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Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Ano XXI Número 39 jan./jun. 2016 - Natal/RN, 2016 CONSELHO EDITORIAL: Ana Clara Marques Ferreira (UFG) Alana Frota Portela (UFC) Bianca de Figueiredo Melo Villas Bôas (UFRN) Bruna Portela Mendes (UFRN) Carolina Faria Collier de Oliveira (UFRN) Clara Bilro Pereira de Araújo (UFRN) Clara Sales Gurgel (UFRN) Cynthia Gabriella Avelino Costa (UFRN) Igor de Araujo Lima Freire (UFRN) João Paulo Chagas Parente (UFC) Leticia Gomes Cruz Ferreira Lopes (Unicap) Lucas Marcello de Castro Oliveira (UFRN) Manuela Bocayuva Carvalho (Universidade de Lisboa) Raimundo Lucas Silva Oliveira (UFRN) Rodrigo Pinheiro Rodrigues (UFRN) Vinicius Fernandes de Lima Cabral (UFRN)

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Publicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito daUniversidade Federal do Rio Grande do Norte

Ano XXI Número 39 jan./jun. 2016 - Natal/RN, 2016

CONSELHO EDITORIAL:

Ana Clara Marques Ferreira (UFG)Alana Frota Portela (UFC)

Bianca de Figueiredo Melo Villas Bôas (UFRN)Bruna Portela Mendes (UFRN)

Carolina Faria Collier de Oliveira (UFRN)Clara Bilro Pereira de Araújo (UFRN)

Clara Sales Gurgel (UFRN)Cynthia Gabriella Avelino Costa (UFRN)

Igor de Araujo Lima Freire (UFRN)João Paulo Chagas Parente (UFC)

Leticia Gomes Cruz Ferreira Lopes (Unicap)Lucas Marcello de Castro Oliveira (UFRN)

Manuela Bocayuva Carvalho (Universidade de Lisboa)Raimundo Lucas Silva Oliveira (UFRN)

Rodrigo Pinheiro Rodrigues (UFRN)Vinicius Fernandes de Lima Cabral (UFRN)

PARECERISTAS DESTA 39ª EDIÇÃO:

Andreo Aleksandro Nobre Marques (UFRN)Ângelo José Menezes Silvino (UFRN)Ana Beatriz Ferreira Rebello (UFRN)

Jahyr Philippe Bichara (UFRN)Carlos Martins Neto (UERJ)

Denise Fonseca Félix de Sousa (UFG)Dimas Macedo (UFC)

Erica Verícia Canuto de Oliveira Veras (UFRN)Fabiana Dantas Soares Alves da Mota (UFRN)

Fabrício Germano Alves (UFRN)Fernando Antonio de Vasconcelos (UFPB)

Francisco de Sales Matos (UFRN)Felipe Maciel Pinheiro Barros (UNI-RN)

Helena Telino Neves Godinho (UFC)Izabela Walderez Dutra Patriota (UNB)Jeison Batista de Almeida (UNEMAT)

Jorge Duarte Pinheiro (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)José Orlando Ribeiro Rosario (UFRN)

Karoline Lins Câmara Marinho de Souza (UFRN)Karla Viviane de Sousa Rêgo (UFRN)Lorena Cordeiro de Oliveira (UFPB)Marcelo de Barros Dantas (UNI-RN)

Marconi Antas Falcone de Melo (UFRN)Marcus Aurélio de Freitas Barros (UFRN)

Mariana de Siqueira (UFRN)Marise Costa de Souza Duarte (UFRN)

Olavo Hamilton Ayres Freire de Andrade (UERN)Paulo Roberto Dantas de Souza Leão (UFRN)

Paulo Renato Guedes Bezerra (UFRN)Pedro Barachisio Lisbôa (Bahia)

Rabah Belaidi (UFG)Samuel Max Gabbay (UFRN)

Thiago Oliveira Moreira (UFRN)Vinicius Gomes de Vasconcellos (USP)

Virgílio Fernandes de Macêdo Junior (UFRN)Vladimir da Rocha França (UFRN)

Walter Nunes da Silva Júnior (UFRN)William Paiva Marques Júnior (UFC)

Ana Beatriz Ferreira RebelloAna Luisa de Moraes Campos

Anderson Souza da Silva LanzilloAndreo Aleksandro Nobre Marques

Ângelo José Menezes SilvinoAnna Emanuella Nelson dos Santos C. da Rocha

Artur Cortez BonifácioBento Herculano Duarte Neto

Carlos Martins Neto (UERJ)Claudia Vechi Torres

Denise Fonseca Félix de Sousa (UFG)Dimas Macedo (UFC)

Diogo Pignataro de OliveiraEdilson Pereira Nobre Júnior

Eduardo Biacchi GomesElke Mendes Cunha

Érica Verícia Canuto de Oliveira VerasFabiana Dantas Soares Alves da MotaFabiano André de Souza Mendonça

Fábio Wellington Ataíde AlvesFabrício Germano Alves

Felipe Arady MirandaFelipe Maciel Pinheiro Barros

Fernando Antonio de Vasconcelos (UFPB)Filipe Azevedo Rodrigues

Francisco Barros DiasFrancisco de Assis Noberto Galdino de Araújo

Francisco De Sales MatosHelena Telino Neves Godinho (UFC)

Henrique Batista de Araújo NetoHumberto Lima de Lucena FilhoIgor Alexandre Felipe de MacêdoIngrid Zanella Andrade Campos

Ivan Lira de CarvalhoIzabela Walderez Dutra Patriota (UNB)

Jahyr-Philippe BicharaJeison Batista de Almeida (UNEMAT)

João Paulo dos Santos MeloJorge Duarte Pinheiro (Faculdade de Direito

da Universidade de Lisboa)José Araújo da Silva

Jose Miqueias Antas De GouveiaJosé Orlando Ribeiro Rosario

Jules MIchelet Pereira Queiroz e SilvaKarla Viviane de Sousa Rêgo

Karoline Lins Câmara MarinhoKeity Mara de Souza e Saboya

Lauro Ericksen Cavalcanti de Oliveira

Leonardo MartinsLídio Sânzio Gurgel Martiniano

Lorena Cordeiro de Oliveira (UFPB)Lorena Neves Macedo

Luciano Athayde ChavesLuiz Alberto Gurgel de Faria

Luiz Felipe Pinheiro NetoMadson Ottoni de Almeida Rodrigues

Marcelo de Barros DantasMarcelo Maurício da Silva

Marcelo Navarro Ribeiro DantasMarco Bruno Miranda Clementino

Marconi Antas Falcone de MeloMarconi Neves Macedo

Marcus Aurélio de Freitas BarrosMaria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro

Maria dos Remédios Fontes SilvaMariana de Siqueira

Marise Costa de Souza DuarteMorton Luiz Faria de Medeiros

Olavo Hamilton Ayres Freire de AndradeOtacílio dos Santos Silveira NetoPatrícia Borba Villar GuimarãesPaulo de Souza Coutinho FilhoPaulo Renato Guedes Bezerra

Paulo Roberto Dantas LeãoPedro Barachisio Lisbôa (Bahia)

Raoni Macedo BielschowskyRabah Belaidi (UFG

Ricardo Duarte JúniorRicardo Tinôco de Góes

Ricardo Wagner de Souza AlcantaraRonaldo Pinheiro de Queiroz

Samuel Max GabbayThiago Oliveira Moreira

Victor Rafael Fernandes AlvesVinicius Gomes de Vasconcellos (USP)Virgílio Fernandes de Macedo Junior

Vladimir da Rocha FrançaWalter Nunes da Silva Júnior

William Paiva Marques Júnior (UFC)Xisto Tiago de Medeiros Neto

Yanko Marcius de Alencar XavierYara Maria Pereira Gurgel

Zéu Palmeira SobrinhoREVISOR:

Samuel Max Gabbay

COMISSÃO VITALÍCIA:

Reitora Ângela Maria Paiva Cruz

Vice-Reitor José Daniel Diniz Melo

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS Diretora Maria Arlete Duarte de Araújo Vice-Diretora Maria Lucieu da Silva

Coordenadora do Curso de Direito Anna Emanuella Nelson dos Santos C. da Rocha

Chefe do Departamento de Direito Público Otacílio dos Santos Silveira Neto

Chefe do Departamento de Direito Privado Miquéias Dantas Antas Gouveia

Chefe do Departamento de Direito Processual e Propedêutica José Orlando Ribeiro Rosado

Coordenador da In Verbis Xisto Tiago de Medeiros Neto

DIAGRAMAÇÃO Hélder Souza de Lima

REVISOR Samuel Max Gabbay

TIRAGEM 400 Exemplares

PRESIDÊNCIA E ELABORAÇÃO Clara Bilro Pereira de Araújo

REVISTA JURÍDICA IN VERBISPublicação Semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Comissão Editorial da Revista Jurídica In VerbisUniversidade Federal do Rio Grande do Norte - Espaço Integrado CAAC - In Verbis

Av. Senador Salgado Filho, 3.000 - Setor I - Curso de DireitoCampus Universitário - Lagoa Nova - Natal/RN - CEP 59072-970

Home Page: www.inverbis.com.brE-mail: [email protected]

Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta Revista, desde que citada a fonte.

Revista Jurídica In Verbis / Publicação semestral dos Acadêmicos do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. – Ano 21, n. 39 (jan./jun. 2016).

SemestralISSN 1413-2605

1. Direito – Periódicos. I. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas - CCSA/UFRN

CDU - 34

Solicita-se permuta.Pídese canje.

On demande l’échange.Si richiede lo scambio.We ask for exchange.

Wir bitten um austausch.

EDITORIAL ................................................................................................. 09

PREFÁCIO .................................................................................................. 11

A ALIENAÇÃO PARENTAL NA PERSPECTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL .......................................................................................................... 17Eduardo Antonio Martins de OliveiraJean Barbosa Gibson

A EMENDA CONSTITUCIONAL 80/2014 E O SALTO VALORATIVO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA BRASILEIRA ...................... 31Gudson Barbalho do Nascimento Leão

A RESPONSABILIDADE DOS APLICATIVOS DE CELULARES NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS DE COMPRA E DE VENDA ORIUNDAS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO .......................................................................... 51Daniel Rodrigues Chaves

ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL PELA SUPREMA CORTE BRASILEIRA ..... 67Aglene de Arruda Moreira Sotero

Sumário

AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO OU DE MEDIAÇÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ....................................................................................... 87Daniel Maciel Domene

DIKASTERIA: A INFLUÊNCIA DA GRÉCIA DE SÓCRATES NO TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO .................................................................................... 107Sephora Luiza Marchesini Stival

O ANTEPROJETO DE LEI DE MIGRAÇÕES E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DOS MIGRANTES NO BRASIL E O DIREITO INTERNACIONAL: O FIM DE ALGUMAS LACUNAS .............................................................................. 125Jared Wanderson Moura de Sousa

O BANIMENTO DO VÉU INTEGRAL ISLÂMICO: UMA ANÁLISE DO JULGADO DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS ACERCA DO CASO S.A.S. X FRANÇA ........................................................................... 143Daniela Ferreira de Queiroz SerejoEduarda Lima Saldanha

O DIREITO AO ESQUECIMENTO E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO ............................................................................................. 161Ana Clara Miranda de Azevedo Peixoto

O MICROSSISTEMA CONSUMERISTA E AS DIFICULDADES DE COMBATE ÀS PRÁTICAS ABUSIVAS ON-LINE À LUZ DA MASSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES VIRTUAIS DE CONSUMO ...................................................... 179Paulo Vítor Avelino Silva Barros

OBJETIVAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO E HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL .................................................................................. 199José Henrique Zamai

POSSE: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DAS TEORIAS DE SAVIGNY E IHERING E DO REGIME DA FUNÇÃO SOCIAL ........................................ 217Mariana Maria de Carvalho MattosMarcela Macedo Féder

UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS ........................................................... 232Luiz Felipe Dantas dos Santos

[ARTIGO CONVIDADO] O NOVO CPC E A ALEGORIA DA CHARNEIRA: UMA INFLEXÃO FILOSÓFICA AO MITO DA SEGURANÇA EM PINDORAMA .... 249Ricardo Tinoco de Goes

[ARTIGO CONVIDADO] REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA: UMA INTRODUÇÃO ............................................................................................ 269Robson Maia Lins

REGRAS DE PUBLICAÇÃO PARA A PRÓXIMA EDIÇÃO ............................ 287

Há quem acredite que só é possível existir a práxis da singularidade humana quando há seres apaixonados que a realizem. É fiando-se nisso que, por mais uma edição, a Comissão Editorial da Revista Jurídica InVerbis tem o deleite de concretizar aquilo que por seis meses foi matéria prima de muito afinco e dedicação empreendidos, aprendizados alcançados, laços construídos e, sobremodo, de um sonho abraçado. Foi esta partilha de experiências, esta troca de sentimentos a cada perda e a cada conquista que impulsionaram esta paixão. Paixão entusiástica dos recém-chegados, os quais observam o resultado com a beleza de quem enxerga pela primeira vez, assim como a paixão saudosa daqueles que deixam a InVerbis carregando consigo o orgulho de uma missão cumprida.

Como condizente com sua tradição, nosso periódico é pela trigésima nona vez apresentado à comunidade jurídica com o escopo de fomentar a pesquisa forense em âmbito nacional, zelando pelo princípio constitucional indissociável entre a tríade do ensino, pesquisa e extensão. A gratificação de poder contribuir para um projeto corajosamente idealizado há 21 anos é refletida na consolidação do periódico como patrimônio potiguar e brasileiro de difusão do saber jurídico, sendo, inclusive, indexado internacionalmente.

Ao longo de seus anos de existência, a InVerbis protagoniza com excelência o reconhecimento da produção intelectual nas mais variadas subáreas do Direito - aqui consubstanciadas nesta Edição em todos os 12 artigos publicados. É neste ensejo que congratulamos todos os articulistas os quais por mérito tornam nossa causa possível, ao confiar em nosso trabalho e contribuir tão brilhantemente para o engrandecimento da pesquisa e da democratização do conhecimento.

Não obstante, também seguindo a ânsia de expansão e o apanágio inovador da InVerbis, é com prazer que nós, da 39ª Comissão Editorial, tomamos uma série de medidas em busca de aumentar o Sistema Qualis de avaliação da

Editorial

Revista. Em primeiro plano, os 05 (cinco) membros convidados, acadêmicos de diversas Universidades Federais e Internacionais junto aos 13 (treze) novos Pareceristas, mestres e doutores em Direito no Brasil e no exterior. Todos eles foram essenciais ao auxiliar com muita presteza o trabalho de toda Comissão ao longo do semestre. Além disso, houve a divulgação do projeto e do prazo de submissão de artigos entre todos os cursos de Direito das Universidades Federais, o que contribuiu para uma grande adesão de acadêmicos de todo o Brasil, fator de importante relevância para as exigências feitas pela Fundação CAPES.

Resguardamos ainda a lembrança da exímia tarefa de nosso Conselho Editorial que, após a criteriosa correção formal dos artigos submetidos, se incube da dupla e copiosa avaliação material de todos os títulos. Sua atividade, exercida pelo método de avaliação cega, torna seu crivo condicente com o tratamento imparcialmente justo – o que confere mais credibilidade ao resultado aqui publicado.

Em sequência, faz-se essencial lembrarmos dos nossos parceiros e apoiadores os quais viabilizam este sonho que é a InVerbis por meio dos incentivos encorajadores aqui investidos e sua crença no propósito de nossa Revista. Primeiramente, aqui fica a profunda gratidão à Ordem de Advogados do Brasil e à OAB Editora que, por mais uma vez, demonstraram seu imensurável apoio e comprometimento com os nossos princípios de incentivo e expansão da pesquisa jurídica, ajudando-nos a propagar tais ideais que há 21 anos são defendidos por este periódico. Por derradeiro, também apontamos a importância das parcerias novamente firmadas com escritórios de advocacia e demais instituições que com grande solicitude tornaram possível a materialização desta causa.

Por último, deixamos nosso muito obrigado ao nosso coordenador Professor Xisto Tiago de Medeiros Neto - por abraçar conosco este propósito - a todos que direta ou indiretamente contribuíram com esta Edição e a você, leitor, que confia em nosso resultado. Sabemos que a perpetuidade da InVerbis não seria possível sem todos aqueles que sugerem, criticam, incentivam e nos motivam todos os dias.

Outrossim, a missão adotada por nós nos passados seis meses faz do desfecho de mais este ciclo um momento memorável o qual nos proporciona orgulho e nos desperta o desejo dos melhores votos para o futuro da Revista. Por isso, é com a maior das satisfações e alegria que hoje entregamos a 39ª Edição da Revista Jurídica InVerbis, fruto de um trabalho árduo, apaixonante e, mais do que tudo, fruto de um sonho.

A Comissão Editorial.

Prefácio

PAIXÃO E CIÊNCIA: A HISTÓRIA EM CONSTRUÇÃO DO MAIS ANTIGO PERIÓDICO DO RIO GRANDE DO NORTE

No ano de 2007, um jovem estudante do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) ouviu falar que estavam abertas as inscrições do processo para escolher os novos membros da Comissão Editorial da Revista Jurídica In Verbis. Ainda sem ter a exata noção do que faria naquele projeto, revolveu participar da entrevista seletiva e acabou sendo aprovado.

Aquele jovem participou ativamente das atividades da revista por dois anos e, com isso, não só mudou a forma de ver o mundo, como também se apaixonou pela vida acadêmica, decidindo seguir por ela.

Nos idos de 2013, já mestre, o mesmo jovem foi convidado a fazer parte de um seleto grupo: o dos membros do Conselho Editorial – estar ao lado dos seus antigos professores era algo até então distante em sua imaginação. Não obstante, sua felicidade ficou ainda mais completa por poder voltar a contribuir de forma ativa para este projeto que tanto se dedicou durante a graduação.

Hoje, o jovem mencionado realiza mais um sonho: prefaciar uma edição do periódico que organizou, corrigiu artigos e a muito se dedicou.

Ao receber este convite, pensei: como escrever – na condição de cientista - o prefácio de um periódico científico, que mexe intensamente com as minhas mais íntimas emoções? Como ser isento e objetivo?

A resposta veio da conclusão de que a ciência não precisa estar dissociada das paixões, e o mundo acadêmico não deve ser estéril e sem emoções. Ao contrário: as paixões são o grande motor da evolução da ciência, despertando sentimentos fortes e, por vezes, antagônicos.

Como já devem ter percebido, a minha biografia se mistura, de forma indissociável, com a história da In Verbis, sendo inclusive permeada de histórias curiosas. Como exemplo, posso citar o fato de que nas edições 21 e 22, as revistas foram impressas em minha própria residência, com um equipamento comprado pela Comissão Editorial com vistas a reduzir custos.

Talvez você agora me pergunte: todos esses esforços depreendidos desde 2007 valeram mesmo a pena?

Para esta resposta, poderia mencionar as pessoas que conheci, pois foram as mais verdadeiras e duradouras amizades que fiz na Universidade, mas, estes argumentos são pessoais e não acadêmicos. Falarei da convicção acadêmica.

Hoje, com o lançamento da 39a edição, o projeto comemora seus 21 anos. A Revista Jurídica In Verbis não só é o mais antigo periódico acadêmico do Rio Grande do Norte, como também é o mais antigo periódico do país organizado por aluno. É um importante patrimônio jurídico e histórico do Rio Grande do Norte, sendo o primeiro veículo de comunicação em que muitos autores de livros do Estado publicaram seus trabalhos. Fazer parte desta construção valeu e ainda vale muito a pena e é, sem dúvida, motivo de muito orgulho.

Essa consolidação, todavia, não se deu sem muita luta e, acima de tudo, ousadia, de várias comissões para manter sua intrepidez. Aqui, ressalte-se, não menos importante, é o apoio incessante dos alunos do Curso de Direito da UFRN, os quais semestralmente prestigiam os eventos de lançamento e submetem novos artigos para publicação.

Nesse contexto, cabe ressaltar que o maior mérito deste periódico é – sem dúvida – suscitar a pesquisa jurídica norteriograndense. No ano de seu lançamento, em 1995, os alunos careciam de um meio científico para divulgar seus trabalhos e suas ideias. E, com a ousadia e coragem que só os puros de espírito dispõem, foi lançada a Revista Jurídica In Verbis. Foi colocado no mundo um periódico científico, que superou as barreiras do tempo e hoje se mostra uma realidade consolidada, sendo sinônimo de seriedade, de qualidade científica e de estímulo à pesquisa. Neste cenário, é muito gratificante saber que contribui, mesmo que minimamente, para o desenvolvimento dessa história.

Parabéns àqueles que ousaram ao fundar a revista, e parabéns àqueles que continuam ousando, como a atual Comissão Editorial. Cada edição que se lança é símbolo de coragem e dedicação a um ideal coletivo. Em um tempo no qual Zygmunt Bauman assevera que as relações são fluidas e, em nossa sociedade, vemos o individualismo crescendo, é incrível ter uma Comissão que dedique seu tempo trabalhando em prol da coletividade.

Portanto, caro leitor, ao receber a 39a Edição deste periódico, você

está tendo o privilégio de ter em vossas mãos algo com fibra, com história, com espírito coletivo, e não algo asséptico, sem cor ou sem forma. É a materialização do entrelaçamento da paixão e da ciência. Nessas páginas, você observará o surgimento dos maiores juristas potiguares, que – mesmo com tão pouca idade – desafiaram a si mesmos para produzir os melhores trabalhos acadêmicos.

Aproveitem esse privilégio e boa leitura!

Samuel Max Gabbay.

Artigos

A ALIENAÇÃO PARENTAL NA PERSPECTIVA DA

RESPONSABILIDADE CIVIL

Eduardo Antonio Martins de OliveiraGraduado em Direito pela UFRN

Jean Barbosa GibsonAcadêmico do 10º período do curso de Direito da UFRN

RESUMO

Com a promulgação recente de uma lei que trata especificamente sobre a alienação parental no direito brasileiro, torna-se necessário expor suas implicações práticas. O presente artigo busca, ao analisar a alienação parental, investigar o entendimento corrente sobre a responsabilidade civil no direito de família e a a aplicabilidade dos institutos jurídicos atuais nas consequências para os autores e vítimas envolvidas na prática. Buscou-se, ainda, tecer considerações acerca do abuso de direito e a similaridade de seus requisitos na observação de alienação parental. No intuito de ampliar os estudos comparativos, estabelece-se por fim um paralelo entre a Alienação Parental e as indenizações decorrentes de dano moral.

Palavras-chave: Responsabilidade civil. Alienação parental. Família.

18 A ALIENAÇÃO PARENTAL NA PERSPECTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

“Mais profunda do que a responsabilidade jurídica existente é a responsabilidade espiritual que jamais poderá ser desprezada”

(Pablo Stolze Gagliano; Rodolfo Pamplona Filho)

1 INTRODUÇÃO

As relações familiares, por seu potencial de surtir efeitos relevantes e passíveis de tutela pelo ordenamento jurídico, são objeto direto de estudo por sua ciência jurídica respectiva. Dessa forma, o Direito Civil se ocupa das relações familiares – e, por consequência, os reflexos da alienação parental no mundo fático, envolvendo pais e filhos – dentro do sistema normativo de controle social.

Nesse contexto, veio à tona a Lei nº 12.138/2010, que altera o artigo 236 da Lei nº 8.069, que dispõe sobre a alienação parental – um instituto recém-positivado e ainda muito delicado para a formação da personalidade e do caráter da criança. A relevância dada ao tema se dá pois esta cresce em um ambiente hostil, imposto por um dos pais e sem a presença do outro genitor, o que pode lhe causar danos na formação pessoal e no crescimento.

A lei atualmente em vigor, de 26 de agosto de 2010, traz o conceito legal de alienação parental e estabelece procedimentos de aferição e controle da prática para minoração dos danos sofridos pelo menor, bem como das prerrogativas dadas ao juiz para atuação rápida nos casos (a exemplo dos arts. 2º e 6º, que, respectivamente, conceituam o problema e listam as opções de diligência do magistrado).

Dada a recente positivação de lei específica a respeito deste tema ainda sem aprofundamento teórico na doutrina brasileira, surge a necessidade de identificar a melhor aplicação dos institutos jurídicos à alienação parental, como da possibilidade de indenização por dano moral e demais deveres reparação à parte danificada. Assim, este trabalho procura avaliar a repercussão da lei da alienação parental no âmbito da responsabilidade civil, verificando a possibilidade da reparação por abuso de direito e danos morais pelos prejuízos causados ao(à) parente alienado(a) e à criança e/ou adolescente envolvida(o) na alienação.

2 ALIENAÇÃO PARENTAL E RESPONSABILIDADE CIVIL

Para o direito privado o conceito de responsabilidade presume a

19Eduardo Antonio Martins de Oliveira - Jean Barbosa Gibson

conduta danosa de um agente que, atuando ilicitamente, viola uma norma (legal ou contratual) vigente no ordenamento jurídico. Dessa conduta, subsiste uma obrigação de reparar o dano causado a qual o agente está subordinado. A partir dessa definição, podem-se deduzir três pressupostos gerais da responsabilidade civil: a) a ação ou omissão humana voluntária; b) o dano ou prejuízo; e c) o nexo causal.

De modo sucinto, o primeiro elemento se traduz como sendo a conduta voluntária, comissiva ou omissiva, do agente que acaba resultando em danos ou prejuízo para a vítima. Para Gagliano e Pamplona Filho (2014, p. 73), é preciso entender que, para a responsabilidade civil, a essência da conduta humana é o elemento da voluntariedade, ou seja, o causador do dano deve possuir consciência dos atos materiais praticados em sua conduta. O nexo de causalidade, por sua vez, apresenta-se como elemento abstrato da responsabilidade civil que representa a relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o prejuízo causado (TARTUCE, 2014, p. 268).

Em relação ao dano, pode-se defini-lo como uma lesão a bem – patrimonial ou extrapatrimonial – juridicamente protegido, de modo que o dano é pressuposto essencial para a configuração da responsabilidade civil. De fato, não haveria de se falar em reparação civil sem a existência do dano, independente de dolo ou culpa. Assim, pode existir responsabilidade sem culpa (em sentido lato), mas não há como se imaginar responsabilidade sem dano (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 72).

Dessa forma, as consequências da conduta danosa se traduzem nas funções clássicas da responsabilidade civil, quais sejam: a) a de compensação do dano causado; b) a sancionatória, ou punitiva, do ofensor; e c) a preventiva da conduta lesiva. A primeira se propõe à reparação civil da vítima com o intuito de retornar, na medida do possível, à situação anterior ao dano. A segunda função possui caráter personalíssimo e sancionatório, voltando-se diretamente contra o ofensor de modo a persuadi-lo a não voltar a ocasionar danos. Por sua vez, a terceira e última função procura prevenir a manifestação de condutas antissociais, tornando público que os comportamentos lesivos não serão tolerados (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 63).

Tratando-se especificamente do direito de família no Brasil, há diversas possibilidades de sanção dentro da seara da responsabilidade civil, como na responsabilidade de indenizar dos pais para seus filhos por danos pessoais e materiais decorrentes da negligência na formação escolar (LIMA, 2004), bem como as previsões expressas de perda do poder familiar no Código Civil brasileiro. Ainda é incipiente, no entanto, o estudo

20 A ALIENAÇÃO PARENTAL NA PERSPECTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

das consequências advindas da prática da alienação parental – indicativo, portanto, de um campo ainda a ser explorado nas ciências jurídicas.

A alienação parental consiste no afastamento do filho de um de seus genitores ou cuidadores, que é geralmente realizado pelo genitor detém a guarda da criança após eventual processo de separação conjugal. Há, portanto, casos em que uma das partes utiliza-se do menor com intuito de se vingar e causar sofrimento ao(à) ex-companheiro(a). Também conhecida como “[implantação de] falsas ideias” (IBDFAM-MT; PODER JUDICIÁRIO DO MATO GROSSO, 2014, p. 16), a Alienação Parental é um fenômeno conceituado como um “processo que consiste em programar uma criança para que odeie, sem justificativa, um de seus genitores, decorrendo daí que a própria criança contribui na trajetória de desmoralização” (TRINDADE, 2011, p. 186).

Tal prática é, por definição, ato abusivo que envolve sentimentos conflitantes de ex-cônjuges e, no meio da linha de fogo, uma ou mais crianças em relação de parentesco com estes. Essa realidade, no entanto, é manifesta de pelo menos duas formas distintas que, apesar da similaridade nas terminologias adotadas, são manifestações diferentes de um mesmo problema. Segundo Silva (2011, p. 47),

Há a necessidade de esclarecimento acerca da terminologia:- A Alienação Parental (AP) caracteriza o ato de induzir a criança a rejeitar o pai/mãe-alvo (com esquivas, mensagens difamatórias, até o ódio ou acusações de abuso sexual).- A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é o conjunto de sintomas que a criança pode vir ou não a apresentar, decorrente dos atos de Alienação Parental.

A Alienação Parental é, portanto, a manifestação do comportamento por parte do genitor, enquanto a Síndrome de Alienação Parental é o conjunto de reflexos dessa atitude do adulto, gerados na criança e alimentados com o reforço por parte do alienador.

O Direito de família, como nas demais áreas jurídicas, possui certos princípios peculiares a si, que o diferenciam como especialidade da Ciência Jurídica em geral. No caso da proteção ao desenvolvimento da criança dentro do ambiente familiar, os legisladores originários e extraordinários deram atenção de forma ainda mais específica ao interesse e aos anseios do menor. PEREIRA (2009, p. 43) ressalta a importância dos princípios no direito de família, que antes eram relegados a fonte supletiva.

A Constituição Federal traz, em seu artigo 227, o dever familiar

21Eduardo Antonio Martins de Oliveira - Jean Barbosa Gibson

de prestação de apoio eficaz à criança e ao adolescente, de forma que contemple todas as áreas consideradas essenciais para o desenvolvimento de sua personalidade. De fato, Diniz (2013) menciona esse processo de constitucionalização dos princípios dentro do Direito de Família, o que demonstra ainda mais a importância de verificá-los no caso concreto, conforme se pretende tratar a seguir.

2.1 Alienação parental como abuso de direito

Trindade (2011), ao introduzir o tema da alienação parental em sua obra, traz a expressão “abuso de direito” no título. Entretanto, não argumenta sua sugestão no decorrer do trabalho, sendo um dos poucos autores que alia diretamente a prática à condição de abuso de direito.

Ao dispor o art. 187 do nosso Código Civil que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”, trata-se de previsão expressa do instituto do abuso de direito – o qual se caracteriza como sendo o exercício desproporcional de um direito, subjetivo ou potestativo, violador da boa-fé objetiva e, principalmente, da própria finalidade pela qual aquele direito fora recepcionado pelo ordenamento. É, pois, a extrapolação dos limites racionais do legítimo exercício do direito, sendo o oposto, portanto, do exercício regular do direito.

Da leitura do art. 187 do nosso Diploma Civil, pode-se depreender ainda que, para a configuração do abuso de direito, o agente não precisa demonstrar intenção de prejudicar a vítima, mas sim exceder claramente os limites impostos pela finalidade econômica ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes1. Assim, conclui-se que o critério utilizado para a caracterização do abuso de direito é o objetivo-finalístico (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014, p. 171-173).

Farias e Rosenvald (2009), ao tratarem do abuso de direito no âmbito familiar, restringem-se às questões financeiras da comunhão de bens entre cônjuges. No entanto, avaliando as características da prática alienatória em

1 Nesse sentido é o entendimento esposado pelo Enunciado de nº 37 da I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal, ao tratar sobre o artigo 187 do Código Civil: “a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.

22 A ALIENAÇÃO PARENTAL NA PERSPECTIVA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

crianças e adolescentes, percebe-se a utilização das prerrogativas legais de guarda ou tutela de menores – bem como da responsabilidade parental de cuidado – para fragilizar a parte contrária na relação. Nesse sentido, está Dias (2010, p. 435), ao afirmar que:

O estado de beligerância, que se instala com a separação, acaba, muitas vezes, refletindo-se nos próprios filhos, que são usados como instrumento de vingança pelas mágoas acumuladas durante o período de vida em comum. Por isso, é indispensável evitar a verdadeira disputa pelos filhos e a excessiva regulamentação das visitas (...).

Nesse sentido, os filhos são utilizados como objetos de vingança entre os ex-companheiros, e, quando se trata de crianças, essas acabam sendo influenciadas negativamente por um dos pais, na tentativa de se aproveitar da inocência dessas; como resultado, muitas vezes logram difamar e afastar o outro genitor de sua prole. A quantidade de ocasiões em que isso ocorre tende a aumentar com o crescimento, também exponencial, de divórcios.

Entende-se, como consequência, que a insistência em polarizar a convivência da criança, caracterizada na imposição do período de afastamento provocado pelo(a) alienante, pode levar ao estremecimento do laço afetivo entre um dos lados – já que os principais fatores que desencadeiam a alienação parental são o descontentamento com o fim do casamento, a raiva do ex-cônjuge, depressão, a falta de confiança na forma de criação do filho pelo ex-cônjuge e a desorganização econômica advinda do fim do casamento (SILVA, 2011).

Com efeito, as dificuldades apontadas residem na questão social, cuja cultura de silêncio ainda entrava as investigações contra a alienação. As supostas falhas na criação da lei refletem a necessidade de melhora no foco de proteção, que na prática ainda paira sobre os pais – ao arrepio dos diversos princípios constitucionais e infraconstitucionais, como o melhor interesse do menor.

Dado o que já foi dito sobre a prática de alienação parental, entende-se como possível a consideração de seus atos na realidade do abuso de direito, dada a desproporcionalidade e ausência de justificativa para a prática de campanhas difamatórias contra outrem em aproveitamento da posição de responsável pela criança.

23Eduardo Antonio Martins de Oliveira - Jean Barbosa Gibson

2.2 Da natureza moral dos danos decorrentes da alienação parental

Dentro do direito de família, encontram-se estudos sobre a aplicação do dano moral devido a abandono afetivo (BERNARDO, 2008), discussão que pode se aproximar à alienação parental como abuso psicológico gerador de danos morais.

Apesar da positivação de lei específica para controle da prática de alienação parental no Brasil, a incerteza que ainda paira na psicologia sobre a Síndrome como um problema psicológico gera impactos jurídicos imediatos, pois ainda há vicissitudes que podem ser identificadas no dia-a-dia das famílias cujos conflitos deixam o Direito numa dimensão insuficientemente clara para aplicação das normas atuais. Um dos possíveis pontos de discussão se refere ao foco da Alienação Parental enquanto agressão.

Segundo relatório editado pela Unicef (2010, p. 16), a violência doméstica contra o público infanto-juvenil se define através de

atos e/ou omissões praticados por pais, parentes ou responsável em relação à criança e/ou adolescente que sendo capaz de causar à vítima dor ou dano de natureza física, sexual e/ou psicológica implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância. Isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Como já visto anteriormente, a alienação parental pode ser conceituada como ato que gera sofrimento psicológico em menores, de forma a prejudicar seu desenvolvimento. Nesse sentido, é possível entender com mais proximidade a real gravidade da prática, visto que pode ser equiparada à violência doméstica quanto aos atos que a compõem – e, dessa forma, entender a essencialidade da atuação do magistrado (como pessoa que deve estar capacitada técnica e juridicamente para lidar com os impactos de atos não jurídicos, de viés mais psicológico).

Além da própria omissão das partes envolvidas no ato de violência psicológica, essa incubação de sentimentos e reflexos do abuso favorece a perpetuação do sofrimento, perpassado através de gerações – o que se agrava quanto a prática em questão (no caso, a alienação parental) se alimenta dos conflitos entre pais e filhos.

Pesquisadores da psicologia jurídica alertam ainda para a

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necessidade de identificação precoce, na criança, dos sintomas pertinentes à alienação parental, visto que seu tratamento tardio pode gerar consequências irreversíveis para sua vida adulta:

a Síndrome de Alienação Parental pode produzir nas crianças problemas como depressão crônica, incapacidade de adaptação em ambiente psico-social normal, transtornos de identidade e de imagem, desespero, sentimento incontrolável de culpa, sentimento de isolamento, comportamento hostil, falta de organização e, em extremos, levar ao suicídio. Estudos (...) têm mostrado que quando adultas, as vítimas da alienação têm inclinação ao álcool e às drogas, bem como apresentam outros sintomas de profundo mal-estar e desajustamento. (TRINDADE, 2011, p. 188)

Tais consequências negativas, somadas ao potencial de reincidência nas futuras gerações ratificado por Trindade (2011), Fernandes e Miranda (2012), demonstram a gravidade do problema sob a ótica da proteção do menor, que vive em ambiente familiar sob a suposta pretensão de que nesse cenário encontrará condições dignas de desenvolvimento mental, físico e intelectual satisfatórios. No entanto, o que ocorre nesses casos é o arrastar, durante toda sua preparação para idade adulta, de sequelas de feridas não tratadas, adquiridas na infância ao serem vítimas da violência emocional do genitor patológico.

Um dos grandes desafios do Poder Judiciário, nesse sentido, é o de fornecer uma tutela efetiva, que alcance os fins almejados pela Lei a todas as partes envolvidas na lide. Essa tutela deve ser aplicada com qualidade (para que eventuais punições e tratamentos sejam dados na medida certa, não extrapolando a intervenção mínima necessária do Estado) e em tempo hábil (visto o que pode ocorrer com o menor e sua relação familiar caso haja demora em desenvolver soluções para o caso).

Como visto anteriormente, o dano é pressuposto fundamental para a configuração da responsabilização cível. De fato, sem a ocorrência desse requisito não existiria o que indenizar, de modo que se faz necessária a comprovação do dano patrimonial ou extrapatrimonial sofrido pela vítima para se responsabilizar judicialmente o ofensor.

Destarte, mesmo que se figure impossível o retorno ao estado anterior ao dano, qualquer tipo de dano pode ser ressarcido. Contudo, para tanto, certos requisitos devem ser observados. Conforme ensinam Gagliano e Pamplona Filho (2014), em primeiro lugar, é preciso existir a violação a

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interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de pessoa física ou jurídica (ou seja, é preciso que haja lesão a um bem material, ou não, juridicamente tutelado). Em segundo lugar, o dano precisa ser certo, mesmo no caso dos danos extrapatrimoniais, os quais são difíceis de se mensurar. Assim, mesmo que o dano seja a um bem jurídico abstrato (como é o caso dos direitos da personalidade), é preciso que o mesmo seja demonstrado em juízo.

Por fim, é preciso que o dano continue a subsistir no mundo dos fatos no momento de sua comprovação perante o Judiciário. Logo, não existindo dano, ou tendo sido este reparado previamente, não existe interesse da responsabilidade civil, pois a ação perde o seu objeto principal: o prejuízo patrimonial ou extrapatrimonial causado.

A doutrina civilista apresenta variadas espécies de dano2, contudo não é a intenção do presente artigo aprofundar cada um deles. Portanto, para a melhor compreensão do tema que aqui se discute, o da responsabilização civil no caso da alienação parental, pretende-se concentrar no tipo de dano específico sofrido pelo parente alienado: o moral.

Dano moral é aquele violador dos direitos da personalidade da pessoa, tais como a honra, a imagem, a intimidade e a vida privada. Está relacionado, pois, a direitos extrapatrimoniais resguardados pelo ordenamento jurídico – os quais, em sua integralidade, consubstanciam a chamada dignidade da pessoa humana. A Constituição de 1988, em seus incisos V e X do art. 5º, evidenciou a reparação pelo dano moral, enquanto o Código Civil, em seus arts. 186 e 927, reforça as disposições de nossa Carta Constitucional ao disciplinar o dano extrapatrimonial.

Diante disso, para a configuração do dano moral é preciso que ocorra violação aos direitos personalíssimos essenciais para uma vivência digna. Nessa linha, é de inequívoca importância a lição do professor Cavalieri Filho (2010, p. 82) ao estabelecer que o critério determinante para a ocorrência do dano moral é a violação à dignidade do ofendido ou, no mínimo, a um dos direitos da personalidade. Portanto, o mero dissabor por parte da vítima não justifica plenamente o cabimento da indenização por dano moral.

Desse modo, nos termos do art. 6º da lei 12.318/2010, é indubitável que os parentes alienados sofrem dano moral quando caracterizadas uma das condutas exemplificadas nos incisos do parágrafo único do art. 2º, da

2 Dentre eles estão os danos patrimoniais, danos morais, danos estéticos, danos morais coletivos, danos sociais ou difusos, entre outros.

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mesma lei. Inclusive, o dano moral não ocorre apenas para o parente alienado, mas também para os filhos que tiveram a sua dignidade, integridade física e psíquica e os seus direitos de conviver com o pai/mãe violados pela alienação parental em flagrante violação ao art. 227 do Texto Constitucional.

Apesar de ainda iniciantes os estudos sobre indenização moral em alienação parental, a doutrina que já se manifesta aponta questões desfavoráveis a essa comparação. Enquanto o abandono afetivo seria um dano advindo da abstenção do dever de cuidado e acompanhamento do genitor, a implantação da Síndrome de Alienação Parental surge com a prática ativa e dolosa de utilizar sua prole como ferramenta em uma campanha de desmoralização do outro genitor – não sendo isso um sinônimo necessário de ausência de cuidados e atenção (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2014).

3 CONCLUSÕES

Observa-se, através do que fora exposto, que a alienação parental ainda é um fenômeno inconcluso na doutrina especializada dos conflitos familiares. Grande parte disso se dá pela ausência de classificação oficial da Síndrome – o que dificulta estudos na área e propicia a difusão de diferentes conceitos – e a recente positivação como um conjunto de fatos merecedor de tutela no ordenamento brasileiro.

Tem-se, ainda, a situação de sensibilidade emocional no âmbito familiar, que não favorece um diálogo franco acerca do interesse dos menores envolvidos. As rupturas sentidas apenas se alastram com a disputa entre os genitores, sendo que um deles (ou ambos, e até mesmo familiares ou outras pessoas correlatas) se torna cego para a realidade da criança.

Não obstante a isso, resta clara a possibilidade de aplicação de institutos da responsabilidade civil através de análise teórica, carecendo o estudo apenas da casuística brasileira – contando que, quando eventualmente provocado nos termos da responsabilidade civil na alienação parental, o Poder Judiciário venha a se manifestar claramente a respeito. A contribuição dos estudos para a solução de tais dúvidas área pode gerar um impacto não somente jurídico, mas também pedagógico, sendo a prática passível de refreamento quando potenciais abusadores se depararem com a realidade de devedores – ao Estado, à sociedade e àqueles que foram ou seriam vítimas diretas de suas práticas.

27Eduardo Antonio Martins de Oliveira - Jean Barbosa Gibson

REFERÊNCIAS

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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume 6: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

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PARENTAL ALIENATION THROUGH THE PERSPECTIVE OF CIVIL LIABILITY

ABSTRACT

29Eduardo Antonio Martins de Oliveira - Jean Barbosa Gibson

With the recent enactment of a law that specifically deals with the parental alienation in Brazilian law, it is necessary to expose its practical implications. This article seeks, while examining the parental alienation, to investigate the current understanding of the liability in family law and the applicability of existing legal institutions on the consequences for the perpetrators and victims involved in the practice. It attempts to also make considerations about the abuse of rights and the similarity of their requirements on observation of parental alienation. In order to expand the comparative studies, it settles finally a parallel between parental alienation and indemnifications arising from moral damages.

Keywords: Civil liability. Parental alienation. Family law.

A EMENDA CONSTITUCIONAL 80/2014 E O SALTO

VALORATIVO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA

BRASILEIRA

Gudson Barbalho do Nascimento LeãoBacharel e Mestre pela UFRN

RESUMO

O presente estudo busca examinar a Emenda Constitucional 80/2014, que recentemente modificou o texto Constitucional e representou considerável impacto na estrutura defensorial, uma vez que, graças a ela, o papel da defensoria foi robustecido na sistemática jurídica da democracia brasileira, razão por que são apontadas as inovações trazidas pela novel Emenda e o incremento institucional experimentado pela Defensoria Pública desde então. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e legal como forma de enfatizar a importância do órgão defensorial, na busca pelo amplo acesso à Justiça, analisando-se as alterações provocadas pela EC 80/94 e seus impactos na atuação da Defensoria Pública, encartada no ordenamento jurídico como instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, que instrumentaliza o regime democrático, incumbindo-lhe, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus (judicial e extrajudicial) dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. Nesse ínterim, a presente monografia parte do exame das modificações implementadas pela

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referida Emenda constitucional para concluir que tais alterações têm o condão de aprimorar as prerrogativas institucionais, sedimentando-as, na condução da Defensoria ao status de órgão de índole constitucional, com especial relevância na recente democracia brasileira. Conclui-se que a EC 80/14 caminha nesse sentido: perfectibiliza a Defensoria Pública, aprimora o Estado Democrático de Direito e viabiliza, em termos concretos um aprimoramento na prestação da assistência jurídica aos necessitados, sejam eles hipossuficientes no sentido econômico (funções típicas), ou hipossuficientes no sentido jurídico ou organizacional (funções atípicas).

Palavras-chave: Defensoria Pública. Emenda Constitucional 80/14. Fortalecimento de prerrogativas. Valorização institucional.

1 INTRODUÇÃO

Embora a história revele experiências embrionárias acerca da instituição defensorial no Brasil, certo é que a Defensoria Pública, enquanto órgão componente do sistema judicial brasileiro, integrante das funções essenciais da justiça, apenas surgiu com a Constituição de 1988, estando prevista no art. 134 do texto constitucional.

Isso porque até 1988, as Constituições até faziam referência expressamente à atividade de assistência judiciária, mas não ao órgão que deveria prestá-la, o que, ao fim das contas, acarretava a sua inoperância e estimulava a ineficiência do serviço.

Com efeito, ao invés da assistência a órgãos inseridos na estrutura do Poder Executivo, o constituinte de 1988 definiu que a assistência jurídica deveria ser prestada por uma instituição independente, especialmente incumbida deste mister, instituição designada pelo texto constitucional como Defensoria Pública.

De fato, agora, com a previsão de uma instituição especificamente voltada para prestar a assistência jurídica aos necessitados, o serviço público

33Gudson Barbalho do Nascimento Leão

passa a ser realizado por um corpo especializado de agentes, que possuem estrutura própria e se dedicam exclusivamente a esta tarefa, de certo que a sociedade sai beneficiada deste rearranjo operado, visto que o serviço de assistência jurídica passou a ser prestado de maneira mais eficiente, técnica e por profissionais qualificados, recrutados mediante concurso público de provas e títulos.

Por outro lado, cumpre destacar que a mera previsão constitucional da Defensoria Pública, no fim da década de 80, não significou, sponte propria, a estruturação e o aparelhamento das Defensorias pelo Brasil adentro. Exemplo disso são os inúmeros casos de Estados que ainda hoje não as possuem, sem contar o lamentável quadro de sucateamento em que se encontram muitas delas, cujos governantes infelizmente ainda não despertaram para a importância da instituição e para os benefícios que uma defensoria bem equipada podem trazer à população assistida.

Nesse ínterim, vale destacar que na marcha do processo legislativo pelo qual passou a Emenda Constitucional em comento, foram apensadas à Proposta de Emenda Constitucional n 247/2013 (PEC 4/2014 no Senado Federal, que depois se converteu na EC 80/14), foram apresentadas justificativas pelos deputados Mauro Benevides, Alessandro Molon e André Moura, as quais traduzem de maneira didática e precisa o verdadeiro propósito da citada Emenda Constitucional, revelando a que veio:

Passadas mais duas décadas, a Defensoria Pública ainda não está instalada em todos os Estados da Federação. Em alguns casos, sequer o primeiro concurso público para o cargo de defensor público foi iniciado ou concluído.De modo geral, o panorama da Defensoria Pública no Brasil ainda é marcado por uma grande assimetria, com unidades da federação onde seus serviços abrangem a totalidade das comarcas - com defensores públicos e funcionários em quantidade razoável – e outros onde nem ao menos 10% das comarcas são atendidas.Recentemente, a exata dimensão da falta do serviço da Defensoria Pública na maior parte das cidades brasileiras foi detectado no estudo denominado ‘Mapa da Defensoria Pública no Brasil”, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, fundação pública vinculada à Presidência da República, juntamente com a Associação Nacional dos Defensores Públicos — ANADEP e Ministério da Justiça.De acordo com esse estudo, no Brasil há 8.489 cargos criados de defensor público dos Estados e do Distrito Federal, dos quais apenas 5.054 estão providos (59%). Esses 5.054 defensores

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públicos se desdobram para cobrir 28% das comarcas brasileiras, ou seja, na grande maioria das comarcas, o Estado acusa e julga, mas não defende os mais pobres.A Constituição Federal de 1988, portanto, precisa ser mais enfática, no sentido de assegurar a todos os cidadãos brasileiros, em todo o seu território, o acesso aos serviços da Defensora Pública. Esse é o primordial objetivo dessa Proposta de Emenda à Constituição, estabelecendo uma meta concreta, legítima e plenamente factível de ser alcançada, para que número de defensores públicos na unidade jurisdicional (comarca ou sessão judiciária, conforme o caso) seja proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população (BENEVIDES, Mauro; et al. Disponíveleem:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1064561&filename=PEC+247/2013. Acesso em 14 de novembro de 2015).

Pois bem, certo é que desde sua criação constitucional, a Defensoria Pública (seja a da União, seja a dos Estados), vem experimentando uma exitosa, profícua e exponencial valorização em nosso ordenamento jurídico. E é importante que assim seja, até mesmo como forma de viabilizar a realização de seu múnus público de maneira plena, escorreita, e proporcionando à população assistida uma orientação jurídica adequada, eficiente e capacitada, na tentativa de fornecer um serviço público defensorial de qualidade, em detrimento de prestações deficitárias, que infelizmente ainda é traço marcante no serviço público brasileiro.

Nessa escalada institucional, destaca-se que a Lei Orgânica da Defensoria (LC 80/94) representou um marco na história da Defensoria, porquanto traçou atribuições, princípios e prerrogativas que alicerçam a atuação das defensorias, em geral e dos defensores, em particular.

