controvérsias sócio-científicas e prática pedagógica de jovens professores

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    CONTROVRSIAS SCIO-CIENTFICAS E PRTICA PEDAGGICA DE JOVENSPROFESSORES*

    (Socio-scientific controversies and beginning teachers pedagogical practice)

    Pedro Reis [[email protected]]Ceclia Galvo

    Centro de Investigao em Educao da Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa

    Resumo

    A presente investigao pretendeu estudar o impacto das controvrsias scio-cientficasrecentes, divulgadas pelos meios de comunicao social, nas concepes e prticas de grupo detrs professores de Cincias Naturais em incio de carreira. Este estudo reveste-se de particularrelevncia num perodo marcado, simultaneamente, por fortes discusses relativas ao impactosocial e ambiental de vrias inovaes cientficas e tecnolgicas e pela implementao de novoscurrculos de cincias, que realam a importncia da discusso de controvrsias scio-cientficas

    na alfabetizao cientfica dos alunos (nomeadamente, na compreenso da natureza da cincia eda sua relao com a sociedade e a cultura) (McComas, 2000). Nesta investigao, optou-se poruma abordagem interpretativa, de tipo qualitativo. Atravs da construo de estudos de casoprocurou investigar-se o eventual impacto das controvrsias scio-cientficas nas concepes(sobre a natureza, o ensino e a aprendizagem das cincias) e na prtica pedaggica dosprofessores. Como mtodos de recolha de dados realizaram-se entrevistas semi-estruturadas eefectuaram-se observaes de aulas. As questes controversas suscitadas por algumas inovaestecnolgicas recentes nomeadamente os seus eventuais impactos ambientais, sociais eculturais tiveram impacto nas concepes dos professores acerca da natureza, do ensino e daaprendizagem da cincia. Para alm de terem reforado a dualidade de sentimentosrelativamente cincia e tecnologia, como fonte de progresso e preocupao, desencadearam

    nestes professores a ideia da necessidade de uma alfabetizao cientfica alargada que capacite apopulao para a compreenso e a tomada de decises e de aces relativamente a estastemticas. Contudo, o conceito de alfabetizao cientfica, bem como a melhor forma de oalcanar, varia entre os professores participantes neste estudo.Palavras-Chave: ensino das cincias; cincia, tecnologia e sociedade (CTS); controvrsiasscio-cientficas; concepes; prticas lectivas.

    Abstract

    The current investigation aimed to study the impact of recent socio-scientificcontroversies, made public through the media, on the concepts and practices of a group of

    Natural Science teachers at the start of their careers. This study is particularly relevant at a timethat is heavily marked by much debate regarding the social and environmental impact of severalscientific and technological innovations and by the implementation of new science curricula,that stress the importance of discussing socio-scientific controversies in the context of studentsscientific alphabetisation (namely in their understanding of the nature of science and its relationto society and culture) (McComas, 2000). This investigation followed an interpretative approachof a qualitative nature. Through the construction of case studies, it sought to analyse the possible

    * Investigao realizada no mbito do projecto Desenvolvimento Profissional de Professores em Incio deCarreira do Centro de Investigao em Educao da Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa(CIEFCUL) e financiado pela Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT) POCTI/CED/32702/99. Os autoresagradecem aos seus colegas de projecto Joo Pedro da Ponte, Florbela Trigo-Santos, Hlia Oliveira e AnaLoureno pelas suas contribuies para este artigo.

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    impact of socio-scientific controversies on the teachers concepts (about the nature, teaching andlearning of science) and pedagogic practice. For data collection semi-structured interviews wereconducted and classes observed.The controversial issues raised by certain recent technologicalinnovations namely the environmental, social and cultural impact they may have did have animpact on the teachers concepts about the nature, teaching and learning of science. Besidesreinforcing the duality of feelings as regards science and technology, as a source of bothprogress and concern, they triggered in these teachers the idea of the need for a widespreadscientific alphabetisation that empowers the population for understanding and deciding andacting upon these issues. However, the concept of scientific alphabetisation and the best way toachieve it vary among the teachers participating in this study.Keywords : science teaching; science, technology and society (STS); socio-scientificcontroversies; conceptions; teaching practices.

    1. Introduo

    Durante os ltimos anos, semelhana do que acontece em muitos outros pases, asociedade portuguesa tem sido agitada por mltiplas controvrsias relacionadas com cincia etecnologia: (1) a co-incinerao de resduos txicos em cimenteiras e a consequente libertaopara a atmosfera de substncias perigosas; (2) a eventual propagao da BSE (EncefalopatiaEspongiforme Bovina) aos seres humanos atravs do consumo de carne de vaca; (3) ospotenciais efeitos negativos da radiao emitida pelos telemveis; (4) os possveis efeitosnegativos da construo de barragens e da instalao de aterros sanitrios em determinadaszonas do pas; (5) a utilizao de antibiticos na produo animal e as eventuais consequnciasadversas destas substncias nos seres humanos que consomem esses animais. Quasediariamente, os meios de comunicao social exploram estas temticas atravs de notciassensacionalistas, frequentemente mais preocupadas com ndices de audincia do que com a

    informao do pblico.

    Estas situaes tm desencadeado reaces fortes na populao portuguesa medo,revolta, contestao e suscitado tenses sociais entre direitos individuais e objectivos sociais,prioridades polticas e valores ambientais, interesses econmicos e preocupaes relativamente sade. Alguns estudos tm revelado que a imagem pblica da cincia influenciada pelosacontecimentos controversos mais recentes (Thomas, 1997). Logo, todas estas controvrsias,para alm de terem desencadeado reaces e tenses na populao portuguesa, devem terinfluenciado as suas concepes sobre a natureza da cincia e, consequentemente, os seuspensamentos, discursos e decises sobre questes scio-cientficas.

    O estudo do eventual impacto das controvrsias scio-cientficas nas concepes eprticas dos professores de cincias particularmente importante se se tiver em conta que osprofessores atravs das ideias que veiculam, das estratgias que propem e da forma comoabordam estas controvrsias nas aulas podem ter um impacto considervel nas concepes queos seus alunos constroem acerca da cincia.

    Em Portugal, este estudo torna-se particularmente significativo durante a implementaode um novo currculo de cincias que apela discusso de temas cientficos e tecnolgicospolmicos e actuais, como forma de preparar os alunos para uma participao activa efundamentada na sociedade (Galvo, 2001). Para alm disso, a discusso de temas scio-cientficospode revelar-se positiva na construo de uma imagem mais consistente da cincia e da

    tecnologia e na estimulao da interaco social na sala de aula (Reis, 1997).

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    2. Referencial terico

    2.1 A compreenso da natureza da cincia como finalidade educacional

    Existe uma longa tradio de artigos tericos sobre os benefcios culturais, educacionaise cientficos do ensino acerca da natureza da cincia (McComas, Clough e Almazroa, 2000). Acompreenso da natureza da cincia tem sido identificada como um dos aspectos essenciais daalfabetizao cientfica, indispensvel avaliao informada, crtica e responsvel das polticase das propostas cientficas e tecnolgicas (Cachapuz, Praia e Jorge, 2002; Millar e Osborne,1998). Considera-se que, numa sociedade cientfica e tecnologicamente avanada, o exerccio dacidadania e a democracia s sero possveis atravs de uma compreenso do empreendimentocientfico e das suas interaces com a tecnologia e a sociedade que permita, a qualquer cidado,reconhecer o que est em jogo numa disputa scio-cientfica, alcanar uma perspectivafundamentada, e participar em discusses, debates e processos decisrios.

    Os debates pblicos actuais acerca de propostas cientficas com impacto social e dosefeitos negativos de algumas tecnologias sobre o ambiente e a sade pblica so rodeados deincerteza. Pretende-se que os decisores polticos e os cidados, em geral, se pronunciem edecidam acerca de assuntos para os quais a cincia no proporciona um conhecimentocompletamente fivel. Torna-se imprescindvel que os alunos compreendam o valor desteconhecimento, independentemente de ser provisrio e alvo de contestao. As leis e as teoriasda cincia so construes humanas que podero no contemplar todos os aspectos de umasituao complexa: o conhecimento cientfico poder constituir apenas um elemento de umprocesso de tomada de deciso complexo, envolvendo outros elementos (sociais, econmicos,ticos e polticos).

    Cabe aos professores estabelecer a ponte entre a cultura associada comunidade decientistas e o resto da sociedade atravs da iniciao dos alunos em determinados aspectos dacultura cientfica (Sorsby, 2000). Acredita-se, ainda, que o ensino acerca da natureza da cincia(especialmente acerca dos enquadramentos sociais, institucionais e polticos no interior dosquais a cincia opera) encoraja os alunos a apreciarem a cincia como um empreendimentohumano com histria, aventuras, personalidades, dramas, disputas, controvrsias, criatividade,normas e princpios ticos (Cachapuz, Praia, Paixo e Martins, 2000; Driver, Leach, Millar, eScott, 1996). Freire Jr. (2003) est convicto de que o desenvolvimento de uma imagem maisconsistente e multifacetada da cincia (atenta s reflexes crticas da filosofia, da histria e dasociologia sobre este empreendimento) poder contribuir para a melhoria da relao entre acincia e a sociedade, representando o melhor antdoto contra tendncias irracionalistas

    contemporneas (p. 482).Contudo, poucos indivduos possuem uma compreenso elementar acerca do

    funcionamento do empreendimento cientfico (Miller, 1988). Vrios autores acreditam que aescola contribui, explcita e implicitamente, para a construo de concepes limitadas acerca danatureza da cincia (Monk e Dillon, 2000). Diversos estudos tm revelado que muitosprofessores: a) possuem concepes deturpadas acerca do empreendimento cientfico e doscientistas (McComas, 2000); e b) no incluem questes de natureza da cincia nas suasplanificaes (Abd-El-Khalick, Bell e Lederman, 1998). Durante a sua formao inicial econtnua, os professores raramente tm oportunidade de reflectir sobre aspectos da natureza dacincia e, consequentemente, tendem a subvaloriz-los na sua prtica de ensino (Lakin eWellington, 1994; McComas, Clough e Almazroa, 2000). Tanto os professores como os

    manuais de cincias esto fortemente ligados a uma tradio transmissiva de factos ou produtos

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    finais da cincia e, de um modo geral, negligenciam a forma como este conhecimento construdo (Gallagher, 1991).

