Palmares foi a primeira grande epopeia que o Negro escreveu em terras do
Brasil”424; “O heroísmo dos Negros palmarinos atingiu às proporções de uma epopeia.”425
420 Sobre o trecho entre as aspas na citação direta do escrito de Arthur Ramos, foi citado anteriormente por Manuel Arão, possivelmente é de outra obra, cuja autoria é de Domingos Loretto Couto, publicada em 1757, “Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco”. ARÃO, Manuel. op. cit. 1922. p. 251. 421 MARTINS, Oliveira. op. cit. 1920. p. 64. 422 RAMOS, Arthur.. op. cit. 1956. p. 117.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 113. 423 Idem. 424 RAMOS, Arthur.. op. cit. 1956. p. 59.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 55.
172
A Tróia Negra ou a epopeia palmarina, está relacionada a visão de heroísmo do Negro
brasileiro construído por Ramos através da leitura de uma tradição na historiografia sobre o
Quilombo, mas que está também além dela. Essa própria tradição teria sua leitura sobre o
papel dos africanos e seus descendentes na constituição da nação, vinculado a colaboração de
outros intelectuais de renome na época que começaram a dar visibilidade cada vez maior ao
elemento negro. Foi o papel fundamental exercido pelo pensamento do antropólogo Edgar
Roquette-Pinto e do sociólogo e historiador Gilberto Freyre. Ambos fariam uma defesa da
mestiçagem como constituidora da nacionalidade, o índio e o negro paulatinamente passariam
a figurar com alguma “positividade” na ótica da elite intelectual das décadas de 1900 a 1930.
Acredito que a hipótese mais plausível para a construção de uma leitura heroica sobre
os negros palmarinos, está na centralidade que o elogio da mestiçagem alcançará nos debates
intelectuais sobre a nacionalidade até o final da Primeira República. No caso de Arthur Ramos
pode-se somar as essas duas leituras sobre o negro a antropologia cultural que passo a fazer
parte de seu aparato teórico, introduzido por Gilberto Freyre e “Casa Grande &
Senzala”(1933), mas que estreitou o dialogo a partir de 1937 com Melville Herskorvits,
discípulo de Franz Boas.
Outras metáforas: “República de Palmares” e “Estado Negro”
A República dos Palmares é o topos mais repetido dentro dos textos de Nina
Rodrigues, talvez tenha sido o mais utilizado pelos autores que escreveram sobre o Quilombo.
Ela foi elaborada primeiramente pelo historiador Sebastião da Rocha Pita, em 1724. Na
próxima citação é possível entender os motivos de Pita para a escolha do epíteto de república:
Formaram nos Palmares uma República rústica, e a seu modo bem ordenada. Elegiam por seu Príncipe, com o nome de Zumbi (que no seu idioma vale o mesmo, que diabo) um dos seus varões mais justos, e alterados, e posto que esta superioridade era eletiva, lhe durava por toda a vida, e tinham acesso a ela os negros , mulatos, e mestiços (isto e, filhos de mulato, e negra) de mais reto procedimento, de maior valor, e experiência, e não se conta, nem se sabe, que entre eles houvessem parcialidades por competências de merecimento, ou ambição de domínio, nem que matassem um para entronizar outro, concorrendo todos ao eleito com obediência, e união; Polos, em que sustentam os Impérios.426
425 RAMOS, Arthur.. op. cit. 1956. p. 67.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 63. 426 PITA, Sebastião Rocha. História da América Portuguesa. Lisboa: Academia Real, 1724. p. 474
173
De acordo com a citação, a aproximação promovida pelo autor entre o Quilombo dos
Palmares com uma República, ocorre devido a compreensão da eletividade dos líderes
palmarinos. No entendimento de Rocha Pita, na eleição participavam os negros, mulatos e
mestiços e a escolha do líder era respeitada. Foi no sistema de escolha da liderança que esteve
concentrada a utilização do epíteto de República, por tanto é possível afirmar que essa
metáfora foi escolhida devido a forma de governo. Ele também fala sobre a existência de
magistrados de justiça e milícia no Quilombo, que possibilita confirmar essa ideia. O texto de
Rocha Pita faz comparações, entre acontecimentos de Palmares e da antiguidade como o rapto
das sabinas e a guerra dos escravos romanos. Porém ao chamar a organização dos negros de
República advertiu que era diferente das que aconteceram na Antiguidade, visto que essa não
teve filósofos ou pensadores que a idealizassem.427 Infelizmente o seu texto não se prolongou
sobre o tema, prática comum nos historiadores do século XVIII até o final do século XIX.
Embora Nina Rodrigues tenha dado continuidade a utilização do termo República dos
Palmares, ele também fez uma correção ao uso dessa metáfora pelos historiadores:
Mas esta qualificação de república só lhe poderia convir na acepção lata de Estado, jamais como justificação da forma de governo por eles adotada. Não se pode tomar à letra a eletividade do Zambi ou chefe, em que aquela denominação se inspirou, pois esta eletividade não era a das repúblicas modernas, mas, como em toda a África selvagem, a do chefe mais hábil ou mais sagaz.428 [grifo nosso]
Como podemos perceber, ele rejeitava a compreensão de República como forma de
governo quando falava de Palmares. Devemos levar em consideração que a ideia de um
governo republicano demarca uma ligação direta com a civilização, reivindicada pelas elites
brasileiras por uma herança cultural e racial das civilizações romanas e gregas, da qual eles
acreditavam serem herdeiros. Isso descartaria a possibilidade dos negros “bárbaros” e
mestiços “degenerados”, como qualificou Rodrigues, constituírem povos civilizados e,
portanto, uma República própria. Aparentemente, ele só considera que Palmares seja
entendida como República apenas se for usado no sentido de ascensão da condição de uma
comunidade ou sociedade à Estado, ou seja, no sentido de uma complexa organização
427 Idem. 428 RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1905 p. 650.; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1912.p. 236 ; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 2010. p. 83.
174
administrativa baseada em algumas instituições, nesse caso específico, instituições
primárias.429
Possivelmente era inimaginável para Rodrigues, naquele momento histórico, conceber
aos negros um nível de civilização que há tão pouco tempo o Brasil havia conquistado, já que
o Brasil só tornou-se uma república em 1889, dois séculos após a existência do Quilombo dos
Palmares. Para Nina Rodrigues, o correto é compreender Palmares como uma “monarquia
eletiva”, pois cada vez “que aparece um chefe de maior prestígio e felicidade na guerra ou no
mando, esses pequenos estados se subordinam a um governo central despótico que se pode
considerar eletivo neste sentido de tocar sempre ao que dá provas de maior valor ou
astúcia”,430 segundo ele, um tipo de organização que já havia ocorrido na história dos povos
negros. Portanto podemos concluir duas coisas sobre a utilização do epíteto República por
Rodrigues: primeiro ele não se refere a forma de governo que era exercido em Palmares, pois
este era uma “monarquia eletiva”; segundo ele é compreendido enquanto uma promoção à
condição de Estado.
Essa versão de Nina Rodrigues sobre a ideia de república, não foi questionada nos
escritos de Mário Behring, Mário Melo e Alfredo Brandão, ou ela é repetida, ou não é
mencionada, e menos ainda nos textos que estavam mais preocupados em narrar a história de
Alagoas.431 Por outro lado, quando a versão foi novamente discutida as transformações
ocorreram de maneira radical.
O escritor Manuel Arão afirmou que o Quilombo dos Palmares recebia qualquer um
que pedisse refúgio, sem distinção de tribo e de cor, desde que pedissem proteção contra o
inimigo comum. O reduto estava se edificando contra a injustiça das leis dos códigos
civilizados:
Ao par disto, os costumes e as leis eram de natureza a atrair a simpatia dos grandes deserdados que procuravam servir á republica negreira. Se pusermos mesmo essas leis ao lado dos costumes políticos e morais dos
429 Ibid. 430 RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1905. p. 652.; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1912. p. 238 ; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 2010. p. 85 431 Fora os textos que já trabalhamos nessa dissertação existem outros textos dos Institutos de Alagoas que procuram narrar a história desse estado e abordam de maneira sintética o Quilombo dos Palmares, porém esses textos se dedicam as narrativas das expedições e conflitos. O mais elaborado desses textos é o de Alfredo Brandão, mas os outros são: BRANDÃO, Moreno. Alagoas e seu desenvolvimento histórico. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. v. 8, n. 1, p. 47-50, 1916.; LIMA SOBRINHO, Barbosa. Determinismo histórico. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. v. 28, n. 131-134, p. 308-312, 1927.
175
quilombos em confronto com as que vigoravam no mundo branco do país, ficamos espantados de saber que o regime da rebeldia à civilização, se lhe avantajava ao menos nas intenções gerais que o inspiravam. Sobre o regime político, a começar pelo chefe da republica, este bem que vitalício nas funções, era todavia eletivo. (...) Podia ela recais em um negro puro ou em um mestiço. (...) Na formula da eleição, estava o espírito da democracia pura. nas qualidades requeridas, estava um duplo sentido – o de segurança para a instituição e o estímulo moral que escolhe o chefe entre os mais dignos. Ainda aqui os negros estiveram acima do povo romano do império e da república.432 [grifo nosso]
A mudança no rumo da interpretação sobre o topos da República é significativa, afinal
a enunciação metafórica no escrito de Arão aponta Palmares como uma democracia e coloca o
reduto como um lugar de aceitação em nível de igualdade de povos de outras “raças”, isso
quer dizer de outras origens. O texto é do início da década de 1920, podendo haver um
diálogo com as teorias que elogiam a mestiçagem no Brasil, particularmente as leituras de
Silvio Romero, Mario de Andrade e Edgar Roquette-Pinto. Outro ponto dessa ideia de Arão
que provoca um estranhamento, é a de colocar os palmarinos como superiores no campo da
moral com relação a sociedade colonial que os perseguiam e escravizavam.433
O radicalismo observado em Manoel Arão, terá ressonância no historiador Jaime
Altavilla434. O escritor alagoano demonstra uma visão de Palmares como uma república
moderna, na verdade um exemplo de democracia. Para ele o Quilombo foi o primeiro grito de
República no Brasil, no qual não haveria nenhuma distinção entre negros, mestiços e brancos,
podendo ser eleito qualquer um, desde que esse se mostrasse forte. Na verdade, Altavilla,
assim como Arão estava promovendo críticas a colonização, e colocava os portugueses como
os verdadeiros bárbaros. Um desvio semântico muito forte, invertendo totalmente a tradição
de pensamento que se firmou no Brasil, no qual o colono português ou seu descendente é
civilizado e as pessoas de origem africana e nativa eram bárbaros ou selvagens.
Arthur Ramos não parece ter se deixado levar pelo radicalismo de Arão e de Altavilla,
pois podemos apontar dois momentos distintos sobre o uso da metáfora da República em seu
texto. Ramos repetiu diversas vezes esse topos em seu escrito, com o título contaríamos
quatro vezes, mas se olharmos todo o livro no qual ele retoma a temática de Palmares, em dez
vezes o termo República está referindo-se ao Quilombo.
432 ARÃO, Manuel. op. cit. 1922. p. 228. 433 Ibid. 434 ALTAVILLA, Jaime. op. cit. 1926 p. 63-65.
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O primeiro ponto que devemos observar é que em um dos parágrafos finais do capítulo
que dedicou ao reduto dos negros, Arthur Ramos repete em parte a justificativa de Nina
Rodrigues:
Havia ordem nos quilombos e todos eram governados por um rei eletivo. Daí, ter o historiador Rocha Pita comparado Palmares a uma “república rústica, bem ordenada a seu modo”. Melhor seria chamá-lo “monarquia eletiva”, como o fez Aires Casal.
Como vimos na citação a República dos Palmares teria como forma de governo uma
monarquia eletiva, não era nenhuma novidade a interpretação que o “rei” ou líder do reduto
era eleito e governava de maneira vitalícia. Essa interpretação também estava em Arão e
Altavilla, mas isso não os impediu de olhar para o Quilombo como uma república e até
mesmo uma democracia. De uma maneira sútil, Ramos aproximou a organização social e
política de uma ordem republicana, muito provavelmente gerado pelo sincretismo entre os
negros – africanos e seus descendentes – com a cultura colonial branca – ibéricos ou
brasilianos. Possivelmente o caráter autônomo de cada quilombo, ou cidades negras como
muitas vezes ele denominou, permitiu que ele repetisse o topos sem preocupar-se se ele cabia
ou não para descrever Palmares.
Observando outros livros de Arthur Ramos observamos que ao descrever as culturas
banto na África, povo que, de acordo com ele e Nina Rodrigues formaram Palmares, não
encontramos a menção à existência de repúblicas, embora não nos pareça tão distante as duas
realidades. Ele descreve a organização política que haveria abaixo do rei: uma galeria de
ministros, e uma hierarquia de funcionários da corte e representantes de profissões,
corporações e sub-tribos; e que algumas monarquias passaram por transformações como as
limitações que ocorreram no poder do rei com o controle do ministério.435 Essa organização
africana não parece tão diferente da encontrada na Serra da Barriga: “O Zambi tinha a sua
guarda pessoal, ministros e possuía muitas mulheres e escravos. Os seus súditos muito o
veneravam, obedeciam-no cegamente e só lhe falavam de joelhos.”436
Não podemos ignorar as chances de Ramos ter empregado o topos, por causa do
costume dentro da tradição historiográfica, assim como muitas vezes acabamos por repetir o
que outros falam antes de nós sem uma maior reflexão sobre esse ato. Nesse caso, quando
435 RAMOS, Arthur. A cultura Negra. Rio de Janeiro: Livrari-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1971. p. 162. 436 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 68; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 62.
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abordamos a estrutura do texto e vimos como ele havia utilizado o de Nina Rodrigues
enquanto modelo e padrão a ser seguido, pensamos que isto daria espaço para repetições
como essa. Porém, assim como Ramos era leitor de Nina Rodrigues, também era leitor de
Altavilla, por causa disso dificilmente teria passado tão despercebido o uso do termo
República depois de todo radicalismo empregado pelo seu conterrâneo.
Pensando nisso, podemos lançar outra possibilidade. Ramos lança implicitamente uma
possibilidade interessante para justificar o uso do termo, a ideia de confederação, embora não
tenha debatido o termo república, provavelmente por causa das limitações da obra. Esse
problema remete a realidade política e social vivenciada durante a década de 1920 época que
já era estudante de medicina na FMB, quando a República estava sendo muito questionada,
principalmente por intelectuais e políticos dos estados periféricos como os do Norte ou
Nordeste, sobretudo por conta da concentração de poderes e recursos econômicos no Sul e a
decadência econômica e política da região açucareira, que fazia emergir uma luta entre Norte
e Sul.437 Mas, também essa luta recaia sobre a concepção de federalismo e autonomia dos
estados brasileiros, como forma de desconcentração dos poderes nas mãos da elite do Sul.
Na pesquisa de Luitgarde Barros apontam-se algumas características políticas e
intelectuais de Ramos que são importantes para entendermos que ele não estava alheio a esses
problemas, uma vez que possuía uma marcante preocupação com a realidade política e social
vivida pelos estados do Nordeste; aparentemente se contrapunha às oligarquias locais; era
comunista, embora nunca tenha feito parte do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas foi
por isso interrogado e era constantemente vigiado438 pelo Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS) durante o Estado Novo (1937-1945), do qual era crítico e esta situação se
manteve no governo Dutra (1956-1949).439
É impossível a partir dessas informações acreditar que Arthur Ramos utilizaria o termo
confederação, sem saber o que ele implicaria para a compreensão do Quilombo dos Palmares,
ou até mesmo para o entendimento de sua realidade local, já que vivia em um Estado
autoritário e repressor que o investigava no período da escrita do livro. O termo confederação
daria uma maior complexidade a organização dos negros palmarinos, cada quilombo teria o
437 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. A invenção do Nordeste e outras artes. 2 ed. Recife: FJN, Massagana; São Paulo: Cortez, 2001. p.57-64. 438 BARROS, Luitgarde O. C. Arthur Ramos e as dinâmicas de seu tempo. Maceió: EDUFAL, 2000. p. 60-62. 439 BARROS, Luitgarde O. C. op. cit. 2000.
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seu governo próprio, cuja organização se assemelhava a “capital Macaco” e estava
subordinado a ela principalmente em momentos de conflito.440
Compreender Palmares como confederação estava relacionado ao escrito de Jaime
Altavilla publicado no IAGA em 1926, no qual se encontra esta citação de Ulysses Brandão:
A república dos Palmares, a que Rocha Pombo chama, com muita propriedade, Estado Excrescente, foi de fato, uma federação de estados livres dentro do Estado, o que faz ainda hoje a admiração de quem estuda a organização, na guerra como na paz, pela unidade da ação dos seus governos, e, sobretudo, pelo espírito de cooperação, harmonia e solidariedade dos governados e ainda porque todos os arremedos de qualquer república se acham entre eles.441
A obra de Ulysses Brandão da qual essa citação foi retirada é “A Confederação do
Equador”, publicada como obra comemorativa dos cem anos da Confederação do Equador.
Segundo Mariana Santos Ribeiro,442 a obra reforçava a tendência dos discursos do IAGP em
situar os eventos pernambucanos em uma mesma linha evolutiva. A origem dessa cadeia de
eventos interligados e sucessivos, estaria no século XVII, com a Restauração Pernambucana,
passava pela Guerra dos Mascates (1710), pela Conspiração dos Suassunas (1801), pela
experiência republicana de 1817, pelo Movimento de Goiana (1821), para finalmente
culminar na Confederação do Equador (1824).
Ainda segundo Ribeiro, esse esforço fazia parte de um projeto maior surgido próximo
as comemorações de 1817, o objetivo era construção de uma memória e identidade nacional e
local, na qual o republicanismo tornava-se chave fundamental, especialmente em Pernambuco
no IAGP.443 Por isso, houve um esforço de vários intelectuais da época de forjar um ideal
republicano, já presente em vários acontecimentos do passado, como os ocorridos no
Quilombo dos Palmares, no Movimento dos Mascates, na Conjuração Mineira, na Insurreição
Pernambucana de 1817 ou nas revoltas regenciais: “Como forma de estratégia, todos esses
eventos passaram ser representados como experiências precursoras da República.”
440 RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 62.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 58. 441 BRANDÂO, Ulisses. Apud. ALTAVILLA, Jaime. A redenção de Palmares. In: Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Alagoano. v. 11, p. 58- 67, 1926. p. 63. 442 RIBEIRO, Mariana Santos. Construindo histórias e memórias: o IHGB e o IAGP em meio às celebrações do centenário do movimento pernambucano de 1817. 2011. 298 f. Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de História, 2011. p. 253. 443 Ibid. p. 195.
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Teria sido este o argumento que acabamos de observar nos escritos de Manuel Arão
(IAGP) e de Jaime Altavilla (IAGA), assim, Arthur Ramos não estava distante da mesma
postura, principalmente se o pensarmos como leitor desses escritores e autor vivendo um
momento específico que impulsionava o pensamento sobre a república.
Acreditamos que se conseguirmos explicar como Arthur Ramos produziu a elocução
metafórica “Estado negro” para designar o Quilombo dos Palmares, estaremos
consequentemente ajudando a explicar a dinâmica de composição do topos “República dos
Palmares”, ou qualquer lacuna na explicação anterior. Os dois estão interligados em seu texto,
fazendo parte da composição de sentido um do outro, portanto não poderíamos dissociá-los
neste capítulo. Para explicar a construção de uma metáfora de Palmares como Estado Negro
em Arthur Ramos, faremos uma comparação direta com a metáfora de Raimundo Nina
Rodrigues, porque não encontramos indícios que fosse uma mudança dentro da tradição da
historiografia do Quilombo, mas uma mudança nas concepções teóricas.
