versões e controvérsias sobre 1964

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    EFEMRIDES

    Em 7 de setembro de 1972, a ditadura militar tomou conta das comemo-raes da principal efemride do perodo: o Sesquicentenrio da Indepen-dncia do Brasil. As festas tiveram um carter oficial e algo sombrio: o gene-ral Mdici presidiu um desfile na avenida Paulista, vendedores ambulantesofereciam monculos com a fotografia de dom Pedro I e o principal ato sim-blico da comemorao foi a lgubre cerimnia de translao de parte docorpo do imperador (o corao ficou em Portugal) para a capela do Monu-mento do Ipiranga depois de os despojos mortais terem peregrinado por to-do o pas.

    No cabvel celebrar um golpe de Estado como o de 31 de maro de1964, mas estes quarenta anos tambm podem ser caracterizados como umaefemride, se pensarmos no sentido que a expresso assumiu para os histo-riadores brasileiros, principalmente a partir de meados dos anos 80 depoisdo fim do regime militar , quando tivemos o Bicentenrio da ConjuraoMineira (no mesmo ano do Bicentenrio da Revoluo Francesa), o Cente-nrio da Abolio da Escravido e o da Proclamao da Repblica, apenas pa-

    ra citar as mais importantes. Muitos eventos e publicaes marcaram as da-

    Verses e controvrsias sobre 1964

    e a ditadura militarCarlos Fico1

    UFRJ

    RESUMO

    O principal objetivo deste artigo expore discutir as mais importantes correntesda historiografia sobre o Golpe de 1964e confrontar algumas questes contro-

    vertidas sobre represso poltica, censu-ra e outros temas da ditadura militar.Palavras-chave: Historiografia; Golpe deEstado; Ditadura militar.

    ABSTRACT

    The main purpose of this article is to pre-sent and discuss the principal trends ofhistoriography or Brazilian 1964 coupdtat and discuss some controversial

    questions censorship, political repressionand other subjects concerning Brazilianmilitary dictatorship history.Keywords: Historiography; Braziliancoup dtat; Dictatorship History.

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 24, n 47, p.29-60 - 2004

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    tas, fomentando pesquisas, debates e revises. O ano de 2004 pontuado poraniversrios importantes, como os cinqenta anos do atentado da rua Tone-lero e do suicdio de Getlio Vargas ou os vinte das Diretas, J!, campanhalanada em 1983, mas que cresceu em 1984. Portanto, muito oportuno queaproveitemos para fazer um balano da produo relacionada a 1964 (e seusdesdobramentos) efemride aqui entendida como fato importante, embo-ra no grato.

    Tem sido notvel, neste ano, o interesse despertado pelos eventos de to-da sorte que vo marcando a data, diferentemente de dez anos atrs, quandoseminrios acadmicos sobre os trinta anos do golpe de 64 tiveram de ser can-celados ou contaram com baixa freqncia de pblico. Milhares de pessoas,na maioria jovens, tm comparecido a debates em todo o Brasil. A imprensaacompanha com interesse atividades acadmicas regra geral ignoradas. V-rias publicaes voltadas para o tema tm sido lanadas. Qual a causa de ta-manha aceitao? A explicao certamente fundamenta-se no fato de que ve-lhos mitos e esteretipos esto sendo superados, graas tanto pesquisahistrica factual de perfil profissional quanto ao que poderamos caracterizarcomo um desprendimento poltico que o distanciamento histrico possibi-lita: tabus e cones da esquerda vo sendo contestados sem que tais crticaspossam ser classificadas de reacionrias. Processa-se uma mudana geracio-nal, sendo cada vez mais freqente que pesquisadores do tema no tenham

    parti pris. Nesse sentido, tem sido destacado o pequeno apreo dos principaisatores histricos do perodo do golpe de 64 pela democracia (inclusive a es-querda);2 o deslocamento de sentido, operado sobretudo aps a Campanhada Anistia, relativo s esquerdas revolucionrias que foram para a luta arma-da, outrora apresentadas como integrantes da resistncia democrtica;3 o per-fil vacilante, a inabilidade e o possvel golpismo de Joo Goulart, diferente-mente do mito do presidente reformista vitimado por reacionrios,4 e assim

    por diante. Ao mesmo tempo, clichs sobre o golpe de 64, os militares e o re-gime tambm vo sendo abandonados, como a idia de que s aps 1968 hou-ve tortura e censura; a suposio de que os oficiais-generais no tinham res-ponsabilidade pela tortura e o assassinato poltico,5 a impresso de que asdiversas instncias da represso formavam um todo homogneo e articula-do,6 a classificao simplista dos militares em duros ou moderados etc.Por tudo isso, podemos falar de uma nova fase da produo histrica sobre operodo.

    Tambm crescente o interesse de jovens historiadores e de estudantesde cursos de graduao em histria pelos temas do perodo 1964-1985. A op-

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    o radicaliza, por assim dizer, o acerto da hiptese avanada pelo saudosoJos Roberto do Amaral Lapa, quando previu, ainda em 1976, que o predo-mnio dos estudos sobre a fase colonial seria suplantado pelas pesquisas so-bre o perodo republicano.7 Ele falava em uma espcie de conspirao anti-contempornea, pois, at aquela poca, catedrticos passadistas induziam ou quase impunham o estudo dos fatos histricos mais remotos, enobre-cidos pela ptina do tempo. Num primeiro momento (anos 80), avultaramos estudos sobre a Primeira Repblica, destacando temas como o surgimentodo movimento operrio. Hoje em dia, notvel a quantidade de pesquisas so-bre questes recentssimas da histria do Brasil, o que deve ter sido estimula-do pelo interesse que a melanclica trajetria nacional contempornea como dizia o tambm saudoso Francisco Iglsias8 suscita.

    A abordagem propriamente histrica da ditadura militar recente. Po-deramos dizer que se trata de uma espcie de movimento de incorporao,pelos historiadores, de temticas outrora teorizadas quase exclusivamente porcientistas polticos e socilogos e narradas pelos prprios partcipes. De fato,a literatura sobre o golpe de 64 e o regime que o sucederia ficaria marcada,em uma primeira fase, por dois importantes gneros. O primeiro foi uma es-pcie de politologia: inspirados sobretudo pela vertente norte-americana daCincia Poltica, muitos estudiosos buscaram explicar e classificar, em termosquase nominalistas, as crises militares de pases como o Brasil. Seriam os mi-litares uma instituio autnoma, marcada pelo isolamento e unidade, ou es-tariam a servio de determinados grupos sociais? Um nico modelo tericodaria conta de explicar, por exemplo, os regimes militares latino-americanos?Haveria alguma singularidade no caso brasileiro? Esses debates, que produzi-ram expressiva bibliografia, nunca chegaram a verdadeiramente animar oshistoriadores, mas pelo menos uma contribuio significativa para o enten-dimento do golpe foi dada por essa corrente como se ver.

    O segundo gnero predominante no que poderia ser caracterizado co-mo primeira fase dos estudos sobre o perodo foi a memorialstica, que cres-ceu sobretudo a partir da distenso poltica patrocinada pelo governo de Er-nesto Geisel. Foi, de algum modo, a primeira tentativa de construo de umanarrativa histrica sobre o perodo, embora j existisse uma ou outra incur-so nesse sentido, especialmente no que se refere ao governo Goulart e suaruna.9 Foi essa memorialstica que constituiu o primeiro conjunto de versessobre a ditadura militar, algumas das quais se revelariam mitos ou estereti-

    pos. Do ponto de vista oficial, livros como os de Lus Viana Filho, chefe daCasa Civil de Castelo Branco, e de Daniel Krieger, lder do governo no Sena-

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    do,10 serviram para construir o perfil do primeiro general-presidente comomoderado e legalista. Pouco tempo depois sairiam os de Jayme Portella deMello e Hugo Abreu,11 destacando diferenas que desmentiam a unidade mi-litar. Do lado da esquerda, depoimentos como os de Fernando Gabeira e Al-fredo Sirkis12 que foram grandes sucessos editoriais contribuiriam paraa mitificao da figura do ex-guerrilheiro, por vezes tido como um ingnuo,romntico ou tresloucado, diludo no contexto cultural de rebeldia tpico dosanos 60, algo que no condiz com as efetivas motivaes da assim chamadaluta armada expresso que, diga-se, traduz mal as descontinuadas e in-certas iniciativas militares da esquerda brasileira de ento, pois, nas cidades,tais incurses mais se assemelhavam a algum tipo de contrapropaganda, ten-do o aspecto de crimes comuns (assaltos a bancos e seqestros) e, no campo,ficaram marcadas pela inpcia e carter absconso, nada obstante, infelizmen-te, terem causado a morte de muitas pessoas.

    CONTROVRSIAS

    As mencionadas moderao de Castelo e transmutao da luta arma-da em resistncia democrtica so apenas dois exemplos de lista bem mais

    extensa de conflitos suscitados pela memorialstica. Poderamos falar de umesgotamento do gnero? Com o passar do tempo, natural que os depoimen-tos rareiem e de algum modo tornem-se iterativos, sendo este o caso, porexemplo, dos testemunhos sobre a luta armada. Segundo Jacob Gorender,do lado da esquerda, certamente no esto esgotadas as fontes capazes defornecer revelaes significativas, mas o principal j foi extrado dessas fon-tes. Ficaram por esclarecer detalhes, sobretudo concernentes a atuaes indi-viduais.13 No se trata de desqualificar o gnero, mas de bem entend-lo, pois

    as memrias (oficiais, da esquerda e de outros grupos sociais) so antes obje-tos de anlise do que fontes de acesso a uma suposta verso verdadeira. Veja-mos algumas verses que, por repetio, fixaram-se no senso comum comoaceitas.

    Reiteradamente caracterizado como legalista e moderado, o perfil deCastelo Branco serviu at mesmo para adjetivar um conjunto de militares quecom ele partilhariam uma formao intelectual mais refinada (diferentemen-te dos troupiers, propensos a aes prticas e mtodos violentos), um apego

    s normas legais e uma forma mais branda de tratar os inimigos da revolu-o. Atributos to atraentes parecem derivar muito mais da benevolncia dos

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    bigrafos que o beneficiaram do que propriamente de uma anlise do desem-penho do primeiro general-presidente. Castelo Branco, como se sabe, foi es-colhido para a Presidncia da Repblica contra a vontade do general Costa eSilva, que, nas primeiras horas aps o golpe, autonomeara-se comandante-em-chefe do Exrcito Nacional e lder do Comando Supremo da Revolu-o. Se a escolha de seu nome (que o prprio Castelo articulou com compe-tncia entre polticos civis) impediu a imediata ascenso de Costa e Silva(nomeado apenas ministro da Guerra), durante o seu governo Castelo noconseguiu, como pretendia, interromper a temporada de punies revolu-cionrias; proibiu atividades polticas dos estudantes; decretou o AI-2; nologrou impedir que militares radicais conquistassem poder poltico; ajudou aredigir e assinou a Lei de Segurana Nacional que instituiu a noo de guer-ra interna; fechou o Congresso Nacional e decretou uma Lei de Imprensarestritiva. Alm de tudo, foi conivente com a tortura, que j era praticada nosprimeiros momentos aps o golpe ( costume afirmar-se que a tortura s setornaria freqente no ps-68). De fato, diante das acusaes que irrompiamna imprensa, Castelo viu-se obrigado a mandar seu chefe da Casa Militar o futuro presidente Ernesto Geisel averiguar os fatos. Geisel voltou tergi-versando e Castelo omitiu-se. Como se no bastasse, teve de admitir ser suce-dido por aquele que se tornara o condestvel de seu governo precisamenteo general Costa e Silva.