    Muitas aulas de cincias, privilegiando a ilustrao, verificao e memorizao de umcorpo de conhecimentos perfeitamente estabelecido, no controverso, apresentam a cinciacomo um processo objectivo, isento de valores, que conduz a verdades absolutas,inquestionveis, atravs da observao rigorosa de regularidades nos fenmenos e doestabelecimento de generalizaes. No entanto, a cincia real bem diferente. Os especialistasentram frequentemente em conflito pois as controvrsias scio-cientficas no podem serresolvidas simplesmente numa base tcnica, uma vez que envolvem hierarquizaes de valores,convenincias pessoais, presses de grupos sociais e econmicos, etc.

    Perante este quadro, o ensino da natureza da cincia tem vindo a assumir uma posio dedestaque na maior parte dos currculos de cincias das ltimas dcadas. Os currculos passam aintegrar contedos e metodologias de ensino destinados a promover a reflexo dos alunos sobreesta temtica e a construo de concepes mais adequadas acerca da actividade cientfica e das

    suas interaces com a tecnologia e a sociedade. Contudo, apesar destas referncias curricularesexplcitas, muitos professores ignoram-nas e continuam a veicular concepes pouco adequadasacerca da natureza da cincia nas suas aulas. Mesmo com orientaes curriculares rgidas quantoa contedos e metodologias, os professores continuam a tomar as decises com maior impactona educao dos alunos, constituindo o elemento mais importante na aprendizagem dos mesmos(McComas, 2000).

    2.2 Concepes e prticas acerca do ensino da natureza da cincia

    Apesar da maior parte dos currculos actuais de cincias salientarem a necessidade do

    ensino veicular determinadas ideias acerca da natureza da cincia, as investigaes sugerem quetanto as concepes como as prticas dos professores esto, frequentemente, em desacordo comessas indicaes. Fernndez, Gil, Carrascosa, Cachapuz e Praia (2002), atravs de umameta-anlise da investigao mais relevante nesta rea (nomeadamente portuguesa), publicadaentre 1990 e 2001, revelam que o ensino das cincias transmite, por aco e omisso, vriasvises deformadas da cincia, nomeadamente:

    1. Uma concepo aproblemtica e a-histrica da cincia que, preocupadaexclusivamente com a transmisso de conhecimentos j estabelecidos, ignora osproblemas e as dificuldades que estiveram na gnese desse mesmo conhecimento,bem como as limitaes do conhecimento cientfico actual;

    2. Uma concepo meramente cumulativa do desenvolvimento cientfico, descrevendo-o como um processo linear de simples acumulao de conhecimentos, ignorando ascrises, os confrontos, as controvrsias e as reformulaes profundas que estiveram nagnese desse mesmo conhecimento;

    3. Uma concepo individualista e elitista da cincia (bastante referida na literatura),segundo a qual o conhecimento cientfico resulta da obra isolada de cientistas geniaise especialmente dotados, ignorando a importncia do trabalho intra e inter-equipas deinvestigao na construo desse conhecimento;

    4. Uma viso descontextualizada, socialmente neutra, da actividade cientfica queignora, ou aborda apenas superficialmente, as relaes complexas entre a cincia, atecnologia, a sociedade e as implicaes sociais, econmicas, polticas, ticas, morais

    e ambientais do conhecimento cientfico e tecnolgico.

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    conhecimentos cientficos e pedaggicos, condicionado por factores de natureza cognitiva,afectiva e social, animado por interaces sociais, vivncias, experincias, reflexes eaprendizagens, ocorridas nos contextos em que se desenvolve a sua actividade profissional(Day, 1999; Ponte, 1998).

    Day (1999) considera que o desenvolvimento profissional engloba todas as experinciasde aprendizagem formais e informais que beneficiam o professor, directa ou indirectamente,contribuindo para a qualidade do seu desempenho com os alunos. Descreve o desenvolvimentoprofissional como um processo complexo (baseado numa dialctica entre aco e reflexo)atravs do qual o professor, individualmente ou com outras pessoas (nomeadamente, colegas einvestigadores), reformula as suas orientaes pessoais relativamente s finalidades do ensino edesenvolve, de forma crtica, o conhecimento, as tcnicas e a inteligncia (cognitiva e afectiva)indispensveis ao exerccio de uma prtica de qualidade no contexto da escola. Na sua opinio,trata-se de um processo interno de crescimento e desenvolvimento gradual, fundamentado nopensamento e na aco dos professores, com uma dimenso emocional considervel na medidaem que decorre apenas quando compensa afectivamente e se traduz em satisfao pessoal e

    profissional.Este processo de desenvolvimento pode ser difcil e complexo pois envolve alteraes a

    diversos nveis: crenas, conhecimentos e prticas. Raramente implica a substituio completade modelos didcticos, envolvendo, isso sim, reposicionamentos progressivos atravs deapropriaes parcelares (Tal, Dori, Keiny e Zoller, 2001). As alteraes ao nvel das concepesdificilmente se concretizaro quando: a) o professor est satisfeito com determinados modelosdidcticos consolidados pela sua experincia profissional; b) existe coerncia entre os seusobjectivos, concepes e prtica docente; ou c) existem factores no sistema educativo e nasociedade que reforam modelos tradicionais e obstaculizam a mudana didctica (Davis, 2003).

    De acordo com vrios autores, a reflexo sobre a prtica assume um papeldeterminante no desenvolvimento pessoal e profissional dos professores (Alarco, 2001;Galvo, 1998; Ponte, 1998; Roldo, 1999; Schn, 1983; Zeichner, 1993). A reflexo na aco fundamental na superao de situaes problemticas, permitindo ao professor criticar a suacompreenso inicial do fenmeno e construir uma nova teoria fundamentada na prtica.Segundo Schn (1983), este tipo de reflexo permite que os professores se assumam comoinvestigadores na prtica (e sobre a prtica) e se envolvam num processo contnuo de auto-formao. Atravs da reflexo, os professores estruturam e reestruturam o seu conhecimentoprtico e pessoal.

    A reflexo na aco e sobre a aco permite que os professores se assumam comodecisores e construtores de currculo, abandonando o papel de simples executores, orientados,exclusivamente, pelas directrizes provenientes do ministrio e por materiais curricularesproduzidos por entidades externas (manuais escolares) (Apple, 1997; Roldo, 1998, 1999).Atravs da reflexo sobre a prtica, os professores podem alterar/(re)construir/desenvolver oscurrculos, de forma a encontrarem os caminhos mais adequados s metas desejadas, diminuindoo que Roldo (1999) refere como o sndroma do cumprimento dos programas (p. 45). Aassuno deste papel tem consequncias no estatuto do professor, facilitando a mudana nosentido do reforo da dimenso profissional e de uma diminuio da dimenso de funcionrio,cada vez mais inadequada s caractersticas e aos problemas especficos das instituies

    escolares (Roldo, 1999).

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    3. Metodologia

    A presente investigao enquadra-se no paradigma interpretativo e recorre a umametodologia de estudo de caso. Pretende dar continuidade a uma linha de investigao e deinterveno sobre a utilizao da discusso de questes scio-cientficas1 no ensino das cincias(Reis, 1997). Depois do estudo das concepes e prticas de sala de aula (acerca daquelatemtica) de professores experientes (Reis, 2001; Reis, 2004; Reis e Galvo, 2004), estainvestigao explora a mesma temtica com um grupo de professores de Cincias Naturaispouco estudado em Portugal: os professores em incio de carreira. Assim, procurou-se estudar:a) o eventual impacto das controvrsias scio-cientficas recentes nas concepes dos jovensprofessores acerca da natureza, ensino e aprendizagem das Cincias Naturais; b) a relao entreestas concepes e a prtica lectiva desses professores; e c) os possveis efeitos da formaoinicial na forma como integram as questes scio-cientficas nas suas prticas lectivas.

    Neste estudo participaram trs professores com tempo de servio igual ou inferior acinco anos que leccionam disciplinas de Biologia e Geologia, a alunos do 7 ao 12 ano, em

    escolas de Lisboa e arredores (Ins e Paulo) e de uma zona rural do Distrito de Santarm(Catarina). Durante um ano lectivo (2002-2003), foram recolhidas informaes diversas atravsde duas entrevistas semi-estruturadas e da observao e discusso de aulas leccionadas pelosparticipantes. Cada um dos professores foi entrevistado duas vezes no seu local de trabalho(antes e depois da sequncia de aulas observada), tendo cada uma das entrevistas durado cercade uma hora. A gravao das entrevistas, em suporte udio, permitiu o acesso totalidade dodiscurso e no apenas a notas parcelares manuscritas.

    As transcries integrais das entrevistas e as notas de campo foram sujeitas a anlise decontedo independente, atravs de uma metodologia de induo analtica (Bogdan & Biklen,1992), seguida de uma anlise conjunta para triangular a informao recolhida (Denzin, 1970).

    Atravs desta metodologia procurou-se extrair as concepes implcitas acerca dos vriosaspectos em estudo. O processo de construo de categorias envolveu a comparao dasdiferentes unidades de informao com o objectivo de se detectarem regularidades recorrentesentre os dados disponveis. A anlise das diferentes fontes de informao foi efectuadacolaborativamente pelos dois investigadores, tendo-se procedido discusso das diferentesinterpretaes e das poucas discrepncias que emergiram durante o processo de classificao.Desta forma, procurou-se enriquecer o processo de interpretao dos dados recolhidos (Ludke eAndr, 1986; Morse, 1994).

    Ficar a cargo dos leitores a eventual aplicao e/ou generalizao dos resultadosobtidos a outras situaes especficas (Merriam, 1988). De acordo com Stake (1981), estas

    aplicaes, efectuadas pelos leitores, constituem parte do conhecimento produzido pelosestudos de caso. Cada leitor traz para o estudo de caso as suas vivncias e os seusconhecimentos, conduzindo ao desenvolvimento do caso ou ao estabelecimento deextrapolaes.

    1 As questes scio-cientficas consistem em controvrsias sociais suscitadas pelas eventuais implicaes(econmicas, polticas, ambientais, ticas, etc.) de inovaes cientficas e tecnolgicas e no em disputasacadmicas internas e restritas comunidade cientfica (por exemplo, entre os apoiantes de teorias e modeloscientficos concorrentes).