É que a Lei Complementar 80, de 12 de janeiro de 1994, veio cumprir o mandamento instituído pelo § 1º do art. 134 da Constituição, ao dispor sobre a organização da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública do Distrito Federal, além de traçar normas gerais para a estruturação das Defensorias Públicas estaduais.

Avante, no processo de ascensão institucional da Defensoria, tem-se que em 7 de outubro de 2009 entrou em vigor a LC 132, responsável por operar profundas modificações na sistemática da LC 80/94. Dentre muitas das medidas adotadas, destacam-se a expansão das atribuições da Defensoria Pública, a instituição de novas prerrogativas para os seus membros, além

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da regulamentação da autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria Pública dos Estados (LIMA, 2015). De fato, a LC 132/09 detalhou a definição da Defensoria Pública, fortalecendo-a ao intensificar o seu papel na efetivação dos direitos humanos e na defesa coletiva de direitos dos necessitados:

Art. 1º da LC 132/09 - A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.

No plano constitucional, há de se ressaltar que a Emenda Constitucional 45/2004 trouxe importantes contribuições à Defensoria. Graças a tal emenda, garantiu-se às Defensorias Públicas estaduais a autonomia funcional, administrativa e orçamentária, conquista que apenas seria assegurada às Defensorias do Distrito Federal e da União por força das emendas 69/2012 e 74/2013, respectivamente, e que ainda assim, estão sub judice perante o Supremo Tribunal Federal, por vislumbrarem inconstitucionalidade no deferimento da benfazeja autonomia defensorial1.

É importante que se diga que as alterações constitucionais foram necessárias, inclusive como forma de adequar o texto da Constituição ao papel que se espera da Defensoria Pública e aos ditames do panorama do sistema jurídico vigente.

De todo modo, certo é que tais modificações constitucionais foram imprescindíveis à sua desenvoltura institucional, conferindo maior liberdade orçamentária, administrativa e funcional, representando um considerável incremento na liberdade defensorial, porquanto financeira e orçamentariamente desvencilhada do Poder Executivo:

No processo de amadurecimento legislativo da Defensoria Pública, a instituição ganhou novas funções, deixando de se constituir como um mero organismo estatal apto a prestar assistência jurídica individual e se apresentando como um novo vértice do sistema de Justiça, principalmente em razão

1 Vide ADI 5296, em tramitação perante o Supremo Tribunal Federal.

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de sua autonomia concedida pelas Emendas Constitucionais n. 45/04, 69/12 e 74/13 (SILVA, 2014, p. 13).

Mais recentemente, de novo o número 80 (este número que tem força cabalística para a Defensoria), entrou em cena para resguardar a instituição e arregimentar as prerrogativas e o vigor do órgão público. Com efeito, a Emenda Constitucional 80/2014 deu passos largos nessa trajetória em busca da consolidação de uma Defensoria Pública autônoma, estruturada, militante, forte e hígida, porquanto conformou o órgão defensorial, estabelecendo a simetria constitucional com o Poder Judiciário e o Ministério Público, constitucionalizando a legitimidade para a tutela coletiva (de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos), atribuindo-lhe ainda a iniciativa de lei, entre outras novações, conforme adiante se verá.

Em doutrina, Franklyn Roger Silva (2014), Defensor Púbico do Estado do Rio de Janeiro e estudioso empenhado nos assuntos defensoriais, esclarece:

O universo da Defensoria Pública foi presenteado com a aprovação e promulgação Emenda Constitucional n. 80, de 29 de maio de 2014, fruto da Proposta de Emenda à Constituição n. 04/14 do Senado Federal, também conhecida como PEC n. 247/13, em razão de sua numeração na Câmara dos Deputados.Em linha de síntese, a alteração do texto constitucional culminou na reformulação do art. 134 da Constituição Federal e na reestruturação das Seções atinentes ao Capítulo das Funções Essenciais à Justiça. Além disto, a estrutura funcional e administrativa da Defensoria Pública ganham novas funções, em consequência da aplicação das normas constitucionais que regulam matérias administrativas aos tribunais.

Feito esse breve apanhado geral, a partir de agora, a análise do presente estudo centrar-se-á no apontamento de algumas dessas modificações, registrando a importância delas para a consolidação da Defensoria Pública enquanto instituição permanente de relevância ímpar para a ordem jurídica brasileira e, sobretudo, para a população assistida, que necessita dos préstimos da valorosa Defensoria Pública.

2 AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA EC 80/14 E O FORTALECIMENTO DA DEFENSORIA PÚBLICA

2.1 Da posição estrutural da Defensoria Pública no texto constitucional.

37Gudson Barbalho do Nascimento Leão

Uma seção própria como estandarte de sua autonomia

A primeira alteração digna de nota dentre aquelas que foram implementadas pela Emenda Constitucional em apreço diz respeito à posição estrutural da Defensoria Pública no plano das funções essenciais à justiça, uma vez que a Seção III – Da Advocacia e da Defensoria Pública, integrante do Capítulo IV, trazia a equivocada idéia de que a Defensoria Pública faria parte do mesmo regime jurídico da Advocacia. A partir de agora, a Defensoria ganhou seção própria (Seção IV), apartada da Advocacia, o que enfatiza a distinção havida entre ambas.

De fato, é intensa a cizânia doutrinária e jurisprudencial acerca do enquadramento das funções da advocacia e da Defensoria Pública. É dizer: discute-se com calor e fôlego se o defensor público pode ou não ser enquadrado no gênero “advogado”, considerando-se que o Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), especificamente em seu art. 3°, prevê que os membros da Defensoria Pública estão sujeitos ao regime jurídico ali estatuído.

A bem da verdade, desde a criação do órgão defensorial em 1988 e, principalmente, após a promulgação da LC 80/94 evidenciou-se uma discrepância entre as duas categorias, de sorte que, por mais que o defensor exerça atividades típicas de advogado (peticionamento, acompanhamento processual, orientação e assessoramento jurídico), as figuras do Defensor e do Advogado não se confundem entre si.

Tanto é assim que o art. 4º, § 6º da LC n. 80/94 assegura que a capacidade postulatória do Defensor Público é obtida por meio de sua nomeação e consequente posse no cargo, revelando a total desnecessidade de vinculação dos defensores públicos aos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Em outras palavras, uma pessoa aprovada no concurso para o cargo de “defensor público”, depois de ultimadas todas as etapas e devidamente nomeada, possuirá capacidade postulatória, ainda que não ostente vínculo anterior com a Ordem dos Advogados do Brasil. O defensor não precisa ter sido advogado previamente, não precisa sequer ter feito o Exame de Ordem; eis a intelecção da LC 80/94.

Nem se diga que o defensor é advogado porque exerce atividade típica de advocacia. Não. Isso porque os promotores de justiça e procuradores da República, por exemplo, exercem iguais atividades típicas de advocacia e nem por isso são denominados “advogados” ou se submetem ao regime da advocacia, estabelecido pela Lei 8906/94. Também, na esteira do que preconiza o art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, qualquer um do povo

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pode impetrar Habeas Corpus, instrumento ordinariamente manejado pelos causídicos e que nem por isso se revela suficiente a legitimar ao cidadão do título de “advogado”.

Isto é, embora próximas, as atividades de Defensoria e Advocacia não se confundem. Talvez por isso, por ser tão freqüente o baralhamento de conceitos, o Constituinte reformador cuidou, agora, de segregar a Defensoria Pública da Advocacia, franqueando-lhe uma seção própria, ponderando-a como função essencial autônoma, destinada à assistência jurídica gratuita daqueles que dela necessitam.

Com a nova formatação introduzida pela Emenda Constitucional 80/14, criou-se uma nova Seção (Seção IV), no Capítulo IV do Título III da Constituição, destinada exclusivamente ao regramento da Defensoria Pública, demonstrando-se a sua total autonomia e desvinculação ao regime jurídico da Advocacia, harmonizando-se desta forma o texto Constitucional aos apelos da doutrina militante em prol da valorização institucional, na esteira do que já vinha reconhecendo entusiasta jurisprudência.

2.2 O aprimoramento conceitual e o incremento funcional da Defensoria Pública na nova sistemática implementada pela EC 80/14

Outra alteração a ser comentada diz respeito ao novo texto do art. 134 da Constituição Federal, que doravante segue em sintonia com o art. 1º da LC n. 80/94, ao estipular que:

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.

Assim, com a nova Emenda, foi reconhecido o caráter permanente da Defensoria Pública, na esteira do que já se delineara para o Ministério Público no art. 127 do texto constitucional, desde o texto originário de 1988. Disso decorre o fato de que, em virtude do caráter perene da instituição, a Defensoria Pública não poderá ser objeto de qualquer norma jurídica tendente à sua extirpação do ordenamento jurídico, circunstância que representa uma inaudita conquista à instituição, apesar de a doutrina majoritária já alertar para

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a proibição de tal retrocesso, à míngua de expressa previsão constitucional. Ademais, é válido reiterar o fato de que, consoante o novo

arranjo textual do art. 134, a Defensoria Pública passa a encorpar o papel de instrumentalizadora do regime democrático brasileiro, alteração que pode ser encarada sob duas óticas (LIMA, 2015). Isto é, sob o ponto de vista institucional (interna corporis), reforça-se a necessidade de aprimoramento de mecanismos democráticos no seio da Defensoria Pública, em especial no tocante à figura a Ouvidoria-Geral, órgão auxiliar da estrutura das Defensorias Públicas.

Sob outro prisma, o reflexo do regime democrático nos obriga a reconhecer que a Defensoria Pública deve, no desempenho de suas funções, potencializar a sua atuação, fortalecendo-se a democracia e a própria cidadania, na tentativa de assessorar juridicamente a população assistida que, além da hipossuficiência econômica, jurídica ou organizacional, é quase sempre deficitária de atenção política, marginalizada por muitos gestores e carente de políticas públicas verdadeiramente inclusivas e eficientes.

Pois bem, o fortalecimento da Defensoria Pública, manifesto nas alterações realizadas pela EC 80/14, caminha no sentido de aprimorar o amplo Acesso à Justiça, nos moldes antevistos por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que já na década de 60, doutrinaram acercas das ondas renovatórias do acesso à Justiça. Com escólio na doutrina desses autores italianos, mas com os olhos voltados para a sistemática processual brasileira, Teori Albino Zavascky (2014) leciona:

As modificações do sistema processual civil operaram-se em duas fases, ou “ondas”, bem distintas. Uma primeira onda de reformas, iniciada em 1985, foi caracterizada pela introdução, no sistema, de instrumentos até então desconhecidos do direito positivo, destinados (a) a dar curso a demandas de natureza coletiva, (b) a tutelar direitos e interesses transindividuais, e (c) a tutelar, com mais amplitude, a própria ordem jurídica abstratamente considerada. E a segunda onda reformadora, que se desencadeou a partir de 1994, teve por objetivo não o de introduzir novos, mas o de aperfeiçoar ou de ampliar os já existentes no Código de processo, de modo a adaptá-lo às exigências dos novos tempos.

Nesse ponto, importa registrar o fato de que a Constituição Federal passa a tratar de funções defensoriais de natureza típica e atípica em seu próprio texto, expressando de forma nítida que a Defensoria Pública é uma instituição com uma nova estrutura, atuando na promoção de direitos humanos e na tutela em caráter individual e coletivo, dos direitos dos necessitados. Acerca

40 A EMENDA CONSTITUCIONAL 80/2014 E O SALTO VALORATIVO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA BRASILEIRA

das funções típicas, Silvio Roberto de Mello Moraes (1995) aduz:

As funções típicas seriam aquelas exercidas pela defensoria Pública na defesa de direitos e interesses dos hipossuficientes, ao passo que as funções atípicas seriam aquelas outras, exercidas independentemente da situação econômica daquele ou daqueles beneficiários com a atuação da Instituição.

Em outras palavras, o divisor de águas entre as atribuições típicas e atípicas da Defensoria passa pela análise da hipossuficiência da parte assistida, de forma que, em sem tratando de atuação fomentada pela capacidade econômica (incapacidade econômica, na verdade), estar-se-á diante de uma atuação típica. Quando a hipossuficiência for jurídica, organizacional ou outra que o valha (que não econômica, frise-se), poder-se-ia falar em função atípica (v.g a atuação no processo penal para réus abastados que não constituem advogados, a curadoria especial de réus revéis, etc.).

Nesse passo, a Constituição Federal, por meio da nova Emenda, cuidou de abarcar tais distinções, estabelecendo de maneira taxativa que a Defensoria Pública exerce atribuições típicas e atípicas, todas elas igualmente legítimas e consentâneas com o ordenamento jurídico.

Acima disto, há de ressaltar que a promoção dos direitos humanos independe da condição econômica ou social de seus titulares, em razão do caráter universal que estes exprimem (NETO, 2014), motivo pelo qual a Defensoria Pública no desempenho desta função institucional de natureza atípica, buscará conceder a mais ampla assistência, não apenas jurídica, mas de qualquer outra vertente que se afigure necessária para a salvaguarda destes direitos.

2.3 A incorporação dos princípios institucionais da Defensoria Pública ao texto constitucional

Outra alteração implementada pela recente Emenda versa sobre a inclusão do § 4º ao art. 134 da Constituição, o qual passou a prever de maneira taxativa como “princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96”.

Como bem assinala a doutrina, trata-se de um reforço hermenêutico aos princípios norteadores da Defensoria Pública, de molde que o enxerto dos princípios institucionais ao texto constitucional apenas fortalece a importância

41Gudson Barbalho do Nascimento Leão

destes postulados normativos no seio da instituição, sendo certo que tais máximas já se encontravam presentes no art. 3º da Lei Complementar n. 80/94, e que agora foram transportados para o texto Constitucional.

É importante que assim seja, uma vez que, embora se questione a elasticidade e a prolixidade do texto constitucional, não há negar que muitas das discussões jurídicas partem da premissa de que se determinada norma jurídica (seja ela regra ou princípio) não se encontram cravadas no texto constitucional, ela não deveria merecer respaldo jurídico, na tentativa de infirmar seu valor.

Quem assim pensa, sustenta a ausência de previsão constitucional, como forma de minorar a importância de determinados institutos, como se apenas tivesse importância ou valor jurídico os dispositivos contidos no texto constitucional. Em palavras mais simples, só valeria o que está na Constituição.

Ou seja, desde a promulgação da LC 80/94, e apesar das reformas pontuais por ela sofridas (com a LC 132/09, por exemplo), havia uma renitente corrente doutrinária que insistia em negar à Defensoria Pública a nuance de instituição permanente, negando-lhe, a reboque, o reconhecimento dos princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência funcional que alicerçam sua atuação.

Alegava-se, para tanto, o fato que, em se tratando do Ministério Público, o Constituinte desde a gênese da atual Constituição previra tais princípios, na tentativa de encampar a tese de que a Defensoria não mereceria tratamento análogo, em virtude da calada constitucional. Vislumbrava-se como silêncio eloqüente o que não passava de atecnia do Constituinte.

Por sorte, e como forma de suplantar quaisquer dúvidas sobre o tema, a EC 80/14, na esteira do que previra a Lei Orgânica da Defensoria, alçou à casta constitucional os princípios que antes habitavam as orbes legais, sepultando-se de uma vez por todas os argumentos no sentido de negar importância ou enfraquecer os princípios institucionais da Defensoria, pelo simples fato de não estarem, até agora, dentro do texto Constitucional.

Bem assim, a Unidade, a Indivisibilidade e a Independência Funcional, princípios a partir de agora elevados à dignidade constitucional, no sistema normativo brasileiro, tornam a Defensoria Pública uma instituição diversa das Procuradorias Jurídicas e revela que a atividade por ela prestada não se confunde com a advocacia, conforme já exposto anteriormente.

Por Unidade, deve-se compreender o fato de que a Defensoria Pública é composta por um todo orgânico, repleto de membros que agem em seu nome, regidos todos eles por uma única chefia e um mesmo regime

42 A EMENDA CONSTITUCIONAL 80/2014 E O SALTO VALORATIVO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA BRASILEIRA

jurídico, tendo como norte a consecução das funções institucionais previstas em lei. Isto é, os defensores integram um mesmo órgão, regidos pela mesma disciplina, por diretrizes e finalidades próprias, e sob o pálio de uma mesma chefia. Como bem elucidou Paulo Galliez (1995, p. 39), “todos os membros da carreira fazem parte de um todo, que é a Defensoria Pública”.

No entanto, muito embora a atividade prestada pela Defensoria Pública não seja passível de interrupção, os membros que compõem o seu corpo estão sujeitos a intempéries da vida (férias, licenças, afastamentos, aposentadoria, morte, etc.), razão por que surge a Indivisibilidade como princípio capaz de autorizar que os membros da Defensoria Pública possam substituir-se uns aos outros, mediante critérios objetivos previamente estabelecidos em lei ou atos normativos internos, assegurando-se aos seus membros a não vinculação às manifestações de seus antecedentes durante o desempenho da função (BARROS, 2015).

Assim, em linhas gerais, a Indivisibilidade indica que os membros da Defensoria podem ser substituídos uns pelos outros sem que haja prejuízo ao exercício das funções do órgão, tanto que “podem alternar entre si sem que haja paralisação do serviço jurídico prestado pela Defensoria Pública” (LIMA, 2015, p. 89).

Por fim, a Independência Funcional sobreleva-se como princípio dos mais valiosos para a Instituição, porquanto, para bem cumprir seu dever constitucional de manutenção do Estado Democrático de Direito, necessita guardar uma posição de independência e autonomia em relação aos demais poderes e organismos estatais e ao próprio Poder ao qual se encontra, de certa forma, vinculada; imunizando-a a eventuais ingerências políticas, para que possa atuar com autonomia e liberdade.

Em reforço a tal entendimento, vale destacar que no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.903/PB, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu na esteira do voto do relator, ministro Celso de Mello do seguinte modo:

A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconseqüente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas - carentes e desassistidas -, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva

43Gudson Barbalho do Nascimento Leão

institucionalização desse órgão do Estado.De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apóiam - além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares - também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República. (...)É por esse motivo que a Defensoria Pública foi qualificada pela própria Constituição da República como instituição essencial ao desempenho da atividade jurisdicional do Estado. Não se pode perder de perspectiva que a frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pela injusta omissão do Poder Público - que, sem razão, deixa de adimplir o dever de conferir expressão concreta à norma constitucional que assegura, aos necessitados, o direito à orientação jurídica e à assistência judiciária - culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável.2

Com efeito, parece acertado inferir que a matéria dos princípios institucionais da Defensoria Pública, trazidas agora para o texto constitucional, contribui para uma melhor atuação institucional, permitindo a organização da Defensoria Pública de modo que a assistência jurídica prestada pelos seus membros seja a mais completa possível, atendendo-se à sua vocação, bem pontuada pelo ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 2903/PB acima referenciada.

2.4 A iniciativa de lei conferida à Defensoria Pública

Outra importante alteração trazida à lume pela EC 80/94 tangencia a questão da legitimidade para a iniciativa das leis que a estruturam, visto que o § 1º do art. 134 preconiza que “Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas

2 STF. ADI 2903/PB. Min Celso de Mello. Julgamento em 08/10/2008

44 A EMENDA CONSTITUCIONAL 80/2014 E O SALTO VALORATIVO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA BRASILEIRA

gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira”. De fato, a partir de agora, o Defensor Público Geral Federal terá

iniciativa legislativa para editar normas específicas da Defensoria Pública da União, através do processo legislativo constitucional, observando-se a exigência de Lei Complementar e a relação com as normas apontadas no art. 93.

Em se tratando das defensorias estaduais e distrital, tem-se que os respectivos Governadores terão legitimidade concorrente com os Defensores Públicos Gerais para a proposição de normas específicas, seguindo a mesma linha acima apontada para o âmbito federal. Consoante aponta Guilherme Freire de Melo Barros (2015):

Com essa alteração da EC 80/2014, as Defensorias Públicas passam a deter um grau de autonomia ainda maior, pois, nos termos do artigo 96, lhes compete privativamente propor ao respectivo Poder Legislativo alteração de número de membros, bem como a criação e extinção de carreiras de apoio. Isso significa que a Defensoria Pública agora não possui a garantia apenas de li orçamentária, mas sim de leis que regem a carreira como um todo.

Desta feita, os respectivos chefes institucionais poderão propor diretamente ao Poder Legislativo respectivo a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares, bem como a fixação do subsídio de seus membros (alínea ‘b’), e também a alteração das atribuições previstas em lei (alínea ‘d’).

A inovação simboliza verdadeira conquista à autonomia da Defensoria Pública, cujos chefes, mais próximos da realidade da instituição e dos problemas enfrentados pelos seus membros, poderão propor leis destinadas ao aprimoramento do órgão, adequando as Defensorias às suas necessidades, viabilizando melhorias na prestação da assistência jurídica fornecida aqueles cidadãos que dela necessitam (BARROSO, 2012).

2.5 A exigência de três anos de atividade jurídica e a questão da proporcionalidade do número de defensores públicos nas comarcas brasileiras

No atual panorama jurídico-institucional da Defensoria, o ingresso na carreira pressupõe a realização de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a demonstração da atividade jurídica pelo prazo de 3 (três) anos e o respeito à ordem de

45Gudson Barbalho do Nascimento Leão

classificação nas nomeações. Destaque-se que a realização do concurso público de provas e

títulos e a participação da OAB em todas as suas fases não apresenta novidade no ordenamento jurídico posto, visto que a Lei Complementar n. 80/94 em seus arts. 24 (União), 69 (Distrito Federal) e 112 (Estados), já determinava tais exigências como condicionantes ao ingresso na carreira de defensor público.

Justamente por isso, a grande inovação da Emenda reside na exigência dos 3 (três) anos de atividade jurídica para ingresso no cargo, na esteira do que já se exigia para carreiras da Magistratura e do Ministério Público, por exemplo. Neste aspecto, a doutrina aponta um conflito de normas, considerando-se que a Lei Complementar 80/94 exigia a comprovação de 02 (dois) anos de atividade jurídica, prazo este agora alargado pelo texto constitucional, sem que tal ampliação esteja acoimada de qualquer vício de inconstitucionalidade.

A mudança mostra-se relevante, uma vez que aproxima a carreira de Defensor Público das carreiras da Magistratura e do Ministério Publico, valorizando-se os membros das fileiras da Defensoria Pública. Tanto é assim que no parecer 312/2014 acerca da Proposta de Emenda convertida no texto da EC 80/2014, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal assinalou:

Destaque-se que, no atual estágio do nosso Estado Democrático de Direito, não podemos conceber que as instituições que compõem a Justiça brasileira (Estado-Juiz, Estado-Acusação e Estado-Defesa) estejam em patamares diferenciados, em desequilíbrio, sob pena de uma das funções se esvaziar em relação às demais e restar desfigurado sistema concebido pelo constituinte originário. Portanto, é imperioso que seja assegurada a’ “paridade de armas” entre essas funções, com instrumentos, garantias e prerrogativas, dentro e fora do processo, que viabilizem o efetivo acesso à Justiça aos que dela necessitam (Parecer 312/2014. Disponível em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/116436. Acesso em 10 de novembro de 2015.).

Avante, no que concerne à estipulação de um número proporcional de defensores pelas comarcas brasileiras, frise-se que a real intenção da Emenda à Constituição foi a ampliação da estrutura de pessoal da Defensoria Pública, uma vez que diversos estudos apontaram a carência de profissionais nas diversas unidades federativas, o que afeta diretamente o cumprimento do múnus constitucional para o qual a Defensoria foi vocacionada, isto é, a

46 A EMENDA CONSTITUCIONAL 80/2014 E O SALTO VALORATIVO INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA BRASILEIRA

assistência jurídica aos necessitados, sejam eles hipossuficientes econômicos, jurídicos ou organizacionais.

Bem assim, a recente mudança aprimora o acesso à Justiça, materializando em termos práticos o dever constitucional. Logo, o número de defensores na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população, de sorte que a Defensoria Pública se organizará a fim de que nas localidades onde exista maior demanda institucional, deverá haver uma maior distribuição de órgãos de atuação e, por consequência, de Defensores Públicos.

Agora, a referida previsão encontra-se encapsulada no art. 98 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, em cujo texto é assegurado que o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.

Trata-se, na realidade, da efetiva execução de uma obrigação estatal, ou melhor dizendo, da constitucionalização de política pública (BACHOUR, 2015), qual seja, a estruturação, aparelhamento e interiorização da Defensoria Pública, o que, além de firmar o compromisso constitucional do Estado Brasileiro, concretiza o princípio do acesso à Justiça, nos termos franqueados pela Constituição e desestimula o legislador infraconstitucional de atuar em sentido contrário, sob pena de inconstitucionalidade.

Mais ainda. É possível dizer que o art. 98 § 1º da ADCT foi ousado e certeiro ao estabelecer o prazo de 8 (oito) anos, para que a União, os Estados e o Distrito Federal realizem todos os atos necessários a fim de equipar as unidades jurisdicionais com defensores públicos, regra cujo cumprimento fortalecerá as estruturas da Defensoria Pública Brasil adentro, a significar verdadeiro superávit democrático para a sociedade assistida e também para o sistema judiciário Brasileiro, que sai fortalecido deste rearranjo institucional havido nas Defensorias Públicas.

3 CONCLUSÕES

Ante todo o exposto, pode-se verificar que a EC 80/14 representou significativo avanço da Defensoria Pública no ordenamento jurídico brasileiro e contribui para a metamorfose constitucional por que passou a instituição ao longo das últimas décadas. No passar do tempo, a Defensoria empreendeu uma verdadeira escalada institucional, de sorte que hoje alcançou um

47Gudson Barbalho do Nascimento Leão

patamar sobranceiro na sistemática jurídica, presenteando a sociedade com uma assistência jurídica digna, prestada por um órgão cada vez mais forte, independente e estruturado.

As alterações provocadas pela EC 80/14 analisadas ao longo desta monografia são prova disso e revelam um quadro de valorização institucional, transportando para o texto Constitucional os princípios que a embasam, estabelecendo novas prerrogativas e atribuições funcionais, redefinindo-se a Defensoria Pública enquanto instituição permanente e instrumento da democracia brasileira, a qual em um prazo de 8 anos deverá estar instalada em todas as comarcas brasileiras. Um sonho.

Bem assim, a EC 80/14 perfectibiliza a Defensoria Pública, aprimora o Estado Democrático de Direito e viabiliza, em termos concretos, um aprimoramento na prestação da assistência jurídica aos necessitados, sejam eles hipossuficientes no sentido econômico, jurídico ou organizacional, na construção de um país melhor.

É que o Brasil que o povo sonha, a Constituição preconiza e a democracia requer necessita de uma Defensoria Pública estruturada, bem equipada, combativa e hígida, munida de membros capacitados e de uma estrutura administrativa condizente com sua importância. Em um país subdesenvolvido como o nosso, com desigualdades sociais históricas e aparentemente insuperáveis, a valorização de uma instituição como a Defensoria Pública, vocacionada à proteção dos necessitados (em sua grande maioria, carentes de quase tudo) representa verdadeiro incremento democrático e social, partilhando ao povo o acesso à justiça, de forma técnica, eficiente e plena.

Não é demais dizer que o fortalecimento da Defensoria Pública resgata a dignidade do povo brasileiro, historicamente castigado por serviços públicos inoperantes e ineficientes, quando não inexistentes. A valorização da Defensoria é um importante passo para a consolidação do regime democrático e, acima de tudo, representa a esperança de dias melhores para esse povo brasileiro, que tanto batalha, sofre e espera.

REFERÊNCIAS

BACHOUR, Samir Dib. Portadores de Necessidades Especiais. Salvador: Editora Juspodvm, 2015.

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BARROSO, Luís Roberto. O novo Direito Constitucional Brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012.

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ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

THE CONSTITUTIONAL AMENDMENT 80/2014 AND THE BRAZILIAN PUBLIC DEFENSER’S INSTITUCIONAL JUMP

ABSTRACT

This study seeks to analyze the Constitutional Amendment 80/2014, which recently modified the constitutional text, representing considerable impact on defensorial structure, once, due to this, the role of advocacy is rugged in the legal scheme of Brazilian democracy, which is why innovations are pointed out by novel Amendment and institutional growth experienced by the Ombudsman. We conducted literature, jurisprudence and legal research as a way to emphasize the importance of defensorial bodies in the demand for broader access to justice by analyzing the changes brought about by the EC

80/94 and their impact on performance of the Public Defender, inset in law as a permanent institution, essential to the jurisdictional function of the State, which exploits the democratic regime, it is its duty, fundamentally, to legal advice, the promotion of human rights and the defense, in all grades (judicial and extrajudicial) of individual rights and collective, whole and free, to those in need. In the meantime, this monograph of the examination of the changes implemented by the said Constitutional amendment concludes that such changes have the power to improve the institutional prerogatives, settling them in the conduct of the Ombudsman to the status of a constitutional nature organ, with special emphasis on recent Brazilian democracy. We conclude that the EC 80/14 moves in this direction: perfect the Public Defenser, enhances the democratic rule of law and enables in concrete terms an improvement in the provision of legal assistance to those in need, whether hyposufficient in the economic sense (typical functions) or hyposufficient the legal or organizational sense (atypical functions).

Keywords: Public Defenser. Constitutional Amendment 80/14. Strengthening prerogatives. Institutional valuation.

A RESPONSABILIDADE DOS APLICATIVOS DE CELULARES NAS

RELAÇÕES CONTRATUAIS DE COMPRA E DE VENDA ORIUNDAS

DO COMÉRCIO ELETRÔNICO

Daniel Rodrigues ChavesAcadêmico do 9º período do curso de Direito da UFC

RESUMO

Trata-se de um artigo científico que pretende fornecer breves apontamentos acerca da responsabilidade dos aplicativos de celulares nas relações contratuais de compra e de venda oriundas do comércio eletrônico. Neste texto, faz-se, primeiro, uma breve explanação acerca do dinamismo do comércio eletrônico e da responsabilidade do Whatsapp e do Instagram. Após isso, são reservadas algumas páginas para demonstrarmos como a responsabilização dos anúncios realizados no instagram pode ser uma exceção à regra geral utilizada pelo Código de Defesa do Consumidor. Posteriormente, serão feitos apontamentos a respeito da intermediação do comércio eletrônico e a sua exploração econômica. Por fim, a última parte deste artigo é reservada para considerações finais sobre este artigo, resumindo os principais pontos deste texto.

Palavras-chave: Responsabilidade; Aplicativos de Celulares; Contratos eletrônicos

1 INTRODUÇÃO

Vivemos uma era em ebulição. Mudanças vertiginosas provocadas pelo avanço da ciência da computação modificam constantemente as relações

52 A RESPONSABILIDADE DOS APLICATIVOS DE CELULARES NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS DE COMPRA E DE VENDA ORIUNDAS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO

sociais. Novas tecnologias são criadas a cada momento, revolucionando, pois, a economia global. Nesta seara, talvez, a principal fonte dessa intensa transformação seja a popularização da internet. Esta possibilitou, não somente a criação de uma nova forma de comércio12, notadamente com o comércio eletrônico, como também, claramente modificou os hábitos de consumo da população brasileira. Segundo pesquisa feita em 2014 (E-BIT, 2014, p. 16), existem, atualmente, no Brasil, cerca de 61 milhões de e-consumidores. Tal número cresce vertiginosamente, pois, somente naquele ano, aproximadamente 10 milhões de brasileiros adentraram no mercado consumidor eletrônico. Este aumento no consumo proporcionou um faturamento de quase setenta bilhões de reais em 2014. Isso, devemos ressaltar, em uma época de crise econômica, quando estamos à beira de uma recessão.

Segundo pesquisa científica (PWC e International Survey Unit, 2015, p.18), 69% dos consumidores eletrônicos brasileiros utilizam dispositivos móveis para pesquisar produtos e 63% destes utilizam-nos para comparar preços.

Da mesma forma que os hábitos dos consumidores se modificaram, surgiram, também, novas formas de se realizar o comércio eletrônico. Ousaríamos, até, denominar aquelas como novíssimas maneiras de realizar tais transações. O comércio eletrônico contemporâneo não se resume à compra e à venda realizada por meio de sítios eletrônicos. Diversas empresas estão fazendo usos de aplicativos de celulares como forma, não somente de aumentar o seu público-consumidor, como também, de poder estreitar as relações existentes com os seus clientes. Nesta seara, surge um questionamento principal: qual seria a responsabilização desses aplicativos sobre as relações contratuais que

1A origem do comércio eletrônico está intimamente ligada com a expansão da internet no fim do século passado.2O primeiro caso compra e venda realizada por meios eletrônicos ocorreu no início dos anos setenta, no âmbito de duas das mais prestigiadas universidades americanas. Por mais incrível que possa parecer, o primeiro produto a ser vendido eletronicamente foi uma certa quantidade de maconha que alguns estudantes da Universidade de Stanford venderam para alunos do Massachussets Institute of Technology (MIT). Os discentes daquela instituição de ensino fizeram uso da Arpanet, predecessor da internet, para contatar os compradores e poder vender o produto ilícito. Mal sabiam , aqueles estudantes, que estariam, ali, efetuando a primeira transação comercial fruto de uma rede de computadores.

53Daniel Rodrigues Chaves

se desenvolvessem nesse âmbito? Ora, trata-se, aqui, de um assunto que não é tratado diretamente

por nenhuma norma3 no ordenamento jurídico brasileiro, nem por nenhum tribunal estadual de segunda instância ou por nenhum tribunal superior de nosso país.4 Além disso, a doutrina acerca desse assunto é extremamente escassa, haja visto estas novas formas de se realizar o comércio eletrônico serem bastante recentes. Estes fatos, por si, já justificam a elaboração desse artigo.

2 O DINAMISMO DO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A (IR)RESPONSABILIDADE DO WHATSAPP E DO INSTAGRAM

Talvez a principal característica do comércio eletrônico seja o seu dinamismo: a todo momento, surgem novas formas de realização do comércio eletrônico e algumas dessas situações fáticas nem aos tribunais ainda chegaram. Um exemplo claro disso são as vendas realizadas por meio de aplicativos de celulares, como Instragram e Whatsapp (EMPRESA..., 2015) (DESNVOLVEDORES..., 2015). Às vezes, o vendedor nem possui loja física ou número no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (C.N.P.J.). Neste jaez, faz-se uma indagação: qual seria a responsabilidade dos aplicativos de celulares nas relações contratuais de compra e de venda realizadas em seu âmbito? Poderiam eles ser considerados como facilitadores ou, até mesmo, como intermediadores dessas relações de consumo?

Tais perguntas, e, principalmente, a dificuldade em respondê-las de forma concreta, somente demonstram o quão volúvel é o comércio eletrônico. Perfazendo um breve estudo de futurologia, é de todo possível percebemos que, dado esse imenso dinamismo, quando as primeiras jurisprudências acerca desse assunto forem criadas, já existirão novas técnicas de vendas online. Cabe, então, à doutrina realizar os primeiros estudos da aplicação da norma jurídica nessas situações fáticas e quais seriam os efeitos destas para a ciência jurídica.

Existem, no Brasil, algumas normas que são utilizadas para

3 O Decreto 7.962, que trata especificamente do comércio eletrônico, não fez nenhuma menção direta aos aplicativos de celulares, criando-se, pois, uma imensa lacuna.4 Para fins de comprovação, realizamos pesquisa jurisprudêncial com os termos Instagram, Whatsapp e aplicativos de celular em todos os buscadores jurisprudenciais dos tribunais de justiça e dos tribunais superiores (STF e STJ)

54 A RESPONSABILIDADE DOS APLICATIVOS DE CELULARES NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS DE COMPRA E DE VENDA ORIUNDAS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO

regulamentar o comércio eletrônico. A única, entretanto, que possui exclusivamente esse fim é o Decreto Presidencial 7.9625 de 2013. As outras normas, como o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, são utilizados pela jurisprudência6 de forma a mitigar a falta de farta legislação à respeito. Tanto isso é verdade, que os mesmos não fazem nenhuma referência expressa ao comércio eletrônico. Os magistrados, então, admitem a aplicação desses códigos para que tais relações sociais não fiquem sem o devido resguardo legal.

Para uma melhor análise da responsabilidade do Instagram e do Whatsapp nas vendas realizadas por meio destes aplicativos, temos que entender qual é o papel desses softwares nas relações as quais fazem parte. No caso do Instagram, ao permitir que ofertas de produtos e de serviços sejam feitas em seu âmbito, o mesmo age como um meio de publicização das ofertas, da mesma forma que ocorre com os principais meios de comunicação, como revistas e jornais. Perceberemos que isso é verdadeiro simplesmente ao analisarmos uma hipótese fictícia de relação de compra e venda realizada por meio desse aplicativo.

Em nosso exemplo, uma microempresa “A” possui o desejo de expandir a sua clientela. Decide, então, passar a publicizar os seus produtos e serviços por meio de uma conta de Instagram. Atingido o objetivo inicial, um cliente “B”, entra em contato com a microempresa, às vezes, até mesmo, utilizando-se do próprio instagram para isso. A partir daí, a relação de compra e venda irá se desenvolver até que o dinheiro seja pago para a empresa e o produto ou o serviço seja fornecido ao consumidor. Percebemos, portanto, que, apesar de não participar diretamente da relação entre a microempresa “A” e o cliente “B”, o aplicativo Instagram serviu como forma de publicizar o anúncio, da mesma forma como ocorrem com as propagandas em outros meios de comunicação, como televisão, rádio, jornais e sítios virtuais. Neste jaez, poderíamos, então, analisar a responsabilidade do instagram sob uma ótica

5 Mesmo esta, por motivo desconhecido, não trata da responsabilidade dos aplicativos perante o consumidor.6 Quando fazemos referência à jurisprudência, estamos fazendo alusão aos casos de vendas por website e demais casos clássicos do comércio eletrônico. Vendas realizadas pelos aplicativos Whatsapp e Instagram ainda não possuem jurisprudência a respeito, conforme explicamos anteriomente.

55Daniel Rodrigues Chaves

parecida a qual é analisada a daquelas. Tal exame, entretanto, não pode levar à mesma conclusão que nos casos dos meios de comunicação convencionais. Na maioria destes, ocorre uma exploração econômica da relação contratual por meio da cobrança pelo espaço publicitário. Cria-se, assim, à luz da teoria de Leonardo Bessa, uma caracterização de fornecedor equiparado para esses meios de comunicação, possibilitando, pois, a responsabilização dos mesmos. Tal exploração econômica, geralmente, inexiste nos aplicativos de celulares, ou, ao menos, é ínfima. Esta conclusão credencia, na maioria dos casos7, a não responsabilização desse software nos casos de compra e venda realizadas por meio daquele.

No que discerne à responsabilidade dos meios de comunicação nas relações contratuais advindas da publicidade oportunizadas por eles, a doutrina e a jurisprudência nacionais já se manifestaram de forma a defender a responsabilidade dos meios de comunicação somente em algumas situações específicas. Como bem aduzem Benjamin, Marques e Bessa (2013, p.41):

[...] em situações de patente publicidade enganosa ou quando está a par da incapacidade do anunciante de cumprir o prometido, impossível deixar de reconhecer a responsabilidade civil do veículo, já não mais em bases contratuais, mas por violação ao dever de vigilância sobre os anúncios que veicula. Outra hipótese, cada vez mais comum, é aquela em que o veículo é diretamente interessado no anúncio, seja porque o serviço ou produto anunciado é por ele controlado, seja porque recebe comissão proporcional à adesão dos consumidores, seja ainda por se tratar de anúncio de empresa que integra seu grupo empresarial. Em todos esses casos, o veículo já não é responsabilizado como simples transmissor da informação de outrem, mas como genuíno anunciante, que de fato passou a ser. [grifo nosso]

Do excerto grifado, retiramos o raciocínio que acreditamos que seja o mais sensato no que discerne à aferição da responsabilidade do Instagram sobre os anúncios de produtos ou de serviços acostados nesta rede social. Ora, trata-se esse aplicativo, claramente, conforme exemplo ulterior, de um mero transmissor da informação de outrem, podendo ser responsabilizado nos casos

7 Veremos mais a frente que existem casos em que o Instagram poderia ser responsabilizado pelas compras e pelas vendas realizadas em seu âmbito.

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em que o Instagram possuía conhecimento da patente publicidade enganosa, o que, dado o imenso número de publicações feitas neste diariamente8, é improvável de ocorrer.

Quanto à responsabilidade do aplicativo Whatsapp, temos que a situação fática, geralmente, difere um pouco do caso do Instagram. Apesar disso, temos que a conclusão acerca da inexistência de responsabilidade pelos contratos de compra e venda por meio deste software também é válida para este caso.

Diferentemente do Instagram, o comércio eletrônico que envolve o Whatsapp não consiste no anúncio de produtos e de serviços para que clientes possam entrar em contato. Ao revés, geralmente, o cliente utiliza o Whatsapp somente como uma forma de entrar em contato com o fornecedor do produto ou do serviço. Nesta situação, o cliente, normalmente, já possui conhecimento da oferta por meio de anúncio.

Em uma situação hipotética, semelhante ao caso que analisamos quando tratamos do Instagram, um cliente “A”, ao ter visto oferta de um produto em algum meio de comunicação, entra em contato com uma empresa “B” por meio do número de celular que a mesma inseriu em seu anúncio. Todavia, o cliente não entra em contato com a empresa por meio de ligação comum, mas, sim, por meio do aplicativo Whatsapp. Utilizando ele como meio de comunicação, ambos realizam e concluem os termos de um contrato de compra e venda.

O papel do Whatsapp nesses casos, se assemelha ao de grandes empresas de telefonia, nos casos de vendas realizadas por meio de ligações telefônicas. Ora, em uma venda realizada por telefone há o mesmo tipo de relação contratual entre a empresa e o cliente, ou seja, uma relação de compra e venda, que a empresa de telefonia responsável pela linha está, simplesmente, agindo como uma facilitadora. A mesma não participa da relação contratual e, geralmente, não goza de nenhum benefício direto da venda, taxando, somente, a quantidade de minutos utilizada. No caso do aplicativo Whatsapp, nem essa precificação ocorre.

8 Segundo dados do sítio virtual do Instagram, já foram publicadas cerca de 40 bilhões de fotos nesse aplicativo. Além disso, esse aplicativo tem uma publicação diária de quase 80 milhões de fotos por dia. Para mais dados, veja: https://instagram.com/press/

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3 CASO DE RESPONSABILIZAÇÃO DO INSTAGRAM: UMA EXCEÇÃO À REGRA

Na segunda parte deste artigo, defendemos a inexistência de responsabilização do Whatsapp e do Instagram nos problemas oriundos das relações contratuais do comércio eletrônico realizadas em seu âmbito. Para isso, utilizamos dois argumentos principais: falta de exploração econômica do contrato de compra e venda, como ocorre com o Mercado Livre9, e a própria finalidade principal desses aplicativos. Entretanto, um desses argumentos também pode ser utilizado para garantir a responsabilidade de um desses aplicativos, em uma situação específica. Esta, relacionada com o Instagram, é o que analisaremos agora.

Recentemente, esse aplicativo passou a fornecer um serviço de anúncios patrocinados. Pelo pagamento de certa quantia em dinheiro, qualquer usuário do Instagram, inclusive empresas, podem ter as suas publicações ou seus anúncios apresentados para um número muito maior de pessoas, expandindo, assim, o público alcançado pela publicação. Quando este serviço é utilizado, o público da empresa no aplicativo passa a não ser somente os seus seguidores, mas, sim, um público bem maior. Teria a cobrança desses anúncios o condão de responsabilizar o Instagram pelas relações contratuais advindas daqueles? Acreditamos que sim. Para sustentar essa afirmativa, precisaremos analisar os Termos e Condições a qual esse serviço é prestado. Neste jaez, temos o seguinte item dos Termos e Condições de uso do Instagram (2013, p. 1):

Parte do Serviço é apoiada por meio de recursos advindos de publicidade. Assim, parte de nosso Serviço poderá ostentar publicidades e promoções, e você por meio deste concorda que o Instagram possa colocar essa publicidade e/ou promoção no Serviço ou, dentro, sobre, ou em conjunto, com o conteúdo do aplicativo. A maneira, o modo e a extensão de tal publicidade e promoções estão sujeitos à mudança sem aviso específico a você.

Como podemos perceber, o aplicativo dá-se o direito de exibir propagandas e promoções nos perfis dos usuários. Tais anúncios são pagos

9 Mais a frente, trataremos de como os sítios virtuais intermediadores de comércio eletrônico podem e devem ser responsabilizados pelos produtos vendidos por meio daqueles.

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pelas empresas ao Instagram. Estaria, aqui, em nossa opinião, caracterizada a exploração econômica, como terceiro, da relação contratual oriunda do comércio eletrônico realizado no âmbito do aplicativo. Com isso, seria plenamente possível a responsabilização do mesmo.

O Instagram, como visto acima, explora economicamente alguns anúncios feitos em seu âmbito. Com isso, temos que seria possível caracterizar esse aplicativo como um fornecedor-equiparado, sendo, pois, responsável pela publicidade publicada em seu software. Neste sentido, temos o seguinte excerto de Benjamin (2013, p. 240):

Estatui o art. 35 que, se o “fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade” [...], o consumidor poderá fazer uso dos remédios previstos nos incs. I a III. Quem seria o “fornecedor” mencionado no caput do art. 35? Primeiramente, fornecedor, aqui, é o anunciante direto, aquele que paga e dirige a preparação e veiculação do anúncio. Mas não só ele, pois o anunciante indireto, aquele que se aproveita do anúncio de terceiro [...], também pode ser responsabilizado, em especial quando o representante do anunciante direto ou na hipótese de utilizar, no seu estabelecimento, o anúncio em questão.

Como podemos perceber pela parte grifada, o anunciante indireto, ou seja, aquele que se aproveita do anúncio poderá ser responsabilizado, inclusive, na hipótese de utilizar no seu estabelecimento o anúncio em questão. Ora, foi-se a época em que o estabelecimento comercial precisa ser físico para ser considerado como tal. Atualmente, diversas empresas possuem a imensa maioria dos seus negócios realizados virtualmente. Logo, poderíamos, por meio de uma analogia, considerar o software do Instagram como o seu estabelecimento, para fins de responsabilização dos anúncios. Temos, nos casos das publicações patrocinadas, a satisfação de duas possibilidades de responsabilização estipuladas por Antônio Herman Benjamin. Esta ocorreria quando houvesse uma locupletação econômica advinda do anúncio, o qual, no caso do Instagram, devido à necessidade de pagamento para que essas publicações patrocinadas possam ocorrer, e, a segunda possibilidade é o anúncio ocorrer dentro do próprio aplicativo, perfazendo, assim, o segundo requisito para a responsabilização.

É válido ressaltar que, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não tem considerado os meios de comunicação como responsáveis pelos anúncios feitos em seu âmbito. Tal Corte, entretanto, nunca se pronunciou acerca das publicações patrocinadas no âmbito do Instagram.

59Daniel Rodrigues Chaves

Além disso, diversos doutrinadores discordam veementemente das decisões do STJ, pois elas iriam de encontro a vários princípios consumeristas consagrados no Código de Defesa do Consumidor e na Constituição Federal. Acerca disto, asseveram Tartuce e Amorim (2014, p. 474):

Com o devido respeito ao próprio autor do dispositivo legal e à jurisprudência, essa não parece ser a melhor conclusão, por contrariar todo o sistema de proteção e de responsabilização objetiva do CDC. A atribuição de responsabilidade a apenas uma das pessoas da cadeia publicitária afasta-se da presunção de solidariedade adotada pela Lei Consumerista, representando uma volta ao sistema subjetivo de investigação de culpa. Além disso, há uma total declinação da boa-fé objetiva e da teoria da aparência que também compõem a Lei 8.078/1990. Em reforço, para a responsabilização de todos os envolvidos, serve como luva o conceito de fornecedor equiparado, de Leonardo Bessa [...]. Ademais, a publicidade parece entrar no risco-proveito ou no risco do empreendimento da agência e do veículo, que devem responder solidariamente pela comunicação. Por fim, deveria ser aplicado, por analogia, o entendimento constante da Súmula 221 do STJ, que trata da responsabilidade civil dos órgãos de imprensa, in verbis: “São civilmente responsáveis pelo ressarcimento de dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”. Por tais argumentos, entendemos que, havendo uma publicidade ou oferta que causou danos aos consumidores, em regra e sem qualquer distinção, respondem solidariamente o veículo de comunicação, a empresa que a patrocinou e todos os responsáveis pelo seu conteúdo (agência de publicidade e seus profissionais).

Concordamos com o autor quanto à responsabilização dos meios de comunicação. Todavia, acreditamos que deve ser feita uma ressalva: é necessária a exploração econômica do anúncio feito por parte do veículo de comunicação. Naqueles que são considerados os mais clássicos, como o rádio e a televisão, a maioria dos anúncios são patrocinados, ou seja, há a sua exploração econômica. Não obstante, em alguns casos, demonstrados neste artigo10, essa locupletação inexiste. Com isso, afastada estaria a responsabilidade do meio de comunicação.

10 Nos casos de anúncios não patrocinados no Instagram ou nas compras e vendas realizadas pelo Whatsapp.

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4 INTERMEDIAÇÃO NO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A SUA EXPLORAÇÃO ECONÔMICA

O dicionário Aurélio (1986, p.958) define intermediário como aquele “que está de permeio; interposto; intermédio”. Tal definição, todavia, encontra-se em seu sentido geral. Para fins de responsabilização dos intermediários no comércio eletrônico, acreditamos que não podemos considerar todos aqueles “que estão de permeio; interpostos; intermédios” em uma relação contratual advinda do comércio eletrônico como legalmente responsáveis pelos problemas daquelas ocorridas em seu âmbito. Propomos, assim, uma classificação entre intermediadores não-econômicos e intermediadores econômicos. A principal diferença estaria no fato de que estes explorariam economicamente a relação contratual a qual eles intermediam. Demonstraremos que, à luz do Código de Defesa do Consumidor e de balizada doutrina, essa diferenciação na responsabilização dos intermediadores de comércio eletrônico se sustenta.

