conversa haraway azeredo revisada[1]

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COMPANHIAS MULTIESPCIES NAS NATUREZACULTURAS1: Uma Conversa entre Donna Haraway e Sandra Azerdo

Donna Haraway um dos nomes mais instigantes e criativos do pensamento contemporneo. Professora Emrita da Universidade da Califrnia, em Santa Cruz, Haraway trabalha no Departamento de Histria da Conscincia desde 1980. Suas atividades de ensino e pesquisa exploram os ns do jogo do barbante (cats cradle), ligando teoria feminista, cincia, estudos de tecnologia e estudos de animais. Ela doutorou-se em Biologia na Universidade de Yale em 1972 e, antes da UCSC, lecionou biologia na Universidade do Hava e histria da cincia na Universidade Johns Hopkins. Sua obra mais recente, When Species Meet (University of Minnesota Press, 2008) investiga os aspectos filosficos, histricos, culturais, pessoais, tecnocientficos, e biolgicos das inter e intra-aes entre animais e humanos. Publicou tambm os livros The Companion Species Manifesto: Dogs, People, and Significant Otherness (Prickly Paradigm Press, 2003), Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature (Routledge, 1991) e Primate Visions: Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science (Routledge, 1989), entre outros. A presente conversa foi realizada especialmente para este livro, em fevereiro de 2011, e traduzida por Sandra Azerdo, que professora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Suas atividades de ensino e pesquisa centram-se na questo de violncia de gnero, com nfase nas intrincadas relaes de gnero, raa e classe. Obteve seu doutorado na Universidade da Califrnia, em Santa Cruz em 1986. autora do livro Preconceito contra a mulher: diferena, poemas e corpos (So Paulo: Cortez, 2007; 2011) e de diversos artigos no mbito dos estudos de gnero e violncia.

Open and vulnerable, capable of astonishment and invention, hungry for learning how to inherit the terrible burdens of genocides, exterminations, and extinctions without repeating them in a need to become innocent and purethese are as much my concerns now as they were in the 1980s. But this time I have a fine dog to herd me onto tracks that she might find more promising Donna Haraway

I. Porcos para os saberes localizados

Sandra Azerdo: Foi com enorme prazer que aceitei o convite de Maria Esther Maciel para fazer uma entrevista com voc como parte desta coletnea sobre pensar/escrever o animal. A experincia de ter sido orientada por voc no programa Histria da Conscincia, na Universidade da Califrnia, em Santa Cruz, na dcada de oitenta, marcou para sempre meu trabalho e minha vida e, por isso, preparar as questes para esta conversa foi muito mais que uma mera tarefa intelectual, pois envolveu mesmo

2 experimentar o processo contnuo de becoming with, de tornar-me-com voc, de pensar com voc. Maria Esther e eu nos conhecemos em 2008, em Florianpolis, no Seminrio Internacional Fazendo Gnero, na Universidade Federal de Santa Catarina. Voc se tornou uma conexo importante entre ns duas por causa de seu trabalho sobre/com espcies companheiras (companion species)2

. Maria Esther faz pesquisa em

zooliteratura e tenho aprendido muito sobre esse tema, lendo o trabalho dela3. claro que j tinha lido muito sobre animais em romances, poemas, artes em geral animais e humanos esto em todo tipo de arte e na vida mas eu nunca tinha pensado que os animais no humanos so bons para ser pensados, como voc escreve. Ento, o trabalho de preparao para esta conversa lendo seu trabalho e o de Maria Esther, e o livro de Derrida, O Animal que logo sou (A seguir),4

que vocs duas usam em seus

escritos me fez entrar em um mundo novo, onde animais e humanos se encontram de maneiras que nos afetam a todas e todos e, mais importante, que nos co-constituem, como voc argumenta. Uma questo importante sobre essa co-constituio diz respeito s relaes assimtricas entre humanos e animais trabalhadores, e eu gostaria de comear com esta questo. Recentemente, numa visita que fiz a uma universidade rural no interior de Minas Gerais para participar de um seminrio, fui convidada por Margarita Ramos, uma amiga que tinha sido minha orientanda no Mestrado em Psicologia Social da UFMG, para ver o curral de porcos. Havia um espao reservado para as leitoas que5 estavam reproduzindo amamentando os filhotes ou esperando para parir. Fiquei chocada ao ver aquelas enormes leitoas com barras de ferro em volta de seus corpos para mant-las deitadas de lado, de modo que seus filhotes pudessem mamar em suas tetas. O nico movimento que aquelas pobres fmeas podiam fazer era levantar um pouquinho a cabea do cho. Isso me lembrou uma cena do filme Laranja Mecnica, de Kubrick, em que um experimento de laboratrio estava tentando produzir um ser misto de humano e alguma outra espcie. Uma das fmeas imobilizadas pelas barras de ferro, que iria parir a qualquer momento (podamos perceber os leitezinhos mexendo em sua barriga), tinha uma grande cesta forrada de pano debaixo do rabo, aonde seriam lanados os leitezinhos ao nascer. Margarita e eu ficamos to perturbadas com aquela cena, que, no dia seguinte, depois de

3 minha partida, ela voltou ao curral para falar com o veterinrio responsvel por aquela crueldade e ele disse que era preciso prender as leitoas daquele jeito para evitar que elas pisassem nos leitezinhos. E, alm disso, as barras de ferro no estavam to apertadas assim. Ele tambm comentou que estava cansado desse pessoal dos direitos dos animais. Em seu livro When Species Meet,6 voc cita uma histria muito parecida com essa das gaiolas de gestao como so chamadas aqui no Brasil essas verdadeiras cmaras de tortura.7 O que voc conta me fez pensar que essas prticas, que foram proibidas em toda Unio Europia, mas continuam sendo a norma nos Estados Unidos, talvez continuem a existir tambm no Brasil como um dos resqucios de nossas relaes pscoloniais. Minha primeira pergunta para voc, ento, diz respeito criao, uso e abate de outras espcies s quais voc se refere como animais trabalhadores de laboratrios e agricultura em sua entrevista com Jeffrey Williams8. Nos agradecimentos em When Species Meet, voc escreve que os [a]nimais trabalhadores, incluindo as criaturas que produzem comida e fibras, me assombram em todo o decorrer deste livro. A resposta apenas comeou. Resposta parece ser uma de suas palavras-chave para se relacionar com o sofrimento dos animais; na verdade, para o que voc considera como compartilhar o sofrimento. Juntamente com curiosidade, essas palavras parecem ser o mantra das espcies companheiras, como voc diz. No captulo final do livro, Parting Bites, ao escrever sobre o assado de porco selvagem oferecido por seu colega de Departamento, Gary Lease, voc lista as precaues que Gary teve com a caa e fala da intensidade da inteno tida por ele de matar com o mnimo de terror e dor que sua habilidade possibilitasse.9 Em um nmero recente da revista Carta Capital, Mrcio Alemo argumenta que a produo de animais com vida curta seria o maior avano gentico de todos os tempos. Ele tambm prope o abate humanitrio, definindo-o como um modo de matar sem dor nem sofrimento. 10 Por voc criticar o vis humanista do mandamento No matar, que se aplica apenas aos humanos, especialmente aos homens, tornando todas as outras criaturas meramente matveis inclusive as mulheres que, como Margarita mostra em sua dissertao, podiam de acordo com o cdigo penal brasileiro ser mortas por seus maridos at recentemente, quando acusadas de adultrio 11