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    4. Casos

    4.1. O CASO DE INS: A escola no consegue passar ao lado da controvrsia

    4.1.1 Apresentao

    Ins professora de Biologia e Geologia h cinco anos (incluindo o estgio). Afirmagostar muito da sua profisso pela oportunidade que lhe proporciona de transmitir determinadosvalores aos alunos. Considera que a sua melhor qualidade como professora a capacidade deestabelecer uma boa relao com os alunos, pautada pela justia, pelo respeito e pela amizade.Alis, tanto o seu discurso como a sua prtica de sala de aula evidenciam a importncia queatribui promoo destes valores. O seu gosto por animais associado ao seu interesse e suapreocupao por questes de tica ambiental e de bem-estar animal levaram-na a ingressar nocurso de Biologia e a realizar trabalho voluntrio na Liga Portuguesa dos Direitos do Animal (daqual j membro h dez anos e onde j desempenhou funes directivas como Vice-Presidente).No seu primeiro ano do curso de Biologia, o ambiente de desinteresse generalizado entre os seus

    colegas relativamente s questes ambientais levou-a a envolver-se na criao do GrupoAmbiental, no mbito do qual estabeleceu parcerias com vrias instituies de proteco danatureza e dinamizou vrias iniciativas (semanas do ambiente, do animal, do vegetarianismo...).

    Desde a concluso da Licenciatura em Ensino da Biologia e da Geologia (variante deBiologia), pela Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa, tem trabalhado em vriasescolas pblicas dos arredores de Lisboa com alunos social e culturalmente desfavorecidos.Geralmente, tm-lhe sido atribudos horrios incompletos e turmas com problemas deaprendizagem e de comportamento (as turmas que os outros professores no quiseram). Noentanto, Ins aprecia estes desafios:

    Uma das coisas que me d mais prazer entrar com uma turma que considerada a piorturma da escola, (...) porque o que sobra para os professores novinhos como eu, eterminar o ano e sentir uma evoluo tremenda naquela turma, que inicialmente seprocessa ao nvel do comportamento e que depois se verifica tambm emaproveitamento.

    Ao longo do seu curto percurso profissional, Ins j leccionou todas as disciplinas do seugrupo disciplinar e foi directora de turma, outro desafio que aprecia bastante, tanto pelacomunicao com os pais como pela maior proximidade com os alunos, mas para o qual no sesentia minimamente preparada. No entanto, considera que conseguiu ultrapassar esse desafiocom sucesso. O trabalho num colgio particular permite-lhe completar, e at exceder, o horrio

    normal de 22 horas lectivas. Contudo, a sobrecarga de horas de trabalho em consequncia dosmuitos nveis de ensino que lecciona (7, 8, 9, 11 e 12 anos) e se encontrar a concluir umMestrado em Cincias da Terra e da Vida para o Ensino (presentemente, na fase de redacoda tese) provocam-lhe um grande cansao. Em simultneo, a mudana sucessiva de escolaimpede o estabelecimento de laos pessoais e profissionais fortes com colegas de grupo eprovoca uma sensao de isolamento e solido.

    Como momentos marcantes da sua actividade profissional, Ins destaca os primeirosquatro meses do estgio (primeiro ano de ensino) durante os quais tomou contacto e teve queaprender a gerir uma turma com muitos problemas de indisciplina, completamente diferente doscenrios idlicos e irreais abordados na universidade, situao para a qual no se sentia

    preparada:

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    isso pode fazer com que no futuro se evitem utilizaes menos ticas da cincia e datecnologia.

    Consequentemente, uma das suas prioridades como professora consiste em preparar osseus alunos para a anlise crtica de questes scio-cientficas controversas como a clonagem, aextino de espcies, o aborto e a eutansia. Vrios autores tm reforado esta mesma ideia:consideram que numa sociedade democrtica saudvel a avaliao pblica da cincia requer aparticipao e o envolvimento do maior nmero possvel de cidados na tomada de decisesacerca das opes apresentadas pela cincia contempornea, o que s ser possvel atravs deuma compreenso do que cincia e de como produzida (Osborne, 2000).

    Entre os diversos elementos que estaro na base das suas ideias acerca da cincia, Insdestaca a sua sensibilidade relativamente dimenso tica da actividade cientfica, a reflexocrtica das notcias veiculadas pelos meios de comunicao social e das leituras que efectua(especialmente na rea da biodiversidade e dos direitos dos animais) e os aspectos da naturezada cincia discutidos nas aulas de Didctica da Biologia durante a sua formao inicial.

    4.1.3. Concepes sobre o ensino das Cincias Naturais

    Ins defende que a importncia do ensino das Cincias Naturais resulta do facto deproporcionar uma compreenso do ser humano e do meio que o rodeia. No conjunto das suasaulas prope diferentes estratgias como forma de estimular a actividade intelectual dos alunos ede facilitar a compreenso dos conceitos envolvidos: a) pesquisa de informao e observao demodelos em CD-ROM; b) observao e discusso de vdeos; c) realizao de fichas de trabalho;d) investigao de ecossistemas atravs de visitas de estudo; e) debate e discusso de assuntosactuais polmicos; e f) aulas expositivas. Procura diversificar estratgias (com o objectivo de

    motivar os alunos) seleccionando-as de acordo com as potencialidades especficas de cada umae a sua adequao aos alunos em questo e aos objectivos propostos.De acordo com esta professora, o ensino das cincias implica uma ateno constante aos

    conceitos prvios dos alunos e a realizao de actividades que os levem a reconhecer ainadequao das suas concepes errneas e a construir concepes consideradascientificamente adequadas:

    A melhor forma conseguir perceber quais so os conceitos que eles j tmrelativamente a algumas coisas e depois fazer actividades que permitam que elesprprios notem a alterao do conceito que eles tinham. Que eles sintam que aprenderampor eles, e no ser eu a transmitir e depois eles meramente a reproduzir aquilo que eu

    disse.

    Ins reala a necessidade de estar constantemente atenta s reaces dos alunos de formaa identificar as estratgias mais adequadas abordagem de determinados tpicos em cada turmae a avaliar os resultados da sua utilizao:

    Pela cara deles consigo perceber se eles esto a gostar daquela forma de ensinar ou no.E se eu saio duma aula com a sensao de que no consegui passar a mensagem, porqueaquela aula foi como eles costumam dizer, uma seca, ento na aula a seguir j tenho quefazer o pino ou o que quer que seja para eles apreenderem melhor.

    Estas afirmaes e o tipo de estratgias que prope nas aulas evidenciam: a) umaconcepo de ensino das cincias como criao de oportunidades para os alunos construrem

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    conhecimentos e desenvolverem diversas competncias (nomeadamente, cognitivas e morais)indispensveis ao exerccio da cidadania; e b) uma concepo scio-construtivista daaprendizagem que associa este processo ao desenvolvimento de competncias cognitivas, sociaise morais atravs da interaco e do envolvimento activo dos alunos num conjunto diversificadode experincias educativas (Doise, Mugny e Perret-Clermont, 1975).

    4.1.4. Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula

    Segundo esta professora, os currculos de Cincias Naturais no referem explicitamentenem sugerem a abordagem de controvrsias scio-cientficas. No entanto, acredita que ocurrculo no se limita lista de tpicos, havendo a possibilidade do professor proceder suagesto de forma a abordar temas, relacionados com as rubricas programticas previstas, quepossam interessar aos alunos e ser socialmente relevantes. Desta forma, Ins assume um papelde construtora de currculo (Roldo, 1998), transformando-o, constantemente, de acordo com asaprendizagens que considerada indispensveis alfabetizao cientfica dos seus alunos.

    Todos os anos aborda alguns assuntos controversos que considera importantes e actuais.Refere mesmo que, actualmente, a escola no consegue passar ao lado da controvrsia:

    Com a Internet, com a televiso, os alunos ouvem as coisas e depois trazem isso para asala de aula e no h professor que consiga escapar. Eu j tive que falar, por exemplo, doaborto e da eutansia, que so coisas que eu no abordo como contedos cientficos. (...)Claro que eu tento sempre apresentar mais as diferentes opinies que existem do quepropriamente a ideia que eu tenho. Normalmente, apresento as minhas ideias no final dadiscusso porque no quero influenci-los.(...) Aos professores de cincias eles fazem muitas perguntas: h professora o que que

    pensa disto?, contra o aborto ou no contra o aborto? e Em que casos que achaque a eutansia se poderia fazer? E eu tenho que passar a aula a discutir sobre aquilo. Aempatia com os alunos tambm se gera a, porque eles vem que ns somos muito maisdo que a professora que sabe de trs para a frente o livro e que vem com os exerccios,quer dizer tambm a professora que tem opinies fora da escola, fora daquelecontexto.

    No corrente ano lectivo (2002-2003), Ins dinamizou quatro actividades de discusso dequestes scio-cientficas nas suas aulas: a clonagem e as impresses digitais de ADN (no 11ano) e as causas da extino de espcies (no 8 e no 12 anos). A actividade sobre clonagem, porexemplo, decorreu em duas aulas e centrou-se na observao de um debate televisivo entre

    vrios cientistas da Universidade do Porto e na anlise e discusso das diferentes opiniesapresentadas. Estas quatro actividades foram planeadas pelo facto dos seus temas serelacionarem com contedos programticos. No entanto, por vezes, estas discusses assumemum carcter espontneo e surgem em resposta s solicitaes dos alunos: Muitas vezes nem socoisas propriamente elaboradas. So coisas que surgem e que eu penso assim: Ok, esta meiahora vai ser para discutir isto, no h hiptese de escapar.

    Logo, Ins no encara a discusso destes temas como uma perda de tempo. Conforme sepode constatar pelas afirmaes seguintes, esta professora acredita que as actividades dediscusso de assuntos controversos so importantes para: a) o conhecimento de questescientficas e tecnolgicas actuais e relevantes para a vida; b) a promoo de atitudes de respeito

    pelo ambiente e de interveno activa na sua preservao; e c) o desenvolvimento decapacidades de anlise e discusso de informao indispensveis a qualquer cidado.

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    Depois eles saem da sala de aula e eu tenho a certeza que (no todos obviamente, masalguns, e eu j fico satisfeita com isso) vo chegar l fora e quando ouvirem este temavo discuti-lo com os vrios argumentos que aqui se esgrimiram. Mesmo que algunsdeles at nem concordem muito, mas eles esto na posse desses argumentos, e portantovo levar isso para fora da escola e vo fazer com que outras pessoas, que at nem falammuito sobre o assunto, fiquem mais informadas.

    Interessa-me que eles cheguem concluso de que se a culpa de algumas dessas coisas nossa, ento a sua mudana tambm est nas nossa mos.