    A contestao dessa leitura corrente sobre a moderao de Castelo no apenas mais uma disputa de memria, pois, felizmente, hoje, ampara-se empesquisas profissionalmente conduzidas.14 Trata-se de um pressuposto bsicopara firmar-se uma interpretao que se baseia em pesquisas ainda incipien-tes: o entendimento do regime militar como o da trajetria de surgimento,ascenso, auge e decadncia do setor conhecido como linha dura. Ter sido ofracasso de Castelo de pr cobro aos anseios punitivos de militares radicali-

    zados que fomentou o crescimento do que ento se chamava de fora aut-noma, que se autonomeara verdadeira guardi dos princpios da revoluo,e que se tornaria, paulatinamente, um grupo de presso muito eficaz (capaz,por exemplo, de reabrir a temporada de punies com o Ato Institucional n2, em 27 de outubro de 1965) e, posteriormente, institucionalizar-se-ia comoas famosas comunidade de segurana e comunidade de informaes. Cas-telo foi complacente com as arbitrariedades da linha dura, no teve foras pa-ra enfrent-la e permitiu, assim, que o grupo de presso fosse conquistando,

    paulatinamente, mais espao e poder. Essa evoluo essencial para bem ca-racterizar diversos outros episdios do perodo, pois informa que o projeto

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    repressivo baseado numa operao limpeza violenta e longeva estava pre-sente desde os primeiros momentos do golpe. Assim, o Ato Institucional n 5foi o amadurecimento de um processo que se iniciara muito antes, e no umadecorrncia dos episdios de 1968, diferentemente da tese que sustenta a me-tfora do golpe dentro do golpe, segundo a qual o AI-5 iniciou uma fasecompletamente distinta da anterior. Trata-se de reafirmar a importncia, co-mo projeto, do que se pode chamar de utopia autoritria,15 isto , a crenade que seria possvel eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo,subverso, corrupo) tendo em vista a insero do Brasil no campo dademocracia ocidental e crist.

    Tal crena empolgava de maneira diferente os diversos grupos militares,sendo tambm uma simplificao forjada pelas primeiras e mais apressadasleituras a dicotomia linha dura versusmoderados (ou castelistas). Osmilitares (e os civis) diretamente envolvidos em tortura e assassinato polticoforam poucos. Eram aqueles que, aps 1968, integravam as turmas de captu-ra e interrogatrio do sistema Codi-Doi ou suas equivalentes das instnciasestaduais da represso (Dops), alm dos centros de informaes dos minist-rios militares. Essa percepo no uma forma de minimizar o envolvimentodos militares com a represso violenta, mas uma maneira de refinar a anliseque se possa fazer do perodo, pois bvio que muitos militares aderiram utopia autoritria admitindo a tortura e o extermnio (como o caso doex-presidente Ernesto Geisel, tido como moderado) sem praticar martrioscom as prprias mos. Outros tambm eram adeptos do pensamento segun-do o qual deveriam ser eliminados os bices ao objetivo nacional perma-nente de transformao do Brasil em uma potncia mundial, mas essa eli-minao deveria pautar-se por critrios no violentos. Alguns no aderiam atal projeto, sobretudo jovens oficiais da metade final da ditadura que perma-neciam omissos, preferindo cuidar de suas carreiras. Havia, igualmente, mili-

    tares decididos a passar para a reserva caso fossem instados a acobertar atosde tortura,16 mas foram poucos os casos de denncia ou oposio explcita, oque revela a existncia de uma grande quantidade de militares coniventes.Existem muitas tentativas acadmicas de criao de uma tipologia dos gru-pos militares, tarefa algo difcil, como se v pela multiplicidade de exemploslistados, mas certamente deve ser abandonada a diviso duros/moderados.At porque a posio em relao tortura apenas um dos critrios possveisde classificao, havendo a necessidade de tambm se considerar outros fato-

    res, como formao militar, laos de lealdade e posio em relao ao desen-volvimento econmico do pas. Como se sabe, h diferenas significativas en-

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    tre militares formados nesta ou naquela instituio, tanto quanto havia bas-tante controvrsia quanto ao papel do capital estrangeiro no crescimento doBrasil. Aspecto ainda mais complexo, as redes de lealdade que se estabelecementre camaradas de caserna muitas vezes suplantam ou ignoram diferenaspolticas ou ideolgicas.17

    Certamente, porm, o posicionamento em relao represso violenta um dos aspectos mais importantes para se entender os grupos militares de en-to. Guarda relao direta com esse tema a idia, muito repetida nas mem-rias de militares, segundo a qual a tortura e o extermnio seriam da responsa-bilidade de subalternos, praticantes de excessos que teriam constitudo ummodo desvirtuado de levar a cabo a represso, sem a aprovao dos oficiais-generais tese que chegou a ser admitida por analistas importantes. 18 A ver-so talvez possa ser admitida para os primeiros momentos aps o golpe, quan-do houve a necessidade da j mencionada Misso Geisel.Mas ela no se sustentapara o perodo posterior ao AI-2 e, sobretudo, implantao do Sistema Co-di-Doi (1969 em diante). Como se sabe, esse sistema implantou uma polciapoltica bastante complexa no pas que mesclava polcia civil, polcia mili-tar, militares das trs foras e at mesmo bombeiros e polcia feminina efoi responsvel pelos principais episdios de tortura e extermnio. Represen-tou a vitria completa da antiga fora autnoma. As turmas de busca e in-terrogatrio faziam o trabalho sujo que a utopia autoritria pressupunha.19

    Assim, em funo de suas necessidades intrnsecas, essa polcia polticaatuava com grande liberdade de ao, at mesmo porque no poderia ser deoutra forma, sob pena de perder oportunidades, quebrar o sigilo de opera-es secretas etc. Mas no se deve confundir a independncia operacionalcomque trabalhava a polcia poltica com uma suposta autonomiaem relao aosoficiais-generais. A tortura e o extermnio eram aceitos pelos comandantes egovernos militares, como hoje j se comprovou. Curiosamente, tanto para os

    linhas-duras apenas ideolgicos (militares radicalmente contrrios sub-verso mas que no atuavam diretamente na represso) quanto para os prag-mticos rigorosos (supostos moderados, como Ernesto Geisel, que no entan-to admitiam a tortura e o assassinato como necessidade conjuntural), a torturatinha o mesmo significado: era um mal menor. Seguramente cabe nuanara questo, pois certo que, na cabea de alguns militares, havia diferenas en-tre matar um guerrilheiro no Araguaia e torturar um estudante comunistapreso no Rio ou em So Paulo. Este um aspecto importante para a conside-

    rao, por exemplo, da lamentvel conversa, revelada por Elio Gaspari, queErnesto Geisel teve com o general Dale Coutinho quando o convidou para

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    ser seu ministro do Exrcito.20 Mas a tese dos excessos, hoje em dia, apenasuma tpica de um discurso fraudulento. Conta, at mesmo como todobom esteretipo , com premonies: o vice-presidente Pedro Aleixo, quan-do da reunio do Conselho de Segurana Nacional que aprovou o AI-5, disseno temer a aplicao do Ato pelas mos honradas de Costa e Silva, mas aatuao do guarda de esquina. Ao contrrio, hoje podemos afirmar, basea-dos em evidncias empricas, que a tortura e o extermnio foram oficializa-dos como prticas autorizadas de represso pelos oficiais-generais e at mes-mo pelos generais-presidentes.

    A distino que hoje se pode fazer entre a espionagem (ou comunidadede informaes) e a polcia poltica (ou comunidade de segurana) tam-bm tem colaborado para esclarecer outros esteretipos. De fato, tornou-secomum afirmar-se a existncia de certa homogeneidade dessas instncias re-pressivas, que comporiam os pores da ditadura. Embora fossem todas ar-ticuladas, tinham suas diferenas e funcionavam segundo parmetros dife-renciados. Penso que s o estudo conjunto dos pilares bsicos da represso(espionagem, polcia poltica, censura da imprensa, censura de diverses p-blicas, propaganda poltica e julgamento sumrio de supostos corruptos) per-mite compreender que, a partir de 1964, gestou-se um projeto repressivo glo-bal, fundamentado na perspectiva da utopia autoritria, segundo a qual seriapossvel eliminar o comunismo, a subverso, a corrupo etc. que impedi-riam a caminhada do Brasil rumo ao seu destino de pas do futuro. A leitu-ra segundo a qual a montagem de tal aparato repressivo decorreu da conjun-tura de 1968 e deu-se de maneira reativa (em relao chamada luta armada)ou aleatria no parece ser a melhor. Tal projeto forjou-se na fase dos primei-ros IPMs de 1964, a partir do descontentamento dos integrantes da ento for-a autnoma (embrio da linha dura) com a morosidade das punies apli-cadas por Castelo Branco durante a primeira Operao Limpeza.

    O SNI foi criado ainda em 1964, com propsitos mais modestos do queos que assumiria a partir de maro de 1967, quando, de produtor de infor-maes para subsidiar as decises do presidente da Repblica, transformou-se, sob a chefia do general Emlio Garrastazu Mdici, em cabea de uma am-pla rede de espionagem. Ao contrrio do que sups Golbery do Couto e Silva,que afirmou ter criado um monstro, no foi ele, mas a linha dura, que ges-tou tal criatura. A vitria definitiva da corrente, representada pela decretaodo AI-5, fez com que a espionagem passasse a atuar a servio dos setores mais

    radicais, divulgando as avaliaes que justificavam a escalada e a manutenoda represso. Porm, mesmo com o endurecimento do SNI a partir de M-

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    dici, o rgo e suas representaes nos ministrios civis (as divises de segu-rana e informaes, ento remodeladas e fortalecidas) persistiram como pro-dutores de informaes, no se envolvendo diretamente nas operaes de se-gurana, eufemismo que designava as prises, interrogatrios, torturas eextermnios, praticados pelo Sistema Codi-Doi,21 pelos rgos de informa-es dos ministrios militares (Cie, Cisa e Cenimar) e pelos departamentosde ordem poltica e social estaduais.