, a princpio pensei que,

4 embora houvesse uma preocupao com o sofrimento dos animais em ambos os textos, voc no usaria a expresso abate humanitrio, que Alemo usa. No entanto, voc sugere que um tratamento humano seria parte da soluo para a crueldade com as leitoas. Embora os termos humano e humanitrio no sejam exatamente sinnimos, ambos enfatizam valores humansticos e, alm disso, ironicamente, humano significa o que caracterizado por bondade, piedade e compaixo12. S posso entender seu uso de humano nessa passagem, mesmo quando voc coloca a palavra entre aspas, como um termo que aponta para um contnuo tornando-se-com e indica sua preocupao em no ser nem ps-humanista nem ps-feminista, j que, como voc escreve, um trabalho urgente ainda precisa ser feito em termos de quem deve habitar as categorias encrencadas de mulher e humano.13 Realmente, esse trabalho mesmo urgente! Em suma, voc descreveria a forma como aquelas leitoas esto sendo tratadas como parte de uma lgica que as torna matveis? Quer dizer, o problema para voc menos o fato de que elas estejam produzindo alimento para ns do que o fato de no haver nenhuma relao das espcies companheiras na forma como elas esto produzindo alimento? Como sua noo de direito enquanto inerente relao pode iluminar essas relaes tensas (e muitas vezes cruis)? Donna Haraway: Sim, realmente, as leitoas so sistematicamente tornadas matveis ou talvez, at mais do que isso, so foradas a viver e se multiplicar at o mximo alcance possvel e a extenso de sua dor e sofrimento apenas parte do ultraje. Elas so foradas a gerar valor e a ser valor a qualquer custo para elas (ou para a maioria das pessoas que precisam tambm trabalhar nesses sistemas, ou para as terras e guas que so poludas pelos intensos sistemas de produo de fbricas de animais). Se tudo isso pode acontecer sem a objeo das porcas, ento tanto melhor, essa a lgica. Se nenhum porco guinchou alto demais ou incessantemente demais, ento tudo deve estar bem. Se eles podem ser refeitos geneticamente de modo a viverem s o tempo suficiente de se tornarem valor, tanto melhor. Se podem ser feitos estpidos e sem reao por uma tcnica gentica qualquer, fantstico. Os porcos so sistematicamente tornados matveis ou forados a viver e se multiplicar muitas vezes e mais vezes e mais vezes, de modo que gestar, criar e matar so todos trs um escndalo por serem feitos incompetentes, por

5 serem reduzidos a um it, uma unidade de produo, quer esse it esteja ou no esteja com dor. Os porcos (e, claro, muitos outros animais e pessoas) so tornados matveis e explorveis na produo e reproduo por serem reduzidos a seres que no podem ser sujeitos e objetos de suas prprias vidas, seres sem histria, sem relaes natural-sociais que importam, sem tempo, seres sem trabalho ou diverso. Tudo isso histria, trabalho, diverso, subjetividade e objetividade, sociabilidade so importantes categorias humanistas com histrias complicadas e no isomrficas, e todas elas precisam ser radicalmente refeitas, reouvidas, retocadas, retranadas (no jogadas fora num movimento esquisito de purificao), mas sem o excepcionalismo humano convencional e a ignorncia motivada sobre as multiespcies fazedoras de mundos tornando-se-com. Tais tornando-se-com so, na verdade, o mundo mortal, o nico que temos; e ento, cuidar do tornando-se-com no opcional. Nosso problema, a meu ver, nos engajar seriamente na enormidade de prticas reais atravs das quais animais trabalhadores (e suas pessoas) so tornados incompetentes, de modo a se reduzirem condio de valor. Ns, quem quer que seja que venha a reconhecer e se responsabilizar por essas prticas, devemos agir sem perpetrar ainda mais extermnios, obliteraes, redues e genocdios de multiespcies humano-animalvegetais. Para mim, usar a palavra ns tanto um convite quanto uma pergunta: quem ser recolhido nesse ns para tornar mundos mais vivveis juntos? Esse ns tal que merece um futuro, ou ele uma desculpa para no se aprofundar o olhar nas condies de explorao necessrias para sustent-lo? H um ns para pessoas e animais que trabalham na agricultura em diversos mundos contemporneos? Como? Voltando sua pergunta: para as leitoas, a situao na Unio Europia menos satisfatria do que voc descreve, e marginalmente menos ruim do que o que voc descreve nos Estados Unidos. Alm disso, as relaes ps-coloniais so importantes, mas acho que no explicam toda a histria das prticas atuais no Brasil. Na Unio Europia, as gaiolas de gestao esto em processo de serem eliminadas em 2013. Isso significa que muitas leitoas da Unio Europia ainda esto contidas em espaos extraordinariamente pequenos e ainda ficaro nesses espaos durante geraes de porcos e anos porcohumanos vindouros. A Sucia e o Reino Unido j proibiram inteiramente as gaiolas de

6 gestao; a Dinamarca vir em seguida, em 2014; a nova Zelndia, em torno de 2015. Nos Estados Unidos, as gaiolas de gestao foram proibidas na Flrida (desde 2004), Arizona (2006), e Califrnia (2008), e elas esto em fase de serem eliminadas no Maine e no Oregon. Provavelmente mais importante o fato de o maior produtor de carne de porco nos Estados Unidos, Smithfields Farms, ter anunciado em 2007 que eles vo eliminar gradualmente suas gaiolas de gestao nos prximos dez anos em suas quase 200 fazendas de produo de carne de porco.14 Dez anos... e ns o no inocente ns que nos convida, que at nos obriga a nos preocupar devemos estar supostamente impressionados! Toda considerao dada indstria de carne de porco para que seja reequipada para satisfazer novos minimamente tolerveis para os animais, minimamente suportveis para os humanos regulamentos legais, planejamentos de sistema tcnico e exigncias do mercado por comida que seja menos encharcada de crueldade. Mesmo essas mudanas pequenas demais, mas importantes, so o resultado de intensas lutas polticas e cientficas, para no falar da reeducao do afeto e das sensibilidades morais, isto , o cultivo da capacidade de sentir e pensar com outros seres mortais, no apenas sobre eles. Cientistas do comportamento animal no setor do agronegcio brigam uns com os outros sobre se os animais podem crescer em condies extremas de produo forada, incluindo as gaiolas de gestao para leitoas grvidas e em fase de amamentao. Nas condies em que essas leitoas so foradas a viver e reproduzir, sem as gaiolas de gestao elas vo esmagar seus filhotes. A soluo conter as leitoas ou mudar as condies de se viver e morrer radicalmente? Por que essa deve ser uma questo difcil? Carne de porco barata o ano inteiro para as massas humanas industriais e as classes mdias globais em ascenso? Isso no soa um pouco como po barato para manter as massas trabalhadoras quietas na histria da explorao capitalista durante um longo tempo? Essa uma feia histria multinacional de multiespcies. As lutas cientficas em torno do bem-estar do animal dentro da barriga do monstro so muito interessantes, mas limitadas demais. Cientistas (e muitas outras pessoas) em outras ecologias de saberes fazem exigncias muito maiores em relao aos desenhos experimentais e s boas questes a serem colocadas aos e com os animais, pessoas, terra, plantas, micrbios e tecnologias. Enquanto os tardios seres humanos industriais vadiam

7 mesquinhamente rumo ao encontro de corpo e alma com os animais trabalhadores contemporneos no complexo animal industrial, quantas leitoas grvidas e parindo passaro suas vidas em reproduo forada com quase nenhuma habilidade, sem poder mover at seus prprios corpos? Quantos filhotes machos sero castrados e tero seus rabos cortados sem anestesia e sero criados sem que seus ps jamais toquem o solo ou suas mentes jamais se estiquem para resolver uma questo suna interessante colocada por pessoas ou outras criaturas? O que importa se os porcos estejam na China, nos Estados Unidos, no Brasil, ou em qualquer outro lugar, visto que em qualquer lugar os investimentos mais baratos e a ecologia moral-emocional-legal-poltica favorecem o maior sucesso do mercado tecnocapitalista? Importa porque nenhum desses locais est desligado dos outros; os porcos so viajantes globais scio-materiais em todos os sentidos da palavra. Como isso pode deixar de ser uma questo feminista urgente, bem como uma questo de florescimento de multiespcies para quase todo mundo? Nos anos recentes, a indstria de carne de porco brasileira tornou-se um forte competidor no mercado mundial, aperfeioada com todo o aparelho tecnocientfico necessrio para que, material e semioticamente, se esquea que porcos so algum, e no algo. Penso no veterinrio com quem Margarita Ramos conversou, que insistiu que as barras das gaiolas de gestao que continham as leitoas no eram to apertadas assim. Esse mesmo veterinrio deve ter um cachorro ou gato muito amado em casa ou, em outro contexto, pode ter prazer em ensinar a uma criana ou em dizer a um/a reprter do noticirio que a investigao biolgica mostrou que porcos competentes so to ricos e complexos em termos sociais, cognitivos e emocionais, quanto os cachorros provavelmente, muito mais ricos e complexos, de fato. No Brasil, como em outros lugares, o aparelho do agronegcio tecnocientfico inclui a medicina veterinria em ambas suas formaes emocional e cognitiva bem como a categoria de trabalho profissional e ativista que separa questes relacionadas, tais como o florescimento humano e animal, ecologias sustentveis e biodiversidade, condies de trabalho para gente e animais, ateno feminista coero reprodutiva e sexual, demandas de mercado, racializao e animalizao (e mecanizao) como meios de desumanizar os seres, etc. Diante de tudo isso, a populao pobre do mundo rural e urbana sempre a guardi piv tanto da diversidade biolgica das espcies animais na fazenda quanto do