    Tambm para desenvolver a capacidade crtica, quer dizer, proporcionar a informaopara eles poderem depois discutir, mas no fundo tambm terem capacidade de discutir,de anlise, de criticar, de se opor... mas para isso eles tm que ter de facto uma base. Eessa informao transmitida nessas discusses, umas vezes propositadamente porque amatria assim o proporciona, outras ocasionalmente quando h qualquer coisa que est

    em voga na sociedade, e nos media.A sua opinio acerca das potencialidades da discusso de assuntos controversos como

    estratgia de sala de aula revela, mais uma vez, a preocupao em promover, de formaintegrada, a compreenso de conhecimentos e o desenvolvimento de atitudes e de capacidadesintelectuais e sociais que considera indispensveis alfabetizao cientfica dos alunos. Estaopinio est de acordo com vrios resultados de investigao que tm realado aspotencialidades da discusso de assuntos controversos no desenvolvimento de capacidades deanlise de informao (Wellington, 1986) e de argumentao (Ratcliffe, 1998).

    Contudo, apesar dos vrios aspectos positivos enumerados, Ins tambm identifica vrios

    constrangimentos utilizao destas tarefas: a) o facto dos currculos no inclurem, de formaexplcita, tpicos de natureza controversa e de no proporem a realizao deste tipo dediscusso; b) a quantidade excessiva de contedos que dificulta a obteno do tempo necessrio realizao destas actividades; c) a falta de materiais com propostas de discusso jorganizadas. Alguns destes factores limitantes, nomeadamente os constrangimentos de temporesultantes de um currculo demasiado rgido, extenso e sobrecarregado de contedos, soidentificados por muitos professores de cincias (Levinson e Turner, 2001).

    4.1.5. Prtica lectiva

    Durante o planeamento e a realizao das vrias aulas, Ins revela um conhecimentodidctico considervel, nomeadamente no que respeita: a) s finalidades e objectivos para oensino e a aprendizagem das Cincias Naturais; e b) seleco e gesto de estratgias adequadas sua concretizao com o seu grupo especfico de alunos. No decurso das aulas, manifestasegurana na implementao dos diferentes tipos de actividade. A relao afectuosa queestabelece com os alunos permite-lhe evitar ou controlar comportamentos menos adequados.

    A prtica lectiva desta professora evidencia influncias ntidas das suas concepesacerca da natureza, do ensino e da aprendizagem da cincia. As ideias de Ins sobre oempreendimento cientfico, nomeadamente acerca das suas relaes com a tecnologia e asociedade e do carcter provisrio e dinmico do conhecimento cientfico, reflectem-se nas

    actividades propostas sobre temas controversos e na forma como conduz a discusso dessastemticas. Ao contrrio de outros casos descritos pela investigao (Brickhouse, 1990), a

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    extenso do currculo e a presso para cobrir os contedos no a impedem de abordar de formaexplcita aspectos da natureza da cincia. No caso desta professora, constata-se ainda o impactodas suas concepes acerca do ensino e da aprendizagem das cincias na sua prtica,nomeadamente: a) na diversificao de estratgias; b) na concepo e realizao de actividadesque exigem uma participao activa dos alunos; c) na implementao de um ensino centrado nodesenvolvimento de capacidades e na construo de conhecimentos relevantes para a vida; e d)no recurso a temas actuais e relevantes como ponto de partida para actividades de discussosobre a dimenso tica do conhecimento cientfico e tecnolgico.

    Apesar das dificuldades relatadas, Ins no se arrepende da sua opo profissional. Gostabastante de ser professora de Cincias Naturais e, apesar de se sentir satisfeita com o seudesempenho, espera continuar a evoluir pessoal e profissionalmente:

    Gostaria de ser sempre melhor nas aulas que dou. Tenho evoludo bastante, mas sintoque vou ser uma ptima professora quando tiver... no sei, pronto, j no topo mesmo dacarreira. Eu acho que a vou ter evoludo como pessoa, vou evoluir a nvel de

    conhecimentos, acho que a que vai ser bom...

    4.2. O CASO DE PAULO: A discusso uma das faces da cincia

    4.2.1. Apresentao

    Paulo licenciado em Ensino da Biologia e Geologia, variante de Geologia, pelaFaculdade de Cincias da Universidade de Lisboa e lecciona h trs anos (incluindo o ano deestgio). Considera que a sua melhor qualidade como professor o facto de no se centrarexclusivamente na transmisso de conhecimentos, preocupando-se tambm em estabelecer

    uma boa relao com os alunos e em contribuir para a sua formao enquanto cidados.

    Ao longo da sua experincia como professor j leccionou disciplinas do 5 ao 11 ano(alunos dos 11 aos 17 anos). Durante os ltimos dois anos, tem trabalhado numa escola bsicade Lisboa onde, alm de leccionar disciplinas do 5 ao 9 ano, exerce as funes de coordenadorde grupo e dinamiza vrias actividades no mbito do Projecto Cincia Viva, nomeadamente,um Clube de Astronomia. A ttulo pessoal, participa num projecto do Instituto de Conservaoda Natureza por considerar extremamente importante que os professores de cincias colaboremcom os centros onde se faz cincia e se envolvam no confronto de ideias com pessoas devrias reas.

    Como momentos mais marcantes do seu curto percurso profissional destaca: (1) alicenciatura que, na sua opinio, desenvolveu uma base terica e um conjunto de capacidadesextremamente teis na resoluo de muitos dos problemas do seu dia-a-dia como professor; e(2) o ano de estgio o primeiro confronto com a realidade caracterizado por aprendizagens ereflexes constantes e muito marcantes acerca das complexidades da profisso docente.

    No estgio foi aquela sensao de Afinal isto no nenhum filme de Hollywood, ouseja, nem tudo corre como a gente quer. Aquela coisa de Aplicamos esta estratgia e elavai decorrer segundo estes passos que eu ouvi na Faculdade, no bem assim... Eu davauma aula e depois ia para casa e pensava sobre o que correu bem, o que correu mal e aseventuais razes porque correu mal.

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    Paulo atribui ao seu orientador de estgio um papel decisivo na superao dasdificuldades resultantes do primeiro contacto com a actividade docente, na estimulao de umaatitude reflexiva sobre a prtica e na modificao de algumas das suas concepes acerca doensino das cincias. Atribui, tambm, um papel formativo considervel a todos os projectosextracurriculares em que se tem envolvido e ao desempenho das funes de coordenador degrupo. Na sua opinio, todos estes factores tm contribudo para o seu desenvolvimentoprofissional. Actualmente, gosta muito da sua actividade profissional, especialmente do trabalhocom os alunos, e sente que a sua preparao cientfica e pedaggica lhe permite encarar comconfiana e descontraco as situaes imprevistas inerentes sua profisso: Eu costumo dizera alguns amigos que gosto do que fao e ainda por cima pagam-me por isso! O que eu gostomais de estar na sala de aula com os alunos, falar com eles, discutir com eles.

    4.2.2. Concepes sobre o conhecimento cientfico e tecnolgico

    Paulo v a cincia como um campo de discusso, dinmico em constante evoluo

    til para o progresso da humanidade e atraente. Acredita que o conhecimento cientfico resultade uma srie de etapas que envolvem observao, experimentao e reflexo constantes. semelhana de muitos professores de cincias (Acevedo, Vasquez e Manassero, 2002; Zoller,Donn, Wild e Beckett, 1991), este professor, tal como Ins, associa a tecnologia aos produtostecnolgicos, encarando-a como um meio para o avano da cincia (um instrumento detrabalho que permite obter mais conhecimento), ou seja, num plano completamente subsidiriodo empreendimento cientfico.

    Pretende que os seus alunos construam uma noo dinmica de cincia, ou seja, comoalgo que est constantemente em modificao. Atribui, tambm, grande importncia compreenso da construo do conhecimento cientfico e da influncia do contexto social e

    histrico nesse processo. Na sua opinio, a apresentao pura e simples das teorias cientficas,sem qualquer contextualizao social e histrica ou explorao da dimenso humana, acaba portransmitir uma viso completamente deturpada da cincia:

    No fundo, ensinarmos o conhecimento que j existe e como que foi descoberto, emque circunstncias, com que limitaes, por quem, de que forma. Porque eu tambm ligomuito ao ser humano que o descobriu, ao ambiente em que foi descoberto, forma comofoi descoberto, se foi discutido, se aldrabou, se no aldrabou... E passo muito voltadisto para eles aprenderem como que se chegou quele conhecimento.

    Acredita que a evoluo extremamente rpida da cincia e da tecnologia dificulta uma

    reflexo atempada acerca das suas possveis implicaes sobre a sociedade, desencadeando aemergncia de controvrsias acesas pelo facto de, frequentemente, as inovaes precederem areflexo. Como exemplos de questes cientficas e tecnolgicas marcadas pela controvrsiarefere a manipulao gentica, os produtos transgnicos, a introduo de espcies geneticamentemodificadas e os mtodos anticonceptivos. Apesar de reconhecer a necessidade de aprofundar ainvestigao acerca do eventual impacto ambiental de algumas destas inovaes, no manifestagrande receio em consumir produtos transgnicos (por exemplo, tomate ou milho geneticamentemodificados). Considera no existirem dados suficientes que o convenam a no consumir essesprodutos.

    Na opinio deste professor, as suas ideias acerca da cincia resultam da anlise crtica de

    um conjunto bastante amplo de experincias e de informaes acumuladas ao longo dos anos: a)o contacto com a actividade cientfica durante a sua formao inicial na universidade; b) a

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    discusso de aspectos processuais e epistemolgicos da cincia nas aulas de Didctica daBiologia; c) as informaes veiculadas pelos meios de comunicao social; d) a leitura debibliografia diversa sobre biologia (relacionada directa ou indirectamente com aspectos danatureza da cincia).

    4.2.3. Concepes sobre o ensino das Cincias Naturais

    Paulo sente que o seu papel no se limita transmisso de conhecimentos, englobandooutros aspectos como o estabelecimento de uma boa relao com os alunos e a tentativa decontribuir para a sua formao como cidados, nomeadamente, atravs do desenvolvimento deuma atitude de questionamento constante perante o mundo. Acredita que o ensino das CinciasNaturais permite perceber melhor onde que vivemos, como que vivemos e para que quevivemos.

    Aborda o ensino das Cincias Naturais segundo uma perspectiva construtivista e

    interaccionista, valorizando constantemente os conhecimentos prvios dos alunos e a interacona construo do conhecimento. Consequentemente, um defensor acrrimo do trabalho degrupo e da discusso na sala de aula, estratgias que utiliza diariamente apesar das dificuldadesinerentes:

    (...) Dou as aulas em grupo e os midos tm que pr as carteiras em grupo e quandoacabo a aula (por acaso, o professor que vem a seguir a mim no d aulas em grupo) eutenho que colocar as carteiras outra vez no lugar, e isso requer tambm muito esforofsico. complicado pois, nesta escola, a primeira vez que aparece um professor quedistribui assim os alunos na sala (em grupos de seis). No incio do primeiro ano (...) viaas funcionrias passarem pelo corredor, olhavam l para dentro...Mas o que aquilo?