Ora, seguindo a abrangente definição dada pelo Dicionário Aurélio para o conceito de intermediário teríamos que tanto os aplicativos Whatsapp e Instagram, como os sítios eletrônicos Mercado Livre e Ebay estariam sujeitos a mesma responsabilidade civil perante os seus usuários. Entretanto, tal afirmativa logra-se de uma clara falha argumentativa. Entramos, aqui, no primeiro requisito de responsabilização dos intermediadores nos contratos de compra e venda oriundos do comércio eletrônico: o intuito de exploração econômica daquela relação contratual.

Ao analisarmos o caso do Mercado Livre, por exemplo, perceberemos que o intuito principal do mesmo está nessa exploração econômica. Não possui este outro objetivo, senão lucrar a partir das relações contratuais oriundas de sua intermediação. Chega-se a esse objetivo por duas formas distintas: por meio do sistema denominado Mercado Pago e por meio da cobrança dos anúncios que são hospedados em seu sítio eletrônico. Nesse sentido, temos o seguinte excerto do seus termos e condições de uso, in verbis:

7.2. Obrigações do Usuário vendedor. (...) Todos os vendedores deverão, obrigatoriamente, disponibilizar a seus compradores a opção de utilizar MercadoPago, que permite o gerenciamento e a efetivação de pagamentos por diversos meios, tais como cartão de crédito, boleto bancário, transferência bancária online ou envio de dinheiro disponível em conta gráfica. Quando uma negociação se concretizar, o Usuário vendedor deverá, sempre que e conforme previsto, pagar ao MercadoLivre,

61Daniel Rodrigues Chaves

em contrapartida aos serviços descritos na cláusula 1, o valor correspondente a um percentual do preço anunciado. Tal valor deverá ser pago também nos casos em que a negociação não se concretizar por responsabilidade do Usuário vendedor. [grifo nosso]

No mesmo sentido,

Os serviços objeto dos presentes Termos e Condições Gerais consistem em (i) ofertar e hospedar espaços nos sites www.mercadolivre.com.br e www.arremate.com.br para que os Usuários anunciem à venda seus próprios produtos e/ou serviços e (ii) viabilizar o contato direto entre Usuários anunciantes e Usuários interessados em adquirir os produtos e serviços anunciados, por meio da divulgação dos dados de contato de uma parte à outra. MercadoLivre, portanto, possibilita que os Usuários contatem-se e negociem entre si diretamente, sem intervir no contato, na negociação ou na efetivação dos negócios, não sendo, nesta qualidade, fornecedor de quaisquer produtos ou serviços anunciados por seus Usuários nos sites www.mercadolivre.com.br e www.arremate.com.br

São esses os dois principais serviços desse Website, caracterizando, assim, uma tentativa de exploração econômica da relação contratual oriunda do comércio eletrônico.

Geralmente, tal exploração inexiste nos casos do Whatsapp e do Instagram, pois os mesmos tem como missão principal fornecer serviços que vão muito além da simples intermediação comercial. Assemelha-se a figura desses aplicativos com a situação das empresas de telefonia, com a diferença que, normalmente, os serviços do Whatsapp e do Instagram não são cobrados ou possuem uma cobrança mínima.

Para melhor entendermos o critério da exploração econômica como necessária à responsabilização, basta analisarmos como surgiu o comércio eletrônico nas situações do sítios eletrônicos intermediadores de relações de compra e venda e nas situações dos aplicativos de celulares acima citados.

No caso do Whatsapp e do Instagram, por exemplo, temos que o comércio eletrônico não surgiu desses aplicativos. Nem esses aplicativos tiveram como objetivo primordial incentivar esses. A utilização deles como meio de insuflar o comércio partiu dos próprios consumidores-empresários. Estes que vislumbraram nesses aplicativos a chance de alcançarem um público maior e de formarem relações mais estreitas com seus clientes.

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Em relação aos sítios eletrônicos, como o Mercado Livre, os mesmos surgiram com o objetivo primordial de facilitar o comércio eletrônico e de explorar comercialmente o mesmo. A utilização do mesmo para tais fins não partiu de seus consumidores, sejam empresas ou consumidores, mas sim do próprio sítio eletrônico.

À luz do §2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, temos a seguinte definição de serviço:

Art. 3º. [...][...]§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.11 [grifo nosso]

Como bem expõe este dispositivo jurídico, para haver a caracterização de um serviço, seria necessária a existência de uma remuneração, seja ela direta ou indireta. De forma direta, é óbvio que, geralmente, inexiste nos casos do Instagram e do Whatsapp.

Neste jaez, é válida a menção à Teoria do Fornecedor Equiparado, criada por Leonardo Bessa. Poderiam esses aplicativos serem considerados como fornecedores equiparados para fins de relações contratuais realizadas em seu âmbito? Cremos que não. Comprova-se isso pela análise da seguinte passagem do livro “Manual de Direito do Consumidor” de, entre outros autores, Marques (2013, p. 118):

Por fim, mencione-se a teoria criada por Leonardo Bessa, sobre o fornecerdor “equiparado”. Este autor afirma que a situação de vulnerabilidade principal no mercado de consumo [...] levou a uma espécie de ampliação do campo de aplicação do CDC, através de uma nova visão mais alargada do art. 3º. É o que denomina fornecedor-equiparado, aquele terceiro na relação de consumo, um terceiro apenas intermedário ou ajudante da relação de consumo principal, mas que atua frente a um consumidor [...] ou a um grupo de consumidores [...], como se fornecedor fosse.

11 BRASIL. Lei 8.078, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.Brasília, 11 set. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm. Acesso em: 21 set. 2015.

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Se analisássemos somente a primeira parte do excerto grifado, poderíamos considerar o Whatsapp e o Instagram como fornecedores equiparados, pois estes agem como ajudantes na relação de consumo principal. Entretanto, devemos notar que, em tal participação, o fornecedor-equiparado deve agir como se fornecedor fosse, obedecendo, assim, a teoria descrita por Leonardo Bessa em sua plenitude. Poderíamos, entretanto, considerar o Mercado Livre como fornecedor equiparado, pois o mesmo, em muitos casos, atua como se fornecedor fosse, como nos casos em que o serviço de mercado pago é utilizado, pois, por ele, o cliente paga o valor diretamente para o sítio eletrônico e este repassa o dinheiro para a empresa quando o produto chegar para o consumidor. Sob a ótica do cliente, o Mercado Livre pode ser considerado como fornecedor-equiparado, pois é para este website que o pagamento será feito e será o mesmo que irá liberar a entrega do produto.

Conforme exposto anteriormente, em relação à responsabilização do intermediador, é necessário que o requisito da exploração econômica da relação contratual esteja preenchido. A responsabilidade, nesses casos, ocorrerá sob a forma objetiva. Neste sentido, temos o seguinte excerto de Bolzan (2014, p. 461), citando Bruno Miragem:

Assim, o dano causado aos consumidores usuários desses serviços será passível de ser indenizado, nos termos da responsabilidade objetiva, que é a regra no CDC. Esta também é a visão de Bruno Miragem ao defender que, na “circunstância da realização de danos por atos ilícitos realizados a partir da atividade destes sites, é de ser reconhecida a responsabilidade daqueles que aproveitem da sua exploração econômica”.

Acerca da necessidade da obtenção de vantagem econômica para a caracterização da atividade empresarial e, consequentemente, para a caracterização da atividade de fornecedor, asseveram Tartuce e Amorim (2014, p. 116):

Ainda, para a visualização da atividade do fornecedor, pode servir como amparo o art. 966 do Código Civil, que aponta os requisitos para a caracterização do empresário, in verbis: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.” [...] Ato contínuo de estudo, a atividade desenvolvida deve ser tipicamente profissional, com intuito de lucro direto ou vantagens indiretas. A norma descreve algumas dessas atividades, em rol meramente exemplificativo (numerus apertus), eis que a Lei Consumerista adotou um modelo aberto como regra dos seus preceitos.

64 A RESPONSABILIDADE DOS APLICATIVOS DE CELULARES NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS DE COMPRA E DE VENDA ORIUNDAS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO

Como podemos perceber, nos casos do Mercado Livre e do Ebay, os mesmos, geralmente, participam da exploração econômica da relação contratual oriunda do comércio eletrônico, o que não ocorre no caso do Whatsapp e do Instagram.

5 CONCLUSÃO

No curso deste trabalho, demonstramos qual foi o papel dos aplicativos de celulares, como Instagram e Whatsapp na presente transformação do comércio eletrônico. Estes aplicativos possuem papel fundamental nesse ponto, pois a utilização dos mesmos por empresas e por consumidores tem crescido muito ultimamente. Tal fato cria, como era de se esperar, questionamentos acerca das situações advindas desse (novo) comércio eletrônico. Uma dessas, nós tentamos responder ao longo desse trabalho: qual seria a responsabilidade do Instagram e do Whatsapp nas relações contratuais oriundas do comércio realizado por empresas terceiras e por consumidores dentro do âmbito desses aplicativos? Pela análise dos argumentos interpostos nesse artigo, concluímos que tanto o Instagram, quanto o Whatsapp não poderiam ser responsabilizados pelo comércio eletrônico realizado em seu âmbito. Entretanto, no caso do primeiro, seria possível a responsabilização nos casos das publicações patrocinadas, pois, nestas, haveria a exploração econômica da relação contratual de compra e venda realizada dentro do âmbito desse aplicativo. Nesses casos, o Instagram poderia, à luz da doutrina de Leonardo Bessa e de Cláudia Lima Marques, ser considerado como fornecedor-equiparado, passível, assim, de responsabilização.

Tal requisito, qual seja a exploração econômica da relação contratual, também estaria presente nos sítios eletrônicos que agem como intermediadores, dos quais o Mercado Livre é o seu principal expoente. Com isso, concluímos que, nestes casos, seria possível a responsabilização desses websites. Tal parte serviu como parâmetro para que melhor analisássemos a situação do Instagram e do Whatsapp.

Por fim, também tratamos a aplicação do decreto 7.962/2013, que trata do comércio eletrônico, apesar de não fazer nenhuma menção expressa ao uso dos aplicativos de celulares.

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REFERÊNCIAS

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EMPRESA cria sistema para vendas via Instagram e Whatsapp. Revista PEGN, São Paulo, 07 abril 2015. Disponível em: http://revistapegn.globo.com/Banco-de-ideias/E-commerce/noticia/2015/04/empresa-cria-sistema-para-vendas-instagram-e-whatsapp.html . Acesso em: 16 set. 2015.

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Instagram. Terms of Use. Vigente desde 19 de janeiro de 2013. Disponível em: https://instagram.com/about/legal/terms/. Acesso em: 23 setembro. 2015. (tradução nossa)

Mercado Livre. Termos e Condições de Uso. Disponível em: http://contato.mercadolivre.com.br/ajuda/Termos-e-condicoes-gerais-de-uso_1409. Acesso

66 A RESPONSABILIDADE DOS APLICATIVOS DE CELULARES NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS DE COMPRA E DE VENDA ORIUNDAS DO COMÉRCIO ELETRÔNICO

em: 20 setembro. 2015.

PWC e International Survey Unit (ISU). Total Retail Survey: Brasil – O varejo e a era da disrupção, 1. Ed. São Paulo, 2015

TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

SMARTPHONE APPS’ LIABILITY ON BUY & SELL E-CONTRACTS CARRIED OUT BY A THIRD PART

ABSTRACT

This paper’s purpose is to explain the liability of smartphone apps buy and sell relationships that take place inside these apps. First, we will comment the dinamics of e-commerce and how that may affect Whatsapp’s and Instagram’s liability. After that, we will explain how the liability of the latter is an exception to a general rule enshrined on the Brazilian Consumer’s Defense Act. Then, we shall discuss the use of a middle agent on e-commerce, it’s profiteering and how that may affect e-commerce companies’ liability. After that, the author shall conclude this paper, highlighting all the content that this paper stands for.

Keywords: Liability; Smartphone apps; E-contract.

ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA APLICAÇÃO DO

INSTITUTO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL PELA

SUPREMA CORTE BRASILEIRA

Aglene de Arruda Moreira SoteroAcadêmica do 10º período do curso de Direito da

UNI-RN

RESUMO

A mutação constitucional é um instituto que não requer formalidades para sua aplicação. Consiste na alteração do sentido da norma sem que haja alteração no texto normativo. A mutação constitucional foi escolhida como objeto de estudo nessa pesquisa por tratar-se de tema extremamente importante, na medida em que está atualmente em pauta e permeia com certa frequência as decisões da Suprema Corte brasileira, bem como é um tema com pouco lastro doutrinário. Tal objeto está localizado dentro de um tema maior que é a hermenêutica constitucional, onde se discute a interpretação. Esta se constitui como elemento principal da mutação constitucional, na medida em que é a partir dela que se dá a reforma informal da constituição. O Supremo Tribunal Federal brasileiro utiliza o instituto da mutação constitucional em suas decisões, que por sua vez, gera críticas diversas acerca dos limites de atuação do STF. Este trabalho tem como objetivo principal estudar o instituto da mutação constitucional analisando sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Mutação constitucional. STF. Hermenêutica constitucional. Interpretação.

68 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL PELA SUPREMA CORTE BRASILEIRA

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem como objeto de estudo o instituto da mutação constitucional. A problemática levantada nesse trabalho gira em torno da atuação da suprema corte brasileira, órgão que exerce a jurisdição constitucional no Brasil. Nos últimos anos têm-se observado várias decisões no Supremo Tribunal Federal (STF) que têm levantando polêmica a cerca dos limites de atuação deste órgão, muitos o acusam de atuar como legislador positivo decidindo questões e inovando em área que somente o legislativo poderia atuar.

O presente trabalho de pesquisa justifica-se não só pela importância do tema discutido, que envolve a jurisdição constitucional e a mais alta cúpula jurídica do país, como também pelo fato do objeto de estudo aqui apresentado, mutação constitucional, ser um tema relativamente pouco discutido doutrinariamente, surgindo, assim, um espaço a ser preenchido com estudos e pesquisas que possam elucidar melhor o mundo desse instituto que tem ligação direta com a vida de todos os brasileiros.

Inicialmente, busca-se nessa pesquisa apresentar o conceito de mutação constitucional, seus limites e pressupostos, bem como falar, brevemente, sobre os conceitos de judicialização e ativismo judicial. Em seguida, são apresentados exemplos de mutação constitucional por meio de casos concretos decididos pelo STF. Dando continuidade ao trabalho, é feita uma breve análise dessas mutações constitucionais tomando por base os limites e pressupostos da mutação constitucional anteriormente elencados. E por fim, é trazido à baila um caso concreto onde se discute a atuação do STF como legislador positivo a partir da decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.

2 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL: CONCEITO E LIMITES INTERPRETATIVOS

Para Paulo Bonavides (2012), falar em imutabilidade constitucional seria uma tese absurda, pois tal imutabilidade colide diretamente com a vida que é dotada de mudança, movimento, renovação, progresso. Ou seja, é inconcebível a ideia de uma constituição imutável, pois a dinâmica social não permite esse conceito.

A mutação constitucional é uma das formas por meio da qual uma constituição pode ser alterada. Diferencia-se das outras na medida em

69Aglene de Arruda Moreira Sotero

que não se submete a um processo formal e solene. Uma outra diferença interessante que pode ser observada entre a reforma constitucional e a mutação constitucional é que, enquanto a primeira é realizada pelo poder legislativo, a segunda ocorre no âmbito do poder judiciário.

É importante ficar bem definido o conceito do que é a mutação constitucional também para fins de nomenclatura, pois é bastante comum encontrar pessoas utilizando o termo mutação constitucional como gênero, da qual seriam espécies a mutação constitucional formal (que seria a reforma) e a mutação constitucional informal (que seria a mutação constitucional propriamente dita).

José Afonso da Silva (2012) faz uma diferenciação entre os conceitos de mutação constitucional e reforma constitucional:

As constituições brasileiras usaram os termos reforma, emenda, revisão e até modificação constitucional. A questão terminológica nessa matéria começa pela necessidade de fazer distinção em mutação constitucional e reforma constitucional. A primeira consiste num processo não formal de mudança das constituições rígidas, por via da tradição, dos costumes, de alterações empíricas e sociológicas, pela interpretação judicial e pelo ordenamento de estatutos que afetem a estrutura orgânica do Estado. A segunda é o processo formal de mudança das constituições rígidas, por meio de atuação de certos órgãos, mediante determinadas formalidades, estabelecidas nas próprias constituições para o exercício do poder reformador (SILVA, 2012, p. 61 e 62).

Como pode depreender-se da explicação do renomado doutrinador, é necessário ficar clara a diferença entre mutação e reforma constitucional, onde a primeira ocorre no plano da interpretação, sem requerer qualquer formalidade para sua aplicação. Enquanto a segunda se dá no plano formal e positivo, requerendo solenidade em seu feito e alterando de forma expressa a letra da Lei, utilizando-se para isso processos já definidos pelo poder constituinte originário, devendo sempre limitar-se a estes.

Na doutrina, encontra-se outra definição de mutação constitucional trazida por Luis Roberto Barroso:

Sem que se opere algum tipo de ruptura na ordem constituída – como um movimento revolucionário ou a convocação do poder constituinte originário -, duas são as possibilidades legítimas de mutação ou transição constitucional: (a) através

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de uma reforma do texto, pelo exercício do poder constituinte derivado, ou (b) através do recurso aos meios interpretativos. A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes (BARROSO, 2009, p. 151).

Observando as definições acima do que seria a mutação constitucional percebe-se que Luís Roberto Barroso (2009) utiliza um termo diferente para designá-la, que seria a interpretação evolutiva. No entanto, mesmo adotando um termo diferente, pela definição apresentada pelo autor nota-se que ele está tratando da mutação constitucional. Observa-se, também, na explicação de Barroso que ele invoca a característica de meio interpretativo da mutação constitucional, mais uma vez reconhecendo o seu caráter informal.

Olhando à primeira vista o termo mutação constitucional parece ser autoexplicativo, referindo-se a uma mutação ou alteração que ocorre em uma constituição. Porém este termo esconde em si uma certa complexidade que será objeto de reflexões no desenvolver deste trabalho de pesquisa.

Ao se iniciar o processo de reforma de uma constituição já estão ali previamente definidos os limites dentro dos quais o poder reformador poderá atuar, e tudo deve transcorrer como previsto na Constituição. Portanto, na reforma constitucional sabe-se o que a legitima e quais seus limites, até onde pode ir.

E quando trata-se da mutação constitucional, que é um instituto informal, que sequer tem previsão no ordenamento brasileiro? Quais os pressupostos legitimadores desse instituto. E seus limites? Até onde pode ir o intérprete utilizando-se da mutação constitucional? Aqui, pode-se dizer que surge um problema. Algo a se pensar.

Pois bem, apesar de ser um processo informal de reforma da constituição, a mutação constitucional não pode em momento algum se furtar aos preceitos constitucionais. Se isso acontecesse ocorreria uma mutação inconstitucional, ou seja, aquela que ultrapassa os limites impostos pela supremacia da constituição.

A interpretação é a chave da mutação constitucional. É ela que dá sentido à norma. E a interpretação constitucional deve ser feita dentro de pressupostos, tais como o princípio da supremacia da constituição. O respeito a esse princípio pode ser apresentado como um dos possíveis limitadores da

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mutação constitucional, posto que, por mais que o sentido da norma possa ser alterado por meio de uma nova interpretação, não deverá se contrapor a preceitos constitucionais já previstos. Bulos (2011, p. 129), diz uma frase que parece explicar bem a sentença acima: “Daí ser a supremacia constitucional a medida para os homens e os organismos balizarem os seus atos, que só serão válidos se se conformarem às disposições fundamentais da sociedade, as normas constitucionais”. Portanto, depreende-se, até então, que há sim limites para a aplicação da mutação constitucional.

Para Adriano Sant’Ana Pedra (2010), a mutação constitucional torna-se legítima na medida em que se mantém nos marcos normativos estabelecidos pela constituição. Já Carvalho (2014), aponta como fundamento da mutação constitucional a incongruência entre o texto constitucional e a realidade circundante.

Embora não estejam previstos de forma positivada, (e nem poderiam ser, posto que o instituto aqui discutido é meio informal de alteração constitucional) os limites à mutação constitucional aparecem de modo natural no momento da aplicação desse instituto quando o intérprete está atuando dentro da sua responsabilidade e competência, a saber, a guarda da constituição, pois, tem ele a obrigação de defendê-la e protegê-la, não devendo, em hipótese alguma, realizar uma interpretação normativa que afronte a Constituição em seus preceitos.

Portanto, percebe-se, nesse momento, como limite principal da mutação constitucional, os princípios da força normativa e da supremacia da constituição. Ou seja, esses seriam as balizas maiores e primárias a serem observadas pelo intérprete. No entanto, é necessário apontar outro elemento, discreto, mas que tem relevância ao discutir os limites da mutação constitucional que é o próprio limite textual.

É notório que as palavras têm significados diversos, e que tais significados podem mudar diante de contextos diferentes. Denota-se então que, normalmente, há uma certa elasticidade textual, que muitas vezes contribui para dar sentidos diversos, às vezes até ambíguos, a um texto. Porém, essa própria elasticidade textual pode figurar como um limite de interpretação, pois não se pode ir além daquilo que o texto quer passar. Luis Roberto Barroso (2009, p. 154), reconhece o texto como sendo um limite à aplicação da mutação constitucional, em suas palavras “interpretação evolutiva”, quando diz: “[...], pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutas, devendo estancar diante de significados mínimos”. Deste modo, o texto constitucional também aparece como um limitador da mutação

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constitucional.A mutação constitucional atua como um mecanismo de

aproximação entre a constituição e a realidade constitucional, tendo em vista que a constituição só se consolida e produz os resultados almejados quando é possível seu amoldamento às novas realidades da vida social (PEDRA, 2010).

Há polêmica em torno da aplicação da mutação constitucional. No Brasil há críticas às diversas decisões que se utilizam desse instrumento. Muitos criticam os fenômenos do ativismo judicial e judicialização, que nas palavras de Barroso (2014, p. 6):

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.

Enquanto nos meios formais de reforma constitucional a responsabilidade cabe ao poder legislativo de processar e efetivar tal reforma, na mutação constitucional ela é feita pelo poder judiciário. Essa situação dá espaço para críticas no sentido de que o STF estaria usurpando responsabilidades inerentes aos outros poderes.

Ocorre que sendo a função precípua do STF a guarda da Constituição, tal órgão acaba atuando como uma espécie de legislador negativo ao exercer o controle de constitucionalidade e ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei, quando esta passa a não ser mais válida. Ou seja, ele pode suprimir normas produzidas pelos outros poderes, no entanto, não pode produzir normas jurídicas que inovem no campo do direito, pois estaria invadindo a função de outro poder. Deduz-se, então, embora haja controvérsia doutrinária sobre o

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tema1, que o STF não pode atuar como legislador positivo.Nesse contexto, pode-se até levantar a tese de que a mutação

constitucional seria um instrumento legitimador da atuação do STF como legislador positivo. Mas não se entrará no mérito dessa questão, pois não é o objetivo do trabalho, deixando essa questão para, quem sabe, ser discutida em um outro trabalho de pesquisa.

Já delineados o conceito, os possíveis limites da mutação constitucional e relatada brevemente a crítica que gira em torno desse instituto, é interessante observar a sua aplicação de forma prática. Para isso, serão apresentados, a seguir, casos concretos em que foi utilizado o instituto da mutação constitucional pelo STF.

3 APLICAÇÃO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL NAS DECISÕES DO STF

Ao longo dessas duas décadas e meia de vigência da Constituição de 1988, diversas têm sido as decisões do STF que utilizaram-se do instituto ora aqui estudado. Algumas dessas mutações constitucionais não tiveram grande apelo social, em contrapartida, parte das decisões do STF que se muniram da mutação constitucional foram alvo de grande apelo social e da mídia por discutirem temas muito polêmicos.

Exemplos de casos menos discutidos pela mídia e sociedade, mas de considerável relevância para o mundo jurídico, podem ser citados, tais como a alteração do conceito de casa previsto no Art. 5º, XI, da CF/88: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Como pode extrair da interpretação literal do referido texto, a casa tinha um sentido de lugar de moradia, de residência, no entanto, o conceito de casa foi alargado, passando o STF a entender como casa, para o fim previsto neste artigo, a saber, inviolabilidade de domicílio, não só a residência do indivíduo, mas qualquer compartimento privado não aberto ao público, inserindo-se aí lugares como escritórios, quartos de hotéis, entre outros. Portanto, houve aqui uma extensão do sentido do texto, não sendo necessária a alteração do texto em si.

1 Parte da doutrina entende que o STF poderia sim atuar como legislador positivo, parte entende que não.

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Outro exemplo que pode ser citado aqui é o da interpretação do Art. 52 , X, da CF/88, que diz: “Compete privativamente ao Senado Federal: X- Suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. As decisões do STF em sede de controle abstrato já gozam da prerrogativa de terem efeito erga omnes, porém as decisões da suprema corte que declaram inconstitucionalidade em sede de controle difuso produzem efeitos inter partes, sendo nesse caso, necessário que o Senado Federal suspenda a execução da lei declarada inconstitucional para que esta tenha seus efeitos estendidos a todos, produzindo efeito erga omnes.

A mutação constitucional aqui proposta é no sentido de se possibilitar que as decisões proferidas pelo STF, em sede controle difuso, ao invés de gerar efeitos inter partes, gerassem efeitos erga omnes independente da decisão do Senado Federal quanto à suspensão da execução da lei, restringindo a sua competência apenas para dar publicidade a suspensão da execução realizada pelo STF.

A decisão do STF que levanta essa questão é a Reclamação 4.335-5/AC. Tal Reclamação fora ajuizada pela Defensoria Pública do Estado do Acre, em face de uma decisão do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Rio Branco/AC. O reclamante alega que o reclamado descumpriu a decisão do STF no HC 82.959, quando a Corte afastou a vedação de progressão de regime aos condenados pela prática de crimes hediondos, ao considerar inconstitucional o Art. 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/1990 (Lei dos crimes hediondos). O Reclamado alegava que era necessária a suspensão da execução da lei pelo Senado Federal para que a decisão do STF fosse revestida de efeitos erga omnes.

O relator dessa ação, Ministro Gilmar Mendes, julgou procedente a referida Reclamação. Dentre seus argumentos expõe:

A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal fique a depender de uma decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988, perdeu grande parte do seu significado com a introdução do controle abstrato de normas.2

O relator entende ser desnecessária a atuação do Senado

2 Reclamação 4.335-5/AC, página 31 do voto do Ministro Gilmar Mendes.

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Federal para conceder efeitos erga omnes às decisões do STF que declarem inconstitucionalidade por meio do controle difuso. Ainda em seu voto, Gilmar Mendes reconhece a realização de uma mutação constitucional nesse caso:

É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem expressa modificação do texto.3

Com essa afirmação, fica clara a ocorrência da mutação constitucional diante da nova interpretação que se busca dar ao Art. 52, X, da CF/88.

Um terceiro caso de mutação constitucional encontra-se registrado na mudança de interpretação do STF sobre os efeitos do Mandado de Injunção. Esse remédio constitucional é previsto na CF/88 em seu Art. 5º, LXXI: “conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”. Como pode ser observado pela leitura do dispositivo o mandado de injunção serve para sanar omissões legislativas, não caberia ao judiciário a criação de normas para possibilitar o exercício de direitos.

Conforme CORRÊA (2014), desde a promulgação da Constituição de 1988 o STF vinha entendendo o mandado de injunção como uma ação que simplesmente reconheceria a mora do legislativo em regulamentar a norma constitucional, ao judiciário caberia apenas dar ciência ao legislativo de sua mora. Porém, a partir de 2007, com o julgamento do Mandado de Injunção 670 que discutia a greve dos servidores públicos, o STF passou a rever seu posicionamento.

A partir de então o STF passou a adotar a posição concretista, segundo a qual, em casos que falta a norma regulamentadora, caberá ao Tribunal editar o regulamento necessário para o exercício dos direitos e liberdades que a constituição busca preservar (CORRÊA, 2014).

3 Reclamação 4.335-5/AC, página 52 do voto do Ministro Gilmar Mendes.

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3.1 Análise das mutações constitucionais citadas

Com a pesquisa até aqui realizada, apresenta-se como fundamento da mutação constitucional a incongruência entre o texto constitucional e a realidade circundante, e nota-se que tal instituto revestiu-se de legitimidade ao manter-se dentro dos marcos normativos da Constituição.

Observa-se como limites à aplicação da mutação constitucional o respeito aos princípios da supremacia da constituição e da sua força normativa, bem como, o limite encontrado no próprio texto, revelando a elasticidade textual.

Pois bem, a análise dos casos de mutação constitucional que foram apresentados neste trabalho será feita com base nesses limites e pressupostos definidos.

Até aqui, foram apresentados três casos, a saber: alteração do sentido da palavra “casa” para fins de inviolabilidade de domicílio; a mudança de interpretação do Art. 52, X, da CF/88, a partir da Reclamação 4.335-5/AC; e a mudança de interpretação sobre o mandado de injunção, a partir do MI 670.

No primeiro caso, observa-se que a mutação ocorrida seguiu as balizas aqui delimitadas, pois houve uma alteração do sentido de uma palavra, sem ser necessário alterar formalmente a norma, havendo nesse caso concreto a extensão da norma. Nota-se que não houve extrapolação de nenhum dos limites, pois a interpretação foi feita dentro do que permitia a elasticidade textual e não confrontou em momento algum os preceitos fundamentais da Constituição.

Quanto ao segundo caso apresentado, mudança de interpretação do Art. 52, X, da CF/88, pode-se dizer que foi respeitado o limite definido pela supremacia da Constituição, posto que não houve uma interpretação que ferisse os preceitos fundamentais da Carta Magna.

Tal decisão fora tomada com base no fundamento da mutação constitucional, apresentado como a discrepância entre o texto constitucional e a realidade circundante, posto que, como explicado anteriormente, não havia motivos para diferenciar as decisões em sede de controle concentrado das de controle difuso, visto que ambas podem declarar a inconstitucionalidade da lei atacada. O artigo aqui discutido não mais se aplica às decisões em sede de controle concentrado há muito tempo, restando sua aplicação apenas para os casos de controle difuso. E essa era a discussão.

Porém, com relação ao limite da elasticidade textual, é possível observar que este não fora respeitado, pois a nova interpretação do artigo

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em destaque, entende que não cabe mais ao Senado Federal a tarefa de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo STF, mas que cabe a tal casa apenas a tarefa de divulgação da decisão. E isso, extrapola o limite da elasticidade textual, pois não cabe um sentido diferente ao termo “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional”, aqui seria necessário um esforço enorme para dar a esse termo o sentido de apenas dar publicidade à decisão.

No entanto, é necessário observar que a mutação constitucional tem como limite principal o respeito aos preceitos fundamentais da Constituição, não ferindo sua supremacia. O limite textual é importante para fins de nortear o intérprete, porém se se faz necessário ultrapassá-lo, para alcançar a o objetivo da nova interpretação, desde que sejam respeitados os limites fundamentais, a mutação constitucional continua legítima.

O terceiro caso apresentado como exemplo de mutação constitucional, nesta pesquisa, é o da nova interpretação quanto aos efeitos do Mandado de Injunção. Nesse caso, a mutação constitucional respeitou todos os limites por ora aqui apresentados, pois não feriu a supremacia da Constituição, nem seus preceitos fundamentais, bem como não houve extrapolação do limite da elasticidade textual. Até mesmo porque o texto constitucional não faz referência aos efeitos desse remédio constitucional, ficando, esses, na esfera interpretativa. Portanto aqui também houve uma mutação constitucional legítima.

4 A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL NA ADPF 132: UM CASO DE ATUAÇÃO DO STF COMO LEGISLADOR POSITIVO.

A teoria da separação dos poderes prega que estes devem ser separados para que um possa conter o outro, ou seja, tem como objetivo a não concentração do poder em apenas um órgão para que o povo possa estar protegido de eventuais arbitrariedades por parte do Estado.

Diante de uma interpretação restrita da teoria da separação dos poderes cabe, exclusivamente, ao poder legislativo produzir normas que inovam no mundo jurídico, ou seja, este órgão atua positivamente, legisla positivamente. Enquanto ao poder judiciário cabe a função de julgar, decidir os conflitos a ele apresentados. É permitido ao poder judiciário atuar como legislador negativo, ou seja, quando suprime normas do direito positivo. Para Martins (2008, p. 32):

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A dinâmica social exige um posicionamento diferente em relação a certas formas de fazer e pensar, até então pacificadas ou inalteradas ao longo do tempo. Conceitos como “separação dos poderes”, legitimidade e codificação do Direito devem ser revistos à luz das novas gerações ou dimensões dos direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana e princípios constitucionais cada vez melhor compreendidos, ainda que implícitos no texto constitucional, como o da proporcionalidade ou razoabilidade.

Para este autor as mudanças sociais tencionam o direito a refletir e a agir diante das novas necessidades surgidas, e para isso é necessária revisão de alguns conceitos por hora ultrapassados, e a flexibilização do sistema para que direitos fundamentais possam ser alcançados.

Tem surgido nos últimos anos uma polêmica acerca da atuação do poder judiciário como legislador positivo. Não há um consenso doutrinário sobre o tema. Alguns defendem que é indevida a atuação do STF como legislador positivo, sob a alegação de que a Suprema Corte estaria usurpando competência do poder legislativo. Em contrapartida, outros defendem que é sim possível a atuação do STF como legislador positivo para a efetivação de direitos fundamentais.

A corrente que entende ser indevida a atuação do STF como legislador positivo, aduz que essa atuação fere o princípio da separação dos poderes e também argumentam que a Suprema Corte não tem legitimidade para desempenhar tal função, uma vez que não é constituída por membros escolhidos pelo povo.

O outro entendimento defende que diante da omissão do poder legislativo, e em alguns casos do executivo, poderá o poder judiciário atuar como legislador positivo para garantir ao cidadão o exercício de direitos fundamentais a ele assegurados na Constituição.

Um exemplo da atuação do STF como legislador positivo e de mutação constitucional, ocorreu em um caso bastante polêmico e que despertou muita discussão, a saber, a ADPF 1324 que tratou do reconhecimento

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. Julgada em 05 de maio de 2011. Relator: Ministro Ayres Britto. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628633>. Acesso em: Out./2014.

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da união estável entre pessoas do mesmo sexo.No ordenamento brasileiro não é previsto expressamente a

possibilidade do matrimônio ou da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Tanto na Constituição de 1988 quanto no Código Civil de 2002, os institutos do casamento e da união estável são previstos tendo como sujeitos pessoas de sexos diferentes, ou seja, homem e mulher.

Art. 1.514. O casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados (BRASIL, 2002).

Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil (BRASIL, 2002).

Como pode ser percebido diante da leitura dos artigos acima, o Código Civil brasileiro prevê o casamento entre homem e mulher. Porém, não há que se falar em proibição do casamento homoafetivo pelo ordenamento brasileiro, mas em omissão legislativa sobre o tema.

A pretensão da ADPF 132 era a de que a união homoafetiva fosse reconhecida como entidade familiar, dela decorrendo todos os direitos e deveres da união estável entre homem e mulher prevista no Art. 226, § 3º da Constituição Federal de 1988 e no Art. 1.723 do Código Civil de 2002.

Art. 226, § 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento (BRASIL, 2012).

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (BRASIL, 2002).

Como observado nos artigos acima, há previsão da união estável reconhecida apenas entre homem e mulher, e mais uma vez percebe-se que há omissão no que diz respeito à união homoafetiva.

A impressão que se tem é que a não previsão da possibilidade de união entre pessoas do mesmo sexo foi proposital por parte do constituinte originário, pois, como é possível perceber da leitura dos artigos citados acima,

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embora não haja proibição de tal união, o legislador manteve-se omisso quanto ao tema, e frisou os gêneros para os quais seria possível a união estável e o casamento, destacando a figura do homem e da mulher.

Há muita discussão no seio da sociedade e no âmbito do direito acerca do tema. Há o entendimento de que a união homoafetiva, seja por casamento ou por união estável, só poderia ser reconhecida por meio de uma emenda constitucional. Porém, é sabida, como discutida ao longo deste trabalho, a possibilidade de se alterar a constituição por meio de uma mudança de interpretação da norma posta, para que essa alcance a realidade atual.

Bem, foi o que aconteceu no caso da ADPF 132. Pois, com unanimidade de votos, a Corte Suprema decidiu reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo. E aqui é possível detectar a presença do instituto da mutação constitucional, na medida em que houve uma mudança de interpretação de uma norma, alterando seu sentido e não o texto, com o intuito de estender o seu alcance.

Por fim, a decisão do STF foi a de dar ao Art. 1.723 do CC, uma interpretação conforme a constituição excluindo dele qualquer significado que impeça o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Com essa decisão há também uma mudança de interpretação do Art. 226, § 3º da CF/88, pois se a união estável passa a ser reconhecida como entidade familiar, deverá também ser protegida pelo Estado, não sendo mais protegida apenas a união entre homem e mulher.

Analisando este exemplo de mutação constitucional, o mais polêmico dentre os apresentados neste trabalho, ocorreu algo parecido com o que aconteceu no caso da mudança de interpretação do Art. 52, X da CF/88, no que tange ao não respeito ao limite da elasticidade textual.

Pois, nessa decisão, necessária para se colocar em harmonia a realidade circundante com o texto constitucional (preenchendo aqui o fundamento da mutação constitucional), pode-se dizer que foi respeitado o princípio da supremacia constitucional, levando em consideração que foi realizada uma interpretação elevando os direitos fundamentais dos indivíduos, também positivados na Constituição. Porém, o texto constitucional e do Código Civil de 2002 são claros ao elencar apenas homem e mulher como sujeitos da união estável, tendo que se fazer um esforço interpretativo para dar um novo sentido a esses termos. Por isso, entende-se que fora realizada uma interpretação extensiva, no sentido de alargar os direitos postos na norma interpretada a ponto de atingir os demais sujeitos que antes não se encaixavam nela.

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Esse exemplo é um típico caso do já citado ativismo judicial, pois aqui foi levado ao Supremo um tema que deveria ser apreciado e normatizado pelo poder legislativo. Entretanto, na falta de norma que regule a situação das pessoas que se encontravam nesse contexto, e o afã de tornar jurídica uma realidade fática, trouxe o tema para o judiciário resolver.

Um outro caso, também muito polêmico, em que o STF atuou como legislador positivo é a ADPF 54 que tratava da possibilidade de interromper a gravidez nos casos em que os fetos fossem diagnosticados com anencefalia. Nesse caso a decisão da Suprema Corte criou uma terceira possibilidade de aborto, a qual não era abordada pelo Código Penal, onde são previstas, positivadamente, apenas duas possibilidades de aborto, a saber, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, e se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou quando incapaz, do seu representante legal.

Casos como os das ADPFs 132 e 54 traz a necessidade de reflexão a respeito do momento em que, não só, o direito, mas todas as ciências passam. Momento de ruptura de paradigma. Os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial não ocorrem por acaso. Os paradigmas postos não respondem mais as todas as necessidades sociais. Boaventura de Sousa Santos (2011, p. 257), explica a transição paradigmática como sendo:

A transição paradigmática é um período histórico e uma mentalidade. É um período histórico que não se sabe bem quando começa e muito menos quando acaba. É uma mentalidade fracturada entre lealdades inconsistentes e aspirações desproporcionadas entre saudosismos anacrônicos e voluntarismos excessivos. Se, por um lado, as raízes ainda pesam, mas já não sustentam, por outro, as opções parecem simultaneamente infinitas e nulas. A transição paradigmática é, assim, um ambiente de incerteza, de complexidade e de caos que se repercute nas estruturas e nas práticas sociais, nas instituições e nas ideologias, nas representações sociais e nas inteligibilidades, na vida vivida e na personalidade. E repercute-se muito particularmente, tanto nos dispositivos da regulação social, como nos dispositivos da emancipação social. Daí que, uma vez transpostos os umbrais da transição paradigmática, seja necessário reconstruir teoricamente uns e outros.

Os embasamentos e pressupostos das ciências modernas não mais sustentam as novas realidades postas. E como diz Boaventura “as opções parecem simultaneamente infinitas e nulas”. Essa frase representa esse

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momento de crise hermenêutica pelo qual passa o Direito. Crise essa, que conforme Lênio Streck (2011), deve ser compreendida, antes de tudo, como uma crise paradigmática que se revela em uma dupla face: uma crise de modelo e uma crise epistemológica.

Santos (2011) defende que, diante da crise paradigmática atual, é necessário des-pensar o direito, ou seja, desconstruí-lo para repensá-lo. E isso implica em reconstruí-lo, no sentido de promover um novo senso comum de modo que possibilite enxergar as demais ordens jurídicas presentes na sociedade, e não ficar preso somente a esse direito estatal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mutação constitucional tem como principal elemento a interpretação. Sua aplicação se dá no momento em que não há mais harmonia do texto constitucional com a realidade circundante. Com essa pesquisa foi possível detectar que a mutação constitucional não deve ser feita ao bel prazer do intérprete, pois ela deve seguir, sim, limites que estão implícitos em princípios constitucionais como a supremacia da Constituição e sua força normativa, não devendo, nunca ultrapassar ou ferir preceitos fundamentais da Constituição, sob pena de ser considerada uma mutação inconstitucional.

A mutação constitucional é, portanto, um importante instrumento que está nas mãos do judiciário, concedendo a este um poder que, inicialmente, pertence ao legislativo enquanto poder constituinte derivado, o de modificar a Constituição.

Esse instituto é um importante instrumento, posto que sempre haverá a necessidade de alterar a Constituição em face das novas realidades que surgem no decorrer do tempo, sem necessariamente ter que recorrer aos meios formais de reforma constitucional. Destarte, é imperioso observar que esse instituto deve sempre ser utilizado com responsabilidade para não ir além daquilo que ele próprio propõe.

Quanto à discussão acerca da possibilidade de atuação do STF como legislador positivo, essa continua e está longe de ser encerrada. O fato é que, agradando a uns e desagradando a outros, o Supremo Tribunal Federal brasileiro tem sim atuado como legislador positivo.

É importante, também, considerar o momento de crise que o Direito passa, o qual está inserido num período de transição paradigmática, transição essa que atinge à todas as ciências e, por consequência, a sociedade. E isso,

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certamente, influencia a forma de instrumentalização do Direito.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. – 7ª ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009.

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JUDICIAL REVIEW OF THE APPLICATION OF THE INSTITUTE OF THE CONSTITUTIONAL MUTATION BY THE SUPREME BRAZILIAN COURT

ABSTRACT

The constitucional mutation is an institute that requires no formalities for its application. It consists in changing the meaning of the legal ruling without any alteration in the regulatory text. The constitutional mutation was chosen as the object of study in this research because it is an extremely important issue, in that it is currently on the agenda and permeates infrequently decisions

85Aglene de Arruda Moreira Sotero

of the Supreme Brazilian Court and is a topic with little doctrinal ballast. Such an object is located within a larger theme which is the constitutional hermeneutics, where the interpretation is taken to discussion. This constitutes the main element of constitutional change, in the sense that it is from this that comes informal constitutional reform. The Supreme Brazilian Court (SBC) uses the institute of constitutional mutation in their decisions, which in turn generates several criticisms about the limits of operation of the SBC. This work aims to study the institute of constitutional mutation analyzing its application by the Supreme Court.

Keywords: Constitutional mutation. Supreme Brazilian Court (SBC). Constitutional hermeneutics. Interpretation.

AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃOOU DE MEDIAÇÃO NO NOVOCÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Daniel Maciel DomeneAcadêmico do 9º período do curso de Direito da UFPR

RESUMO

O Novo Código de Processo Civil recém aprovado procura incentivar a prática de meios alternativos de resolução de conflitos, mais especificamente a mediação e conciliação, que se revelam como importantes mecanismos em face da intensa sobrecarga e morosidade do sistema judiciário atual. Mais do que isso, trata-se de estabelecer políticas públicas que visam um tratamento adequado aos conflitos de interesses na contemporaneidade, de modo a priorizar a participação das partes na construção de uma solução satisfatória ao conflito e promover o fortalecimento da democracia participativa. O artigo tem como objetivo, portanto, tratar do procedimento previsto no artigo 334, quase obrigatório às partes na instauração de um processo judiciário, e como ele poderá se desenvolver na prática processual, bem como suscitar dúvidas quanto a sua concretização.

Palavras-chave: Conciliação. Mediação. Cooperação. Neoprocessualismo. Cultura do diálogo.

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1 INTRODUÇAO

As decisões-surpresas proferidas por juízes atualmente fazem parte do dia a dia processual brasileiro e integram o que é gentilmente chamado de “jurisdição oracular”. Trata-se de uma jurisdição em que o magistrado decide sozinho, raramente com base nos argumentos trazidos pelas partes. A partir dos fatos, o juiz realiza um papel de “oráculo”, usando fundamentos que não foram sequer abordados no decorrer no processo, de forma que os protagonistas não participam da produção da decisão final que irá orientar seus próximos atos. E em nome de uma desejada celeridade, admitiu-se, por muito tempo, essas decisões-surpresas, bem como sentenças mal fundamentadas.

O Novo Código de Processo Civil veio para mudar essa perspectiva, com a promessa de um modelo de processo civil mais democrático. Não apenas por ter sido o primeiro Código de Processo Civil brasileiro promulgado numa era democrática, mas também por adotar uma nova metodologia. Busca-se a substituição dessa jurisdição com menor ou quase nenhuma participação das partes na decisão por uma jurisdição baseada na cooperação entre os sujeitos do processo para que o resultado seja obtido de modo justo e efetivo.

A eleição da jurisdição como centro do direito processual pelo instrumentalismo trouxe como legado a possibilidade de decisões autoritárias, colocando o juiz e o poder do Estado como centro da ciência, ou seja, as soluções são pensadas a partir do poder e em prol de uma certa efetividade. A eficiência, junto ao resultado, tornou-se cerne do próprio processo, com fundamento no art. 37 da Constituição, que determina os princípios que devem orientar todos os serviços públicos. Considera o impacto na realidade política, econômica e social, a partir do qual o processo não é mais visto como um sim em si mesmo e sim como um instrumento a serviço do direito material. Entretanto, estabeleceu-se que somente a jurisdição poderia realizar esse serviço, no qual as partes teriam apenas uma pequena participação.

Nas palavras do jurista Araújo (1999):

Paralelamente ao entendimento de que cabe ao Judiciário a responsabilidade pela resolução das querelas da sociedade, criou-se também a compreensão de que somente cabe ao Estado o poder de dirimir os problemas da população, não tendo esta a capacidade natural de solucionar sem traumas parte de seus problemas comuns.

Essa perspectiva instrumentalista é fortemente combatida pelo

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Novo CPC, que proíbe as decisões-surpresas e exige do juiz a análise de todos os argumentos trazidos pelas partes. Isso vem com uma nova perspectiva que procura retomar as entranhas dogmáticas do processualismo, mas com uma releitura à luz do modelo constitucional de processo. Esse neoprocessualismo, ou formalismo-valorativo (ou ainda formalismo-axiológico), afirma a Constituição como fonte primária, ressaltando os princípios do devido processo legal e do contraditório e enfatizando a participação das partes no processo. Este passa a ser categoria fundamental do direito, de forma que o foco do direito processual se desloca mais uma vez. A ciência processual não é mais orientada apenas pelo poder do Estado, mas também não só pelo poder das partes: ambos dirigem a relação processual num processo cooperativo.

O princípio da cooperação se coloca como regate da democracia no processo civil. E uma das apostas do Novo Código é o investimento nas práticas de mediação e conciliação. Estes instrumentos não são novidades no âmbito do processo civil e são empregados para solução rápida e pacífica dos conflitos judicial ou extrajudicialmente. Entretanto, o texto legislativo trouxe certas modificações no jeito em que se viam os métodos consensuais de solução de conflito e precisa ser analisado pragmaticamente antes de sua entrada em vigor.

2 MÉTODOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITO E SUA CONTRIBUIÇÃO À DEMOCRACIA: A CULTURA DO DIÁLOGO

Primeiramente, necessário apontar a contribuição dos métodos consensuais de resolução do conflito ao fortalecimento da democracia e ao combate à cultura do litígio, intensamente promovidas pelo Novo CPC.

Para Fabiana Splengler e Luthyana Demarchi de Oliveira (2012, p. 134), a democracia participativa no Estado contemporâneo configura um caminho desafiador para a efetivação da cidadania, em face das consequências da ordem globalizada atual, quais sejam o individualismo, a ação política do governo de conciliação das reivindicações sociais divergentes e a pobreza como negação do direito de desenvolvimento. Diante de um quadro de crise, no qual o Estado não é capaz de garantir os direitos de todos os cidadãos, organizações da sociedade civil vêm criando espaços de diálogos de participação política e social dos indivíduos que as compõem.

Isto posto, as autoras destacam que o Estado Democrático de Direito não é somente uma organização burocrática, mas também “um reordenamento

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jurídico, social e político da sociedade com o reconhecimento da cidadania” (OLIVEIRA; SPENGLER, 2012, p. 136). Por conseguinte, são imprescindíveis políticas que priorizem a convivência dos cidadãos, a fim de incentivar os espaços públicos de cooperação e participação.

O Novo Código de Processo Civil atua nesse sentido, e uma das aplicações concretas é a audiência de mediação e conciliação. A mediação é um procedimento consensual de solução de conflitos por meio do qual uma terceira pessoa (mediador), escolhida ou aceita pelas partes, auxilia-las na construção de uma solução eficaz para o conflito (AZEVEDO, 2013, p. 85). É, portanto, um mecanismo que facilita a comunicação entre os litigantes, aprimorando as relações interpessoais e sociais. Por outro lado, a conciliação é definida pelo Ministério da Justiça como um processo autocompositivo (ou uma fase no processo heterocompositivo) no qual um terceiro, escolhido ou aceito pelas partes, pode apresentar uma apreciação do mérito ou uma recomendação de uma solução tida por ele como justa.