8 saber prtico de cuidar dos animais fora do aparelho do tecnocapital global e nacional.15 Trabalhar para aumentar o bem-estar dessa populao pressionada e muitas vezes devastada e a de seus animais (e plantas) est, a meu ver, no corao da poltica feminista interseccional. Globalmente, o Brasil superou os Estados Unidos em 2004 como exportador mundial de carne (boi, porco, frango, etc.). Aumento de contrato, concentrao industrial, monoplio de alimentao e criao de gado, trabalho barato dividido por gnero, regio, e raa/etnia so cruciais para esse sistema mundial no Brasil, assim como em outros lugares (Filipinas, Tailndia, Vietnam, Canad, Estados Unidos, Unio Europia). Os fazendeiros tm muito poucos graus de liberdade para resistir a essa indstria extrativa humano-animal-vegetal altamente capitalizada, que tambm altamente subsidiada pelas polticas agrrias de estado. Os Estados Unidos e a Europa tm mercados domsticos significativos para uma carne mais cara, produzida com padres mais caros de cuidado e trabalho; ainda assim, nessas regies muito ricas, as dificuldades de reforma e, sobretudo, de mudana mais radical no complexo industrial de carne so imensas. Globalmente, a Organizao para Alimento e Agricultura das Naes Unidas estima que um tero dos porcos seja forado a viver e morrer em fbricas industriais, e os nmeros esto crescendo rapidamente. O monoplio global da gentica animal e das indstrias de criao parte muito importante do problema. Por exemplo, juntamente com a Metamorphix, Monsanto o maior empreendedor mundial em gentica do agronegcio de porcos. Pequenos produtores no Brasil e em outros lugares, inclusive pessoas que vivem e morrem em relaes de trabalho com os porcos e para quem passados, presentes e futuros esto em jogo sofrem tremenda presso. Diante disso tudo, por que no sou uma ativista feminista vegana? Como eu e outras pessoas ousamos matar e comer porcos (ou outros animais, talvez especialmente peixes, se consideramos seriamente tanto a dor do animal quanto o dano ecolgico)? Essas questes me assombram e devem mesmo me assombrar. Matar uma relao ontolgica; todos os parceiros so feitos e desfeitos nas intra-aes de matar. Sujeitos e objetos so constitudos no ato de matar, assim como no ato de nascer e de nutrir. Matar forma quem est no mundo em mais de uma maneira. Gerar, criar e matar animais trabalhadores que produzem comida e fibras forma um mundo imenso de encrenca, no

9 qual estou tentando entender se matar sem tornar matvel pode fazer sentido. Se no matar, mas tornar matvel que imperdovel, o que isso significa? possvel, individual e coletivamente, matar com respeito no inocente, ou isso uma desculpa para se recusar a profundidade da mudana necessria, especialmente, mas no apenas, nas regies ricas do mundo? No estou falando apenas de animais e isso me assusta. Como posso apoiar os direitos das mulheres e os meios de exerc-los liberdade reprodutiva, inclusive de matar humanos muito jovens chamados fetos, e no confessar as exigncias de matar sem tornar matvel, por exemplo? Eu realmente sustento que aborto pode ser matar sem tornar matvel; eu tambm acho que gerar e matar porcos para comer pode ser matar sem tornar matvel, mas apenas sob condies estritas de prtica natural-cultural, sciomaterial. O respeito uma prtica sintonizada com a mortalidade; respeito no uma coisa fcil, no uma ideia abstrata. O respeito requer ficar com a morte assim como com a vida, de modo a cuidar da complexidade do tornando-se-com. O aborto e a criao de animais para alimento no so anlogos na maioria dos casos, mas ambos requerem que as condies para aceitar a morte assim como a vida de matar assim como de fazer viver sejam enfrentadas sem que se apele para uma posio de inocncia. Acho que as polticas de direito vida tanto no mundo humano quanto no mundo animal apontam para a inocncia, no para o respeito e a responsabilidade. Sei que estou comprometida com as pesadas prticas do trabalho de viver e morrer das multiespcies historicamente situadas na agricultura humano-animal. Oponhome de todas as formas e atuo contra a maioria dos emaranhados das fbricas e fazendas industriais humano-animais contemporneas, tanto local quanto globalmente. No entanto, fico estarrecida com a noo de que a mirade de animais trabalhadores domsticos, indivduos e espcies, no deveria existir, a no ser como resgate, animal de estimao ou resduos de patrimnio, e pela posio correlata de que todas essas diversas formas humano-animais de viver, morrer, nutrir e matar deveriam ser banidas de nossos presentes e futuros, bem como desprezadas em nossos passados. Fico estarrecida com a falta de respeito pelo trabalho humano-animal, implcita no que parecem ser para mim algumas posies de direito vida em algumas verses do pensamento de liberao animal sobre agricultura animal. As feministas, especialmente, devem desconfiar das

10 posies do direito vida que acabam por ser cheias de extermnios e genocdios a matana de espcies, de gneros, de povos humanos e no humanos. O n inteiro do que est envolvido em uma srie de prticas deve ser trabalhado, e julgamentos (e mudanas radicais) l devem ser feitos, dentro de ns (knots) mortais, face-a-face com os seres e as formas de viver e morrer que esto em jogo. E mesmo depois disso, no h nenhum lugar inocente para estar, nenhum tornar matvel para aliviar a encrenca e, acho tambm, nenhum abolicionismo para aquietar a alma. H ainda a abertura das prticas de vida e morte do trabalho mortal, conjunto e assimtrico.16 Humano uma palavra muito interessante e sou atrada por suas ligaes latinas com a terra, com o solo, com o hmus com a matria quente em que muitas coisas so gestadas e convivem, o monte de adubo que se torna hmus para fazer florescer outras plantas, animais, micrbios e pessoas. No sou atrada pelos tons gregos do homo, que sugere algo como o um e o mesmo, o autoidntico resumindo, algo como O prprio Homem e o Homem que se faz a si mesmo. Provavelmente tenho prazer demais em brincar com etimologias, mas adorei descobrir que os tons latinos de homo/human tm ressonncia com uma velha palavra proto-indo-europeia, guma (plural, guman), que significa algum que trabalha a terra para a comida; um lavrador, neste sentido. A palavra sugere noivo ou marido (lavrando a terra fmea), mas as palavras so maleveis: elas so adubo para associaes inesperadas. Guman pode significar terrqueo, terreno, no solo, na lama, pleno de matria viva e apaixonada, que se materializa nas relaes com outros terrqueos, hmus para um mundo mortal mais vivvel. Ento, se eu pudesse, eu escreveria no humano, mas sim gumano! Ser g/humano deve ser uma prtica material de multiespcies, assim como a natureza humana uma relao de multiespcies, um tornando-se-com, no uma coisa em si mesma. No marido (husband), mas hmus. Mas voc perguntou sobre o abate humanitrio de animais feito por gente: possvel haver tal coisa? Sim, eu realmente acho que pode haver; mas as questes no so apenas compaixo, bondade, minimizao da dor e outros temas importantes. A questo fundamental se toda a prtica de viver e morrer junto desta forma, para todos os participantes (humanos e no, animados e no, orgnicos e no, tcnicos e no) gumana hmus para os mundos-em-relao, emaranhados em respeito, em manter a

11 considerao reciprocamente. Em suma, mundos para cujos presentes e futuros ns, aquele ns de convite e pergunta, devemos assumir responsabilidade. A questo, ento, florescimento compartilhado (ou no) e sofrimento compartilhado. possvel negar esse compartilhamento, mas no realmente possvel escapar dele. No posso deixar sua primeira questo sem voltar s leitoas reais e seus filhotes, no no jogo de palavra proto-indo-europeu para adubar os dilemas do humanismo, mas nas fazendas e instalaes reais de produo. Minha guia uma corajosa estudiosa francesa, feminista, sociloga e etngrafa humano-animal, chamada Jocelyne Porcher, que estuda tanto os animais produzidos em fbricas, inclusive porcos e suas pessoas, como tambm porcos criados em fazenda e suas pessoas. Ela est atenta aos aparelhos do se-tornar-com, em toda sua especificidade material e semitica, sua efetividade ontolgica. O insight fundamental de Porcher que o sofrimento contagiante, infectante, relacional; sofrer uma prtica de se-tornar-com. O sofrimento afetivo e efetivo; ele toca atravs da diferena; ele faz uma diferena. O sofrimento constitui todos os seres no n relacional. O n relacional na fazenda animal no uma questo de sentimentalismo, mas de ontologia. Com base em seus prprios estudos empricos e de outros estudiosos de contrastar mundos de produo de porcos, Porcher escreve: As consideraes cientificas do bem-estar animal no levam em considerao a transmisso possvel de sofrimento entre seres humanos e animais nesses sistemas. Os trabalhadores so considerados apenas em termos administrativos, enquanto o prprio sentido do trabalho com os animais que precisa ser questionado. O sofrimento compartilhado tambm negligenciado na crtica aos sistemas industriais, que focam primariamente seu impacto ambiental, as consequncias para a sade pblica e, mais recentemente, as implicaes para a sade ocupacional.17 Por exemplo, Porcher conversa com mulheres que trabalham na produo de porcos na Bretanha; ela escuta o que elas dizem e fazem, e como elas dizem e fazem. Essa sociloga entra nas questes de conforto e sofrimento de animais e pessoas em ambientes de trabalho industriais e no industriais. Porcher tambm conversa com trabalhadoras/es em instalaes de fbricas no Quebec, Canad. Ela fica com as pessoas e animais nas suas atividades e comunicaes bem-sucedidas ou fracassadas. Porcher considera a formao e administrao de vnculos intersubjetivos e interobjetivos entre