    Portanto, fundamental destacar que, se o anseio punitivo que caracte-rizava a linha dura no surgiu repentinamente em 1968, como reao op-o de parte da esquerda pela chamada luta armada, de fato, a partir do AI-5, as diversas instncias repressivasj existentespassaram a agir segundo oethosda comunidade de segurana e de informaes ou com ela entraram emconflito. No primeiro caso, est a censura de diverses pblicas; no segundo,a propaganda poltica. Vejamos rapidamente os dois casos.

    No houve uma censura durante o regime militar, mas duas. A censurada imprensa distinguia-se muito da censura de diverses pblicas. A primei-ra era revolucionria, ou seja, no regulamentada por normas ostensivas.22

    Objetivava, sobretudo, os temas polticos stricto sensu. Era praticada de ma-neira acobertada, atravs de bilhetinhos ou telefonemas que as redaes rece-biam. A segunda era antiga e legalizada, existindo desde 1945 e sendo fami-liar aos produtores de teatro, de cinema, aos msicos e a outros artistas. Erapraticada por funcionrios especialistas (os censores) e por eles defendidacom orgulho. Amparava-se em longa e ainda viva tradio de defesa da mo-ral e dos bons costumes, cara a diversos setores da sociedade brasileira. Du-rante a ditadura houve problemas e contradies entre tais censuras. A prin-cipal foi a penetrao da dimenso estritamente poltica na censura decostumes justamente em funo da mencionada vitria da linha dura ca-racterizada pelo AI-5. Alis, tal politizao da censura de diverses pblicas

    por vezes transpareceu a impresso de unicidade das censuras durante o pe-rodo. Curiosamente, houve grande diferena entre as fases mais punitivas deuma e de outra. A censura da imprensa acompanhou o auge da represso(quando se pensa em cassaes de mandatos parlamentares, suspenses dedireitos polticos, prises, torturas e assassinatos polticos) que se verificouentre finais dos anos 60 e incio dos anos 70. A censura de diverses pblicas,porm, teve seu auge no final dos anos 70, j durante a abertura.23 Diga-sede passagem que essa distino chama a ateno para a necessidade de maio-

    res pesquisas sobre fenmenos no explicitamente polticos (em sentido es-trito), se quisermos entender globalmente o perodo que, muitas vezes, tem

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    sido subsumido nesta esfera. De fato, a histria do Brasil entre 1964 e 1985no se restringe histria da ditadura militar. Em relao ao problema dacensura de diverses pblicas, por exemplo, sobrelevam, evidentemente, osconflitos entre setores mais conservadores da sociedade de ento e questesreferidas s mudanas comportamentais (como o movimento hippie, a libe-ralizao das prticas sexuais e as manifestaes artstico-culturais das van-guardas). Do mesmo modo, a perspiccia da TV Globo a levou a criar o ino-vador produto que foi a novela de perfil realista-naturalista retratando,sobretudo, a vida urbana das grandes cidades brasileiras, gerando alguns dosmaiores problemas de censura de costumes do perodo.

    Se a censura de diverses pblicas teve de incorporar sua tradicionaltemtica de defesa da moral e dos bons costumes os ingredientes polticos im-postos pela vitria da linha dura, outras instncias, como a propaganda pol-tica, passaram por uma dinmica de confronto. Desde 1964, assessores mili-tares pretenderam criar uma agncia de propaganda poltica,mas isso somentese deu em janeiro de 1968, com a criao da Assessoria Especial de RelaesPblicas Aerp. A partir de ento, a Aerp encheria a TV com seus filmesenaltecendo o amor, a participao, a crena no Brasil potncia etc.24 Po-rm, ao contrrio do que se poderia supor, a Aerp no contava com a simpa-tia da linha dura. A Assessoria era vista como uma agncia desimportante eseus filmes, como coisa suprflua. Para a linha dura, a mensagem que deveriaser passada populao no era a exaltao otimista do Este um pas quevai pra frente, mas outra, mais radical, como os discursos de arrependimen-to de militantes da luta armada feitos prisioneiros, transmitidos pela TV, ouo famoso slogan Brasil: ame-o ou deixe-o, iniciativas da polcia poltica quepreferia afirmar-se pela fora de uma guerra psicolgica e no pela propa-ganda edulcorada da Aerp.

    Se havia essas diferenas, como o sistema repressivo pde ter funcionali-

    dade? Uma resposta possvel a considerao da j mencionada utopia au-toritria como cimento ideolgico que agregava todas as instncias. Paramuitos analistas, esse papel teria sido desempenhado pela chamada doutri-na de segurana nacional. A doutrina era um conjunto no muito criativode consideraes geopolticas que, tendo em vista certas premissas bvias (ta-manho do pas e de sua populao e vulnerabilidade convulso social), per-seguiam o objetivo do Brasil potncia. A principal recomendao da dou-trina era o combate interno ao comunismo. Talvez possamos dizer que a

    utopia autoritria seja uma forma menos elaborada e intelectualmente di-luda da doutrina. Mas preciso no perder de vista que a antiga tradio bra-

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    Revista Brasileira de Histria, vol. 24, n 4738

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    sileira de pensamento autoritrio inspira ambas e que a propaganda antico-munista precede em muito a ditadura militar. A mencionada utopia assenta-va-se na crena em uma superioridade militar sobre os civis, vistos, regra ge-ral, como despreparados, manipulveis, impatriticos e sobretudo ospolticos civis venais. Penso que ela se realizava em duas dimenses: a pri-meira, mais bvia, de vis saneador, visava curar o organismo social extir-pando-lhe fisicamente o cncer do comunismo. A segunda, de base pedag-gica, buscava suprir supostas deficincias da sociedade brasileira. Assim,enquanto a polcia poltica, a espionagem, a censura da imprensa e o julga-mento sumrio de supostos corruptos estavam fortemente imbudos da di-menso saneadora da utopia autoritria, a Aerp e a DCDP primavam pelatpica pedaggica. Enquanto os primeiros eliminavam, mesmo fisicamente,comunistas, subversivos e corruptos, as duas ltimas buscavam educar opovo brasileiro ou defend-lo dos ataques moral e aos bons costumes.Como fcil perceber, as duas dimenses podem aparecer combinadas numamesma instncia, sendo flagrante que a Comisso Geral de Investigaes (res-ponsvel pelo julgamento sumrio de acusados de corrupo) tanto atuavano saneamento (caando e cassando supostos corruptos), quanto pretendiaexercer uma prtica educativa (atravs do que era chamado de aes catalti-

    cas, prticas intimidatrias caracterizadas pela convocao arbitrria de pes-soas que eram advertidas sobre possveis punies futuras).Quase todos os militares remanescentes do golpe (pois muitos foram

    afastados em 1964) estavam identificados com a utopia autoritria, mas suaadeso a tal projeto variava conforme prevalecesse uma ou outra dimenso.Assim, foram constantes os choques entre algumas dessas instncias, mas al-gum grau de violncia era admitido por todos e a comunidade de informa-es teve funo muito importante na propagao da defesa da necessidade

    da represso stricto sensu, mas tambm da censura, do combate corrupo,da utilizao dos meios de comunicao para a propaganda etc.

    PRODUO RECENTE

    A produo histrica que marca a nova fase de estudos sobre a ditaduramilitar possui suas peculiaridades. Boa parte dela foi feita no contexto da che-gada da Nova Histria ao pas, ou, dizendo melhor, no viria a ser uma pro-

    duo fortemente influenciada pelo marxismo ou pela segunda fase dos Anna-les. Porm, no campo dos estudos especificamente histricos (diferentemente

    Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar

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    de reas como a Cincia Poltica), a crtica ao marxismo no se fixou na con-traposio entre as hipteses (tericas) da determinao das estruturas eco-nmico-sociais e a da autonomia do sistema poltico, mas na valorizao doindivduo e de sua subjetividade em oposio s leituras tradicionais (mar-xistas ou dos Annalesdos anos 50 e 60) de cunho estrutural. Assim, abando-nando explicaes fundadas em conceitos como os de classe social, modode produo, estrutura econmica ou estrutura social, os historiadoresdo que se convencionou chamar de Nova Histria buscaram uma estratgiacognitiva (mais do que uma perspectiva terico-conceitual) que enfatizasse oindivduo, seu cotidiano, suas emoes, sua mentalidade, sua trajetria devida etc., opes que, obviamente, no incidiram apenas sobre os estudos re-lativos ditadura militar, mas sobre todo o escopo de estudos histricos aquie alhures. Desse modo, o virtual abandono do marxismo pelos historiadores(que, no Brasil, se verificou a partir de meados dos anos 80) no se fundoutanto em uma crtica que cotejasse as insuficincias tericas da perspectiva(notadamente o determinismo economicista), mas na constituio de umnovo padro de narratividade, motivado no mais pela pretenso rankeanade mostrar como realmente aconteceu, mas na estratgia cognitiva mencio-nada: a valorizao da subjetividade, do cotidiano etc., atravs de verses ve-rossmeis que no almejam firmar-se como verdade absoluta, concatenadas,quanto possvel, em narrativas saborosas. Isso talvez explique, por exemplo, agrande quantidade de trabalhos sobre o tema da cultura durante o regimemilitar, j que o enfoque cultural o favorito entre os historiadores de algummodo referidos s correntes da Nova Histria. fcil perceber nessa infle-xo (que chegou mesmo a ser conhecida como crise da histria, tamanhofoi o impacto causado entre os historiadores) ecos da tradio conhecida co-mo crise da razo moderna, que, em uma de suas vertentes, chamava a aten-o precisamente para o fato de, na vida moderna, o sujeito estar sendo pau-

    latinamente anulado pelo crescente aumento da burocratizao, peladimenso instrumental da racionalidade moderna pautada em fins ime-diatos e no em valores universais , pelas restries impostas ao mundoda vida etc. No o caso, aqui, de discutir as fragilidades de tais concepesou os acertos e desacertos da Nova Histria. Esta ltima, por exemplo, en-volve inmeras correntes, algumas discrepantes entre si. Mas o fato que foinesse contexto que os estudos histricos sobre o perodo 1964-1985 se avolu-maram.