Dessa forma, a mediação e a conciliação se apresentam como algumas das possibilidades de efetivação do acesso à justiça, em que esta se concretiza na medida em que as próprias partes são adequadamente incentivadas a produzirem soluções satisfatórias de forma consensual. Um de seus benefícios é o empoderamento dos litigantes, restabelecendo o senso de valor e poder da parte para que esta esteja apta a melhor dirimir futuros conflitos, sem a necessidade da intervenção do Poder Judiciário. Eles são os protagonistas do processo e possuem total participação na construção da decisão, através da concretização do princípio da cooperação e do contraditório. Segundo Luis Alberto Warat (2000), essa participação cooperativa favorece a paz social, na medida em que:

As práticas sociais de mediação se configuram num instrumento ao exercício da cidadania, na medida em que educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e a realizar tomadas de decisões sem a intervenção de terceiros que decidem pelos afetados por um conflito. Falar de autonomia, de democracia e de cidadania em um certo sentido, é se ocupar da capacidade das pessoas para se auto determinarem em relação e com os outros; autodeterminarem-se na produção da diferença (produção do tempo com o outro). A autonomia como uma forma de produzir diferenças e tomar decisões com relação à conflitividade que nos determina e configura, em termos de identidade e cidadania.

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Com isso, o Novo Código promete uma transformação de paradigmas que exigirão uma mudança também na cultura processual brasileira. O instrumentalismo trouxe não apenas a ideia de que o processo não é um fim em si mesmo, mas também o entendimento de que a tarefa de solucionar conflitos cabe ao Estado e apenas a ele, criando a concepção de que o direito somente estará resguardado e protegido se resultar de uma sentença proferida pelo juiz, depois de todos os trâmites de um processo judicial.

Chama-se o fenômeno de cultura do litígio. Adolfo Braga Neto e Dora Fried Schnitman (2003) frisam bem ao lecionar: “a sociedade brasileira está acostumada e acomodada ao litígio e ao célebre pressuposto básico de que justiça só se alcança a partir de uma decisão proferida pelo juiz togado”. E esta decisão, não raramente, restringe-se à aplicação pura e simples de previsão legal, sem a análise profunda de todos os fundamentos trazidos pelas partes em suas argumentações. Além de criar um ambiente de guerra, no qual as partes procurar vencer a qualquer custo, a cultura do conflito contrapõe-se à celeridade processual e dificulta o acesso à justiça, uma vez que “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” (BARBOSA, 1997, p. 40).

Em face de outras formas de resolução de controvérsias, essencial será uma mudança de mentalidade não apenas no direito processual civil, mas também na sociedade, quanto ao tratamento dos conflitos. Dessarte, o Novo Código busca a transição de uma cultura do litígio para uma cultura do diálogo e da cooperação, na qual se possibilite às partes a construção da mais satisfatória solução possível para ambas. Não se trata de auxiliar a parte contrária a vencer, tampouco ganhar a todo custo: a cooperação é para com a prestação jurisdicional, a fim de alcançar o resultado mais adequado e eficaz para ambas as partes. As apostas do Novo CPC na mediação e na conciliação só serão efetivas num ambiente de processo cooperativo, exigindo seriedade processual de todos os sujeitos do processo.

3 PROCEDIMENTOS DO ARTIGO 334 DO NOVO CÓDIGO

Há quem diga que a audiência de conciliação e mediação estampada no art. 334 do Novo Código é resquício do rito sumário do Código de 1973. Do mesmo jeito, inevitável a comparação com a audiência prevista na Lei 9099/1995, que regula os Juizados Especiais. Todavia, vamos verificar que os procedimentos diferem como um todo, principalmente em finalidade e

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método. A audiência inicial do rito sumário do Código atual tem como

objetivo não apenas a tentativa de acordo entre as partes, mas também a colheita de respostas do réu, bem como a solução de questões incidentais, enquanto a audiência do art. 334 do Novo Código tem por objetivo apenas a aproximação das partes para restabelecer sua comunicação na tentativa de acordo. A diferença mais notória está no fato de que a audiência de conciliação não será realizada pelo juiz e sim por mediadores e conciliadores. Dispõe o artigo 165 do Novo CPC:

Art. 165. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição.§ 1o A composição e a organização dos centros serão definidas pelo respectivo tribunal, observadas as normas do Conselho Nacional de Justiça.

Dessa forma, essas audiências exigirão profissionais capacitados para atender a demanda de todo o Poder Judiciário. Com a profissionalização da conciliação e da mediação, espera-se o surgimento de unidades judiciárias ou privadas destinadas a conciliar e mediar. Atualmente, em relação às primeiras, o processo vêm se desenvolvendo lentamente, através de iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, em convênio com os Tribunais de Justiça de cada estado, mas ainda há a necessidade de um grande número de cursos de capacitação até a entrada em vigor do Novo Código. Quanto às câmaras privadas, o mercado foi se expandindo no decorrer do desenvolvimento da arbitragem no Brasil, contando com unidades que congregam ambos os métodos alternativos na solução de conflito.

Percebe-se, portanto, a abertura de um novo nicho mercadológico objeto da iniciativa privada, por meio do credenciamento de conciliadores, mediadores e câmaras privadas em cadastro nacional e em cadastro de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, que manterão registro dos profissionais habilitados, com indicação de sua área profissional (art. 167). Nesse credenciamento, constarão todos os dados para sua atuação, como o número de processos de que participou, o sucesso ou insucesso da atividade e a matéria sobre o qual versou a controvérsia. Discute-se aqui se essa prática não criaria uma certa casta entre as câmaras privadas de conciliação e mediação,

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como ocorreu nas câmaras de arbitragem - o que permite preços elevados e elitização das melhores prestadoras desse serviço, dificultando o acesso daqueles que não conseguem arcar com os valores estabelecidos por elas. De mesmo modo, não se pode estabelecer a remuneração seguindo um critério baseado nos resultados, para que não distorça a própria essência do processo de mediação e suas técnicas, nem mesmo para estimular o aperfeiçoamento destes.

Em razão disso, o art. 169 regula a remuneração a ser recebida por esses serviços, de acordo com tabela fixada pelo tribunal, conforme parâmetros estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça. Nos casos de câmaras privadas de conciliação e mediação, regulamento interno pode dispor sobre remuneração diversa. Em contrapartida do credenciamento no cadastro nacional, o §2° do referido artigo prevê ainda a existência de um percentual, também fixado pelo tribunal, de audiências não remuneradas que deverão ser suportadas pelas câmaras privadas de conciliação e mediação, a fim de atender aos processos com assistência judiciária gratuita.

De qualquer forma, a audiência de conciliação e mediação não entrarão na pauta de audiências do juiz, havendo apenas um acompanhamento das atividades pelo Poder Judiciário, observado os regulamentos da Lei 13.140/2015 (Lei da Mediação) e da Resolução n° 125 do CNJ. Portanto, o funcionamento das câmaras privadas de mediação e conciliação no que se refere aos procedimentos extrajudiciais deve atender o disposto no art. 21 a 23 da Lei da Mediação, enquanto os procedimentos judiciais devem não apenas atender os art. 24 a 29 da referida Lei, como também os princípios e garantias da mediação judicial da Resolução n° 125 do CNJ.

Também diferem da audiência preliminar do art. 331 do Código atual. Este é claro ao estipular que, não obtida a conciliação, o juiz deverá fixar os pontos controvertidos, decidir questões processuais pendentes e determinar quais provas a serem produzidas. No panorama geral do Novo Código, o réu é citado para comparecer numa audiência exclusiva para acordo:

Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.

O dispositivo capta a ideia do procedimento realizado nos Juizados Especiais, mas com ele não se confunde. Se o autor não comparece à audiência

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prevista na Lei 9.099/1995, extingue-se o processo; se é o réu quem não comparece, entendem-se verdadeiros os fatos alegados no pedido inicial, ou seja, incide os efeitos da revelia, bem como o juiz profere a sentença desde logo (art. 20 e 23 da Lei 9.099/1995). Por outro lado, o não comparecimento injustificado do réu ou do autor à audiência de conciliação e mediação caracteriza ato atentatório à dignidade da justiça (contempt of court), ensejando aplicação de multa no valor de 2% do valor da causa, a ser revertida em favor da União ou do Estado, a fim de incentivar o êxito desse procedimento:

§ 8o O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado.

Essa multa será depositada em fundos de modernização do Poder Judiciário, que serão criados pela União e pelos Estados, conforme previsto no art. 97 do NCPC. Questiona-se aqui a incidência da multa nos casos de réu citado por edital. Se não fosse devida a multa dos 2%, estaria se questionando a própria validade da citação ficta. Certo é que não incidem os efeitos de revelia na citação por edital, por ela ser ficta ou presumida. Mas não há fundamento para deixar de se aplicar a multa do §8° do art. 334, tampouco para não realizar a audiência de conciliação e mediação. Isso porque no NCPC o prazo para contestar começa a contar da data da audiência:

Art. 335. O réu poderá oferecer contestação, por petição, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo termo inicial será a data:I - da audiência de conciliação ou de mediação, ou da última sessão de conciliação, quando qualquer parte não comparecer ou, comparecendo, não houver autocomposição;II - do protocolo do pedido de cancelamento da audiência de conciliação ou de mediação apresentado pelo réu, quando ocorrer a hipótese do art. 334, § 4o, inciso I;III - prevista no art. 231, de acordo com o modo como foi feita a citação, nos demais casos.

Ademais, a possibilidade de bloqueio online de eventuais recursos financeiros do réu pode ser uma forma efetiva de trazê-lo ao processo, ainda que essa possibilidade seja remota. Não se pode esquecer que a citação por edital só ocorre quando o réu se encontra em lugar ignorado, incerto ou inacessível. Na hipótese de réu que se encontra em país que não aceita carta

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rogatória, alega-se que seria incabível a multa para incentivo à conciliação e mediação, visto que o réu dificilmente poderia comparecer à audiência. Entretanto, conforme explicita o §7° do art. 334, a audiência de conciliação ou mediação poderá ser realizada por meio eletrônico, nos termos da lei que regula a matéria. De qualquer maneira, não há que se falar em enriquecimento sem justa causa do autor, uma vez que o valor será convertido ao fundo de modernização do Poder Judiciário.

Outra diferença entre a audiência de conciliação dos Juizados Especiais e a primeira parte do procedimento comum do Novo Código se refere à contestação, que, no primeiro caso, é feita na própria audiência, na qual o réu expõe as razões pelas quais acredita estar certo. Na audiência do art. 334, como já foi brevemente relatado acima, o réu não é citado para contestar, até mesmo porque o juiz não realiza a audiência e o conciliador ou mediador não tem poder decisório acerca do mérito.

A audiência de conciliação ou mediação não é completamente obrigatória. Haverá casos em que os direitos em abstrato impossibilitam a própria autocomposição. Veja, o dispositivo não restringe a impossibilidade da audiência em relação aos direitos indisponíveis, uma vez que existe uma série de direitos indisponíveis que admitem a conciliação e a mediação entre as partes, como os conflitos envolvendo questões de família, “ressalvados os casos de filiação, adoção, poder familiar, e invalidade do matrimônio, ou questões ambientais. Estes são exemplos de direitos, a princípio, indisponíveis, mas que são mediados com altas taxas de êxito e de efetividade”1.

Dispensa-se a audiência de conciliação ou mediação nas demandas que envolvem direitos que não são passiveis de autocomposição, por exemplo, nas ações de improbidade administrativa, em que o réu é notificado para manifestação preliminar - ou uma defesa prévia para admissibilidade da ação. Nesses casos, o prazo de 15 dias úteis para contestar começa a contar a partir da data de juntada aos autos o documento de citação (a carta AR, o mandado, a carta precatória), pois o direito em abstrato não é passível de autocomposição.

Exatamente por não se limitar a direitos disponíveis, a conciliação e a mediação são cabíveis também em ações envolvendo a Fazenda Pública,

1 COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO E JUSTIÇA E DE CIDADANIA. Parecer acerca do Projeto de Lei Nº 7169, DE 2014. Disponível em < http://goo.gl/eP45LV>. Acesso em 02 nov. 2015.

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observadas as disposições legais2. Adilson de Abreu Dallari (2015) sintetiza que “ao optar pela solução amigável, a Administração Pública não está necessariamente transigindo com o interesse público, nem abrindo mão de instrumentos de defesa de interesses públicos. Está, sim, acolhendo uma forma mais expedita ou um meio mais hábil para a defesa do interesse público”. A Lei 13.140/2015 dispõe:

Art. 32. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, onde houver, com competência para: I - dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.

Enquanto essas câmaras de mediação não forem criadas, os conflitos poderão ser dirimidos conforme as disposições gerais do procedimento da mediação judicial e extrajudicial. O §5° do referido artigo traz ainda como exemplo os conflitos que envolvem equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com os particulares, enquanto o artigo 33 autoriza a Advocacia Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios a mediar coletivamente nos conflitos relacionados à prestação de serviços públicos.

Ainda, a legislação estabelece:

Art. 36. No caso de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que integram a administração pública federal, a Advocacia-Geral da União deverá realizar composição extrajudicial do conflito, observados os procedimentos previstos em ato do Advogado-Geral da União.

2 Inclusive, a Procuradoria Jurídica do Município de Marialva/PR, desde 2010, promove a transação extrajudicial no âmbito da Administração Pública, nos casos de indivíduos em busca da indenização por danos comprovadamente provocados pelo Poder Público, envolvendo direitos patrimoniais. Mais em: <http://goo.gl/Qbp7YN>. Acesso em 02 nov. 2015.

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Art. 37. É facultado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, suas autarquias e fundações públicas, bem como às empresas públicas e sociedades de economia mista federais, submeter seus litígios com órgãos ou entidades da administração pública federal à Advocacia-Geral da União, para fins de composição extrajudicial do conflito.

Esses são apenas alguns casos em que a Administração Pública está autorizada a mediar e conciliar. Ultrapassada, portanto, a ideia de que a Fazenda Pública estaria dispensada da audiência de conciliação e mediação do art. 334 do Novo Código.

Outra hipótese de dispensa é a dupla recusa pelo autor e pelo réu. Ambos precisam se manifestar quanto ao desinteresse de realizar a audiência de conciliação ou mediação (art. 334, §4°, I). Caso contrário, será realizada a audiência, mesmo contra o desejo de uma das partes. O momento para manifestação das partes é indicado no §5° do artigo: o autor deve indicar o desinteresse na própria petição inicial, sob pena de preclusão e presunção de que há interesse na autocomposição; para o réu, a recusa deve ser feita por meio de petição até 10 dias antes da audiência.

Havendo litisconsórcio, todos os litisconsortes devem se manifestar contrariamente à audiência. Se houver uma única recusa, todas as partes devem comparecer na audiência, sob pena da aplicação da multa prevista no §8°, ainda que tenha manifestado seu desinteresse em tempo hábil. Havendo a dupla recusa, abre-se o prazo para contestar, a contar da data do protocolo da petição do réu.

Nesse sentido, Fernando da Fonseca Gajardoni (2015) aponta outros problemas práticos da opção legislativa na elaboração do art. 334 do Novo Código, os quais serão analisados adiante.

O jurista afirma que a opção do legislador em tornar quase obrigatória fere um dos princípios da mediação, o da autonomia da vontade (art. 166 do NCPC). Com a data vênia, entendo que, na realidade, o dispositivo privilegia referido princípio: se ao menos uma das partes vê a possibilidade de acordo, o juiz não pode recusar seu direito de tentar a autocomposição do conflito, ainda que entenda mínima a probabilidade de conciliação no caso concreto. Afinal, o Estado deve promover a autocomposição como meio preferencial para a solução dos conflitos, de modo a estimular a conciliação, a mediação e os outros métodos de solução consensual de conflito, inclusive no curso do processo judicial, conforme determinado no §3° art. 3° do NCPC.

Outro argumento apresentado pelo autor seria a burocratização da

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conciliação e da mediação, possibilitando “manobras processuais protelatórias, com um dos demandados aceitando a audiência, apenas, para ganhar mais alguns meses de tramitação processual, sem possibilidade de intervenção judicial para obstar a manobra”. Não se pode esquecer que a conciliação e a mediação são procedimentos estruturados com base no nível cooperativo entre as partes, rumo à solução satisfativa do litígio. O processo judicial deve deixar de ser visto como uma guerra entre as partes, na qual vencer significa vingar-se a qualquer custo do conflito surgido entre elas. Muitas vezes, é possível alcançar, através da autocomposição, uma solução que satisfaça ambos os lados, sem que haja um vencedor e um perdedor3.

Sabe-se que essa ideia é relativa, variando de acordo com o nível de litigiosidade em cada caso concreto, mas o princípio da cooperação deve estar presente em todos os casos, impondo deveres aos sujeitos processuais, “a fim de que se produza, no âmbito do processo civil, uma ‘eticização’ semelhante à que se já se obteve no direito material, com a consagração de cláusulas gerais como as da boa fé e do abuso do direito” (CUNHA, 2015). Esse princípio não exige que as partes desconsiderem seus objetivos particulares e econômico-financeiros para juntos buscarem a justiça ideal, muito menos que o juiz determine que assim seja. Trata-se de compatibilizar o processo com as exigências constitucionais de boa-fé e razoabilidade, com fundamento na moralidade, no contraditório e no devido processo legal4.

Por fim, Gajardoni defende que a audiência de conciliação ou mediação torna o custo do processo maior, pois “além do pagamento pelos serviços do mediador/conciliador, o demandado domiciliado em outra localidade, praticamente em todas as ações, deverá se deslocar para a audiência de mediação/conciliação no foro da propositura”. Contrapondo-se ao entendimento do jurista, o dispositivo possibilita, em seu §7°, a realização dessa audiência por meio eletrônico, através da implementação do já

3 Como assinala o Ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca: “o exercício da jurisdição resolve a disputa, o litígio, mas não elimina o conflito subjetivo entre as partes. Na maioria das vezes, incrementa mais ainda a disputa interpessoal, pois não acaba com a animosidade, as mágoas e os ressentimentos. Há sempre vencedor e vencido, nos termos da lei aplicada pelo Estado”. Mais em: <http://goo.gl/PsgYNo> Acesso em 03 nov. 20154 Nesse sentido: TALAMINI, Eduardo. Cooperação no novo CPC (primeira parte): os deveres do juiz. Disponível em: <http://goo.gl/basvpi>. Acesso em 03 nov. 2015

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existente sistema de videoconferências, por exemplo. Outrossim, a prática da conciliação e mediação funciona como um mecanismo que, além de auxiliar o desafogamento do Poder Judiciário, reduz não apenas os prazos na resolução dos processos, mas também os custos processuais, através do não prosseguimento de uma ação.

Ademais, não podemos ignorar os princípios constitucionais nos quais repousam a mediação e a conciliação: na ampla defesa, no acesso à justiça, no direito à assistência jurídica e à duração razoável do processo. Resolver o conflito num acordo antes do desenrolar do processo propicia o melhor custo-benefício para ambas as partes, conforme sintetiza Luiz Antunes Caetano (2002):

[...] os meios alternativos da solução de conflitos são ágeis, informais, céleres, sigilosos, econômicos e eficazes. Deles é constatado que: são facilmente provocados e, por isso, são ágeis; céleres porque rapidamente atingem a solução do conflito; sigilosos porque as manifestações das partes e sua solução são confidenciais; econômicos porque têm baixo custo; eficazes pela certeza da satisfação do conflito.

Sob esse ângulo, evidente a necessidade de incentivo a novos meios para a solução de conflitos, a fim de minimizar o acúmulo de processos no Judiciário, reduzir os custos do processo, propiciar maior participação das partes na solução de conflitos e promover o acesso à justiça de forma mais eficaz, célere e flexível. O Novo Código de Processo Civil busca exatamente a consolidação desses meios alternativos para tentar a solução do conflito pelos próprios indivíduos envolvidos, antes da fase instrutória do processo, através da audiência de conciliação ou mediação nas demandas que compreendem direitos passíveis a autocomposição. Com o propósito de desjudicialização do conflito, pretende-se estimular o diálogo na própria sociedade civil e nas suas instituições, de modo a promover uma verdadeira mudança na cultura jurídica brasileira.

Conforme exposto anteriormente, a Lei 13.140/2015 regulamenta a mediação entre particulares, no âmbito judicial e extrajudicial, como meio de solução de controvérsias, bem como a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Embora haja previsões semelhantes as do Novo Código, a Lei da Mediação traz também disposições com significativas divergências, como, por exemplo, os requisitos de formação aos mediadores judiciais. O Novo CPC assim dispõe:

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Art. 167. Os conciliadores, os mediadores e as câmaras privadas de conciliação e mediação serão inscritos em cadastro nacional e em cadastro de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal, que manterá registro de profissionais habilitados, com indicação de sua área profissional.§ 1o Preenchendo o requisito da capacitação mínima, por meio de curso realizado por entidade credenciada, conforme parâmetro curricular definido pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça, o conciliador ou o mediador, com o respectivo certificado, poderá requerer sua inscrição no cadastro nacional e no cadastro de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal (grifos do autor).

Todavia, fazendo o cotejo das duas normas, a Lei de Mediação é mais flexível quanto aos mediadores extrajudiciais e mais rigorosa em relação aos mediadores judiciais:

Art. 9o Poderá funcionar como mediador extrajudicial qualquer pessoa capaz que tenha a confiança das partes e seja capacitada para fazer mediação, independentemente de integrar qualquer tipo de conselho, entidade de classe ou associação, ou nele inscrever-se.

Art. 11. Poderá atuar como mediador judicial a pessoa capaz, graduada há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido capacitação em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais, observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça. (grifos do autor)

Outro aspecto importante a ser observado diz respeito à possibilidade das partes escolherem de comum acordo o conciliador, o mediador ou a câmara privada que realizará a audiência de conciliação e mediação (art. 168). Inexistindo acordo quanto à escolha do mediador ou conciliador, haverá distribuição entre aqueles cadastrados no registro do tribunal, observada a respectiva formação (§2° do mesmo artigo). No entanto, a Lei de Mediação, determina que os mediadores designados pelo tribunal não estarão submetidos à prévia aceitação das partes (art. 25).

As disposições acerca da confidencialidade da mediação também diferem em aspectos pontuais. O Novo Código dispõe que o conciliador e

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o mediador não poderão divulgar ou depor acerca de fatos, elementos ou informações produzidas no curso da audiência de mediação, silenciando sobre possíveis exceções. Por outro lado, a Lei de Mediação estende a confidencialidade às partes, a seus prepostos, advogados, assessores técnicos e outras pessoas que tenha participado direita ou indiretamente da audiência de medição. Além disso, elenca três ressalvas nas quais as informações poderiam ser divulgadas em processo arbitral ou judicial: se as partes expressamente estipularem, se sua divulgação for exigida por lei ou se for necessário para que o acordo obtido pela mediação seja cumprido.

Por fim, a Lei de Mediação não prevê a possibilidade da dupla recusa pelo autor e pelo réu, omitindo as exceções para a realização da audiência de conciliação ou mediação já abordadas anteriormente.

De acordo com o período de vacatio legis estabelecido no art. 47, a Lei de Mediação entrará em vigor em dezembro de 2015, ou seja, antes do Novo CPC. Diante das dissonâncias, resta a dúvida sobre quais disposições devem prevalecer. Fazendo o cotejo entre as duas compilações e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, não houve qualquer revogação ou modificação expressa, assim como a Lei de Mediação não regula inteiramente a matéria de que trata o Novo CPC (ou vice-versa). Apesar de haver disparidades pontuais, os princípios e diretrizes são similares, de modo a ficar rejeitada a ideia de derrogação de determinadas previsões legais.

Segundo Fernanda Tartuce (2015), o critério utilizado nesse caso para solucionar a antinomia entre as regras incompatíveis seria da especialidade, uma vez que a Lei de Mediação consiste numa lei especial. Argumenta:

Embora reconheça ser a informalidade um dos princípios inerentes a tal meio consensual, a lei traz um detalhamento consistente sobre a sequência de atos a ser observada na mediação – referindo-se, por exemplo, à necessidade de advertência sobre a confidencialidade logo no início do procedimento. Pode-se concluir, portanto, que o Novo CPC deve ter reconhecida sua aplicação supletiva no que tange às regras de mediação judicial.

De qualquer forma, nos casos em que haja dúvida quanto à aplicação das normas do Novo Código ou da Lei de Mediação, o intérprete deverá encontrar a resposta mais compatível com os princípios e diretrizes da mediação, comuns aos dois textos normativos.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Novo Código de Processo Civil provoca uma mudança de paradigma metodológico do instrumentalismo processual para o neoprocessualismo, a partir da estipulação de um processo cooperativo em relação à prestação jurisdicional. Por conseguinte, incentiva os meios alternativos de resolução de conflitos, visando à participação das partes na construção de uma solução satisfatória ao conflito, o que propicia, inclusive, o restabelecimento da relação social envolvida na disputa. A mediação e a conciliação, afinal, não apenas solucionam processos judiciais, mas também pacificam pessoas e constroem um novo paradigma de sistema voltado para o consenso e fortalecimento da democracia participativa.

O recém-sancionado Código de Processo Civil e as medidas adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça, como a criação da Resolução/CNJ n. 125/2010, evidenciam a importância do Estado em compor políticas públicas nacionais na matéria e estimular o uso de práticas cooperativas em processos de resolução de disputas, respondendo assim às demandas cada vez mais crescentes de diversos setores da sociedade civil. O artigo 334 do Novo CPC representa uma tentativa de transformar uma cultura do litígio numa cultura do diálogo e do consenso. E isso só ocorrerá se todos os sujeitos processuais se comprometerem a concretizar o princípio assentado no artigo 6° do Novo Código: o da cooperação.

A busca pela capacitação dos profissionais que realizarão essas audiências também não pode demorar, visto que esta ainda ocorre lentamente mesmo faltando poucos meses para a entrada em vigor do Novo Código. Embora existam câmaras privadas de arbitragem e mediação já consolidadas, é necessário a estipulação da tabela de remuneração dos mediadores pelos tribunais prevista no art. 169, bem como a razoabilidade dos preços eventualmente fixados no regulamento interno.

Finalmente, as divergências entre o Novo CPC e a Lei de Mediação também devem ser cotejadas de maneira a dialogar com os princípios e diretrizes da conciliação e da mediação, a fim de obter respostas práticas para os questionamentos decorrentes da aplicação das normas incompatíveis entre si.

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THE CONCILIATION OR MEDIATION SESSION ON THE NEW CIVIL PROCEDURE LAW

ABSTRACT

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The new Civil Procedure Law recently approved seeks to promote the practice of alternative dispute resolution, specifically mediation and conciliation, which shows how important these mechanisms are due to overburden and moroseness of the Judiciary. Even more, it’s about composing public policies that achieve a proper treatment to conflicts in contemporary, in order to encourage the parties to take part in building a satisfactory solution to the conflict and promote the strengthening of participatory democracy. Therefore, the article aims to discuss the procedure laid down in Article 334 of the new Civil Procedure Law, almost obligatory to the parties before initiate a legal process in the Judiciary, and how it might develop practically.

Keywords: Conciliation. Mediation. Cooperation. Neoprocessualism. Culture of Dialogue.

Daniel Maciel Domene

DIKASTERIA: A INFLUÊNCIA DA GRÉCIA DE SÓCRATES NO

TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO

Sephora Luiza Marchesini StivalAluna do Doutorado na Universidade de Coimbra

RESUMO

O presente estudo tem como escopo a apresentação dos aspectos estruturais coincidentes entre a Dikasteria Ateniense e o Tribunal do Júri brasileiro, por meio de uma pesquisa bibliográfica com artigos, teses e livros da área de história e de direito. Na Grécia Antiga existia o Tribunal de Helieia (popular), espécie de órgão judiciário que se encontrava dividido em câmaras de decisões, as chamadas Dikasteria. Estas sofreram mutações quanto à matéria de julgamento, mas comumente julgavam assuntos da esfera civil e criminal. Na antiguidade não havia uma escola especifica de Direito, apenas escolas de retórica, dialética e filosófica, de modo que todos os julgamento e decisões eram tomadas pelos cidadãos, juízes leigos. É possível observarmos no Tribunal do Júri brasileiro, instituído em 1822 com intuito de julgar crimes de imprensa, alguns aspectos vigentes na Dikasteria, como o julgamento por seus pares, jurados leigos. Assim busca-se encontrar as raízes do Tribunal do Júri no berço da civilização Ocidental, a Grécia.

Palavras-chave: Dikasteria. Tribunal de Helieia. Tribunal do Júri brasileiro.

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1 INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como escopo a apresentação dos aspectos estruturais coincidentes entre a Dikasteria Ateniense e o Tribunal do Júri brasileiro, por meio de uma pesquisa bibliográfica com artigos, teses e livros da área de história e de direito. Para melhor compreendermos o desenvolvimento deste Tribunal em Atenas nos é necessário uma breve apresentação histórica das transformações que ocorreram no território grego na antiguidade que resultaram na formação da Pólis, e na necessidade de um corpo legislativo e judiciário, assim como nos é necessário observar os aspectos formadores do Tribunal do Júri brasileiro.

O relevo acidentado, montanhoso e o solo pouco fértil isolava os vários grupos humanos locais, dificultando a comunicação e favorecendo a formação política predominante, a Pólis. Estas Cidades-Estados se formaram por volta do século VIII a.C., sendo em maioria auto-suficientes, o que contribuía para a manutenção de um governo próprio, sem ter de se submeter a soberania de outra Cidade.

Para melhor compreendermos o desenvolvimento deste Tribunal em Atenas nos é necessário uma breve apresentação histórica das transformações que ocorreram no território grego na antiguidade que resultaram na formação da Pólis, e na necessidade de um corpo legislativo e judiciário.

2 A PÓLIS ATENAS E SUA ESTRUTURA

O mundo grego entra em um período de trevas, durante a época Arcaica (desenvolvimento da Pólis e expansão do colonialismo entre os séculos VIII ao V, mais especificamente entre 776 a 480 a.C) culminando na necessidade de uma melhor organização da sociedade. As Cidades-Estados passam a se formar por volta do século VIII a.C., sendo em maioria auto-suficientes, o que contribuía para a manutenção de um governo próprio, sem ter de se submeter a soberania de outra Cidade. A Pólis era formada por todo território e atividades desenvolvidas para aquela Cidade-Estado, isso é, tanto a área urbana como a rural faziam parte da Pólis. Para Ferreira, a Pólis era “uma célula política que concede direitos a todos os cidadãos e deles exige deveres” (FERREIRA, 1990. p. 35).

Além da localização geográfica, houve razões históricas que beneficiaram seu desenvolvimento. Foi um período de intensas e longas disputas, nas quais muitos homens, chefes ficavam por anos fora de casa, o

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que facilitava a dissolução de muitas aldeias ou mesmo de agregação.No inicio da civilização o Direito era consuetudinário e não se

encontrava escrito. O Direito iniciou o seu desenvolvimento no sul da Itália, onde havia maior intensidade comercial, e logo se alastrou até Atenas. A população de médio e parcos recursos estava a mercê da aristocracia e dos novos ricos que com frequência entravam em conflito pela competição econômica. Isso contribui para que na metade do século VII tenha havido inúmeras lutas sociais, que em alguns casos culminaram em guerra civil.

Em um primeiro momento buscou-se resolver esses conflitos de forma pacífica, na qual as facções opostas aceitavam a intervenção de homens íntegros, por mútuo acordo, que viessem a ser eleitos para tomar as decisões necessárias para controlar as crises, são estes os legisladores, que acabariam por formar um código de leis.

Como indica Ferreira (1990. p.55), a justiça familiar perde sua força, a população passa a desenvolver uma consciência quanto ao papel que desenvolvia e seus direitos dentro dessa polis, era para alguns a consciência de cidadão, o nascer do sentimento de comunidade. Assim, nesta época houve uma grande necessidade de nomear legisladores para a composição da Pólis, uma justiça exercida pela comunidade como um todo. Em Atenas durante a época Arcaica houve a nomeação de legisladores, os quais retiraram poder das mãos da aristocracia por meio das leis escritas, as quais estavam sendo clamadas pelo povo, que queriam um direito escrito para que não houvesse sentenças injustas, os dando oportunidade de recorrer, “estabelecer uma lei comum que servisse de lema à sua conduta. A codificação das leis vem satisfazer essa aspiração: põe a lei ao alcance de todo, oferecendo-lhes a possibilidade de conhecerem, sem estarem sujeitos ao segredo e à arbitrariedade das interpretações. Retira dessa forma aos aristocratas o monopólio da justiça” (FERREIRA, 1990. p. 56).

Coube aos legisladores fazerem a compilação da tradição e dos costumes, apresentando uma estrutura legal em forma de leis codificadas, que regrariam a vida cívica. Os primeiros legisladores aparecem nas cidades mais desenvolvidas, em meados do século VII a.C., na Magna Grécia. O mais antigo que se tem conhecimento é o Zaleuco de Locros, por volta de 650 a.C., tendo sido autor do primeiro código de leis escritas. Mas os legisladores mais conhecidos são os pertencentes a Esparta, o Licurgo, e em Atenas dois legisladores se destacaram, Drácon e Sólon. O primeiro citado, não se tem certeza quanto a sua existência real, pois os dados encontrados são contraditórios, sendo a sua bibliografia um produto literário.

Os dois legisladores destacados da cidade de Atenas, tiveram êxito

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em suas reformas. O primeiro, Drácon (por volta de 620 a.C.), dotou Atenas com o primeiro código de leis, garantindo a proteção as arbitrariedades, e sendo conhecido por sua severidade. Teve uma significativa contribuição na sua legislação referente ao homicídio - diferenciando-os entre homicídio voluntário, homicídio involuntário e o homicídio em legítima defesa - que foi recepcionada por legislações posteriores. Sólon fez grandes alterações ao código de Drácon, trazendo grandes transformações no que se dispunha na área institucional, política, econômica e social, alterando profundamente a constituição ateniense, que contribuíram para a abertura do caminho da instituição da democracia leis (FERREIRA, 2004. p.23).

Sólon trouxe alteração nos órgãos e na relação entre sociedade e estado. Abandonou-se a qualificação pelo nascimento e riqueza, e partiu a população em uma divisão censitária que ocorreu somente pela riqueza, formando quatro grupos. As quatro classes eram as seguintes: em um primeiro patamar encontravam-se os cidadãos que obtinham em suas terras a renda mínima de 500 dentários, conhecida como a das quinhentas medidas; a segunda categoria era daqueles que atingiam com suas terras a renda mínima de 300 dentários, os cavaleiros; na terceira categoria, incluía-se todos os que possuíam uma renda mínima de 200 dentários, e era denominada zeugitas (podiam comprar uma junta de bois); a quarta categoria fora nomeada de tetas (elementos sem ocupação definida), na qual todos aqueles que tinham renda abaixo de 200 dentários faziam parte. O restante da população, constituída por médicos (estrangeiros), escravos e mulheres, encontrava-se excluída da cidadania.

Com as reformas políticas feitas por Sólon, o governo recebeu uma nova formatação, que se manteve intacta mesmo durante a tirania. Já havia uma divisão em três instituições: os magistrados (Arcontes), o Conselho (Areópago), a Assembleia. Os Arcontes eram responsáveis pela magistratura, esses eram escolhidos a partir da aristocracia, era uma eleição vitalícia. Iniciou-se com três arcontes, o arconte-rei (basileus), o arconte polemarco e o arconte epónimo (FERREIRA, 1990, p. 109).

Com as reformas de 488/487, a importância desses Magistrados diminuiu, passando de eleição direta para de tirada à sorte em um grupo de 500 nomes, a partir de 487 a.C., desaparecendo até o fim do século V (FERREIRA, 2004. p.89).

O segundo órgão indicado era formado por ex-arcontes, assim, todos os anos o Tribunal de Areópago recebia 10 novos membros (arcontes daquele ano) que tinham sua função vitalícia. Manteve seu poder judicial efetivo até

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462 a.C., momento a partir do qual seu poder diminuiu, ficando restrito ao julgamento dos crimes de homicídio.

A Assembleia ou depois o Tribunal Ecclesia eram a reunião do demos, com o fito de deliberar e tomar decisões que tivessem relação com a vida e o governo da Pólis. A participação de todos os cidadãos não só era permitida, como era uma obrigação, entretanto somente uma parte tinha condições de estar presente (era difícil a participação daqueles que trabalhavam no campo ou que possuiam terras). A autoridade da Assembleia era judicial, julgando todos os processos que envolvessem a segurança do Estado.

Os chamados Tribunais de Helieia, possivelmente instituídos por Sólon, eram em sua fundação um tribunal dirigido por jurados escolhidos anualmente por meio de sorteio. Somente poderia candidatar-se a esse Tribunal aqueles atenienses maiores de trinta anos. Era feito o sorteio de 6.000 juizes de 40 a 45 mil cidadãos, sendo 600 de cada tribo, os chamados dikastai. Os 600 não se reuniam em plenário, era comum que formassem júris específicos, nos quais as tribos eram representadas de forma equivalente. Tinha como fito alcançar decisões judiciárias o menos arbitrárias possível Os grupos variavam de 201 a 2501 (FERREIRA, 1990. p. 112-118).

Com as alterações feitas por Sólon houve a implantação da Boulé dos 400, um novo conselho, formado por membros de quatro tribos, com poder semelhante ao do Aréopago. Este acabava por ser mais popular. Com Clístenes, tornou-se Conselho dos Quinhentos, como veremos a seguir. Esse órgão era responsável pela criação das leis para o dêmos aprovar, era feita a leitura e em seguida sua votação para ser aprovado ou manter-se para discussão. Nessas Assembleias qualquer ateniense poderia intervir.

Durante o século VI a.C, houve um golpe de Estado em Atenas, no qual assumiu Pisítrato, com uma tirania que duraria pouco menos que duas gerações. Pisístrato faleceu em 528 a.C., assumindo seus dois filhos. Hípias e Hiparco não conseguiram manter o governo por mais do que 14 anos. Atenas, então, passou a assistir a um processo de democratização, momento de ascensão do povo ao poder. Sólon, algumas décadas antes, já havia aberto o caminho para a democratização das leis.

Com o fim da tirania houve uma tentativa de instauração de um governo oligárquico por Iságoras, com o apoio de Esparta, entretanto a população não aceitou, e buscou manter a soberania da lei, apoiando a ascensão de Clístenes ao poder, por volta de 510 a.C. (FERREIRA, 2004. p. 79).

Clístenes fez as reformas de 507/508 a.C., que fundamentaram a instauração e solidificação da democracia, dando continuidade à legislação de

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Sólon. Uma grande alteração feita por ele foi a divisão de Atenas em 10 tribos. Antes havia quatro grandes grupos, famílias de onde, por exemplo, saíam os futuros membros da Boulé dos 400; com Clístenes, passou-se a ter 10 grupos, o que contribuía para uma melhor distribuição de poderes. O nascimento e a riqueza perderam o valor como características necessárias para participação de órgãos ou mesmo para ser considerado cidadão. O espaço geográfico tornar-se-ia valorado e o indicador.

Com Clístenes foi instaurado o Conselhos dos Quinhentos, formados por 500 membros do dêmos, tirados à sorte, cinquenta por tribo (no tempo de Sólon havia apenas 4 tribos, por isso era Boulé dos 400, eram 100 de cada tribo, todavia com a implementação da divisão de Atenas em 10 regiões por Clístenes, passou-se a considerar 10 tribos). Essa divisão levava a possibilidade de uma representação proporcional. Cada membro poderia participar somente duas vezes, e deveria ser o cidadão maior de trinta anos. Esse órgão era responsável por inúmeras decisões, compartilhando com a Assembleia e o Tribunal de Ecclésia algumas funções, em suma, eram eles os responsáveis pelo bem estar de Atenas e pelo bom funcionamento dos outros órgãos e da atividade pública, era o centro da adminsitração. Por volta do século IV a.C. a Assembleia se tornará mais poderosa (FERREIRA, 1990. p. 98-107).

Ainda, Clístenes foi responsável pela criação de mais um órgão, o dos Estrategos (10 eleitos diretamente, de forma ilimitada, que formariam o grupo dos grandes magistrados). Esse órgão tornou-se a magistratura suprema durante o século V, principalmente após a Batalha de Maratona em 490 a.C., de modo a diminuir o poder dos Areópagos, restringindo suas decisões aos casos jurídicos relacionados ao homicídio. Essa nova instituição não restringia quantidade de reeleição dos seus membros. Eles acabavam assumindo o comando pleno do exército e da armada, eram chefes militares e chefes do poder executivo. Além do poderio militar tinham necessidade de serem oradores hábeis, pois todo ano necessitavam prestar contas de seu mandato, e de certa forma para manter-se, precisavam do apoio do demos. Havia ainda outras magistraturas além dos Arcontes e dos Estrategos, como, por exemplo, os dez poletai, os cinco hodopoioi, os dez agoranomoi e os dez metronomoi (FERREIRA, 1990. p. 112-114).

Durante o governo de Efialtes e Péricles o Tribunal de Helieia, a Assembleia e a Boulê receberam competências antes dadas ao Areópago. Os dois dirigentes consideravam esse último órgão um obstáculo para o alargamento da democracia em face do excesso de poderes concentrados. Assim as reformas de autoria de Efialtes levou a diminuição de suas

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prerrogativas e poderes, os restringindo somente as decisões relacionadas ao homicídio e os delitos de caráter religioso, trazendo para Atenas uma alteração significativa na orientação política (FERREIRA, 2004. p. 88-120).

Assim:

A participação dos cidadãos nas actividades publicas da polis fazia-se através de três grandes instituições: a Assembleia (Ecclesia),que agrupava todos os Atenienses os quais nela tinham o direito e o dever de tomar parte; o Conselho dos Quinhentos (a Boulê) e os Tribunais populares (Helieia), dois órgãos para os quais eram escolhidos, por tiragem à sorte, de cada uma das dez tribos, cinquenta e seiscentos cidadãos, respectivamente. (FERREIRA, 1990. p. 94).

Lanni (1999. p. 311), em seu artigo “The homicide courts and the Dikasteria”, aborda a função do Areópago em sua função de julgar os homicídios, especificando que eram nos casos de homicídios doloso, de ferimentos, envolvendo incêndio e nos casos de ofensas religiosas, cabendo aos outros tribunais os outros casos de homicídio. Trazendo a luz a existência de um tribunal chamado de Ephetic, que era um tribunal especial. O Areópago formado por 145 a 175 homens com idade média entre 52 e 57 anos, um corpo pequeno de homens mais velhos, tendo todos uma certa experiência jurídica, fosse pelo seu trabalho de presidir sessões nas cortes de justiça popular durante o ano em que era arconte, ou mesmo por serem menos suscetíveis de serem seduzidos pela retórica ou emoção que acabavam por enganar os júris de massa do Tribunal Dikasteria. De modo que o corpo de jurados do Areópago era reconhecido pela população pela sua capacidade.

Licurgo (apud LANNI, 1999. p. 315) chama o Areópago “finest model of Greece”. Traz em seu estudo o caso de um homem que pede que seja julgado pelo Areópago, e não por Tribunais populares, alegando que apesar de confiar na decisão tomada os esses, eles não levariam em conta sua boa ação, já que não encontram-se submetidos a lei alguma, diferente do Areópago. Ainda este último tribunal julgava baseando-se nas questões legais e factuais, separando do seu contexto social, isso é, desconsiderando a posição social a qual pertencia. Já nos tribunais populares o caráter social era primordial, sendo considerado mais a sua função do que a acusação em si.

Os novos Tribunais de Helieia já tinham sido instituídos com Sólon, como apresentado no início, tendo qualquer pessoa – mesmo mulheres, escravos e crianças – o direito de apelar das decisões dos magistrados. A criação destes trazia em suas bases “a ideia de que a lei se encontrava acima

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do magistrado que tinha a cargo a sua aplicação” (FERREIRA, 2004. p. 63).Em 508 a.C., Helieia era um tribunal de apelação, com a função de

rever as injustiças, já em 462 a.C. tornou-se um tribunal de extrema importância que tinha como função a supervisão da administração judiciária.

Como já explanado, Helieia era o Tribunal formado por seiscentos membros sorteados (sessenta de cada tribo), tendo suas reuniões realizadas em praça pública, ou seja, na ágora, sendo presidido por um arconte, que tinha como função dizer o direito. Os votos não eram secretos, e não tinha como se recusar os julgadores, por mais que o considerasse suspeito (ARAÚJO, 2007. p. 20).

Dentro do grupo de seis mil sorteados, cinco mil eram selecionados e divididos em sessões de quinhentos (ou quinhentos e um, para manter-se um número ímpar para que não ocorresse empates), e os mil cidadãos restantes eram considerados suplentes. Cabendo a eles a decisão de todas as ações que envolvessem direito público e a maior parte dos assuntos dentro do direito privado.

Este Tribunal, Helieia, ou dos Heliastas, era dividido em Dikasteria, espécies de câmara de julgamento. Os juízes tanto do Tribunal de Helieia e do Areópago eram leigos, não havia na Grécia uma escola especifica de Direito, apenas escolas de retórica, dialética e filosofia. O costume era aprender recitando de forma poética alguns textos jurídicos. As leis de Sólon haviam sido ensinadas nas escolas como poemas, levando o cidadão ateniense ter um conhecimento da tradição jurídica e política. Não havia um órgão público para acusação, de modo que qualquer pessoa poderia denunciar crimes público ao tribunal, mesmo que não fosse vítima.

Sócrates, o filósofo, foi condenado por uma Dikasteria, infelizmente os dados quanto ao processo e julgamento são muitos escassos, nos restando como fonte os relatos feitos por outros sábios, como Platão, Xenofante e Arístófanes. Foi acusado de desrespeitar os deuses, de “corromper a mocidade”, por suas convicções. O acusaram sem uma fundamentação em lei, o ateísmo não era proibido em lei, e nenhum fato foi descrito. O julgamento ocorreu no ano de 399 a.C. período em que imperava a ditadura em Atenas (ATONE apud ARAÚJO, 2007. p. 24-26).

Neste período, como já explanado não existia a presença de advogado, apenas um profissional que elaborava discursos forenses, os logógrafos. No caso de seu julgamento, Sócrates nem chegou a recorrer a este serviço, fez sua própria defesa frente ao júri, mesmo sendo amigo próximo de Lísias, logógrafo famoso em Atenas.

115Sephora Luiza Marchesini Stival

Em seu julgamento, como de costume nesse tipo de Tribunal, os jurados votavam em dois momentos: o primeiro quanto a serem favoráveis a condenação ou absolvição do réu e a segunda para decidirem pela pena a ser aplicada quando se decidia pela condenação. No caso de Sócrates, dos quinhentos jurados, 280 votaram a favor de sua condenação. Na segunda votação, 360 jurados votaram a favor da pena de morte.

Araújo (2007. p. 29) buscou em sua dissertação de mestrado encontrar qual seria o Tribunal que pudesse ser apontado como “pátria-mãe” do Tribunal do Júri brasileiro, abordando a legislação nos livros bíblicos, no direito mosaico, o júri na Grécia e Roma antiga, o júri no direito medieval, na Inglaterra renascentista ao mediterrâneo. E conclui que o Tribunal de Helieia, e Dikasteria destoa como base em face de algumas características constadas por Nádia de Araújo e Ricardo R. Almeida (apud ARAÚJO, 2007. p. 29):

[...] além de terem adotado a oralidade no processo, as decisões eram imotivadas, cultuavam o direito de participação, consideravam soberanos os veredictos dos julgadores e defendiam a retórica nos tribunais; elementos que muito se identificavam com a ideia de justiça popular. Entretanto, as decisões não era prevista a possibilidade de rejeição dos jurados, o que leva ao entendimento de que a ausência dessas formalidades descaracterizada o Júri e, por via de consequência, retiram da Grécia o almejado título de pátria-mãe do júri.

3 PROCESSAMENTO DO JULGAMENTO NO TRIBUNAL DIKASTERIA

Dentro da Democracia Ateniense, voltando-se para o tema principal do presente estudo, a Dikasteria, em seu formato formal e material, foi um Tribunal conhecido por muitos, pelo fato de ter sido esse responsável pela condenação de Sócrates, como já visto. Por volta de 450 a.C. as Dikasterias assumem uma função jurídica especial dentro da Pólis Ateniense, na qual resolvia os casos civis e penais, reunindo um grande números de cidadãos que decidiriam sobre o problema. Os atenienses maiores de 30 anos poderiam participar, de modo que além da idade o título de cidadão era o meio empregado para restringir a participação neste órgão. Como os processos eram tratados como assunto público, não houve uma profissionalização dessas funções jurídicas (WOLKMER, 2008. p. 411).

A razão para o limite superior de idade para os jurados e magistrados

116 DIKASTERIA: A INFLUÊNCIA DA GRÉCIA DE SÓCRATESNO TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO

não está explicitamente dito em qualquer fonte, mas não é difícil de adivinhar, segundo Hansen. Pois como descreve, para os gregos a sabedoria e a racionalidade eram desenvolvidas com o tempo pelo homem, com o avanço da idade. Enquanto que os jovens tinham um certo instinto para revoluções e guerras. Assim, acredita ele, que para equilibrar o espírito jovem da Ekklesia, foi uma questão de prudência ter mais homens maduros sentados tanto na Boulé como na Dikasteria, que tinham como incumbência reconsiderar, e, se necessário, anular decisões precipitadas (HASEN, s.d. p. 531).

Hansen em seu artigo “The Concepts of Demos, Ekklesia, and Dikasterion in Classical Athens”, busca responder aos seus críticos seu posicionamento quanto ao significado de cada um dos termos citados no título de seu estudo. Ele afirma que demos é um termo utilizado por muitos filósofos e historiadores para “pessoas comuns”, mas não no sentido de todas as pessoas, haja visto que a democracia ateniense não abarcava todas as pessoas, somente os cidadãos. Esse termo traz inúmeras contradições no contexto da Atenas Democrata, e isso leva a complicar o entendimento quanto a Ekklesia e a Dikasteria.