12 animais e pessoas no trabalho como questes empiricamente importantes para uma sociloga. No agir assim fazer uma sociologia de padro inferior. Porcos e gente so mutuamente sujeitos e objetos, da mesma forma que as pessoas so sujeitos e objetos mutuamente em todo tipo de viver e morrer juntos. A questo que tipos de co-fazer sujeito/objeto so compatveis com florescimentos no inocentes, historicamente situados, e no quem/que sujeito e quem/que objeto. Porcher pergunta como diferentes tipos de aproximao e distncia so administrados. Ela insiste: A relao com animais de fazenda nunca foi fcil e, como os seres humanos, os animais sofrem com a violncia das relaes sociais e humanas.18 As pessoas que trabalham sabem disso e podem, em consequncia, adoecer fsica, moral e emocionalmente, assim como os animais. Porcher examina a transmisso de patologias entre trabalhadores/as e animais, e presta ateno nas consequncias de se esconder ou negar o sofrimento em eufemismos como bem-estar animal. Porcher detalha precisamente como a produo animal industrial no tem nada a ver com a criao animal que envolve uma relao positiva e animada com animais. Esta se baseia no desejo de viver com animais, de compartilhar sua existncia em sua beleza e sua tragdia.19 A criao de animais uma relao de multiespcies gumanas, no uma questo de Homem e Animal. Esse tipo de criao, como hmus, uma prtica real, mostrada nos estudos de Porcher, em fazendas ainda existentes na Frana. Para Porcher, o imperativo estudar as relaes, no as interaes, como no paradigma behaviorista mecnico convencional.20 O sofrimento uma relao: substituir o sofrimento pela dor em nossa ateno evitar esse fato. Violncia excedente institucionalizada uma rede de relaes de multiespcies coercitiva, difundida, contagiante, que no pode ser mudada atravs da separao dos seres vivos em categorias separadas para terem a ateno de profissionais separados e ativistas separados que medem variveis separadas. Aprendi com o que Porcher identifica como um dficit de reconhecimento mltiplo no complexo animal industrial que, ela enfatiza, comea com o fracasso em reconhecer os animais. Literalmente, reconhec-los como algum e no como coisa. Fracassos em reconhecer se acumulam, produzindo um dficit de reconhecimento mltiplo. um dficit no tornando-se-com; ele no necessrio e pode ser mudado,

13 no importa quo enorme e complexo seja o problema. O que a teoria crtica precisamente nos ensina que a desordem estabelecida no necessria. Isto a maior de suas ddivas, e no exclusivamente uma ddiva humanista.

II. Subjetividade para os zooetngrafos

Sandra Azerdo: Em uma entrevista com Judith Butler, Baukje Prins e Irene Meijer contrastam o uso que voc e Bruno Latour fazem da noo de ator com o uso que Butler faz da noo de sujeito, apontando para o carter humanista da segunda e o carter hbrido da primeira. Como elas escrevem, [a] o contrrio da subjetividade, o agenciamento no uma prerrogativa dos humanos. 21 Butler responde dizendo que suas razes para trabalhar com a noo de sujeito esto justamente ligadas ao legado humanista dessa noo, apontando para a necessidade de se levar em conta a duplicidade da noo de sujeito a pressuposio do agenciamento e a submisso a regras que o precedem22 , mas ela no trata diretamente da questo de a subjetividade ser uma prerrogativa humana, que poderia implicar uma hierarquia em relao s espcies no humanas. Embora voc no trate diretamente da questo da subjetividade em seu trabalho, voc critica a separao entre sujeito e objeto, comum em prticas das cincias, e sugere que essa separao esteja presente at na maneira como a domesticao vista por pensadores/as que esto preocupados/as com a subordinao de animais para os propsitos de gente. Voc escreve que essas pessoas se consideram os nicos atores e reduzem os outros organismos ao status de serem apenas matria prima ou ferramentas. (...) S se pode ser algum quando algum mais apenas uma coisa. E isso aparece at gramaticalmente... nas polticas de edio dos principais livros de referncia e jornais. No se podem usar pronomes pessoais tais como quem para designar animais, que devem ser designados por qual, que, ou it.23 No Brasil, h at palavras especficas para se referir a partes do corpo de animais beio, ao invs de lbios, e focinho, ao invs de nariz. E essas palavras so muitas vezes usadas para se referir a pessoas negras, obviamente no sentido de degradao. Em seu livro O Animal Escrito, Maria Esther argumenta que, no registro simblico, o animal s possvel ser capturado enquanto um it. Sua subjetividade, ou o que quer que chamemos de subjetividade animal, no se

14 inscreve na linguagem humana. Ela cita um poema de Jacques Roubaud para mostrar que o saber que o porco detm sobre si mesmo se manifesta atravs de um eu desajeitado dentro de uma lngua que no lhe pertence. 24 O poema de Roubaud diz o seguinte: Pour parler, dit le cochon, / ce que jaime cest le mots porqs: / glaviot grumeau gueule grommelle / chafouin pacha pluchure / machon moche miches chameaus / empot chouxgras polisson.25 Como, ento, voc trataria da questo da subjetividade, levando em conta sua noo de co-constituio de seres humanos e animais que no so seres humanos? Podemos nos referir subjetividade de animais que no sejam os seres humanos? Voc considera que o pronome pessoal eu seja essencial para se referir ao sujeito? Ou podemos usar o it tambm? Em outras palavras, o que seria uma subjetividade animal? Donna Haraway: Ator e sujeito so mistos e duplos, se no forem triplos (ou at mais)! Redobrados um no outro duas ou mais vezes: em latim, plicare curvar ou dobrar. Implicado: dobrado um no outro outra vez e outra vez, como as camadas de um brioche ou croissant bem amanteigados! Camadas envolvidas ou conectadas: duplicadas. Tanto o ator quanto o sujeito - assim como o atuado sobre e o objeto so as sedimentaes de intra-aes (o termo muito til de Karen Barad)26

ou de co-

misturar, co-fazer e co-constituir, sem que nenhuma unidade pr-formada funcione como ator ou sujeito (ou objeto), quer em gneros humanistas, quer em outros gneros. Tornando-se-com o nome do jogo na terra; tornando-se-com mundializao terrena, na fico cientfica e em toda outra prtica material-semitica sria. Ns todos somos sedimentaes imvel-mveis de intra-aes. Nada disso especialmente restrito aos seres humanos ou, de qualquer forma, aos seres animados. Muitas lnguas ocidentais usam termos em pares para significar ao e paixo, mover e ficar imvel, dar e receber. Transformar esses pares em caixas fechadas seriamente perverso, no importa quo comum isso seja. Sedimentaes: essas so as camadas depositadas e dobradas mais uma vez e mais uma vez para fazer a carne da terra. Certamente, verdade que essas entidades chamadas animais, assim como mulheres, no se registram no Simblico. Mulheres e animais no so em si mesmos nem para si mesmos, eles so para os outros, so sobre funo, e no sobre ser.