Foi partindo do modelo teórico do pensamento evolucionista na Antropologia social
que Rodrigues construiu a metáfora do “Estado negro”. Rodrigues era um apreciador das
obras de Hebert Spencer fundador do “darwinismo social” e dos três autores clássicos do
“evolucionismo cultural”: Lewis H. Morgan, Edward B. Tylor e James G. Frazer. Para os
intelectuais “evolucionismo cultural” o Estado é uma organização que faz parte de um
determinado estágio de evolução. Conforme Morgan os humanos tem três estágios evolutivos,
que estão aqui apresentados na ordem do mais primitivo ao mais desenvolvido ou evoluído:
selvageria, barbárie e civilização.444 As formas de governo acompanham os estágios
evolutivos, existindo primeiro a sociedade (societas), seguido pelo povo ou nação (populus),
os dois baseados nas pessoas, depois baseado no território e na propriedade, surge o Estado
(civitas), cuja:
A vila ou distrito, circunscrita por limites e cercas, com a propriedade que contém, é a base ou unidade do Estado, e a sociedade política é seu resultado. Essa está organizada sobre áreas territoriais e trata da propriedade e das pessoas, através de relações-territoriais. Os sucessivos estágios de integração são a vila ou distrito, que é a unidade de organização; o condado ou província, que é uma agregação de vilas ou distritos; e o domínio ou território nacional, que é uma agregação de condados ou províncias; e o povo de cada uma delas está organizado em um corpo político. Após terem alcançado a civilização, coube aos gregos e romanos,
444 Esses estágios fazem parte do aparato conceitual de Rodrigues e está em seus escritos. Ver: RODRIGUES, Nina. [s.d.] Op. cit. p. 64; Id. 2010. Op. cit. p. 290
180
usando suas capacidades até o limite, inventar a vila e o distrito e, assim, inaugurar o segundo grande plano de governo, que permanece até o presente entre as nações civilizadas.445 [grifo nosso]
Está claro no trecho que no último estágio de desenvolvimento humano, na
“civilização”, é que surge o Estado. Os primeiros a fundá-lo foram os gregos e romanos, o
“berço da civilização ocidental”. O Estado está relacionado a defesa de um território e as vilas
e distritos aparecem como unidades de organização desse Estado e Rodrigues parece ter
identificado isso em Palmares.446 Apesar de presumirmos que é esse o conceito de Estado e o
modelo teórico no qual Rodrigues se fundamentou, não podemos afirmar que ao colocar o
Quilombo como um “Estado negro” ele estava apenas repetindo o modelo.
De acordo com Nina Rodrigues, Palmares cresceu impressionantemente se dedicando
a agricultura e travando relações comerciais com os vizinhos, os produtos extrativos eram
trocados por artigos industriais, sobretudo armas e munições. Ele identifica que essas relações
comerciais também aconteciam na África, contudo não afirma a que período histórico do
continente africano está comparando, se ao século XVII ou o século XIX. Com relação ao
desenvolvimento concentrado na agricultura há uma semelhança entre o conceito de Estado e
a metáfora “Estado negro”. O antropólogo James G. Frazer447, cuja influência também é
notória na obra de Rodrigues,448 interpreta que para o progresso da civilização, várias
comunidades se congregam formando um único Estado que para sua subsistência dependem
principalmente do solo.
A interpretação de Nina Rodrigues de um fato singular pode esclarecer algumas
questões. De acordo com a documentação do período da direção de Ayres Souza e Castro a
frente da Capitania de Pernambuco, o governador teria recebido em 1678 uma comissão de
Palmarinos para firmar a paz e dentre eles estava Ganga-Zumba, o líder de Palmares no
período. O encontro da embaixada palmarina com um conselho de autoridades foi marcado
por vários eventos, como indica Rodrigues:
As solenidades de que se revestiram todos estes atos davam a medida da real importância do Estado negro com o qual a colônia tratava agora como de nação a nação, celebrando tratados de paz e recebendo com
445 MORGAN, Lewis H. A sociedade antiga. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 53 446 RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1905. .p. 651.; RODRIGUES, Nina. Op. cit 1912.p. 237 ; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 2010. p. 84. 447 FRAZER, James G. O ramo de ouro. [s.l.]: Zahar, 1982. 448 RODRIGUES, Nina. Op. cit 2010. p. 202 – 204.
181
solenidade as suas embaixadas. Não se comportaria assim um governo forte com agrupamentos fortuitos de negros fugidos que se devem reduzir à obediência. E tudo isto forma curioso contraste com os esforços empregados para fazer crer que finalmente estava Palmares destruído.449 [grifo nosso]
Na leitura do médico maranhense dos acontecimentos, já se impunha, de tal forma a
estrutura política e a organização social de Palmares, que foi este respeitado como uma nação
autônoma de negros que procurava negociar com uma nação colonial europeia. O
reconhecimento de Palmares como um “Estado negro” não ocorreu apenas entre os
palmarinos, mas foi partilhado entre os colonizadores. Sobre a estrutura política na defesa do
Quilombo afirmou que havia certa “polícia de costumes”, uma polícia que funcionava na
defesa interna e externa. Caracterizando a organização dos palmarinos da justiça e da guerra
como “um esboço”, ele desqualificou os palmarinos e sua realização.450 Também escreveu
sobre uma série de punições que teriam existido em Palmares, interpretando que havia uma lei
suprema com o objetivo e capacidade de manter a liberdade adquirida, e consequentemente
manter Palmares.451 Por isso, os negros que de alguma maneira ajudassem a erguer e sustentar
a instituição da escravidão estabelecida pelo colonizador eram punidos. É importante destacar
que Rodrigues escreveu sobre a existência da escravidão dentro do próprio Quilombo, todos
os negros que saiam das roças forçados pelos palmarinos ou pelos que fugiam, tornavam-se
escravos.
Rodrigues indica que a organização da “República de Palmares” ou do “Estado
negro”, estava dentro da capacidade e das possibilidades em África. Sendo assim, embora
fossem em algum ponto parecido com as instituições políticas e de governo da Europa, da
qual o Brasil seria “herdeiro”, não poderiam ser iguais ou equivalentes. No trecho em
destaque abaixo, perceberemos que a descrição do Quilombo está repleta de referências que
são comuns em cidades, Estados e Repúblicas “civilizadas” e “modernas”:
Como em geral nas cidades africanas mesmo as mais importantes, as cidades de Palmares deviam ser verdadeiros agrupamentos de pequenas vilas, quarteirões ou distritos, em que raças, povos ou famílias diversas, regidas por leis e costumes diferentes, muitas vezes se associam ou confederam. E assim era Palmares. 452 [grifo nosso]
449 RODRIGUES, Nina. Op. cit 1905.p. 658.; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1912. p. 244 ; RODRIGUES, Nina. Op. cit 2010. p. 91. 450 RODRIGUES, Nina. Op. cit 1905. p. 650.; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 1912. p. 236 ; RODRIGUES, Nina. Op. cit. 2010. p. 83 451 Idem. 452 RODRIGUES, Nina. Op. cit 1905. p. 651.; RODRIGUES, Nina. Op. cit 1912. p. 237 ; RODRIGUES, Nina. Op. cit 2010. p. 84
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Esse trecho e outros que se referem a organização política e social dos negros
palmarinos geram um estranhamento, pois apresentam uma possível contradição. Visto que
instituições ou organizações “civilizadas” – pensando o termo “civilizado” de acordo com o
autor - nomeiam formações dos negros palmarinos. Essa “contradição” é resolvida a partir da
influência da sociedade e cultura portuguesa sobre os escravos na colônia:
Sem fortes e radicadas tradições de governo africano, as noções de que se tinham impregnado os negros na longa convivência com o povo em cujo seio viveram escravos, deviam forçosamente comunicar a Palmares tons das regras e hábitos a que estiveram submetidos. Assim como os hábitos adquiridos na América emprestavam característicos especiais aos africanos que regressavam à Costa onde eram tidos por colônia brasileira, assim no governo de Palmares muito devia haver de importado das práticas e costumes da colônia portuguesa.453 [grifo nosso]
Os textos expõem determinados aspectos ou indícios de uma nova cultura e uma nova
organização em Palmares, que não se limitaria enquanto africana ou de tradição banta e que
contradiria a sua proposição. Uma organização política no mínimo próxima da organização
colonial, da qual os escravos fugidos e os homens livres tiveram contato, independentemente
de ser na África ou na América Portuguesa. Para confirmar a sua tese as constatações de uma
organização política, social e cultural que poderíamos denominar “híbrida”, são submetidas à
racionalidade racialista e ao evolucionismo cultural.454
Para Nina Rodrigues os palmarinos não haveriam desenvolvido uma noção de política
e isso, com certeza, servia para ele os diminuir diante dos Estados “civilizados” que teriam
essa noção superior. No máximo os palmarinos haviam desenvolvido o Estado, não tendo ido
além da ordem estabelecida na defesa interna e externa, na cultura e polícia. Rodrigues expõe
uma organização política baseado nessa defesa: “de onde cederam os Zambis, os seus
magnatas, auxiliares, mestres de campos e juízes, seus conselhos e assembleias”.455 Ao
descrever a economia, afirma que os palmarinos não desenvolveram uma “ordem industrial”
que passasse da aplicação agrícola e comercial e isso era o suficiente para um pequeno
Estado. As teorias do racismo científico e do evolucionismo cultural que permeiam o seu
trabalho, possibilitam utilizar a ideia de capacidade intelectual e cultural da raça negra e
453 Idem. 454 Racialista é também sinônimo de raciológica e de racialismo científico. 455 Idem.
183
mestiça: “tudo isto em nada excede a capacidade dos povos bantos. Antes se pode afirmar que
francamente voltaram eles à barbaria africana.”456
O que se apura, em resumo, das descrições conhecidas é que em liberdade os negros de Palmares se organizaram em um estado em tudo equivalente aos que atualmente se encontram por toda a África ainda inculta. A tendência geral dos Negros é a se constituírem em pequenos grupos, tribos ou estados em que uma parcela variável de autoridade e poder cabe a cada chefe ou potentado. Cada vez que aparece um chefe de maior prestígio e felicidade na guerra ou no mando, esses pequenos estados se subordinam a um governo central despótico que se pode considerar eletivo neste sentido de tocar sempre ao que dá provas de maior valor ou astúcia. Palmares não é um caso especial e sem exemplo na história dos povos negros.457 [grifo nosso]
Se possível talvez devêssemos perguntar a Nina Rodrigues: Afinal de contas, o
Quilombo dos Palmares era uma organização sem tradições fortes africanas e sob a influência
das organizações da América portuguesa ou era um equivalente dos Estados africanos com
suas organizações próprias? A nossa proposta é compreender que eram os dois, que é nessa
contradição, ou tensão, que se produz a ideia de “Estado negro”. Pois isto era para ele algo
novo, por ter influências das organizações coloniais, mas organizados dentro das capacidades
da raça negra, das limitações intelectuais, na sobrevivência dos costumes e tradições
precedentes na história do negro. Confirmando essa ideia de que os africanos tinham a
capacidade de organizar Estados, compara Palmares a outros exemplos de organizações de
negros fugidos na África, destacando a estreiteza das analogias com Farabana no Bambuk,
Alto Senegal, constituída no século XVIII.458
As teorias raciais foram marcantes na produção de Nina Rodrigues, principalmente a
influência da escola médico-legal francesa – Alexander Lacassagne – e da nova escola
criminalista italiana – Cesare Lombroso. Os autores dessas escolas eram poligenistas, partiam
da crença na existência de vários centros de criação, que corresponderiam, por sua vez, às
diferenças raciais. No livro Raças humanas e responsabilidade penal, publicado em 1894,
Rodrigues expõem claramente o seu tipo de pensamento sobre as raças:
A concepção espiritualista de uma alma da mesma natureza em todos os povos, tendo com consequência uma inteligência da mesma capacidade em todas as raças, apenas variável no grau de cultura e passível, portanto,
456 RAMOS, Arthur. op. cit.1905. p. 668.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1912. p. 254 ; RAMOS, Arthur. op. cit. 2010. p. 101. 457 RAMOS, Arthur. op. cit.1905. p. 652.; RAMOS, Arthur. op. cit.1912. p. 238; RAMOS, Arthur. op. cit. 2010. p. 85 458 Idem.
184
de atingir mesmo num representante das raças inferiores, o elevado grau a que chegaram as raças superiores é uma concepção irremissivelmente condenada em face dos conhecimentos científicos modernos. 459
No entanto, não é apenas devido às teorias racistas que ele responde a contradição.
Numa ligação improvável Rodrigues é um leitor das teorias do “evolucionismo cultural” ou
“etnologia social”, o seu trabalho faz referências a grandes nomes como Edward B. Tylor e
James G. Frazer. Essa ligação é difícil de imaginar, porque essas teorias contrariam o
poligenismo, pois acreditam numa única espécie humana refutando a ideia de raças. Mas por
outro lado, ambas acreditam em estágios evolutivos: as teorias raciais acreditavam em
estágios evolutivos ou evoluções diferentes entre as diversas raças, no plano biológico e
intelectual; o evolucionismo cultural acreditava em reduzir as diferenças culturais a estágios
históricos de um mesmo caminho evolutivo.
Nossa hipótese é que ele uniu a ideia de inferioridade racial do negro e do mestiço
proveniente do racismo científico, com o conceito de “sobrevivência” retirado de Tylor e
Frazer. É admissível pensar dessa forma porque a concepção de “sobrevivência” foi muito
importante em seu trabalho, principalmente no livro Os africanos no Brasil, vejamos essa
definição:
A sobrevivência é um fenômeno antes do domínio social, e se distingue do primeiro pela continuidade que ele pressupõe: representa os resquícios de temperamentos ou qualidades morais, que se acham ou se devem supor em via de extinção gradual, mas que continuam a viver ao lado, ou associados aos novos hábitos, às novas aquisições morais ou intelectuais.460
A ideia de “sobrevivência” permite compreender que as tradições e costumes de povos
bárbaros e selvagens são repassados e permanecem, ou melhor, sobrevivem na cultura de
determinados povos por uma “longa duração”. Mesmo em sociedades “modernas”, os
costumes e tradições bárbaros e selvagens podem ser encontrados, pois nem todos os
habitantes seriam civilizados. As crendices e superstições populares vistos pelo olhar
evolucionista ganhavam sentido ao se transformarem em “sobrevivências” de estágio cultural
anterior. Nas palavras de Frazer, seriam como que “relíquias” de crenças e costumes dos
459 RODRIGUES, Nina. Raças humanas e responsabilidade penal. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, [s.d.]. p. 30. 460 RAMOS, Arthur. op. cit.2010. p. 300.
185
selvagens “que sobrevivem como fósseis de cultura mais elevada”.461 É perceptível a
proximidade com a ideia de “sobrevivência” definida por Tylor:
(...) processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que, por força do hábito, continuaram a existir num novo estado de sociedade diferente daquele no qual tiveram sua origem, e então permanecem como provas e exemplos de uma condição mais antiga de cultura que evoluiu em uma mais recente”462
É concebível interpretar que na visão de Nina Rodrigues, o “Estado negro” de
Palmares é uma organização política baseada em condições adquiridas com o contato com a
civilização dos colonizadores, mas que está dentro das condições de sobrevivência da cultura
africana e da capacidade intelectual da raça negra banto. Nina Rodrigues ao construir a
metáfora, “Estado negro”, estava abandonando o sentido literal e a referência literal de
Estado, provocando uma redescrição da realidade, por sobre esse modelo teórico: na metáfora
“Estado negro” o sentido é composto na ação entre as diferenças e semelhanças do conceito
de Estado e da concepção de Quilombo dos Palmares, provocando a tensão no nível da
“enunciação metafórica”.463
Arthur Ramos era um crítico ácido das concepções das teorias racialistas,
principalmente em dois pontos, o primeiro era o de que as generalizações promovidas pelos
racialistas lançavam mão de uma heterogeneidade de experiências apenas para colocá-las num
único patamar; o segundo ponto, seria em relação aos estágios evolutivos da raça,
principalmente quando esses serviam para explicar as tais realidades heterogêneas. Com isso,
a sua concepção de Estado Negro surgiria de dois métodos: o comparativo, proveniente em
parte de suas leituras de Nina Rodrigues e com esse método realizaria comparações entre as
culturas e raças da África e sua realidade no Novo Mundo, sendo que o conceito de
aculturação da Antropologia Cultural foi fundamental para explicar um elemento novo do
Negro brasileiro e; o histórico-cultural, método desenvolvido pelos seguidores da
antropologia de Franz Boas, cujo interesse está nos processos de difusão e de distribuição dos
elementos culturais no espaço, no caso, a difusão seria o resultado dos contatos entre as
culturas.
461 FRAZER, James G. O escopo da Antropologia Social. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 106. 462 TYLOR, Edward B. A ciência da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 87 463 RICŒUR, Paul. Op. cit. 1976. p. 77-81
186
Arthur Ramos era um grande leitor de africanistas e conhecedor das explicações sobre
as diversas culturas da África. Em um de seus textos tece críticas aos antropólogos e
pesquisadores que acreditam que a África era uma unidade, e que os africanos estavam em
estágios raciais e culturais inferiores. Para Ramos esse tipo de entendimento seria
consequência dos preconceitos da antropologia desde o século XVIII e do evolucionismo
cultural.464 O negro tinha desenvolvido por toda a África diversas sociedades complexas,
diversos Estados com organizações e regras próprias: os reinos Yorubas, os reinados
daomeianos, os reinos bantos, as monarquias Fanti-Ashanti, etc. Isso significou que os negros
organizaram no Quilombo dos Palmares um Estado africano no Novo Mundo?
Ele não colocou o reduto dos negros palmarinos como Estado africano. Em seu
pensamento era improvável que isso ocorresse, devido ao contato entre as culturas, o regime
de escravidão serviria como o momento em que o africano passaria por um processo de
aculturação na sociedade colonial, mesmo se houvesse resistência o contato já teria alterado
essa cultura em alguma coisa. Todavia denomina-o “Estado de tradições africanas”.
Olhando-se rapidamente essa afirmativa é parecida com a feita por Nina Rodrigues.
Porém há uma diferença sútil, mas significativa: o “discípulo” faz uma leitura que coloca
Palmares como uma reação cultural de povos africanos ou descendentes às imposições da
cultura europeia através da escravidão, e ao mesmo tempo diminui o isolamento, pois essas
tradições africanas estariam no Brasil e de forma alguma poderia salvar-se do sincretismo. A
cultura do Quilombo era banta com o “sincretismo” ou “aculturação” sofrida no novo mundo.
Segundo Ramos, os “usos e costumes” dos quilombolas dos Palmares copiavam as
organizações africanas de origem banta, mas com as modificações introduzidas com os
hábitos aprendidos na Colônia Portuguesa. Para Arthur Ramos, os estudos dos africanos e
seus descendentes no Brasil deveria:
(...)abandonar aquela visão estereotipada de só ver o “negro da Costa”, a “peça da Guiné” ou a “peça da África”, mas, como antropólogos, devemos recompor a personalidade cultural dos representantes de stocks raciais e culturais, vários e complexos.
Mas o Negro do Novo Mundo teve amputada a sua personalidade cultural, pois chegou até cá, não como um representante livre do seu grupo de cultura,
464 RAMOS, Arthur. Op.cit. 1956. p. 59; RAMOS, Arthur. Op.cit. 1951. p. 55.
187
mas como o Negro escravo. O estudo da escravidão, como processo mutilador, é portanto indispensável(...).465
O caso de Palmares na história brasileira era visto então como singular, porque teria
sido uma reação contra-aculturativa de grandes proporções, sendo assim, um grande número
de negros não teria passado por um processo de amputação tão violento e teria conseguindo se
desvencilhar da escravidão. Mas, o contato com a sociedade escravista e colonial já teria sido
suficiente para eles não serem mais genuinamente africanos e seriam, em sua concepção,
Negros brasileiros com fortes tradições africanas, o sincretismo parece ser a palavra chave
desse Estado.
Ramos coloca que “Os usos e costumes dos quilombos dos Palmares copiavam as
organizações africanas de origem banto, mas as condições introduzidas com os hábitos
aprendidos no Novo Mundo.” 466 Infelizmente não expõe quais hábitos seriam esses, nem que
tradições africanas existiriam em Palmares, pois “infelizmente não se conseguiu fazer um
estudo detalhado da organização dos Palmares. Apenas conseguimos algumas informações,
através dos relatos dos cronistas e dos expedicionários da época.” Isso nos faz supor que ele
chegou a essas conclusões através das concepções teóricas, sem resultados de uma pesquisa.
Concluímos que ele realiza uma distinção do “Estado africano”, utilizando a ideia de
“Estado Negro”, “que os escravos brasileiros organizaram no século XVII, onde se
evidenciaram as capacidades de liderança, de administração, de tática militar, de espírito
associativo, de organização econômica, de constituição legislativa do Negro brasileiro”.467
Ou seja, não era um “estado africano”, ou um “estado estrangeiro”, era um “estado do Negro
brasileiro”, no qual predominava as tradições africanas. É um espaço brasileiro, ou de uma
parcela do povo brasileiro que ele compreende.
Haiti, medo e silêncio: sumiu a metáfora do Haiti, desapareceu o medo do
negro?
Existia uma metáfora no texto de Raimundo Nina Rodrigues que tinha um teor
marcante para o leitor atento, o “mestre” aproxima o Quilombo dos Palmares ao Haiti,
evidentemente isso ocorreu num momento em que a luta daquela população negra não era
465 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1971. p. 34-35. 466 RAMOS, Arthur. Op.cit. 1956. p. 68; RAMOS, Arthur. Op.cit. 1951. P.62. 467 Ibid. p. 75.