Ele apresenta alguma das interpretações desse termo, Demos, que pode ser utilizado para pessoas em geral, como somente para aqueles detentores do direito de participação na Assembleia, podendo ser usado ainda como sinônimo para Pólis (no caso de Atenas), ou mesmo sinônimo da constituição democrática. Para Hansen, consoante a documentação que pesquisou, Demos não vinha como significado de uma classe. Em alguns casos foi utilizada como sinônimo de Ekklesia. Mas não são sinônimos perfeitos, para ele a Ekklesia era o órgão, a Assembleia em sentido material, mas não era ela que ditava os decretos e os votos e sim o Demos. Ao mesmo tempo, Hansen indica que Demos não pode ser utilizado como conjunto de indivíduos que participam da Assembleia, e sim chamá-los de ekklesiasts (termo empregado por historiadores modernos).

Quanto à Ekklesia e à Dikasteria o autor afirma que:

The old orthodoxy can be summed up as follows: although ekklesia and dikasteria were separate bodies of government they were both manifestations of the demos, but the ekklesia was the superior institution and a dikasterion was essentially a judicial session of the demos and thus of the ekklesia (HASEN, s.d. p. 521).

Hansen afirma, assim, que a Dikasteria também era formada pelo Demos, estando inserida dentro da Ecclesia, como parte constituinte desse

117Sephora Luiza Marchesini Stival

órgão. A partir das fontes que analisou, percebeu uma cara distinção entre os Tribunais e a Assembleia, alegando que houve momentos em que a Dikasteria esteve submetida ao Demos.

Hansen aponta que a partir de 355 a.C. a Dikasteria tornou-se mais poderosa que o Demos:

[…] above the relative powers of assembly and courts has been reversed […] and as the bulwark of the democracy. It was in particular their monopoly after ca. 355 to hear eisangeliai and the frequent use of the graphe paranomon that placed the dikasterion above the demos(HASEN, s.d. p. 526).

Admittedly, in the fourth century it was the dikasteria that were considered the bulwark of the democracy, but when the Athenians made decisions about war, peace, and foreign policy as well as important individual decisions concerning domestic policy, it was still the demos in the ekklesia that was the crucial body of government, and it was only a small number of all the sephismata passed by the demos that were exposed to a graphe paranomon and referred to the dikasterion. (HASEN, s.d. p. 534-535).

Hansen descreve em seu artigo, que a Dikasteria poderia anular uma decisão tomada pela Assembleia, de modo que, somente alguns cidadãos acima de trinta anos tinham acesso a fazer essa dupla consideração, que para ele era importante, pois permitia a possibilidade de chegar a uma melhor decisão. Ele presume que muitos dos jurados estiveram também presentes na Assembleia, reunião na qual a proposta foi discutida, e assim, ao lidar com o assunto duas vezes, os jurados conseguiam tomar uma decisão melhor quanto ao problema em discussão. E a partir dos anos 350 a.C., todos os julgamentos políticos foram submetidos a Dikasteria, a Ekklesia passou a ser privada de seus poderes judiciais (HASEN, s.d. p. 534).

Paralelamente a isso, quanto à prática da Dikasteria, deve-se ater que o Direito grego não possuía magistrados, nem Ministério Público que iniciassem o processo. Não havia uma carreira profissional para magistratura, esses cargos eram ocupados por cidadãos comuns, consoante à organização do órgão. Era a pessoa lesada ou o seu representante legal que tinham de intentar o processo, fazer a citação, tomar a palavra na audiência, sem auxílio de advogado, de modo que a lei ateniense era essencialmente retórica. Os processos resumiam-se a apenas dois litigantes dirigindo-se a centenas de jurados.

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A Dikasteria era então composta de um júri, e os membros eram chamados de dikastas. Os dikastas eram apenas cidadãos exercendo um serviço público oficial, e sua função se aproximava mais da de um jurado moderno. A decisão final do julgamento era dada por votação secreta, de modo a refletir a vontade da maioria.

Essa forma de julgamento utilizada em Atenas pode ser observada de certa forma em alguns estados modernos, que submetem alguns casos de litigância a um júri formado por cidadãos comuns (em vez de pessoas tendo alguma posição especial e conhecimento especializado), como o caso do Tribunal do Júri brasileiro. Mesmo que na sociedade moderna, em que a administração da Justiça encontra-se nas mãos de profissionais especializados, os Juízes.

Em Atenas o processo ocorria da seguinte forma: A apresentação do caso era feita por discurso contínuo de cada um dos litigantes, interrompido somente para a apresentação de evidências de suporte, e era dirigido aos dikastas, cujo número poderia variar em algumas centenas, por julgamento; mas o número total era sempre ímpar, para que não ocorresse empate.

A votação era feita em seguida da apresentação dos litigantes, sem haver nenhuma deliberação. Como dito anteriormente, não havia Juiz, somente um magistrado que presidia o julgamento, mas este não interferia no processo. Os litigantes dirigiam-se diretamente aos jurados através de um discurso, sendo algumas vezes suportados por amigos e parentes que apareciam como testemunhas, ou ainda era passível de o júri concordar que alguém representasse o indivíduo perante o tribunal, como um amigo ou mesmo familiar. O julgamento resumia-se a um exercício de retórica e persuasão. Cabia ao litigante convencer a maior parte de jurados e para isso valia-se de todos os truques possíveis, até mesmo o de um logógrafo, que era um escritor profissional de discursos forenses, uma forma de advogado, mas que não podia atuar nessa função, apenas escrevia para o litigante falar (MACIEL, 2005).

4 TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO

Como desenvolvido por Araújo (2007), o Tribunal do Júri brasileiro foi instituído a partir do Júri já existente na Inglaterra. A maior parte da doutrina, como aponta Fernando da Costa Tourinho Filho e Elder Lisboa Ferreira da Costa (apud ARAÚJO, 2007. p. 40), defende que no ano da promulgação da

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Carta Magna, 1215, o Concílio de Latrão daquele mesmo ano, veio a abolir os ordalia, contribuindo para que na Inglaterra nascesse o júri em substituição dos ordalia ou juízes de Deus. Foi a transferência do julgamento de juízes de Deus para tribunal do povo.

No início o Tribunal estava envolto de uma religiosidade e um misticismo em sua fundação, um aspecto que nos leva a considerar o caráter religioso é que em seu início o corpo de jurados era formado por 12 membros, com alusão aos doze apóstolos, como apresentado pelo constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (apud ARAÚJO, 2007. p. 42). Ainda a democracia vigorava neste tribunal, pois o poder do povo julgava, o acusado tinha a oportunidade de ser julgado por seus pares, sendo reconhecido como um direito fundamental do cidadão. Hoje não há mais este caráter religioso, mas mantêm-se imaculada sua característica democrática.

Na Espanha e em Portugal o tribunal do júri foi instaurado no século XIX com fulcro de julgar aqueles crimes que referenciavam o direito de livre manifestação, ou seja, os crimes de imprensa, diferentemente da Inglaterra, a pátria-mãe dos júris, na qual os mesmos foram instituídos para proteger os direitos. No Brasil não foi diferente dos países mediterrâneos. Em de 16 de dezembro de 1815 o Brasil foi elevado a categoria de Reino Unido de Portugal, recebendo em 1821 o príncipe Regente, D. Pedro, por meio do Decreto de 23 de maio daquele ano, apresentou sobre algumas disposições do direito individual, relacionadas às questões penais, como a abolição de grilhões ou a proibição de se mandar indivíduos a masmorra de forma secreta.

O Brasil mantinha a recepção das leis do outro país em seu território. Esta transmigração de direito, leva também ao surgimento de instituições análogas. Por meio da Lei de 1822 fora criado o tribunal do povo no Brasil, voltado para o julgamento dos crimes de imprensa.

A competência do tribunal do júri foi alterada diversas vezes, sendo em 1988, com a Publicação na Constituição Federal, designado para a função de julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tanto na modalidade tentada como na consumada. Tendo como princípios e garantias a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e o sigilo das votações (COSTA JÚNIOR, 2007. p. 35).

Nas promulgações das Constituições antecedentes o tribunal do júri tomou diferentes características, chegando a ser suprimido na Carta Magna de novembro de 1937, que silenciou sobre o assunto. Mas, já em janeiro de 1938 foi editado o Decreto-Lei nº 167, que vinha a reestabelecer o júri. Neste mesmo Decreto Lei fora apresentada as Leis Penais que deveria o tribunal do júri ter competência para julgar, eram estes os crimes: de homicídio, infanticídio,

120 DIKASTERIA: A INFLUÊNCIA DA GRÉCIA DE SÓCRATESNO TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO

induzimento ou ajuda ao suicídio, duelo com resultado morte ou lesão seguida de morte, roubo seguido de morte e roubo seguido de morte em sua forma tentada (NUCCI apud ARAÚJO, 2007. p. 51).

Hoje, a identidade constitucional do Tribunal Popular do Júri vem expressamente prevista no artigo 5º, inciso XXXVIII, alíneas “a”, “b”, “c”, “d”, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual se assegura na instituição do tribunal do júri a plenitude de defesa, o sigilo de votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida.

Fernando da Costa Tourinho Filho (apud COSTA JÚNIOR, 2007. p. 34-35) ao tratar da Instituição do Tribunal Popular do Júri:

O Tribunal do Júri é um órgão colegiado, heterogêneo e temporário. Compõe-se de um Juiz de Direito, que é seu presidente, e de vinte e um jurados que se sortearão dentre os alistados, sete dos quais constituirão o Conselho de Sentença em cada sessão de julgamento [...] a circunstância de haver, no julgamento, uma competência funcional horizontal por objeto do juízo, isto é, o Conselho de Sentença, sem influência de quem quer que seja, decide sobre a existência do crime, das circunstâncias excludentes da culpabilidade e de antijuridicidade, da respectiva autoria, sobre as circunstâncias que modelam e deslocam o tipo fundamental para figuras especiais, bem como sobre circunstâncias que servem, apenas, para a fixação da pena. A dosagem desta fica a cargo exclusivo do Juiz-Presidente, não podendo ele se afastar do decidido pelo Conselho de Sentença [...]

José Frederico Marques (apud COSTA JÚNIOR, 2007. p. 39) aponta que nos julgamentos realizados pelo Tribunal Popular do Júri, há o que ele chama de “repartição funcional de competência por objeto do juízo”. Isso é, os jurados são responsáveis por decidir sobre a existência do crime e a respectiva autoria, cabendo ao Juiz-Presidente, somente lavrar a sentença, aplicando a pena ou medida de segurança quando o Júri optar pela condenação, ou então absolvê-lo nos casos em que o júri optar por inocentar o acusado.

5 CONCLUSÕES

Como vimos no procedimento processual do tribunal da Dikasteria, procedimento semelhante ocorre no Júri. Em ambos os jurados definem a culpa ou a absolvição do acusado, cabendo ao Juiz apenas presidir o Júri,

121Sephora Luiza Marchesini Stival

questionar e ao final, consoante decisão dos jurados, nos casos em que seja positiva a condenação, estabelecer a pena ao acusado pela sentença, o que diverge da Dikasteria, que são os próprios jurados que votam em conjunto quanto a penalidade imposta aos acusados reconhecidos anteriormente por eles mesmos como culpados.

Outro aspecto similar é que durante um Júri popular, no qual o advogado do acusado e o Ministério Público disputam de certo modo a atenção dos jurados, o mesmo ocorre na Dikasteria, quando o acusado recebe a palavra para defender-se das acusações apresentadas, assim como a possibilidade da participação indireta dos logógrafos com os discursos eloquentes para alcançar a absolvição. A grande diferença encontra-se no fato de que enquanto os gregos faziam um julgamento direto,, de forma mais célere, o Tribunal do júri brasileiro envolve vários outros indivíduos, tornando-se mais complexo. No júri popular tanto acusado como a vítima (nos casos de tentativa), os familiares (do ente assassinado), são interrogados diante o júri, comumente não possuem muita voz, pois o júri popular é desenvolvido consoante os discursos do Promotor e o Advogado. Cabe ainda a estes os interrogatórios que fazem às testemunhas, a vítima, peritos, etc, cabendo à esses apenas responder as perguntas feitas pelo Promotor, Advogado, ou do Juiz, que pode também fazer questionamentos requerido pelo corpo de jurados.

Ambos os procedimentos comportam o número de jurados ímpares, para que não haja empates nas decisões. Claro que no tribunal brasileiro não se emprega um número tão alto no corpo de jurados, limitados a somente sete. Entretanto, esses sete são escolhidos a partir de uma lista de 25 indivíduos sorteados. Este sorteio é feito com base em uma listagem, consoante dispões o artigo 425, caput do Decreto Lei 11.689/08.

O jurado tem como função a decisão sobre o futuro do acusado, tendo um juiz, no caso brasileiro, togado, e no caso grego um Arconte que presidiam o processo.

É evidente a importância da retórica nos dois tribunais, mesmo que estejam há quase dois milênios de distância, em ambos, quem compõe o júri, são cidadãos, normalmente leigos, com pouco ou mesmo nenhum conhecimento sobre Direito Penal ou Direito Processual Penal, ou eram cidadãos que apenas tinham decorado em forma de poema algumas normas.

Ainda é importante ressaltar que os crimes são divididos em duas ações, na pública e na privada. Na primeira o próprio Estado atua, por ofício, não é necessário requerer a sua manifestação, e nas ações privadas, é como ocorria na Grécia Antiga, na qual se buscava o poder responsável para fazer a

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acusação e requerer a atuação do júri naquele caso, e neste caso a do Estado. Por fim, vê-se que os gregos antigos não só tiveram um Direito

evoluído, como influenciaram o direito de alguns dos nossos modernos conceitos e práticas jurídicas como o júri popular e a figura do advogado. Pode-se dizer que o Júri brasileiro se desenvolveu a partir do modelo Inglês do século XIII, mas como ficou evidente muitos aspectos de nosso atual ordenamento estavam já presente no ideal grego em seus julgamentos, como: a busca pela justiça por meio da democracia, o acusando tendo como seus julgadores os seus pares e não indivíduos togados.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Sebastião Simões de. Análise crítica do Tribunal do Júri em face da soberania, da publicidade e da oralidade. 136 f. Dissertação (Mestrado em Direito), Centro Universitário de Toledo - UNITOLEDO, Araçatuba – SP, 2007. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp077108.pdf Acesso em 28 de junho de 2013.

BRASIL. Constituição, 1988.

_______. Lei 11.689, 09 de junho de 2008.

COSTA JÚNIOR, José Armando. O Tribunal do Júri e a efetivação de seus princípios constitucionais. Fortaleza/CE, 2007.

FERREIRA, José Ribeiro. A Democracia na Grécia Antiga. Coimbra: Livraria Minerva, 1990.

_________. A Grécia Antiga: Sociedade e Política. Lisboa: Edições 70, 2004.

123Sephora Luiza Marchesini Stival

HASEN, Mogens Herman. The Concepts of Demos, Ekklesia, and Dikasterion in Classical Athens. Disponível em: http://www.duke.edu/web/classics/grbs/FTexts/50/Hansen2.pdf Acesso em 23 de novembro de 2012.

LANNI, Adriaan. The homicide Courts ante the Dikasteria: A Paradigm not Followed. American Society for Legal History. Toronto, 1999. p. 311 A 330. Disponível em: http://grbs.library.duke.edu/article/viewFile/2021/3211 Acesso em 28 de junho de 2012.

MACIEL, José Fábio Rodrigues. Logógrafo: o embrião do Advogado. 02 de dezembro de 2005. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/logografo---o-embriao-do-advogado/202 Acesso em 28 de junho de 2013.

WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de História do Direito. 4ªEd. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

DIKASTERIA: THE INFLUENCE OF SOCRATES OF GREECE IN THE BRAZILIAN JURY

ABSTRACT

The present study has the objective to present the structural matching between the Athenian Dikasteria and Brazilian Grand Jury, through a literature with articles, theses and books in the field of history and law. In ancient Greece there was the Court of Helieia (popular), a kind of judicial body that was divided into decisions chambers, calls Dikasteria. The committee judgment has mutated, but commonly judged matters of civil and criminal sphere. In ancient times there were no specific school of law, only schools of rhetoric, dialectic and philosophical, so that all judgment and decisions were made by citizens, lay judges.

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You can observe at the Brazilian Jury, established in 1822 in order to prosecute crimes of the press, some aspects prevailing in Dikasteria as trial by his peers, lay jurors. Thus, are seek to find the roots of the jury in the cradle of Western civilization, the Greece.

Keywords: Dikasteria. Court of Helieia. Brazilian Grand Jury.

O ANTEPROJETO DE LEI DE MIGRAÇÕES E PROMOÇÃO

DOS DIREITOS DOS MIGRANTES NO BRASIL E O DIREITO

INTERNACIONAL: O FIM DE ALGUMAS LACUNAS

Jared Wanderson Moura de SousaAcadêmico do 6º período do curso de Direito da UFRN

Jahyr-Philippe BicharaProfessor Orientador

RESUMO

O presente artigo trata da situação jurídica atual dos indivíduos demandantes do status de refugiado e/ou apátrida no Estado brasileiro, abordando a normatização internacional dispensada ao tema e sua aplicabilidade no território nacional. Nesse sentido, é posto em xeque o Anteprojeto de lei apresentado por uma comissão de especialistas instituída pelo Ministério da Justiça, que objetiva substituir o antigo Estatuto do Estrangeiro – Lei nº 6.815/80, sanando suas deficiências. Para tanto, se analisou os dados oferecidos pelos organismos pertinentes e a literatura referente ao assunto. Constatou-se que, com o advento dessa novel legislação, algumas imperfeições jurídicas poderão ser solucionadas, como o limbo que aflige aos solicitantes do status de apátrida.

Palavras-chave: Refugiados e apátridas. Direito interno e internacional. Atualidade.

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“O homem pode perder todos os chamados direitos do homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da

própria comunidade é que o expulsa da humanidade”(Hannah Arendt).

1 INTRODUÇÃO

Com o terror que tomou o mundo após as duas Grandes Guerras Mundiais, assolando um número incomensurável de pessoas das mais diversas nacionalidades, fortaleceu-se no seio da comunidade internacional a preocupação com a questão da proteção dispensada ao exercício dos direitos humanos. Assim, as pautas das minorias foram naturalmente incluídas e discutidas com maior afinco no plano internacional. Dentre estas, encontram-se os refugiados e apátridas, que por sua condição de vulnerabilidade carecem de um zelo especial por parte do Estado.1

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados – ACNUR – (agência responsável por cuidar da situação dessas espécies de migrantes a nível internacional), o número de refugiados e apátridas é considerável, chegando, em se tratando destes últimos, a cerca de dez milhões em todo o mundo.2 No Brasil, é a quantidade de refugiados e de solicitantes desse status que salta mais proeminente. Segundo fora publicado pelo ACNUR, até o ano de 2014, havia, somente no país, 7.289 refugiados reconhecidos, de 81 nacionalidades distintas.

Em resposta a essa demanda, que não é algo novo, foi que diversas normativas internacionais foram elaboradas no âmago da Organização das Nações Unidas (ONU) – através do ACNUR – e pactuadas entre as várias nações,

1 Alguns doutrinadores, como Ilmar Penna Marinho e Florisbal de Souza, preferem utilizar-se do termo “anacional” ao invés de “apátrida”, por entenderem que ninguém nasce e cresce sem desenvolver um vínculo com o lugar onde reside (sem identificação com uma pátria), mas tão somente podem ser desprovidos de uma subordinação política, isto é, carentes de uma nacionalidade. Não obstante, nos utilizaremos, no presente trabalho, do termo “apátrida”, por ser mais corrente e constar nas normas acerca do assunto.2 O ACNUR foi criado pela Assembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1950, com o fito de atender a todos quanto fossem vítimas de perseguição, violência ou intolerância, conforme se depreende da leitura do Capítulo II de seu Estatuto.

O ANTEPROJETO DE LEI DE MIGRAÇÕES E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DOS MIGRANTES NO BRASIL E O DIREITO INTERNACIONAL: O FIM DE ALGUMAS LACUNAS

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inclusive o Brasil, que se comprometeram em observar as prescrições acordadas e, assim, contribuir para o que claramente se traduz em um genuíno passo em direção ao bem comum – aqui entendido, na perspectiva do Papa João XXIII (1961), como sendo o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana.

No plano interno, contudo, a percepção em relação ao órgão competente para tratar dos casos de apatridia é um tanto delicada. Isto porque, no concernente a eles, não, há no ordenamento pátrio, legislação que clarifique a questão de se saber qual o ente administrativo incumbido da tarefa de cuidar da concessão do status de apátrida e da proteção aos seus direitos na forma como sua condição de vulnerabilidade jurídica demanda.

Limbo no qual não se encontram os refugiados, posto gozarem de legislação específica disciplinando sua situação no território nacional, a lei nº 9.474, de 1997. Acontece que, a despeito de o Brasil não ter disciplinado a situação jurídica dos apátridas no plano interno, o Estado aderiu às normativas internacionais que se dirigem ao assunto, gerando direitos tanto para os necessitados de refúgio quanto para aqueles que requisitam o status de apátrida e o resguardo especial decorrente dessa qualidade. Nesse sentido é que se insere o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, preparado para sanar as lacunas existentes e harmonizar o direito doméstico com as prescrições internacionais, revogando, inclusive, o Estatuto do Estrangeiro – Lei 6.815/80, publicado no Diário Oficial da União em 23 de julho de 1997.

Toda a questão que se coloca, então, é saber se o Estado brasileiro dotou de eficácia no plano interno os direitos previstos nas normas internacionais pertinentes e, demais disso, se as normas vigentes são realmente eficientes no cumprimento daquilo a que se propõem. A esse respeito é que se debruça precipuamente o presente ensaio acadêmico e sobre esses pontos é que foram tecidas as linhas que se seguem.

2 AS NUANCES DA APLICABILIDADE E EFICÁCIA INTERNA DAS NORMAS DO DIREITO INTERNACIONAL DO REFUGIADO E DO APÁTRIDA

Naturalmente, todo Estado, ao tornar-se signatário de um tratado (em sentido amplo), vincula-se por escolha própria, via de regra, a um conjunto de normas de cunho jurídico. É dizer, por ato que traduz sua liberalidade, o Estado aceita fazer parte de um rol de nações que obrigam-se em relação a um

Jared Wanderson Moura de Sousa

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determinado conteúdo consubstanciado em um instrumento internacional, o qual na mesma medida em que confere prerrogativas aos Estados, lhes impõe o dever de observar determinadas condutas (KELSEN, 2012, p. 360).

Após obrigar-se, nasce para o Estado o dever de observar aquilo o que estabeleceu junto a seus pares e/ou organizações internacionais. Incumbência da qual não pode afastar-se, salvo por intermédio de mecanismos específicos, sob pena de incorrer em responsabilização e possibilidade de sanção – caso haja previsão para tanto. Consequências que se desdobram da regra pacta sunt servanda, a qual determina que deve-se cumprir de boa-fé aquilo o que se pactuou. Tal regra encontra-se prevista na Convenção de Viena Sobre Direito dos Tratados, de 1969, promulgada no Brasil em 14 de dezembro de 2009, através do Decreto Presidencial nº 7.030, publicado no Diário Oficial da União em 15 de dezembro de 2009.

Com a existência de convenções e protocolos internacionais disciplinando as condutas dos Estados no tocante aos refugiados e apátridas, é de se esperar que essas figuras recebessem o tratamento devido. Entre ser e dever-ser, no entanto, há um abismo que por vezes é árduo de se ultrapassar (KELSEN, 2012). Por assim ser é que, mesmo contemporaneamente, a experiência de vida das pessoas carentes da certificação de sua condição – refugiada e/ou apátrida – é muitas vezes ácida e lhes corrói amiúde a dignidade humana, em nítida mácula a um dos fundamentos da Constituição Federal de 1988, insculpido logo no inciso III de seu artigo 1º.

2.1 Do Direito Internacional dos Refugiados

Tomando-se por base as convenções internacionais de pretensões universais que tiveram como objeto a situação dos refugiados e dos apátridas, verifica-se na linha histórica, primeiramente, tratativas referentes aos necessitados de refúgio, com o advento da chamada Convenção Sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto Presidencial nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961, publicado no Diário Oficial da União em 30 de janeiro de 1961.

Para regulamentar essa convenção, foi produzido, em 1967, o Protocolo Sobre o Estatuto dos Refugiados, aderido pelo Brasil em 07 de abril de 1972, através do Decreto nº 70.946, publicado no Diário Oficial da União em data de 8 de agosto de 1972, quando foi depositado na ONU o instrumento de aquiescência. Outro importante marco tangente à questão dos refugiados é a Declaração de Cartagena.

O ANTEPROJETO DE LEI DE MIGRAÇÕES E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DOS MIGRANTES NO BRASIL E O DIREITO INTERNACIONAL: O FIM DE ALGUMAS LACUNAS

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Com o Estatuto de 1951 e sua incorporação ao ordenamento pátrio, aos refugiados foi reconhecida a possibilidade de ter seus direitos resguardados pelo Estado. Assim, fortaleceu-se o entendimento de que “os seres humanos, apesar de inúmeras diferenças [...], merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza” (COMPARATO, 1999, p. 1). No entanto, embora vigentes, a eficácia dessas normas estava intimamente ligada à necessidade de normatização interna. Isso porque somente se encontravam elencados os direitos, sem que houvesse qualquer formulação quanto à maneira como esses direitos seriam garantidos pelo Estado. Logo, uma incerteza jurídica se instalou, num quadro onde existia um rol de direitos sem eficácia. Caso similar ao que ainda hoje se tem em relação aos apátridas.

O protocolo de 1967, em que pese tenha servido de complemento elucidativo da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, somente expurgou algumas dúvidas, sem entrar na maneira como poderia o Estado signatário pôr suas disposições em prática. Tarefa que apenas foi cumprida de fato em 1997, quando a Lei do Refúgio foi promulgada no Brasil.

Uma simples análise sobre os parágrafos anteriores, porém, traz a lume uma indagação deveras pertinente: ora, se o Estatuto dos Refugiados entrou em vigor na década de 60 e a Lei do Refúgio foi promulgada 36 anos após essa ocasião, como se definia o contexto jurídico brasileiro nesse lapso temporal? Essa questão é importante para a compreensão da situação atual dos apátridas, vez que passam por situações bastante parecidas àquelas que acometiam aos refugiados nesse período. Cumpre-nos, portanto, empreender uma pequena incursão histórica.

Como se disse anteriormente, a preocupação internacional com a efetivação dos direitos tidos por fundamentais somente se erigiu com mais força após o término da Segunda Grande Guerra. Em razão disso, as normativas de Direito Internacional voltadas à proteção dos refugiados prestigiavam, notadamente, aos cidadãos que, de algum modo, tiveram sua segurança afligida pela feroz situação que assolou a Europa na época, deixando os demais em um estágio secundário. Assim, logo em seu artigo 1º, o Estatuto dos Refugiados dá ao Estado aderente a possibilidade de adotar uma extensão restrita aos deveres dali decorrentes, privilegiando somente aos indivíduos europeus atingidos (alternativa “a”), ou dar-lhes, se o Estado preferir, um alcance mais amplo, abarcando, também, os indivíduos que, inobstante não serem europeus que tiveram sua situação de vulnerabilidade advinda do acontecido na Europa na referida guerra, veem-se necessitados da mesma

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proteção a estes conferida (alternativa “b”).O Brasil, a priori, adotou a abrangência restrita (alternativa “a”),

excluindo de seu quadro protetivo as pessoas que não se encaixassem na descrição causal acima. Em virtude de tal escolha, mesmo com o advento do Protocolo de 1967 e sua incorporação ao ordenamento pátrio, o estrangeiro que chegava ao Brasil requisitando o status de refugiado até o ano de 1989, recebia, via de regra, um mero visto de turista e era reassentado em outro país, como o Canadá, a Nova Zelândia e a Austrália. Atividade que, aliás, era possível graças à presença, desde 1977, de um escritório do ACNUR no Rio de Janeiro. Nesse período, segundo Fischel de Andrade e Adriana Marcolini (2002, p. 2), aos não-europeus que chegavam ao território brasileiro em busca de refúgio era concedido o status de asilado, o que não correspondia às expectativas dos indivíduos. Em 1989, porém, com a promulgação do Decreto nº 98.602, consolidou-se legalmente o pensamento, sedimentado com o tempo, de que essa restrição não deveria existir.

Nesse lapso temporal, compreendido entre a entrada em vigor do Estatuto dos Refugiados e a promulgação do referido Decreto, que pôs fim à restrição territorial de abrangência, alguns fatos são certamente merecedores de nota, posto terem contribuído para que o alcance fosse enlarguecido. O primeiro deles foi a alteração da cidade onde se encontrava o escritório do ACNUR, que passou a ser a Capital Federal. Ademais, o Brasil recepcionou, entre 1979 e 1980, aproximadamente 150 vietnamitas, enquanto que, em 1986, sob intermédio do Alto Comissariado, cerca de 200 iranianos foram reassentados no território nacional, na condição de imigrantes (FISCHEL; MARCOLINI, 2002, p. 3).

Daí nota-se que, passo a passo, a definição fechada e tradicional de “refugiado” foi se desenvolvendo. Apta à constatação dessa condição deixou de ser apenas aquela pessoa de nacionalidade europeia atingida na guerra. Nesse âmbito de aprimoramento do conceito, surgiu a Declaração de Cartagena, de 1984, que aponta claramente para o robustecimento da definição de “refugiado”, com a inclusão de todos quantos necessitem desse status e do tratamento diferenciado que lhe é atrelado.

2.1.1 Dos meios de cumprimento das obrigações do Estado brasileiro em relação ao refugiado

Naturalmente, como em um avançar escalonado, as normativas internacionais que objetivaram essa situação dos refugiados se ativeram à tentativa jurídica de garantir primeiro o mínimo para que as pessoas carentes

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desse tratamento diferenciado pudessem ter sua dignidade preservada, assim como sua vida, liberdade etc.

Para tanto, existe a demanda de mecanismos administrativos capazes de efetivar uma atuação estatal condizente com aquilo o que determinam as normas internacionais pertinentes. Sem isso, essa atuação vê-se prejudicada. A simples incorporação da convenção em apreço e de seu protocolo, todavia, não tinham o condão de promover a criação desses mecanismos administrativos, posto que, para isso, era preciso que o Estado agisse internamente. Nesse sentido, precisas são as palavras de Selma Regina Aragão (2001, p. 186), quando diz que “a lei substantiva dos direitos humanos existe e tem sido desenvolvida. Torna-se necessária a formulação de uma lei processual, a criação de instituições que a sancionem. De nada vale a existência de uma lei que todos reconhecem, mas que ninguém cumpre”.

Por essas razões, foi editada pelo legislativo brasileiro a Lei nº 9.474, de 1997, que visava à regulamentação interna das obrigações assumidas a nível internacional e à criação de um órgão voltado à questão dos refugiados. Nasceu, pois, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), peça fundamental no presente trabalho.

Tendo de garantir uma proteção especial aos indivíduos refugiados, cabe primeiro ao Estado cuidar de verificar se o solicitante realmente preenche os requisitos necessários para tornar-se elegível à qualidade de refugiado. Somente então é que deverá atuar no sentido de prestar-lhe as garantias e facilidades a que se comprometeu no plano internacional e previu em lei interna. Justamente nesse ponto é que se insere o Comitê Nacional para os Refugiados, pois é ele o órgão responsável por esse empreendimento, devendo analisar caso a caso e determinar se, em verdade, aquele solicitante se amolda à definição de refugiado e merece o reconhecimento de tal qualidade.

Definição esta que consta no artigo 1º da Lei em foco e abrange qualquer pessoa que, fundada na existência de perseguição (pelos mais variados motivos, como raça, religião, posicionamento político etc.) ou de grave violação aos direitos humanos, decidiu deixar o Estado de sua nacionalidade ou, mesmo se não tinha nacionalidade reconhecida (caso onde, além de refugiado, o indivíduo se caracteriza como apátrida), tem razoável temor de regressar ao local onde antes residia.

Cabe ao imigrante que chega ao Brasil e deseja ter sua condição de refugiado reconhecida, manifestar sua vontade junto às autoridades competentes, como a Polícia Federal, que levará o caso ao conhecimento do CONARE. Nessa ocasião, receberão o solicitante e sua família, um visto de

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residência provisória e, se assim desejar, também uma carteira de trabalho provisória, para que possa exercer atividades remuneradas no país até que o resultado da apreciação do CONARE seja divulgado.

2.1.2 As competências do CONARE

Instituído pelo artigo 11 da Lei nº 9.474/97, o CONARE é órgão de deliberação coletiva vinculado ao Ministério da Justiça. Como se apontou, deve-se sua gênese à necessidade do governo brasileiro de criar uma estrutura que desse vazão aos dispositivos estabelecidos nos tratados internacionais de 1951 e 1967. Teria, então, sob uma perspectiva rasa, competência restrita aos casos de refúgio (refúgio tradicional).

De acordo com o artigo 12 da referida lei, compete ao CONARE, dentre outras coisas, cuidar da concessão ou não do status de refugiado, bem como determinar a cessação de tal condição. Senão, vejamos:

Art. 12. Compete ao CONARE, em consonância com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com as demais fontes de direito internacional dos refugiados:I - analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado;II - decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado;III - determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado;IV - orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados;V - aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei.

Desenvolvendo um papel de verdadeira premissa para a efetivação de um tratamento especial por parte do Estado, o CONARE é hoje um mecanismo sem o qual o refugiado se veria desamparado: tendo um direito válido, mas ineficaz.

2.2 Do Direito Internacional dos Apátridas

Diferentemente do ocorrido com o Estatuto dos Refugiados, o Estatuto dos Apátridas, concebido em 1954, apenas foi incorporado ao

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ordenamento brasileiro há cerca de 13 anos, na data de 22 de maio de 2002, por meio do Decreto nº 4.246, publicado no Diário Oficial da União em data de 23 de maio de 2002. A outra convenção a objetivar a situação dos apátridas, Convenção Para Redução dos Casos de Apatridia, de 1961, a seu turno, somente passou a viger em território brasileiro a partir de 05 de outubro de 2007, quando o Decreto-legislativo nº 274 lhe revestiu de validade.

Não é nova a problemática que circunda os chamados apátridas. Estes, em suma, são aqueles indivíduos afetados pelo fenômeno ou qualidade da apatridia, não gozando, assim, de filiação a qualquer Estado, isto é, não tendo sua nacionalidade reconhecida por nenhuma das nações componentes da sociedade internacional, o que os impossibilita de vários atos da vida civil e política, como votar (ACHIRON, 2005, p. 6). Conceito que traduz uma situação tormentosa para aqueles que com ele se identificam, posto que o vínculo “de uma pessoa a um Estado é fundamental para esta ter a quem recorrer para assegurar o exercício dos seus direitos, protegendo-se de violações, seja de particulares, seja do próprio Estado” (BORGES, 2011, p. 161).

O Estatuto de 1954 foi quem deu início à normatização, a nível internacional, da situação jurídica das pessoas sem pátria. Ateve-se, contudo, à exposição de um rol de direitos que deveriam ser assegurados pelos Estados contratantes, sem determinar, na espécie, como essa empresa deveria ser levada a lume. Também a Convenção para Redução dos Casos de Apatridia, de 1961, assim como a de 1954, não especificou os procedimentos através dos quais se constataria a condição de apátrida, nem tampouco previu a criação de qualquer ente administrativo que pudesse agir nesse sentido. Ateve-se somente àquilo o que sua terminologia sugere, prevendo a obrigação genérica dos Estados de atuarem para pôr fim à presença de apátridas no mundo, dando-lhes a possibilidade de gozar da nacionalidade do Estado contratante. Em outros termos, ambos os instrumentos internacionais restaram pouco frutíferos, tendo em vista sua carência de operacionalidade.

2.2.1 Dos meios de cumprimento das obrigações do Estado brasileiro em relação ao apátrida

Para o cumprimento de suas obrigações face à sociedade internacional, faz-se necessário que o Estado brasileiro promova uma regulamentação interna da matéria, de modo que haja previsão expressa quanto ao ente administrativo responsável por cuidar do processo de concessão do status de apátrida, já que essa é uma condição inafastável. Ora,

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para que se possa zelar pelos direitos de uma determinada pessoa apátrida, faz-se preciso primeiro saber se essa pessoa é realmente merecedora desse tratamento especial. Isto porque, a rigor, não se pode conceder um tratamento diverso do normal àqueles que não preencham os requisitos capazes de tornar essa conduta estatal justificável.

Toda a questão, entretanto, é que essa normatização interna jamais foi promulgada. Pode-se dizer que os apátridas, hoje, vivem em um limbo jurídico semelhante àquele onde se encontravam os refugiados até o ano de 1997, quando, finalmente, foi editada a Lei nº 9.474, que os retirou desse estado de incerteza e inexatidão (BICHARA, 2013, pp. 78-79). Trata-se, então, de “um indivíduo nacionalmente desprotegido, tal qual o mendigo, que, sem teto, sem família e sem amigos, só pode invocar o vago e impreciso apoio da caridade pública” (MARINHO, 1961, p. 330).

2.2.2 Ausência de uma regulamentação interna (lacuna)

Diante desse quadro, foi sedimentada no Brasil uma situação em que, não obstante haja se reconhecido o direito de pugnar e obter o status de apátrida e a consequente proteção a ser prestada pelo Estado, não se verifica, ainda hoje, uma instrumentalização e procedimentalização realmente eficazes dos mecanismos administrativos que atuam nessas duas órbitas (concessão e proteção). Desse modo, há ainda discordância até mesmo quanto ao órgão que deva conhecer dos pedidos de concessão do status de apátrida.

Não havendo regulamentação expressa a respeito dos apátridas no texto da lei que define as atribuições do CONARE, o órgão, por comodidade, aduz não ter competência para conhecer dos pedidos de constatação da condição de apátrida, apontando que o CNIg (Conselho Nacional de Imigração) é que deveria tratar desses casos (BICHARA, 2013, pp. 82-86). Entendimento este advindo de uma análise que leva em conta não disposições legais, mas, sim, apenas resoluções administrativas, a saber: a Resolução nº 27, do CNIg, e a Resolução nº 13 do CONARE.

As duas referidas resoluções, em interpretação integrada, levam o leitor desatento a crer que realmente compete ao CNIg, e não ao CONARE, conhecer dos pedidos do status de apátrida. Acontece, porém, que, em estudo melhor direcionado, não é difícil perceber que essa atribuição foge do alcance natural do CNIg, aproximando-se muito mais do papel determinado por lei para o CONARE, que, por essa razão, tem maiores possibilidades de desempenhar um bom papel nesse âmbito.

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Além disso, deve-se levar em conta, também, que o conceito clássico de refugiado já não atende às demandas atuais. Em outros termos, hoje, não se caracteriza mais como refugiada apenas aquela pessoa que sofre perseguição em um determinado Estado; antes disso, vivemos em uma época de nítida renovação do conceito, onde a figura do apátrida deve poder ser enquadrada sem maiores dificuldades no conceito de refugiado. Nesse sentido, diz-nos Jubilut (2007, p. 135), que “a violação de quaisquer direitos humanos [...], retomando a indivisibilidade dos direitos humanos, pode ensejar a proteção de alguém na condição de refugiado, assegurando-se, de tal modo, o efetivo gozo dos direitos humanos pelos indivíduos”.

Não por outra razão é que novas disposições legais são pensadas e propostas no intuito de dar vazão e eficiência aos órgãos pertinentes, em especial ao CONARE. Nesse sentido é que foi apresentado um Anteprojeto de lei que versa, além de outras coisas, acerca da apatridia e que, a seguir, tem os seus dispositivos esmiuçados e comparados com aquilo o que preceituam as diretrizes dadas pelo Direito Internacional através de seus princípios gerais e de seus tratados a respeito do tema.

3 DAS PROPOSTAS DO ANTEPROJETO EM RELAÇÃO AOS REFUGIADOS E APÁTRIDAS

Da latente necessidade de normatização específica, e no intuito de dirimir as problemáticas já levantadas, uma Comissão de Especialistas foi instituída através da Portaria nº 2.162/2013, do Ministério da Justiça, para criar o Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, o qual foi apresentado recentemente. Tal Conjunto de normas tem o escopo de dar fim a esse limbo jurídico onde atualmente se encontram os apátridas que vem buscar auxílio em território brasileiro, bem como dar maior uniformidade ao tratamento das nuances que perfazem o vasto assunto que é a migração.

Como sua denominação aponta, versa sobre a migração de maneira geral, sejam quais forem as suas modalidades, onde se incluem as figuras do refugiado, do apátrida (maior destaque deste tópico) e do estrangeiro comum, isto é, “todas aquelas pessoas, quer a título permanente, quer a título temporário, que não são nacionais do Estado” (GUERRA, 2013, p. 363).

Logo em seu primeiro artigo, no inciso IV, o Anteprojeto traz a conceituação de pessoa apátrida, dispondo somente adiante acerca dos

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refugiados. O que, por si só, denota que, diferentemente do acontecido quando da edição da Lei nº 9.474/97, a apatridia encerra-se como uma temática central nesse Anteprojeto de Lei. Seguindo-se em análise ao art. 2º, tem-se a ratificação da ideia de que as normas ali presentes são passíveis de cumulação com outras normativas: sempre no sentido de proteção aos direitos humanos, em prol do bem comum.

Com seu Título II, o Anteprojeto bastante se assemelha à própria Constituição Federal Brasileira de 1988 em sua estrutura, trazendo um vasto rol de direitos, princípios e garantias. Disposições que muito embora tenham sido previstas nos tratados internacionais de 1951 e 1954– dos quais o Brasil é signatário – não têm sido ainda observadas corretamente, ao menos em relação a este último, mesmo com o dever jurídico do Estado Brasileiro perante a comunidade internacional tendo surgido há anos.

Dentre as várias previsões de direitos, pode-se citar: a) o direito de não ser discriminado (artigo 4º, caput, do Anteprojeto); b) o direito de professar livremente a sua religião (artigo 4º, inciso I, do Anteprojeto); c) o direito de demandar em juízo tal como um nacional comum (art. 4º, inciso IX, do Anteprojeto); d) o direito de associar-se licitamente (art. 4º, inciso VII, do Anteprojeto); e) o direito de exercer as variadas formas de profissão (art. 4º, inciso XI, do Anteprojeto). Todos estes com correspondência tanto no Estatuto dos Refugiados quanto no Estatuto dos Apátridas.

Em seu Título III, o Anteprojeto traz um conjunto de determinações que dizem respeito à condição jurídica e à situação documental do imigrante. Nesse título é que se encontra o único capítulo inteiramente direcionado à disciplina dos casos de apatridia. Em que pese tal capítulo goze tão somente de um único artigo (art. 25) e de dois parágrafos, desconstrói grande parte das dificuldades práticas no tocante à concessão do status de apátrida, definindo expressamente que cabe ao CONARE conhecer desse tipo de pedido. Com isso, se convertido em lei, a antiga problemática sobre qual seria o órgão competente terá fim, e a dúvida que circunda o CONARE e o CNIg será finalmente dissipada. Por isso, vale transcrição literal: “Art. 25. A pessoa apátrida será destinatária de instituto protetivo especial, consolidado em mecanismo de naturalização expressa, tão logo seja determinada a condição de apátrida pelo Comitê Nacional Para os Refugiados – CONARE”.

O parágrafo 1º, do art. 25, por seu turno, reveste de importante proteção os requerentes do status de apátrida, obrigando o executivo a emitir em prol destes uma permissão de residência provisória que, a priori, deverá permanecer válida durante todo o processo de reconhecimento da situação

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de apatridia.Na mesma esteira, o parágrafo 2º, do art. 25, aproximando de vez

o CONARE dos apátridas, determina que ficará legalmente estabelecido que todas as garantias, mecanismos protetivos e de facilitação da inclusão social relativos à Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados e à Lei nº 9.474/97 passarão a valer também em relação aos apátridas durante a tramitação do processamento da constatação de sua condição.

3.1 Dos mecanismos de pedidos de status de refugiados e apátridas

Em se tratando de solicitantes do reconhecimento brasileiro da condição de refugiados, nada mudará se o Anteprojeto tornar-se lei e passar a integrar as normas positivas. Desse modo, o refugiado, que já gozava desses mesmos meios para ter sua condição reconhecida, verá sua esfera jurídica inerte nesse sentido. A inovação é a previsão de que os apátridas serão também partes legítimas para figurar no polo demandante desse status junto ao CONARE.

A concessão desse reconhecimento, seja qual for a espécie requisitada, dependerá da decisão do órgão, que apurará se o solicitante é merecedor ou não de todas as garantias e facilidades dadas aos refugiados e apátridas que têm sua condição atestada. Em caso de haver sido dada procedência ao pedido, o refugiado ou apátrida em questão deverá ser registrado junto à polícia federal e, após assinar um termo de responsabilidade, requisitar para que lhe seja providenciada a cédula de identidade pertinente, conforme determina o artigo 28 da Lei do Refúgio, de 1997.

A decisão proferida em primeira instância pelo CONARE não é definitiva. Isso porque, em sendo interesse do solicitante, poderá ele adentrar com um recurso administrativo, que deverá ser apreciado pelo Ministro de Estado da Justiça, que terá o poder de reformar a decisão do órgão ou não, alterando ou mantendo o arbítrio anterior. É o que prevê o artigo 29 do Anteprojeto.

Para que o recurso seja considerado tempestivo, contudo, é preciso que o solicitante o faça dentro do prazo máximo de 15 dias, a contar da data em que recebeu do Comitê a resposta negativa de seu pedido. Em se ultrapassando esse limite, não terá mais o direito subjetivo de requisitar essa reapreciação, de modo que, em momento oportuno, será retirado do território nacional.

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3.2 Das imperfeições

Não se quer aqui dizer que em tudo o Anteprojeto objeto deste estudo é impecável. De fato, há medidas, tais como a previsão de criação de uma nova autarquia (Autoridade Nacional Migratória – ANM), que podem ser consideradas desarrazoadas. Perceba-se que, com o advento do Anteprojeto, se ampliará as competências do CONARE, acrescentando-se àquelas previstas na Lei nº 9.474/97 a incumbência de dirigir os processos de apatridia. Também isso poderia ser feito em se tratando dos demais órgãos e entidades da administração pública pertinentes, sem que se incorresse, frise-se, em acúmulo exacerbado de funções.

Com a conversão de parte do numerário que seria disponibilizado para a ANM, ter-se-ia o suficiente para aparelhar os entes já existentes, de modo que cumprissem com primor as demandas que se colocassem. Assim, além de sanar toda a problemática, se resguardaria o erário público para seu investimento em outras áreas, como a educação, a moradia e a segurança. O que beneficiaria, inclusive, os próprios migrantes de maneira geral, não apenas refugiados e apátridas.

Sem esquecer-se da importância do assunto, que se encontra fincada na necessidade de adequação legislativa interna às disposições internacionais e, em última instância, na preocupação com a dignidade da pessoa humana, uma saída à criação da ANM seria a otimização dos órgãos e entidades já existentes e a simples renovação da legislação vigente. Com isso, não haveria a necessidade de majoração das despesas públicas, que já são muitas, e as problemáticas atualmente existentes seriam mitigadas. Afinal, já há uma gama de entes ligados à questão do estrangeiro, onde se destacam o CNIg, o CONARE e os Ministérios.

Por mais relevante que a temática seja, verdade é que não constitui-se em algo que justifique a criação de uma nova entidade nos parâmetros da ANM, que congloba um mecanismo grande e dispendioso, posto haver possibilidades menos nocivas.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme dito anteriormente, entre ser e dever-ser há um abismo que somente pode ser ultrapassado através da “concretização”. O Anteprojeto analisado acima, como conteúdo jurídico que é, caracteriza-se como algo afeto

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ao dever-ser. Mas não se trata de um algo sem finalidades práticas, muito pelo contrário, foi pensado como resposta às demandas reais e ácidas. A questão que se coloca, então, é se, efetivamente, essa nova legislação, se positivada, terá o condão de resolver as problemáticas levantadas, dentre as quais a principal é a insegurança jurídica que aflige aos solicitantes do status de apátrida.

Após tudo o que fora posto, a resposta somente poderia ser uma: sim, em grande medida. Se colocadas em curso todas as disposições previstas no Anteprojeto de lei, muito poderá se esperar na forma de melhorias. Finalmente, apátridas, figuras até então esquecidas e furtadas em seus direitos mais basilares, tornar-se-ão pessoas respaldadas por toda uma legislação nacional fundamentada em princípios internacionais que visam exatamente à proteção da dignidade humana e ao desenvolvimento social.

Se, conforme acentuado, a problemática jurídica mais complexa, no Brasil, a respeito da migração é o caso dos apátridas e, como visto, para a solução desse mister basta que se determine expressamente qual o órgão competente para cuidar do processo de concessão do status de apátrida, não demanda muito esforço perceber que, para a solução das demais questões, medidas tão simples quanto essa possam ser executadas. Com isso, refugiados e apátridas poderão receber de modo similar o tratamento especial que merecem.

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THE MIGRATION LAW AND PRELIMINARY MIGRANT RIGHTS PROMOTION IN BRAZIL AND INTERNATIONAL LAW: THE END OF SOME GAPS

ABSTRACT

This article attends the actual juridical situation of individuals holders of the refugee status or stateless in Brazilian State, covering in a general way the international normatization regrets about the theme and its applicability on national territory. In these terms, is into the question the preliminary draft presents by a experts commission imposed by the Justice Ministry, which propose substitute the old Foreign Statute - Low nº 6.815/80 - resolving its shortcomings. For this, we analyzed the data offered those relevant bodies and literature Refers By subject. It was found that, with the advent of

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this new legislation, some Legal imperfections can be solved, as the limbo that afflicts to requesting the stateless status.

Keywords: Displaced and stateless. Internal and International Law. Current.