    Achavam estranho (...) Hoje em dia j h vrias aulas em grupo. E depois engraadover os alunos, no incio (...) ficam tambm assim um bocadinho... e depois trabalhar emgrupo no fcil, at nestas idades, j tm um grupinho, o seu grupinho. Normalmente,no gostam dos grupos no incio, etc., mas depois chegam ao meio do segundo perodoe, de facto, verificam que as aulas decorrem melhor. E isso uma coisa que aprendi noestgio e que sinto que vou levar at ao final dos meus dias.

    As experincias vividas durante o seu estgio e as reflexes conjuntas com o seuorientador convenceram-no do papel decisivo do trabalho de grupo, da pesquisa e da discussona construo de um conceito de cincia como empreendimento colectivo cujo avano dependedecisivamente da discusso de ideias:

    (...) comecei a verificar que aquilo [o trabalho de grupo] era a melhor forma de daraulas de cincias porque obedecia a uma srie de ideias sobre como se constri a cincia.A cincia no feita por indivduos isolados mas em grupo e da discusso que nascemas boas ideias. O trabalho de grupo permite passar estas ideias aos alunos no s de umponto de vista terico mas tambm na prtica.

    (...) no ano passado demos as formaes geolgicas, portanto calcrios, etc., e depoisfalmos de vrios tipos de relevo... Passei-lhes muita informao terica (...) e depois osalunos comearam a dizer: Professor, mas porque que no vamos visitar umagruta? (...) E preparmos uma visita, mas essa visita demorou para a quinze dias a

    preparar porque eles (...) vieram para os computadores, fizeram um caderno de campocom dados, informaes, (...) coisas que queriam saber. Depois da visita de campo

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    vieram para a sala de aula e analisaram os dados que tinham recolhido, confrontaramesses dados com a informao terica e... assim que se faz cincia.

    Consequentemente, este professor ope-se a um ensino das Cincias Naturais baseadoexclusivamente na exposio que, na sua opinio, refora uma imagem esttica de cincia:

    O dar cincias naquele estilo do papaguear informao, ou seja, chegar sala e debitar,dar a cincia como um conhecimento que j est completamente estabelecido, em queno h dvidas, h s certezas absolutas, isso a pior forma de dar cincias. (...) Oprincipal no est s em dar conhecimentos, est em os alunos comearem a percebercomo que se constri cincia, o que que se faz no mundo da cincia, (...) como quechegaram aqueles conhecimentos, o que foi preciso para que chegassem quelasconcluses...

    Vrios autores tm reforado esta mesma ideia: consideram que numa sociedadedemocrtica saudvel a avaliao pblica da cincia requer a participao e o envolvimento do

    maior nmero possvel de cidados na tomada de decises acerca das opes apresentadas pelacincia contempornea, o que s ser possvel atravs de uma compreenso do que cincia ede como produzida (Cachapuz, Praia, Paixo, Martins, 2000; Monk e Dillon, 2000).

    Paulo acredita que um ensino das cincias baseado na explorao de situaes do dia-a-dia e no confronto com a realidade muito mais aliciante e relevante para os alunos.Actualmente, sente-se suficientemente confiante e preparado para aproveitar situaesimprevistas do dia-a-dia e utiliz-las na construo de conhecimentos e de capacidades deinvestigao e de reflexo previstos nos programas de Cincias Naturais:

    Por exemplo, ainda h dias, eu ia para falar sobre protenas mas, ao chegar auladetectei que havia alunos que no paravam de coar os braos, as pernas... Achei aquiloestranho e perguntei-lhes: O que que se passa? No tomam banho?, Ah, que h alinas mesas de ping-pong um gel que parece que picante, Um gel picante? Comecei apensar: houve algum aluno que trouxe para c algum spray daqueles que faz reacoalrgica... Ento, meus amigos, vamos sair daqui da sala, vamos l p'rs mesas de ping-pong, vamos analisar o que que se passa. Samos, fomos para a mesa de ping-pong ecomemos a ver que havia ali uma rvore que tinha uns pequenos bogalhos que, quandoeram esmagados, libertavam um suco com uns pequenos espculos parecidos com os dasurtigas. E era isso mesmo! Eles depois trouxeram as lupas e viram l os espculos everificaram que se esfregassem na palma da mo no sentiam a urticria que sentiam no

    resto da pele. Deu logo para comear a falar da pele. (...) E comecei logo a explicar-lhesque a pele no igual em todo o nosso corpo, h clulas com caractersticas e funesdiferentes...

    Este episdio revelador de vrias facetas deste professor, nomeadamente: a) de umaatitude cientfica perante o mundo e as situaes do dia-a-dia; b) de um nvel de conhecimentodidctico considervel (por exemplo, no que respeita implementao de actividades deinvestigao fora da sala de aula e ao estabelecimento de relaes entre a cincia escolar esituaes do dia-a-dia dos alunos) que lhe permite transformar uma situao inesperada numaoportunidade de promoo de competncias de investigao e de reflexo nos seus alunos; e c)

    de uma grande confiana nos seus conhecimentos e capacidades profissionais.

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    4.2.4. Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula

    Paulo identifica vrios tpicos dos programas de Cincias Naturais que permitem adiscusso de assuntos controversos. Como exemplo, refere o tema da Sexualidade, dos 8 e11 anos, que permite a discusso das questes em torno da contracepo e da manipulaogentica. Defende que a actualidade e a relevncia destes assuntos controversos justificam a suadiscusso na sala de aula. Acredita que essa discusso permite a construo de conhecimentos ede capacidades de pensamento importantes para a vida em sociedade. Na sua opinio, oexerccio da cidadania depende do conhecimento das questes associadas aos assuntoscontroversos:

    [Os assuntos controversos] fazem parte do nosso dia-a-dia, vivemos com eles,confrontamo-nos com eles, convm que tenhamos uma ideia sobre, ou seja, que sejamospessoas informadas e depois com a informao que temos, consigamos produzir asnossas prprias ideias. Vamos tornar os cidados cada vez mais participativos, mais

    activos. Mas s podem participar, s podem ser mais activos se tiverem algunsconhecimentos sobre e se estiverem um pouco dentro daquele mbito. s vezes basta terum ou outro conhecimento acerca daquele assunto para depois poderem, com base numainformao nova, conseguirem construir uma opinio. (...) s vezes lano uma questoproblemtica para o ar e deixo-os a discutir, nem estou muito preocupado com o que que eles acham, mais para eles pensarem. (...) Hoje em dia fala-se muito em educaopara a cidadania e eu acho que educar para a cidadania tornar os indivduos maisinterventivos, mais activos em toda a sociedade, em torno daquilo que se vive nasociedade.

    Considera, ainda, que as actividades de discusso sobre questes cientficas e

    tecnolgicas permitem a construo de uma imagem mais real da cincia pois, na sua opinio, adiscusso uma das faces da cincia que contribui decisivamente para a evoluo doconhecimento. Logo, em todas as suas aulas existe uma componente de discusso em grupo que,por vezes, se centra em questes controversas:

    Como eles esto em grupo rara a aula em que eu no lano uma questo para o ar,para eles discutirem durante alguns minutos, depois a seguir vamos ver as diferentesopinies. No h porta-voz dos grupos, ou seja, qualquer elemento pode ser chamado afalar sobre o assunto em questo.

    Geralmente, estas discusses no assumem a forma de actividade planeada e no

    requerem a totalidade da aula. Quando leccionou o 11 ano, por exemplo, as discussescentravam-se, frequentemente, em questes suscitadas pelos alunos sobre temas de gentica oude hereditariedade: Mas ento eu posso escolher o beb que quero? E a cor dos olhos?. Outrasvezes, a discusso era despoletada pelo prprio professor atravs da colocao de questespolmicas durante a abordagem desses temas: Ser que, com esta fome imensa de descobrir edesenvolver a gentica, no estaremos a cavar a nossa sepultura? Ou estaremos a encontrar ocaminho para todos ns e a soluo para todos os problemas que temos tido at hoje?.

    4.2.5. Prtica lectiva

    Os aspectos mais marcantes das aulas de Paulo so o recurso constante ao trabalho degrupo, como forma de organizao do trabalho na sala de aula, e a interaco permanente que

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    mantm com os seus alunos (lanando perguntas destinadas a alunos especficos ou reflexoem grupo e pedindo comentrios s respostas apresentadas). No decurso das aulas, manifestasegurana e -vontade. O envolvimento e a participao dos alunos nas actividades propostas notrio e no se detectam comportamentos menos adequados.

    Nas suas aulas evidente o impacto das suas concepes acerca da natureza, do ensino eda aprendizagem da cincia na sua prtica de sala de aula. As suas ideias sobre a importncia dadiscusso na aprendizagem e na construo de uma imagem mais real do empreendimentocientfico reflectem-se, por exemplo, na forma interactiva como gere as suas aulas, naexplorao das ideias prvias dos alunos acerca das temticas em estudo, no aproveitamento desituaes imprevistas ou de questes lanadas pelos alunos sobre questes actuais e nasreferncias explcitas ao carcter transitrio do conhecimento cientfico e aos contextos em queeste produzido.

    4.3 CASO DE CATARINA: Sou uma apaixonada pelas Cincias Naturais e (...) gosto de

    ver o brilho nos olhos dos alunos4.3.1. Apresentao

    Catarina professora de Biologia e de Geologia h trs anos (incluindo o estgio).Considera-se uma professora exigente e extrememente dedicada aos seus alunos. Desde muitonova, influenciada pelos programas sobre a natureza apresentados pela televiso(nomeadamente, sobre a fauna da Amrica do Norte), ambicionou trabalhar como investigadorana rea da Ecologia. Contudo, depois de ingressar no curso de Biologia, rapidamente constatoua dificuldade de concretizar este seu sonho e a grande instabilidade profissional inerente carreira de investigador. Consequentemente, no 3 ano, optou pelo Ramo Educacional em

    detrimento do Ramo Cientfico; uma opo que nunca tinha rejeitado e para a qual sentiaalguma pr-disposio pelo facto de ter crescido num famlia de professores.