188
bem vista na elite brasileira, seja ela detentora do capital econômico, político ou cultural.
Falamos do escritor Thomas Lindley que em “Narrativa de uma viagem ao Brasil”, de 1805,
falou sobre a possibilidade de uma repetição da revolução de São Domingos em território
brasileiro.
Até 1888 o medo estava presente na sociedade, ou pelo menos no grupo escravista, era
uma característica recorrente nos debates ou textos sobre o negro e a escravidão no Brasil.
Como apontou a historiadora Celia Maria M. de Azevedo468, o alvorecer do século XIX
trouxe a revolução haitiana que influiria no enraizado modo de vida escravista. Coube ao
Império do Brasil uma herança, decisiva para que começasse a pensar a necessidade de se
extinguir a escravidão. Houve um “grande medo”, instigado pela sangrenta revolução
haitiana, originada na luta de aproximadamente treze anos ocorridas na colônia francesa das
Índias Ocidentais de São Domingos.
A ilha de São Domingos tinha uma sociedade escravista e colonial, muito parecida
com a sociedade colonial da América portuguesa, pelo menos superficialmente. Tinha no topo
de sua sociedade uma pequena elite branca proprietária de terras e escravos, composta de
funcionários e autoridades administrativas. Como grupo intermediário na escala de poder e
riqueza, os brancos pobres, que nas fazendas eram feitores, administradores ou capatazes; e
nas cidades escriturários, artesãos, alfaiates, soldados rasos; muitos eram também fugitivos,
devedores, criminosos. Desprezados e hostilizados pelos brancos existiam os mestiços livres
que conseguiram se estabelecer praticando algum oficio, mas sem direitos políticos. Na base
dessa sociedade havia um imenso grupo explorado de escravos africanos e seus descendentes.
Vivendo em constantes tensões sociais, revoltas e resistências entre os escravos eram
cotidianas: envenenamentos, suicídios, pilhagens, fugas etc. Dos quilombos surgiu a primeira
revolta organizada contra os brancos, em 1789, que foi conduzida pelo líder quilombola
François Mackandal, cujas forças rebeldes aterrorizaram os fazendeiros brancos durante seis
anos. Durante a Revolução Francesa, o governo estendeu a igualdade de direitos a todos os
cidadãos livres das colônias, esses, até este momento, não detinham os mesmos direitos dos
cidadãos da metrópole. Essa notícia se espalhou por São Domingos e as rebeliões promovidas
por negros e mestiços ficaram mais intensas, e em 1791, iniciou-se uma rebelião sem
468 AZEVEDO, Célia M. M. Onda Negra e Medo Branco: o negro no imaginário das elites século XIX.3 ed. São Paulo: Annablume, 2004. p. 28
189
precedentes. Muitas plantações e engenhos foram destruídos, houve milhares de mortes. Sem
uma liderança definida a situação da ilha era de desordem.
A luta se organizou somente em 1794, sob o comando de Toussaint L’Ouverture e de
seus companheiros. Entre 1791 e 1804, os negros (cativos e libertos) e mestiços da ilha
enfrentaram a elite branca local, os soldados da monarquia francesa, uma invasão espanhola,
uma expedição britânica e uma expedição enviada por Napoleão Bonaparte. Esta última,
derrotada em 1803, permitiu a fundação do Estado do Haiti. A emancipação do Haiti não
representou apenas um movimento político, foi a principal revolução de escravos da
contemporaneidade, uma revolução negra no continente americano. Um exemplo que
assustaria as elites escravistas de outras colônias europeias na América, como o Brasil.
Segundo Azevedo os “grandes” homens que viviam no Brasil, foram tomados pelas
expectativas dos negros subverter a ordem e acabar de vez com a tranquilidade dos ricos
proprietários.
Frente a estas expectativas disseminadas de inversão da ordem política e social, de vingança generalizada contra os brancos, os ouvidos educados não só ouviram como começaram a falar sobretudo a escrever, registrando todo um imaginário em que se sobressai a percepção de um país marcado por uma profunda heterogenia sócio-racial, dividido entre uma minoria branca, rica e proprietária e uma maioria não-branca, pobre e não-proprietária.469
O medo duma reprodução da Revolução Haitiana no Brasil atravessou a tradição
historiográfica sobre o tema, por todo o século XIX. Tomados pelo medo em perder a ordem,
medo do caos, no qual a origem estaria no negro e mulato, ou na liberdade dos escravos.
Possivelmente, esse sentimento fez os diversos autores pensarem o espaço Quilombo dos
Palmares, como um risco a colonização, a civilização e a ordem social.
A revolução haitiana aparece como uma quebra do status quo, por isso houve um
medo de que o acontecido em São Domingos fosse repetido no Brasil, medo do fim da ordem
escravocrata, da estrutura colonial e das hierarquias sociais vigentes. Segundo o geógrafo Yi-
Fu Tuan os homens necessitam de ordem, por isso “de certa forma, toda construção humana –
mental ou material – é um componente na paisagem do medo, porque existe para controlar o
caos.”470 Ao nosso ver Palmares e o Haiti podem ser interpretadas como paisagens do medo,
pois representavam a desordem da estrutura escravocrata e senhorial brasileira. Para Tuan tais
469 AZEVEDO, Célia M. M. op. cit. 2004. p. 29 470 Ibid. p. 12.
190
paisagens delimitam os espaços do Eu e do Outro, estabelecem ou mantém hierarquias
sociais, baseados na representação do perigo e do caos.471
Celia Maria M. de Azevedo se deparou com a obra do paulista Antônio Vellozo de
Oliveira, “Memória sobre os melhoramentos da província de S. Paulo” publicada em 1810.
Preocupado em relação a continuidade da escravidão eram “os casos tristes” e recentes
ocorridos na Jamaica, Suriname, São Domingos e que mereciam uma “particular reflexão”.472
Outro autor que manifestou esse medo foi João Severiano Maciel da Costa, marquês de
Queluz, que governou a Guiana Francesa de 1809 a 1819, e em 1821 publicou “Memória
sobre a necessidade de abolir a introdução dos escravos africanos no Brasil”.473 Na sua
opinião o negro seria inimigo, não só por sua condição de escravo como também por sua
natureza bárbara, africana. Devido o Brasil ter uma “enorme massa de negros escravos e
libertos que fazem ordinariamente causa em comum entre si”, apenas “felizes circunstâncias”
tinham impedido até aquele momento insurreições do tipo de São Domingos.
O historiador Renato Amado Peixoto encontrou nas Atas de reunião de 1846 da Seção
de Justiça e Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado do Império do Brasil, referências
ao temor que as elites brasileiras tinham de ocorrer no país a mesma coisa que aconteceu no
Haiti. Uma das correntes de pensamento dentro dessa instituição, cujo expoente era Caetano
Maria Lopes Gama, acreditava que: “A continuação do Tráfico, além de estimular a mistura
de raças, poderia ser a ruína da Monarquia e das elites, ‘o Cavalo de Troia’ que traria para o
Brasil ‘os defensores das instituições do Haiti’”474 – A permanência da escravidão suscitava o
temor de acontecer uma revolução haitiana no Brasil.
Em 1883 Silvio Romero publica o texto Joaquim Nabuco e a Emancipação dos
Escravos, nele defendia a continuidade da escravidão, pois o negro era inferior e, portanto,
vencido na escala etnográfica. Por conta do negro ser incapaz, não-civilizado, sem noção de
liberdade a escravidão deveria continuar até ser superada economicamente pela implantação
da mão-de-obra livre do imigrante europeu. De acordo com Azevedo a grande preocupação de
Romero era de que “o Brasil não é, não deve ser, o Haiti”.475
471 TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. 472 Idem. 473 Ibid. p. 30 474 PEIXOTO, Renato A. Cartografias imaginárias: estudos sobre a construção da história do espaço nacional brasileiro e a relação História & Espaço. Natal: EDUFRN; Campina Grande: EDUFCG, 2011. p. 62 475 AZEVEDO, Célia M. M. op. cit. 2004 p. 60.
191
É necessário fazer uma observação sobre a possibilidade da influência de Silvio
Romero com relação ao medo do Haiti em Rodrigues: Rodrigues era contemporâneo e leitor
de Romero, foi a ele que direcionou a maior parte dos seus escritos sobre os negros,
principalmente desenvolvendo críticas sobre a pouca cientificidade e as conclusões de
Romero. Dificilmente ele não conheceria esse texto. Fica a dúvida se foi por meio de Silvio
Romero que o medo do Haiti chegou ao médico maranhense. Contudo o nosso argumento é
mais abrangente, estamos mostrando que era um medo corrente nas elites brasileiras,
principalmente escravistas. É também provável a influência do pai de Nina Rodrigues na
origem desse medo, sendo ele senhor de engenho e proprietário de escravos.
Mais frutífero é entender os motivos que levaram Nina Rodrigues a dar continuidade
ao medo. O medo de um novo Haiti parece fora de tempo, já que a escravidão tinha acabado
e o regime republicano iniciava um processo de abertura política. A conjuntura social das
décadas de 1890 e 1900 podem nos iluminar nesse ponto, pois devemos lembrar que foi
durante esse período que ocorreram diversos conflitos sociais. Não temos o objetivo de citar
todos os conflitos, lembraremos apenas Canudos, por ter ocorrido em terras baianas e ser o
maior conflito desse período. E principalmente por Nina Rodrigues ter analisado e explicado
esse acontecimento na inferioridade dos mestiços. Para ele Canudos é um exemplo da
impossibilidade dos mestiços se civilizarem, foi uma “epidemia de loucura”.476 É importante
lembrar que ele desenvolveu um estudo de frenologia com o crânio de Antônio Conselheiro, e
outros “bandidos” o seu objetivo era explicar que a raiz do crime era antes de tudo racial.
Quando o assunto é o negro e o mestiço das grandes cidades a sua concepção não é
diferente da que chegou sobre Canudos. Em diversos textos, ele fala da inferioridade dos
negros e mestiços de Salvador, da dificuldade em fazê-los entender as políticas higienistas e
da resistência ao progresso e a civilização.477 O fato de ele ser um morador de Salvador, com
certeza exerceu uma influência sobre a formação do seu modo de pensar e sobre e a
manutenção desse medo.478 Segundo Roberto S. Souza479, a Bahia, principalmente sua capital
Salvador, chegava à primeira década do século XX na “contramão da história”. As suas
476 RODRIGUES, Nina. Canudos e política. In: MENEZES, Djacir (Org.) O Brasil no pensamento brasileiro: introdução, seleção, organização e notas bibliográficas de Djacir Meneses. Brasília: Ed. Senado Federal, 1998. p. 235 – 244. 477 Idem. 478 O “percurso” deve deixar no texto um sulco. Ver: DERRIDA, Jacques., op. cit., p. 75 479 SOUZA, Robério Santos. Experiências de trabalhadores nos caminhos de ferro da Bahia: trabalho, solidariedade e conflitos (1892-1909). 2007. Dissertação (Mestrado em História) – Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. f. 159.
192
características de uma cidade tradicional contrariavam os novos tempos do discurso da ordem
republicana brasileira. Na visão dos letrados e visitantes contemporâneos, a imagem da Bahia,
era a de um lugar que reinava aquilo que eles gostariam de deixar no passado, e
consequentemente os impediam de se inserir na era do progresso e da civilidade.
Para as elites progressistas, tudo estava pelo o avesso: o nítido atraso econômico de sua capital em relação às outras capitais e a incipiente industrialização; o projeto frustrado de branqueamento racial das elites; a memória da escravidão que se fazia presente nas ruas, no universo do trabalho, nos costumes e na cultura da grande maioria da população, composta por negros, mulatos e mestiços, nas cidades e nos campos; tudo isso constituía obstáculos à ideia de civilização daqueles tempos.480
De diferentes formas, as pretensões das elites progressistas foram frustradas pela
realidade que se apresentava. O que se via, na capital baiana, Salvador, nos primeiros anos do
regime republicano, era uma cidade negra, comercial e com constantes crises econômicas. Na
conjuntura nacional, a coisa não era diferente, para os intelectuais e elites políticas, em um
momento que se “redescobria a nação”, indígenas, africanos e mestiços passaram a ser
entendidos como obstáculos para que o país atingisse o esplendor da civilização, como uma
barreira para a formação de uma verdadeira identidade nacional.481 Para alguém, como Nina
Rodrigues, que partilhava das ideias das teorias do “racismo científico” e do “evolucionismo
cultural”, o Brasil, a Bahia e Salvador não pareciam ter afastado totalmente o perigo de uma
revolta dos negros e mestiços, que continuavam sendo a maioria pobre e não-proprietária. É
dentro desse cenário de produção que foi possível Rodrigues mostrar toda a sua simpatia pela
dissolução de Palmares, afirmando que este era um problema para o desenvolvimento do
futuro brasileiro:
A todos os respeitos menos discutível é o serviço relevante prestado
pelas armas portuguesas e coloniais, destruindo de uma vez a maior das
ameaças à civilização do futuro povo brasileiro, nesse novo Haiti, refratário
ao progresso e inacessível à civilização, que Palmares vitorioso teria
plantado no coração do Brasil. E esse sucesso não foi produto de uma ação
fácil e sem perigo. Custou ao contrário à tenacidade e previdência do
governo colonial grandes sacrifícios de homens e de dinheiro.482
480 Ibid. p. 83. 481 QUEIROZ, Maria Isaura. Identidade cultural, identidade nacional no brasil. In: Tempo Social 1. São Paulo: Edusp, 1989. p.32 482 RODRIGUES, Nina. op. cit. 1905. p. 652.; RODRIGUES, Nina. op. cit. 1912. p. 238; RODRIGUES, Nina. op. cit. 2010. p. 85
193
O medo constante em ver acontecer no Brasil o que ocorreu no Haiti, era um exemplo
da sua preocupação com a “garantia da ordem social” que perpassa as suas obras e é lembrado
por ele às autoridades que o leem. Utilizando o exemplo do Quilombo dos Palmares como
impossibilidade de organização do negro, mesmo os mais avançados, de alcançar a civilização
ariana e de se adequar totalmente a organização do branco.483 Esse medo em perder a ordem,
medo do caos no qual a origem entende estar no negro e mulato, possivelmente, o faz pensar o
espaço de Palmares como um risco à civilização, o medo da paisagem da revolução haitiana
sobrepõe a sua escrita sobre Palmares, o Quilombo é uma paisagem do medo.484 É a partir do
medo que se forma uma tensão na elocução metafórica unindo o Haiti com a sua história de
independência e revolta negra no final do século XVIII ao Quilombo ocorrido no século
XVII.
Existe uma ausência dessa metáfora ou topos nos escritos de Arthur Ramos sobre o
Quilombo dos Palmares. Evidentemente não é esperado por nenhum pesquisador que todas as
ideias, conceitos ou topos elaborados por um intelectual venham a ser seguidos por aqueles
que se colocam como herdeiros. Então por que essa ausência me inquietou? Foi porque ela me
gerou um questionamento importante para compreender Arthur Ramos e, quem sabe, o seu
momento histórico: Ainda existia um medo das populações negras em Arthur Ramos e na
elite da década de 1930 e 1940?
Não significa que Arthur Ramos não fale sobre o Haiti, ainda que de maneira resumida
sempre que ele está escrevendo sobre o grupo linguístico africano fon ele demonstra que os
escravos que foram utilizados no Haiti tinham essa origem.485 A questão é que ele não
estabelece proximidades com Palmares, nem faz uma análise ou uma crítica a guerra da
independência travada por aqueles negros. Possivelmente a sua leitura ou escritura sobre esse
assunto esta permeada pela leitura dos livros de Mellville Herskorvits, Richardo Patte e Louis
Price-Mars, como demonstra a sua correspondência com estes intelectuais durante os anos de
1935 e 1937, sempre procurando saber algo mais sobre o assunto ou conseguir por cortesia
um livro para completar a sua bibliografia.486 Essas cartas demonstram que havia uma leitura
especializada sobre o tema, por sinal devido aos seus objetivos de divulgação internacional de
483 RODRIGUES, Nina. op. cit. [s.d]. p. 118, 133. 484 TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. 485 RAMOS, Arthur. op. cit.1971. p. 95-116 486 Essas cartas estão no Acervo da Biblioteca Nacional: RAMOS, Arthur. Rio de Janeiro, 28/2/1935. 4 p. Rasc. Ms.I-35,15,172; RAMOS, Arthur. Carta a Louis Prince Mars. Rio de Janeiro, 6/7/1936. 2 p. Rasc. Ms. I-35,17,250; PATTEE, Richard. Carta a Arthur Ramos. Porto Rico, 15/12/1935. 2 p. Orig. Dat.I-35,36,2.034.
194
seu nome e suas obras, através dessa rede de relações intelectuais, dificilmente ele poderia
escrever algo que o comprometesse com outros colegas. Por exemplo, Louis Price-Mars era
um intelectual negro e caribenho que pesquisava a religião no Haiti.
Sobre o medo das populações negras em Arthur Ramos, temos um indício de que esse
silenciamento é provocado por uma ideia de nação construída pela democracia social e
étnica.487 Esse indício foi encontrado num artigo escrito para a primeira edição da revista
“Senzala”, de janeiro de 1946, meio de comunicação da “imprensa negra”, no qual esse
intelectual pode dialogar com os grupos de intelectuais afro-brasileiros e do incipiente
“movimento negro”.
O texto é intitulado “Zumbi” e foi escrito para a mocidade de homens e mulheres de
cor falando da realidade social e econômica precária enfrentados por esse grupo social que
tem “Zumbi como padroeiro”, afirmando que essa realidade é agravada por uma indisposição
latente de muitos contra o elemento de cor, inconsciente ou envenenados por “arianistas
aborígenes” que esquecem a origem comum do brasileiro nas três raças. Ele faz uma sugestão
para essa mocidade através da imagem de Zumbi:
Porém, não te entristeças, Zumbi. O teu idealismo, o teu feito heroico, a tua combatividade não foram em vão. Nesta hora tumultuosa por que passa a humanidade, o teu exemplo épico e magnifico ressurge da noite dos séculos como uma aurora luminosa indicando às gerações moças do Brasil de cor um novo caminho para a solução do problema. E os moços compreender-te-ão. Se naqueles tempos a atitude era a hostilidade, de adversidade, hoje, eles em breve desfraldarão uma nova bandeira que não é a da separação, mas a da integração, da colaboração sincera, despretensiosa e construtiva, de afirmação consciente do próprio valor, do desassombro e da dignidade.
E com o coração voltado para o ideal da perfectibilidade da nacionalidade brasileira eles hão de afirmar-se e lutar para a maior grandeza da nossa estremecida Pátria.488
O diálogo com essa imprensa era utilizado para manter a sua influência intelectual
sobre esses grupos. A parte interessante é que ele lembra a “mocidade de cor” que o tempo de
Zumbi já não existe mais, a violência, o isolamento e a combatividade não merecem mais
espaço, o caminho para as mudanças dessa condição desfavorável na sociedade é a integração
à nação. Esse é um caminho pacífico que nos moldes de uma ideologia da democracia étnica e
487 GUIMARÂES, Alfredo. Classes, raças e democracia. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2012. p. 148-152. 488 RAMOS, Arthur. Zumbi. In: Senzala: revista mensal para o negro. Ano 1. n. 1. Janeiro. São Paulo, 1946. p. 18.
195
social que ele e outros pensadores ajudaram a divulgar, o branco não oprime o negro quem fez
esse papel foi a condição histórica dele na escravidão, portanto o negro não deve reagir.
Sabemos que a metáfora não é um ornamento de discurso, e que por outro lado oferece
uma nova informação, diz algo de novo acerca da realidade. Isso significa que ela é volátil.
Todavia, Paul Ricœur489 demonstrou que as metáforas estão relacionadas a símbolos ou
sistemas simbólicos. O nível simbólico tem uma lenta evolução, os sistemas simbólicos são
reservatórios de sentidos, isso ocorre porque eles estão diretamente ligados ao cosmos. As
metáforas de raiz são dominantes capazes de organizar e gerar uma rede que serve de junção
entre o nível simbólico e o nível metafórico.
Tratando do Quilombo dos Palmares observamos que o nível metafórico, está
carregado de sentidos anteriores que vem a tona no momento da escritura, que é um percurso
e uma operação, trajeto que deixa traços, os rastros que procuramos observar nesses textos.490
Acabaram por determinar um trajeto de uma herança, que não está baseada na ideia de
imitação ou somente repetição, pois isso é impossível. Uma herança heterogênea marcada
pelo trajeto do herdeiro como leitor e, dos seus escritos como modo de se inscrever no mundo.