15 Estruturalmente, Simone de Beauvoir entendeu tudo isso e mais em O Segundo Sexo (1949), embora eu no me lembre que ela tenha dispensado um pensamento para animais. Todas ns sabemos esse enredo e essa sintaxe. Mas esse enredo e essa sintaxe no so necessrios; no so um erro da prpria lngua; eles so um erro da desordem de reconhecimento mltiplo. O feminismo inter-seccional, intra-acional de multiespcies pode vir resgatar at o Simblico! Quem precisa de ps-humanismo (muito menos psfeminismo) se podemos ter algo muito melhor: espcies companheiras? Cum panis, com po, tornando-se-com, vivendo e morrendo, matando e gerando, comendo e sendo comido... Esta no uma histria para o Jardim do den e suas modernas cerimnias de casamento, mas para mundializaes de multiespcies na terra, com todas suas mltiplas implicaes. Essa a histria do contgio do sofrimento e florescimento e das demandas prticas para o trabalho de recuperao em face de todos os genocdios, da matana de seres e espcies, que ns seres humanos herdamos e continuamos a praticar. De acordo com o que penso, nem a agncia nem a subjetividade uma prerrogativa humana; e com Butler, Barad e outra/os, enfatizo que a subjetividade no algo que podemos ter ou no. Nem o agenciamento, quer figurado em termos humanistas ou no. A interioridade no um lugar; a interioridade fabulada especulativamente atravs de intra-aes; ela um estado sf (fico cientfica, fabulao especulativa, fato cientfico, fantasia de cincia, etc.).27 Volto-me novamente para Vinciane Despret, desta vez para seu ensaio extraordinrio, The Becomings of Subjectivity in Animal Worlds.28 Ela faz algo bem simples, isto , ela prope que a capacidade para a subjetividade no algo a ser procurado na natureza de um ser por exemplo, um papagaio cinza Gabon, um chimpanz, um cachorro, uma mulher mas algo tornado possvel, talvez inventado, nos processos atravs dos quais os seres tornam uns aos outros capazes de alguma coisa que talvez nova no planeta terra. Tornar capaz: que ideia interessante para explorar intra-aes! Despret nos leva ao famoso papagaio cinza Gabon, Alex, e sua interlocutora humana, Irene Pepperberg, mostrando que Irene se deu ao trabalho de fazer perguntas que Alex achou interessantes. Pepperberg tambm tratou as performances de Alex dirigidas a ela como significativas, quer as entendesse quer no. O resultado que esse papagaio e essa mulher inventaram uma conversa extensa que deixou perplexos mais

16 do que eles gostariam linguistas profissionais humanos. Um papagaio especfico e uma mulher conversaram extensivamente numa lngua que no era nativa de nenhum dos dois. Essa realizao comeou com os erros deliberados de Pepperberg, que leu e ouviu mal, insistindo no sentido onde talvez, inicialmente, no houvesse nenhum, ou pelo menos nenhum em comum. Essas espcies companheiras tornaram-se, entre si, capazes de saberes localizados de capacidades situadas, sejam ou no de suas naturezas antes de elas aprenderem a se reconhecer.29 Observe que uma das grandes implicaes de pensar dessa forma que tanto a ave quanto a mulher experimentam e formam histrias situadas no sentido potente. Uma no est na cultura histrica e a outra no tempo ecoevolutivo da natureza. Ambas experimentam e envelopam (lembra o plier) um tornando-se-com que muda os dois e tambm intra-age com todo o seu mundo naturalcultural que, neste caso, inclui vrios cientistas cognitivos e muitos outros humanos e no humanos. A questo no saber se a conversa entre Alex e Irene se enquadrava em critrios lingusticos particulares, colocados para distinguir a linguagem humana da comunicao animal. Ao invs disso, a questo de ambos os participantes terem ou fazerem histria se volta para sua coconstituiao de eventos reais no mundo para sua mundializao em meus termos de inflexo sf de tal modo que algo aconteceu que refez todos os participantes de modos significativos para eles, e esse algo no foi determinado pelas naturezas de ningum. Um evento material-semitico do tornando-se-com realmente aconteceu numa remundializao emaranhada, significativa para e constitutiva dos participantes. Como na anlise de Butler da questo do agenciamento e subjetividade, com Alex e Irene h tambm uma clara duplicidade da noo do sujeito a pressuposio de agenciamento e a submisso a regras que o precedem. No h aqui nenhum truque divino da criao a partir do nada, nenhuma autonomia do homem, nenhuma interioridade especial; h apenas a mundializao ordinria de espcies companheiras! As categorias humanistas, tais como histria e subjetividade, tm dificuldade com tudo isso a no ser que queiramos reouvir essas categorias sem os tons do excepcionalismo humano. Nada disso significa que papagaios e pessoas humanas sejam exatamente iguais e, assim, realizar algum estranho sonho de uma linguagem comum, como se algum pudesse chegar ao planejamento experimental certo. Diferena e especificidades

17 carregadas de histria esto em toda parte nessa histria de emaranhado mortal, em que uma prtica efetiva gaguejante, maravilhosa, defeituosa, parcial de comunicao material-semitica foi alinhavada de modo a ser importante para os/as participantes numa prtica situada e para ns, em nossas investigaes situadas na teoria feminista de multiespcies. Despret trouxe seus insights de Alex e Irene Pepperberg para sua prpria pesquisa sobre situaes em que pessoas e animais trabalham juntos. Em particular, em colaborao com Jocelyne Porcher, Despret observou as prticas dirias de criadores de porcos e vacas na Frana, em fazendas onde animais e gente vivem em densas relaes entre si. Os criadores no estavam interessados na diferena entre pessoas e animais, mas muito interessados em questes de empreendimento. A conversa, e no o controle behaviorista ou mecnico, um tropo muito mais potente para se entrar nesse mundo. S ao permitir que os animais controlem muitos aspectos de suas vidas, s se preocupando e aprendendo a reconhecer no que os animais estavam interessados podia-se chegar a fazer acontecerem os empreendimentos que os criadores valorizavam. Os aparelhos materialsemiticos reais de trabalho, de intra-ao, so o foco da ateno. Despret enfatiza: Assim, as questes que os criadores pensam que devem ser tratadas no so as diferenas entre seres humanos e no humanos, mas, antes, as diferenas entre situaes, que oferecem a humanos e animais oportunidades diferentes de realizar subjetividades.30 Ela conclui: Eles [os criadores] traduzem no o que as vacas e os porcos so... Eles indicam de que os animais se tornam capazes em prticas atravs das quais os criadores orgulhosamente se definem: fazer existir animais que nutrem os humanos de muitas maneiras. Isso inclui a nutrio de diversos modos de existncia e tornar-se de subjetividades, a prpria coisa que guiou a escolha de nossa investigao.31 No h nada inocente aqui, nada isento de questes difceis de muitos tipos. A nica coisa que no pode ser tolerada aqui a arrogncia do excepcionalismo humano que reserva as realizaes e subservincias da subjetividade Humanidade (Mankind) e Seu Simblico.

III. Emaranhado ou Identificao? Sandra Azerdo: Maria Esther cita Guimares Rosa, dizendo que amar os animais aprendizado de humanidade.32 Ela parece valorizar o amor e interesse por animais como

18 uma base importante de suas pesquisas. Voc tambm torna explcitos seu amor e interesse por animais como uma base importante de seu trabalho. Na verdade, voc j se descreveu como algum que pensa sobre e responde a poucas coisas que no sejam cachorros 33 e em sua entrevista com Joseph Schneider voc declara: Estou interessada em animais. Estou interessada em seres humanos como animais. Estou interessada em animais que no sejam seres humanos. Estou interessada nas relaes entre eles. Estou interessada em animais independentemente de ns. 34 Voc acha que amor e interesse por animais sejam essenciais para se dedicar ao estudo das espcies companheiras? Como voc relaciona esse interesse e amor com a sua condio de ciborgue cyborgness como se expressou Thyrza Goodeve em How Like a Leaf? E que voc respondeu precisamente, relacionando-a a seu sentimento de complicao, interesse e prazer bem como a intensidade de como me imaginei como semelhante a uma folha.35 E, em outro momento, voc relacionou essa condio sua fascinao de ser um macaco, um macaco entre macacos.36 E, finalmente, voc a relaciona ao declarar: amo o fato que os genomas humanos s podem ser encontrados em cerca de 10% de todas as clulas que ocupam o espao mundano a que chamo meu corpo.37 Acho que, alm de interesse e amor, aparece aqui um forte sentimento de identificao, que certamente est faltando no veterinrio da universidade rural de Minas, mas que falta tambm no hbito de se usar nomes de animais especialmente cachorros como uma forma de injria.38