    Segundo levantamentos do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militarda UFRJ, entre 1971 e 2000 foram produzidas 214 teses de doutorado e dis-

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    sertaes de mestrado sobre a histria da ditadura militar, 205 delas no Brasile as restantes no exterior.25 O crescimento paulatino do nmero de estudossobre a temtica visvel cotejando-se a produo de teses e dissertaes emalguns qinqnios: no perodo 1971-1975 foram defendidos apenas dois tra-balhos; entre 1986 e 1990 as defesas chegaram a 47; no final do perodo, entre1996 e 2000, registraram-se 74 teses e dissertaes. Os principais focos de in-teresse foram os movimentos sociais urbanos (27 trabalhos), os temas da artee da cultura (tambm com 27 trabalhos), a economia (25) e os assuntos rela-cionados esquerda e oposio em geral (20 teses e dissertaes). Em se-guida vm a imprensa (15), a censura (13), a crnica dos diversos governos(11), o movimento estudantil (8) e o estudo do prprio golpe (6), entre ou-tros temas. Como boa parte dos trabalhos sobre a economia foi gerada na reaprpria, sobressai, como interesse dos historiadores, a temtica da arte e dacultura, como j dito. Mas a grande presena de teses e dissertaes sobre osmovimentos sociais urbanos talvez indique a transio entre o antigo predo-mnio acadmico do marxismo e a voga em torno da Nova Histria hajavista que o enfoque predominante entre os trabalhos sobre o movimento ope-rrio, sindicatos etc. o marxismo e seus influxos. Porm, mesmo nesse cam-po, sintomtico que algumas teses sobre o movimento operrio, sobretudoas defendidas a partir do ano 2000, apresentem abordagens tpicas da NovaHistria, como a memria e as prticas culturais ou o recurso a fontes no-convencionais, como a charge. J entre os estudos que privilegiam a arte e acultura, sobressaem as anlises sobre a msica (10 trabalhos de um total de27), mesmo sem considerarmos outros dois sobre o tropicalismo, caso quei-ramos conceder que a corrente foi algo mais do que msica. Abordagens so-bre literatura e TV foram trs, cada; sobre o teatro h apenas dois trabalhos.A velha mxima de que a histria feita com os olhos do presente parece pre-sidir esses nmeros: o interesse dos que foram partcipes de uma conjuntura

    de predomnio do ideal poltico revolucionrio parece ceder lugar valoriza-o de outros autores, que participaram, como atores, da fase final da ditadu-ra militar, durante a qual foram bastante valorizadas todas as instncias daresistncia democrtica, mesmo as mais singelas, como a adeso a um mani-festo de protesto, a freqentao de uma dramaturgia denuncista ou a audi-o coletiva das msicas de protesto.

    Se quisermos considerar uma hiptese prospectiva sobre o desenvolvi-mento futuro dos estudos histricos sobre a ditadura militar, certamente te-

    remos de ter em mente o grande impacto que j vai causando a abertura deacervos de documentos sigilosos diretamente produzidos pelos sucessivos go-

    Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar

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    vernos militares. Refiro-me, principalmente, aos documentos dos diversosDops, aos papis da Diviso de Segurana e Informaes do Ministrio daJustia (custodiados pelo Arquivo Nacional) e ao material sobre a censuraproduzido pela Diviso de Censura de Diverses Pblicas (que est na sededo Arquivo Nacional em Braslia). Recentemente, o Departamento de PolciaFederal prometeu abrir seu acervo sobre o perodo militar. Embora j possa-mos ter acesso parcial a esses papis, dois grandes acervos permanecem ina-cessveis, embora conheamos sua existncia: o do Conselho de SeguranaNacional e o do Servio Nacional de Informaes. Como sabido, na ante-vspera da posse de Lus Incio Lula da Silva na Presidncia da Repblica,Fernando Henrique Cardoso revogou, em aparente acordo com Lula, decretoque regulamentava a lei nacional de arquivos e imps outro, draconiano noque se refere aos prazos de sigilo, que, ento, foram duplicados.

    CAUSAS DO GOLPE

    Em se tratando de marcar os quarenta anos do golpe de 1964, cabe umabreve reflexo sobre as principais teses explicativas do fenmeno. Os traba-lhos mais slidos podem ser agrupados em trs correntes: as tentativas de teo-

    rizao da Cincia Poltica, as anlises marxistas e a valorizao do papel dosmilitares.

    A tese de doutoramento do cientista poltico Alfred Stepan, apresentada Universidade Columbia, em 1969, seria publicada no Brasil em 1975, com ottulo de Os militares na poltica: as mudanas de padres na vida brasileira.Para Stepan, a instituio militar no um fator autnomo, mas deve serpensada como um subsistema que reage a mudanas no conjunto do sistemapoltico. Segundo ele, as razes imediatas do que (descuidadamente) chama

    de revoluo derivavam da inabilidade de Goulart em reequilibrar 26 o sis-tema poltico. At 1964, teria havido no Brasil um padro de relacionamentoentre os militares e os civis caracterizvel como moderador, isto , os mili-tares somente eram chamados para depor um governo e transferi-lo para ou-tro grupo de polticos civis, no assumindo efetivamente o poder, at porqueno estariam convencidos da sua capacidade e legitimidade para governar(p.50). A singularidade da crise de 1964 estaria precisamente na capacidadeque teve de transformar tal padro, pois, alm da percepo de que as insti-

    tuies civis estavam falhando, os militares tambm sentiram-se diretamenteameaados em funo da propalada quebra da disciplina e da hierarquia, su-

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    posto passo inicial para a dissoluo das prprias Foras Armadas, j que Gou-lart poderia dar um golpe com o apoio dos comunistas e, depois, no contro-l-los mais. Alm disso, critrios polticos para promoes no Exrcito suge-riam aos militares que Goulart teria a inteno de constituir, para fins golpistas,uma fora militar que lhe fosse leal (ecoavam boatos sobre exrcitos popula-res que no eram desmentidos pelo apoio de Goulart aos cabos, sargentos esuboficiais). Tudo isso teria levado mudana do padro, isto , os militarespassaram a supor a necessidade de um governo militar autoritrio que pu-desse fazer mudanas radicais e eliminar alguns atores polticos (p.124). Ade-mais, graas doutrina de segurana nacional e ao treinamento desenvolvidopela Escola Superior de Guerra, haveria dentro das Foras Armadas um n-

    vel de confiana relativamente elevado de que elas contavam com membrospossuidores de uma soluo relevante para os problemas brasileiros e que es-tavam tecnicamente preparados para governar (p.137), ou seja, os militarespassaram a sentir-se capacitados para assumir diretamente o governo.

    As principais insuficincias histricas do livro de Alfred Stepan estavamna prpria anlise do chamado padro moderador, j que existiram interfe-rncias diretas dos militares na poltica brasileira antes de 1964 e bastanteproblemtica a viso do subsistema militar como varivel dependente do

    sistema poltico global.27

    Alm disso, relativamente superficial a anlise his-trica da ideologia militar anterior ao golpe. Alm de tais fragilidades, a an-lise de Stepan tambm parece no dar conta integralmente do problema daheterogeneidade poltica dos militares: embora ele faa a distino entre gru-pos que prope sejam chamados de internacionalistas liberais (moderados)e nacionalistas autoritrios (duros), tal tipologia no parece ter muita im-portncia para a tese da mudana de padro, e no altera, a no ser nomi-nalmente, a tipologia j consolidada na imprensa e na academia. Seja como

    for, Alfred Stepan apontou, corretamente, a necessidade de se estudar os mi-litares considerando-se tanto suas interaes com a sociedade quanto suascaractersticas especficas de grupo especializado.

    A positividade maior do livro de Stepan consistia, curiosamente, na suasimples existncia, isto , na demonstrao de que era possvel pesquisar o te-ma, pois o autor valeu-se de material de algum modo acessvel a todos (pu-blicaes oficiais e material jornalstico, principalmente), exceto talvez as en-trevistas que obteve, para as quais contou com o fascnio que a figura do

    estrangeiro exerce em alguns brasileiros. Mas, alm desse aspecto de ordemheurstica, outro benefcio de Os militares na polticafoi colaborar para a di-

    Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar

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    vulgao, notadamente entre os historiadores, das questes que animavamamplo debate na Cincia Poltica e na Sociologia.

    O esforo da Cincia Poltica pelo estabelecimento de um padro de so-fisticao epistemolgica expresso na busca de um modelo terico expli-cativo para as crises latino-americanas e/ou para os Estados submetidos a re-gimes militares corre o risco de esbarrar no que poderia ser chamado defator histrico: as especificidades, as singularidades e as peculiaridades desociedades distintas que, naturalmente, tendem a ser elididas quando se bus-ca construir modelos explicativos com grande alcance de generalizao. Esteno foi o caso, porm, da interpretao de Wanderley Guilherme dos Santos.Suas anlises sobre a crise de 1964 comearam a ser divulgadas em 1969, apartir da elaborao de um modelo terico intitulado competio poltica eclculo do conflito. No incio dos anos 70, captulos de sua tese em prepara-o foram publicados abordando o desempenho do Legislativo no perodo1959/1966 e a instabilidade governamental entre 1961/1964.28 A tese, The cal-culus of conflict: impasse in Brazilian politics and crisis of 1964, seria apresen-tada Universidade Stanford (EUA) em 1979. Reunindo novas anlises e tra-balhos reelaborados, o volume intitulado O clculo do conflito: estabilidade ecrise na poltica brasileira, recentemente publicado,29 a melhor forma de co-nhecer a avaliao do autor sobre o assunto. notvel em seu trabalho tantoo esforo de elaborao terica (o mencionado modelo para o clculo de con-flitos) quanto o rigoroso levantamento, sistematizao e anlise de dados em-pricos. Esses dados esto dispostos em 85 tabelas e quatro grficos; o modeloterico encontra-se elaborado, at mesmo em termos lgico-formais, no pri-meiro de dois apndices (o segundo registra uma breve tipologia das fontes esucintas consideraes heursticas). Para Wanderley Guilherme dos Santos,uma teoria em dieta factual no faz melhor figura do que uma narrativa teo-ricamente mope (p.18).

    As motivaes iniciais do autor decorrem da insuficincia que ele iden-tifica no arcabouo convencional da anlise poltica brasileira (p.174), fun-dado na hiptese de que os males de antanho, do presente e do porvir expli-cam-se pela incessante disputa em que se empenham grupos sociais adversriosna conquista de bens materiais (p.18). A crtica, de encontradia coloraoantimarxista, no implica o abandono total do modelo consagrado: apenasfaltariam ao paradigma tradicional de anlise as conexes intermediriasde natureza poltica, pois no seria cabvel fazer, a partir das variveis econ-

    micas e sociais, ilaes mecanicistas sobre o sistema poltico (p.177).A aplicao de tal paradigma crise de 1964 seria inadequada,a menos

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    que sejam introduzidas variveis polticas especficas (p.174). Nesse sentido,Santos valoriza a leitura de Alfred Stepan, mas a considera insuficiente porno identificar o verdadeiro foco da disputa poltica, que estaria no padrode coalizes no Congresso (p.173).