Arthur Ramos procurou na herança de Nina Rodrigues, uma estrutura narrativa para o
seu escrito sobre o Quilombo dos Palmares, além disso, utilizou os conhecimentos do
“mestre” como fonte secundária sobre o evento. Por causa do seu compromisso enquanto
intelectual da ‘Escola Nina Rodrigues’ uma herança ainda maior é por ele reivindicada, a
posição de responsável por pensar o negro como uma questão nacional.
O Quilombo dos Palmares escrito por Nina Rodrigues inova ao utilizar a etnologia e
revelar a produção cultural, a organização política, a estrutura social e a economia dos negros
que dirigiram o reduto. No caso, Ramos teria procurado seguir a mesma linha, do mesmo
modo que o “mestre” ele também exercia a etnologia, portanto vivenciava experiências em
ambientes dos afro-descentes e seria impossível não transportá-los para o seu mundo e a sua
escrita. Por outro lado, o “discípulo” teria um trabalho ardoroso – veremos isso nos próximos
capítulos – distanciar-se da “visão de mundo” de seu “mestre”, na qual os não-brancos são
inferiores, indesejados e temidos como participantes ativos da ordem social, olhar pessimista
com o futuro de um país negro e mestiço. Visão que ainda tinha representantes, na década de
489 RICŒUR, Paul. op. cit. 1976. p. 57-81. 490 DERRIDA, Jacques. op. cit. 2012. p. 62.
196
1930 e 1940, e que Ramos não conseguiu se desvencilhar totalmente, principalmente no que
diz respeito às concepções da democracia social e étnica.
O “mestre” imprimiu essa perspectiva como “homem de ciência” do racismo científico
e por dialogar com o evolucionismo cultural. Evidentemente o discípulo estava, de certa
maneira, cada vez mais distante de uma visão negativa sobre Palmares, muito por causa das
novas produções sobre o tema e pela influência da antropologia cultural.
197
V. "A República de Palmares": história, tempo e espaço do negro
brasileiro.
Entendemos por historiografia, ou “escrita da história”, o produto do trabalho histórico
e da “operação historiográfica” efetuada por um sujeito, o historiador. De acordo com o
pensamento de Michel de Certeau, a história contemporânea,491 enquanto discurso, é uma
produção caracterizada por três fundamentos: o autor é proveniente de um "lugar de
produção”, “lugar social da operação científica”, “instituição social”, lugares (sociais,
econômicos e culturais) aos quais todo sistema de pensamento está referido; o sujeito lança
mão de procedimentos de análise e práticas "científicas", caracterizados pela disciplina ou
“ciência” histórica, institucional e tecnicamente ligada a uma prática do desvio,492
fundamentalmente, ligada a produção, organização e análise de fontes e documentos
históricos; o trabalho é condicionado pela escrita, a manifestação do resultado é uma
narrativa; a construção é a relação de um texto, seguindo regras de uma literatura específica, a
historiografia.
É pela relação entre estes três fundamentos que estabelecemos como uma obra, um
livro, ou qualquer suporte de texto é historiográfico. Fernando Nicolazzi, no seu livro sobre a
historiografia de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, fez bem em sugerir que:
(...)pensar em termos de escrita da história equivale a considerar, depois de Certeau, as relações entre escrita e história, discurso e realidade, linguagem e experiência. Ainda que os pares da oposição sejam eficazes apenas como uma construção analítica, pode-se dizer que a reflexão historiográfica, no sentido geral de uma história da história, opera na fronteira dessa dicotomia; historiografia se constitui, pois, como uma reflexão sobre os textos, sobre essa materialidade que permite unir, mesmo que provisoriamente, um signo e um significado, um discurso e uma experiência.493
491 O historiador e teólogo francês Michel de Certeau afirmou que a história pode ser compreendida como uma produção, denominada de “operação historiográfica”. Para elaborar tal formulação, o fundamento básico é o entendimento de que o termo “história” na contemporaneidade conota, sucessivamente, a “ciência” (a ciência histórica) e seu objeto, ou melhor, a explicação e a realidade daquilo que se passou ou se passa. 492 “O importante não é a combinação de séries, obtida graças a um isolamento prévio de traços significantes, de acordo com modelos pré-concebidos, mas, por um lado, a relação entre estes modelos e os limites que seu emprego sistemático faz aparecer e, por outro lado, a capacidade de transformar estes limites em problemas tecnicamente tratáveis.” CERTEAU, Michel. op. cit. 2006 p. 86. 493 NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 15.
198
No trabalho de Nicolazzi aparece como fundamental a conjunção entre o trabalho da
interpretação histórica e a representação do passado. Algo muito próximo da compreensão de
historiografia desenvolvida por Paul Ricœur,494 que também é inspirado em Certeau e dividiu
a operação historiográfica em três fases: a fase documental, que vai da declaração de
testemunhas oculares à constituição dos arquivos e que escolhe como seu programa
epistemológico a prova documental; a fase explicativa/compreensiva, que define o tratamento
das perguntas e respostas históricas, diz respeito aos modos de encadeamento entre fatos
documentados e a elaboração de uma interpretação; a fase representativa refere-se a colocação
em forma literária ou escrita do discurso levado ao conhecimento dos leitores da história.
Considerando a contribuição desses autores, a história e sua historiografia é a
representação do passado. Enquanto representação ela tem algumas características: a sua
relação com o poder, ou com lugares de produção; a elaboração de uma interpretação
fundamentação dos fatos; a utilização de fontes e documentos históricos; o uso de uma
cronologia ou concepção de tempo histórico; a construção de um espaço; por último, a
produção de uma narrativa. Ao mesmo tempo que a narrativa é o produto da operação
historiográfica, ela é prescrita como o início. Essa é a condição que faz dela a fonte histórica
para um trabalho de “história da historiografia”, pois nela está o sentido dessa operação.
Tanto Michel de Certeau495 percebeu que a relação entre os diversos fundamentos deve
sempre ser colocada pelo historiador na representação, quanto Paul Ricœur496 compreendeu
que a história é uma escrita em todo o seu percurso ou em suas fases.
A historiografia é marcada por um plano metodológico de trabalho com fontes
históricas, um trabalho interpretativo das fontes e sobre o passado, e uma representação
escrita do passado. No presente capítulo, pretendemos desconstruir a narrativa de Arthur
Ramos sobre a República dos Palmares, sendo que é preciso analisar “The Negro in Brazil”
como produção historiográfica. Então, qual a concepção de história que influenciou o método
e a interpretação de Arthur Ramos? Qual a categoria de tempo ou regime de historicidade
utilizado no livro e na sua produção de Palmares? Como foi construída a representação do
espaço palmarino?
494 RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007. p.151-301 495 CERTEAU, Michel. Op. cit. 2006. 496 RICOER, Paul. Op. cit. 2007. p. 247-249
199
Devemos fazer uma observação sobre como agiremos nessa análise, muitas vezes
lançaremos mão de outros livros e textos de Arthur Ramos, isso ocorrerá sempre que
observarmos uma continuidade de seu argumento em outros escritos. Esse tipo de recurso é
possível pela maneira como Ramos construiu a sua obra, o seu legado, o seu pensamento
sobre o negro brasileiro. Deu uma condição de continuidade, fazendo poucas correções de um
texto a outro, mas, particularmente, repetindo seus argumentos e trechos inteiros de seus
escritos anteriores em vários textos de sua autoria. Como exemplo temos as versões
modificadas do capítulo “A República de Palmares”, publicado em 1939 e 1942 como “O
espírito associativo do Negro brasileiro”.497
Durante a primeira metade do século XX, a historiografia no Brasil era dominada pelo
IHGB e os Institutos locais. De acordo com Ângela do Castro Gomes, o regime republicano e
as novas exigências políticas influenciaram a concepção de história e o tipo de narrativa
histórica que estaria sendo elaborada no período. Um regime que precisava se legitimar,
produzindo um “passado” com a possibilitasse de reconhecer e ser reconhecido, também
projetando “futuros” nos quais se pudesse acreditar. “A Abolição e a República impactaram
profundamente o processo de construção da identidade nacional brasileira, até porque apenas
depois desses eventos foi possível “imaginar” a existência de uma nação constituída por um
“povo”, ou seja, integrada juridicamente por homens livres. Houve uma eclosão de debates
políticos e de uma variada produção intelectual que debatia a existência, ou não, de um “povo
brasileiro”. Era um novo delineamento das questões políticas e culturais trazidas pelo século
XX, no que se refere ao processo de construção, não apenas do Estado, mas da nação.498
Se desde a década de 1870 diversas teorias científicas e sociais influenciaram a
intelectualidade brasileira, denominadas de “ideias novas”, foram a Abolição e a República
que trouxeram grandes mudanças num país que estava vivenciando os “tempos modernos”. O
processo de instauração do moderno, enquanto mudanças políticas e sociais, mas também do
pensamento, e a tentativa de construção de um lugar para o Brasil entre as nações civilizadas,
obrigou a uma autorreflexão por parte da intelectualidade. Foi lançado um olhar retrospectivo
sobre a história e sobre as raízes da nação, com o objetivo de poder constituir a ideia de
brasilidade.
497 RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. Revista do Arquivo Municipal, Rio de Janeiro, v. XLVII, n.04, p. 103-126, mai., 1939. RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. In: ______. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1942. p. 117- 144 . 498 GOMES, Ângela de C. A República, a história e o IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009. 24-25.
200
Ângela de Castro Gomes procurou analisar a concepção de história e as características
de sua escrita no início do período republicano, destacando o papel do IHGB como instituição
que concentrava esse papel. Nessa nova realidade, os historiadores teriam o desafio de
produzir um “passado comum” para essa sociedade heterogênea: “a constituição de
referenciais que lhe assegurem uma “origem” e lhe garantam “continuidade” no tempo, a
despeito das transformações que possa ter efetivamente sofrido”.499 Os diversos grupos
sociais precisavam ser colocados na história nacional, contudo, os negros, os indígenas e os
mestiços não partilharam do mesmo status que os brancos nessa história
Esse modelo de nação brasileira está perfeitamente de acordo com a análise sobre as
formações das nações modernas do crítico cultural Homi Bhabha: uma “escrita-dupla” ou
“dissemi-nação”; a Nação construída entre duas estratégias discursivas, no “entre-lugar" dos
discursos “pedagógico” e “performático”. O pedagógico, a narrativa dos mitos fundadores no
tempo historicista, cujo esforço, empregado em reunir a nação como uma uniformidade, com
um passado que nunca cessa, que se conserva perenemente presente, costurando tecidos
históricos tradicionais para expressar a acumulação do discurso progressista de um todo. O
pedagógico “funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo [...] encapsulado numa
sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade produzida por
autogeração”.500 Envolve o anonimato do coletivo, em função do todo, tomando o geral como
representativo de um território. As fronteiras espaciais funcionam enquanto agentes
legitimadores da tradição de um tempo interior, fronteiras totalizadoras, tanto reais quanto
conceituais. Um tipo de narrativa que privilegia a coesão social, “a Mesmice do tempo,
convertendo Território em Tradição, convertendo o Povo em um.”501
A contra-narrativa do discurso performático proporciona as fissuras provocadas no
discurso historicista nacional. O povo, no discurso performático, é representado enquanto
sujeito da nação, aquele que a constitui, uma peça fundamental de articulação dos discursos
ambivalentes da nação. Resulta da tessitura dos retalhos descartados pela narrativa
pedagógica, fragmentos que tematizam o particular, uma visão que não oferece continuidade
discursiva ao projeto nacional como um todo. São silenciados, porém, permanecem presentes,
aptos a desorganizar as estratégias ideológicas que atribuem à nação uma identidade
essencialista.
499 Ibid. p. 29-30. 500 BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: EUFMG, 1998 . p. 209. 501 Ibid. p. 211.
201
Uma vez que a liminaridade do espaço-nação é estabelecida e que sua “diferença” é transformada de fronteira “exterior” para sua finitude “interior”, a ameaça de diferença cultural não é mais um problema do “outro” povo. Torna-se uma questão da alteridade do povo-como-um. O sujeito nacional se divide na perspectiva etnográfica da contemporaneidade da cultura e oferece tanto uma posição teórica quanto uma autoridade narrativa para vozes marginais ou discursos de minoria. Eles não mais necessitam dirigir suas estratégias de oposição para um horizonte de “hegemonia”, que é concebido como horizontal e homogêneo.502
A “cidadania” dos negros foi um dos grandes desafios proporcionado pela Abolição e
a República. Coube aos intelectuais pensarem qual seria a participação desse grupo na história
nacional e sua contribuição para a sociedade contemporânea. As minorias silenciadas pelo
discurso hegemônico e homogêneo da nação, começam a arranhar essa estrutura discursiva,
causar-lhes fissuras com suas contra-narrativas, com o performativo. A heterogeneidade
tornou-se um problema da nação, devido a ambivalência da modernidade, em países que
estavam vivenciando a pós-colonização isso se torna evidente, é o caso do Brasil.
No silenciamento dessas minorias, podemos identificar o papel do intelectual como
representante desse povo, como nos ensinou Gayatri Spivak.503 No entanto, se levarmos em
consideração o pensamento de Bhabha504 e a realidade que encontramos ao pesquisar Arthur
Ramos, esse silenciamento é mais complexo, muitas vezes, estabelecido por um diálogo, no
qual o intelectual representa o grupo social sendo, portanto, o porta voz ou agente silenciador,
mas, não podemos ignorar que o contato com esses sujeitos produtores de uma contra-
narrativa ou discurso performático faz com que esse intelectual traduza tal discurso. Arthur
Ramos manteve proximidade com diversos grupos da imprensa negra, ou, do movimento
negro, como é o caso do Centro de Cultura Afro-Brasileiro ou a Frente Negra Brasileira.505
Outro tipo de relacionamento que poderia justificar a criação dessas fissuras, no discurso de
intelectuais como Ramos, foi baseado no trabalho etnográfico. Jorge Amado escreveu um
texto que exemplifica bem essa relação. Ao visitar a casa do professor Martiniano, um pai de
santo negro, foi-lhe mostrado uma sala onde guardava fotos e livros dos “homens de
sciencia”, que dedicaram estudo ao negro brasileiro, alguns deles o próprio líder religioso
502 Ibid. p. 213. 503 SPIVAK, Gayatri C. op. cit. 2010. p. 35-39. 504 BHABHA, Homi. op. cit. 1998. p. 214-221. 505 Ver, sobre esse assunto: SILVA, Júlio Claúdio. Movimentos sociais, intelectuais e comemorações: o cinquentenário da lei áurea e o centenário da Lei Eusébio de Queirós. In:______. O Nascimento dos Estudos das Culturas Africanas, o Movimento Negro no Brasil e o Anti-racismo em Arthur Ramos (1934-1949). Dissertação Mestrado em História Social. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2005. p. 73-124
202
guiou em visitas a terreiros e outros lugares, Arthur Ramos era um desses homens que
Martiniano prestava amizade, gratidão e admiração. 506
O trabalho de Arthur Ramos está inserido nesse entre-lugar desde seus primeiros
textos sobre a população negra, e seus livros “O Negro brasileiro” e “O Folk-lore negro
brasileiro”, nos quais a cultura negra foi abordada como parte da cultura nacional. Todavia,
pelo caráter historiográfico, o livro “The Negro in Brazil” tinha um papel diferenciado de seus
outros livros, nele o objetivo era demonstrar o percurso do negro no Brasil, do passado ao
presente, a participação na constituição da civilização brasileira, inserindo o negro como
sujeito na história nacional. Não apenas como força-de-trabalho passiva, nesses trabalhos a
história brasileira foi abordada com uma grande “contribuição do negro”.
Na produção dos discursos pedagógicos e performáticos, as legitimações de discursos
científicos são de fundamental importância para estabelecer o poder dessas construções.
Desde o século XIX e início do XX, as ciências naturais tiveram grande importância e
influenciaram as ciências sociais e a história. É nessa conjuntura, de debate sobre o caráter
científico, que será desenvolvida a “história metódica”, ancorada no “gosto pelo arquivo” e
orientada pelas operações de busca, seleção e ordenamento dos “documentos”, acompanhada
pelo exercício da “crítica interna”. Organizar os materiais metodicamente, para aplicar-lhes os
métodos indutivos e dedutivos, conjuntamente com esses métodos, o descritivo, considerado
um excelente instrumento para aquisição de verdades gerais. Como uma exigência do “novo
tempo” à nação moderna, os historiadores passaram a refletir sobre a questão da história como
ciência, esses parâmetros tornaram-se comuns para aqueles que queriam escrever história.
História, ciência e progresso eram termos correlatos de uma equação, no início do século XX.
Um modelo que se difundirá, sobretudo, por meio da leitura de historiadores franceses e alemães, a partir da década de 1880, e que se tornará conhecida como o de uma história “metódica”. Uma história “moderna”, que dominará o campo historiográfico internacional até os anos 1930, quando a École des Annales investirá contra ele, tornando-o parâmetro do que se deveria evitar como prática na disciplina.507
Nessa construção da história nacional, a preocupação com a cientificidade era
marcante, tanto através do método de pesquisa documental e seriação dos fatos históricos,
quanto as explicações elaboradas através de “leis gerais”. Analisando textos de Pedro Lessa e
506 AMADO, Jorge. O Negro Brasileiro e seus heróis. Diário Carioca, 2 de fevereiro de 1936. 507 GOMES, Ângela do C. Op. cit. 2009. p. 43.
203
Oliveira Vianna sobre a escrita da história, Ângela Gomes508 observou que, no pensamento
historiográfico brasileiro do início da República, havia também uma preocupação com a
subjetividade, aproximando essa ciência da arte. Constatação também da pesquisa de
Fernando Nicolazzi509, sobre o estilo de história empreendido por Gilberto Freyre em Casa-
grande & senzala. Algumas questões que marcam o pensamento historiográfico brasileiro,
pelo menos até a década de 1930, de acordo com Ângela Gomes510, seriam: a objetividade do
conhecimento; as relações da História com outras ciências sociais; e como o estatuto de
ciência e/ou de arte da História era pensado e discutido. Seguramente, Arthur Ramos prezava
pela cientificidade das ciências sociais e da história, utilizava esse topos de cientificidade,
para legitimar os seus argumentos, principalmente no que dizia respeito aos falsos postulados
raciais. No pensamento de Arthur Ramos, as ciências do homem teriam a exatidão presumível
das ciências naturais.511
A concepção de história de Arthur Ramos está fundamentada na “história metódica”,
na qual observamos uma crítica documental interna, cujo maior exemplo é o seu trabalho com
as estatísticas sobre a escravidão.512 Essa concepção de história serviria para construir uma
homogeneidade do passado nacional, uma origem comum; deveria ordenar o tempo e o
evento único formador da nacionalidade. O tempo de escrita da nação no discurso
pedagógico, segundo Homi Bhabha513, é linear, ou seja, é um tempo homogêneo
transformando a comunidade numa representação horizontal do espaço. Na temporalidade
pedagógica; o discurso unificador das vozes dominantes, torna-se uma escrita narcisista na
qual o todo da nação é representado, metonimicamente, pela parte que escreve a História
oficial. Por isso, é marcado pela ideia de coesão social no presente - muitos como um. É
constituída por ideias baseadas num passado historicamente concebido, com uma função
ideológica.
Afirmar a linearidade do tempo, aplicada por Arthur Ramos, na organização de seu
argumento não seria suficiente para argumentarmos sobre a localização de seu livro no tempo
pedagógico, ou no regime de historicidade moderno,514 ou no tempo histórico moderno515. No
508 Ibid. p. 51-52; 77-78. 509 NICOLAZZI, Fernando. Op. cit. 2011. 510 GOMES, Ângela do C. op. cit. 2009. p. 78. 511 TAMANO, Luana E. O. op. cit. 2013. p. 142 512 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 19-40. 513 BHABHA, Homi. Op. cit. 1998. p. 198-238. 514 Sobre os regimes de historicidades, ver: HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
204
entanto, observamos a influência dessa temporalidade no esforço empreendido em organizar a
história do negro brasileiro, com a ordem do tempo homogêneo da história nacional, cuja
origem é a colonização, aqui focado na escravidão; e o final é a República, símbolo da
modernidade nacional, representado pela liberdade e participação política e intelectual do
negro, sua completa integração a civilização brasileira. Um longo trajeto do negro brasileiro
do primitivo à civilização.