    O meu sonho era ser biloga, mesmo biloga... era investigar os ursos pardos. Tinhaaquele sonho de estudar os ursos da Amrica do Norte. Entretanto, logo no 1 ano,conheci um professor que numa palestra disse a seguinte frase: Em Portugal,investiga-se o que se pode, no aquilo que se quer. Foi um balde de gua fria, umacoisa enorme que me caiu em cima! Quando cheguei ao 3 ano j tinha decidido ir parao educacional, at porque os meus dois pais eram professores e o bichinho tambmestava l. Desde o incio, no era algo que eu rejeitasse completamente. (...) Por outrolado, havia a maior estabilidade do educacional. Hoje talvez j no seja tanto assim...

    Infelizmente em Portugal vive-se de bolsas e eu no me imaginava, j adulta, a viver deprojectos de investigao de curta durao. (...) Tudo isto conjugou-se e eu acabei por irpara o educacional.

    Posteriormente, o estgio realizado numa Escola Secundria permitiu-lhe dissiparquaisquer dvidas que ainda subsistissem quanto sua opo profissional: (...) Quando acabei[o estgio] , disse: mesmo isto que quero fazer!. E no tive mesmo dvidas nenhumas.Catarina considera que o seu estgio constituiu uma experincia muito agradvel, decolaborao real com as suas duas colegas (na sua opinio, uma das poucas situaes em quetrabalhou realmente em grupo), que lhe permitiu atingir o objectivo duplo de aprender e obteruma classificao elevada. Na sua opinio, esse ano de aprendizagem prtica intensa revelou-

    se particularmente til na superao de diversas lacunas resultantes de uma formaopedaggica inicial bastante deficiente e desfasada da realidade.

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    Os conhecimentos eu tinha-os, agora ensin-los... que aquilo que nos era pedido naescola no era que chegssemos ali e despejssemos. E depois, seleccionar e ver de queforma que esses contedos iam ser transmitidos aos alunos. A a importncia de umorientador. Porque ns samos da Faculdade sem preparao nenhuma para isso. NaFaculdade o que se pede que tenhamos um papel passivo, somos depsitos deconhecimentos. Temos conhecimento, mas agora como transmiti-lo?

    Catarina identifica dois factores que tero contribudo, de forma decisiva, para o sucessodo seu estgio: os alunos e a orientadora. A escola secundria em que decorreu o seu estgio erafrequentada, maioritariamente, por alunos bastante interessados e de um nvel scio-culturalacima da mdia, que participavam de forma entusiasta nas diferentes situaes de aprendizagempropostas. Simultaneamente, dispunha do auxlio da orientadora de estgio na superao dequalquer dificuldade que surgisse. No entanto, nas restantes escolas em que leccionou, estaprofessora nunca mais voltou a ter alunos deste tipo ou a dispr de apoio na resoluo dosproblemas do dia-a-dia.

    Aps a concluso do estgio e da Licenciatura em Ensino da Biologia na Faculdade deCincias da Universidade de Coimbra, Catarina trabalhou com alunos do 7 ao 9 ano de duasescolas dos Distritos de Lisboa e de Santarm. Estas duas experincias foram significativamentedistintas do ano de estgio, permitindo-lhe contactar com uma outra realidade: os alunos deestratos sociais desfavorecidos com bastantes problemas de comportamento e de falta deinteresse pelas actividades escolares. O choque foi especialmente forte no seu primeiro anocomo professora profissionalizada:

    Foi uma relao muito difcil com aqueles midos. Escrevi cerca de 50 participaesdisciplinares! (...) Da segunda carteira para trs ningum fazia nada, literalmente. No

    levavam livro, no levavam caderno, no faziam nada. (...) Aqueles midos no sabiamtirar apontamentos, no tinham hbitos de trabalho nenhuns, no sabiam interpretar umtexto, no sabiam fazer praticamente nada.

    Na tentativa de fazer face a esta situao, Catarina expulsou vrios alunos das suasaulas, refugiando-se numa prtica de sala de aula centrada na exposio dos contedoscurriculares (frequentemente, sob a forma de ditado que os alunos eram obrigados a registar nocaderno), na leitura pelos alunos de histrias acompanhadas de banda desenhada sobredeterminados fenmenos geolgicos ou biolgicos (da sua autoria) e na resoluo de fichas detrabalho (constitudas por um texto seguido de vrias perguntas de interpretao). Com estaestratgia (designada por Catarina como lei do trabalho) pretendeu manter os alunos

    constantemente ocupados, reduzindo o risco de problemas disciplinares.

    Nas minhas aulas para trabalhar. Pelo menos passam do quadro aquilo que eu escrevoe aquilo que eu dito. (...) Acabei por adoptar esta tcnica e institu a lei do trabalho.Vocs tm que passar tudo o que eu escrevo no quadro e tudo o que eu dito. As coisasno esto todas no livro. As fichas de trabalho tm que ser guardadas tambm, tem queestar tudo no caderno. Os alunos que no faziam nada eram convidados a sair, portantogrande nmero de participaes disciplinares. Mesmo aqueles que no faziam nada,mais tarde ou mais cedo, e com tantas participaes, comearam a fazer alguma coisita.(...) [No 7 ano] Comecei a inventar histrias. Por exemplo, para dar a sedimentao e aorigem das rochas sedimentares, inventei o Sedi que era um granito que tinha muitos

    irmos, depois separaram-se... Eram midos que liam pessimamente mal, mas gostavamde ler e eu aproveitei isso. Ento cada um lia um bocadinho do texto e depois, no final,

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    discutamos o que tinha acontecido ao Sedi. E eu apercebi-me que eles aprendiamassim... pronto, soluo, ptimo.

    Apesar destas experincias menos agradveis, Catarina confessa-se apaixonada pela suaprofisso. Aprecia particularmente as situaes em que consegue contagiar os seus alunos como seu entusiasmo e a sua paixo pelas Cincias Naturais.

    Adoro! Adoro [leccionar]! Para j porque sou uma apaixonada pelas Cincias Naturaise, depois, porque gosto de ver o brilho nos olhos dos alunos. uma coisa que nos marcamuito. (...) isso que eu tento transmitir aos meus alunos [a paixo pelas CinciasNaturais]. Verem que aquilo que fao, fao com paixo. (...) Por exemplo, quando umaluno me pergunta qualquer coisa, eu digo Olha, isso realmente assim. No te vouexplicar mais mas isso lindo. Se quiseres estudar isso... (...) Eles querem sempresaber mais e mais. Eu agora ficava aqui uma hora a falar para ti, e espectacular, maseu no posso. E essa paixo... Todos ns gostamos dos avzinhos que contamhistrias.

    Na actualidade, sente-se mais professora do que biloga. No entanto, a sua paixo pelainvestigao cientfica permanece. Recentemente, com o objectivo de reforar o seuconhecimento cientfico e a sua ligao Biologia, decidiu inscrever-se na Ordem dos Bilogose frequentar uma aco de formao, sobre Gentica Humana, organizada por esta associaoprofissional. Ficou surpreendida com o facto dos professores de Biologia poderem pertencer Ordem dos Bilogos (o que considerava privilgio exclusivo de cientistas) e com a existnciade um Colgio de Educao integrando professores de Biologia dos diferentes nveis de ensino.

    4.3.2. Concepes sobre o conhecimento cientfico e tecnolgico

    Catarina entende a cincia, simultaneamente, como um empreendimento humano (criadocom o intuito de tentar explicar tudo aquilo que nos envolve) e como um corpo deconhecimentos em constante mudana devido adio de novos dados e mudana deconhecimentos j existentes. Acredita que a evoluo da cincia est intimamente ligada aodesenvolvimento tecnolgico. Contudo, considera que o papel da tecnologia no se restringe concepo de tcnicas e de instrumentos necessrios ao empreendimento cientfico, permitindo,ainda, a construo de artefactos diversos teis melhoria da qualidade de vida da espciehumana e, infelizmente, a produo de armas de destruio macia.

    Nas suas aulas pretende veicular uma concepo de cincia como empreendimento em

    evoluo constante, fortemente dependente do contexto scio-cultural:

    Uma noo que eu tento transmitir aos alunos que a cincia est sempre em mudana.(...) E preciso contextualizar. Por exemplo, quando se fala de Galileu e da teoriaheliocntrica muito importante ensinar cincia e o contexto em que aquele conceito eaquela teoria surgiram para eles depois perceberem o relativo que a teoria que temosagora. (...) Hoje em dia, a sociedade e a cincia interligam-se cada vez mais.

    Catarina manifesta-se preocupada com a falta de informao da sociedade, em geral,sobre as potencialidades e as limitaes dos novos avanos cientficos e tecnolgicos. Consideraque a ignorncia acerca destas questes, afasta os cidados dos processos decisrios sobre as

    opes de desenvolvimento nestas reas, levando-os a aceitar acriticamente as opinies e asdecises veiculadas pela comunicao social.

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    uma coisa que me assusta, com a cincia no telejornal, por exemplo, quando se falaem organismos geneticamente modificados, OGMs, e se pede uma posio da sociedadeacerca desse tema. Ora bem, eu coloquei a questo: Pai e me, concordam?, e eles: Oqu?, O qu? Quando ns no conhecemos algo, as opinies que nos chegam nsabsorvemos como esponjas e assimilamo-las como nossas. preciso conhecer paratermos uma opinio fundamentada; a nossa opinio. Eu, por exemplo, sabia muito poucosobre OGMs, mas depois de saber o que que acontece para se fabricar um organismogeneticamente modificado... E ainda considero que a minha opinio passvel de seralterada, mas tenho as minhas reservas. Contudo, tenho uma opinio, que minha,porque conheo algumas coisas, e questiono as duas posies. Agora uma pessoa queno conhece nada, no questiona.

    Conseqentemente, atribui aos professores de cincias um papel decisivo na informaodos alunos acerca dos aspectos tcnicos, bem como das diferentes opinies e eventuaisimplicaes sociais e ambientais destas questes. Pensa, ainda, que numa poca marcada por um

    peso crescente da cincia na sociedade, os cientistas deveriam preocupar-se mais com adivulgao cientfica e tecnolgica e com o envolvimento dos cidados na discusso dasquestes scio-cientficas.

    o desafio que agora se pe aos professores de Cincias Naturais. Eu tenho alunosmeus que me perguntam: Ento mas o que isso de vrus? Isso perigoso, mortal? Eos midos sentem muita necessidade disso, e os pais no tm conhecimentos, easociedade no tem conhecimentos. urgente os cientistas virarem-se mais para asociedade e verem a importncia que a sociedade tambm tem na cincia. (...) Oscientistas so muito bons mas esto habituados a ficar l nos cubculos deles. E agora preciso comunicadores.