Donna Haraway: Tentei abordar muito do que voc pergunta aqui em minhas respostas s duas primeiras perguntas, ento aqui serei breve. Penso mais em termos de estarmos implicados um no outro, emaranhados, do que em termos de identificao. As criaturas da terra espcies e outros tipos, bem como os seres que no se classificam inteiramente em tipos no so as mesmas. Nem se relacionam atravs de uma forma de rvore desprovida de descendncia. Elas esto enredadas em intra-aes ecolgicoevolucionrio-desenvolvimentistas de muitas formas, temporalidades e tipos (inclusive rvores). Concordo com voc que, em termos ordinrios, a identificao, isto , apreciar os enormes domnios de semelhana entre os seres terrenos, uma fonte de grande prazer para mim. Essas identificaes me tocam, assim como me tocam as

19 diferenciaes. Ainda me faz vibrar o fato de que a folha da ameixeira e minha carne compartilham uma grande parte de nossos genomas e tambm seguem nossos prprios caminhos inimitveis, geneticamente e em outros aspectos. Longe de me preocupar com o determinismo biolgico, sou humilhada, inspirada e motivada pelas entrelaadas complexidades e inventividades de nosso planeta, s vezes at pelos feitos de minha prpria espcie (ou at de minhas/meus compatriotas dos Estados Unidos)! Sou tambm humilhada e motivada pelas vulnerabilidades terrenas; pelos custos terrveis da estupidez (e pior do que isso) humana. Estarmos dobrados juntos em multiespcies, tornando-secom identificados e diferenciados entre ns nesse sentido, em amor e dio nesse sentido parece-me requerer uma resposta terrivelmente importante, afetiva, tica, poltica e cientfica. Chamo isso de feminismo. IV. Playing Cats Cradle39: teoria feminista multiespcies

Sandra Azerdo: Isso me leva prxima questo, que uma questo epistemolgica e se relaciona ao seu feminismo teoria feminista, conhecimento feminista e pesquisa feminista. Na conversa com voc, Schneider menciona que voc afirmou no novo manifesto que escrever sobre/com cachorros um ramo da teoria feminista, ou viceversa.40 Voc tambm diz que a noo de ciborgue era fmea, e uma mulher, de modo complexo. Foi um ato de resistncia, um movimento de oposio de um tipo bastante direto. E voc escreve, em When Species Meet, que OncoMouse meu/minha irmo/irm, e mais propriamente, macho ou fmea, ele/a minha irm. Ento, o feminismo tem sido importante nas direes que seu trabalho est seguindo. Mas o que me interessa aqui so as relaes que voc tem tido o cuidado de manter entre teoria e prtica, no deixando a poltica fora do feminismo acadmico. Voc trata disso em seu artigo sobre saberes localizados, mas seria bom saber como isso acontece concretamente em termos do conhecimento feminista depois do encontro entre as espcies companheiras. Notei, por exemplo, que, enquanto a capa de Primate Visions reproduz duas mos uma humana e outra de um primata abertas e vulnerveis, a capa de When Species Meet mostra o perfil inteiro de um co colocando sua mo sobre

20 uma mo humana (sem perfil). Voc me disse uma vez que tinha pensado em colocar o co de Jim na capa isso seria mais at que um perfil. E sem o humano.

Donna Haraway: Eu trapaceei, claro, no modo de responder s suas primeiras perguntas. Eu j tinha lido esta pergunta! Tudo que tentei dizer neste ensaio-entrevista uma resposta sua indagao sobre onde os saberes localizados esto agora, depois de as relaes de parentesco entre ciborgues e espcies companheiras se tornarem inevitveis para as feministas, ou pelo menos para mim e o ns formado por essas questes. Aberta e vulnervel, capaz de espanto e inveno, faminta em aprender como herdar o fardo terrvel dos genocdios, extermnios e extines sem repeti-los numa necessidade de me tornar inocente e pura estas so minhas preocupaes agora, assim como eram na dcada de oitenta. Mas agora tenho uma bela cachorra para me acompanhar em veredas que ela poder achar mais promissoras... V. Saindo do Jardim e entrando no Hmus: Queering41 o Monte de Adubo Sandra Azerdo: Em Primate Visions,42 voc persistentemente se refere s relaes complexas entre os termos animal, natureza, corpo, primitivo (que deriva de primata), e fmea. Voc se refere tambm histria do Jardim do den, em que Ado nomeia os animais, histria que Derrida tambm usa em seu livro, relacionando-a com a nossa nudez, em contraste com os outros animais. Derrida se refere ao segundo momento da histria, de Eva sendo criada a partir da costela de Ado para ser sua companheira, j que ele no tinha se identificado com nenhum dos animais depois de nome-los, e estava se sentindo sozinho. O sermo do padre numa cerimnia de casamento a que fui recentemente me fez lembrar essa histria, e fiquei impressionada e muito incomodada que ainda estejam contando essa mesma histria em cerimnias de casamento no sculo XXI! E, combinando com esse sermo, supostamente comemorativo da unio de uma mulher e um homem, a aliana da noiva foi trazida por uma menina que carregava uma boneca, e a aliana do noivo foi trazida por um menino que carregava um caminho de brinquedo. Isso me fez pensar na fora dessas histrias que mantm a centralidade do Homem no Jardim do den! Como voc v essa dominao conjunta de animais e

21 mulheres, que comea no Jardim do den e continua em cerimnias de casamento em Belo Horizonte, em 2010?

Donna Haraway: Minha guia Ursula LeGuin, especialmente seu ensaio intitulado Carrier Bag Theory of Fiction.43 O ensaio de Le Guin formou meu pensamento sobre narrativa na teoria evolutiva e da figura da mulher coletora em Primate Visions. Contar histrias to importante, e remodelar as histrias, assim como descobrir quantas e quo ricas elas so, vital para o trabalho e o brincar. O Jardim do den uma histria to pequena e paroquial; ns temos tantas/os contadoras/es de histrias, de tantos tempos e lugares, em tantas situaes de urgncia e encrenca, bem como de alegria, em tanta diversidade de espcies e seres. As conversas historiadas esto esperando para acontecer, no por apropriaes tursticas, mas ao tornar um e outro capazes. A tristeza da cerimnia de casamento que voc descreve tem um antdoto: contar histrias multiespcies. Anna Tsing e eu demos um seminrio em 2009 na ps-graduao, com o ttulo Contar Histrias Multiespcies, e foi muito revigorante. Desde ento, escrevi um pequeno trabalho baseado em LeGuin e Octavia Butler, duas das minhas favoritas escritoras de fico cientfica, com o ttulo Semeando Mundos: um Saco de Sementes para Formao da Terra com os Outros da Terra.44 Para o monte de adubo!

VI. Ficando com a encrenca: matar sem tornar matvel?

Sandra Azerdo: Aprendi com voc e Judith Butler que a encrenca inevitvel e que precisamos ficar com ela, descobrindo maneiras de melhor estar com ela. Vamos finalizar nossa conversa atravs desses fios, com essa necessidade de se ficar com a encrenca. Na sua conversa com Schneider, voc diz que assim como a mariposa atrada para a chama, [voc] atrada para esses tipos de esforos de produo de saber em que a confuso inevitvel. Acho que sua abertura para lidar com a encrenca e com a confuso serve de inspirao para ns, feministas no Brasil, onde o aborto ainda crime e onde ainda estamos lutando por direitos reprodutivos, especialmente o direito ao aborto. Voltando s leitoas reprodutoras no curral do interior de Minas Gerais, acho que elas poderiam ser usadas como figuras para que contemos histrias de como ns, fmeas,

22 temos sido desrespeitadas em nossos direitos reprodutivos. Mas, como voc sugere, ns, feministas, temos que usar o discurso sobre os direitos de modo mais crtico, especialmente em relao s polticas de aborto, nas quais temos que enfrentar a encrenca de matar daquela forma, como voc coloca em sua tima resposta a Sharon em When Species Meet (2008: 87). Cristian Mungiu, em seu filme 4 meses, 3 semanas e 2 dias (Romnia, 2007), tambm lida corajosamente com essa questo, quando a cmera focaliza a imagem do feto no cho durante alguns minutos (ou segundos?). Como ele disse em entrevista, a coisa mais desonesta que poderia fazer com a platia seria no mostrar o mesmo que a personagem estava vendo naquele momento 45. Meu artigo para uma coletnea sobre polticas de aborto foi rejeitado porque usei esse filme para sustentar meu argumento de que precisamos lidar com a questo da morte e de matar, em relao a essas polticas. Ainda bem que o artigo foi aceito para outra publicao, que considero muito melhor um nmero especial sobre gnero da revista Sade em debate. Assim, ficar com a encrenca realmente pode mesmo abrir outros mundos para ns, como voc argumenta. O que acha?