Nessa escrita, o processo de construção da nação é derivado do trabalho do europeu,
do branco, cujo processo “civilizatório” é responsável pelo desenvolvimento da nação
“moderna”: a história “metódica”, ou “história moderna”, influenciada pela sociologia
comteana, fazia generalizações e “antecipava” o futuro; as “filosofias da história”
evolucionistas, construíam uma linearidade, estabelecendo “etapas” de desenvolvimento,
antecipáveis, porque foram vivenciados por outros povos; a etapa final é a “civilização”, a
“antropologia boasiana”, com seu conceito de aculturação revelava uma expectativa de futuro
para as sociedades contemporâneas, porém, nesse caso, apostava-se na singularidade dessas
sociedades, ou seja, a ideia de “progresso” influenciou a “história metódica”, o
“evolucionismo cultural” e a “antropologia boasiana”.
Observando que essas três perspectivas influenciaram o trabalho de Arthur Ramos,
pensamos que se tornava impossível, para ele, sair das amarras das ideias de progresso e
civilização. Portanto essa história é considerada um dos índices de “civilização e progresso”
de uma nação “moderna”, princípios que regiam a humanidade para uma concepção de
melhoramentos e aperfeiçoamentos inevitáveis e contínuos.
Segundo Rodrigo Turin, o papel do discurso histórico é ser um discurso fundador, que
deveria dar ordem e inteligibilidade à vida, ao mesmo tempo em que a inserir em um tempo
histórico. Compreendemos o tempo histórico no modelo exposto por Reinhart Koselleck516, o
qual pode ser compreendido através da relação da experiência e da expectativa. A experiência
é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados;
a expectativa, por sua vez, também se realiza no hoje, é futuro presente. O tempo histórico
pode ser compreendido como a distância entre o “espaço da experiência” e o “horizonte de
expectativa”. A compreensão de tempo moderno é parte da mudança com a descoberta de um
515 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. Puc-Rio, 2006. 516 KOSELLECK, Reinhart. op. cit. 2006. p. 305-328.
205
novo horizonte de expectativa; o progresso, parte de uma ideia de melhoramento da existência
terrena, seria um futuro aberto.
O progresso reunia, pois, experiências e expectativas afetadas por um coeficiente de variação temporal. Um grupo, um país, uma classe social tinham consciência de estar à frente dos outros, ou então procuravam alcançar os outros ou ultrapassá-los. Aqueles dotados de uma superioridade técnica olhavam de cima para baixo o grau de desenvolvimento dos outros povos, e quem possuísse um nível superior de civilização julgava-se no direito de dirigir esses povos. Na hierarquia dos estamentos via-se uma classificação estática, que o impulso das classes progressistas deveria ultrapassar.517
A ideia de progresso, ou de uma perspectiva teleológica, está na obra de Arthur Ramos
desde o seu título na edição brasileira, com o conceito de “civilização brasileira” adotado de
Afonso Arinos de Mello Franco. O conceito apontava para o desenvolvimento cultural
brasileiro, na relação entre as três raças, no percurso de um tempo linear, de uma visão
“horizontal”518 da sociedade, no espaço físico brasileiro. No caso de Arthur Ramos, ele se
afastou de alguns determinismos adotados por Mello Franco, porém estabeleceu um horizonte
de expectativa quando abordou a civilização brasileira como mestiça, a ideia de que o Brasil é
uma “democracia racial”. A ideia da civilização brasileira como um exemplo da integração
racial não estava fundamentada somente no presente, mas na projeção de uma nação sem
racismo, que deveria ser exemplo para os demais países.519 Elabora respostas para o
“problema brasileiro”, que seria a mestiçagem.520
A hipótese de Mello Franco, implica a ideia de que a moderna civilização ocidental
europeia representa o desenvolvimento cultural mais elevado, para qual a “cultura brasileira”
deveria percorrer, mesmo com a inevitável marca da miscigenação. Bem como todas as
culturas primitivas, deveriam caminhar em direção dessa civilização, como implicava as
concepções da teoria evolucionista. Porém, não acreditamos que Arthur Ramos tenha aceitado
essa concepção por inteiro, levando em consideração a sua aproximação da antropologia
desenvolvida por Franz Boas e seus “discípulos”, ficaria difícil aceitar essa visão de um
517 KOSELLECK, Reinhart. op. cit., 2006. p. 317. 518 Visão “horizontal” da sociedade, por apontar organizar a sociedade como o europeu, branco e civilizado no seu topo. Também podemos ver dessa maneira a famosa hierarquia: civilizado, selvagem e bárbaro. Ver: BHABHA, Homi. op. cit. 1998. P. 210 - 212. 519 Quando assume o cargo de diretor do Departamento de Ciências Sociais da Unesco, ideia do Brasil como exemplo de integração racial é concretizado, possível solução dos problemas raciais que abalaram o mundo. Porém, essa era uma visão dele já na década de 1930, como podemos observar no já mencionando “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra o preconceito racial”. 520 NICOLAZZI, Fernando. Op. cit. 2011. p. 38.
206
“desenvolvimento ortogenético” em direção à civilização moderna ocidental. O seu trabalho
de pesquisa sobre o Negro e sobre a mestiçagem, propõe que foi preciso desenvolver uma
nova concepção de “civilização brasileira”. Como afirmou Franz Boas: “(...) se admitirmos
que é possível existirem diversos tipos definitivos e coexistentes de civilização, fica evidente
que não se pode manter a hipótese de uma única linha geral de desenvolvimento.”521
O objetivo da escrita da História local, até a década de 1930, continuava sendo
interpretar e explicar o Brasil contemporâneo, através da sua evolução histórica. Oliveira
Vianna já havia observado que, a “complexidade das causas”, exigiam dos historiadores o
diálogo com outros saberes. Ângela do C. Gomes analisou o discurso de posse de Oliveira
Vianna como sócio efetivo do IHGB em outubro de 1924, nele encontrou diversas
características e preocupações que orientariam a escrita da história brasileira.
(...) mesmo aparelhado com métodos de pesquisa e mantendo o diálogo com várias ciências, o historiador apenas “isolava” uma parte desses fenômenos, o que tornava evidente o caráter parcial do conhecimento histórico. Na primeira acepção, o historiador se tornava “menos especializado”, no sentido crescentemente forçado à colaboração com outros saberes. Na segunda, tornava-se “mais especializado”, pois ciente, inclusive em função do primeiro aspecto, da crescente dificuldade de produção de grandes sínteses; de conhecer “todas as partes” de um complexo fenômeno histórico.522
Em meados da década de 1920, segundo Mônica Pimenta Velloso523, a questão era a
compreensão do nacional, entendendo-o como elemento de mediação para o diálogo com as
vanguardas artístico-intelectuais.
Buscava-se assim firmar uma experiência impar e original para, através dela, o país apresentar-se no concerto das nações consideradas civilizadas. Reconhecer a nossa identidade multifacetada foi, portanto, uma problemática comum às distintas gerações intelectuais. A busca da brasilidade esboça uma longa trajetória mobilizando os intelectuais da geração de 1870 aos da década de 1920. 524
Coube aos historiadores elaborar grandes sínteses de história nacional, trabalhos que
procuravam abarcar a história do Brasil em sua totalidade, desde o descobrimento aos dias
521 BOAS, Franz. Os métodos da etnologia. In: CASTRO, Celso (Org.). Antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 41-52. p. 42. 522 GOMES, Ângela do C. op. cit. 2009. p. 76. 523 VELLOSO, Mônica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de A. N. (Orgs.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. (O Brasil republicano; v.1). p. 382. 524 VELLOSO, Mônica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de A. N. (Orgs.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. (O Brasil republicano; v.1). p. 382.
207
atuais, como um todo complexo em que era preciso explicar as esferas econômicas, sociais,
políticas, culturais, etc. Isso não significou que os trabalhos demonstravam uma concentração
com a mesma intensidade ou protagonismo para todas as esferas. Geralmente, as suas
explicações concentravam-se numa dessas áreas e determinava as outras como subordinadas,
explicações marxistas como as de Pedro Calmon dedicavam-se a economia como
determinante das condições sociais; explicações liberais ou conservadoras como a de Affonso
Arino de Mello Franco procuravam na política as suas respostas; no caso de Arthur Ramos ele
procurou explicar o Brasil através da cultura como determinante.
Uma compreensão adequada da contribuição do Negro brasileiro requer o conhecimento das várias culturas que compõem a sua origem africana. Os estudiosos brasileiros empreenderam a difícil tarefa de pesquisar os elos da cadeia ente o passado africano e a atualidade brasileira, examinando as sobrevivências negras na América – folclore, religião, organizações sociais e artes plásticas. 525
A história não estava isolada como saber, outras “ciências” formulavam leis gerais que
explicavam, tanto o presente quanto o passado, eram utilizadas para nortear o discurso do
historiador. Segundo Gomes, o IHGB, na década de 1920, já havia concluído que deveria
estudar a “evolução do povo brasileiro” sob a ótica do presente. A preocupação de construir
uma “nova” história da civilização brasileira partiu da reconhecida mudança gerada pela
Abolição e a República na sociedade brasileira, era preciso construir a “nova” história da
nação ou do povo.
A História era de interesse de todos os homens, universalmente, pois todos fariam
parte agora de uma mesma e única história, a da “civilização”. A unidade nacional, ou os
estados nacionais inventados desde o final do século XVIII, fariam parte da história geral,
modificando a ideia de representação do passado que estariam concentrados na unidade de um
povo e seu reconhecimento dentro dessa nação, fez-se necessário a criação de um “passado
comum”.526
Se, como demonstrou Manuel Luis Salgado Guimarães, a identidade e a história
nacional fez parte do projeto do IHGB desde 1848, foi com a Abolição e a República que esse
projeto tornou-se complexo, pois deveria englobar todos os grupos sociais, como os negros,
mestiços e indígenas. A história teria uma “utilidade prática”, a criação de “um sentimento de
patriotismo” e de uma “consciência coletiva” formados pela admiração despertada pelo 525 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 32; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 28. 526 Sobre a representação da Nação brasileira no século XIX, ver: PEIXOTO, Renato A. Op. cit. 2005. p.
208
passado comum. 527 Houve, durante a primeira metade do século XX, um crescente interesse
em explicar a participação do negro na formação da Nação. Segundo Homi Bhabha, a
construção cultural da nacionalidade é uma forma de afiliação social e textual, existem
diversas estratégias complexas de identificação cultural e de interpelação discursiva que
funcionam em nome “do povo” ou “da nação” e os tornam sujeitos imanentes e objetos de
uma série de narrativas sociais e literárias. 528
A procura no passado da explicação para o problema brasileiro do presente, a
diversidade e desigualdades dos grupos sociais que compunham o Brasil, passou a ter uma
solução na “mestiçagem” e na “integração das raças”. Procurou-se ampliar o espaço de
experiência, com a construção de uma representação do passado comum, um passado da
Nação. Diante desse objetivo, Arthur Ramos procurou construir uma história do Brasil
dedicada ao elemento negro, a ideia era demonstrar o papel desse grupo social na civilização
brasileira. Para colocá-lo na história nacional ou na representação de um passado comum com
o povo brasileiro, Arthur Ramos iniciou com a origem dos negros trazidos ao Brasil. Depois
construiu uma narrativa que seguiu uma temporalidade linear, retrocedendo a colonização, ao
período “fundacional” do Brasil, procurando demonstrar como o negro brasileiro exerceu um
papel fundamental na história nacional.
No prefácio elaborado pelo historiador Richard Pattee, ele demonstra que a
preocupação desse ensaio não é apenas abordar a história do negro, mas integrá-lo a história
brasileira:
É evidente que a apropriada compreensão do papel do Negro deve ser acompanhada por algumas apreciações do curso geral da História do Brasil. Sem pretender das mais que um esboço do plano geral da evolução histórica da nação, podem ser indicadas algumas das principais tendências para tornar mais compreensível a par do Negro.529
O seu livro não estava limitado a esta perspectiva, pois, como antropólogo, procurou
utilizar a análise de culturas contemporâneas para elucidar o passado, utilizou uma abordagem
da antropologia para construir um discurso histórico. É o caso de pensarmos o entre-lugar
ocupado pelo discurso de Arthur Ramos, pois, por um lado, a História é a forma narrativa
principal do discurso pedagógico, por outro, a Etnografia tem um papel fundamental no
527 GOMES, Angela do C. op. cit. 2009. p. 79. 528 BHABHA, Homi. op. cit. 1998. p. 198-228. 529 PATTEE, Richard. Prefácio. In: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 12; PATTEE, Richard. Prefácio. In: RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 8.
209
discurso performático. Nesse caso, ele não só enfatiza o elemento cultural como fator
explicativo da nação, como gera uma tensão com dois tempos distintos, o primeiro tempo
histórico e pedagógico; o segundo o tempo, etnográfico e performático.
Para o estudo da herança cultural do Negro, no Brasil, torna-se necessário o investigar nas suas culturas de origem. Já examinamos as procedências dos negros africanos introduzidos no Brasil com o tráfico de escravos. Como os documentos históricos são falhos, temo-nos socorrido do método que consiste em investigar as sobrevivências culturais no Brasil, fazendo o cotejo comparativo com culturas idênticas no Continente Negro. E foi pelo estudo das sobrevivências religiosas e folclóricas, realizado pela escola do grande mestre baiano Nina Rodrigues, que se conseguiu reconstituir a herança cultural do Negro, no Brasil.530
Devemos observar o que Bhabha531 fala sobre os fragmentos, retalhos e restos da vida
cotidiana, repetidamente transformados nos signos de uma cultura nacional coerente, o
próprio ato de performance narrativa interpela um círculo crescente de sujeitos nacionais. A
narrativa recorrente do performativo rompe a temporalidade continuísta do pedagógico. A
fronteira que assegura os limites coesos da nação pode facilmente transformar-se,
imperceptivelmente, em uma liminaridade interna contenciosa, que oferece um lugar do qual
se fala sobre a minoria, o exilado, o marginal e o emergente. A importância do ato etnográfico
se dá porque requer que o sujeito se divida em objeto e sujeito no processo de identificação de
seu campo de conhecimento: “O sujeito nacional se divide na perspectiva etnográfico da
contemporaneidade da cultura e oferece tanto uma posição teórica quanto uma autoridade
narrativa para vozes marginais ou discursos de minoria.”532
Ramos complementou os métodos da história moderna, com uma análise das culturas
proveniente do evolucionismo cultural, o método comparativo. Já falamos do uso desse
método ao abordar a escrita de Rodrigues sobre Palmares, no capítulo “O “mestre” Nina
Rodrigues e sua “Troya negra” como modelo de escrita”. Segundo Luiz Gonzaga de Mello533
a elaboração do estudo comparativo, decorreu da própria adequação do método ao objeto. Um
dos principais objetivos da comparação era descobrir correlações culturais, tais como uma
regra de parentesco ou uma prática religiosa.
Uma compreensão adequada da contribuição do Negro brasileiro requer o conhecimento das várias culturas que compõem a sua origem africana. Os
530 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 97; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 93. 531 BHABHA, Homi. Op. cit. 1998. p.207. 532 BHABHA, Homi. Op. cit. 1998. p.213. 533 MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural. Petropólis: Vozes, 1987. p. 210-212
210
estudiosos brasileiros empreenderam a difícil tarefa de pesquisar os elos da cadeia entre o passado africano e a atualidade brasileira, examinando as sobrevivências negras na América – folclore, religião, organizações sociais e artes plásticas.” 534
O evolucionismo passou a estudar os “povos contemporâneos primitivos” para, através
de observações concretas, aumentar o conhecimento do fenômeno cultural universal. Através
desse método, encontrava-se correspondentes culturais em tempos e lugares distintos,
estabelecendo entre eles ligações. Arthur Ramos compreendeu que as práticas culturais
encontradas no Brasil, com origem ou matriz africana, apresentando similaridades com
práticas do passado ou da atualidade, encontradas nas culturas africanas, ou em outras culturas
dos negros na América, eram possíveis por causa do estágio cultural desses negros que
manifestavam o seu primitivismo através de tais práticas.
As práticas são denominadas de “sobrevivências” encontradas na cultura negra
brasileira. A “sobrevivência” foi um conceito fundamental por toda a sua vida e em sua
pesquisa sobre negro. Como vimos no capítulo “Metáforas diferentes”, este é um conceito de
origem no evolucionismo cultural de Lewis Morgan, Edward B. Tylor e James G. Frazer.
Para Tylor, as sobrevivências são processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que, por força
do hábito, continuaram a existir num novo estado de sociedade diferente daquele no qual tiveram sua
origem, e então permanecem como provas e exemplos de uma condição mais antiga de cultura que
evoluiu em uma mais recente.535
A antropologia evolucionista criou um tempo novo, o “tempo cultural”,536 estabelecendo fases
ou estágios de evolução, os níveis de cultura determinavam o tempo. Como afirma Johannes Fabian,537
baseado na episteme da história natural, as fases evolutivas se fundamentam no distanciamento e na
separação, tal qual estratos geológicos, uma naturalização do Tempo. As sequências evolutivas e sua
prática política, do colonialismo e do imperialismo, criaram um quadro de referência universal capaz
de acomodar todas as sociedades, mas, o método comparativo possibilitou que, através de
classificação de entidades ou traços, anteriormente separados e diferenciados, se estabelecesse
taxonomias e sequencias de desenvolvimento, na qual o selvagem tornou-se significante para o Tempo
do evolucionista, por viver em outro Tempo.
534 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 32. Ver a verão em inglês : RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 27; 535 TYLOR, Edward B. A ciência da cultura. In: CASTRO, Celso (Org.). Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 86. 536 MELLO, Luiz Gonzaga. Op. cit. 1982. p. 210 537 FABIAN, Johannes. O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 62.
211
Foram estabelecidos diversos níveis de cultura, que representavam diversas etapas de
desenvolvimento, em tempos hierarquizados distintos, porém, foi concluído que nem toda a
humanidade estivesse no mesmo estágio, na atualidade encontraríamos bárbaros, selvagens e
civilizados. Na procura da explicação da origem e do passado da humanidade, a antropologia
encontrou em povos autóctones, um passado originário. Segundo Turin,
Recuados a um ponto de origem absoluto, a um grau zero da história, os “selvagens” passam a ser qualificados como “primitivos”. Essa categoria, como afirma Fabian, caracteriza-se como uma noção essencial temporal, podendo, assim, ser colocada ao lado de outras categorias centrais da modernidade. De selvagens a primitivos, observa-se um processo mais amplo de temporalização que redefine uma rede semântica moderna. Observar os primitivos, a partir de então, sem a mediação enganosa dos antigos, torna-se uma maneira de ser moderno, uma vez que através do estudo dessas populações que se poderia retraçar o percurso que os distanciou temporalmente. Inseridos numa mesma ordem temporal, mas em extremos opostos, a observação dos primitivos vem estabelecer agora não mais os antigos, mas antes o sentido de historicidade mesma dos modernos.538
Esse passado, representado pelo primitivo, era parte de um tempo evolutivo,
naturalizado, fundamentado na ideia de linearidade e irreversibilidade dos estágios de
culturas. Era uma maneira de explicar a diversidade da sociedade, os diversos grupos de
culturas distintas, que não partilhavam totalmente do discurso pedagógico, ou da civilização
moderna. Podemos observar como o “primitivo” e sua “sobrevivência” é construída no
discurso de Ramos relacionado a Palmares, através da análise do “auto dos quilombos”
ocorrido em Alagoas:
Um auto de sobrevivência histórica, não da África, mas da própria história dos Negros no Brasil, é o dos quilombos que festejava no Estado de Alagoas, relembrando o feito de Palmares. O fato é interessante, pois nos mostra um flagrante exemplo da gênese do desenvolvimento das canções de gesta e dramatização de feitos heroicos, que passaram ao inconsciente popular. É provável que em outros pontos do Brasil, onde houve a formação de repúblicas negras, o inconsciente coletivo tenha guardado sobrevivências em autos análogos.539
Abordando esse tema como resultado da “mentalidade primitiva” e do “inconsciente
coletivo” do negro brasileiro, o autor acredita que a história de Palmares não foi
suficientemente abordada pelos documentos, deveria ser vista com a análise das
“sobrevivências”. O empreendimento é levado muito a sério por ele, pois procurou
538 TURIN, Rodrigo. Tessituras do tempo: discurso etnográfico e historicidade no Brasil oitocentista. Rio de janeiro: EdUERJ, 2013. 2013. p. 238. 539 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 114.; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 110.
212
demonstrar interpretações do que chamou de “lacunas” históricas. O auto dos quilombos fez
parte de sua lembrança da cidade natal, Pilar em Alagoas; uma vez no ano, os negros
interpretavam, por meio da dança e encenação, esse “auto de sobrevivência folclórica”.