    A hiptese central do modelo proposto por Santos afirma que, em siste-mas polarizados, uma crise de paralisia decisria ocorre quando os recursosde poder se dispersam entre atores radicalizados em suas posies, podendose dar, ento, um colapso do sistema poltico, resultante de sua cadente ca-pacidade operacional (isto , de tomar decises sobre questes conflitantes)(p.22). Como se v, o modelo no prope uma explicao para golpes milita-res stricto sensu, mas busca esclarecer os processos de crescente paralisia po-ltica, seguida de alguma forma de violncia, uma mcula na ordem jurdi-ca (p.19). Assim, a crise brasileira de 1964 foi uma crise de paralisia decisriae o golpe teria sido fundamentalmente o resultado do emperramento do sis-tema poltico, antes que uma reao a iniciativas governamentais: o golpemilitar resultou mais da imobilidade do governo Goulart do que de qualquerpoltica coerente por este patrocinada e executada (p.202).

    O Congresso brasileiro e a estrutura poltica em geral viviam uma cres-cente polarizao, isto , uma diviso equilibrada de foras entre partidospoliticamente diferentes. Grupos radicalizados no interior de cada partidono sustentavam acordos polticos: coalizes ad hoc, articuladas para impe-dir a adoo de polticas e no para servir como coalizes governamentais,tornam-se, em tais condies, um resultado altamente provvel (p.263). No-te-se a o fulcro da discordncia de Santos em relao a Alfred Stepan, con-forme mencionado h pouco, isto , a fragmentao do apoio poltico nodecorria da instabilidade das coligaes eleitorais, mas das coalizaes parla-mentares.

    As evidncias empricas trabalhadas por Santos so bastante expressivas

    e corroboram a impresso generalizada de que, na fase anterior a 1964, o sis-tema poltico brasileiro havia ficado operacionalmente comprometido(p.201). De fato, alm de demonstrar quantitativamente a tendncia decres-cente da produo legal, que praticamente inviabilizou a resoluo de qual-quer assunto importante atravs de negociaes parlamentares, Santos tam-bm chama a ateno para o fenmeno da rotatividade ministerial, talvez omelhor achado emprico de sua exaustiva pesquisa. As propostas reformistasde Goulart requeriam complicadas alteraes na Constituio de 1946, im-

    possveis sem a sustentao de slida maioria parlamentar ... De outro lado,para conservar a liderana do amplo contingente esquerdista, o presidente

    Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar

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    era instado a declarar-se em antagonismo ao Congresso (p.306). Da decor-riam as sucessivas substituies de titulares de ministrios. Conforme calcu-lado por Santos, durante o governo de Jango foram observadas as maiores ta-xas de rotatividade ocorridas no Brasil ps-1946. Alm dos ministrios,tambm as presidncias de empresas e bancos estatais decisivos para o pas(Petrobrs, Banco do Brasil, Banco Nacional de Desenvolvimento Econmi-co, Vale do Rio Doce e Siderrgica Nacional) foram usadas por Goulart co-mo moeda poltica, diferentemente de seus antecessores (p.328).

    A crtica inicial de Santos ao paradigma tradicional de anlise confu-sa, pois no se define quanto ao objeto final de suas consideraes: seriam in-suficientes as teses (marxistas) que fazem prevalecer as estruturas econmicase sociais em detrimento dos sistemas polticos ou o paradigma criticado seriaapenas aquele que se refere leitura do populismo como gerador do con-fronto entre executivos progressistas e legislativos controlados pela oligarquiarural? As duas crticas esto presentes e, em funo disso, a impreciso sobrequal seja o paradigma atacado nada obstante seja possvel deduzir a vincu-lao insinuada destoa da demanda de preciso terico-conceitual recla-mada pelo prprio autor. Mais importante, a centralidade reivindicada paraas variveis polticas no enseja, em nenhum momento, uma definio pre-cisa do que venha a ser a poltica ou o sistema poltico. Em algumas passa-gens a poltica aparece referida apenas ao plano institucional de tomadas dedecises oficiais (Congresso e Executivo), em outras, abrange as aes (polti-cas?) de sindicatos e do prprio Exrcito (p.236 ss).

    A grande massa de dados analisada por Santos corrobora aquilo que nar-rativas jornalsticas e histricas j haviam percebido: no perodo, o Legislati-vo estava praticamente paralisado e a instabilidade poltico-administrativaera evidente. O esforo de Wanderley Guilherme dos Santos poderia parecer,por isso, redundante, como se buscasse uma elaborao sofisticada e detalhis-

    ta para um fato bvio e consabido. Na verdade, entretanto, meritrio o em-penho do autor, pois algumas narrativas histricas disponveis baseiam-se emimpresses e, conforme a crtica do autor, usam a expresso paralisia decis-ria como uma alegoria (p.202). Santos buscou demonstr-la empiricamentea partir da melhor elaborao conceitual que logrou obter. Por certo que talelaborao padece de alguma debilidade, quando, por exemplo, a paralisia de-cisria de 1964 se contrape noo de estabilidade do governo Kubitschek(que, afinal, foi perodo vitimado por graves crises, inclusive militares, mes-

    mo antes da posse).A melhor contribuio do trabalho chamar a ateno para a importn-

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    Revista Brasileira de Histria, vol. 24, n 4746

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    cia das questes parlamentares, do Congresso, dos partidos polticos. Tal focofoi sistematicamente desprezado pela maioria dos analistas do regime militar.De fato, a literatura especializada, tendo enfatizado o papel dos empresriosou dos militares no golpe de 64, tendeu, salvo raras excees, a no conside-rar a dimenso poltico-institucional das crises do perodo no plano parla-mentar. Exceo pode ser encontrada nas reflexes de Maria Celina DArau-

    jo,30 para a qual a capacidade que o PTB teve de influenciar setores militaresou de interagir com eles foi certamente um dos principais fatores para a eclo-so do golpe.31

    A carncia de anlises poltico-institucionais talvez se explique pela gran-de dificuldade terica de bem correlacionar os eventos da pequena polticaaos condicionantes estruturais. Argelina Cheibub Figueiredo, em sua tese dedoutoramento em Cincia Poltica na Universidade de Chicago, em 1987, ava-lia que a nfase de Santos nos aspectos poltico-institucionais o leva a subes-timar o carter scio-econmico dos problemas em jogo, no princpio dosanos 60, a saber, as reformas estruturais.32 A autora expressando preocu-paes tpicas de finais dos anos 80 atribui grande importncia recusadas teses de algum modo deterministas, isto , as que afirmavam a inevitabi-lidade do golpe a partir da considerao de algumas condies suficientes, se-

    jam os fatores econmicos,33 sejam os polticos e institucionais, tal como es-tabelecido pela leitura de Santos. Ela recusa, igualmente, a centralidade dopapel da burguesia na conspirao analisada por Dreifuss, j que a simplesexistncia de uma conspirao no seria condio suficiente para o golpe(p.28). Finalmente, destaca o acerto da leitura de Stepan no que se refere aomomento final do governo de Goulart, quando o presidente, radicalizandosua posio, acabou por definitivamente erodir possveis apoios. Ao contr-rio de Stepan, porm, Argelina Figueiredo chama a ateno para a necessida-de de anlise das escolhas anteriores que haviam estreitado o leque de op-es abertas ao poltica (p.28-9):

    entre 1961 e 1964, escolhas e aes especficas solaparam as possibilidades de

    ampliao e consolidao de apoio para as reformas, e, desta forma, reduziram

    as oportunidades de implementar, sob regras democrticas, um compromisso

    sobre estas reformas. (p.30)

    A recusa das leituras deterministas e a percepo da necessidade de arti-

    culao terica entre eventos e estrutura no resulta, porm, numa explica-o terica, mas na hiptese emprica acima citada, caracterizando Democra-

    Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar

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    cia ou reformas?como um tpico trabalho de Histria Poltica tradicional, alisde alto nvel, pois a pesquisa desenvolvida pela autora chama a ateno paraepisdios obscurecidos ou superficialmente tratados em outros trabalhos.

    A Cincia Poltica de influncia norte-americana, ao enfatizar os aspec-tos poltico-institucionais e as variveis polticas, contrapunha-se s leiturasmarxistas que destacavam as determinaes econmico-estruturais e os con-dicionamentos de classe. A discusso, por exemplo, sobre o grau de autono-mia dos militares, vistos como corporao possuidora de dinmica prpriaou burocracia especializada, confrontava o possvel entendimento marxistados militares como agentes instrumentais da burguesia: para Joo Quartimde Moraes, por exemplo, o que ocorreu em maro-abril [de] 1964 foi umgolpe reacionrio da direita do qual os militares constituram o instrumentodecisivo.34 Do mesmo modo, se os regimes militares eram simples decorrn-cia dos ajustes do capitalismo, o estudo especfico dos militares pareceria me-nos importante, ganhando destaque, isto sim, os aspectos relacionados ex-panso capitalista, ao capital internacional e ao papel dos setores da burguesiabrasileira nesse contexto.35

    Assim, at mesmo em funo do predomnio acadmico do marxismo,surgiu forte reao corrente, passando a ser um lugar-comum antimarxis-ta a crtica de que as anlises predominantes sobre o incio dos anos 60 en-fatizam os aspectos econmico-estruturais e concluem pela inevitabilidadedo golpe.36 Na verdade, nenhuma pesquisa acadmica de fundo restringiu-seao que poderamos chamar de uma interpretao marxista economicista or-todoxa ou vulgar, que descuidasse completamente dos aspectos polticos oucompartilhasse de um determinismo economicista absoluto. certo, no obs-tante, que diversas avaliaes marxistas genricas, em debates, artigos de di-vulgao ou jornalsticos, enfatizavam o papel determinante de aspectos eco-nmicos, como as necessidades de rearranjo decorrentes da relao entre o

    capital internacional e o nacional (associado). Alm disso, importantes eco-nomistas j haviam chamado a ateno para o esgotamento da etapa fcilde substituio de importaes37 e, com base neles, avaliaes economicistasdo golpe tambm foram feitas.38

    A anlise marxista mais conhecida sobre o golpe de 64 provm de JacobGorender. Combate nas trevas, livro divulgado em 1987, tinha por objetivocentral o estudo da esquerda em geral e da luta armada em particular, mas oautor no deixou dvidas sobre sua leitura de eventos correlacionados, como

    obviamente era o caso do golpe. Para ele, a explicao fundada no esgotamen-to do modelo de substituio de importaes s leva em conta o aspecto su-