Donna Haraway: Sandra, quero terminar com suas palavras e sua coragem. Os direitos e responsabilidades em relao ao aborto esto novamente sendo atacados nos Estados Unidos tambm. A terrvel responsabilidade de matar com respeito o que est em jogo; a ameaa um direito fetichizado vida, que promete mais opresso e mais matana atravs da classificao de todas as coisas vivas mais uma vez em categorias que tornam certos atos de matar insignificantes e outros, em crime. Nenhum ato de matar insignificante. Nem um porco, nem um feto, nem uma mulher, nem um homem. Ficar com a encrenca disso aterrador e necessrio. A prpria vida no vai nos tirar dessa encrenca, nem ela deve fazer isso. A encrenca deve ser situada em mundializaes mortais, finitas, e isso implacavelmente difcil. Essa mundializao deve estar aberta ao nosso no saber, se queremos ser alguma coisa que no a de sermos brutais mais uma vez. Sandra Azerdo: Muitssimo obrigada por essa conversa atravs dos fios entre a Califrnia, Minas Gerais e at Paris, no final!

23 NOTAS1

O ttulo em ingls Multispecies Companions in Naturecultures. Para Donna Haraway, ambos os termos multispecies e companions devem ser mantidos como substantivos. 2 Optou-se, na traduo, pela expresso espcies companheiras em vez de espcies de companhia pela ideia de reciprocidade (amizade) que Haraway buscou realar no relacionamento entre as espcies. 3 MACIEL, Maria Esther. O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contempornea. So Paulo: Lumme Editor, 2008. 4 DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (A Seguir). Trad. Fbio Landa. So Paulo: EdUNESP, 2002. 5 Nas questes enviadas a Donna Haraway, Sandra escreveu (entre colchetes): O COMPUTADOR MARCOU UM ERRO AQUI... Em resposta, Donna observa: Era um erro advertindo que voc usou um pronome pessoal para uma leitoa viva? Em ingls voc escreveu who, e no which; voc deu a essa porca em sofrimento o status de um ser vivo, consciente e no de um objeto, um it. Muito bem! 6 HARAWAY, Donna. When species Meet. Minneapolis: Minnesota University Press, 2008. 7 HARAWAY, Op. cit., p. 319-320 n52. Informao em www.sustainabletable.org/issues/animalwelfare/. 8 WILLIAMS, Jeffrey. Science Stories: An Interview with Donna J. Haraway. In: The Minnesota Review, n.s. 73-74, Fall 2009-Spring 2010, p. 158. 9 HARAWAY, Op. cit., p.298. 10 ALEMO, Mrcio. E se errar a martelada?. In: Carta Capital, 11/10/2010, p.83. 11 RAMOS, Margarita. Assassinatos de Mulheres: Um estudo sobre a alegao da legtima defesa da honra nos julgamentos em Minas Gerais do ano 2000 a 2008. Mestrado em Psicologia, UFMG, Belo Horizonte, Maio 2010. 12 Novo Aurlio, Sculo XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 e The American Heritage Dictionary, Second College Edition, 1985. 13 HARAWAY, Op. cit., p.17. 14 Para comear a se informar sobre essa questo, ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Gestation_crate e FINLAY, Mark R. Hogs, Antibiotics, and the Industrial Environmental of Postwar Agriculture. SCHREPFER, Susan and SCRANTON, Philip (eds.). Industrializing Organisms. New York and London: Routledge, 2004, pp. 237-60. Em junho 2011, sair um livro importante pela Reaktion Books : Pig,de Brett Mizelle, com um captulo crucial sobre porcos como carne. importante lembrar que as biotecnologias hiper-producionistas e as transformaes de animais em animais contidos em instalaes de alimentao, inclusive as gaiolas de gestao, uma histria de ps-Segunda Guerra Mundial ligada ao rpido desenvolvimento tecnocientfico subsidiado pelo Estado do agronegcio de milho e soja, e seus preos de mercadoria globalmente determinados, que levou os animais das fazendas para fora das terras nos Estados Unidos e em outros lugares. O que parece eterno , na verdade, recente; esse fato importante para reabrir nossas imaginaes para os processos e necessidades de mudana agora, depois e ainda no meio desse desastre. claro que porcos foram criaturas do imprio na Amrica do Norte (Amrica Latina e muitas Ilhas do Pacfico tambm) desde o comeo da colonizao europeia. A inveno no to humilde do arame farpado um elemento crucial na transformao de animais domsticos trabalhadores em capital nas regies montanhosas das colnias e naes conquistadas. Ver o livro intenso de NETZ, Reviel. Barbed Wire: an Ecology of Modernity . Wesleyan University Press, 2009. Para a histria dos porcos e outros animais domsticos dos colonos europeus na costa leste do que se tornou os Estados Unidos, ver ANDERSON, Virginia. Creatures of Empire. Oxford: Oxford University Press, 2006. Os porcos e seu povo podem ser extremamente destrutivos; os porcos so tambm co-fazedores de ricas maneiras de viver e morrer nas relaes das espcies companheiras "com pessoas que merecem um futuro. Os porcos e o povo haitiano tinham uma relao tremendamente importante que teve um fim violento com a exterminao forada de cerca de 1,3 milhes de porcos creoles em 1982, apoiada pelas autoridades de sade pblica dos Estados Unidos durante um alerta de gripe suna. Ver http://video.google.com/videoplay?docid=2407538368251439007# e consiga o livro Pig, de Brett Mizelle, assim que ele sair! Os porcos e seus seres humanos so atores principais na histria, inclusive a histria urbana. Nosso companheirismo de trabalho e as obrigaes complexas que ns humanos contemporneos herdamos dessas histrias so profundos e amplos. 15 As relaes de trabalho urbano entre pessoas e animais so muito importantes; o binrio urbano-rural outra das polaridades modernizantes que nos fazem estpidos sobre as formas reais da mundializao histrica e contempornea. O estudo de Alice Hovorka sobre as relaes vitais entre humanos e galinhas na

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Gaborone contempornea em Botswana exemplar; a importncia de mulheres e crianas para a segurana alimentar uma grande parte da histria. HOVORKA, Alice. Transspecies Urban Theory: Chickens in an African City. In: Cultural Geographies 15 (2008): 95-117. Ver tambm: HOVORKA, Alice; DE ZEEUW, Henk, and NJENGA, Mary (eds.). Women Feeding Cities: Mainstreaming Gender in Urban Agriculture and Food Security. Practical Action Books, 2009. Jennifer Wolch, uma gegrafa cultural feminista, cunhou o termo zoopolis e escreveu sobre anima urbis h mais de uma dzia de anos atrs. Ver WOLCH, Jennifer. Zoopolis. WOLCH , Jennifer and EMEL, Jody. Animal Geographies. London and New York: Verso, 1998. Pense tambm no assassinato/extermnio forado pelo estado egpcio de mais de 300.000 porcos no Cairo durante o alerta da gripe suna em 2009, numa matana em massa que teve um impacto violento no povo do lixo Zabbalen do Cairo. Estes porcos competentes eram parceiros cruciais em tornar o lixo urbano num meio de vida para muitos milhares de migrantes humanos e no humanos. A histria muito complicada para contar aqui, mas para comear, siga os links http://en.wikipedia.org/wiki/Zabbaleen e veja o filme premiado de 2009 de Mai Iskander, Garbage Dreams: Raised in the Trash Trade. 16 Este pargrafo uma adaptao do que escrevi para Kiwi Chicken Advocate Talks with Californian Dog Companion: Annie Potts in Conversation with Donna Haraway, Feminism and Psychology, special issue on Feminism, Gender and Nonhuman Animals, August 2010. 17 PORCHER, Jocelyne,.The Relationship between Workers and Animals in the Pork Industry: A Shared Suffering. In: Journal of Agricultural and Environmental Ethics 24, no. 1 (2010): 3-17; publicado online February 5, 2010, http://philpapers.org/rec/PORTRB. Ver tambm os vdeos sobre tratamento industrial de porcos de Jocelyne Porcher no YouTube. http://anthropopotamie.typepad.fr/anthropopotame/2009/05/une-vie-de-cochon.html e http://video.blog.lemonde.fr/2009/04/29/les-porcs-des-barbares/. 18 PORCHER, Op. cit., p. 5. 19 Idem, p. 16. 20 Xavier Boivin um cientista animal francs, profundamente crtico das convenes de planejamento e anlise experimental no seu campo de estudos. Por exemplo, ele observa que os estudos de ovelhas em relao a vrias intervenes, tais como tosquiar, amordaar, ou laparoscopia, no leva em conta as relaes. As ovelhas so consideradas animais em si mesmos, sem que sejam consideradas histrias, experincias sociais ou tcnicas, e assim por diante. Negligencia-se, no planejamento dos estudos, se as ovelhas conhecem o experimentador ou se se conhecem isso apesar do fato de que as ovelhas so extraordinariamente aptas a reconhecer e lembrar indivduos, tanto ovelhas quanto humanos. Assim, os efeitos so atribudos a operaes e reaes, e as relaes e respostas com os parceiros animados e no animados no tornando-se-com so ignoradas nos prprios estudos que necessitavam explor-las. De modo chocante, nenhum dos estudos que Boivin investigou explorou as relaes das ovelhas com o pastor. Ver BOIVIN, Xavier. The Human-animal relationship, Stockmanship and Extensive Sheep Production. In GODDARD, P. (ed.). Improving Sheep Welfare on Extensively Managed Flocks, Proceedings of a workshop held in Aberdeen, Scotland, 2003, pp. 11-19. O trabalho de Boivin estudado num ensaio extraordinariamente lcido e fecundo da filsofa e psicloga belga Vinciane Despret, Ethology between Empathy, Standpoint and Perspectivism: the Case of the Arabian Babblers, disponvel em: http://vincianedespret.blogspot.com/, postado Abril 25, 2010. Despret uma colega prxima de Jocelyne Porcher. Ver DESPRET, Vinciane e PORCHER, Jocelyne. Etre Bte. Arles: Act Sud, 2007. Atualmente estou tentando estudar mundos de ovelhas e humanos no Navajo Country, nos Estados Unidos, em termos de recuperao depois de repetidos extermnios e genocdios nos embates entre indgenas e o imprio. Posso descobrir bastante informao sobre o povo, a terra, o gado, etc., mas muito pouca sobre as relaes entre animais e seres humanos. A necessidade de zoo-etno-grafia sria aguda. Este trabalho vai requerer a inveno de um novo aparelho de criar saber, novas prticas de se pensar-com, fora da viciada garra do excepcionalismo humano. 21 PRINS, Baukje e MEIJER, Irene. Como os corpos se tornam matria: entrevista com Judith Butler. trad. Susana Funck. Revista Estudos Feministas, Vol. 10, n. 1/2002, p. 166. 22 Idem, p. 167. 23 HARAWAY, Op. Cit., p.206. 24 Cf. MACIEL, Op. cit., p. 74-77. 25 Idem, p. 87, nota 60.