Segundo Ramos, foi a importância histórica de Palmares, o maior dos quilombos, que
permitiu que os negros de Alagoas não esquecessem os acontecimentos. Para ele, era a
manifestação do “inconsciente consciente”, pois os brincantes desconheciam Palmares como a
origem do auto, constituído pelos materiais que foram herdados, constituído por arquétipos.
“Tão dilatado foi o período das lutas (quase setenta anos), tão importantes foram as
expedições e combates, que as populações alagoanas das imediações da serra da Barriga e dos
vales do Paraíba e Mundaú até hoje guardam a lembrança, nos autos folclóricos.” 540
Acreditou que através desse auto era possível, até certo ponto, reconstruir a vida dos negros
confederados no quilombo célebre. Então, a análise do antropólogo foi fundamentada na
concepção de etnologia de “sobrevivência” e da psicologia social do “inconsciente popular”.
Em ambos, é inegável a concepção evolucionista e hierarquizada das culturas, bem como o
olhar sobre o negro – o Outro – como parte de uma cultura primitiva que irrompe o “tempo
presente” moderno, com o “passado”.
Fora o conceito de sobrevivência proveniente do evolucionismo cultural, Arthur
Ramos lança mão do novo arcabouço teórico que conquistara com a “antropologia cultural
boasiana”: o conceito de aculturação, que é fundamental em seu livro, gerando tensões com as
demais perspectivas teóricas. De que maneira o conceito de aculturação contribuiu para
analisar o negro e a temporalidade em que ele estava sendo escrito? O conceito de aculturação
adotado foi o desenvolvido em 1936 pelo Sub-Committe of the Social Science Research
Council, composto pelos renomados antropólogos Robert Redfield, Ralph Linton e Melville
Herskorvits. A aculturação compreende os fenômenos que resultam dos contatos, primeiros
ou contínuos, de grupos de diferentes culturas, com mudanças consequentes nos padrões
originários de cultura de um ou de ambos os grupos. Ela é um aspecto da mudança cultural
(cultural-change), nela sempre ocorre a difusão cultural e a assimilação é apenas uma de suas
fases, que corresponde ao momento em que uma cultura inferior é totalmente integrada a uma
cultura dominante, processo que ele nomeou como sincretismo. Arthur Ramos adota, dessa
comissão, a definição de aculturação com três resultados: a aceitação, a adaptação e a
reação.
540 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 115.; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 111..
213
[A aceitação, ocorre quando] o processo da aculturação resulta na apropriação da maior porção de outra cultura, e perda da maior parte da herança cultural mais velha; com aquiescência da parte dos membros do grupo receptor, e, como resultado, assimilação por eles não somente aos padrões de comportamento mas aos valores interiores da cultura com a qual entram em contato.541
[A adaptação se verifica quando] ambos os traços, originário e estrangeiro se combinaram de forma a produzirem um todo cultural de função suave, que se torna um mosaico histórico; com uma boa elaboração dos padrões das duas culturas em um todo harmonioso e significativo para os indivíduos de ambas as culturas, ou retenção de uma série de atitudes mais ou menos em conflito e pontos de vista que se reconciliam na vida diária, quando surgem ocasiões específicas.542
[A reação se dá quando] por causa da opressão, ou dos resultados imprevistos da aceitação de traços estrangeiros, surgem movimentos contra-aculturativos; estes mantêm sua força psicológica, a) como compensação a uma inferioridade imposta ou assumida, ou b) através do prestígio que um retorno a condições pré-aculturativas mais antigas pode trazer aos que participam em tal movimento. 543
Para continuarmos falando da antropologia cultural e a herança de Ramos dessa teoria,
faremos uma breve comparação, entre as teorias da “antropologia difusionista americana” - ou
“antropologia boasiana” – e o “evolucionismo cultural”, com o auxílio do trabalho de Luiz
Gonzaga de Mello544. Essas visões diferentes possuem bases comuns, ambos preocuparam-se
em explicar a cultura como fenômeno universal e humano, igualmente interessa-lhes explicar
o aspecto diacrônico e não sincrônico, isto é, um e outro procuram explicar o fenômeno da
cultura através do tempo. Por um lado, foram os evolucionistas os primeiros a destacar o
papel da pesquisa de campo na antropologia, porém não foram praticantes assíduos desse
método – exemplo de pesquisa etnográfica evolucionista foi desenvolvida por Lewis Morgan
– ficaram conhecidos como “antropólogos de gabinetes”. Por meio do “evolucionismo social”
e do “método comparativo” de culturas, construíram o discurso de que todos os homens
deveriam passar pelas mesmas etapas de desenvolvimento cultural, ainda que os grupos
evoluíssem em velocidades diferentes. Prevaleceu no evolucionismo, uma concepção de
teoria da natureza mais do que da sociedade e da cultura, por isso um tempo naturalizado com
etapas predefinidas do desenvolvimento humano.
541 HERSKOVITS, Melville. Apud. RAMOS, Arthur. Op. cit. 1942. p. 35. 542 HERSKOVITS, Melville. Apud. RAMOS, Arthur. Op. cit. 1942. p. 36. 543 HERSKOVITS, Melville. Apud. RAMOS, Arthur. Op. cit. 1942. p. 36. 544 MELLO, Luiz Gonzaga de. op. cit. 1982. p. 222.
214
O difusionismo, por outro lado, pode ser visto como um movimento de reação à
orientação evolucionista, procura uma explicação histórica para esclarecer semelhanças
existentes entre as culturas particulares, como as semelhanças culturais entre o negro
brasileiro e o africano. Marcado pelo historicismo, ou seja, uma compreensão de que os
fenômenos da sociedade e da cultura consistem no seu caráter dinâmico e de
desenvolvimento, por isso desenvolveram um método “histórico-cultural”. A pesquisa de
campo tem fundamental importância nesta compreensão de estudos antropológicos; primeiro
deveriam ser coletado os dados, seria necessário investigar os grupos para identificar a suas
dinâmicas culturais internas, sua historicidade. É por causa da ênfase na etnografia que a
antropologia cultural desenvolveu várias técnicas, como a observação participante. Outra
transformação que possibilitou fissuras no discurso pedagógico, a proximidade do intelectual
com esses povos mudava a todos os envolvidos. As culturas particulares foram destacadas por
esses estudos, afastando-se da cultura universal de preocupação das teorias anteriores.
Era opinião corrente entre os antropólogos americanos da época (1900-1930), que a antropologia deveria dedicar-se ao estudo das fases mais recentes da história da cultura dos povos: influência do meio físico-geográfico, os contatos culturais, a endoculturação, a aculturação, enfim, o estudo da formação do povo estudado, tudo isso através da informação e observação diretas do pesquisador.545
O “método histórico-cultural” da antropologia difusionista americana e a concepção de
difusão da cultura, passaria a tornar mais complexo o estudo de determinada cultura, pois
mudanças dinâmicas na sociedade deveriam ser observadas no tempo presente. Nessa
concepção teórica, cada grupo social teria sua própria e única história, parcialmente
dependente do desenvolvimento interno peculiar do grupo social e de influências exteriores às
quais tenham estado submetido. Então, concebem que tanto ocorrem processos de gradual
diferenciação, quanto de nivelamento de diferenças entre centros culturais em contato.
Nossa hipótese é que, diante dessa dificuldade de analisar as culturas por essa
perspectiva ainda recente na intelectualidade brasileira. Ramos lançou mão do conceito de
“sobrevivência”, que na antropologia aparecera no final do século XIX, e do evolucionismo
cultural. Para antropologia cultural a ideia de “sobrevivência” cultural é problemática, tanto
por sua matriz no evolucionismo cultural, quanto pela ideia de imutabilidade de algum
aspecto cultural. Em seu texto famoso “Métodos da etnologia” de 1920, Franz Boas
demonstra essa incompatibilidade:
545 MELLO, Luiz Gonzaga de. op. cit. 1982. p. 231.
215
Onde quer que as condições primitivas tenham sido estudadas em detalhe, pode-se provar que elas estão num estado de fluxo, e parece que há um estrito paralelismo entre a história da linguagem e a história do desenvolvimento cultural geral. Períodos de estabilidade são seguidos por períodos de rápida mudança. É altamente improvável que se tenha preservado inalterado por milhares de anos qualquer costume de um povo primitivo. Além disso, os fenômenos de aculturação provam que são bastante raras as transferências de costumes de uma região para outra, sem que haja mudanças concomitantes produzidas pela aculturação.546
Como observamos no trecho acima, para a antropologia cultural, o conceito de
“sobrevivência” não faz sentido no processo de aculturação. Apesar disso, Arthur Ramos
insiste na utilização do conceito, dessa forma, parece mostrar o Negro brasileiro num estágio
de cultura inferior. O processo de aculturação ocorrido no Brasil, deveria funcionar da
seguinte forma: os contatos culturais entre os portugueses, negros e indígenas formariam a
cultura ou civilização brasileira. No qual, a cultura em estágio superior, predomina
assimilando as culturas inferiores, porém isso não significa que teríamos uma cultura
portuguesa, sim uma cultura brasileira fundamentada na cultura lusitana. Quando afirma que
no Brasil encontramos diversas sobrevivências negras ou africanas, ele está estabelecendo não
somente que temos culturas de origem africana, mas que são culturas inferiores no seu estágio
cultural que ainda resiste a aculturação. Voltamos a coexistência do “paradigma do
sincretismo” com o “paradigma de pureza”.
Creditar ao processo de aculturação à formação na nação brasileira, deveria significar
uma mudança no tempo ou no discurso? O antropólogo Gerard Leclerc,547 procurou observar
o papel da aculturação enquanto categoria da antropologia. A realidade colonial foi produtora
dessa antropologia, empreendeu as suas pesquisas de campo nas extensões dos impérios; o
imperialismo deixou de ser encarado como sistema ideológico – antropologia vitoriana –
passando a ser encarado como uma realidade empírica, uma situação contemporânea.
Para a antropologia da década de 1930 o colonialismo foi sentido/interpretado sob a
designação de “choque cultural”, “contato cultural”, “aculturação” e mais tarde de “mudança
social”. Portanto, foi produzido uma nova terminologia que concebe a colonização como um
exemplo, entre outros, de contatos entre sociedades. A palavra aculturação que aparece a
partir de 1880, foi elaborada por antropólogos americanos no contexto da conquista do Oeste,
o objetivo era explicar os contatos proporcionados por um processo que podemos denominar
546 BOAS, Franz. Op. cit. 2012. 48 547 LECLERC, Gerard. Crítica da antropologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1973. p.69-80.
216
de colonialismo interno. Gerard Leclerc faz a distinção entre o sentido abstrato e o sentido
real da “aculturação”: no sentido abstrato, ou conceito geral, aculturação é geralmente
entendida no sentido de transmissão de instituições, práticas ou crenças de uma cultura (ou
sociedade) a outra; no sentido real, o do colonialismo, todos os estudos de aculturação são
sobre certos aspectos do colonialismo. 548
A aculturação é um fenômeno geral e segundo a perspectiva da antropologia
americana, englobou o estudo dos diversos contatos entre sociedades, verificados ao longo de
toda a história. Leclerc549 afirma que todos os estudos de aculturação estudam o contato
cultural do Ocidente com outras culturas, a aculturação é a colonização para o antropólogo. A
antropologia analisa a colonização enquanto processo universal, embora reconheça como uma
prática administrativa feita de estratégias e de escolha, necessitando de outros especialistas
para explicar os outros aspectos. Mas cabe a antropologia uma posição privilegiada: analisa a
realidade colonial por um aspecto particular e a totalidade da realidade colonial, pois é
especialista nos “fenômenos sociais totais”.
A aculturação gera algumas críticas ou oposições conceituais. Leclerc550 observou que
o conceito de mudança aparece como oposição aos conceitos de civilização e de progresso.
Ou então, uma história dos fenômenos a curtos prazos, opõe-se a uma história longa. Apesar
disso, a aculturação compreende o colonialismo contemporâneo. O colonialismo tem o
aspecto de desculturação e de destruição das particularidades das culturas nacionais. “Os
antropólogos estavam dentro e não perante o colonialismo, e o sistema parecia-lhes aberto e
não fechado.”551 Concordamos com a interpretação de Johannes Fabian:
A civilização, a evolução, o desenvolvimento, a aculturação, a modernização (e seus primos, a industrialização, a urbanização) são, todos eles, termos cujo conteúdo conceitual deriva, de formas que podem ser especificadas, do Tempo evolutivo. Todos tem uma dimensão epistemológica, para além das intenções, sejam éticas ou antiéticas, que possam expressar. Um discurso que emprega termos como primitivo, selvagem (mas também tribal, tradicional, de Terceiro Mundo ou qualquer eufemismo corrente) não pensa, ou observa, ou estuda criticamente, o “primitivo”; ele pensa, observa e estuda nos termos do primitivo. Sendo o primitivo, essencialmente, um conceito temporal, ele é uma categoria, e não um objeto, do pensamento ocidental.552
548 LECLERC, Gerard. Op. cit. 1973. p.73-75 549 Ibid. p. 76. 550 Ibid. p. 77. 551 Ibid. p. 79. 552 FABIAN, Johannes. Op. cit. 2013. p. 53-54.
217
Essa compreensão de Tempo é linear e universal, embora estabeleça fissuras no tempo
pedagógico, inserindo na nação contemporânea, grupos que estavam vivenciando outro
estágio do tempo evolutivo, povos primitivos, sobrevivências culturais. Por um lado, se o
antropólogo interpretava o resultado do processo aculturativo como uma aceitação ou a
adaptação, inseria o Outro na temporalidade homogênea da Nação, pois parte do pressuposto
que a colonização foi efetiva e as culturas das minorias ou dos colonizados fundiram-se na
cultura do colonizador. Por outro lado, quando reconhece que o processo de aculturação
proporcionou outro resultado, sendo este a reação, temos uma ruptura no tempo homogêneo
da nação, mas que é reveladora da continuação do Tempo evolutivo nesse discurso. Pois a
“reação-contra aculturativa”, como explicado por Arthur Ramos é produto de resistência
cultural a aculturação, ou colonização. Palmares seria uma dessas resistências:
Palmares foi a primeira grande epopeia que o Negro escreveu em terras do Brasil. Não foi um simples quilombo como todos os outros. Palmares passou à história brasileira como uma grande tentativa negra de organização de estado. Um estado, com tradições africanas dentro do Brasil. Foi uma desesperada reação à desagregação cultural que o africano sofreu com o regime da escravidão. Qualquer coisa semelhante ao fenômeno da Guiana Holandesa, com as fugas de escravos no século XVIII.553 [grifo nosso]
As “sobrevivências” – religiosas, folclóricas, culturais – os movimentos abolicionistas,
as fugas, insurreições e todas as formas de resistência do povo negro, podem ser interpretados
dentro dessa perspectiva como reação contra aculturativa. Na citação acima, a primeira frase
é muito significativa para a realização dessa dissertação. Foram essas palavras que nos
levaram a questionar qual seria o papel da escrita de Arthur Ramos na produção da visão atual
sobre o Quilombo dos Palmares?
A palavra “epopeia” deixou-nos intrigado, precisávamos compreender se ela estava
definindo a experiência dos negros palmarinos e sua representação, uma vez que, segundo
Anazildo Vasconcelos da Silva554, a epopeia é uma realização literária específica de uma
matéria épica, caracterizada, crítica e teoricamente, como uma manifestação do discurso épico
e tal discurso é caracterizado pela dupla instância de enunciação, a narrativa e a lírica,
definindo-se como um discurso híbrido. Um gênero literário específico que não pode ser
confundido com o romance histórico. Essa breve exposição da epopeia, serve para
553 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. P. 59.; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 55. 554 SILVA, Anazildo V. A semiotização épica do discurso. In: SILVA, Anazildo V; RAMALHO, Christina. História da epopeia brasileira: teoria, crítica e percurso. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. p. 49-52, 56-59.
218
informarmos que o capítulo “A República de Palmares” não é uma epopeia, ou uma
manifestação do discurso épico, muito embora, acreditamos que esse texto comporta
elementos do discurso épico.
O primeiro elemento que podemos encontrar no texto é a “matéria épica”. É uma
unidade articulatória constituída a partir da fusão de um feito histórico com uma aderência
mítica, a qual exerce sobre o primeiro uma ação desrealizadora: "Quanto mais profunda for a
desrealização imposta ao fato histórico, mais abrangente será a integração da aderência mítica
e mais impressivo o efeito do maravilho que monumentalista o relato épico.”555 A matéria
épica é formada pela fusão de uma dimensão real e uma mítica. Apresenta dois principais
processos de fusão: o natural, em que o processamento se faz autonomamente no nível da
realidade objetiva; e o literário, ocorre no nível da elaboração literária. Ela tanto pode ser
configurada como unidade autônoma, no nível do acontecimento que se dá ao poeta, esse é o
caso dos Quilombo dos Palmares, enquanto evento imponente com uma longa duração e que
impressionou a sociedade do século XVII pelo seu tamanho e pela luta dos negros; foi
repetidamente abordado pelo discurso de historiadores ao longo dos séculos seguintes; se
levarmos em consideração o que foi escrito por Ramos sobre o “auto dos quilombos”.
Como pode ser configurada como epos, referenciais históricos e simbólicos
dissociados no processo de formação da tradição cultural, ou seja, o capítulo de história
escrito sobre o tema, como é o caso de “A República de Palmares”, ambos podem ser
unificados na construção da epopeia. A matéria épica, enquanto construção literária, gerada
pela invenção criadora no seio das representações socioculturais de uma comunidade,
fundindo e refundido referenciais históricos e simbólicos de sua cosmologia, tal como
mostramos que Ramos fez com a Tróia, a República, o Estado e o Haiti. Ou seja, resulta de
uma ação criativa, inerente ao plano literário da epopeia, que atua no sentido de fundir
referentes míticos e históricos, potencializando a significação simbólica de determinados
eventos e/ou experiências existenciais. A legitimidade consiste em o autor pegar, na sua
cultura, imagens, discursos, eventos e símbolos, articulá-los independente de fronteiras de
tempo e espaço.
O “herói” é outra característica do discurso épico, para Silva556, caracterizado por uma
dupla condição existencial, humana e mítica. O relato sobre a ação épica, representada
555 Idem. 556 SILVA, Anazildo V. Op. cit. 2007. p. 59-62.
219
iconicamente pela viagem é caracterizado, pelo encadeamento de referenciais históricos e
simbólicos. O herói é um homem, apenas um ser histórico, um mortal sujeito ao tempo.
Porém para alcançar o estatuto épico de herói, precisa habitar o lugar do maravilhoso,
provando a transfiguração mítica, confere-lhe a imortalidade épica. Arthur Ramos não deu
destaque a figura mítica de Zumbi, ou Zambi como ele denominou. Na sua escrita prevaleceu
a figura do homem notável, sujeito histórico e grande guerreiro. Escreveu sobre o homem que
liderou os quilombos por dez anos, vencendo as forças portuguesas. Vemos surgir sutilmente
uma imagem heroica do líder palmarino. Trouxemos aqui três trechos que demonstram o que
estamos afirmando.
O primeiro momento, narra quando Ganga-Zumba rei de Palmares aceita o acordo de
paz proposto pelo governador de Pernambuco em 1678. Mas Zambi, sobrinho do rei,
desconfiou da promessa dos portugueses, rebelou-se contra o seu tio, matando-o, reuniu os
seus cabos de guerra, proclamou-se rei e declarou a luta. Nessa conjuntura descreve que “O
Zambi já era, àquele tempo, um chefe famoso, cujas façanhas deixaram atônitos os próprios
soldados brancos.” 557
Um segundo momento, fala sobre a organização das defesas de Palmares, do seu
principal quilombo, a Cerca Real do Macaco, para a guerra que levaria ao fim do palmarinos.
“Os Negros ali estavam defendidos por três ordens de cerca, em que tinham muita confiança.
Sobre o Zambi, escrevia o chefe paulista no seu relatório que “está deliberado a morrer dentro
na estacada, pois está inexpugnável.”558 A visão do bandeirante Domingos Jorge Velho,
conhecido por derrotar inúmeros indígenas na “Guerra dos Bárbaros” e diversos quilombos
pelo interior, é colocado de maneira que faz engrandecer a figura de Zumbi, pronto a morrer
em combate.
Essa visão é complementada com o momento final da República de Palmares. Após as
defesas serem rompidas e muitos palmarinos terem fugido, Zambi e seus cabos de guerra
mantiveram-se no quilombo resistindo. “Preferindo a morte à rendição, o Zambi e seus
heroicos companheiros se precipitaram do rochedo, “valentia que, ainda misturada de um
furor brutal, mostrou a todo o nosso exército um espetáculo que se não pode deixar de ouvir
com espanto ...”559 Narra o suicídio de Zambi como um ato de luta pela liberdade, como uma
557 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 65. RAMOs, Arthur. op. cit. 1951. p. 61 558 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 67. RAMOs, Arthur. op. cit. 1951. p. 61Ibid. p. 63. 559 Idem.