    Carlos Fico

    Revista Brasileira de Histria, vol. 24, n 4748

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    perficial e deriva da idia de que o processo econmico se reduz a uma suces-so de modelos de poltica econmica. Ao contrrio, a crise econmica de1962-1965 foi a primeira crise cclica nascida no processo interno do capita-lismo brasileiro e revelou precisamente o seu amadurecimento.39 Segundo oautor, tendo em vista a j inconteste proeminncia da burguesia industrial, oenfrentamento da crise impunha-se como adeso aos parmetros de estabili-zao financeira tal como preceituados pelo Fundo Monetrio Internacional FMI. Porm, a receita recessiva requer governos fortes, capazes de negarconcesses s massas trabalhadoras e for-las a engolir o purgante das me-didas compressoras do nvel de vida (p.42). Ora, a mobilizao em torno dasreformas estruturais (ou reformas de base) no apontava nesse sentido:

    O ncleo burgus industrializante e os setores vinculados ao capital estran-

    geiro perceberam os riscos dessas virtualidades das reformas de base e formula-

    ram a alternativa da modernizao conservadora. Opo que se conjugou

    conspirao golpista. (p.51)

    Diferentemente de outros autores, que preferem indicar a inexistnciade riscos maiores de efetiva vitria da esquerda, Gorender enfatiza que, nopr-64, engendrou-se uma real ameaa classe dominante brasileira e ao im-perialismo:

    o perodo 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasi-

    leiros neste sculo [XX]. O auge da luta de classes, em que se ps em xeque a es-

    tabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de pro-

    priedade e da fora coercitiva do Estado.Nos primeiros meses de 1964,esboou-se

    uma situao pr-revolucionria e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo,

    pelo carter contra-revolucionrio preventivo. A classe dominante e o imperia-

    lismo tinham sobradas razes para agir antes que o caldo entornasse. (p.66-7)

    Portanto, Gorender consolidou, em traos gerais, duas das principais li-nhas de fora interpretativas sobre as razes do golpe: o papel determinantedo estgio em que se encontrava o capitalismo brasileiro e o carter preventivoda ao, tendo em vista reais ameaas revolucionrias provindas da esquerda.

    Uma anlise que partiu dos pressupostos marxistas, e que no pode serchamada de economicista, foi a de Ren Armand Dreifuss, cientista poltico

    uruguaio, tambm formado em histria, que se doutorou em 1980, na Uni-versidade de Glasgow, com a tese State, class and the organic elite: the forma-

    Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar

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    tion of the entrepreneurial order in Brazil, 1961-1965. A tese se transformariano livro, publicado no Brasil em 1981, 1964: a conquista do Estado. Ao pol-tica, poder e golpe de classe, um best seller. Diferentemente de outros cientistaspolticos, Dreifuss advertia que generalizaes sobre Estados burocrtico-autoritrios exigiriam pesquisa comparativa, chamando a ateno para a es-pecificidade do caso brasileiro.

    Dreifuss parte do pressuposto de que o domnio econmico do capitalmultinacional na economia brasileira no encontrava uma correspondenteliderana poltica: havia uma clara assimetria de poder entre a predominn-cia econmica do bloco multinacional e associado, que se consolidara duran-te os perodos de Juscelino Kubitschek e Jnio Quadros, e sua falta de lide-rana poltica.40 Assim, contrapondo-se proeminncia poltica, de tipopopulista, da burguesia tradicional e de setores oligrquicos, tal bloco or-ganizou grupos de presso e federaes profissionais de classe, escritrios tc-nicos e anis burocrtico-empresariais, com o objetivo de conseguir que seusinteresses tivessem expresso a nvel de governo (p.104). Como se v, h adiscordncia significativa com a anlise de Gorender, para o qual o vetor daluta poltica no estava na conquista da hegemonia pela frao multinacio-nal-associada da burguesia, mas na substituio do controle de tipo populis-ta das classes populares por outro decididamente coercitivo.

    Partindo dos pressupostos de Gramsci sobre as formas civis e militaresde organizao do poder de classe, Dreifuss descreveu, detalhadamente, asatividades das organizaes empresariais Ipes Instituto de Pesquisas e Es-tudos Sociais e Ibad Instituto Brasileiro de Ao Democrtica, amparan-do-se em documentao que ele teria encontrado, casualmente, no ArquivoNacional. O complexo Ipes/Ibad teria funcionado como um Estado-Maiorda burguesia multinacional-associada [que] desenvolveu uma ao medida,planejada e calculada que a conduziu ao poder (p.145). Para alm de carac-

    terizar a busca de liderana do processo poltico, a atuao dessas associaestambm indicou ao bloco multinacional e associado a necessidade de umgolpe de Estado, j que tentativas anteriores de reforma dentro da lei haviamfracassado. Politicamente, s foras identificadas com os interesses multina-cionais e associados faltava, se no o apelo ideolgico-programtico, pelomenos a estrutura clientelista de apoio popular (p.146). Da a inevitabilida-de do golpe, nico caminho para que tais interesses assomassem ao poder.

    Dreifuss mostrou, em mincias, que o complexo Ipes/Ibad atuava de

    maneira bastante variada, em diversas frentes de atuao, mobilizando equi-pes multifuncionais, espraiando-se virtualmente por todo o pas e amparan-

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    do-se em recursos e financiamentos razoavelmente abundantes. Tratava-sede uma ampla campanha de desestabilizao. Assim,

    embora o bloco modernizante-conservador fosse incapaz de se impor por con-

    senso na sociedade brasileira, ele, no entanto, era capaz, atravs de sua campa-

    nha ideolgica, de esvaziar uma boa parte do apoio ao Executivo existente e reu-

    nir as classes mdias contra o governo. (p.259)

    Essa ao ideolgica, entretanto, no seria suficiente para levar a umatroca de regime. Foi preciso construir uma rede de apoio dentro das ForasArmadas e, por essa razo, alguns dos mais destacados associados ao Ipes eao Ibad foram oficiais dos mais influentes na poca. Tendo estimulado uma

    atmosfera de inquietao poltica, conseguiram coordenar e integrar os v-rios grupos militares, conspirando contra o governo, e, de certa forma, pro-porcionar o exigido raciocnio estratgico para o golpe (p.338). Seus ativis-tas participaram diretamente da conspirao militar. Desse modo, segundoDreifuss, o que se viu em 1964 no foi um golpe das Foras Armadas contraJoo Goulart, mas a culminncia de um movimento civil-militar (p.361).Como argumento final, e contrapondo-se viso de que os governos milita-res seriam conduzidos por uma tecnocracia imparcial e apartidria, Dreifuss

    indica que, em vrios casos, importantes cargos do governo de Castelo Bran-co foram dados a homens-chave dos grandes empreendimentos industriaise financeiros e de interesses multinacionais: seria a plena realizao dos in-teresses do bloco multinacional e associado (p.455).

    Como se v, Ren Armand Dreifuss fazia uma leitura marxista clssica,defendendo a existncia de um longo processo de luta poltica de um setor declasse, ou de um bloco de poder, pela implementao de seus interesses, cons-cientemente defendidos. Embora o jargo mobilizado por Dreifuss ecoe um

    determinismo de fato presente em outras anlises marxistas de perfil ortodo-xo, no caso de seu livro os fatores estruturais referidos ao capital internacio-nal no geram, sem mediaes, o golpe de 64. Ao contrrio, segundo o au-tor verificou-se todo um processo complexo e progressivo de preparao, noplano poltico, que durou anos e mobilizou vultosos recursos. Discordandode Alfred Stepan, Dreifuss advoga que os agentes do golpe de 64 no foramas Foras Armadas ou a doutrinao isolada da Escola Superior de Guerra,havendo, pois, a necessidade de sublinhar como o fez a importncia dos

    empresrios, em geral minimizados por conta da viso autnoma ou subsis-tmica das Foras Armadas e da tecnoburocracia (p.486). Desse modo, no

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    foi um suposto aparelho militar-burocrtico que tomou o poder, a despeitodas classes dominantes, para que, afinal, pudesse fazer prevalecer os interes-ses dessas classes: na verdade o Estado teria sido diretamente reorganizadopela elite orgnica capitaneada pelo Ipes.

    Tambm Daniel Aaro Reis Filho esposaria essa tese, segundo a qual ogolpe de 64 veio para reforar a hegemonia do capital internacional no blo-co do poder 41 e s foi possvel graas ao carter amplo e heterogneo da fren-te social e poltica que se reuniu para depor Goulart. Tal amplitude (banquei-ros, empresrios, industriais, latifundirios, comerciantes, polticos,magistrados e classe mdia) condicionaria, no interior das Foras Armadas,uma unidade que seria dificilmente concebvel em condies normais(p.57)e fundava-se na compartilhada averso ao protagonismo crescente das clas-ses trabalhadoras na histria republicana brasileira depois de 1945.42 MasReis Filho chama a ateno para o que, de fato, a fragilidade maior do tra-balho de Dreifuss, isto , a superestimao da capacidade que aquelas asso-ciaes teriam de conduzir o processo histrico. Ademais, no razovel su-por que a classe mdia apenas recebesse, passivamente, as mensagensideolgicas do Ipes/Ibad: elas percebiam que um processo radical de distri-buio de renda e de poder por certo afetaria suas tradicionais posies e seusrelativos privilgios naquela sociedade brutalmente desigual.43

    Porm, se a preparao do golpe foi de fato civil-militar, no golpe, pro-priamente, sobressaiu o papel dos militares. Alm das movimentaes de tro-pas, desde o incio do regime foi indiscutvel a preponderncia dos militares,em detrimento das lideranas golpistas civis. Por certo, como demonstrouDreifuss, importantes cargos do primeiro escalo foram destinados aos ipe-sianos civis e, mais importante, a poltica econmica do primeiro governomilitar pautou-se pelos ditames do saneamento financeiro que interessava aocapital internacional. Mas as sucessivas crises do perodo foram resolvidasmanu militarie a progressiva institucionalizao do aparato repressivo tam-bm demonstra a feio militar do regime. Do mesmo modo, sucessivas levasde militares passaram a ocupar cargos em importantes agncias governamen-tais. Se podemos falar de um golpe civil-militar, trata-se, contudo, da implan-tao de um regime militar em duas palavras: de uma ditadura militar.