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O BANIMENTO DO VÉU INTEGRAL ISLÂMICO: UMA ANÁLISE DO JULGADO DA

CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS ACERCA DO CASO

S.A.S. X FRANÇA

Daniela Ferreira de Queiroz SerejoAcadêmica do 4º período do curso de Direito da UNI-RN

Eduarda Lima SaldanhaAcadêmica do 4º período do curso de Direito da UNI-RN

RESUMO

A liberdade religiosa enfrenta ainda hoje conflitos ligados a exteriorização da fé. É o caso do uso do véu integral islâmico que vem sendo amplamente discutido, principalmente na Europa, em virtude de sua proibição na França pela Lei n. 2010-1192. A França, Estado que se diz pluralista, tolerante e democrático, implementou tal lei determinando a proibição da dissimulação da face no espaço público, restringindo o direito fundamental à liberdade religiosa de muçulmanas que usam o véu integral islâmico e, consequentemente, limitando a manifestação de suas convicções religiosas. Em razão disso, uma francesa muçulmana ajuizou uma ação perante a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) com um pedido de revisão da lei supracitada alegando que a mesma violava a Convenção Europeia de Direitos Humanos, constituindo o Caso S.A.S x França. Todavia, a Corte julgou improcedente o pedido, corroborando com a validade da norma, alegando que não houve a violação referida pela autora. O presente artigo trata-se de uma pesquisa qualitativa do julgado da CEDH sobre o caso em questão,

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concluindo que a decisão foi equivocada. Conforme os argumentos fundamentados no contexto de criação da lei, na análise do caso em específico, na teoria universalista de direitos humanos e no princípio da proporcionalidade, expostos ao longo deste artigo, validou uma lei desnecessária, desproporcional e ilegítima. Para o desenvolvimento da pesquisa, a técnica aplicada foi à documentação indireta, com ênfase na revisão bibliográfica e no estudo de caso pertinente ao tema.

Palavras-Chave: Corte Europeia de Direitos Humanos. Lei da Burca. Liberdade religiosa.

1 INTRODUÇÃO

A prática do véu integral vem sendo objeto de inúmeras discussões no cenário europeu, a razão disso é o fato de os Estados estarem aplicando medidas que geram a interferência e a limitação dessa prática islâmica. No presente artigo, pretende-se analisar o julgado da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) referente ao caso S.A.S x França, no qual a Corte mediante sentença considerou a Lei n. 2010-1192 - que proíbe o uso do véu integral islâmico na França - compatível com a Convenção Europeia de Direitos Humanos. É importante esclarecer que existem diferentes tipos de véus islâmicos e que a lei proíbe apenas o uso de véus integrais, como a burca e o niqab. O primeiro cobre todo o corpo e o rosto, incluindo os olhos que ficam vedados por tela de malha, já o segundo difere daquele por deixar a área dos olhos descoberta.

Tal lei trata não apenas de uma norma jurídica dentro de um Estado soberano, mas versa a respeito de uma proibição cujas motivações que levaram a CEDH a ser favorável a esta devem ser questionadas. A sentença proferida abriu espaço para reflexões sobre os direitos e as liberdades individuais, principalmente relativos à liberdade religiosa, no pressuposto de que este direito é o mais lesado pela proibição do uso do véu integral.

Assim, este artigo tem o objetivo de analisar criticamente o julgamento do caso S.A.S x França, por meio do estudo da Lei n. 2010-1192,

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do contexto de sua criação e das consequências ocasionadas por ela, além de examinar o caso em si. No que diz respeito a este, serão apresentadas as partes envolvidas e seus argumentos, bem como serão abordadas as ponderações feitas pela Corte.

Com base nos objetivos explanados, é premente explicitar que a problemática em torno do tema será analisada à luz da teoria universalista dos Direitos Humanos e do princípio da proporcionalidade, utilizando-os como fundamentação. Por fim, a partir de profundos estudos acerca do tema, são apresentadas às considerações finais, expondo se o julgado da CEDH foi equivocado ou não no tocante à validade da referida lei.

2 A LEI N. 2010.1192

2.1 Contexto de elaboração da lei

A Lei n. 2010-1192 é popularmente conhecida como “Lei da burca” e essa associação é explicada pelo contexto em que a norma foi aprovada. Seu processo de adoção iniciou-se em 2009, através da proposta do político francês André Gerin, para estabelecer uma comissão parlamentar e lutar contra a prática do uso da burca e do niqab. A proposta foi aprovada pelo então Presidente Nicolas Sarkozy, que afirmou na frente de parlamentares que a burca não era bem-vinda em território Frances. Seu discurso foi seguido pela nomeação de uma comissão para investigar essa prática na França.

A comissão emitiu um relatório em 26 de janeiro de 2010 contendo a análise do uso do véu integral na França e em alguns outros países, explicando a incompatibilidade dessa “prática radical” com os valores da República. Todavia, o relatório, que se mostrou bastante negativo, foi unilateral em suas argumentações, visto que foi revelado que apenas uma mulher que fazia uso do véu integral foi entrevistada.

Após a publicação do relatório, o Primeiro-Ministro francês solicitou ao Conselho de Estado um estudo para possíveis soluções jurídicas a respeito da proibição do véu. As ponderações deste foram apresentadas em março de 2010, e foi relatado que não havia nenhum precedente para uma proibição geral, chegando à conclusão que essa medida iria apresentar incertezas jurídicas. Por conseguinte, seria alvo de inúmeras críticas, tornando a medida não recomendada. Nesse sentido, o Conselho sugeriu uma proibição em determinados locais públicos com base nas necessidades de segurança.

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Entretanto, essa posição do Conselho não impediu o Governo de apresentar o projeto de lei prevendo a proibição da ocultação da face em espaços públicos de uma forma geral. Tal projeto foi apresentado pela Ministra da Justiça Michèle Alliot-Marie em maio de 2010, em nome do Primeiro-Ministro François Fillon, que considerou qualquer proibição parcial “insuficiente e indiretamente não abordaria o verdadeiro problema” França. Assembleia Nacional (2010).

Além disso, durante a reunião em que o projeto foi apresentado, o presidente ressaltou que “o véu integral que esconde totalmente o rosto atenta contra os valores fundamentais, essenciais no contrato republicano” e, quando surgiram dúvidas quanto ao projeto de lei por parte do Conselho de Estado e pela oposição, o presidente mencionou que “não pode haver outra solução que a proibição da burca no espaço público”.

Assim sendo, o projeto foi aprovado pela Assembleia Nacional em 13 de julho de 2010. E em seu próprio texto podemos perceber sua motivação:

São esses os valores [liberdade, igualdade, fraternidade] que hoje se veem ameaçados pelo desenvolvimento da ocultação do rosto em espaços públicos, em especial pela prática do véu integral. Esse problema vem ensejando, há cerca de um ano, um amplo debate público. A constatação é unânime, enriquecida pelo relatório da missão de informação da Assembleia Nacional. Ainda que o fenômeno seja por ora limitado, o porte do véu integral é a manifestação comunitarista de uma rejeição dos valores da República. Por corresponder à negação da participação das pessoas em questão na vida social, a ocultação do rosto nos espaços públicos carrega uma violência simbólica e desumanizante que fere o corpo social (Projet de Loi nº 2520, 2010. Disponível em: <http://www.assemblee-nationale.fr/13/projets/pl2520.asp>. Acesso em: 26 out. 2015.)

Portanto, através da análise do contexto de criação, é indubitável que a legislação francesa tem o propósito exclusivo de atingir o véu integral islâmico e, através da proibição legal, visa combater essa prática religiosa em seu território.

2.2 O texto legal aprovado e sua repercussão

A lei promulgada pelo presidente da época, Nicolas Sarkozy, em 11 de outubro de 2010, entrou em vigor no dia 11 de abril de 2011 como a Lei

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de dissimulação do rosto no espaço público, tendo aplicabilidade em todo o território da França.

Em seu texto legal, a lei proíbe o porte de vestimenta “destinada a ocultar o próprio rosto em espaço público” (artigo 1), isto é, que dificulte ou impeça a identificação de qualquer pessoa em âmbito público, salvo “se a conduta é exigida ou permitida por lei ou regulamento, se tal se justificar por razões de saúde ou por razões profissionais, ou se é parte das atividades esportivas, festas ou eventos artísticos ou tradicionais” (artigo 2, II), acabando por censurar o uso do véu integral islâmico (burca e niqab).

De acordo com o artigo 2, I, é considerado espaço público “vias públicas e locais abertos ao público ou destinado a um serviço público”, como ruas, praças etc, sendo restringido o uso do véu pelas mulheres muçulmanas apenas aos locais de culto e suas residências. Aquelas que infringissem tal determinação estariam sujeitas a pagar multa e/ou obrigadas a realizarem um curso de cidadania (artigo 3).

Além disso, em seu artigo 4, a lei acrescentou ao Código Penal francês uma sanção de pena privativa de liberdade pelo período de um ano e pagamento de multa de trinta mil euros ao indivíduo que obrigar alguém a dissimular o rosto em virtude de seu sexo através de violência, ameaça ou coação. Se o caso envolver menor de idade, a penalidade dobra tanto no que diz respeito ao tempo de prisão quanto à multa.

Nesse contexto, faz-se necessário relatar que a lei traz uma restrição ao direito à liberdade de religião que foi arduamente conquistado pelos indivíduos ao longo da história da humanidade. Por esse motivo, a aprovação e introdução da lei no ornamento jurídico francês fez surgir inúmeras manifestações em defesa do uso da burca e do niqab até por pessoas que, apesar de não serem muçulmanas, não concordavam com o caráter opressivo da lei.

Outrossim, após o surgimento da lei, houve um aumento considerável de insultos e agressões físicas às mulheres muçulmanas que continuavam a fazer uso do véu integral nos espaços públicos, além de ter causado exclusão social das mesmas. Pode-se tomar como exemplo o caso da francesa chamada Hind Ahmas que foi agredida na frente de sua filha de três anos e chamada de prostituta pelo simples fato de se utilizar do niqab. Hind Ahmas relata que:

Minha vida piorou muito desde a proibição. Preciso me preparar para uma guerra quando ponho os pés para fora

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de casa […]. Os políticos dizem que nos libertam, mas estão nos excluindo da esfera social. Antes da lei, nunca havia perguntado a mim mesmo se eu poderia ir a um café ou obter um documento na prefeitura. (GUÉRIOS; KAMEL, 2014, p.74-91)

Portanto, diante da problemática evidenciada, torna-se necessário analisar a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso S.A.S x França, visto que corroborou com a validade dessa lei, devendo ser questionado um possível equívoco dessa decisão de acordo com os argumentos aqui expostos.

3 O CASO S.A.S X FRANÇA

Inspirada na onda de revolta em torno da nova lei e à luz da Convenção Europeia de Direitos Humanos, uma jovem cidadã francesa e mulçumana praticante instaurou em 11 de abril de 2011 o pedido número 43835/11, com fulcro no art. 34 da Convenção, referente à possibilidade de peticionamento junto a Corte Europeia de Direitos Humanos em desfavor do Estado francês.

Em suas alegações, a Autora fundamentou que a lei constituía violações aos artigos 8, 9, 10 e 11 da Convenção, tomados separadamente e em conjunto com o artigo 14 do mesmo diploma legal. Alegando ter sofrido uma grave interferência no exercício de seus direitos, principalmente nos termos do artigo 9 - que trata sobre liberdade religiosa -, tendo em vista que a proibição a impediu de manifestar a sua fé. É valido destacar que a Autora afirmou fazer uso do véu integral tanto em espaços públicos como privados, enfatizando que o trajava de maneira voluntária de acordo com suas necessidades pessoais em expressar sua fé e cultura, na tentativa de buscar a paz interna.

Acrescentou ainda que a lei não alcançava nenhum dos objetivos legítimos traçados pelo Estado francês e não se tratava de uma medida necessária em uma sociedade democrática, pois neste tipo de sociedade não cabe ao Estado determinar a validade de crenças religiosas, devendo este acolhê-las no sentido de garantir também as práticas culturais minoritárias.

Adiante, no contexto da segurança pública, afirmou que a medida não era cabível, uma vez que não se destina a abordar os pontos específicos

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de segurança em locais de alto risco, como aeroportos, e sim uma proibição geral aplicada a todos os locais. Ademais, a jovem afirmou que estava disposta a retirá-lo quando necessário para verificações de segurança, não havendo problemas em mostrar seu rosto quando solicitado para checagem de identidade.

Ela apresentou, além disso, que a alegação do governo de que o uso do véu era incompatível com o princípio da igualdade de gênero em uma argumentação simplista. Frisou que, de acordo com o posicionamento feminista, o uso do véu muitas vezes denota a emancipação, autoafirmação e participação das mulheres na sociedade, e que não era uma questão de agradar os homens, mas de satisfazer a si mesma e sua consciência. Outrossim, relatou que na maioria dos casos o véu é usado de forma voluntária e sem qualquer proselitismo, tratando-se de uma escolha profundamente pessoal das mulheres e, nesse sentindo, caberia a estas a opção de usá-los ou não.

Ademais, a Requerente ainda argumentou que:

A exceção prevista pela lei, segundo a qual a proibição não se aplica se o vestuário era usado no contexto de “festas ou eventos artísticos ou tradicionais” era também, em sua opinião, discriminatória, na medida em que criou uma vantagem para o maioria cristã: é permitido aos cristãos usar em público roupas que escondem seu rosto no contexto das festividades cristãs ou celebrações (procissões religiosas católicas, carnavais ou rituais, como vestir-se como Papai Noel), enquanto que as mulheres muçulmanas que querem usar o véu integral em público permaneceu vinculado pela proibição, mesmo durante o mês do Ramadã.1

Por fim, alegou que mesmo que os objetivos fossem legítimos, estes poderiam ser alcançados através de meios menos restritivos e, por tais razões, pediu que a Corte determinasse a revisão da Lei da burca.

O Governo, por sua vez, alegou que a proibição se destinava a proteger dois fins legítimos elencados na segunda seção do artigo 9: a segurança pública e os direitos e a liberdade de outrem, tratando-se assim de medidas necessárias.

Em relação à segurança, a proibição permitiria a identificação dos indivíduos de modo a evitar qualquer perigo para a segurança de pessoas e

1 (Case S.A.S V. France. 2014, p.36)

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bens, assim como o combate a fraude de identidade. Relativo à “proteção dos direitos e liberdades de outrem”, o governo mencionou três valores a serem respeitados. Em primeiro lugar, a observância dos requisitos mínimos da vida em sociedade, visto que, segundo o Governo, o rosto desempenha um papel significativo na interação humana e o efeito de esconder o rosto em lugares públicos é quebrar o laço social, além de uma recusa ao princípio de “viver juntos”. O Governo argumentou ainda que a proibição procurou proteger a igualdade entre homens e mulheres e, por último, que era uma questão de respeito à dignidade humana, uma vez que as mulheres que usavam tais trajes encontravam-se “apagadas” do espaço público.

Destarte, a Corte decidiu, por quinze votos a dois, que não houve violação aos artigos 8 e 9 da Convenção Europeia de Direitos Humanos e manteve, por unanimidade, que não houve violação aos artigos 10 e 14. Contudo, cabe expor que a Corte desconsiderou o argumento do governo de “igualdade de gênero”, tendo em vista ser uma prática defendida por mulheres, como a Autora. Também foi reconhecido que o uso da burca é uma “expressão de uma identidade cultural” e eventualmente contribui para o pluralismo, sendo inerente à democracia.

Por outro lado, a Corte sublinhou que a liberdade de religião não protege todos os atos motivados ou inspirados por uma religião ou crença e nem sempre garante o direito de um indivíduo de se comportar no espaço público da forma que é ditada por esta. Assim, poderia haver se necessário, limitações a fim de conciliar os interesses de diferentes grupos.

Nesse sentido, argumentou a Corte que o Estado tem o direito de “organizar” a ordem pública conducente à harmonia religiosa, tolerância e segurança em uma sociedade democrática, procurando da melhor forma um constante equilíbrio entre os direitos fundamentais dos indivíduos. Com isso, a CEDH concluiu que as autoridades nacionais estão, no presente caso, melhores colocados para avaliar as necessidades e as condições locais para definir esse equilíbrio e já foi demonstrado pelo Estado se tratar de uma medida necessária, decidindo então pela improcedência do pedido de revisão da lei.

No entanto, a decisão proferida se mostrou bastante vaga. Conforme será demonstrado, a proibição do véu integral restringe a liberdade religiosa de forma desnecessária e discrimina as mulheres mulçumanas, não sendo proporcional aos objetivos que a lei visa, além de ser incompatível com as normas internacionais de direitos humanos.

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4 ANÁLISE DO JULGADO

4.1 Princípio da proporcionalidade

Como já retratado, a Lei 2010-1192 restringe um importante direito fundamental: o direito à liberdade religiosa. E, para casos em que há possíveis violações de direitos humanos, a Corte, conforme sua jurisprudência, os soluciona com base em três pilares: 1. A restrição precisa ser prevista em lei; 2. Deve buscar a concretização de um ou mais interesses de uma sociedade democrática, como segurança e ordem públicas, saúde, moral, ou direitos e liberdades de outrem; 3. Necessita efetivamente proteger esses interesses públicos e ser proporcional ao objetivo perseguido pelo Estado (SILVA, 2014, p. 16). Estando em consonância com esses três pontos, a restrição feita pela lei ao direito fundamental seria considerada válida.

Diante do exposto, constata-se que o primeiro requisito se faz presente, visto que o artigo 9, seção 2 da Convenção Europeia de Direitos do Homem (1950) traz a possibilidade de restrição da liberdade religiosa, desde que cumpra o que diz a lei.

Artigo 9:1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou coletivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos.2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou coletivamente, não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem.

O segundo requisito também está presente, pois o Estado francês alega que a medida de restrição ao direito à liberdade religiosa foi tomada em prol da segurança pública e da proteção dos “direitos e liberdades de outrem”, fundamentadas na igualdade de gênero, na dignidade da pessoa humana e nas condições mínimas de interação social.

Contudo, a problemática que gira em torno do possível equívoco da decisão da CEDH diz respeito ao terceiro requisito. Verifica-se que a medida

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não é proporcional para concretizar os objetivos traçados pelo Estado como motivadores da restrição (aqueles determinados no segundo requisito), fazendo com que tal medida não seja adequada e necessária para atingir os fins legítimos abordados, tornando a lei inválida. Faremos uma análise mais profunda acerca do princípio da proporcionalidade que irá sustentar a afirmativa acima.

Segundo Marmelstein (2013, p. 366), para verificar se a lei que limita determinado direito fundamental é válida ou não, deve-se fazer uso do princípio da proporcionalidade. É, portanto, o instrumento necessário para aferir a legitimidade de leis e atos administrativos que restringem direitos fundamentais. Por isso o princípio é chamado de “limite dos limites”. Além disso, conforme Virgílio Afonso da Silva (2012, p. 24), o objetivo da aplicação da regra da proporcionalidade, como o próprio nome indica, é fazer com que nenhuma restrição a direitos fundamentais tome dimensões desproporcionais.

O princípio da proporcionalidade possui três dimensões (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) que devem ser analisadas nessa ordem pré-definida. A limitação de um direito fundamental só será válida se passar pelo crivo desses três aspectos. Analisaremos de forma mais esmiuçada, passo a passo, o argumento trazido pelo Estado no que diz respeito à ordem pública por ter levantado mais polêmica, deixando para examinar a proteção dos “direitos e liberdades de outrem” de forma mais sucinta.

Primeiro, para verificar se uma medida é adequada, deve-se analisar se o meio escolhido foi adequado e pertinente para atingir o resultado almejado (MARMELSTEIN, 2013). Aplicando esse aspecto ao caso em questão, pode-se analisar que a medida não foi adequada, visto que, fazendo uma análise do contexto do país anteriormente à entrada em vigor da norma, verifica-se que não foi comprovado que o véu integral islâmico trazia qualquer tipo de risco para a sociedade naquele momento e que, portanto, o véu não causava perturbações à ordem pública a ponto de justificar a vedação de seu uso. A respeito da ordem pública, Cunha (2012) relata que:

O atentado à ordem pública deve ser atual e fortemente provável. Além de que a medida restritiva a ser adotada deve sempre respeitar o critério da proporcionalidade. Porém, a dissimulação do rosto no espaço público não levantou até agora nenhum problema atual que fosse suscetível

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de justificar uma interdição geral. Logo, deve igualmente concluir-se que esta interdição não seria proporcional.

Além disso, o argumento é frágil porque as pessoas, independente de religião e do que vestem, já eram obrigadas legalmente a mostrarem o rosto em certas circunstâncias, como para entrar em consulados, entrar em locais proibidos para determinadas idades, para votar, dentre outros casos. Os próprios agentes de segurança podem exigir a identificação e o desnudamento do rosto de qualquer pessoa suspeita de ter cometido um crime ou tentado cometê-lo (GUÉRIOS; KAMEL, 2014).

Para analisar a necessidade (vedação de excesso), parte-se do pressuposto que o meio escolhido deve ser “o mais suave” entre as opções existentes (MARMELSTEIN, 2013). A Lei 2010-1192 não foi necessária, visto que restringiu a liberdade religiosa das mulheres mulçumanas em excesso, o que é vedado se tratando de direitos fundamentais. O Estado francês sequer considerou a possibilidade de adoção de medidas que pudessem ser menos restritivas do que a referida lei para garantir a segurança pública.

A proporcionalidade em sentido estrito é averiguada investigando o custo-benefício, isto é, se a medida trouxe mais vantagens ou desvantagens (MARMELSTEIN, 2013). De acordo com o estudo feito, a lei trouxe desvantagem para o país, restringindo a liberdade religiosa de grande parte da população - à época em que a França introduziu essa lei em seu ordenamento jurídico, era o país europeu que possuía o maior número de muçulmanos em seu território - sem um motivo efetivo de proteção a um interesse público, pois o véu não trazia nenhuma insegurança social que necessitasse ser combatida.

No que diz respeito à igualdade de gênero, a lei também não é proporcional, visto que ninguém tem como determinar o motivo pelo qual as mulheres muçulmanas utilizam o véu. Podem existir mulheres que querem de fato se libertar de tal costume - que fazem uso porque são obrigadas - mas também há um grande número de mulheres que usam por vontade própria, quando sentem necessidade de acordo com seus sentimentos espirituais e é uma atitude opressiva do Estado tirar dessas o seu direito de escolha, mostrando que não há proteção alguma quanto a dignidade da pessoa humana e que não há amparo jurídico que justifique o argumento da igualdade de gênero.

Outrossim, a proibição do uso do véu não traz interação social, pelo contrário, gera segregação social, pois as mulheres optam por permanecerem em suas residências já que não podem manifestar sua fé em âmbito público

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através do uso do véu, como já retratado na seção 2 deste artigo.

4.2 Teoria universalista e a liberdade religiosa

O século passado consagrou os direitos humanos como tema global, sobretudo a partir do final da Segunda Guerra Mundial, quando foram declarados patrimônio comum da humanidade e passaram a ser garantidos de forma mais ampla.

Essa garantia emergiu com a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que nas palavras de Piovesan (2013, p. 210) objetivava delinear uma ordem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana e desse modo elevando a pessoa humana a sujeito de direito a nível internacional, estabelecendo o caráter universal dos direitos humanos.

Todavia, apesar da Declaração ter afirmado a tese da universalidade, diversas argumentações são construídas em favor do relativismo cultural. Isso ocorre em virtude do não superado dilema a respeito dos fundamentos do universalismo, haja vista a insatisfação de questionamentos acerca da razão de tais direitos e o sentido pelo qual essas normas são guiadas.

Desse modo, o relativismo defende a necessidade de inserção dos direitos no contexto cultural para haver uma compreensão mais apurada da dinamicidade das sociedades, tendo em vista que a cultura é responsável por abarcar as fontes do direito e da moral e que não há moral universal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas. “Há uma pluralidade de culturas no mundo, e essas culturas produzem seus próprios valores” (PIOVESAN, 2013, p. 223).

Nota-se no discurso relativista a particularização como requisito essencial, visto que com a variedade cultural seria inviável a construção de uma universalidade moral e estaria o universalismo induzindo à destruição dessa diversidade. Por tais razões, para os relativistas, os direitos humanos deveriam ser produzidos de acordo com a peculiaridade de cada sociedade, baseando-se nas específicas considerações de costumes e contexto histórico na qual cada uma se insere.

Por outro lado, o universalismo preconiza a existência de um conjunto inderrogável de direitos conferidos ao indivíduo, buscando protegê-lo simplesmente por sua condição de ser humano. Tal universalidade não obstaculiza o respeito à diversidade cultural e, nesse diapasão, é importante citar Antônio Augusto Cançado Trindade quando perguntado a respeito do conceito de universalidade:

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A universalidade dos direitos humanos é uma decorrência de sua própria concepção, ou de sua captação pelo espírito humano, como direitos inerentes a todo ser humano, e a ser protegidos em todas e quaisquer circunstâncias. Mas para lograr a eficiência dos direitos humanos universais, há que tomar em conta a diversidade cultural, ou seja, o substrato cultural das normas jurídicas. Isto não se identifica com o relativismo cultural, muito ao contrário. Os chamados “relativistas” se esquecem de que as culturas não são herméticas, mas sim abertas aos valores universais. Não explicam como determinados tratados, como as Convenções de Genebra sobre Direito Internacional Humanitário e a Convenção sobre os Direitos da Criança, tenham já logrado aceitação universal. Tampouco explicam a aceitação universal de valores comuns superiores, de um núcleo de direitos inderrogáveis, assim como da proibição absoluta da tortura, dos desaparecimentos forçados de pessoas e das execuções sumárias, extralegais ou arbitrárias. Ao contrário do que apregoam os “relativistas”, a universalidade dos direitos humanos se constrói e se ergue sobre o reconhecimento, por todas as culturas, da dignidade do ser humano. (SOUZA, 2005, Tomo I, p.56.)

Assim, é importante entender que a universalidade dos direito humanos não impede o respeito às minorias, pelo contrário, devem-se reconhecer as diferentes culturas e a existência de elementos valorativos comuns que podem ser compartilhados por todos, sempre com o intuito de que a dignidade não seja maculada ou ignorada.

É neste condão que a liberdade religiosa é protegida em vários instrumentos internacionais que versam sobre direitos humanos, mostrando o reconhecimento internacional da importância da garantia do respeito a essa liberdade na construção de uma sociedade livre, igualitária e harmônica. Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 18 relata que:

Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

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Portanto, é necessário expor que universalizar a liberdade de religião não é universalizar uma religião em específico, como se mostra pretendido através da negação de uma importante prática do islamismo. Universalizar tal liberdade é garantir a tolerância religiosa e o direito de manifestá-las tanto no espaço público quanto no privado.

No entanto, o julgado da CEDH foi de encontro àquilo defendido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela teoria universalista destes. A decisão por parte da Corte se deu em prol do desenvolvimento da capacidade de gerência interna estatal da França, permitindo que o Estado agisse de acordo com sua discricionariedade em relação a um direito fundamental que acabou sendo violado, bem como não garantiu a diversidade cultural e nem respeitou as práticas culturais minoritárias.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, foi feita uma análise dos aspectos jurídicos do julgamento do caso S.A.S x França, além de existir uma série de outros argumentos que também possuem papel significativo na formação de justificativas legais, sendo bastante estudados quando é levantada a questão acerca da constitucionalidade da Lei n. 2010-1192 e da proibição do véu integral islâmico. No decurso da avaliação, foi explorado a respeito do contexto de criação do projeto de lei, a própria lei em vigor e a repercussão que a mesma trouxe para a França e as mulheres muçulmanas. Além disso, estudou-se o caso, os argumentos das partes e a decisão da CEDH e, por fim, foi feito uma análise crítica a respeito de tal decisão.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos traz em sua letra de lei que todos têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Com isso, pode-se extrair que os indivíduos possuem o direito de manifestar sua religiosidade através de qualquer meio que não venha a prejudicar terceiros, podendo também mudar livremente suas crenças, assim como optar por não tê-las. A liberdade de religião, por se tratar de um direito fundamental, não pode ser objeto de restrição, salvo se entrar em colisão com outros direitos fundamentais. Contudo, até nessas hipóteses, é preferível sempre que possível que os direitos em questão sejam restringidos apenas o necessário de forma a não aniquilá-los, ou seja, respeitando seu núcleo essencial.

No caso analisado, ficou evidente que a restrição foi exagerada. Chegou-se a este entendimento, principalmente, em virtude do ato do Estado

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francês não ter considerado outras formas de garantir a segurança pública como, por exemplo, proibir o uso do véu integral islâmico apenas em locais que realmente exigissem maior segurança (além dos lugares que já exigem a identificação), ou seja, adotar uma lei que proibisse de forma parcial o uso do véu.

Ademais, tem-se que em razão do universalismo dos direitos humanos, deve-se haver a preocupação dos tribunais pela garantia das práticas religiosas minoritárias, devendo os Estados aceitarem as manifestações de múltiplas religiões em seus espaços públicos e privados. Com isso, é necessário que as legislações se pautem sempre no respeito destas, no sentido de que seus praticantes não passem a viver sob restrições desproporcionais e arbitrárias, abrindo mão de seus preceitos, pensamentos e ideologias. Dessa forma, a CEDH, como principal órgão europeu para proteção dos direitos humanos, deve transmitir em suas decisões a garantia desses direitos da melhor forma possível, para que assim, os diversos grupos religiosos não tenham seus direitos acautelados. Dessa forma, constata-se que uma proibição geral do véu integral islâmico é incompatível com as normas internacionais de direitos humanos e com as atuais teorias deste.

Portanto, conclui-se que a CEDH se equivocou ao julgar a providência tomada pelo Estado francês - a Lei n. 2010-1192 – como legítima e necessária, reiterando que a norma era compatível com o sistema jurídico francês e, assim, corroborando com a validade de uma lei desproporcional, discriminatória e que confronta a teoria do universalismo dos direitos humanos.

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158 O BANIMENTO DO VÉU INTEGRAL ISLÂMICO: UMA ANÁLISE DO JULGADO DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS ACERCA DO CASO S.A.S. X FRANÇA

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THE BAN OF THE FULL FACE ISLAMIC VEIL: AN ANALYSIS OF THE EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS JUDGEDMENT ON THE CASE SAS X FRANCE

ABSTRACT

Religious freedom is still facing conflicts linked to the manifestation of faith. That’s the case of the Islamic full-veil wear, which has been widely discussed, particularly in Europe, due to its prohibition in France by Law n.2010-1192. France, a State that claims to be pluralistic, tolerant and

160 O BANIMENTO DO VÉU INTEGRAL ISLÂMICO: UMA ANÁLISE DO JULGADO DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS ACERCA DO CASO S.A.S. X FRANÇA

democratic, implemented the law determining the ban on face covering in public spaces, restricting the fundamental right of religious freedom of Muslim women who wear the Islamic full-veil and consequently, limiting the manifestation of their religious convictions. Because of this, a Muslim French woman filed a lawsuit on the European Court of Human Rights (ECHR) with the request of the review of the aforementioned law, claiming that it violated the European Convention of Human Rights, constituting the Case S.A.S x France. However, the Court rejected the application, confirming the validity of the law, claiming that there was no violation of the European Convention on Human Rights. This article is a qualitative research on ECHR’s judgment on the case in question, concluding that the decision was wrong. According to the arguments based on the context of the creation of the law, the analysis in the case, the universal theory of human rights and the principle of proportionality, discussed throughout this article, the Court validated an unnecessary, disproportionate and unlawful law. For the development of the research, the technique applied was an indirect documentation, with an emphasis on bibliographic review and study of cases relevant to the topic.

Keywords: European Court of Human Rights. Burqa Law. Freedom of religion.

O DIREITO AO ESQUECIMENTOE O ORDENAMENTOJURÍDICO BRASILEIRO

Ana Clara Miranda de Azevedo PeixotoGraduada em Direito e Especialista

em Direito Constitucional pela UFRN

RESUMO

O presente artigo científico tem por objetivo lançar luzes sobre a recém-inaugurada aplicação do direito ao esquecimento no Brasil, a partir de um estudo acerca dos direitos fundamentais que o lastreiam, tratando-se anteriormente, contudo, das bases para o seu entendimento, quais sejam, o Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana e o seu principal fator limitador, o direito à informação. Adentrando-se efetivamente na temática do direito de ser olvidado, traz-se à tona as manifestações internacionais acerca do postulado, conferindo especial destaque ao leading case apreciado pelo Tribunal Constitucional Alemão, o caso Lebach. Por conseguinte, traça-se um comparativo entre os precedentes do Superior Tribunal de Justiça brasileiro e àquele oriundo do Tribunal Constitucional Federal alemão. Para tanto, é apresentada uma síntese fática, para só então adentrar-se na seara normativa dos casos que deram origem à discussão da temática no Brasil, quais sejam, a Chacina da Candelária e o caso Aída Curi. Por último, porém, não menos importante, após a enumeração de critérios gerais e específicos vocacionados à resolução de colisões entre os direitos fundamentais envolvidos na concretização do direito ao esquecimento, faz-se uma análise

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crítica acerca da precursora implementação do postulado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Palavras-chave: Direito ao esquecimento. Direitos fundamentais. Colisão. Leading case. Superior Tribunal de Justiça.

“Há coisas que, quando publicadas, ficam agarradas à alma e coladas à pele da vítima; e haverá ocasiões em que a vítima se não livre delas, mesmo

conseguindo mudar de pele e de alma.”(Olavo Bilac)

1 INTRODUÇÃO

O conjunto de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que identifica o fenômeno da globalização tem como um de seus principais distintivos o extraordinário avanço tecnológico dos meios de comunicação. Alçada a uma escala planetária e a uma velocidade nunca antes vista, a difusão da informação, nos dias de hoje, ao mesmo tempo em que encanta a todos pelas facilidades proporcionadas, traz em seu bojo novas complexidades a serem dissecadas pelos estudiosos das mais diversas áreas do conhecimento.

Em uma realidade de sociedade ultra conectada, as mídias tradicionais alcançaram patamares de abrangência jamais experimentados, seja em razão do desenvolvimento técnico de seus próprios mecanismos de propagação, seja em virtude da integração com a revolucionária plataforma da rede mundial de computadores, a Internet.

Nesse mister, a ideia de um direito ao esquecimento ganha ainda mais visibilidade – mas também se torna mais complexa – quando aplicada à Internet, ambiente que, por excelência, não esquece o que nele é divulgado e pereniza tanto informações honoráveis quanto aviltantes à pessoa do noticiado. Até agora, tem-se mostrado inerente à Internet – mas não exclusivamente a ela – a existência de um resíduo informacional que supera a contemporaneidade da notícia e, por vezes, pode ser, no mínimo, desconfortante àquele que é noticiado.

Para o Direito em particular, não são poucas as implicações

O DIREITO AO ESQUECIMENTO E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

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provocadas por esse tempo de grandes e desafiadores paradoxos. Relações normativas e vivenciais já naturalmente tensionadas, em especial aquela travada entre o direito à informação, de um lado, e os direitos à vida privada, à intimidade, à preservação da honra e da imagem, à memória e à ressocialização, se complicaram ainda mais com os influxos da mencionada massificação dos veículos de comunicação.

Por esta razão, analisar-se-á a configuração do Estado Democrático de Direito, em especial por constituir solo fértil ao desenvolvimento dos chamados direitos fundamentais. Partir-se-á para a análise do célebre princípio da dignidade humana, entendido como fundamento propedêutico do direito de ser deixado em paz.

Suficientemente preparados para a discussão acerca do direito ao esquecimento, deve-se ressaltar, a priori, a aridez do tema na doutrina e jurisprudência nacionais. O direito de ser deixado em paz consolidou-se em 1973, na Republica Federal da Alemanha, por ocasião do julgamento do caso Lebach pelo Tribunal Constitucional Federal daquele pais, vindo a fincar raízes sólidas na tradição jurídica de diversos agrupamentos internacionais.

Imbuído do propósito de contribuir para uma melhor compreensão desse direito ainda pouco enfrentado no Brasil, panorama explicado em grande parte pela sua incipiente aplicação doutrinária e jurisprudencial, o presente artigo cientifico discorrerá sobre os casos paradigmas que deram origem à temática no país, abordando, inicialmente, as variáveis constitucionais em jogo e, ato continuo, o modo como foi e é tratado o direito ao esquecimento por alguns ordenamentos jurídicos alienígenas.

O que já era prenúncio de um ambiente mais fértil para a discussão do tema em solo brasileiro desencadeou outro fato ainda mais auspicioso. Pouco tempo depois de prolatado o verbete do CEJ/CFJ sobre o instituto, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça se debruçou sobre dois casos concretos – a Chacina da Candelária e o caso Aída Curi – nos quais o direito de ser olvidado foi invocado, tendo o órgão fracionário reconhecido essa nova garantia em somente um deles.

Confirmada, portanto, a máxima segundo a qual o ser humano e a vida em sociedade são bem mais inventivos que o estático direito legislado, reitera-se o fito do presente trabalho, que não é outro senão deitar os olhos sobre um instituto – o direito ao esquecimento – ainda pouco trabalhado nas hostes jurídicas brasileiras.

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2 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Para se poder falar, propriamente, em direitos fundamentais, deve-se constatar a presença de três elementos: o Estado, o indivíduo e o texto normativo regulador da relação entre os dois primeiros. Iniciar-se-á o presente estudo pela figura do Estado. Trata-se, em verdade, do funcionamento de um aparelho de poder centralizado que pode, efetivamente, controlar determinado território e impor suas decisões.

Percebe-se, ademais, que, sem a existência do Estado, a proclamação dos direitos fundamentais carece de relevância prática. Estes, por sua vez, não poderiam ser garantidos e cumpridos, perdendo, portanto, a sua função precípua, qual seja: limitar o poder do Estado em face do indivíduo.

O papel de texto normativo regulador da relação entre Estado e indivíduos é desempenhado pela Constituição em sentido formal, que garante e declara determinados direitos fundamentais, permitindo ao sujeito, conforme lição de Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis (2011, p.26), conhecer sua esfera de atuação livre de interferências estatais e, ao mesmo tempo, vincular o Estado a determinadas regras que impeçam cerceamentos injustificados das esferas garantidas da liberdade individual.

Por razões políticas e sociais deveras complexas, porém, que, em linhas gerais, encontram-se interligadas à imposição do regime capitalista, essas três condições apresentaram-se reunidas somente na segunda metade do século XVIII. Nesse período, pela primeira vez na história da humanidade, textos de Declarações de Direitos enunciaram e garantiram direitos fundamentais.

Nesse diapasão, a Constituição do Brasil de 1988 – ao lado do princípio republicano e da forma federativa de Estado, princípios fundamentais da organização do Poder Estatal – inova ao incorporar o conceito de Estado Democrático de Direito, na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, não como uma aposição de conceitos, mas sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social1.

Nesse sentido, Lênio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais (2013,

1 É nesse sentido que, já no art. 1o, a Constituição Federal de 1988 preleciona fundar-se o “Estado Democrático de Direito” nos princípios da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa, nos valores sociais do trabalho e no pluralismo político.

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p.113) lecionam que o Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência.

Em outras palavras, a atuação do Estado passa a ter um conteúdo transformador do status quo, a lei aparece como um instrumento de transformação para incorporar um papel simbólico prospectivo de manutenção do espaço vital da humanidade. Aponta, assim, para o resgate das promessas descumpridas na modernidade, circunstância que assume especial relevância em países periféricos e de modernidade tardia como o Brasil.

No arcabouço do Estado Democrático, os direitos fundamentais consistem em instrumentos basilares da limitação do poder político. Nos contornos democráticos, o Estado deve comportar-se, qualquer que seja a sua ação, sob a perspectiva de que nem tudo pode ou deve fazer, pois a sua atuação encontra parâmetros no respeito aos direitos declarados na Lei Maior.

3 DIREITO À INFORMAÇÃO

Esta época é chamada por alguns pensadores de Era da Informação (CASTELLS, 2006), tal a importância que assumiu na vida contemporânea. Nesse contexto, o direito à informação, positivado pela Constituição Federal em seu art. 5o, incisos XIV e XXXIII, e art. 220, § 1o, assume um relevo extraordinário.

Já se disse que “a informação é o oxigênio da democracia”2. O acesso à informação é essencial para que as pessoas possam participar de modo consciente da vida publica e fiscalizar os governantes e detentores de poder social. Não é exagero afirmar que o controle do poder tem no direito à informação o seu instrumento mais poderoso. A transparência proporcionada pelo acesso à informação é o melhor antídoto para a corrupção, para as violações de direitos humanos, para a ineficiência governamental.

O direito à informação é também essencial para o livre desenvolvimento da personalidade humana (CANOTILHO, MENDES, SARLET, STRECK, 2013, p. 301; FARIAS, 2004, p.90), pois contribui para que cada individuo possa formar as suas preferencias e convicções sobre os temas mais variados e fazer escolhas conscientes em suas vidas particulares.

2 A frase foi cunhada pela ONG internacional Article 19, voltada à defesa das liberdades de expressão e informação.

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Impende mencionar, por oportuno, que o direito à liberdade de informação também não se confunde com o direito à informação, objeto do presente item. Trata-se o direito à informação de uma garantia coletiva. A Constituição Federal acolheu a referida distinção, de modo que, no capítulo da comunicação social (arts. 220-224), preordenou a liberdade de informar completada com a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5o, inciso IV). No mesmo art. 5o, inciso XIV, já se observa a dimensão coletiva do direito à informação. Consiste, portanto, em interesse geral contraposto ao individual da manifestação de opiniões, ideias e pensamentos, veiculados pelos meios de comunicação social. Daí por que a liberdade de informação deixa de ser mera função individual para tornar-se função social.

A garantia em questão detém, ademais, uma perspectiva subjetiva, definida pelo mesmo Vidal Serrano Nunes Júnior enquanto direito fundamental do indivíduo, e outra de cunho orgânico, enquanto direito de existência e funcionamento dos órgãos públicos e privados de comunicação social (FARIAS, 2004, p. 30).

Nesse sentido, qualquer medida estatal que dificulte ou impeça uma das atividades típicas das liberdades de comunicação social, ou que atinja seus pressupostos técnicos, econômicos, institucionais, entre outros, pode representar uma intervenção. Intervenções na liberdade de informação estarão presentes sempre que o acesso à informação pela fonte a todos acessível for /obstado pelo Estado, ainda que o titular detenha acesso à mesma informação por outras fontes desimpedidas3.

Questiona-se, por oportuno, como conciliar o direito ao esquecimento com o direito à informação, posto que, à primeira vista, um parece limitado, restringido, pelo âmbito de atuação do outro.

O jurista Daniel Sarmento (2015), professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, editou parecer acerca da constitucionalidade da invocação do direito ao esquecimento para a imposição de restrições ao direito de acesso à informação de interesse público e às liberdades de expressão e de imprensa. No documento, defendeu ser lícita a conduta dos veículos de imprensa de divulgarem, discutirem ou encenarem

3 Proibir, a título exemplificativo, a recepção de televisão estrangeira representa uma intervenção na liberdade de informação. A arguição, portanto, de que o titular pode ter acesso à mesma informação por parte de jornais em nada altera o estado de intervenção e não o justifica.

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fatos de interesse público ocorridos no passado. Trata-se, segundo o estudioso, de legítimo exercício da liberdade de imprensa, que não gera, portanto, direito à reparação de danos.

Para Sarmento, parecem evidentes os riscos de autoritarismo envolvidos na atribuição a agentes estatais – ainda que juízes – do poder de definirem o que pode e o que não pode ser recordado pela sociedade. Acerca dessa questão, ponderou que o reconhecimento de um suposto direito de não ser lembrado, por fatos desabonadores ou desagradáveis do passado, se afigura francamente incompatível com um sistema constitucional democrático.

Mister o entendimento do aclamado jurista, em uma suposta ponderação entre o direito à informação e o direito ao esquecimento, deve-se analisar, a priori, se existe um interesse público atual na divulgação daquela informação. Se o referido interesse persistir, há quem defenda a possibilidade de flexibilização do direito ao esquecimento, sendo lícita a publicidade daquela notícia.

Por outro lado, não sendo verificado o interesse público atual, ao indivíduo é conferida a faculdade de exercer seu direito ao esquecimento, devendo ser impedidas notícias sobre o fato que já ficou no passado. Nesse sentido, assevera o Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes (2008, p.374) que, se a pessoa deixou de atrair notoriedade, desaparecendo o interesse público em torno dela, merece ser deixada de lado, como desejar. Em seguida, pondera que isso é tanto mais verdade com relação, por exemplo, a quem já cumpriu pena criminal e que precisa reajustar-se à sociedade, em verdadeiro respeito ao direito à ressocialização. Ao final alega que este indivíduo há de ter o direito a não ver repassados ao público os fatos que o levaram à penitenciária, como forma de viabilizar a sua ressocialização.

Eis que a noção de Estado Democrático de Direito funciona como premissa básica para a efetiva compreensão do direito ao esquecimento. No mais, afigura-se possível a coexistência, em um mesmo ordenamento jurídico, tanto do direito à informação quanto do direito de ser olvidado. Juntos todos estes institutos jurídicos compõem o arcabouço da Constituição Federal de 1988.

4 O DIREITO AO ESQUECIMENTO

O direito ao esquecimento consiste na garantia conferida ao indivíduo de não permitir que um fato, ainda que verídico, ocorrido em

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determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, perpetuando-se de modo indefinido, causando-lhe sofrimento ou transtornos.

Identificado como “direito de ser deixado em paz”, o direito ao esquecimento é reconhecido nos Estados Unidos da América como the right to be let alone e em países de língua espanhola como derecho al olvido. No Brasil, o direito ao esquecimento possui assento constitucional e legal, ainda que implicitamente, considerando que é consequência direta do princípio da dignidade humana e dos direitos fundamentais à preservação da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem, da memória e da ressocialização.

Ademais, quando se fala em direito ao esquecimento é importante citar o jurista e filósofo francês François Ost (2005, p. 160), para quem “Uma vez que, personagem pública ou não, fomos lançados diante da cena e colocados sob os projetores da atualidade – muitas vezes, é preciso dizer, uma atualidade penal –, temos o direito, depois de determinado tempo, de sermos deixados em paz e a recair no esquecimento e no anonimato, do qual jamais queríamos ter saído”.

É sabido que, na atualidade, por forca de vertiginosos avanços tecnológicos, instituições estatais e privadas têm condições de obter, armazenar, tratar e divulgar uma quantidade de informações sobre as pessoas que era impensável no passado, o que aumenta a vulnerabilidade dos indivíduos. O uso disseminado em todo o mundo da Internet permite que sejam armazenadas informações pessoais, mensagens privadas, fotografias, dados sobre os hábitos de busca e navegação e muitos outros elementos, que podem ser utilizados de forma ilegítima, violando direitos fundamentais.

A possibilidade de vigilância total e permanente sobre o indivíduo, com graves riscos à sua personalidade, saiu do terreno da ficção para adentrar no da realidade. E não é só do Estado que vem a ameaça. Como observou Laura Schertel Mendes (2008, p.75), o risco hoje “não se restringe mais à figura do ‘Big Brother’, de Orwell, mas abrange também o setor privado, que utiliza massivamente os dados pessoais para atingir os seus objetivos econômicos”.

Um componente relevante deste quadro é a memória praticamente infinita da Internet e de outras tecnologias disponíveis. Essa realidade – que tende a se intensificar, com a continuidade dos progressos científicos –, torna possível o acesso generalizado a dados ou informações sobre fatos da vida privada de pessoas comuns, por vezes embaraçosos, ocorridos há muitos anos. Nas palavras de Simón Castellano (2012, p.4), “nossos dados são gravados na rede como se fossem uma tatuagem, que nos seguirá pela vida toda”.

Nesse cenário, é importante construir instrumentos jurídicos que

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permitam às pessoas o exercício de algum controle sobre os seus dados pessoais que não ostentem interesse público. O direito ao esquecimento encontra aqui um campo legitimo para desenvolvimento, do ponto de vista dos valores jurídicos e morais envolvidos. Os maiores desafios a serem enfrentados nesta área são de natureza técnica, haja vista as conhecidas dificuldades de exercício de controle sobre o ambiente virtual, derivadas de fatores como a pulverização dos agentes, a velocidade das mudanças tecnológicas e a natureza transnacional do cyberespaco.

A disciplina da questão, todavia, não pode ameaçar as liberdades de imprensa, expressão, o direito de acesso à informação de interesse público, nem tampouco o cultivo da história e da memória coletivas.

Em razão da relevância supranacional do tema, os limites e possibilidades do tratamento e da preservação de dados pessoais estão na pauta dos mais atuais debates internacionais acerca da necessidade de regulação do tráfego informacional, levantando-se, também no âmbito do direito comparado, o conflituoso encontro entre o direito de publicação e o alcance da proteção internacional dos direitos humanos.

Nesse sentido, a União Europeia, passados quinze anos da adoção da Diretiva n. 46/1995/CE, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação da informação, que foi seguida pela Diretiva n. 2002/58/CE, concernente à privacidade e às comunicações eletrônicas, acendeu, uma vez mais, o debate acerca da perenizarão de informações pessoais em poder de terceiros, assim como o possível controle de seu uso, sobretudo na Internet.

A então Vice-Presidente da Comissão de Justiça da União Europeia, Viviane Reding, apresentou proposta de revisão das diretivas anteriores, para que se contemplasse, expressamente, o direito ao esquecimento dos usuários de Internet, afirmando que “al modernizar la legislación, quiero clarificar especificamente que las personas deben tener el derecho, y no sólo la posibilidad, de retirar su consentimiento al procesamiento de datos [...]”, e que o primeiro pilar da reforma será “el derecho a ser olvidado: un conjunto completo de reglas nuevas y existentes para afrontar mejor los riesgos para la privacidad en Internet” (ESPANHA, 2014).

Na mesma linha, em recente palestra proferida na Universidade de Nova York, o alto executivo da Google, Eric Schmidt, afirmou que a Internet precisa de um “botão de delete”. Informações relativas ao passado distante de uma pessoa podem assombrá-la para sempre, causando entraves, inclusive, em sua vida profissional, como no exemplo dado na ocasião, de um jovem

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que cometeu um crime em relação ao qual as informações seriam expurgadas de seu registro na fase adulta, mas que o mencionado crime poderia permanecer on line, impedindo-o de conseguir emprego. “A falta de um botão ‘delete’ na Internet é um problema significativo. Há um momento em que o desaparecimento da informação é uma coisa certa”, afirmou Schimidt (2013).