    Pessoalmente, sente algum receio relativamente s consequncias da modificaogentica de organismos e gostaria de dispr de mais informao acerca deste tema. No entanto,encara esta tecnologia como potencialmente perigosa e mais uma forma das multinacionais edos pases ricos obterem mais lucro e poder sobre os pases mais pobres. Na sua opinio, aeliminao das carncias alimentares de muitos pases em vias de desenvolvimento passa poruma distribuio mais equilibrada e justa dos alimentos disponveis no planeta e no pelaproduo de OGMs.

    No que respeita a outras questes polmicas recentes relacionadas com cincia etecnologia (nomeadamente, a possibilidade de transmisso da Encefalopatia Espongiforme dos

    bovinos para o ser humano e a utilizao de nitrofuranos antibiticos cancergenos naproduo avcola) confessa-se igualmente preocupada. Como forma de precauo, optou pordeixar de consumir carne de vaca e de frango.

    Catarina acredita que as suas ideias acerca da cincia so influenciadas pela anlisecrtica das leituras que efectua (livros e revistas cientficas) e da informao veiculada pelosmeios de comunicao social. Na sua opinio, os conhecimentos cientficos adquiridos(conhecimentos substantivos) tanto na sua formao universitria como ao longo da vida sodecisivos para a compreenso do empreendimento cientfico. No entanto, lastima nunca ter tidoa oportunidade de discutir aspectos processuais ou da natureza da cincia nas disciplinas dafaculdade.

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    4.3.3. Concepes sobre o ensino das Cincias Naturais

    Na opinio desta professora, o ensino das Cincias Naturais imprescindvel compreenso do mundo em que vivemos e da complexa rede de interaces existente entre osseus diferentes elementos (geolgicos, biolgicos, humanos), bem como promoo de atitudesde respeito e de preservao do equilbrio ambiental.

    Catarina acredita que a aprendizagem das cincias deve passar pela aco.Consequentemente, defende a realizao de sadas de campo, visitas de estudo e trabalholaboratorial, ou seja, actividades que, para alm de motivarem os alunos, permitem oconhecimento concreto do meio envolvente e o estabelecimento de relaes entre teoria eprtica. No entanto, confessa falta de tempo para as realizar e alguma dificuldade em atingir osobjectivos pretendidos pois, frequentemente, os alunos encaram estas actividades comomeramente ldicas, no se apropriando dos conceitos envolvidos.

    Para mim lgico utilizar a prtica, porque acho que a prtica serve a teoria, so duascoisas que no se podem separar. Mas a prtica s tem lgica se for vista depois luz da

    teoria e para explicar a teoria, e a teoria tambm fundamental para a prtica, mas osalunos, por mais que eu tentasse eles achavam que a prtica era ldica.

    Afirma, ainda, que a falta de autonomia e as dificuldades de interpretao manifestadaspelos seus alunos restringem a diversidade das actividades que prope nas suas aulas.Frequentemente, opta por envolver o conjunto dos seus alunos na leitura e discusso de textos(nomeadamente, algumas histrias da sua autoria), seguida de um questionrio oral ou escrito.

    Fala-se muito em ensino individualizado mas isso pressupe j alguma autonomia queos alunos no tm. Ento, todo o trabalho tem que ser feito em grupo turma... asdiscusses, as tais histrias que eles lem e, depois, todos em conjunto respondemos s

    questes. (...) No tm hbitos de trabalho e tm dificuldades em termos de interpretaoe de raciocnio.

    Atravs das histrias e das curiosidades que apresenta aos seus alunos procura realar arelevncia dos contedos programticos para a compreenso do dia-a-dia e a resoluo dosproblemas ambientais que afectam a Terra. Simultaneamente, nunca deixa de discutir asquestes apresentadas pelos seus alunos, o que, na sua opinio, acaba por limitar o tempodisponvel para a realizao de actividades laboratoriais:

    Tenho muita dificuldade em gerir o tempo porque nunca gosto de cortar o aluno e,ento, h aulas em que eles trazem a trombose da av, ou se est a falar da doena das

    coronrias da tia. Aproveito sempre essas questes e ento a conversa prolonga-se,prolonga-se, prolonga-se e, portanto, a prtica tem sido algo que falha.

    Apesar das crticas relativamente falta de autonomia dos seus alunos, no poderCatarina contribuir, involuntariamente, para a manuteno desta situao? Uma parteconsidervel das aulas de Catarina ocupada com respostas a questes apresentadas pelosalunos, acabando por reflectir o seu modelo ideal de professor: O que eu mais gosto soaqueles professores que se nota que sabem muito (...) e que conseguem fascinar os seus alunos.As questes dos alunos, em vez de serem aproveitadas como catalizadores de actividades depesquisa (promotoras da autonomia), desencadeiam sobretudo explicaes por parte daprofessora. Desta forma, Catarina poder, simultaneamente, deslumbrar os alunos com a sua

    sabedoria mas reforar a dependncia destes relativamente aos seus conhecimentos eraciocnios. Ser que (ao contrrio do que espera) em vez de aproximar os alunos do

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    empreendimento cientfico, no acabar por afast-los, apresentado a cincia como um conjuntocomplexo de conhecimentos que apenas est ao alcance de alguns iniciados que estudarammuito, nomeadamente, os professores e os cientistas (que Catarina tanto admira)?

    4.3.4. Concepes sobre a discusso de assuntos controversos na sala de aula

    Catarina identifica no currculo de Cincias Naturais dos 7, 8 e 9 anos vrios tpicosque permitem a discusso de assuntos controversos: a alimentao, o corpo humano, osecossistemas e a preservao ambiental. Nas suas aulas, estes contedos curriculares tmfacilitado a discusso de diversas questes controversas actuais, muitas das quais sugeridaspelos prprios alunos: os distrbios alimentares (obesidade, bulimia, anorexia), os efeitos dosnitrofuranos no organismo humano, o impacto ambiental do petrleo derramado pelo Prestige, apropagao da pneumonia atpica, entre outros. A discusso de assuntos da actualidade,frequentemente controversos, representa uma fraco significativa das suas aulas; as questessuscitadas pelos alunos, desde que ligeiramente relacionadas com o assunto da aula, so sempreexploradas por esta jovem professora.

    H aquelas questes que eles me trazem: O que isso de cancro? O que um vrus?L est, so as notcias que eles ouvem e que eles no compreendem. (...) Raramentecalo um aluno. H um que me pergunta, quando estamos a falar de vasos sanguneos: Oque uma trombose?, Olha, um vaso sanguneo que... e pode afectar.... (...) Soaquelas conversas que comeam aqui e acabam sei l onde.

    Esta professora acredita que estas conversas permitem desenvolver nos alunos oesprito de curiosidade, de querer saber mais e de no ficarem pela primeira coisa que lhesdigam. Para tal, procura sempre apresentar diferentes opinies sobre cada questo: No lhesdigo a minha posio at porque no isso que est em causa, mas dou-lhes os dois lados da

    questo e eles agora que decidam, mas j tm formas de decidir. Por vezes, quando os temasso por si propostos, a discusso centra-se no contedo de um programa televisivo gravado emvdeo. No entanto, a maioria dos temas abordado mediante um tipo de interaco alternandoperguntas (formuladas pelos alunos) e respostas (apresentadas pela professora).

    4.3.5. Prtica lectiva

    A prtica de sala de aula de Catarina influenciada por uma concepo de alfabetizaocientfica que, apesar de algumas afirmaes em contrrio, se centra fortemente na apropriaode conhecimentos cientficos. Atravs da apresentao de curiosidades e da evidenciao darelevncia de cada tpico curricular, esta professora pretende apaixonar os seus alunos pelas

    Cincias Naturais e estimul-los a aprofundarem os seus conhecimentos. Contudo, geralmente,a curiosidade dos alunos imediatamente satisfeita atravs de respostas da professora em vez deconstituir um pretexto para a realizao de actividades de pesquisa, promotoras do tipo decompetncias (de leitura, seleco e anlise de informao) que ela prpria identifica comoprioritrias. Assim, at que ponto no poder acabar por estimular o estado de dependnciaintelectual que identifica e critica nos seus alunos?

    Catarina apresenta a cincia como um conjunto de conhecimentos (eventualmente,interessantes e deslumbrantes) que os cidados devem dominar em virtude da sua relevnciasocial. A sua prtica de sala de aula orienta-se, essencialmente, para os produtos doempreendimento cientfico (e os seus benefcios sociais), praticamente ignorando os aspectos

    processuais e epistemolgicos da cincia cujo conhecimento se revela decisivo para acompreenso e discusso das questes scio-cientficas pela populao.

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    5. Consideraes finais

    Os professores entrevistados (Ins, Paulo e Catarina) acreditam que os avanoscientficos e tecnolgicos representam, simultaneamente, uma fonte de progresso e depreocupao. A noo de progresso resulta do seu impacto na melhoria da qualidade de vida; apreocupao deve-se, fundamentalmente, aos reais ou eventuais efeitos colaterais negativos sobre o indivduo, a sociedade e o ambiente associados a vrias tecnologias. Na opinio destesprofessores, esta dualidade notria em questes como a engenharia gentica (nomeadamente, aintroduo no ambiente de seres vivos geneticamente modificados e o consumo de alimentostransgnicos), a clonagem e a co-incinerao de resduos txicos em cimenteiras. As questescontroversas suscitadas por algumas destas tecnologias nomeadamente os seus eventuaisimpactos ambientais, sociais e culturais e veiculadas pelos meios de comunicao social, paraalm de terem reforado a dualidade de sentimentos relativamente cincia e tecnologia,desencadearam nestes professores a ideia da necessidade de uma alfabetizao cientficaalargada que capacite a populao para a compreenso e a tomada de decises e de aces

    relativamente a estas temticas. Todos eles acreditam que esta alfabetizao cientfica imprescindvel: a) anlise crtica da grande quantidade de notcias sobre controvrsias scio-cientficas (frequentemente, incorrectas do ponto de vista cientfico, tendenciosas e maispreocupadas em garantir audincias do que em informar a populao) divulgadas pelos meios decomunicao social; e b) participao activa dos cidados em processos decisrios sobre estasquestes.