    Glucio Ary Dillon Soares reclamaria a necessidade de ateno precisa-mente para o papel dos militares. Segundo ele

    As interpretaes iniciais do golpe militar enfatizaram suas causas econmi-cas, em parte devido predisposio genrica de aceitar explicaes econmi-

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    cas, em parte devido relativa simultaneidade do fim da etapa fcil da substitui-

    o de importaes e da ecloso de regimes militares na Amrica Latina. O eco-

    nomicismo do pensamento poltico e social na Amrica Latina fez com que se

    fosse buscar nas elites econmicas os responsveis pelo golpe. O golpe, porm,

    foi essencialmente militar: no foi dado pela burguesia ou pela classe mdia, in-

    dependentemente do apoio que estas lhe prestaram.44

    A crtica de Soares visava essencialmente tradio, de origem marxis-ta, profundamente arraigada na sociologia poltica latino-americana, que pe-netra inclusive na cincia social mais conservadora, de privilegiar as explica-es econmicas e subestimar as demais (p.10). Em funo do papelpreponderante que, nessa tradio, eurocntrica e gerada no sculo XIX,

    assumiam os conflitos bipolares entre burguesia e proletariado, a autonomiados militares foi sistematicamente subestimada (p.12, grifado no original),da resultando uma produo sociolgica e poltica livresca e carente de pes-quisas especficas sobre a realidade brasileira. Dessas crticas decorrem a ava-liao de insuficincia de anlises, por exemplo, como as de Fernando Henri-que Cardoso (sobre a necessidade de desbaratamento dos mecanismospopulares de presso decorrentes do processo de acumulao) ou de Guiller-mo ODonnell (segundo o qual a passagem para uma etapa competitiva da

    industrializao substitutiva de importaes teria demandado regimes bu-rocrtico-autoritrios).

    Na anlise de Soares transparece alguma insatisfao com a tese da con-quista do Estado pelo Ipes e congneres: pesquisando depoimentos escritospor militares (p.28 ss), ele destacou que o golpe foi preponderantemente umaconspirao dos militares com apoio dos grupos econmicos brasileiros(p.34-5), e no uma conspirao dos grupos econmicos com o apoio dosmilitares, embora esta ltima seja uma das explicaes favoritas na literatura

    poltica e sociolgica sobre o golpe (p.35). Alm disso, duas avaliaes tam-bm correntes (conspirao de grupos econmicos brasileiros com apoio dasmultinacionais ou dos Estados Unidos) no mereceram uma s meno dosmilitares consultados, demonstrando que h um divrcio entre a caracteriza-o do golpe pela literatura poltico-sociolgica e a percepo do que foi ogolpe por parte dos prprios militares (p.35).

    Diferentemente de Dreifuss, para quem os aspectos explicativos prepon-derantes resultam da articulao dos empresrios em torno do Ipes tendo em

    vista a defesa dos interesses do capital internacional e associado, para Soareso importante destacar as motivaes dos militares para o golpe, que se cir-

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    cunscreveriam em trs blocos de preocupaes: (a) o caos administrativo e adesordem poltica; (b) o perigo comunista e esquerdista em geral e (c) os ata-ques hierarquia e disciplina militares (p.32). Assim, tomando por base oslivros publicados e as entrevistas concedidas pelos militares, Soares concluique a concordncia entremilitares de diferentes orientaes polticas e dediferentes armas a respeito do papel secundrio que os fatores econmicosdesempenharam no deixa lugar a dvida: o golpe de 64 foi um golpe essen-cialmentepoltico (p.45, grifado no original). A afirmativa resulta algo des-concertante, pois a ningum ocorreu classificar o golpe de econmico, mui-to embora Dreifuss tenha destacado o papel dos interesses do capitalinternacional como motivador da luta poltica de empresrios e ipesianos emgeral, tanto quanto opinies menos densas tenham quase que exclusivamentedestacado o papel determinante do estgio de ento do capitalismo. Ademais, natural que haja discrepncia entre a percepo dos sujeitos histricos e asanlises que, a posteriori, se possam fazer.

    Nada obstante, o estudo da memria militar chama a ateno para as-pectos complexos do processo histrico que culminou no golpe, dentre osquais sobreleva o carter aparentemente disperso da conspirao. De fato, pa-ra Dreifuss, o golpe resultou de uma articulao conspiratria centralizadano complexo Ipes/Ibad, como j foi visto. Porm, segundo Soares, o quehouve foi um caos conspiratrio, pois a coordenao entre os grupos em di-ferentes pontos do pas era pequena e, algumas vezes, na mesma cidade, gru-pos militares diferentes conspiravam sem maior articulao (p.47-8). A pr-pria iniciativa de Mouro sublinha essa falta de uma coordenao centralizada,ao contrrio da leitura de Dreifuss.

    Avaliaes como a de Soares confluram para uma iniciativa de pesquisaque se revelaria fundamental para o estudo do golpe de 64 e da ditadura mi-litar. Levadas a cabo por pesquisadores do CPDOC Centro de Pesquisa e

    Documentao de Histria Contempornea do Brasil, da Fundao GetlioVargas, vrias entrevistas com militares foram feitas.45 Em 1994, a equipe doCPDOC divulgou o primeiro dos trs volumes de entrevistas de militares queem sua maioria no tiveram uma liderana destacada nospreparativosdogolpe. Foram, no entanto, peas importantes na implementao e manuten-o do regime.46

    As entrevistas confirmavam a percepo militar majoritria da impor-tncia do anticomunismo e do mal-estar com a suposta quebra da hierarquia

    e da disciplina e, com elas, o aspecto da percepo militar sobre o papel doscivis e dos militares ficaria bastante esclarecido, pois, se havia bvio relacio-

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    namento entre os ativistas do Ipes e os militares, a deciso de movimentartropas, que , afinal, o gesto capaz de deflagrar o golpe, dependia de conside-raes especificamente militares, sendo visvel, por exemplo, para os generaisconspiradores, a importncia do papel (militar) da deciso do colega AmauryKruel, general comandante do II Exrcito, de aderir ou no ao movimento.Aspectos como poder de fogo, eficincia ou precariedade de armamentos dis-ponveis, tamanho das tropas etc. eram evidentemente importantes e, embo-ra o movimento tenha se consumado sem a necessidade de confrontaes mi-litares efetivas, claro que estas consideraes estavam na mente dos generaisgolpistas.

    Alm disso, os depoimentos mostram que, para os militares, o golpe de-correu de uma conspirao desarticulada, viso que, segundo os organizadores,

    se contrape interpretao predominante entre os analistas que at agora exa-

    minaram o episdio. Para estes, o golpe teria sido produto de um amplo e bem-

    elaborado plano conspiratrio que envolveu no apenas o empresariado nacio-

    nal e os militares, mas tambm foras econmicas multinacionais.47

    Tambm para o historiador marxista Jacob Gorender, a conspirao foidescentralizada: uma idia falsa a de que os golpistas estivessem fortemen-

    te articulados. Pelo contrrio, a articulao era frouxa e havia muita descone-xo.48 Argelina Figueiredo, alm disso, chama a ateno para o fato de que aconspirao foi uma condio necessria mas no suficiente para o sucessodo golpe de 1964.49

    Sem a desestabilizao (propaganda ideolgica, mobilizao da classemdia etc.) o golpe seria bastante difcil; sem a iniciativa militar, impossvel.Portanto, preciso bem distinguir a atuao desestabilizadora (a propagandado Ipes e outras agncias) da conspirao golpista civil-militar, que em mui-

    tos momentos no passou de retrica radical e somente se consolidou s vs-peras do 31 de maro. Assim, creio no ser abusivo afirmar o acerto histricoda leitura segundo a qual a desestabilizao civil foi bastante articulada, masa ao militar no foi inteiramente planejada, com segurana e sistematicida-de, ficando merc de iniciativas de algum modo imprevistas:

    Espalhavam-se as conspiraes, de norte a sul do pas. Num primeiro mo-

    mento, fragmentadas; mais tarde, unificando-se, numa rede complexa, no de

    todo centralizada, mas com certo nvel de coordenao. Com propsitos apa-rentemente defensivos, comearam a preparar um bote ofensivo.50

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    As pesquisas conduzidas pela equipe do CPDOC tambm serviram paraesclarecer a pouca importncia atribuda pelos militares ao apoio militar nor-te-americano, por vezes supervalorizado em algumas anlises brasileiras, co-mo critica Soares.51 Alm de apontar a importncia da considerao da espe-cificidade dos militares, as entrevistas realizadas pela equipe do CPDOCtrouxeram outras revelaes valiosas que elevaram o patamar do conheci-mento histrico sobre o tema. No que se refere estritamente ao perodo dogolpe, podem ser destacados aspectos como a falta de uma liderana militardurante o perodo da conspirao (todos teriam passado grande parte daconspirao procura de lderes)52 e a virtual inexistncia de um projeto degoverno: a questo imediata, segundo a maioria dos relatos, era tirar Jango e

    fazer uma limpeza nas instituies.53

    As transformaes estruturais do capitalismo brasileiro, a fragilidade ins-titucional do pas, as incertezas que marcaram o governo de Joo Goulart, apropaganda poltica do Ipes, a ndole golpista dos conspiradores, especial-mente dos militares todas so causas, macroestruturais ou microlgicas,que devem ser levadas em conta, no havendo nenhuma fragilidade tericaem considerarmos como razes do golpe tanto os condicionantes estruturaisquanto os processos conjunturais ou os episdios imediatos. Que uma tal

    conjuno de fatores adversos esperamos todos jamais se repita.

    NOTAS

    1 As pesquisas do autor contam com o apoio do CNPq e da Faperj. O presente artigo re-

    produz alguns aspectos tratados em FICO, C. Alm do golpe: verses e controvrsias sobre

    1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

    2 FERREIRA, J. O trabalhismo radical e o colapso da democracia no Brasil. Comunicao

    apresentada no Seminrio 40 Anos do Golpe. Rio de Janeiro: UFRJ, UFF, CPDOC, APERJ,

    22 mar. 2004.

    3 REIS FILHO, D. A. Ditadura militar e sociedade: as reconstrues da memria. Comuni-

    cao apresentada no Ciclo de Palestras Pensando 1964. So Paulo: Centro Cultural Banco

    do Brasil. 1 abr. 2004.

    4 VILLA, M. A.Jango: um perfil (1945-1964). So Paulo: Globo, 2004.

    5 GASPARI, E. A ditadura derrotada. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.324.

    6 FICO, C. Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polcia

    poltica. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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    7 LAPA, J. R. do A. A histria em questo (historiografia brasileira contempornea). Petr-

    polis: Vozes, 1976.

    8 IGLSIAS, F. Melanclica trajetria nacional.Jornal do Brasil. 23 mar. 1994. Primeiro ca-

    derno, p.11.

    9 Ver SKIDMORE, T. Brasil: de Getlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janei-

    ro: Saga, 1969 (a edio norte-americana de 1966).