220
impossibilidade desse herói se render à Coroa Portuguesa, principalmente à escravidão. Já
falamos anteriormente que Arthur Ramos via em diversos atos dos negros uma resistência à
escravidão, uma luta constante do negro contra a desagregação cultural e em favor de sua
liberdade, um heroísmo implícito nas fugas, no suicídio, na formação dos quilombos, nas juntas de
alforria, ou no movimento abolicionista, do qual, Zambi talvez fosse o maior exemplo.
Na primeira parte dessa dissertação, procuramos mostrar como a perspectiva sobre o
Quilombo dos Palmares estava sendo modificada em lugares de saberes como IAGA, do qual
Arthur Ramos era ciente da produção. Essa era uma visão que não estava tão isolada nessa
instituição, fazia parte de uma visão de mundo, ou da nação, após a Abolição e República, e
que foi se concretizando entre as décadas de 1910 à 1930. A historiadora Carolina Vianna
Dantas, demonstra que em outros “lugares de produção”, como o Almanaque Brasileiro
Garnier (Rio de Janeiro, 1903-1914) e na revista Kosmos (Rio de Janeiro, 1904-1909), essa
mesma perspectiva rondou os artigos e resenhas sobre acontecimentos históricos, heróis e
datas nacionais. Uma produção diversa e multifacetada, mas determinada a afirmar laços do
regime republicano com o passado, incluindo a participação ativa de negros e mestiços na
história pátria. E alguns personagens históricos negros foram selecionados como símbolos da
luta pela liberdade no Brasil: Zumbi, Chico Rei, Luiz Gama, Quintino de Lacerda e José do
Patrocínio são alguns deles.
Segundo Dantas, o historiador do IAGP Mario Behring, de quem já falamos, era um
dos escritores na “Kosmos”, e colocou Zumbi na galeria dos grandes brasileiros. Narrou a
formação e a heroica resistência do quilombo dos Palmares; ressaltou a coragem de Zumbi;
argumentou contra a premissa de que o quilombola teria se suicidado, ao invés de lutar para
defender e proteger seus companheiros. Ainda, de acordo com Dantas, vale destacar que
Zumbi foi afirmado em termos semelhantes em outros suportes, como o manual escolar, de
autoria de Gonzaga Duque, um dos maiores colaboradores da “Kosmos”, atribuiu a Zumbi
características positivas: forte, líder, justo e corajoso, e esses são indícios de que as
formulações presentes no periódico viajavam também por outros espaços, como manuais
didáticos e escolas. Outro colaborador da “Kosmos”, observado por Carolina Dantas, foi
Manoel Bomfim que mencionou o Quilombo dos Palmares em seus estudos. Queremos
demonstrar que Arthur Ramos estava escrevendo o seu texto dentro de uma perspectiva
heroica construída em lugares como a “Kosmos”, o “Almanaque Brasileiro Garnier”, o IAGA
e o IAGP. Com isso que o seu texto, tenha procurado uma linguagem mais “científica” e
221
menos lírica sobre o evento, a importância de seu nome no cenário intelectual brasileiro,
principalmente no que diz respeito aos estudos sobre os negros, contribui que essa visão
heroica ou de matriz épica sobre Palmares seja consolidada no imaginário social.
Considerando que na primeira metade do século XX, principalmente na década de
1930, foi construída a visão do Negro como participantes da Nação, e a existência no
imaginário da intelectualidade de uma nova perspectiva sobre o Quilombo dos Palmares. Pelo
menos daqueles que desenvolvem estudos sobre a população negra brasileira. Devemos
questionar, como foi produzido o Quilombo dos Palmares por Arthur Ramos? Quais as
características desse espaço do negro brasileiro? Devemos retomar as contribuições de
Edward Said, no que diz respeito a análise de discursos e sua produção da “geografia
imaginativa”, do “espaço imaginativo” e das imagens do Outro.
O primeiro princípio de nossa análise é que não estivemos observando essa
representação para efetuar uma correção, nem descobrir uma fidelidade, ou uma realidade ou
originalidade pré-existente e condicional. Procuramos observar as figuras retóricas, as
estratégias metodológicas, as concepções teóricas, o esquema narrativo, a cena de produção
ou circunstâncias históricas e sociais. Com isso, o nosso objetivo é explicar a produção de
uma realidade histórica, um espaço, o Quilombo dos Palmares.
Como já demonstramos, no Brasil durante a segunda metade da década de 1920 e
início da década de 1930, foi forma um campo de estudo, conhecido como “Estudos sobre
Negro brasileiro”. Esse campo durante a década de 30 adquiriu coerência, com uma certa
“unidade” entre os diversos intelectuais participantes, sua grande contribuição foi o destaque
do negro como elemento formador da Nação, a participação na cultura e na história nacional.
Nesse novo campo um subtema obteve atenção especial, o Quilombo dos Palmares. Primeiro,
pela magnitude do acontecimento no século XVII, com seus milhares de negros fugidos da
senzalas dos senhores de terras do Norte e refugiados nas matas da colônia que precisou de
muito esforço militar e financeiro da Coroa e dos Colonos para derrotá-lo. Segundo, pela
inevitabilidade do retorno desse tema por séculos na historiografia, contribuindo pela
construção da imagem deste na memória coletiva, especialmente do povo letrado, mesmo que
até o século XIX tenha sido entendido como inimigo da civilização e a sua derrota como um
dos marcos da colonização portuguesa. Por último, os intelectuais do Brasil republicano que
adotaram como novo problema construir o espaço discursivo do negro na historiografia
222
brasileira, precisavam de símbolos ou imagens fundadoras para a identidade do Negro
brasileiro, Palmares era o melhor exemplo.
O Quilombo dos Palmares, não é uma realidade objetiva, ou não é possível
compreendê-lo como uma existência objetiva, mesmo se tratando da experiência de vida nesse
espaço durante o século XVII, ou da documentação e da pesquisa de fontes históricas, trata-se
de uma realidade ficcional. O filósofo francês Gaston Barchelard, ao propor a possibilidade
da existência e da análise de uma poética do espaço, entende que: “O espaço compreendido
pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente abandonado à medida e reflexão
do geômetra. É vivido. E é vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da
imaginação.”560 Na concepção do espaço é impossível dissociar-se do simbólico, pois é ele
que permite através da cultura e das práticas sociais estabelecer os significados, através de
valores, sentimentos, conceitos e outros. Edward Said dialogou com as contribuições de
Bachelard para analisar o Orientalismo, com isso procurou compreender o sentido emocional
ou mesmo racional do espaço. Como afirmamos na introdução, viemos executando a nossa
análise do Quilombo dos Palmares fundamentado na pesquisa empreendida por Said,
seguiremos por esse caminho.
Precisa ficar claro que nessa compreensão de espaço imaginativo do negro brasileiro,
existe uma noção de distância. Os intelectuais não são membros do grupo social objeto de seu
saber, mesmo aqueles de origem negra estabelecem uma distância através da sua cultura e da
sua participação numa elite intelectual ou política da sociedade. Além disso, o papel de
“representante” é marcado pela distância do representado, tanto como porta-voz ou defensor,
quanto como aquele que interpreta o lugar do Outro. Esses intelectuais faziam parte de uma
sociedade marcada pela desigualdade entre brancos e negros, mesmo que Arthur Ramos não
reconhecesse dessa maneira.561
O negro brasileiro, grupo social heterogêneo identificado a apenas pela cor de sua
pele, tornou-se uma minoria social na República, cuja “cidadania” plena foi-lhe negada pela
falta de participação política, devido o analfabetismo, e a cidadania civil por causa do
racismo. Para nós parece inegável que diante da intelectualidade brasileira da década de 1930,
o negro foi construído como o Outro, aquele do qual é preciso escrever a história
560 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: RAMOS, Joaquim (Orgs.). Gaston Bachelard. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores) p. 196. 561 BARROS, José d’Assunção. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação social brasileira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p.200-211.
223
compreender a cultura, pois deveria fazer parte do povo. Neste caso é esse o papel
fundamental da “articulação”, pois coube ao Branco – intelectualidade que se identifica com a
cultura Ocidental – “representar” o Negro – aquele identificado pela origem Africana, pela
escravidão e pelas “sobrevivências” culturais. Dessa forma essa cultura ou história será
sempre tratada pelo estranhamento, daquele que não se identifica com tal.
Foi isso que identificamos no trabalho de Arthur Ramos, uma distância ao mesmo
tempo marcada pela prática científica da antropologia – negação da coetaneidade- e da
historiografia – distância temporal, análise dos documentos -, também é marcada por não
reconhecer na cultura do negro a sua cultura – fora criado tocando piano, não numa roda de
capoeira -, e na história do negro a sua história – não compartilha da memória da escravidão.
Por isso a sua visão será sempre marcada pelo diferente, haveria uma divisão entre brancos e
negros na sociedade brasileira, conduzindo as divisões no discurso, pois teríamos: a cultura do
negro brasileiro, a história do negro brasileiro, a religião do negro brasileiro, assim por diante.
Apesar da divisão, existe um elemento de unidade nacional, que é insustentável enquanto
homogênea, é importante relembrar aqui o pensamento de Bhabha sobre entre-lugar da
nacionalidade moderna, pois devido a sua ambivalência marcada pelos discursos pedagógico
e performático, produz a cisão do sujeito nacional. 562
Os Estudos sobre o Negro no Brasil, e evidentemente Ramos como especialista desse
campo de saber, construíram um repertório cultural563 – espaços; imagens; ideias; sujeitos;
mitos ideológicos etc. - que fazem parte da representação do Negro brasileiro. Estivemos até
agora observando a representação do negro no discurso de Arthur Ramos para que
pudéssemos evidenciar como é produzido a representação de Palmares. Fizemos isso porque
entendemos o quilombo como um desses elementos do repertório cultural, podendo ser
compreendido como uma imagem que é parte da representação do Negro. É uma imagem na
medida em que representa ou simboliza uma entidade maior, que ela nos permite
compreender e ver. 564 Funciona como figura representativa, ou topos, desse discurso, sendo
ele mesmo uma representação passível de análise.
O papel do Quilombo dos Palmares é o de um mito fundador de originalidade e
protagonismo do Negro brasileiro. De maneira elogiosa, Arthur Ramos narra a história desse
562 BHABHA, Homi. Op. cit. 1998. p. 208-214. 563 Edward Said explica a representação do Oriente como um grande palco teatral, em que o uso de um repertório cultural daria significado a representação, ver: SAID, Edward. Op. cit. 2007. p. 102-103. 564 Ibid. p. 106.
224
acontecimento demonstrando a habilidade do Negro em resistir as diversas violências
empregadas contra eles. A história é organizada em torno das lutas desses negros, não porque
lhe faltava documentos para organizar de outra forma. Destacar inicialmente no seu texto,
através do uso das três fases da história palmarina desenvolvida por Nina Rodrigues, me
parece revelar a insistência de narrar o negro como sujeito. Poderíamos facilmente incorrer no
erro de acreditar que seria mais uma vez uma simples seriação das lutas que remontariam ao
elogio da colonização e da conquista de Palmares.
Podemos observar que mesmo ao falar das expedições, não eram elas que importavam,
mas a resistência empreendida, como os negros palmarinos se reinventavam e reorganizavam.
Aparecendo como uma característica do Negro brasileiro a resiliência e poder de se reinventar
socialmente e culturalmente. Vejamos o exemplo da segunda expedição comandada pelo
capitão Fernão Carrilho, no ano de 1676. As tropas eram formadas por 180 homens, ao
encontrar abandonado a Cerca Real de Subupira fundou no mesmo local o Arraial de Bom
Jesus e a Cruz, nesse lugar centralizou a sua campanha. Após um tempo de luta, Carrilho
retornou em 1678 afirmando ter derrotado Palmares, com muitos negros foram capturados,
entre eles dois filhos de Ganga Zumba o rei dos Palmares, mas não foram destroçados
completamente.
A partir desse e outros exemplos, Arthur Ramos demonstrou que os Quilombos dos
Palmares nunca foram destruídos totalmente, lutavam por pouco tempo, geralmente em
movimento e com pequenos assaltos nas matas, depois fugiam e se reorganizaram em outro
lugar. Essa estratégia que ele mesmo denominou de guerrilhas e o poder dos palmarinos,
construíram um medo na Coroa e nos colonos.
Temendo novas consequências e guerrilhas com os quilombolas dispersos, enviou D. Pedro um alferes para propor-lhes paz, em troca da deposição das armas. Ficava assegurado aos Negros toda união e bom tratamento ... e que lhes concederia posição certa para suas habitações, e terras para suas roças; e ainda, que se lhes entregariam as mulheres e filhos que estivessem prisioneiros; se conservaria em seus postos e cargos, sendo que o denominado rei ficaria como mestre-de-campo de todos os nascidos em Palmares, “os quais lograriam os foros de vassalos de El-Rei para ficarem debaixo da proteção de nossas armas e para servirem debaixo da proteção de nossas armas e para servirem às nossas bandeiras quando a ocasião o exigisse, permanecendo livres todos os que tivessem nascidos na sua liberdade.565 [grifo nosso]
565 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 64; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 60
225
Na verdade essa concepção sobre a força e resistência do negro brasileiro, como vimos
estava em todo o “The Negro in Brazil”, porém, elencou o Quilombo como maior exemplo:
“Parecem antes constituir um ciclo de atividades, o resultado do estabelecimento de vários
quilombos, sucessivamente destruídos e restaurados, com períodos alternados de decadência e
de esplendor.”566
Em trechos do capítulo “Insurreições negras no Brasil”, no qual deveria se dedicar a
outras insurreições. Ramos não conseguiu se desvincular da imagem de Palmares. Essa
importância estava além da fama ou do tamanho desse acontecimento, a ele era atribuído
distinção que foi merecida ou conquistada, distingue-se por seus atributos notáveis. Não era
uma insurreição comum, foi aquela que revelou o Negro brasileiro. As fugas e as
organizações em agrupamentos de resistência e luta pela liberdade, eram comuns na vida dos
negros no Brasil desde os primeiros anos da escravidão, fazia parte do seu “espírito
associativo”567. “Estes movimentos foram mais intensos no século XVII, quando houve a
formação da célebre república de Palmares e no século XIX, com os movimentos de guerra
santa dos Malês, na Bahia.”568
No que diz respeito a formação desses grupos e a luta coletiva pela liberdade, é
importante dialogarmos com outro texto escrito no mesmo período, o “Espírito Associativo
do Negro Brasileiro”, feito por ocasião dos festejos comemorativos do cinquentenário da
Abolição da escravidão no Brasil, lido em maio de 1938 na cidade de São Paulo. Tal escrito
foi publicado pela “Revista do Arquivo Municipal”569 do Rio de Janeiro, em 1939, e no livro
“A aculturação Negra no Brasil”570, quatro anos mais tarde. Nesses artigo, Arthur Ramos
esclarece o conceito de “espírito associativo”, utilizado em “The Negro in Brazil” para
explicar o Quilombo dos Palmares.
O Negro quando na África se organizava em tribos de origens étnicas e culturais
específicas, tendo a ideia de coletividade como cerne das comunidades, ao contrário da
individualidade, as suas instituições sociais e religiosas foram construídas com base no
566 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 60; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1951. p. 56. 567 RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. Revista do Arquivo Municipal, Rio de Janeiro, v. XLVII, n.04, p. 103-126, mai., 1939. RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. In: ______. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1942. p. 117- 144 . 568 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. 43.; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. 39. 569 RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. Revista do Arquivo Municipal, Rio de Janeiro, v. XLVII, n.04, p. 103-126, mai., 1939. 570 RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. In: ______. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1942. p. 117- 144 .
226
coletivo. De acordo com Arthur Ramos, a colonização europeia promovia a desagregação das
culturas negras ainda na África, empreendido de duas formas, pela dominação e pela
aculturação. O primeiro ocorre das guerras de conquista, pelas invasões e capturas dos
Negros. O segundo, pela destruição das suas instituições e culturas materiais e espirituais. A
escravidão por ser um sistema, totalizava a ação desses empreendimentos, completando a
obra. O escravo era isolado e segregado, depois da segunda ou terceira geração do escravo a
cultura primitiva era esquecida, esse processo se dava pela aculturação. Segundo Arthur
Ramos este processo trouxe outros aspectos de associações:
Já no navio negreiro, onde se misturavam Negros provenientes dos pontos mais diversos, e pertencentes a povos e culturas desiguais, houve uma solidariedade na dor, uma associação no sofrimento, por uma compreensão mutua do destino comum. E os escravos no navio negreiro chamavam-se uns aos outros “malungo”, isto é, companheiro, camarada.571
Seguindo o pensamento de Ramos apesar da escravidão, o negro sempre procurou o
apoio mútuo, por isso grupos e associações negras se formaram, assim como quilombos. Na
tese de Arthur Ramos, parece-nos que a escravidão isolando cada negro e tentando destruir a
sua cultura, em vez de diminuir a coletividade, possibilitou uma característica do negro
brasileiro, o “espírito associativo”. Os negros de várias origens, porém unidos pelo julgo da
escravidão, constroem uma identidade comum que os definem enquanto “Negro” em
contraposição ao “Branco”. Reunindo-se em torno de um objetivo que é a libertação,
organizam-se para ajuda mútua, produzem cultura através do sincretismo. Em alguns pontos,
onde se reuniram Negros do mesmo grupo de cultura, os grupos de religião conservaram as
características de cultura de origem. Estas associações, originam-se do regime de escravidão
como esforço coletivo que fizeram os Negros de reação ao regime que os oprimia. Na
construção do nosso antropólogo a República de Palmares foi o maior feito do “espirito
associativo” do Negro brasileiro, seria o grande exemplo de ajuda mútua.
Ramos distancia-se das explicações sobre a incapacidade dos quilombolas de
construírem uma organização complexa. Como já falamos no capítulo “Outras metáforas”, os
negros palmarinos tinham organizado um Estado, um governo independente. A organização
era complexa, tinha uma hierarquia social e política própria, uma forma de governo
organizado, em um momento determinou como “monarquia eletiva”, em outros estabeleceu
571 RAMOS, Arthur. O espírito associativo do negro brasileiro. In: ______. A aculturação negra no Brasil. Rio de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1942. p. 118.
227
como uma república, ou “improvisada república”572. A condição de brasilidade desse negro
transformava-o em algo novo, é nessa realidade construída no novo território que foi
fundamentado a concepção de que “Palmares permanecerá sempre como um monumento à
habilidade inata do Negro brasileiro em criar por ele mesmo, sem auxílios ou influências
externas, os fatores essenciais a uma ordem social.”573
Devemos considerar que em outros momentos do “The Negro in Brazil” e no livro
“Culturas negras no Novo Mundo”, destacou a realização de Estados na África. Mas o caso de
Palmares tornava-se diferente por ocorrer na condição de aculturação, no que ele compreende
enquanto Brasil. O seu argumento naturaliza a habilidade do negro brasileiro na condição de
contato cultural. Não estamos negando que o negro aqui no Brasil é diferente daqueles que
viviam na África, mas não conseguimos identificar em seu texto o que a aculturação ou o
contato cultural proporcionou de diferença em Palmares, pois ele não expõe. Por outro lado,
ele constrói um mito de poder e habilidade do “negro brasileiro” ao colocá-lo enquanto
fundador de Palmares, mesmo sem explicar em que o quilombo era diferente dos Estados
africanos. Vemos esse tipo de argumento sendo construído: “É um caso curioso e instrutivo
de fusão da experiência e dos elementos africanos com as imposições do novo meio na
formação de um Estado em miniatura, manifestando todos os atributos de uma comunidade
civilizada.”574
O elogio da capacidade de organização fortalece a grandeza que deseja ser dado à
“extraordinária empreitada” do Quilombo dos Palmares, talvez a diferença que marque essa
condição é a afirmação que vimos logo acima de que tais negros poderiam organizar uma
“comunidade civilizada”. Arthur Ramos constrói, dentro da história da civilização brasileira,
um espaço que demarca a originalidade do negro brasileiro, um marco histórico desse grupo
social no tempo pedagógico. Cria-se um monumento histórico, um espaço do passado no qual
é depositado o maior exemplo de empreendimento do negro, mas também de sua luta pela
liberdade. Temos que pensar essa construção em um momento que a intelectualidade
procurava construir heróis e monumentos nacionais devido à República e, até certo ponto à
Abolição. A referência à liberdade tornou-se central nessa nova história, era preciso novos
heróis e monumentos históricos que estivessem ligados aos outros grupos sociais que
compunham a sociedade brasileira. O Negro deveria ser compreendido como participante da
572 RAMOS, Arthur. Op.cit. 1956. p. 116.; RAMOS, Arthur. Op.cit. 1951. p. 112.; 573 RAMOS, Arthur. Op.cit. 1956. p. 69.; RAMOS, Arthur. Op.cit. 1951. p. 65.; 574 RAMOS, Arthur. Op.cit. 1956. p. 69.; RAMOS, Arthur. Op.cit. 1951. p. 65.;
228
luta pela liberdade. O Quilombo dos Palmares foi então construído como esse monumento,
que expressava o sentimento de liberdade do Negro brasileiro, sentimento que atravessou os
séculos e foi encontrado no “auto dos quilombos” de Alagoas: “Lá, dentro dos seus dez ou
doze mucambos, em que estava subdividida a República, eles podiam brincar, folgar à
vontade: “branco não vem cá”.575
Seria pela grandiosidade que esse evento histórico que se imporia a história brasileira.