    Contudo, o conceito de alfabetizao cientfica parece ter significado distinto para osprofessores participantes neste estudo. Do discurso de Catarina depreende-se uma concepo dealfabetizao cientfica algo restrita, associada ao conhecimento dos aspectos cientficossubjacentes s diferentes problemticas com que os alunos podem ser confrontados. Nas suas

    aulas, a abordagem de controvrsias scio-cientficas surge de forma no planeada, despoletadapor perguntas dos alunos, e assume a forma de sesses de esclarecimento centradas quaseexclusivamente em conhecimento substantivo e ignorando as dimenses processual eepistemolgica da cincia. Estas sesses, so bastante apreciadas por Catarina (que se senteestimulada pela curiosidade manifestada pelos seus alunos), mas so entendidas como desviosaos planos de aulas que no costumam incluir actividades deste tipo.

    O conceito de alfabetizao cientfica defendido por Paulo e Ins bastante mais amplo,envolvendo, no s o conhecimento da componente substantiva (os conceitos, os factos e asteorias cientficas), mas tambm outros aspectos como: a) a construo de conhecimento acercado funcionamento da cincia; b) a promoo de capacidades de pensamento crtico que

    permitam, nomeadamente, a avaliao de questes scio-cientficas; e c) a compreenso dasinteraces entre a cincia, a tecnologia e a sociedade (com especial nfase nas implicaesticas da cincia e da tecnologia). Na opinio destes dois professores, a discusso de questesscio-cientficas na sala de aula indispensvel nas aulas de Cincias Naturais pois, para almde permitir desenvolver capacidades e construir conhecimentos relevantes para a vida eindispensveis a uma cidadania plena, proporcionam uma vivncia real do que a cincia: umempreendimento humano, complexo e dinmico que envolve questes de valor, o que originadivergncia de opinies entre cientistas de acordo com as suas crenas e princpios. Logo, nassuas aulas, a discusso destas questes est prevista nas suas planificaes como uma actividadeque permite simultaneamente: a) a construo de conhecimentos de cincia e sobre cincia;b) a promoo de capacidades de anlise, discusso e avaliao de informao, de tomada de

    decises e de resoluo de problemas; e c) a promoo de valores como o respeito, a cooperaoe a tolerncia.

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    As diferentes concepes de alfabetizao cientfica evidenciadas traduzem-se emconcepes curriculares distintas. No caso de Catarina, o currculo parece ser entendido,fundamentalmente, como um conjunto de conhecimentos cientficos substantivos consideradosindispensveis compreenso do mundo. Nos casos de Ins e Paulo, o currculo assume umadimenso bastante mais ampla, englobando a construo de conhecimentos de cincia esobre cincia e a promoo de capacidades e atitudes diversas. Enquanto que a prtica de salade aula de Catarina se centra, essencialmente, na apropriao de conhecimentos atravs daexposio e da observao directa dos factos e dos fenmenos, as prticas de Ins e de Pauloincidem tambm na promoo de vrias capacidades e atitudes atravs da realizao de umleque diversificado de actividades de discusso e de pesquisa. Desta forma, as prticas destesdois professores evidenciam, nitidamente, uma concepo de currculo como gerador decompetncias, que enfatiza as possibilidades dos professores gerirem os contedos eseleccionarem as experincias educativas de acordo com os objectivos educativos consideradosprioritrios e as caractersticas especficas dos alunos e dos contextos onde trabalham.

    Os trs professores assumem-se, de formas e graus distintos, como construtores decurrculo, abandonando o papel de simples executores, orientados, exclusivamente, pelasdirectrizes (os tpicos curriculares) provenientes do ministrio (Apple, 1997; Roldo, 1998,1999). Todos alteram/(re)constroem/desenvolvem os currculos, de forma a encontrarem oscaminhos mais adequados s metas que definem, diminuindo o que Roldo (1999) refere como osndroma do cumprimento dos programas (p. 45). No entanto, a forma como o fazem variaconsideravelmente. Enquanto que as alteraes efectuadas por Catarina se restringem variedade de tpicos abordados, as modificaes propostas por Ins e Paulo vo mais alm,incidindo tambm nas metodologias e actividades que propem aos seus alunos.

    Constata-se que as controvrsias recentes em torno de questes cientficas e tecnolgicas

    parecem ter tido impacto nas prticas de sala de aula dos professores participantes no estudo. Noseu conjunto, todos reconhecem a importncia da realizao de actividades de discusso (formalou informal) destes assuntos controversos nas aulas de Cincias Naturais, atribuindo-lhespotencialidades:

    a) Na construo de uma cultura cientfica indispensvel a uma cidadania participativa;b) Na construo de conhecimentos relevantes para a vida em sociedade, transmitindo

    a ideia de que a escola no uma coisa parte, dissociada da vida real;c) Na motivao dos alunos e na estimulao da sua curiosidade;d) No desenvolvimento intelectual dos alunos, nomeadamente, atravs da promoo de

    capacidades de pensamento crtico;

    e) No desenvolvimento moral dos alunos atravs da clarificao de valores;f) Na construo de um conceito de cincia como empreendimento: (1) humano,influenciado por valores; e (2) colectivo, cujo avano depende decisivamente dadiscusso de ideias e de opinies;

    g) Na mudana de um conceito de cincia como disciplina bem delimitada, comrespostas seguras em que a incerteza, a dvida e o debate no so admissveis.

    No entanto, apesar da importncia que todos os professores atribuem discusso deassuntos controversos nas aulas de cincias, vrios factores parecem dificultar a sua realizao,especialmente no ensino secundrio:

    a) A grande extenso dos programas resultante da quantidade elevada de termos,conceitos, factos e teorias que incluem que no facilita a criao dos temposindispensveis concretizao deste tipo de actividades;

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    b) O facto dos programas no inclurem temas explicitamente controversos nomeadamente, muitos dos novos avanos na rea da biotecnologia associado dificuldade manifestada por alguns professores na identificao de tpicos que seadeqem ou permitam a realizao de actividades de discusso; e

    c) O tipo de exame nacional proposto que induz os professores na preparao dos seusalunos para um tipo de avaliao centrado, quase por completo, na memorizao e,praticamente nada, na anlise crtica.

    Contudo, apesar das dificuldades impostas por estes factores, o principal obstculo realizao de actividades de discusso de questes scio-cientficas parece ser a concepo decada professor acerca do ensino, da aprendizagem e do currculo. semelhana de algunsresultados obtidos por Lederman (1999), a prtica pedaggica dos trs professores participantesneste estudo foi fortemente influenciada pelos objectivos educacionais definidos por cada umdeles. No caso da Catarina, a sua prtica foi marcada pelo objectivo que definiu para as suasaulas: reforar os conhecimentos cientficos dos seus alunos. Nos casos do Paulo e de Ins, a suaprtica parece ter sido influenciada pelo objectivo educacional que defendem acerrimamente:

    ajudar os alunos a construrem uma ideia mais real do que a cincia.Verifica-se que os diferentes percursos pessoais e profissionais de Ins, Paulo e Catarina

    se traduziram no desenvolvimento de concepes distintas acerca do currculo, do ensino e daaprendizagem das Cincias Naturais. Para alm de outros aspectos particulares da vida de cadaum destes professores, tanto a formao inicial como o estgio pedaggico parecem assumir-secomo momentos marcantes no desenvolvimento destas concepes. A grande sensibilidade deIns relativamente dimenso tica da cincia, evidente mesmo antes do seu ingresso nauniversidade, influenciou fortemente todo o seu desenvolvimento profissional, reflectindo-sefortemente nas suas concepes e prtica lectiva. O desenvolvimento moral e tico dos alunosconstitui, para esta professora, uma das principais finalidades do ensino das cincias.

    Consequentemente, interpreta e (re)constri constantemente os currculos das disciplinas quelecciona de forma a encontrar o espao e a privilegiar as metodologias e actividades maisadequadas promoo daquelas dimenses (nomeadamente, as discusses sobre questesscio-cientficas).

    Quanto a Paulo, o estgio pedaggico revelou-se decisivo na construo das suasconcepes acerca do currculo, do ensino e da aprendizagem. A observao e discusso dasconcepes e da prtica lectiva do seu orientador de estgio desencadearam uma reflexoprofunda sobre as finalidades do ensino das Cincias Naturais e a importncia do trabalho degrupo e da discusso na veiculao de uma concepo de cincia como empreendimentocaracterizado pela interaco e diferena de opinies (e, eventualmente, controverso). O estgio

    pedaggico representou, ainda, um espao privilegiado para o desenvolvimento deconhecimento didctico necessrio gesto de actividades de trabalho colaborativo,nomeadamente, de discusso.

    Outro aspecto que parece ter influenciado as concepes e prtica lectiva tanto de Inscomo de Paulo foi a frequncia da disciplina de Didctica da Biologia durante a sua formaoinicial. Esta disciplina ter assumido um papel importante na construo de conhecimentodidctico sobre a importncia da abordagem de aspectos processuais e epistemolgicos dacincia e as estratgias, metodologias e actividades mais adequadas ao ensino destas dimensesem contexto de sala de aula. Muitos destes conhecimentos tm sido integrados por estesprofessores na sua prtica lectiva.

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    Quanto a Catarina, a ausncia de reflexo sobre as dimenses processual eepistemolgica da cincia (e a importncia da sua abordagem no ensino das cincias), teveconsequncias notrias ao nvel das suas concepes e prtica de sala de aula. Tanto a suaformao acadmica como o seu estgio pedaggico parecem ter contribudo para a construode uma concepo de currculo centrada fortemente na apropriao de conhecimentossubstantivos da cincia. Esta concepo curricular, associada a um repertrio bastante limitadode conhecimento sobre a natureza da cincia e de conhecimento didctico sobre o ensino destadimenso da cincia, poder explicar uma prtica lectiva dominada pelos aspectos factuais dacincia.

    Estes casos evidenciam a relevncia da formao inicial e do perodo de estgio nodesenvolvimento de competncias profissionais necessrias realizao de um ensino dasCincias Naturais que, proporcionando uma imagem mais esclarecedora e real doempreendimento cientfico, capacite os cidados para a anlise crtica de questesscio-cientficas controversas. Os casos sugerem, ainda, a importncia da realizao deiniciativas de formao contnua que facilitem o desenvolvimento dessas competncias nos

    actuais professores. Compete s instituies de formao promover, nos futuros e nos actuaisprofessores, as competncias profissionais necessrias concretizao deste objectivo,nomeadamente, atravs de experincias de desenvolvimento pessoal e profissional queproporcionem: a) conhecimentos substantivos, processuais e epistemolgicos da cincia; b)conhecimentos didcticos sobre as abordagens, metodologias e actividades mais adequadas aoensino