Em maio de 2011, o jornal espanhol El País também publicou interessante reportagem acerca do denominado derecho al olvido, retratando o caso da ginasta Marta Bobo, noticiado no ano de 1984, no mesmo veículo, em uma matéria curta, mas categórica: “Marta Bobo sufre anorexia”. A reportagem dava conta de que três atletas, entre elas Marta Bobo, disputariam as medalhas de ginástica rítmica nos Jogos Olímpicos, “pero Marta, con 29 kilos a sus 18 anos, con anorexia diagnosticada, se encuentra en Los Angeles en contra de los consejos del psiquiatra. Su situación, no ya anímica, sino física, ha podido ser peligrosa”.

Como se não bastasse, recentemente, contrariando as diretrizes dos reguladores, o Google optou por remover apenas de seus sites na Europa os resultados de buscas quando indivíduos evocam o direito de ser esquecido. A questão, todavia, é qual a dimensão da aplicação do chamado direito de ser esquecido, foco dos reguladores da privacidade europeus desde que a principal Corte do continente decidiu, em maio, que indivíduos poderiam solicitar a remoção de resultados das buscas que fossem considerados inadequados.

Afigura-se por demais atual e relevante o debate acerca do chamado direito ao esquecimento no âmbito do cyberespaço, cujo domínio do tráfego é evidentemente mais complicado e reclama mesmo uma solução – legislativa ou judicial – específica.

No âmbito do Direito Comparado, há diversos julgamentos relevantes sobre a matéria. Caso que suscitou intenso debate sobre direito ao esquecimento não é do Poder Judiciário de qualquer Estado, mas do Tribunal de Justiça da União Europeia. Aquela Corte regional reconheceu que a garantia da proteção de dados pessoais envolve o direito ao esquecimento no recente caso Google Spain SL e Google Inc. v. Agencia Espanola de Protección de Datos e Mario Costeja Gonzales,4 julgado em 13 de maio de 2014. Tratava-se de pedido de cidadão espanhol, postulando que o Google não mostrasse, nos seus resultados de busca, o link de um jornal que noticiara o leilão de um imóvel seu, ocorrido muitos anos antes, decorrente de dividas junto à seguridade

4 Caso C-131/12, Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Europeia.

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social. A execução já estava encerrada há bastante tempo, mas o individuo continuava sendo associado à divida na Internet. O Tribunal deu razão a Costeja Gonzalez, afirmando que “um tratamento inicialmente lícito de dados pode se tornar, com o tempo”, ilícito, “quando estes dados já não sejam necessários, atendendo às finalidades para que foram recolhidos ou tratados”. Considerou que, nessa hipótese, o indivíduo tem o direito de postular a retirada dos dados em questão da lista fornecida pelo provedor de buscas.

Em relação à Alemanha, é sempre recordado o caso Lebach, decidido pelo Tribunal Constitucional em 1973. Na hipótese, individuo que fora condenado e preso por homicídio de vários soldados, cometidos durante um roubo de armas, pleiteou que se impedisse uma rede de televisão de fazer um documentário sobre os fatos meses antes da data da sua soltura. O tribunal germânico manteve a decisão que proibira a veiculação do documentário, sob a alegação de que, na hipótese, a tutela dos direitos da personalidade sobrepujava a liberdade de comunicação. Concluiu-se, ao final, que a exibição do programa televisivo poderia comprometer seriamente a ressocialização do demandante, e a ideia de que não haveria significativo interesse público na informação, em razão do transcurso de vários anos desde a data do crime.

Esta breve exposição demonstra que, apesar das significativas variações nacionais e regionais, um denominador comum na experiência transnacional sobre o direito ao esquecimento é que as Cortes, para reconhecê-lo ou refutá-lo, sempre levam em consideração as liberdades de expressão, imprensa e informação, bem como o interesse na preservação da história e da memória coletiva.

5 A EXPERIÊNCIA JURISPRUDENCIAL BRASILEIRA

O conhecimento das decisões adotadas por outros países e por instâncias regionais e internacionais é sempre positivo, inserindo-se na benfazeja tendência contemporânea ao diálogo internacional no campo da jurisdição constitucional. Porém, não cabe transpor acriticamente orientações adotadas em outros Estados ou instituições para o sistema nacional. É preciso refletir sobre a compatibilidade destas soluções com o ordenamento jurídico pátrio, sobre o seu ajuste à realidade e aos problemas nacionais.

É imperioso compendiar, para fins de ulterior cotejo, os dois casos concretos responsáveis por encetar o polêmico direito ao esquecimento no Brasil. Com vistas a facilitar as subsequentes alusões, receberão os Recursos

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Especiais n. 1.334.097 e 1.335.153 as respectivas alcunhas de caso Chacina do Candelária e Aída Curi.

No primeiro deles, o STJ condenou a Globo Comunicação e Participações S/A a pagar indenização, a título de danos morais, à pessoa que fora denunciada e absolvida pelo Tribunal do Júri, por suposta participação na Chacina da Candelária – trágico caso de homicídio de jovens ocorrido em 1993, no Rio de Janeiro. Na ação, pleiteara-se a condenação da demandada por ter veiculado, no programa televisivo “Linha Direta-Justiça”, reportagem que tratou do referido crime, utilizando-se, contra a vontade do autor, do seu nome e imagem. A decisão da Corte Superior, em síntese, reconheceu a importância histórica do episódio e destacou que, de acordo com a avaliação fática realizada pelas instâncias ordinárias, “a reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade”. Nada obstante, embasando-se em suposta precedência dos direitos da personalidade sobre as liberdades comunicativas, o acórdão afirmou que a passagem do tempo teria tornado ilícita a veiculação da matéria sobre o crime, tendo em vista o direito ao esquecimento dos envolvidos, o qual conceituou como “um direito de não ser lembrado contra a sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores”.

Já no segundo caso, negou-se o pedido de indenização por danos morais formulado pelos irmãos de Aída Curi contra a mesma Globo Comunicação e Participações S/A. O fundamento principal da ação foi a transmissão, também pelo programa televisivo “Linha Direta-Justiça”, de matéria a propósito do rumoroso homicídio de Aída Curi, ocorrido em 1958. Nesse julgamento, o STJ afirmou, mais uma vez, que o direito ao esquecimento pode tornar ilícita a divulgação pela imprensa de fatos pretéritos que sejam embaraçosos ou dolorosos, e que a sua violação pode ensejar a condenação por danos morais. No caso concreto, contudo, considerou que seria impossível narrar o crime, de inequívoca importância histórica, sem fazer alusão à sua vítima. Diante desta circunstância, atribuiu, no equacionamento do caso, peso superior à liberdade de imprensa em relação ao direito ao esquecimento, refutando, com isso, o pleito indenizatório.

Em ambos os episódios, os acórdãos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afirmaram que, por forca do princípio da dignidade da pessoa humana, no conflito entre liberdades comunicativas e direitos à vida privada, à intimidade, à honra e à imagem, existiria, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora esta suposta precedência, ao que parece, não tenha sido observada no caso Aída Curi.

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Longe de expor exaustivamente os aspectos fáticos e normativos de ambos os casos, devem ser tecidas críticas acerca do modo confuso e, de certa forma, perigoso, com que a Corte Superior chancelou os precedentes, atribuindo a ausência de critérios definidos à inauguração do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro.

Afigura-se, portanto, que o reconhecimento do direito ao esquecimento, nos termos por demais abrangentes formulados pelo STJ nos casos da Chacina do Candelária e Aída Curi, devem ser observados com parcimônia, sob pena de ameaça às liberdades comunicativas, à história e à memória coletiva. Há, contudo, um espaço legitimo para que ele seja tutelado, que não envolve risco tão significativo para estes bens jurídicos essenciais. Trata-se do campo da proteção dos dados pessoais despidos de interesse público, especialmente – mas não exclusivamente – no âmbito da informática.

Os critérios decisivos a serem ponderados, portanto, pelas instâncias jurisdicionais são aqueles concernentes ao potencial de alcance do veículo e, principalmente, ao objetivo real da veiculação do conteúdo, parâmetros que são reconhecidos como de delicado manejo para que o Judiciário não avoque para si a abjeta função de arbitrário censor. Daí é que se extrairá o substrato para a sentença de procedência ou improcedência do pedido deduzido por aquele desejoso de ser deixado em paz ou, quando esse sossego tenha sido maculado, de obter reparação compatível com a ferida moral.

É preocupante, sob esse prisma, que o STJ, representado por sua Quarta Turma, ao apreciar dois casos com a mesma empresa de televisão no polo passivo, tenha deferido o direito ao esquecimento em desfavor de um documentário que objetivava reconstituir criticamente uma persecução penal, mas tenha afastado o mesmíssimo direito em benefício de outro documentário com propósito sobejamente sensacionalista.

Essa instabilidade de posicionamento, decerto, pode ser parcialmente atribuída à contemporaneidade do instituto em comento – o direito ao esquecimento –, quadro que tende a ser alterado em decorrência do influxo de outros elementos de color jurídico e garantista para a arena das discussões sobre a implementação das medidas desafiadas.

Não custa trazer a tona o fato de características do cenário nacional tornarem especialmente grave o reconhecimento do direito ao esquecimento, nos termos formulados pelo STJ. Pode-se dizer que o problema brasileiro não é de excesso de memória, mas de amnésia coletiva. Fatos embaraçosos da nossa trajetória são, com frequência, “empurrados para debaixo do tapete”,

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recobertos por um véu de silêncio e olvido. É sem dúvida benfazeja a inauguração do debate sobre a incidência

do direito ao esquecimento no Brasil, descortinada, nomeadamente, pelos precedentes do STJ. O desafio agora posto dialoga com a necessidade de se buscar com afinco o amadurecimento teórico e prático desse novo direito, tarefa com a qual o presente artigo cientifico espera ter contribuído, ainda que minimamente.

Válido mencionar, por fim, que foram interpostos recursos contra ambas as decisões para o Supremo Tribunal Federal, distribuídos, respectivamente, aos Ministros Celso de Mello (caso Chacina do Candelária, Agravo em Recurso Extraordinário n. 789.246) e José Antônio Dias Toffoli (caso Aída Curi, Agravo em Recurso Extraordinário n. 833.248). Nesse último processo, já houve, inclusive, o reconhecimento pela Suprema Corte da repercussão geral do recurso extraordinário.

6 CONCLUSÃO

O Estado Democrático de Direito surgiu da premente necessidade de alteração das normativas regentes da relação indivíduo-Estado. O desenvolvimento desta nova estrutura organizacional, social, política, normativa e cultural foi imprescindível ao reconhecimento dos direitos fundamentais e à sua inserção nas Cartas Magnas dos países ditos democráticos.

Fala-se, ademais, na Constituição Federal de 1988, que previu, expressamente, em seu art. 1o, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito. Nesse mister, o Título II, Capítulo I, que versa sobre os direitos e garantias individuais e coletivos, inaugurou um rol, iniciado pelo art. 5o, de premissas da mais alta relevância.

Tem-se por instalada no Brasil a reflexão sobre o direito ao esquecimento com a recente aprovação do Enunciado n. 531 na IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujo teor consubstancia: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.

A primeira vista, o direito à informação positivado no art. 5o, incisos XIV e XXXIII, e art. 220, § 1o, ambos da CF, apresenta-se como pressuposto limitador do chamado direito de ser olvidado. Percebe-se, outrossim, que este é igualmente essencial ao desenvolvimento da personalidade humana, sendo a

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sua coexistência e ponderação junto ao direito ao esquecimento imprescindível ao desenvolvimento de um sistema constitucional democrático.

As polêmicas de há muito tempo associadas ao conflito entre a liberdade de comunicação social e os direitos à intimidade, à vida privada, à preservação da honra e da imagem, colisão que está na base da consecução do direito ao esquecimento, caminham na direção de uma máxima complexidade no modelo social atual, caracterizado pelo alastramento incontrolável da notícia e – pior – da não notícia. O mencionado conflito é mesmo imanente à própria opção constitucional pela proteção de valores quase sempre antagônicos, os quais, em última análise, representam, de um lado, o legítimo interesse de “querer ocultar-se” e, de outro, o não menos legítimo interesse de se “fazer revelar”.

Constata-se que, pela curiosidade científica que a matéria desperta, o direito ao esquecimento trilha para ocupar, em um curto espaço de tempo, lugar de destaque nas discussões acadêmicas e forenses pátrias, mirando a sua temperada aplicação, notadamente em concordância com as pilastras constitucionais do direito-dever de informar e de informar-se, bem assim da vedação da censura.

O leading case apreciado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, que se convencionou denominar caso Lebach, recebe especial destaque, tendo expostos os aspectos fáticos mais relevantes e o latente conflito entre a liberdade de radiodifusão, de um lado, e a proteção à personalidade, de outro.

O Superior Tribunal de Justiça, distante quarenta anos da concretização lavrada pelo sodalício alemão, depara-se com dois casos envolvendo o direito ao esquecimento, que se convencionou chamar “Chacina da Candelária” e “Aída Curi”.

Ao emitir provimento judicial em ambas as ocasiões, constata-se que a dificuldade principal da Corte Superior para a concessão do direito ao esquecimento reside no fato desse exigir do Poder Judiciário atitude que perigosamente se aproxima da censura quanto à disseminação de informações verdadeiras, de interesse público e relativas a personagens que, se não públicos, pelo menos exerceram algum tipo de papel em episódios socialmente relevantes.

Nessa realidade em que mesmo os estudiosos se veem absortos, sem saber em que sentido proceder, é compreensível que as instituições, inclusive o Poder Judiciário, ainda estejam a tatear, tentando construir novas ferramentas que possam fazer frente aos anseios dos meios de comunicação

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por liberdade, mas também às expectativas de uma cada vez mais exposta e fragilizada individualidade humana.

Busca-se, portanto, lançar luzes sobre o instituto que deu os seus primeiros passos no ordenamento jurídico brasileiro há pouco mais de um ano, com vistas a alumiar e, com isso, estimular a produção acadêmica e doutrinária em torno do feito, bem como servir de lastro aos magistrados que, cada vez mais frequentemente, se deparam com demandas relacionadas ao tema.

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THE RIGHT TO BE FORGOTTEN AND THE BRAZILIAN LAW

ABSTRACT

This scientific work has the main objective to shed light on the newly opened application of the right to be forgotten in Brazil, from a study of the fundamental rights which the underlying, in the case above, however, the basis for your understanding, namely, the democratic rule of law, the principle of human dignity and its main limiting factor, the right to information. Entering is effectively the theme of the right to oblivion, brings to the fore the international events on the postulate, giving special attention to the leading case considered by the German Constitutional Court, the case Lebach. Therefore, we draw a comparison between the previous brazilian Superior Court of Justice and that coming from the german Federal Constitutional Court. Therefore, it is presented initially a factual summary and rules of the cases that led to the topic of discussion in

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Brazil, namely, the Slaughter of Candelaria and the case Aida Curi. Last but not least, after the enumeration of general and specific criteria aimed at resolution of collisions between fundamental rights involved in the realization of the right to oblivion, it is a critical analysis about the implementation of precursor postulated by the Superior Court of Justice.

Keywords: The right to be forgotten. Fundamental rights. Collision. Leading case. Superior Court of Justice.

O DIREITO AO ESQUECIMENTO E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

O MICROSSISTEMA CONSUMERISTAE AS DIFICULDADES DE COMBATE ÀS PRÁTICAS ABUSIVAS ON-LINE À LUZDA MASSIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES

VIRTUAIS DE CONSUMO

Paulo Vítor Avelino Silva BarrosAcadêmico do 9º período do curso de Direito da UFRN

RESUMO

O microssistema consumerista surge precipuamente com o advento do Código de Defesa do Consumidor, promulgado em 11 de setembro de 1990, sendo considerado, nesses 25 anos, um dos mais avançados instrumentos normativos do ordenamento, inovando na tutela das relações de consumo, olhos postos, especialmente, na vulnerabilidade do consumidor. Contudo, ante o surgimento de novas tecnologias informacionais e a massificação das relações virtuais de consumo, o microssistema vem encontrando dificuldades para tutelar certas situações jurídicas que não se supunham existir à época da elaboração do Código, notadamente as práticas abusivas ocorridas on-line. Nesse sentido, o presente trabalho aborda os paradigmas erigidos pelo microssistema consumerista no Brasil, analisando a dificuldade de sua operacionalização em tempos de desenfreado consumo cibernético, com arrimo na problemática das práticas abusivas ocorridas na Internet. Diante disso, conclui pontuando medidas que podem garantir maior efetividade à fiscalização e à materialização dos direitos do consumidor, evitando o cometimento dessas nocivas práticas na esfera virtual.

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ÀS PRÁTICAS ABUSIVAS ON-LINE À LUZ DA MASSIFICAÇÃODAS RELAÇÕES VIRTUAIS DE CONSUMO

Palavras-chave: Código de Defesa do Consumidor. Microssistema Consumerista. Práticas Abusivas On-line. Tutela dos Direitos Fundamentais.

1 INTRODUÇÃO

Se a Constituição Federal de 1988 delimita o marco normativo da redemocratização brasileira, o Código de Defesa do Consumidor (CDC)1 pode ser considerado como o divisor de águas da tutela das relações de consumo no ordenamento pátrio. É com essa codificação que o legislador brasileiro confirma o teor do direito fundamental à proteção ao consumidor2, dando-se início a uma nova conjuntura normativa que milita em favor desses sujeitos, vulneráveis nas relações de consumo estabelecidas.

Tal tessitura normativa pauta-se em princípios próprios da regulação das relações de consumo, mantendo contato permanente com outras fontes do Direito3, edificando-se verdadeiro microssistema jurídico. Nessa sistemática, o CDC passou a representar uma harmoniosa fusão de fontes jurídicas, ganhando fôlego preceitos como a proteção à vulnerabilidade do consumidor, a criação de um Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e a vedação às práticas abusivas.

Ocorre que as décadas que sucederam à promulgação do Código foram marcadas pelo aumento vertiginoso das relações virtuais, com a massificação do acesso à Internet e com a proliferação de diversas redes sociais e de outros veículos de comunicação on-lne4. Ante essa nova realidade cibernética, o Código, outrora inovador, passou a sofrer pontualmente com lacunas, o que dificulta a operacionalização do microssistema do consumo.

1 Alcunha conferida à Lei Federal nº 8.078/1990.2 CF, Art. 5º, XXXII: o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.3 Dentre essas fontes, citem-se, por exemplo, normas de Direito Administrativo, Penal, Civil, Processual Civil e atos normativos do Poder Executivo, insertas dentro do diploma.4 O sucesso das redes sociais e de outros serviços de comunicação on-line foram bem representados com o Orkut e o MSN, primeiramente, destacando-se, posteriormente, no mundo virtual, o Twitter o, Facebook, o Instagram e, mais recentemente, o Snapchat.

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Nada obstante, mesmo sem alterações no CDC, o microssistema poderia se atualizar a essa nova realidade, desde que efetivasse medidas hábeis a proteger tais direitos5. No entanto, a realidade virtual vem demonstrando que os instrumentos de proteção do consumidor não funcionam com a mesma efetividade no mundo da Internet, ante ao flagrante descompasso dos instrumentos de fiscalização em relação ao fluxo informacional existente na rede, ambiente em que os fornecedores detêm poderosas prerrogativas de disseminar informações instantâneas ao público virtual.

No presente trabalho, abordar-se-á a problemática esboçada, com foco em um dos mais nocivos problemas enfrentados pelo consumidor virtual: as práticas abusivas. Essas, caracterizadas pelo abuso da boa-fé e pela vulnerabilidade do consumidor, podem ser sancionadas nas esferas civil, penal e administrativa. No entanto, o difícil controle dessas práticas na seara virtual, a par das insuficientes ferramentas usualmente utilizadas, inviabiliza a proteção ao consumidor, o que impede, muitas vezes, que o fornecedor infrator seja devidamente responsabilizado.

Diante desse cenário, este estudo pretende trazer uma análise do microssistema consumerista no Brasil, resgatando os princípios basilares que o fundamentam na contemporaneidade, com foco na proteção à vulnerabilidade do consumidor e na facilitação ao acesso à justiça por meio de um Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Após tecer tais considerações, com alicerces doutrinários e jurisprudenciais, aborda o instituto das práticas abusivas, entrando, em seguida, no estudo dessas práticas do ambiente virtual. Com isso, constata como certas práticas comprometem os direitos do consumidor virtual, apresentando medidas alternativas, com base em casos concretos, que podem auxiliar na proteção a tais direitos do consumidor.

2 PARADIGMAS E MUDANÇAS IMPOSTOS PELO CDC: O PIONEIRISMO DO DIPLOMA NA TUTELA DAS RELAÇÕES CONSUMERISTAS

5 Exemplo de tutela efetiva das relações virtuais é o Decreto nº 7.962/2013, que regulamenta a contratação no comércio eletrônico, determinando, dentre tantos assuntos, o direito ao arrependimento em compras virtuais. Acontece que, tal decreto presidencial, conquanto louvável, representa apenas um dos poucos mecanismos consentâneos à defesa das relações virtuais de consumo.

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Ao longo de quase todo o Século XX, a defesa dos direitos do consumidor foi preterida na ordem jurídica brasileira, ante a concepção de que o Estado deveria proteger os direitos individuais por meio de liberdades negativas e não por uma postura estatal ativa na tutela dos direitos (HORTA, 2002, p. 105). Não para menos, com base nessa noção absenteísta de Estado, a Constituição Brasileira de 1967 sequer abordava a tutela das relações de consumo, restando a essas a aplicação de regras civis comuns6, sendo desconsiderada a situação de vulnerabilidade vivida pelo consumidor na relação com os fornecedores.

Acontece que, com o advento da Constituição Federal brasileira de 1988, amparada fortemente na dignidade da pessoa humana7, impôs-se no ordenamento a tendência mundial de constitucionalização das relações privadas, adotando, dentre tantos princípios, a defesa do consumidor (GARCIA, 2012, p.1). A partir desse princípio, consagrado pela Carta Magna como direito fundamental, a sistemática jurídica pátria passou a se adequar a paradigmas mais protetivos, o que rendeu ensejou à criação de uma codificação que regulamentasse diretamente as relações de consumo.

Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor surge como sustentáculo da democracia brasileira, refletindo diretamente a obrigação estatal de agir positivamente na proteção dos consumidores, atuação essa necessária e obrigatória ante os valores preservados pela Lei Maior (ALVES; MARANHÃO, 2014, p. 228).

Com efeito, diante desse notável pioneirismo do CDC na tutela de direitos fundamentais do consumidor, ascendeu uma série de paradigmas e mudanças promovidos diretamente pelo Código, que, em conjunto, autorizam a conclusão de que o diploma pode ser considerado como verdadeiro divisor de águas nas relações consumeristas no Brasil. Eis, a seguir, algumas das mais significativas alterações irrompidas com o diploma.

2.1 O microssistema do consumo e o princípio da proteção ao vulnerável

6 A esse respeito, merece menção o Decreto Lei nº 869/1938 (crimes contra a economia popular); a Lei Delegada nº 4/1962 (distribuição de produtos de primeira necessidade à população) e também a Lei nº 4.137/1962 (repressão do poder econômico, do qual derivou o Conselho Atuante de Defesa Econômica – CADE).7 CF, Art. 1º, III.

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O CDC estabeleceu uma série de mecanismos para articular uma Política Nacional de Relações de Consumo no afã de atender às necessidades múltiplas do consumidor, reconhecendo-se a sua vulnerabilidade no mercado de consumo8. A par dessa concepção, entende-se o elo entre o consumidor e o fornecedor com lentes mais isonômicas, percebendo-se que a regulamentação dessas relações não se assemelha à proteção do Direito Civil, em que existe a tutela dos iguais (GARCIA, 2012, p. 6), mas deve procurar amenizar o desequilíbrio inerente ao plano fático nos sujeitos do mercado de consumo9. Eis o princípio da proteção ao vulnerável nas relações de consumo10.

Essa premissa básica do Direito das Relações de Consumo implica diferenças substanciais desse sistema em contraponto a outras relações jurídicas, razão pela qual se considera a existência de verdadeiro microssistema consumerista, que busca no diálogo de fontes do Direito um regramento idôneo a preservar o consumidor11. Nesse sentido, explica Leonardo de

8Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (...)9 Essa vulnerabilidade do consumidor desdobra-se em quatro subespécies: informacional (a informação é manipulada unilateralmente pelos fornecedores dado o processo de produção); técnica (consumidor não tem conhecimentos profundos acerca do objeto que adquire); jurídica (presumida, dispõe que o consumidor não está ciente dos aspectos jurídicos e econômicos que gravitam em torno da relação de consumo) e fática (do plano dos fatos, naturalmente existente) (MARQUES; BENJAMIN; BESSA; 2008 p. 90/94). É essa a reflexão que fundamenta o espírito do CDC.10 O conceito de vulnerabilidade e a sua necessária proteção não se confundem com a definição de hipossuficiente. Felipe Peixoto Braga Netto (2012, p. 48) explica que vulnerabilidade diz respeito a uma condição de direito material, que se reflete nas normas de proteção impostas pelo microssistema. Noutro pórtico, a hipossuficiência possui liame com o direito processual, uma vez que diferencia o tratamento concedido às partes do processo, rendendo ensejo, por exemplo, a inversão do ônus da prova processual.11 Essa tendência de contemplar diversos “ramos” do Direito em uma única codificação contrapõe a tendência secular de elaborar codificações para normatizar áreas específicas do Direito. Trata-se de técnica mais atualizada e condizente com a concepção de que o Direito é uno, dividido apenas didaticamente.

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Medeiros Garcia (2012, p. 6) que o CDC constitui microssistema jurídico multidisciplinar em virtude de possuir normas que regulam todos os aspectos da produção do consumidor, de maneira coordenada, permitindo a visão de conjunto das relações de consumo.

Nessa linha de intelecção, a proteção das relações de consumo não se esgota com normas que tratem estritamente da matéria, mas bebe, por exemplo, da fonte do Direito Penal (crimes contra as relações de consumo) e do Direito Processual Coletivo (quando o próprio CDC estipula tutelas coletivas de proteção da ordem do consumo). Ademais, a matéria também vem a ser regulada pontualmente por atos normativos do Poder Executivo, situações em que essa atividade legiferante surge para instrumentalizar a proteção ao mercado de consumo, com mecanismos de regulamentação e fiscalização.

Dessa maneira, o microssistema do consumidor, com a promulgação do CDC, instaura uma nova perspectiva de sistema de proteção de direitos, conjugando diversos ramos do direito para um desiderato comum: a proteção do consumidor e de sua vulnerabilidade. Com isso, o diploma determina um novo paradigma de direito, movido pela multidisciplinaridade e pela redução das desigualdades inerentes às relações de consumo. Derradeiramente, necessário registrar que acompanham o sistema normativo de proteção ao consumidor e o princípio de proteção ao vulnerável uma série de outros princípios de defesa dos interesses do consumidor, dentre os quais de destacam, dentro do CDC, o princípio da intervenção estatal nas relações de consumo (Art. 4º, II); boa-fé (Art. 4º, III); educação e informação dos consumidores (Art. 4º, IV); transparência (Art. 4º, caput); responsabilidade objetiva do fornecedor (Art. 12º, caput); o princípio da facilitação ao acesso à justiça (Art. 6º, VIII), dentre outros (GARCIA, 2012).

2.2 Instrumentos para a execução dos postulados de defesa do consumidor e para a efetivação da Política Nacional de Relações de Consumo

Consolidada essa base principiológica das relações de consumo, urgia a necessidade de se estabelecer meios idôneos para garantir a materialização dos direitos regulamentados, a partir da adoção de uma postura estatal ativa na tutela dos direitos. Para atingir esse fim, o Código de Defesa do Consumidor tentou aproximar os consumidores do Estado, de modo que esses pudessem manter contato direto com órgãos públicos responsáveis pela defesa de seus direitos. A efetivação desse cenário descrito apenas se tornou tangível com a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, resguardado

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pelo diploma consumerista12. O SNDC foi pensado a partir da composição de órgãos federais, estaduais e municipais que, seguindo as orientações previstas pelo denominado Departamento Nacional de Defesa do Consumidor, planejariam a política nacional do consumo; receberiam e avaliariam denúncias e sugestões; prestariam aos consumidores orientações permanentes sobre seus direitos e garantias; solicitariam à polícia judiciária instauração de inquérito policial para averiguar crimes contra as relações de consumo, dentre outras atribuições13. Calha mencionar também que o referido Sistema também vem a ser regulamentado por via do Decreto 2.181/1997, que define os detalhes da sua organização e atuação.

Com o advento desse sistema, então, nota-se ter sido conferido a determinados órgãos verdadeiro poder de polícia14, cabendo-lhes a apuração e a punição de infrações contra a ordem do consumo, na medida de suas atribuições15. Apesar de algumas vozes terem historicamente se abalizado em sentido contrário, as Cortes Superiores aduzem, uníssonas, que tais órgãos detêm poder de polícia para efetivar os direitos dos consumidores, não havendo maiores controvérsias sobre a matéria16. Nesse sentido, os órgãos administrativos passaram a figurar como garante de direitos individuais e como articulação contemporânea do próprio

12 Art. 105. Integram o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais e as entidades privadas de defesa do consumidor.13 Art. 106, CDC.14 Segundo Hely Lopes Meirelles (1998, p.133): “poder de polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.15 Art. 5º, Decreto 2.181/1997.16 Exemplo elucidativo que pode ser mencionado seria julgado do Superior Tribunal de Justiça, a partir do qual se decidiu que o PROCON teria “poder de polícia para impor multas decorrentes de transgressão às regras ditadas pela Lei n.º 8.078/90,” sendo possível a sua atuação em concorrência com a atuação de agência reguladora – ANATEL – haja vista que a atividade do PROCON é especial em relação à agência, tendo por objetivo a tutela particular do consumidor (STJ - AgRg no REsp: 1112893 RJ 2008/0161803-3, Relator: Ministro SÉRGIO KUKINA, Data de Julgamento: 02/10/2014, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/10/2014)

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princípio constitucional de acesso à justiça17. Ora, não é possível conceber, hodiernamente, que a justiça signifique a mera existência do Poder Judiciário, mas deve-se ressaltar a importância da resolução extrajudicial dos conflitos (CAPPELETI; GARTH; 1998, p.8), razão pela qual tais órgãos possuem relevância ímpar na proteção dos direitos consumeristas.

Diante desse cenário, o receio dos fornecedores acerca dessa atuação extrajudicial dos órgãos – com a fiscalização e a prerrogativa de estipular sanções administrativas nos termos do CDC – reduz as violações a direitos do consumidor, evidenciando-se assim a efetividade da filosofia que rege o SNDC. Não à toa, ao ano de 2013, o SINDEC – Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor – registrou 2.481.958 atendimentos pelos PROCON’s nacionais, sendo constatada mais de 80% de sucesso na resolução dos litígios (SENACON, 2014).

Com base nesses dados, impossível não mencionar expressamente a exitosa experiência do PROCON no microssistema consumerista brasileiro. Esse órgão, notadamente conhecido pela população, possui ampla competência administrativa, podendo marcar audiências de conciliação para a resolução de conflitos, bem como podem determinar audiências de instrução e julgamento administrativo das contendas e fiscalizar estabelecimentos comerciais e imputa sanções administrativas – previstas nos artigos. 56, 57 e 68 do CDC18. Diante de todo o exposto, conclui-se, por ora, que a criação de um Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, notadamente representado pela conhecida atuação dos PROCON’s, quebra outros paradigmas no direito brasileiro, mormente relativos ao modo pelo qual os direitos dos consumidores podem ser resguardados. Não deve, atualmente, prevalecer a tese de que apenas o Poder Judiciário é legítimo para defender direitos, mas deve-se compreender que a experiência pátria do SNDC explicita a importância de defesa administrativa dos direitos dos consumidores. E, assim, nasce um importante paradigma nas relações de consumo, por meio dessa facilitação extrajudicial do acesso à justiça.

17Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.18 Disponível em: < http://www.procon.rj.gov.br/index.php/main/historico>.

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2.3 O instituto das práticas abusivas e a tutela da boa-fé e vulnerabilidade do consumidor

Outra inovação abordada pelo CDC na tutela dos interesses consumeristas foi, notadamente, o instituto das práticas abusivas, cuja proteção legal encontra-se inserta no artigo 39 do mencionado diploma, que define exemplificativamente condutas dos fornecedores que são completamente vedadas pelo microssistema.

A proibição às práticas consideradas abusivas mantém relação íntima com a teoria do abuso de direito19, encampada na doutrina civilista como um comportamento ilegal mascarado por um ato pretensamente legítimo (VENOSA, 2003, p. 604), contrariando-se o fim a que seria destinado o ato, os bons costumes ou a boa-fé do sujeito lesado. No direito consumerista, via de regra, é justamente a boa-fé o parâmetro precipuamente utilizado para aferir os limites desse abuso de direito, conforme estabelece o artigo 4º do CDC (GARCIA, 2012, p. 291).

Ocorre que, consoante explicado, o microssistema consumerista adota princípios próprios que o diferenciam do ramo civilista clássico, pautando-se essencialmente no princípio da proteção ao vulnerável. Com isso, é defesa a aplicação fria da teoria do abuso de direito nas relações de consumo, porquanto as desigualdades naturais dessas relações demandem a aplicação das normas do microssistema. Em decorrência, as práticas abusivas destacam-se no CDC, representando a conjugação do postulado da boa-fé com a vulnerabilidade do consumidor, caracterizando-se pela supressão do seu direito de escolha e pelo agravamento do desequilíbrio jurídico existente (EFIN, 2004, p. 53).

Nesse panorama, cite-se, dentre as práticas abusivas existentes, a “venda casada” (condicionar fornecimento de produtos e serviços ao fornecimento de outro); o envio, sem solicitação prévia, de quaisquer produtos; a exigência de vantagem manifestamente excessiva ou, mesmo não expressa no CDC, a omissão de preços e informações dos produtos. Exemplos que evidenciam como qualquer cidadão pode ser exposto a práticas dessa estirpe sem sequer saber da ilegalidade da conduta do fornecedor20.

19 Art. 187: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.20 Outros exemplos que demonstram que as práticas abusivas não se exaurem com

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ÀS PRÁTICAS ABUSIVAS ON-LINE À LUZ DA MASSIFICAÇÃODAS RELAÇÕES VIRTUAIS DE CONSUMO

Registre-se, derradeiramente, que todas essas práticas são consideradas presumidamente ilícitas e podem render ensejo à aplicação das sanções civis, penais e administrativas previstas no diploma21 bem como, eventualmente, à condenação por danos morais22.

Por meio dessa regulamentação, o Código de Defesa do Consumidor também renova a proteção legal conferida ao consumidor, pois, outrora, essas práticas seriam, no máximo, protegidas pela legislação civil. A codificação consumerista, então, instaura outro paradigma que veda, estreme de dúvidas, que o fornecedor se utilize de sua superioridade na relação de consumo para gozar abusivamente de seus direitos e prerrogativas. Exemplo último de como o CDC serve de divisor de águas na tutela desses direitos.

3 NOVAS RELAÇÕES VIRTUAIS E DIFICULDADES NO COMBATE ÀS PRÁTICAS ABUSIVAS ON-LINE

as previsões do artigo 39 são a colocação no mercado de consumo de produtos com alto grau de periculosidade (art. 10 do CDC) ou a veiculação de publicidade enganosa e abusiva (art. 37 do CDC). 21 O corte de energia elétrica rende ensejo à caracterização de conduta abusiva, imputando-se a sanção administrativa prevista no art. 57 do Código de Defesa do Consumidor, legitimada pelo poder de polícia do Procon para a cominação de multas relacionadas à transgressão dos preceitos da Lei n. 8.078/1990 (STJ - AgRg no AREsp: 476062 SP 2014/0031254-4, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 03/04/2014, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/04/2014).22 A abusvidade na conduta de plano de saúdepela recusa de cobertura pode render ensejo à condenação de dano moral, ante ao sofrimento intenso sofrido pela consumidora, vide trecho de decisão do STJ: “Nos termos da sólida jurisprudência da Casa, a recusa indevida, por parte do plano de saúde, em custear tratamento de urgência ou internação hospitalar é fato apto a gerar dano moral indenizável. No caso em exame, a recusa à cobertura decorreu do entendimento da companhia seguradora acerca da limitação do tempo de tratamento a que estaria submetida a contratante, determinando-se a suspensão da internação hospitalar, prática essa inquinada de abusiva pelo STJ desde muito tempo, com orientação consolidada na Súmula n. 302. Por outro lado, a moldura fática traçada nos autos revela, efetivamente, intenso sofrimento da consumidora. Indenização mantida em R$ 35.000, 00 (trinta e cinco mil reais)” (STJ - AgRg no REsp: 1172360 RS 2009/0249052-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 03/06/2014, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/06/2014).

189Paulo Vítor Avelino Silva Barros

Nos 25 anos que sucederam a promulgação do Código, a experiência do microssistema no Brasil mostrou-se louvável. Os antes improváveis objetivos tornaram-se realidade inegável, vencendo a resistência empresarial, publicitária e até mesmo do lobby legislativo (BUENO, 2015). Atualmente, o microssistema dialoga constantemente com os cidadãos e permite, judicial ou extrajudicialmente, que o consumidor brasileiro sinta a verdadeira efetivação de seus direitos. Não para menos, o Código serviu de arrimo para diplomas alienígenas, consoante assevera Rizzato Nunes (2013, p. da internet), a lei foi tão importante que tornou o Brasil um importador de normas, servindo o CDC de inspiração para as leis de proteção do consumidor na Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai. Ocorre que, a despeito de todos os triunfos conquistados pela norma, os anos transcorridos desde a elaboração do CDC trouxeram consigo certas problemáticas que, atualmente, não vêm recebendo a devida proteção do microssistema. É o caso das novas relações virtuais de consumo ante à massificação das redes sociais. A era da Internet é marcada pela instantaneidade, pela celeridade e pela difusão das informações. A noção de tempo, outrora regida pelo apenas pelo espaço físico, atualmente é relativizada e, em segundos (ou milésimos desses), a informação dá a volta ao mundo e milhões têm acesso ao seu conteúdo. Dessa maneira, consolidou-se um império cibernético mundial o qual, indubitavelmente, não podia ser vislumbrado à época da promulgação do diploma. Nesse interregno, o microssistema não desenvolveu mecanismos para acompanhar o vertiginoso aumento das relações virtuais, mas apenas tentou pontualmente colmatar essas lacunas, por meio, por exemplo, de leis esparsas23 ou até mesmo de anteprojetos do CDC24. Nada obstante, a despeito dessas alterações, certas matérias ainda carecem de proteção do microssistema, notadamente em se tratando das práticas abusivas cometidas dentro do ambiente cibernético, objeto do presente estudo. Calcados na informalidade e na instantaneidade das relações on-line, muitos fornecedores utilizam-se do meio virtual para tentar se promover em detrimento da boa-fé e da vulnerabilidade do consumidor, agindo com

23 A título de exemplificação, tem-se a Lei 12.737/2012, que trata de delitos informáticos e dá outras providências.24 Projeto de Lei do Senado nº 281/2012, que trata do comércio eletrônico.

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vistoso abuso de direito, incorrendo no cometimento de determinadas práticas abusivas. Nesse sentido, malgrado tais comportamentos estejam sujeitos às sanções cabíveis, a sua natureza virtual inviabiliza a aplicação das normas existentes, uma vez que os instrumentos de fiscalização foram pensados para a realidade do comércio físico e não para o consumo em Internet. Em razão disso, por exemplo, a prática abusiva da publicidade enganosa, quando assim configurada25, vem ocorrendo com notória frequência nas redes sociais, especialmente nos sítios eletrônicos das fornecedoras e em suas páginas do instagram. Conquanto essas práticas não estejam expressamente previstas no rol do artigo 39 do CDC, caracterizam-se como abusivas por ferirem o princípio da informação ao consumidor, valendo-se o fornecedor da vulnerabilidade do cliente para ilegalmente auferir lucros e vantagens. Nas redes sociais, recorrentemente se encontram anúncios inverídicos apenas para atrair o consumidor para o sítio eletrônico da loja ou até mesmo para a sua versão do mundo físico. É a denominada “publicidade chamariz” (GARCIA, 2012, p. 281), cujas origens remontam o comércio físico e que, hoje, encontra-se presente em diversas redes do mundo virtual. No universo on-line, comumente verifica-se também a denominada publicidade enganosa por omissão, olhos postos, especialmente, na omissão dos preços dos produtos oferecidos. Essa modalidade de publicidade ilegal ocorre com frequência em redes sociais como o instagram: o fornecedor expõe determinado produto sem destacar seu preço ou demais informações relevantes, o que leva o consumidor a ter que se expor na rede e perguntar expressamente o valor do bem publicado. Não é raro que, mesmo após a indagação, a loja virtual se negue a prestar tal informação, apenas fornecendo números para contato do particular com a empresa. Ora, resta claramente configurado o constrangimento e a abusividade da conduta, que fere frontalmente os postulados de proteção ao consumidor existentes no microssistema. Outra prática recorrente vista no mundo virtual é a remessa indiscriminada de mensagens para os consumidores em potencial, mesmo

25 Para que a publicidade enganosa configure prática abusiva, deve-se constatar, na hipótese em apreço, se houve aproveitamento da boa-fé e da vulnerabilidade, haja vista o próprio conceito de prática abusiva. Caso esses elementos não estejam presentes, descabe falar na aplicação das sanções previstas as práticas, limitando-se a aplicação da exegese do artigo 37 do CDC.

191Paulo Vítor Avelino Silva Barros

sem solicitação desses, vulgarmente conhecidas como mensagens spams. Os consumidores se vêem inundados de propostas – que só crescem, ante ao baixo custo da publicidade virtual – e sofrem sérios aborrecimentos com tais mensagens. Felizmente, nesse ponto, alguns provedores de Internet já detectam as empresas que se encaixam nessas condições e enviam as mensagens diretamente ao lixo do seu email ou outra rede de contatos. No entanto, ainda se verifica tal prática na realidade cibernética, o que dificilmente é combatido pelos órgãos de fiscalização. Além disso, cabe citar a diferenciação de valores para pagamentos a vista e a prazo em sítios eletrônicos (prática comum também no comércio físico); a permissão “grátis” dada ao consumidor para que esse goze de algum serviço virtual por determinado tempo sem que tenha havido solicitação prévia; a venda de produtos em sítios apenas em conjunto, configurando venda casada virtual, entre outros casos. Diante dos exemplos elencados, indaga-se: qual a razão para que essas práticas abusivas virtuais não se sujeitem, em mesmo grau de efetividade, às sanções e à fiscalização existente para o comércio físico?

Consoante mencionado, o imediatismo e a instantaneidade do comércio virtual quebrou o paradigma do tempo e do espaço físico, o que possibilitou aos fornecedores um espaço muito maior para publicidade e ofertas, sem substanciais aumentos de despesas. Com isso, os fornecedores perceberam as benesses existentes no mundo virtual e passaram a agir ativamente no universo cibernético, adaptando-se à nova realidade e acompanhando a evolução e a massificação das redes sociais e elementos correlatos. Acontece que, em pórtico diametralmente oposto, os órgãos de fiscalização que compõem o SNDC não conseguiram universalizar os métodos de defesa on-line do consumidor, havendo, atualmente, notório descompasso na atuação virtual desses órgãos com a demanda existente.

Felizmente, com base na experiência de alguns estados brasileiros e em perspectivas novas de defesa do consumidor, é possível trazer ao comércio on-line mecanismos de fiscalização idôneos na proteção das relações de consumo. É esse, justamente, o assunto que rende ensejo à próxima sessão.

4 MEDIDAS E INOVAÇÕES PARA UMA POLÍTICA DE FISCALIZAÇÃO IDÔNEA NO AMBIENTE VIRTUAL: ENFRENTANDO AS PRÁTICAS ABUSIVAS ON-LINE

A flagrante problemática das práticas abusivas on-line exige uma

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ÀS PRÁTICAS ABUSIVAS ON-LINE À LUZ DA MASSIFICAÇÃODAS RELAÇÕES VIRTUAIS DE CONSUMO

intervenção urgente do Poder Público para a tutela efetiva dos direitos do consumidor virtual. Afinal, o postulado da proteção ao vulnerável, no âmbito do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, não pode se exaurir nas relações do consumo físico, devendo se estender tal proteção ao universo cibernético. Nesse sentido, questiona-se: qual medida poderia ser tomada para que o consumidor virtual pudesse se proteger de modo mais eficaz das práticas abusivas cometidas no mundo da Internet? Uma primeira alternativa que poderia satisfazer essa necessidade do consumidor foi adotada, de modo pioneiro, em alguns poucos estados do Brasil: denomina-se “PROCON ONLINE26”, ou PROCON Virtual. Trata-se de uma ferramenta virtual por meio da qual o consumidor pode fazer reclamações acerca de cobranças indevidas, atraso na entrega, produtos defeituosos, entre outros problemas concernentes à relação consumerista. Ora, esse portal poderia, certamente, servir de ligação acessível entre o consumidor e o órgão fiscalizador, de maneira que houvesse a facilitação da materialização dos direitos do consumidor lesado. Com efeito, poderia ser utilizado para que o consumidor pudesse, ainda em rede, denunciar as mais nocivas práticas abusivas ocorridas virtualmente, podendo utilizar-se de prints imediatos como fins de prova, por exemplo. Acontece que, atualmente, nem todos os estados brasileiros adotam esse instrumento de fiscalização virtual. No país, o sítio, desenvolvido pela Secretaria Nacional do Consumidor, apenas conta com o cadastro de 282 empresas comprometidas em viabilizar a resolução das contendas, número bastante pequeno, ante as dimensões continentais do território brasileiro. Destarte, conquanto louvável, tal iniciativa ainda carece de ampliação no ordenamento pátrio, devendo ser maximizada nos próximos anos. De toda sorte, trata-se de pouco conhecido instrumento que pode, certamente, solucionar grande parte das insatisfações consumeristas de ordem cibernética. Outra possibilidade também já existente em alguns estados, mas que não foi disseminada em todas as unidades da federação é o contato do consumidor com as Delegacias do Consumidor Virtual, iniciativa que, malgrado não esteja vinculada ao SNDC – e sim a órgãos policiais, pode ser útil para a redução dos crimes contra o consumidor ocorridos no ambiente online e, quando assim couber, para a diminuição das práticas criminosas e abusivas

26 Disponível em http://www.procononline.com.br/.

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ocorridas na Internet. Esse serviço tem por escopo colocar à disposição da população virtual o contato direto com um órgão policial que possa ser acessado por qualquer computador. Esse sistema permite que o consumidor registre sua queixa – em se tratando de crime virtual – e acoste à denúncia os documentos cabíveis e necessários a comprovar os danos sofridos. Ora, como mencionado, as práticas abusivas podem revelar-se passíveis de sanção penal, quando caracterizada a natureza delituosa do abuso, motivo pelo qual esse contato poderia viabilizar a punição aos infratores. Com essa ferramenta, promove-se maior diálogo entre consumidor e os órgãos responsáveis pela higidez das relações consumeristas, podendo-se prevenir o acontecimento de práticas que se afigurem criminosas. Mais um instrumento que, infelizmente, pouco foi disseminado no país, carecendo, notadamente, de eficácia territorial. Ademais, propõe-se também, por ora, medidas que não encontram previsão legal tampouco fizeram parte da experiência pátria, mas que podem, efetivamente, maximizar a proteção à vulnerabilidade do consumidor virtual. Eis a proposta: as lojas do comércio físico detêm o dever de possuir, em seu estabelecimento, exemplar do Código de Defesa do Consumidor, sob pena de multa de R$ 1.064,1027, face ao princípio da informação, para que, quando estiver na dúvida, o consumidor possa examinar a norma existente e resguardar o seu direito. Ocorre que tal obrigatoriedade, atualmente, não se aplica às lojas do comércio virtual, de maneira que o princípio da informação e da educação ao consumidor é relativizado no ambiente virtual. Nessa conjuntura, entende-se plenamente possível aplicar, analogamente, a obrigação de possuir o Código de Defesa do Consumidor às lojas virtuais, veja-se: em um local visível e perceptível do sítio eletrônico da loja, estaria presente um ícone que remeteria diretamente o consumidor para o sítio do planalto em que consta o CDC. Com efeito, eventuais dúvidas poderiam ser sanadas pelo consumidor com maior celeridade, sem que houvesse maiores entraves ao direito que o consumidor entende possuir. No mais, tal obrigação poderia se estender, futuramente, a observância de um ícone referente ao próprio “PROCON On-line”, sob pena de multa em caso de descumprimento dessa obrigação. Nesse cenário, ter-se-ia isonomia entre o comércio físico e o virtual e haveria maior efetividade na proteção do consumidor no ambiente

27 Inteligência da Lei nº 12.291/2010.

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cibernético. Inovação que se orienta no mesmo sentido dos paradigmas erigidos pelo CDC, porém, operando precipuamente na seara virtual. Diante de todo o exposto, percebe-se que tais medidas podem, notadamente, aperfeiçoar os postulados que militam em favor do consumidor no microssistema e ampliar a proteção existente no mundo virtual. Se os fornecedores acompanharam o desenvolvimento tecnológico e a massificação das redes sociais, é dever dos órgãos fiscalizatórios seguir os mesmos trilhos, inovando e adequando as suas atuações para a realidade atualmente vigente. Dessa maneira, o receio dos fornecedores em cometer práticas abusivas on-line representaria um instrumento fundamental para a materialização dos direitos dos consumidores virtuais, conferindo-se maior efetividade à tutela das relações virtuais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necessidade de enfrentar a problemática das práticas abusivas em relações de consumo virtual se justifica ante a necessidade de maximizar o postulado de proteção ao vulnerável, princípio consolidado após 25 anos da louvável experiência do CDC. Com efeito, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor deve compreender que, face ao dinamismo das redes sociais, sua atuação precisa ser revista, por meio de instrumentos idôneos à fiscalização online, acompanhando-se o nítido desenvolvimento da atividade empresarial nos meios virtuais. Segue, pois, que é preciso observar quais experiências já lograram êxito em efetivar essa proteção, uma vez que, como verificado, alguns estados vem adotando medidas hábeis a resguardar tais direitos. Contudo, tais mecanismos precisam ser ampliados, abrangendo todo a comunidade consumerista brasileira, sem que apenas certas localidades gozem desses instrumentos. Deve-se promover a democratização desses instrumentos, promovendo a defesa dos interesses do consumidor virtual – especialmente quanto às práticas abusivas – em todo o território nacional. Ademais, é necessário repensar a política de fiscalização a partir de métodos inovadores, como a aplicação análoga da obrigatoriedade do CDC para os sítios virtuais, para que se possa intensificar tal proteção, oferecendo um diálogo constante entre o consumidor e a norma fundante do microssistema. Mais que isso, deve-se oferecer ao consumidor a acessibilidade do contato com os órgãos responsáveis pela sua defesa, sob o risco de tornar inócuos os

195Paulo Vítor Avelino Silva Barros

postulados de proteção virtual. Portanto, a filosofia que cinge, em vias de conclusão, é de que, conquanto louvável, o microssistema ainda precisa se adequar à massificação das redes sociais e acompanhar, de modo efetivo, a massacrante atuação dos fornecedores no ambiente virtual. Dessa maneira, finalmente, ter-se-á a tutela efetiva e digna das relações de consumo virtual, coibindo-se as nocivas práticas abusivas tão corriqueiras nesse ambiente.