    10 VIANA FILHO, L. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975. KRIEGER,

    D. Desde as Misses... saudades, lutas, esperanas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976.

    11 MELLO, J. P. A revoluo e o governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979.ABREU,

    H. O outro lado do poder. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.

    12 GABEIRA, F. O que isso, companheiro?Rio de Janeiro: Codecri, 1979. SIRKIS, A. Os car-

    bonrios: memrias da guerrilha perdida. So Paulo: Global, 1980.13 GORENDER, J. Prefcio. In: FICO, C., op. cit., p.13.

    14 Ver a melhor biografia do primeiro general-presidente recentemente publicada: LIRA

    NETO. Castello: a marcha para a ditadura. So Paulo: Contexto, 2004.

    15 A expresso foi proposta por Maria Celina DAraujo, Celso Castro e Glucio Ary Dillon

    Soares. Ver DARAUJO, M. C. et al. (Org.) Vises do golpe: a memria militar sobre 1964.

    Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994, p.9.

    16

    FICO, C. Alm do golpe: verses e controvrsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio deJaneiro: Record, 2004, p.83.

    17 Neste trabalho, uso a expresso linha dura para caracterizar os grupos militares e civis

    diretamente envolvidos com as comunidades de segurana e de informaes.

    18 KLEIN, L., FIGUEIREDO, M. F. Legitimidade e coao no Brasil ps-64. Rio de Janeiro:

    Forense-Universitria, 1978, p.46-7. OLIVEIRA, E. R. As Foras Armadas: poltica e ideolo-

    gia no Brasil (1964-1969). Petrpolis: Vozes, 1976, p.105. STEPAN, A. C. Os militares: da

    Abertura Nova Repblica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p.21.

    19 FICO, C. Como eles agiam. Os subterrneos da Ditadura Militar: espionagem e polciapoltica. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.123 ss.

    20 Ernesto Geisel disse: esse negcio de matar uma barbaridade, mas eu acho que tem

    que ser. GASPARI, E. A ditadura derrotada. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.324.

    21 O sistema foi implantado em 1970 no I Exrcito (Rio de Janeiro), no II Exrcito (So

    Paulo), no IV Exrcito (Recife) e no Comando Militar do Planalto (Braslia). No ano se-

    guinte, seriam criados os da 5a Regio Militar (Curitiba), da 4a Diviso de Exrcito (Belo

    Horizonte), da 6a Regio Militar (Salvador), da 8a Regio Militar (Belm) e da 10a Regio

    Militar (Fortaleza). Em 1974 foi implantado o de Porto Alegre (III Exrcito).22 A censura imprensa foi admitida pelo governo Mdici como revolucionria (isto , ba-

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    seada no AI-5) em 1973, durante o julgamento, pelo STF, de um mandado de segurana im-

    petrado pelo jornal Opinio. O episdio est descrito em SMITH, A.-M. Um acordo forado:o consentimento da imprensa censura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p.130-2.

    23 FICO, C. Prezada Censura. Cartas ao regime militar. Topoi, Rio de Janeiro, n.5, p.251-

    86, set. 2002.

    24 Sobre o tema ver FICO, C. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginrio

    social no Brasil (1969-1977). So Paulo, 1996. Tese (Doutorado) USP.

    25 Veja relao completa e outras informaes em FICO, C. Alm do golpe: verses e con-trovrsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.139 ss.

    26 STEPAN, A. C. Os militares na poltica: as mudanas de padres na vida brasileira. Rio

    de Janeiro: Artenova, 1975, p.140.

    27

    Ver a anlise crtica, superiormente conduzida, de Joo Roberto Martins Filho, para oqual essa no a principal fragilidade da obra de Stepan, mas sua viso dos militares co-mo uma elite burocrtica. Martins Filho cita diversos autores que criticaram a obra de Ste-

    pan, inclusive no que se refere refutao do padro moderador. MARTINS FILHO, J. R.O palcio e a caserna: a dinmica militar das crises polticas na ditadura (1964-1969). SoCarlos: EDUFSCar, 1995, p.28 ss. Ver, especialmente, CARVALHO, J. M. de. As Foras Ar-

    madas na Primeira Repblica: o poder desestabilizador. In: FAUSTO, B. (Dir.) O Brasil re-publicano. Histria Geral da Civilizao Brasileira, t.III, v.2. 2.ed. Rio de Janeiro: Difel,

    1978, p.181-256.

    28 SANTOS, W. G. dos. Paralisia da deciso e comportamento legislativo: a experincia bra-

    sileira, 1959-1966. Revista de Administrao de Empresas, v.13, n.2, abr./jun. 1973; e, domesmo autor, Coalizes parlamentares e instabilidade governamental: a experincia brasi-

    leira 1961/1964. Revista de Administrao de Empresas, v.13, n.4, out./dez. 1973.

    29 SANTOS, W. G. dos. O clculo do conflito: estabilidade e crise na poltica brasileira. Belo

    Horizonte, Rio de Janeiro: Ed. UFMG, Iuperj, 2003.

    30 DARAUJO, M. C. A iluso trabalhista: o PTB de 1945 a 1965. Rio de Janeiro, 1989. Tese(Doutorado) Iuperj; e, da mesma autora, Razes do golpe: ascenso e queda do PTB. In:

    SOARES, G. A. D., DARAUJO, M. C. (Org.) 21 anos de regime militar: balanos e perspec-tivas. Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1994.

    31 DARAUJO, M. C. Razes do golpe: ascenso e queda do PTB. In: SOARES, G. A. D.,

    DARAUJO, M. C. (Org.), op. cit., p.69.

    32 FIGUEIREDO, A. C. Democracia ou reformas?Alternativas democrticas crise poltica:

    1961-1964. So Paulo: Paz e Terra, 1993, p.25.

    33 As leituras criticadas so as de ODONNEL, G. Modernizacin y autoritarismo. BuenosAires: Paids, 1972; do mesmo autor, Reflexiones sobre las tendencias generales de cambio

    en el Estado Burocratico-Autoritrio. Buenos Aires: Cedes/Clacso. Documento n 1, 1975;

    e de CARDOSO, F. H. Associated-dependent development: theoretical and practical im-

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    plications. In: STEPAN, A. (Ed.) Authoritarian Brazil. New Haven: Yale University Press,

    1973.

    34 MORAES, J. Q. de. O colapso da resistncia militar ao golpe de 64. In: TOLEDO, C. N.

    de (Org.) 1964: vises crticas do golpe: democracia e reformas no populismo. So Paulo:

    Unicamp, 1997, p.131.

    35 OLIVEIRA, F. de. Dilemas e perspectivas da economia brasileira no pr-64. In: TOLE-

    DO, C. N. de. (Org.) 1964: vises crticas do golpe. Democracia e reformas no populismo.

    Campinas: Unicamp, 1997, p.26.

    36 FIGUEIREDO, A. C. Democracia & reformas: a conciliao frustrada. In: TOLEDO, C.

    N. de. (Org.), op. cit., p.47.

    37 TAVARES, M. da C. Auge y declinacin del proceso de sustitucin de importaciones en

    el Brasil. Boletn Econmico de Amrica Latina, v.9, n.1, mar. 1964; e FURTADO, C. Desar-rollo y estancamiento en Amrica Latina: un enfoque estructuralista. Desarrollo Econmi-

    co, v.6, n.22-23, 1966.

    38 Ver crtica em SOARES, G. A. D. O Golpe de 64. In: SOARES, G. A. D., DARAUJO, M. C.

    (Org.), op. cit., p.13.

    39 GORENDER, J. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das iluses perdidas luta ar-

    mada. So Paulo: tica, 1987, p.41-2.

    40 DREIFUSS, R. A. 1964: A conquista do Estado: ao poltica, poder e golpe de classe. Rio

    de Janeiro: Vozes, 1981, p.105.41 REIS FILHO, D. A. A revoluo faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. So Paulo,

    Braslia: Brasiliense, CNPq, 1990 [1989?], p.22.

    42 REIS FILHO, D. A. O colapso do colapso do populismo ou a propsito de uma herana

    maldita. In: FERREIRA, J. (Org.), op. cit., p.344. Para Caio Navarro de Toledo,pode-se

    afirmar que a crise econmica e o avano poltico-ideolgico das classes trabalhadoras e

    populares passavam a ser encarados [pela burguesia brasileira] como realidades sociais

    inaceitveis. TOLEDO, C. N. de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia populis-

    ta. Revista de Sociologia e Poltica, Curitiba, n.2, p.33, jun. 1994.43 REIS FILHO, D. A. O colapso do colapso do populismo ou a propsito de uma herana

    maldita. In: FERREIRA, J. (Org.), op. cit., p.332, nota 5 e p.335.

    44 SOARES, G. A. D. O Golpe de 64. In: SOARES, G. A. D., DARAUJO, M. C. (Org.), op.

    cit., p.27, grifado no original.

    45 Veja detalhes sobre os projetos que conduziram as entrevistas em DARAUJO, M. C.,

    SOARES, G. A. D., CASTRO, C. (Org.) Vises do golpe. A memria militar sobre 1964. Rio

    de Janeiro: Relume-Dumar, 1994, p.8; e em SOARES, G. A. D., op. cit., p.28 ss.

    46 DARAUJO, M. C., SOARES, G. A. D., CASTRO, C. (Org.), op. cit., p.8, grifado no origi-

    nal. Esse primeiro volume abrange o perodo compreendido entre a renncia de Jnio

    Verses e controvrsias sobre 1964 e a ditadura militar

    59Julho de 2004

  • 8/14/2019 Verses e controvrsias sobre 1964

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    Quadros e a eleio de Costa e Silva. Os demais so, dos mesmos organizadores, Os anosde chumbo: a memria militar sobre a represso. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994; e

    A volta aos quartis: a memria militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumar,1995.

    47 DARAUJO, M. C., SOARES, G. A. D., CASTRO, C. (Org.) Vises do golpe. A memriamilitar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994, p.16.

    48 GORENDER, J. Era o golpe de 64 inevitvel? In: TOLEDO, C. N. de. (Org.) 1964: visescrticas do golpe: democracia e reformas no populismo. So Paulo: Unicamp, 1997, p.112.

    49 FIGUEIREDO, A. C. Democracia ou reformas?Alternativas democrticas crise poltica:

    1961-1964. So Paulo: Paz e Terra, 1993, p.171.

    50 REIS FILHO, D. A. O colapso do colapso do populismo ou a propsito de uma herana

    maldita. In: FERREIRA, J. (Org.), op. cit., p.332.

    51 SOARES, G. A. D. O Golpe de 64. In: SOARES, G. A. D., DARAUJO, M. C. (Org.), op.

    cit., p.45.

    52 DARAUJO, M. C., SOARES, G. A. D., CASTRO, C. (Org.), op. cit., p.17.

    53 Ibidem, p.18.

    Carlos Fico