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BARAD, Karen. Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entanglement of Matter and Meaning .Durham: Duke University Press, 2007. Muito do que digo nesta entrevista est em intra-ao com o trabalho de Karen. O prprio neologismo intra-ao, e seu corolrio realismo agente, sua formulao inestimvel. Ns estamos jogando o jogo do barbante juntas, assim como jogo com Vinciane Despret, e tambm com voc, Sandra! (Ver nota n. 24). 27 Em ingls, science fiction, speculative fabulation, speculative feminism, scientific fact, science fantasy, etc.). 28 DESPRET, Vinciane. The Becomings of Subjectivity in Animal Worlds. In Subjectivity, Issue 23 (July 2008): 123-39. 29 Em um nvel muito mais humilde, experimentei algo parecido com isso, aprendendo a treinar com Cayenne, a cachorra do meu corao. Ver Training in the Contact Zone: Power, Play, and Invention in the Sport of Agility, in When species Meet, p. 205-248 e notas. Tornando-nos entre ns capazes do que antes no estava ali uma experincia ordinria, bastando prestar ateno s demandas das intra-aes. 30 DESPRET, Op. Cit., p. 121. 31 Idem, p. 137. 32 MACIEL, Op. cit., p. 60-61. 33 HARAWAY, Op. cit., p.6. 34 SCHNEIDER, Joseph. Donna Haraway: Live Theory. New York: Continuum, 2005, p. 117. 35 Cf. GOODEVE, Thyrza. How Like A Leaf: An Interview with Thyrza Nichols Goodeve. New York: Routledge, 2000, p. 132. 36 In WILLIAMS, Op. cit. P 152. 37 HARAWAY, Op. cit., p. 3. 38 Freud tenta explicar esse hbito, argumentando que seria incompreensvel... que o homem empregasse o nome de seu mais fiel amigo no mundo animal o co como termo injurioso, se essa criatura no provocasse seu desprezo atravs de duas caractersticas: ser um animal cujo sentido dominante o do olfato e no ter horror dos excrementos nem se envergonhar de suas funes sexuais (1997: 54). Imagino que voc classificaria esta como mais uma das histrias malucas sobre animais que impedem uma relao mais aberta com eles. Ver FREUD, Sigmund, O Mal-Estar na Civilizao. Trad. Jos Octvio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1997 (1930). 39 Jogando o jogo do barbante seria a traduo para o portugus de playing cats cradle. Trata-se de uma srie de figuras de barbante criadas com as mos e passadas entre duas pessoas num jogo. A ideia bsica de Donna ao usar esse jogo em relao teoria feminista multiespcies seria apontar para figuras de barbante feitas e refeitas em colaborao. Como ela se expressou, um emaranhado, um n, um revezamento. Aqui resolvemos manter a expresso em ingls, cuja origem talvez derive de cratch-cradle ou manger cradle, indicando a manjedoura em que ficou o bero de Jesus. Pode estar tambm relacionada ao termo crche, em francs, que significa manjedoura. Algumas figuras de barbante no jogo representam rudemente uma forma de bero invertido. um jogo conhecido em um nmero enorme de culturas em todo o mundo. Joanna Russ, em seu romance de 1975, The Female Man, chamou-o de o smbolo universal da paz. Assim como na Rssia, no Brasil chamado simplesmente de Jogo do Barbante. Informao em http://en.wikipedia.org/wiki/Cat%27s_cradle Acesso em 19/02/2011. 40 SCHNEIDER, Op. cit., p.131. 41 A traduo de queer estranho/a, esquisito; em outras palavras, fora de lugar, anormal. O movimento gay nos Estados Unidos se apropriou do termo, frequentemente usado como injria, resignificando-o e valorizando-o, propiciando o desenvolvimento, inclusive, da teoria queer, que tem em Judith Butler uma importante colaboradora. 42 HARAWAY, Donna. Primate Visions: Gender, Race, and Nature in the World of Modern Science. New York: Routledge, 1989. 43 LE GUIN, Ursula K. The Carrier Bag Theory of Fiction. Dancing at the Edge of the World: Thoughts on Words, Women, Place. New York: Harper and Row, 1989; originalmente publicado em DU PONT, Denise (ed.). Women of Vision. New York: St. Martins Press, 1988. Com direitos autorais em 1986, circulou amplamente nos mundos feministas. LeGuin aprendeu sobre a sacola de portador da teoria da evoluo com Elizabeth Fisher, Womens Creation (New York: McGraw-Hill, 1975) naquele perodo de grandes, corajosas e especulativas histrias do mundo que incandesceram a teoria feminista nas dcadas de 70 e 80. Como a fabulao especulativa, o feminismo especulativo foi, e , uma prtica sf.

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HARAWAY, Donna. Sowing Worlds: a Seed Bag for Terraforming with Earth Others. In MERRICK, Helen and GREBOWICZ, Margaret. Beyond the Cyborg. Columbia University Press, no prelo. TSING, Anna. Unruly Edges: Mushrooms as Companion Species (2006), disponvel em http://tsingmushrooms.blogspot.com/. Neste maravilhoso e breve trabalho, sem os confortos enganadores do excepcionalismo humano, Tsing consegue tanto contar uma histria do mundo do ponto de vista de associados do fungo quanto re-escrever The Origin of the Family, Private Property, and the State, de Frederick Engels, edio e introduo de LEACOCK, Eleanor Burke. New York: International Publishers1972. O trabalho de Tsing um conto de fabulao especulativa, um gnero sf crucial para a teoria feminista. Ela e eu estamos numa relao de induo recproca, aquele processo fundamental de mundializao evolutivo-ecolgico-desenvolvimentista-histrico que bsico para todo tornando-secom. Ver GILBERT, Scott F. and EPEL, David. Ecological Developmental Biology: Integrating Epigenetics, Medicine, and Evolution. Sunderlan: Sinauer, 2008. 45 Citado em AZERDO, Sandra. Os sentidos do aborto na organizao social de gnero: posicionamentos por uma sociedade mais igualitria. In Sade em debate, v. 31, n.75/76/77, jan./dez. 2007-2008, 76-86, 85.