O Negro brasileiro se inscreve na história nacional através da luta pela liberdade, mas também
pelo desenvolvimento e capacidade cultural passível de construir um espaço organizado, a
exemplo das comunidades civilizadas. Aos olhos de Arthur Ramos foi “tão inacreditável a
empresa dos Negros, que a crônica de Palmares ainda hoje se acha envolvida num espesso
véu de lenda”,576 reforçado por um discurso, uma produção da epopeia do Negro brasileiro,
construindo sobre esse evento um aspecto de mítico.
Essa visão sobre o espaço está além das descrições e informações disponíveis pelo
documento histórico. Por meio deles descobriu a existência de vários quilombos, o domínio
de mais de sessenta léguas no interior do atual estado de Alagoas, a existência de milhares de
pessoas que se refugiaram nessas matas, das centenas de mocambos, os níveis de organização
social e política, assim como as forças bélicas. A organização da estrutura urbana dos
quilombos, como a fortificação em pau-a-pique com estrepes de ferro, ou a existência de uma
igreja, as relações comerciais com os moradores das vilas vizinhas, etc.
A unidade política e social era o quilombo, reunião de pequenas habitações ou mocambos, construídos num recinto fortificado, de cerca de pau-a-pique, verdadeira muralha de grossos troncos, às vezes dispostos em três ordens de cerca havendo, na parte interna e na parte externa, largas e profundas fossas, em cujo leito havia tabocas de pontas agudas. Dentro deste recinto, os mocambos se dispunham em ruas irregulares. A habitação do rei era sempre uma casa maior do que as outras, e servia ainda de casa de conselho e de quartel.577
Porém, quando procura formular as explicações para esses dados, Ramos revela uma
perspectiva que procurava desconstruir a imagem de Palmares como entrave a civilização
brasileira. Mesmo que tenha interpretado como uma reação contra-aculturativa, demonstra a
tendência de que esse negro teria de civilizar-se, portanto, o entrave maior seria a escravidão.
É importante entender que o problema para ele não se encontra na colonização em si, pois é
575 RAMOS, Arthur. Op.cit. 1956. p. 116.; RAMOS, Arthur. Op.cit. 1951. p. 112.; 576 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. P. 59; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. P. 55. 577 RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 68; RAMOS, Arthur. Op. cit. 1956. p. 64..
229
através dela que se construiu a civilização brasileira. O problema ao pensar Palmares e o
Negro brasileiro é a escravidão: ao construir uma história sobre o negro ou “subalterno” era
impossível justificar para esses sujeitos a instituição da escravidão. É na luta contra esta
instituição que deve ser construída essa identidade, após superada a escravidão nada impedia
ou impede que o negro civilize-se, o negro participava da civilização brasileira. A colonização
não seria problemática para o Negro brasileiro, porque ela é produtora da aculturação, sendo
assim, é quem proporciona a civilização para os povos primitivos.
Palmares deveria servir como um símbolo da união do Negro brasileiro pela liberdade
contra a segregação da escravidão, pela vontade de civilizar-se. Arthur Ramos escreve a
história do Negro brasileiro e da República de Palmares com preocupações com a sociedade
brasileira da década de 1930, com uma nação pensada enquanto mestiça, com uma ideia fixa
de integração racial no Brasil. Podemos demonstrar isso com um texto retirado de um artigo
de Arthur Ramos intitulado Zumbi, publicado em janeiro de 1946, numa revista mensal
organizada por negros e destinada a esse público.
Porém, não te entristeças, Zumbi. O teu idealismo, o teu feito heroico, a tua combatividade não foram em vão. Nesta hora tumultuosa por que passa a humanidade, o teu exemplo épico e magnifico ressurge da noite dos séculos como uma aurora luminosa indicando às gerações moças do Brasil de cor um novo caminho para a solução do problema. E os moços compreender-te-ão. Se naqueles tempos: a atitude era de hostilidade, de adversidade, hoje, eles em breve desfraldarão uma nova bandeira que não é a da separação, mas da integração, da colaboração sincera, despretensiosa e construtiva, de afirmação consciente do próprio valor, do desassombro e da dignidade.578
O texto surge como uma resposta motivacional para os problemas enfrentados pelos
homens e mulheres de cor no Brasil.
Podemos ler a figura de Zumbi enquanto herói, como a personificação do monumento,
Palmares. Assim, vemos que a luta de Palmares pela separação era a luta pela liberdade
humana, mas, conquistada essa liberdade, cabia às gerações atuais a integração. A união de
escravos fugidos dos engenhos e das cidades que formaram os quilombos, por laços de
solidariedade política e militar, demonstravam, a nosso ver, a natureza do negro brasileiro.
Arthur Ramos não escreveu sozinho a epopeia do Negro brasileiro, como já demonstramos
nos capítulos anteriores, pois houve diversos textos, cuja leitura, foram importantes nessa
composição. Ele nem mesmo escreveu o texto mais completo sobre o Quilombo dos Palmares
578 RAMOS, Arthur. Zumbi. Senzala. Ano I, n. 1, 01/1946. p. 18.
230
desse período, mas foi sob a influência de sua perspectiva que Edison Carneiro escreveu o
livro Quilombo dos Palmares, em 1946.
O poder e legitimidade da sua construção da República de Palmares corresponde a sua
memorável produção intelectual, a sua importância nos Estudos sobre o Negro brasileiro e ao
seu reconhecimento na sociedade, enquanto homem de ciência. Por isso, acreditamos que a
sua construção de Palmares, possibilita uma mudança para uma perspectiva épica ou heroica
desse evento, constituidora de um sentimento ou participação do Negro na representação do
passado da Nação.
231
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria da interpretação de Paul Ricoeur nos ensina que, na interpretação de um
discurso, é impossível separar o leitor do texto. Devemos considerar a leitura como parte do
texto, pois ela participa da função referencial.579 A ideia da existência de leitores verificáveis,
possibilita compreender como o texto analisado foi recebido na sociedade. No caso
específico, gostaríamos de demonstrar que a visão do Quilombo dos Palmares de Arthur
Ramos, de fato, mudou a perspectiva sobre o tema no imaginário social. Explicamos que o
livro “The Negro in Brazil”, foi publicado em 1939 nos Estados Unidos da América, tendo
provavelmente, alguns poucos volumes circulando no Brasil, uma segunda remessa do livro,
em inglês, é de 1951. No Brasil o livro foi publicado em 1956, após sete anos da morte do
professor Ramos.
Então, se o livro demorou tanto a ser publicado em português, além daqueles poucos
que puderam ler a versão em inglês, como ele atingiu o público brasileiro na década de 1940?
Como, antes da década de 1950, o público pôde ter conhecimento de seu texto sobre o
Quilombo dos Palmares? Por causa de um costume de Arthur Ramos de repetir seus
argumentos em outros formatos, muitas vezes praticamente sem modificar seus textos. Dessa
forma, partes do que ele escreveu para o “The Negro in Brazil”, foram repetidas nos livros
“As Culturas Negras no Novo Mundo”, “Aculturação Negra no Brasil” e “Introdução a
Antropologia Brasileira”.
No dia 4 de maio 1938, na sede do Departamento de Cultura, Palácio Trocadero, em
São Paulo, ocorreu a conferência de Arthur Ramos intitulada “Espírito Associativo do
Negro”, como parte dos eventos comemorativos do Cinquentenário da Abolição da
Escravidão. Essa conferência foi publicada, em forma de artigo, por volta de um ano depois
na Revista do Arquivo Municipal do Rio de Janeiro e em 1942 foi publicada também como
capítulo do livro “Aculturação Negra no Brasil”. Como já vimos, esse texto explicava o
conceito que vem escrito em seu título, versava sobre as formas que o negro se organizou ou
se uniu em um grupo para se apoiar e lutar pela liberdade, formado por uma reação contra-
aculturativa do negro, seriam essas associações exemplos do “espírito associativo do negro
brasileiro”. Porém, o mais importante para essa dissertação, é saber que esse texto publicado
em periódico e em livro, é composto em boa parte por um escrito igual ao que ele publicou
579 RICOEUR, Paul. op. cit. s.a. p. 83-99.
232
em “The Negro in Brazil” no ano de 1939.580 Com isso, podemos afirmar que houve uma
circularidade de seu texto sobre o Quilombo dos Palmares no Brasil.
Edison Carneiro publicou no Brasil o livro “O Quilombo dos Palmares” 581, em 1947,
tendo sido publicado antes no México, em 1946. Escreveu durante o seu exílio, e que naquele
momento passava a ser a pesquisa mais completa sobre os palmarinos. Esse é um exemplo de
que seu texto circulou na sociedade e nesse caso podemos identificá-lo como uma leitura feita
por Carneiro, condicionando a produção de Palmares. A exemplo de Ramos, Carneiro deu
continuidade à abordagem de Nina Rodrigues582. Ele era um estudioso do folclore, das antigas
práticas das chamadas “culturas negras”, em especial, dos cultos religiosos. Palmares é
estudado a partir de sua organização política, econômica, militar, cultural e social. A obra é
uma tentativa de identificar os “significados” culturais africanos de Palmares.
O quilombo foi, portanto, um acontecimento singular na vida nacional, seja qual for o
ângulo pelo qual o encaremos. Como forma de luta contra a escravidão, como
estabelecimento humano, como organização social, como reafirmação dos valores das
culturas africanas, sob todos estes aspectos o quilombo revela-se como novo, único e peculiar
– uma síntese dialética. Movimento contra o estilo de vida que os brancos lhe queriam impor,
o quilombo mantinha a sua independência à custa das lavouras que os ex-escravos haviam
aprendido com os seus senhores e se defendendo, quando necessário, com as armas de fogo
dos brancos e os arcos e flechas dos índios. Em geral, o quilombo aceitava muito dessa
sociedade que o oprimira e foi, sem dúvida, um passo importante para a nacionalização da
massa escrava. 583
Edison Carneiro destacava o caráter fraternal e multiétnico do Quilombo, contrapondo
à imagem agressiva descrita pelos autores coloniais. Nos redutos conviviam pacificamente
negros, brancos, mulatos e índios, sendo que este convívio pacífico transporia os limites do
Quilombo, ao conseguirem manter um comércio legal e regular com as populações vizinhas
de Palmares. Haveria um governo central despótico, na figura de um chefe eleito: o mais hábil
e sagaz do Quilombo. Carneiro afirma que Palmares seria a consolidação e a “reafirmação da
cultura e do estilo de vida dos africanos”. O topos que denota a capacidade de organização é 580 Para nível de comparação indicamos aqui as páginas, ver: RAMOS, Arthur. op. cit. 1951. p. 56-65.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1956. p. 60-69.; RAMOS, Arthur. op. cit. 1942. p. 138-145. 581CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 582 CORREA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, São Paulo: EDUSF, 1998. 583 CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. p. XLV.
233
repetido em Carneiro: “Estado negro, um pedaço da África transplantado para o Nordeste do
Brasil.”584
Arthur Ramos e Edison Carneiro, produzem no mesmo período. A ideia de unidade e
integração cultural é amplamente divulgada, a pureza estava ligada ao fato do pertencimento,
ao ser “brasileiro”, as diferenças de raça, federação ou região suprimidas em defesa do Uno.
O quilombo Palmares significou, para ambos, uma “reação contra-aculturativa”, um espaço de
“pureza” das culturas negras, um marco da luta do negro pela liberdade, uma sobrevivência na
memória do negro brasileiro, a inscrição dos negros como brasileiros na história nacional, por
último, um ato heroico do negro brasileiro na luta pela liberdade. A obra de Edison Carneiro,
nos autoriza a pensar que o texto de Arthur Ramos influenciou as leituras sobre Palmares,
escrevendo-o como ato heroico do negro brasileiro, monumento histórico e elemento de
brasilidade da população negra.
No final dessa pesquisa, chegamos a algumas constatações. Tentaremos sistematizá-
las para ficar mais claro. Percebemos que, até o século o XIX, a historiografia sobre Palmares
tratava-se de uma narrativa das diversas batalhas entre as forças legalistas da Coroa
portuguesa e do governo da colônia contra o Quilombo dos Palmares. Um discurso que
preocupou-se em demonstrar a conquista do quilombo, colocando-o como selvagem e inimigo
da civilização. Na virada do século XX, Nina Rodrigues iniciou uma transformação na
perspectiva quando se deparou com os relatos da organização de Palmares, no que seria
compreendido, pelas culturas historiográficas posteriores, como parte da cultura nacional.
Porém, essa transformação ocorreu paulatinamente, na “Troya Negra” de Nina Rodrigues.
Palmares ainda foi escrito como um inimigo da civilização, um espaço do medo, um espaço
construído pela racionalidade raciológica de inferioridade do negro bantu, um espaço que
ameaçava a ordem social.
O Quilombo dos Palmares, escrito por Nina Rodrigues, inovou ao utilizar a etnologia e
revelar a produção cultural, a organização política, a estrutura social e a economia dos negros
que dirigiram o reduto. Arthur Ramos, leitor e “discípulo” de Nina Rodrigues, ordena o seu
texto sobre Palmares seguindo a estrutura do escrito do “mestre”. Dando continuidade a uma
leitura etnológica desse espaço, também preocupa-se em analisar a organização ou o
584 Ibid. p. 4.
234
empreendimento dos palmarinos, destacando a capacidade de organização dessa sociedade e
do Estado dos negros.
Contudo, Arthur Ramos procurou se distanciar da perspectiva racista de Rodrigues,
aproximando-se da antropologia cultural norte-americana. Através de um novo arcabouço
teórico, orientado pelo conceito central de aculturação, explicou a formação da Nação
brasileira como a fusão das diversas culturas. Esse processo promoveu, também, na visão de
Ramos, a formação de um grupo social diferenciado, o Negro brasileiro, gestado entre as
“sobrevivências” culturais africanas e as transformações culturais ocorridas durante os
últimos séculos, numa fusão ou sincretismo com a cultura portuguesa.
Teve um papel importante em seus escritos sobre o Quilombo dos Palmares, as
produções do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano e do Instituto Arqueológico
e Geográfico Alagoano, principalmente, os escritos de Jaime Altavilla e de Manoel Arão.
Nessas instituições foram produzidas narrativas que descreviam os palmarinos como heróis e
Palmares passou a ser alvo de disputas identitárias estaduais, cada uma dessas instituições
reivindicava pra si a existência do quilombo. Também é verdade que esses discursos não
conseguiram distanciar-se totalmente do elogio dos conquistadores, procurando escrever um
protagonismo das forças “alagoanas” e “pernambucanas”.
Essa construção de uma narrativa heroica ou épica dos quilombolas, permitiu que
Arthur Ramos ampliasse esse discurso, ao produzir o Quilombo dos Palmares, como obra da
qualidade e capacidade do Negro brasileiro, dando início a visão nacionalista sobre esse
monumento histórico, lançando mão de uma perspectiva de Palmares, como uma reação a
desagregação cultural promovida pelo regime escravista, possibilitando a produção de
Palmares como resistência ao processo de aculturação imposto aos escravos. A ideia de
“espírito associativo” do negro brasileiro tem papel fundamental nessa reação contra-
aculturativa, pois foi compreendida como característica do negro de se reunir em grupos ou
associações para apoio mútuo.
Por causa do compromisso como intelectual da Escola Nina Rodrigues, uma herança
ainda maior é por ele reivindicada, o papel de intelectual responsável por pensar o negro
como parte da Nação. Isso também foi possível de ser observado pela escolha de Ramos em
adotar quatro topoi que estavam no escrito de Rodrigues: Tróia Negra, República de
Palmares, Estado Negro e Haiti. Porém, como vimos, os significados desse discurso estavam
235
em transformação, conduzindo a construção de uma nova perspectiva sobre o quilombo. Essas
metáforas foram utilizadas para qualificar o Quilombo dos Palmares. O termo Tróia Negra,
por exemplo, ganhou em Arthur Ramos uma leitura heroica, foi atribuído um caráter épico ao
empreendimento dos palmarinos. Palmares foi escrito como uma República, caracterizado por
um governo próprio, cuja a participação popular foi uma marca, o povo era seu fundador.
Utilizando a ideia de “Estado Negro”, demonstrou a capacidade de organização política,
econômica, social e cultura do negro.
Arthur Ramos está entre duas “escolas” de pensamento que terão como objetivo
estudar o negro brasileiro: a Escola Nina Rodrigues, na qual teve a sua formação básica nos
estudos do negro; a Antropologia Cultural brasileira, que, por sua vez, foi uma grande
divulgadora da democracia racial ou mestiçagem brasileira. Na primeira, o negro é visto como
problema social, um Outro distante da verdadeira cultura brasileira – europeia ou branca. Na
segunda, as explicações sobre a cultura negra estão imersas nas concepções de aculturação –
do negro brasileiro e, ao mesmo tempo, na ideia de mistura entre as culturas, na qual a branca,
pelo seu estágio de desenvolvimento cultural, foi hegemônica. Palmares é reinventado por ele
dentro dessa racionalidade, que acaba por constituí-lo como um espaço novo do Negro
brasileiro.
Utilizou o conceito de “sobrevivência”, que na antropologia apareceu no final do
século XIX, no evolucionismo cultural. Para a antropologia cultural, a ideia de
“sobrevivência” cultural é problemática, tanto por sua matriz no evolucionismo cultural,
quanto pela ideia de imutabilidade de algum aspecto cultural. Através do “evolucionismo
social” e do “método comparativo” de culturas, construíram o discurso de que todos os
homens deveriam passar pelas mesmas etapas de desenvolvimento cultural, ainda que os
grupos evoluíssem em velocidades diferentes. Prevaleceu no evolucionismo, uma concepção
de teoria da natureza mais do que da sociedade e da cultura, por isso um tempo naturalizado
com etapas predefinidas do desenvolvimento humano. Por outro lado, a sua atuação como
antropólogo cultural, o conduz a concepção de aculturação e de temporalidade própria de cada
grupo social, acreditando na existência de diversas culturas e diversas temporalidades na
sociedade.
Mesmo com as concepções de tempo que observamos no seu trabalho antropológico,
ao escrever um ensaio histórico, procurou inserir o negro numa narrativa da nação, um
discurso pedagógico. Com isso destacou o papel do Quilombo dos Palmares como um mito
236
fundador de originalidade e protagonismo do Negro brasileiro, produto de uma perspectiva
que procurava desconstruir a imagem de Palmares como entrave à civilização brasileira.
Palmares deveria servir como um símbolo da união do Negro brasileiro pela liberdade contra
a segregação da escravidão, e pela vontade de civilizar-se. Arthur Ramos escreve a história do
Negro brasileiro e da República de Palmares com preocupações com a sociedade brasileira da
década de 1930, com uma nação pensada enquanto mestiça, com uma ideia fixa de integração
racial no Brasil. Arthur Ramos possibilita uma leitura heroica do Quilombo dos Palmares, um
discurso épico, um símbolo do Negro brasileiro como participante da civilização brasileira.
Rodrigo Turin observou que o brasileiro dos estudos etnográficos e folclóricos,
fundados na negação da contemporaneidade, produzem um sujeito esquizofrênico, ocupando
um não-lugar. Talvez devamos compreender esse sujeito segundo Homi Bhabha, ocupando o
entre-lugar, entre o discurso pedagógico e o performático. Definido o problema como a cisão
do sujeito nacional. Esse é o Negro brasileiro, sujeito no discurso de Arthur Ramos. Porém,
proponho estender essa interpretação para o intelectual produtor do discurso, a complexa cena
de produção de Arthur Ramos, os diversos rastros na escritura, concepções epistemológicas
tão distintas que conduz a uma diversidade de temporalidades do discurso. Temos o sujeito
deslocado, descentrado de Jacques Derrida.
237
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