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THE CONSUMERIST MICROSYSTEM AND THE DIFFICULTIES OF FIGHTING ABUSIVE PRACTICES ONLINE IN THE LIGHT OF THE MASSIFICATION OF VIRTUAL CONSUMPTION

197Paulo Vítor Avelino Silva Barros

RELATIONS

ABSTRACT

The consumerist microsystem arises primarily with the creation of the Consumer Protection Code, issued in September 11, 1990, being considered, in these 25 years, one of the most advanced normative instruments, innovating in the custody of consumer relations, especially focusing in the consumer. However, due to the emergence of new informational technologies and the massification of virtual relations of consumption, the microsystem has been facing difficulties to guard certain court situations that were not imagined to exist at the time of the Code’s creation, notedly the abusive behaviors occurred online. In that sense, the current work addresses the development of the consumerist microsystem in Brazil, analyzing the difficulty of it’s implementation in terms of the unbridled cyber consume, on the basis in the issue of the abuse practices occurred online. Facing that, concludes punctuating measures that can guarantee greater effectiveness to the monitoring and to the materialization of consumer rights, avoiding the undertaking of those harmful practices in the virtual scope.

Keywords: Consumer Protection Code. Consumerist Microsystem. Custody of Fundamental Rights. Abusive Practices Online.

OBJETIVAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO E HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

José Henrique ZamaiAdvogado (OAB/SP nº. 351.580), graduado

no curso de Direito pela PUC - Minas Gerais

RESUMO

O artigo se propõe a analisar a mutação constitucional ocorrida com o julgamento da Reclamação 4.335-5/AC, no qual foi levantada a possibilidade do Supremo Tribunal Federal conferir eficácia erga omnes às decisões de inconstitucionalidade proferidas no exercício do Controle Difuso de Constitucionalidade, sem a necessária manifestação do Senado Federal. Para tanto, a discussão desenvolve-se no âmbito da Hermenêutica Constitucional, verificando o seu desenvolvimento histórico e lançando um projeto atual, com base nas teorias da Filosofia Pragmática e nas teorias jurídicas de Konrad Hesse e Peter Häberle, concluindo que a objetivação da decisão de inconstitucionalidade na via difusa está de acordo com a postura hermenêutica desenvolvida e aceita na atualidade.

Palavras-chave: Objetivação do Recurso Extraordinário. Reclamação 4.335-5/AC. Hermenêutica Constitucional.

200 OBJETIVAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO EHERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

1 INTRODUÇÃO: CONTEXTO DA RECLAMAÇÂO 4.335-5/AC

Em breve relatório, tem-se o seguinte cenário de julgamento: o STF, através do julgamento do Habeas Corpus nº 82.959/SP, declarou, em sede de Controle incidental de Constitucionalidade, a inconstitucionalidade do art. 2º, §1º, da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), importando essa declaração na possibilidade de progressão de regime para os condenados por tais crimes. Dada essa decisão de inconstitucionalidade incider tantum, réus da comarca de Rio Branco - Acre, querendo se beneficiar da progressão de regime, realizaram pedido de progressão perante a Vara de Execuções Penais, ao que se seguiu decisão de indeferimento por parte do juiz competente, sob a justificativa de que a inconstitucionalidade proferida pelo STF gerava efeitos inter partes, necessitando de resolução senatorial que lhe conferisse efeitos erga omnes.

A Defensoria Pública do Estado do Acre, diante dessa negativa, ajuizou a Reclamação, por entender que o juízo monocrático estava descumprindo decisão firmada pelo STF. Não entrando no mérito da questão penal do caso, surgiu em sua esteira, na Reclamação 4.335-5/AC, o questionamento acerca dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade proferida em sede de Controle difuso de Constitucionalidade, colocando em xeque a sistemática positivada (qual seja, a regra do efeito limitado às partes do processo subjetivo, com possibilidade de ampliação por resolução do Senado Federal – art. 52, X/CF 88) e cogitando uma possível mutação constitucional que lançaria as bases da chamada objetivação do Controle difuso-concreto de Constitucionalidade (aproximando-o do modelo concentrado-abstrato).

Realizada essa revisão da literatura, bem como a análise de seu tratamento oficial, verifica-se a existência de dois polos de pensamento bastante distintos um do outro, dentro dos quais, entretanto, as teses não parecem variar: enquanto a corrente que defende a mutação constitucional referida calca-se em argumentos de ordem histórica (como prova da ultrapassagem do instituto no contexto do neoconstitucionalismo) e processual (criação de um sistema que viria a beneficiar a sistemática processual brasileira, garantindo maior celeridade e economia, sem se esquecer da segurança jurídica; além de alavancar a definitiva instauração do STF enquanto Corte Constitucional); a corrente contrária à mutação do art. 52, X/CF 88, prende-se, principalmente, a critérios fixados que impediriam tal leitura do dispositivo, que seja, a problemática contramajoritária do Poder Judiciário, a pretensa violação da cláusula basilar da Separação dos Poderes e a consequente inconstitucionalidade da mutação, por extrapolação de limites interpretativos.

201José Henrique Zamai

Conhecida a natureza relevante do Poder Judiciário na vida do Estado e a sua limitação, que se dá pelas bases da Constituição, em relação aos demais Poderes, deve-se verificar, dentro desses limites, qual a margem de atuação do juiz, principalmente no que tange à hermenêutica constitucional e o entendimento que os tribunais, em especial, a Corte Constitucional, podem dar à Constituição. Desse modo, portanto, é necessário que a questão seja analisada sob a perspectiva da Hermenêutica Constitucional.

2 ANÁLISE EVOLUTIVA DA HERMENÊUTICA JURÍDICA1

A Hermenêutica Jurídica, enquanto uma Teoria da Interpretação do Direto, considerando o sujeito e o objeto do Direito em sua relação interpretativa, conforme teoriza Camargo (2003, p. 28-29), teve seu surgimento em momento que se seguiu à Codificação Napoleônica de 1804 (Código Civil Francês), quando, no contexto revolucionário, depositou-se grandes expectativas na atividade legiferante e, por marca histórica, grande desconfiança na atividade judicante. De maneira que, uma vez verificada uma impossibilidade de previsão abrangente e ao mesmo tempo minuciosa da lei (conforme exigiam os casos concretos), era necessário limitar a atividade interpretativa do juiz, como forma de proteger a vontade primeira do legislador.

Diante dessa perspectiva, Margarida M. L. Camargo (2003, p. 65-68; p. 73-86; p. 90-97) teoriza que a Escola da Exegese foi responsável pela germinação da Hermenêutica Jurídica, a qual preocupou-se em limitar o entendimento das leis, atrelando a atividade do juiz à vontade do legislador, assim como, consubstanciou a Teoria Interpretativa em uma série de métodos que se pretenderam objetivos, ou seja, métodos que levariam qualquer juiz, diante de uma mesma situação, a uma única resposta.

Contudo, tais métodos comprovaram-se ineficazes em objetivar a atividade judicante, de modo que, principalmente na tradição jurídica alemã,

1 A organização do raciocínio, a utilização de determinadas expressões e a formação das convicções que levaram à redação desse tópico, mais do que a pesquisa bibliográfica, baseiam-se grandemente nas aulas da disciplina Hermenêutica e Argumentação Jurídica, ministradas pelo Professor Mestre Virgílio Diniz Carvalho Gonçalves, durante o 8º período da Graduação do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

202 OBJETIVAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO EHERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

foi sendo superado (Hegel, Savigny e Jhering), na medida em que percebeu-se que não havia como se chegar a uma única resposta emanada diretamente da lei, mas diferentes respostas, em condições de adequar a vontade da lei (e não do legislador) aos casos concretos.

Com o positivismo jurídico, um século depois das postulações da Escola da Exegese, na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, a Hermenêutica Jurídica volta a ser o foco. Kelsen percebeu que não há Direito sem interpretação, bem como observou que não há como a lei, por si, adequar-se a cada caso concreto, sendo indispensável a atividade interpretativa do juiz. Nessa análise, verificou também que a lei se escalona hierarquicamente em um ordenamento jurídico de forma piramidal, de modo que as leis de maior hierarquia são em menor número e mais abstratas, enquanto as leis de menor hierarquia são de maior número e mais concretas, o que o faz concluir que o Direito se cria de forma descendente.

Segundo Kelsen, tal constatação demonstra também que não há uma única interpretação a ser dada à lei (pois, se assim o fosse, não adquiriria o formato piramidal), mas uma moldura de possibilidades fixada pela lei, dentro da qual qualquer opção é igualmente boa (indiferença de equilíbrio) no ordenamento jurídico. Assim, a atividade interpretativa postulada por Kelsen acaba por verificar que toda interpretação é metade racional, enquanto verifica a moldura de possibilidades oferecida pela lei; e metade arbitrária, na medida em que, sendo todas as opções dentro da moldura igualmente boas, torna-se impossível realizar a escolha racional de uma delas e qualquer escolha realizada é política, isto é, um ato de vontade do juiz. Isso levou ao que se convencionou chamar de Dilema Kelseniano, que colocou em xeque a objetividade do Direito (e, portanto, sua existência enquanto Ciência), por depender de critérios subjetivos em sua efetiva realização.

Por seu turno, o momento seguinte relevante para a Hermenêutica Jurídica refere-se à Filosofia Pragmática (ou Filosofia da Linguagem), fruto de um giro ocorrido na Filosofia Geral, segundo o qual percebeu-se que a realidade somente pode ser conhecida através da linguagem. O primeiro relevo é trazido pelo pensamento de Wittgenstein, responsável pelo Giro Linguístico, o qual, em princípio, postula que entre sujeito e objeto interpõe-se a linguagem, que é o meio do qual se utiliza o sujeito para descrever o objeto. Malgrado a marca patentemente formalista, que se reflete no objetivo de se delimitar uma linguagem objetiva como forma de tornar o conhecimento puro (tal qual ocorreu para as Ciências Exatas ao adotar a matemática), é aqui que a linguagem passa a ser considerada como forma de apreensão da realidade.

203José Henrique Zamai

Em contrapartida, no seu segundo momento, marcado pelo abandono da postura anterior, verifica-se que a linguagem não existe de forma absoluta, mas conforme contextos em que seja utilizada, ao que o pensador chamou de jogos de linguagem. Assim, uma mesma palavra poderá definir aspectos diversos da realidade, conforme seja o uso que se lhe der, momento em que a linguagem deixa de ser meio entre sujeito e objeto e passa a ser o próprio local ao qual o sujeito se dirige para conhecer a realidade: a linguagem cria a realidade, conforme é utilizada. Essa postulação completa o Giro Linguístico, conforme verifica Lenio Streck (2008, p. 135; 1999, p. 47).

Ainda, Streck (1999, p. 168-185) postula que com Heidegger verifica-se à necessidade de vivência para que haja conhecimento. Assim, critica o que denominou de modelo metafísico de conhecimento, qual seja, aquele que se atinha mais à ideia da coisa do que à coisa em si, propondo uma reaproximação entre conhecimento e senso comum. O sujeito deve-se dirigir à vivência e experiência da realidade para conhecê-la, o que, entretanto, não leva uma postura absoluta em relação ao seu conhecimento, pois o homem deixa de ser o mesmo pelo conhecimento da realidade, assim como a realidade deixa de ser a mesma pelo conhecimento do homem: o sujeito subjetiva o objeto, na medida em que o objeto objetiva o sujeito.

Nesse pórtico, funda-se o conceito de círculo hermenêutico, que foi melhor elaborado por Gadamer, fixando a possibilidade de haver uma interpretação correta da realidade, como sendo aquela na qual o intérprete admite que possui pré-juízos dispostos em um horizonte histórico de percepções da realidade, mas sabe escolher os pré-juízos convenientes para a realização da interpretação. Assim, o intérprete não conhece o objeto pelo primeiro contato, mas o conhece a partir de um passado interpretativo subjetivo de cada pessoa. Concluem Camargo (2003, p. 30-49) e Streck (2008, p. 135-136; 1999, p. 185-189) que, evitando-se os hábitos do pensar, é possível se realizar uma interpretação correta, o que, entretanto, não é uma interpretação única da realidade.

No pensamento de Theodor Viehweg e Chaïm Perelman, o Giro Linguístico no Direito é refletido principalmente após o final da Segunda Guerra Mundial. Viehweg, atento às transformações ocorridas na Filosofia Geral, contribuiu com a Hermenêutica Jurídica ao resgatar a Tópica Aristotélica, que consiste na fixação de lugares comuns por meio de um exercício dialético, chegando a verdades e respostas que, porquanto não necessariamente únicas, eram as melhores para um determinado momento e um determinado número de sujeitos, possuindo não a capacidade de se comprovar, mas de persuadir.

204 OBJETIVAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO EHERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Isso, aplicado ao Direito, dá fundamento à Teoria da Argumentação, que seja, uma Teoria da Interpretação que estabelece a interpretação do Direito em determinados contextos, por determinados sujeitos envolvidos com o problema, de forma que, dialeticamente, possa se chegar a um consenso persuasivo, que, entretanto, não é único.

O ordenamento jurídico, por sua vez, considerado como um Catálogo de Topoi (uma lista de lugares comuns, a guiarem a resolução de problemas em um determinado momento, criado por sujeitos envolvidos em discurso dialético), somente adquire sentido diante do caso concreto problemático, que o chama como referência em sua resolução: o Direito só faz sentido diante dos problemas jurídicos, leciona Camargo (2003, p. 139-161) e Lacerda (2006, p. 23-36). Não há um ordenamento jurídico, mas, na expressão de Wittgenstein, jogos de ordenamento jurídico.

Perelman desenvolveu tese assemelhada à de Viehweg, percebendo que a interpretação do Direito não se basta apenas ao ordenamento jurídico em si, mas considerando a realidade subjacente, o caso concreto, do qual o Direito parte e ao qual se dirige. Realiza, nessa esteira, críticas à existência de uma lógica jurídica estritamente formal, defendendo o estudo de uma nova retórica e da argumentação jurídica como forma de se alcançar uma resposta (não “a” resposta) ao problema posto, levando em conta o debate dialético dos envolvidos (auditório), que seria a mais “razoável, aceitável e equitativa” (PERELMAN apud LACERDA, 2006, p. 46) e, muito embora não comprovável, persuasiva: aceita-se que a lógica jurídica seja a lógica do razoável.

3 HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL: LIMITES DO LIMITE

A Constituição é a fonte e o limite do poder do Estado. Assim também do Poder Judiciário. Entretanto, não há um conceito unívoco que emane da Constituição, principalmente por ela constituir-se de princípios de alta carga axiológica e abstrata, de modo que todos os seus preceitos, como tudo o mais pertencente ao mundo, também devam passar pelo crivo da interpretação do homem, como forma de se realizar sua efetivação. Em assim sendo, é de relevante importância que se realize um estudo da interpretação constitucional, como forma de fixar os limites do próprio entendimento que se tem da Constituição, que, reafirme-se, não são unívocos. Nisso consiste a Hermenêutica Constitucional, como sendo a Teoria da Interpretação da Constituição.

205José Henrique Zamai

O Poder Judiciário, que toma preponderante papel na interpretação da Constituição, principalmente após Marbury v. Madison e a concretização da jurisdição constitucional no Neoconstitucionalismo, deve observar determinados limites nessa atividade hermenêutica, sob pena de desnaturar sua função. Vale sempre a advertência de Carl Schmitt (SCHMITT apud DIMOULIS; LUNARDI, 2013, p. 466) de que “o guardião da Constituição torna-se facilmente seu Senhor”. Relevante papel tem a teoria de Konrad Hesse nesse empenho, verificam Paulo Gonet Branco e Gilmar Mendes (2012, p. 105) bem como Brum (2010, p. 66-67), principalmente, nos esforços de demonstrar a força normativa da Constituição, que comunga de interesse ao que pretende o Controle de Constitucionalidade e o entendimento que deve balizar o seu parâmetro, qual seja, a Constituição em face de sua posição vinculativa perante o ordenamento jurídico. Esse é o arranjo hermenêutico, na esteira de Konrad Hesse - que retira fundamentos de Gadamer, conforme verifica Schier (1997, p.41) -, apresentado por José Joaquim Gomes Canotilho (1993, p. 226 – 229), que, sem olvidar a evolução pela qual a Hermenêutica Jurídica passou, com a superação dos métodos interpretativos clássicos abre espaço para um arranjo de seis pilares a guiarem a atividade dos juízes diante da Constituição. Nesse sentido, o arranjo hermenêutico-concretizador proposto por Hesse-Canotilho, segundo definição própria, constitui-se de um Catálogo-Tópico de Princípios da Interpretação Constitucional, como sendo uma série de lugares comuns previamente fixados e surgidos de um debate dialético na doutrina constitucional, que auxiliarão o intérprete constitucional em seu empenho. Canotilho (1993, p. 226) justifica a eleição desses seis pilares (ou princípios) por serem eles relevantes para a resolução de problemas práticos, operativos entre os conceitos formal e material de Constituição, e praticáveis dentro dos próprios limites da Constituição. São os princípios: da unidade da Constituição; do efeito integrador; da máxima efetividade; da justeza ou conformidade funcional; da concordância prática ou da harmonização; e da força normativa da Constituição, conforme listados, também, por Gilmar Mendes (2012, p. 105-107). O princípio da unidade da Constituição postula a necessidade de o intérprete considerar a Constituição como um todo, durante o exercício hermenêutico, como forma de evitar contradições internas e, sempre que possível, amenizar as tensões havidas entre essas normas, que se consideram integradas em um bloco. Valiosa é a indicação de Eros Grau de que “não se

206 OBJETIVAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO EHERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

interpreta o direito em tiras, aos pedaços” (apud BRANCO, MENDES, 2012, p. 105). O princípio do efeito integrador indica que a interpretação se guie para o reforço da unidade política e o favorecimento à integração política e social, sem que isso queira dizer na planificação de interesses políticos da sociedade, o que tenderia a uma interpretação autorizativa de totalitarismos, mas antes uma forma de conglomerar esses vários interesses de maneira integrada, dando aplicação a conceitos materiais de Democracia. O princípio da máxima efetividade procura, através da interpretação, dar à Constituição um sentido que favoreça sua eficácia, isto é, que promova sua realização e concretização plenas. Geralmente encontram maior uso diante das chamadas normas constitucionais programáticas, que sejam, aquelas que necessitam de implemento pelo administrador ou pelo legislador; mas tem encontrado aplicabilidade positiva na defesa das garantias fundamentais, na medida em que essas garantias devam ser interpretadas na razão que lhes dê maior eficácia. Por sua vez, o princípio da conformidade funcional indica que a interpretação não pode resultar em resposta que indique a subversão do sistema de repartição de funções entre pessoas e órgãos, conforme definição da própria Constituição. É um princípio interpretativo que resta protetor da Separação dos Poderes. O princípio da harmonização impõe a necessidade de coordenação entre as normas constitucionais como forma de se evitar que o valor de uma aniquile o valor da outra. Assim, é necessário que “o alcance das normas seja comprimido até que se encontre o ponto de ajuste de cada qual segundo a importância que possuem no caso concreto” (BRANCO, 2012, p. 108). Por fim, o princípio da força normativa da Constituição estabelece que a interpretação se dê segundo o vetor histórico vivido, como forma de garantir a atualização constante do texto constitucional (e, portanto, sua maior eficácia e permanência). Em síntese, esses princípios, como próprio Catálogo de Topoi que se intentam ser, servem de referência (e não de regra, de método) ao intérprete, que, com base neles, apenas conseguirá trazer para um contexto mais racional a discussão da própria Constituição, como forma de garantir a segurança jurídica, emanada do próprio sistema jurídico a que se filia. Nas palavras de Konrad Hesse, através desse exercício interpretativo, referenciado por tais balizas, muito embora não seja possível chegar a uma resposta necessária, chegar-se-á a uma resposta “explicável, convincente e até certo ponto previsível” (apud

207José Henrique Zamai

BRANCO, 2012, p. 109). Esta será a resposta certa à Constituição, conforme propôs Gadamer. Outra linha de pensamento a ser levantada é a proposta por Peter Häberle (2002, p. 11-28), acerca da abertura da Hermenêutica Constitucional à sociedade, criando na Corte Constitucional um espaço plural de discussão acerca do entendimento que se tenha da Constituição, englobando, mais do que a interpretação dos órgãos estatais, também a interpretação da sociedade (cidadãos, interessados, experts, órgãos de classe etc). Tal postura, entretanto, não deságua necessariamente no entendimento de que a Constituição tem um significado para cada intérprete, o que levaria a uma contrariedade do princípio já exposto da unidade da Constituição. De outro lado, como referencial, Catálogo de Topoi, que é a Constituição para o ordenamento jurídico, constrói-se dialeticamente, não sendo necessária a quebra de sua unidade para conjunção do pluralismo social, mas o seu albergue em um ambiente de discussão pública, diálogo e consenso, no qual cada intérprete realiza sua função na interpretação geral da Constituição. Do que se conclui e percebe de sua essência, o arranjo hermenêutico proposto por Gadamer, Hesse, Canotilho e Häberle é um projeto hermenêutico ainda em desenvolvimento pela Teoria Constitucional. Segundo ele, é essencial que a Constituição verifique, para sua própria sobrevivência e para que tenha força, a realidade subjacente ao Direito, à qual se aplica, o que importa um constante repensar da Constituição por seus intérpretes. Conforme essa postura, pensar a Constituição, mais do que aceitar a sua relevância no ordenamento, é procurar concretizá-la na realidade, transformando um conceito formal em um conceito prático, atuante e tangível, o que, nesse sentido, suscita a ampliação de sua interpretação e, logo, a aceitação do seu entendimento em um ambiente ampliado de discussão. No caso do STF, Corte Constitucional e intérprete final da Constituição no Brasil, a existência dos já mencionados mecanismos de pluralização, seja através da necessidade de comprovação de repercussão geral, mas também a convocação de audiências públicas e o instituto do amicus curiae, levam a crer que o ambiente de discussões foge ao processo subjetivo no qual foi levantada a questão de constitucionalidade e se torna coletivo, englobando toda a sociedade, pois não se discute apenas as consequências da Constituição no processo, discute-se a própria Constituição, de modo que a decisão nesse contexto plural não tenha fundamentos para se limitar a um caso concreto em específico.

208 OBJETIVAÇÃO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO EHERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

4 MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL: QUANDO A INTERPRETAÇÃO MUDA A CONSTITUIÇÃO

A interpretação constitucional e, portanto, também a Hermenêutica Constitucional, tomam grande relevo quando dessa atividade interpretativa dos Tribunais, em especial das Cortes Constitucionais, surge um entendimento capaz de alterar entendimento anterior da Constituição, diante do que se faz imperativo o estudo das chamadas mutações constitucionais. De uma maneira geral, concluem Barroso (2011, p. 145-149), Santana (2011, p. 71-73) e Zandonade (2001, p. 195-199) que a doutrina acorda que mutação constitucional é um processo informal de modificação da Constituição, na medida em que atualiza a norma constitucional à realidade subjacente, sem alterar o texto, o que somente estaria autorizado por processos formais de reforma (como é o caso das emendas e da já ocorrida revisão constitucional, conforme previsão e limites expressos na Lei Maior), adequando uma necessidade de permanência constitucional (ligada ao conceito de segurança jurídica) à continuidade histórica que movimenta a sociedade. Assim, por ser um meio de modificação da Constituição, ainda que não aparente e desvelado por adições ou cortes textuais, a mutação constitucional se fundamenta no que a doutrina, a partir de Georges Burdeau, convencionou chamar de poder constituinte difuso, o qual seria, ao lado do poder constituinte originário e do poder constituinte reformador, uma terceira forma de poder constituinte que se exerce informal, continua e permanentemente, em regra, pelo povo, e que vive a realidade que se altera, mas exteriorizada através dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e, principalmente, Judiciário). Deveras, sendo a mutação constitucional a atividade de um poder constituinte de segunda ordem, diferentemente do poder constituinte originário, possui certos limites a observar em sua realização, sob pena da mutação constitucional ser inconstitucional. Do que decorre do próprio conceito, o primeiro limite a ser fixado é o de que a mutação constitucional não altera o texto da constituição, pois, sendo processo informal, de atualização, muda o sentido que se dê ao texto, sem alterar qualquer expressão do texto em si, conforme sintetiza Zandonate (2001, p. 201). De outro lado, a doutrina insiste em realizar a afirmação de que a mutação constitucional encontra barreira na própria Constituição. Não parece essa forma ser a mais acertada, na medida em que, a Constituição, nesse caso, estaria sendo colocada tanto como objeto, quanto parâmetro da atividade mutante, o que pode ocasionar dúvidas. Assim, o que se percebe

209José Henrique Zamai

é que, enquanto a mutação parte e se dirige à própria Constituição, está em verdade, se falando de um processo interpretativo, desaguando os limites da mutação, nos limites próprios da interpretação constitucional, leciona Barroso (2011, p. 150-155). Esses limites variarão, portanto, segundo a teoria interpretativa adotada. Da perspectiva que se vem adotando nessa pesquisa, segundo a evolução da Hermenêutica Jurídica e a eleição do esquema apresentado por Hesse-Canotilho, esses limites são estabelecidos segundo o referencial tópico dos seis pilares. O que disso decorre é o entendimento de que a mutação constitucional é um instrumento de atualização constitucional, que encontra limites no texto constitucional (não podendo alterá-lo), e em referenciais hermenêuticos, capazes de admitir a concretização constitucional à realidade social vigente, sem vilipendiar um espírito constitucional essencial. No contexto da mutação do art. 52, X/CF 88, não há um desrespeito ao arranjo hermenêutico adotado. O princípio da unidade da Constituição passa a ser aplaudido, na medida em que se corrige um descompasso existente entre as consequências do Controle de Constitucionalidade nas modalidades difusa e concentrada, não havendo porque suscitar os efeitos mais abrangentes de um em relação aos do outro, quando, ainda que, por vias diversas de acesso, a Corte Constitucional é instada a manifestar-se acerca da Constituição.

Também não é desrespeitado o princípio do efeito integrador, pois, como foi amplamente discutido, o STF torna-se um ambiente coletivo a enfeixar as diversas nuances do pluralismo social, comungando-as num entendimento aceito e convincente de Constituição. O princípio da máxima efetividade, também, passa a ser prestigiado pela referida mutação, na medida em que a decisão do STF torna-se definitiva e geral, não sendo necessária a burocracia para que o Senado Federal, com margem de conveniência, decida sobre ela, ou seja, decida se uma interpretação final do STF é ou não geral, o que obsta a efetividade da Constituição, na medida em que obsta o espraiar de seu entendimento. No que tange ao princípio da conformidade funcional, surgem dúvidas acerca de haver ou não violação à Teoria da Separação dos Poderes pela referida mutação. A relativização da Teoria Tripartite, há muito já admitida, não deixa espaço para questionamentos acerca de possíveis e eventuais violações a tal princípio. Há, em verdade, verdadeira regra de controle funcional dos Poderes, que é fomentada pela mutação, na medida em que a reprimenda ao Poder Legislativo não deva voltar à discussão, para ser ou não admitida. O princípio da harmonização também é prestigiado pela mutação,

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na proporção em que harmoniza o entendimento firmado aos efeitos do Controle de Constitucionalidade realizado perante o STF, independentemente da via utilizada para levantamento da questão. Por fim, verifica-se que não há desrespeito ao princípio da força normativa da Constituição, mas fomento de sua aplicação, na medida em que a decisão de inconstitucionalidade de efeitos genéricos alberga, entende e concretiza a força constitucional perante a sociedade, não admitindo a aplicação diversa da Constituição, para uma mesma lei, por critério do legislador, que é o principal criticado pelo Controle de Constitucionalidade.

5 CONCLUSÃO

Assim, na importância que se reveste o aparato hermenêutico (de uma perspectiva fundada na Filosofia Pragmática) para a adequação do Direito ao caso concreto (diante do qual adquire sentido), é legítima a perspectiva de que a decisão de inconstitucionalidade há de adquirir relevância singular, não podendo, por simples questão de forma (que está superada pela realidade), depender do aval legislativo para atingir suas finalidades. Malgrado esteja a se discutir um caso concreto em um processo subjetivo, não se pode olvidar a existência (hoje aceita até mesmo enquanto necessidade diante do abarrotamento do Poder Judiciário) de aparatos processuais capazes de filtrar desse único caso a transcendência de interesses para a coletividade, seja através da necessidade de prequestionamento, mas principalmente através da comprovação de repercussão geral, o que expande o auditório interessado, a ser chamado para participar dialeticamente da construção da decisão (possibilidade de amicus curiae e das audiências públicas).

De outro ponto de vista, este mais pragmático, é através da decisão de inconstitucionalidade no âmbito incidental que o juiz tem melhor oportunidade de manejar a realidade subjacente ao Direito, sopesando-a em sua decisão, o que corresponde à perspectiva hermenêutica atual.

Assim, a suscitada mutação do art. 52, X/CF 88 está em conformidade com o arranjo hermenêutico que se espera na modernidade, na medida em que, analisando a Constituição aplicada à realidade subjacente, em um auditório amplo (STF), dá a este um entendimento de Constituição, a balizar as futuras e demais relações sob sua égide firmada, como verdadeiro Catálogo de Topoi que é a Constituição para o ordenamento jurídico.

211José Henrique Zamai

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OBJECTIFICATION OF THE CONSTITUTIONALITY APPEAL AND CONSTITUTIONAL HERMENEUTICS.

ABSTRACT

The paper aims to analyze the constitutional mutation occurred from the trial of the Complaint 4.335-5/AC, in which was raised the possibility of the Supreme Court to give its unconstitutionality decisions, said during difuse Judicial Review, erga omnes effects, sparing the need of Senate to manifest. Therefore, the discussion guides itself through the concepts of Constitutional Hermeneutics, checking its historical development and launching a current project, based on the theories of pragmatic philosophy and legal theories of Konrad Hesse and Peter Häberle intending to demonstrate that giving generic

215José Henrique Zamai

effects to an unconstitutionality decision of the Supreme Court conforms itself to the current hermeneutic theories.

Keywords: Objectification of the Constitutionality Appeal. Complaint 4.335-5/AC. Constitutional Hermeneutics.

POSSE: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DAS TEORIAS DE SAVIGNY E IHERING E DO

REGIME DA FUNÇÃO SOCIAL

Mariana Maria de Carvalho MattosAcadêmica do 8º período do curso de Direito da UFPR

Marcela Macedo FéderAcadêmica do 8º período do curso de Direito da UFPR

RESUMO

Há muito tempo se discute a temática relativa ao instituto possessório e sua aplicação em âmbito jurídico. Além de debates de ordem prática, diversos autores questionam a natureza jurídica do referido instituto, bem como tentam explicar tal fenômeno conforme o entendimento predominante de cada contexto histórico. Verifica-se, com efeito, que o contexto atual demanda uma interpretação mais branda da posse, se comparado com o entendimento que reinava à época de supervalorização do individualismo dentro do direito civil. A mudança que se pretende demonstrar, pois, assume extrema relevância jurídica por dar novo enfoque ao tratamento da posse dentro do direito civil e direito constitucional.

Palavras-chave: Posse. Savigny. Ihering. Função Social. Teorias Sociais da Posse.

218 POSSE: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DAS TEORIAS DE SAVIGNYE IHERING E DO REGIME DA FUNÇÃO SOCIAL

“Não ha, certamente, assumpto em todo direito privado, que tenha, mais irresistivelmente, captivado a imaginação dos juristas do que o da posse;

mas tambem, difficilmente, se encontrará outro, que mais tenazmente, haja resistido á penetração da analyse, ás elucidações da doutrina.”

(Clovis Beviláqua)1 INTRODUÇÃO

O estudo do instituto jurídico da posse está atrelado a diversos fatores que nem sempre são vistos de uma mesma forma pela doutrina, apresentando distintas vertentes de explicação. Aparte das discussões que envolvem a terminologia e a natureza jurídica da posse, as teorias que surgiram no século XIX para explicar esse fenômeno trazem à tona o debate que já perdura por mais de dois séculos: a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de Ihering.

De modo algum pode-se dizer que elas se anulam, isto é, não raramente são adotadas conjuntamente. O Código Civil brasileiro adotou a teoria objetiva, mas não sem alguma controvérsia. Há, em termos gerais, um consenso doutrinário dessa adoção, no entanto isso não exclui a importância de compreender a construção teórica tanto de Savigny como de Ihering, bem como as suas divergências.

Para além da normativa brasileira, os Códigos francês, italiano, alemão e português também não deixaram de adotar tais teorias para a construção de seus próprios ordenamentos, cada qual adstrita às suas próprias especificidades.

Outrossim, para efetuar um estudo completo da posse, atualmente, é importante esclarecer que este não deve ser pautado tão somente a partir do art. 1.196 do Código Civil brasileiro, mas também à luz do texto constitucional que, desde a Constituição Federal de 1988, passou a tutelar o instituto da posse e demais matérias relacionadas, principalmente através da previsão da função social da propriedade, exarada no art. 5º, inciso XXIII.

Verifica-se que somente essas duas teorias não são suficientes para disciplinar o instituto da posse, que ao longo dos anos ganhou novas feições, visto que o contexto em que foram produzidas, essencialmente sob uma perspectiva romanista, não é mais o mesmo, implicando adaptações doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas.

Destaca-se que anova constituinte brasileira trouxe à figura da posse uma leitura renovada, seu papel tornou-se independente. Das transformações sociais surgiu a necessidade de teorias que reconhecessem sua relevante

219Mariana Maria de Carvalho Mattos - Marcela Macedo Féder

densidade social. Nesse contexto, parece indispensável abordar as principais teorias sociais da posse. Por enxergarem a posse como uma categoria social, a qual se apresenta como uma relação ético-social canalizam tais teorias uma maior força social ao instituto, o que parece indispensável para a concretização de direitos no Brasil, país de imenso território e estagnação das classes sociais.

2 A TEORIA DE SAVIGNY

A tese desenvolvida por Friedrich Karl von Savigny ficou conhecida como teoria subjetiva da posse. No “Tratado da Posse” (1803), Savigny expôs sua tese eminentemente de cunho romanista e estabeleceu um marco significativo para o estudo da posse. Não é de se estanhar a importância que o estudo de suas ideias tem até hoje – não tendo sido esquecidas nem em face da concepção oposta de Ihering. Neste sentido, Orlando Gomes (2008) reconhece que:

Mesmo aqueles que não aceitam a sua teoria são, a cada passo, surpreendidos com a persistente penetração de seus conceitos, numa interferência indesejada, mas irresistível. Concessões ao seu sistema se encontram em todos os Códigos que preferiam a doutrina oposta.

Segundo Savigny, a posse, para se caracterizar, teria como principal elemento o animus domini, ou seja, a percepção que o possuidor tem como se dono da coisa fosse. Com efeito, o elemento psíquico (animus) é o elemento central da formulação teórica, por isso leva o nome de teoria subjetiva.

A posse estaria configurada quando reunidos dois elementos: o corpus e o animus. O corpus supõe a apreensão e consiste no poder físico da pessoa sobre a coisa; o animus é o elemento interno representado pela intenção de ter a coisa como sua. A presença do corpus é necessária, mas não suficiente; o mesmo com o animus, de modo que a posse estaria configurada apenas quando reunidos esses dois elementos (essa é denominada posse civil). Se não houvesse animus, então não estaríamos diante da posse, mas sim da detenção. A naturalis possessio trata dessa figura, quando não há vontade de ter a coisa como sua e, em decorrência disso, não há produção de efeitos jurídicos tampouco o direito de tutela possessória.

O mérito de Savigny consiste em conceber um conceito de posse no qual ela tem autonomia diante da propriedade. Sob essa perspectiva, “o uso

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dos bens adquire relevância jurídica fora da estrutura da propriedade privada” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 37). Deste modo, o amparo jurídico possessório vai para além da figura do proprietário, englobando também o possuidor.

Por outro lado, o elemento anímico excessivamente considerado levou às maiores críticas recebidas por Savigny, no sentido de que tal elemento seria de difícil identificação e valoração, quando tomado em um caso concreto, além de limitar em grandes proporções o rol de possuidores. Em suma, tais foram as razões pelas quais a teoria de Ihering foi amplamente recepcionada pela doutrina e jurisprudência.

3 A TEORIA DE IHERING

Rudolph Von Ihering foi o autor da teoria objetiva, demonstrando uma nova forma de apreensão do instituto da posse. Nesta teoria, o elemento animus, verificado na teoria de Savigny, desaparece da equação, razão pela qual ela é conhecida como teoria objetiva.

O reconhecimento da posse, para Ihering, depende (i) da relação exterior estabelecida entre a coisa e o possuidor (corpus) – suficiente para dar ao possuidor o poder de adotar as medidas protetivas que da posse decorrem– e (ii) da vontade de proceder como proprietário, coerente com a destinação econômica que se dá à coisa.

Com efeito, o locatário não tem e nunca terá animus domini, porque este equivale ao elemento interno psíquico de possuir uma coisa como se fosse sua e o locatário tem conhecimento de que a coisa não é sua. Do mesmo modo ocorre com o comodatário, o depositário e o mandatário, todos sabem que não são proprietários da coisa – e ainda assim são possuidores. A chave para compreensão da teoria objetiva reside exatamente nesse fato: a tutela possessória independe do animus domini, pois compreende todos aqueles que se configuram como possuidor, dando ao bem a destinação econômica que ele merece. Deste modo, a presença ou ausência do animus domini é irrelevante para o juízo possessório.

Em Ihering, a posse é passível de ser reconhecida externamente mediante a destinação econômica que é dada ao bem, “independente de qualquer manifestação volitiva do possuidor” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 38).

Isto posto, é suficiente o agir do possuidor, quanto ao poder fático sobre a coisa, ser equivalente ao do proprietário. O fator psicológico pouco

221Mariana Maria de Carvalho Mattos - Marcela Macedo Féder

importa para a teoria objetiva. Ademais, Ihering inseriu um elemento desqualificador da posse

para representar a diferença entre a figura do possuidor e a figura do detentor, distinção a qual foi incorporada pelo Código Civil brasileiro de 2002 no art. 1.198. O elemento diferenciador entre a posse e a detenção não é o animus, como em Savigny, mas uma previsão legal, “Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas”.

A expressão relação de dependência faz referência à relação de subordinação jurídica do detentor em face do possuidor, visto que aquele conserva a posse em nome deste, isto é, o possuidor tem posse em nome próprio e o detentor tem posse em nome de outrem. O detentor é aquele que tem o exercício da posse impedido em face de certas relações.

Em suma, na teoria desenvolvida por Ihering, a posse é tida como simples exercício da propriedade, isto é, onde não há propriedade, não pode haver posse. Por esta razão ela não é reconhecida como um instituto jurídico autônomo. Neste sentido, essa teoria é claramente um retrocesso em face das ideias de Savigny, e por isso mesmo há quem defenda que não foi adotada integralmente pelo Código Civil de 2002.

4 O INSTITUTO DA POSSE NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002

Em face das mudanças econômico-sociais ao longo dos anos, atualmente as teorias que foram recepcionadas amplamente por diversas ordenações na regulamentação da posse, principalmente no século XIX, são, sem dúvida alguma, necessárias, mas não suficientes para dar conta da disciplina do instituto da posse.

No que tange ao Código Civil brasileiro, verifica-se que a teoria objetiva de Ihering foi, desde logo, adotada na definição da posse exarada no art. 485 do CC/1916, redação essa que se manteve inalterada quanto ao seu sentido no art. 1.196 do CC/2022, in verbis “Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

Em relação ao Código Civil de 1916, o mestre Pontes de Miranda (2012, p. 62) destacou que “para a teoria da posse, segundo os arts. 485-523, o que importa é a senhoria da coisa, o estado de fato, a situação real, o poder fáctico sôbre a coisa”.

222 POSSE: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DAS TEORIAS DE SAVIGNYE IHERING E DO REGIME DA FUNÇÃO SOCIAL

A posse, portanto, é a exteriorização pelo possuidor de algum poder decorrente da propriedade (direito de usar, fruir, dispor e reivindicar). Em outras palavras, “a posse nada mais é que o modo por que a propriedade é utilizada; a relação de fato estabelecida entre a pessoa e a coisa pelo fim de sua utilização econômica” (FULGÊNCIO; VIANA, 2008. p. 6).

Entretanto, parte da doutrina civilista, incluindo Luiz Edson Fachin, entende possível uma interpretação segundo a qual a teoria subjetiva de Savigny teria sido incorporada pelo CC/2002 no instituto da usucapião, de modo que a teoria objetiva, por mais que prevaleça, não teria sido recepcionada integralmente pelo legislador.1

A posse ad usucapionem é necessariamente uma posse que contém elementos objetivos e subjetivos. Ela deve ser uma posse com animus domini (elemento subjetivo), que não significa a pessoa achar que é proprietária, mas agir como tal, havendo a pretensão de obter o domínio para si. Assim, o elemento subjetivo seria essencial, em conjunto com os demais requisitos dispostos no CC, para que fosse caracterizada a aquisição da propriedade mediante a usucapião.

No que tange à classificação da posse, pode-se afirmar que ela consiste no exercício dos poderes inerentes ao bem. Não questiona o legislador, para aferir a existência ou não do ato de posse, se o agente quer ou não possuir, ou se há um elemento subjetivo que possa qualificar a posse; ela existe pelo uso, pela fruição ou disposição. Pouco importa a vontade voltada ao seu exercício.

Se analisarmos a posse segundo a teoria do fato jurídico, conclui-se que ela é um ato-fato. Ato-fato é uma circunstância material que tem uma circunstância jurídica intrínseca à ela. O ato-fato vai do plano da existência para a eficácia (não passa pelo plano da validade), e como o direito afere vontade apenas no plano da validade, não há de se falar em elemento volitivo para configuração da posse.

Tal esclarecimento se faz importante na medida em que a qualificação da posse torna possível a investigação dos seus efeitos na realidade

1 Sobre o posicionamento adotado pelo Código Civil brasileiro, o Prof. Orlando Gomes ressalta que “não é possível afirmar-se que o sistema objetivo foi adotado em toda a sua pureza original. Embora esse sistema não se concilie com a doutrina subjetiva, foram feitas algumas concessões, de sorte que a fidelidade ao objetivismo não foi absoluta.” (GOMES, Orlando. op. cit., p. 39.)

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fática. Mas essa realidade fática é dinâmica, até porque está sujeita a mudanças sociais e econômicas, de forma que está constantemente em transformação.

5 MUDANÇA METODOLÓGICA – A REPERSONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO

Desde o começo do presente artigo se falou que as teorias esmiuçadas acima não seriam suficientes para tutelar a posse em face das circunstâncias hoje incorporadas e inerentes à sociedade.

Historicamente, observa-se que as teorias subjetiva e objetiva do século XIX surgiram em um contexto em que o “ter” era superior ao “ser”. À época reinavam os ensinamentos da Escola do Positivismo Jurídico, de modo que “a posse era exteriorizada através de um conjunto de regras hermenêuticas” (SAMPAIO, 2011, p. 12), fundada no método empírico e na ideia de supremacia do direito positivo em face do direito natural.

O Prof. Luiz Edson Fachin (1988) explica que nesse período teve início a circulação de ideias liberais e de caráter individualista, de maneira que

Não é difícil conectar a concepção de posse como exteriorização do domínio e a exacerbação do individualismo vigente naquele momento histórico, isto porque a proteção possessória assegura ao indivíduo – o proprietário – meios eficazes para garantir seu poder.

Influenciado pelo posicionamento adotado pelos Códigos francês e alemão, o Código Civil de 1916 apresentou ideias de cunho individualista e patrimonialista: a propriedade era o mais absoluto dos direitos.

Entretanto, o pós Primeira Guerra Mundial trouxe, com a crise econômica e política, uma crise intelectual, que afetou diretamente o positivismo e a jurisprudência na Alemanha. Segundo a autora Ana Rita Vieira Albuquerque (2002):

A partir de então, já não bastava a preocupação com a completude através de conceitos abstratos, a exemplo do direito de propriedade, direito das coisas, direito real limitado, direito subjetivo, mas a construção da dogmática conectada às diferenças conceituais, como também à concepção do Direito dentro de uma realidade social.

Com a superação do positivismo jurídico e entrada em cena do pós-

224 POSSE: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DAS TEORIAS DE SAVIGNYE IHERING E DO REGIME DA FUNÇÃO SOCIAL

positivismo, observou-se uma mudança paradigmática: a Constituição Federal de 1988 promoveu uma reconstrução do direito, permitindo a penetração de direitos fundamentais no âmbito de regulamentação do direito civil, dando início a um processo de interpretação do direito privado à luz do texto constitucional.

A despatrimonialização do direito civil implicou na sua repersonalização, com a introdução da função social como princípio reitor da propriedade e dos contratos. Com efeito, a disciplinada posse não ficou excluída desse processo, ou seja, a partir de então a interpretação do direito privado estaria incompleta se fosse feita apenas sob a ótica do Código Civil, havendo a necessidade de que fossem observadas as disposições constitucionais na aplicação e interpretação da legislação civilista. Neste sentido, ensina o ilustre Prof. Fachin (2015):

A Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX, em especial, do Código Napoleônico, migrando para uma concepção em que se privilegia o desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas relações interpessoais.

Diante dessa nova perspectiva, as teorias de Savigny e Ihering tornaram-se “insuficientes para extrair o necessário dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição” (SAMPAIO, 2011, p. 13). Por sua vez, as novas teorias fundamentadas na ideia geral da função social da posse permitiram uma reinterpretação do instituto da posse, dessa vez tomando com mais importância os valores sociais inerentes a este instituto e reafirmando o caráter autônomo da posse em face da propriedade.

6 AS TEORIAS SOCIAIS DA POSSE

Conforme abordado no ponto anterior, ainda que muito debatidas e amplamente estudadas, com o tempo as teorias de Savigny e Ihering mostraram-se insuficientes para exprimir a densidade do instituto possessório.

Com isso, novas teorizações surgiram a partir do início do século passado, intituladas “teorias sociológicas da posse”. Essas deram à posse caráter de autonomia em relação à propriedade, reinterpretando o instituto de acordo com os valores sociais nele impregnados e visualizando-a como um

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poder fático de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida. Assim, passou-se a dar ênfase ao caráter econômico e à função social da posse.

Nesse contexto, dentre outros, destacam-se os teóricos Silvio Perozzi, Raymond Saleilles e Antônio Hernández Gil.

Silvio Perozzi vê a posse como um fenômeno social, isto é, como “um poder ou a plena disposição de fato de uma coisa, e um estado capaz de durar indefinidamente, desde que não advenham circunstâncias aptas a fazê-lo cessar” (PEROZZI apud ALBUQUERQUE, 2002, p. 121).

A posse seria reconhecida e fundamentada pela coletividade: a partir de um plano negativo, dependeria a posse da abstenção de todos do uso e gozo de alguma coisa que teria um titular, apresentando-se como aparentemente não livre; deste plano, resultaria uma faceta positiva da posse, “que consiste na plena liberdade de ação do possuidor com a coisa” (ALBUQUERQUE,2002, p. 122), que dela dispõe de fato.

Por isso, não considera o autor a posse como uma relação de direito, e sim de fato. A posse seria um produto da sociedade, não sendo necessária a sanção estatal para que ela se estabeleça, pois ela é advinda do progresso da civilização que respeita a paz social. Contudo, esta definição dá à posse apenas a liberdade factível, podendo cessar por ato arbitrário decorrente das relações sociais.

Desta maneira, é possível aferir que o fundamento da posse se diferencia de acordo com a teoria adotada. Na teoria social, a coletividade fundamenta a posse ao reconhecê-la, sendo verificada de maneira espontânea e social. Já nas teorias clássicas de Savigny e Ihering, o possuidor se enxerga como proprietário, assim fundamentando o instituto.

Ainda que mais sensível ao fator social do que as demais, a teoria de Perozzi recebeu críticas por se caracterizar, segundo Fernando Luso Soares, como uma diretriz sociológica hesitante, com caráter idealista que na realidade fática dificilmente se sustentaria.

De certa forma superando os apontamentos de Perozzi, surge a teoria de Saleilles (1909):

(...) como uma teoria que liberta a posse do seu confinamento jurídico ao direito de propriedade, restituindo a sua finalidade econômico e social imanente e dependente apenas dos costumes sociais e das diferentes relações jurídicas que unem o homem à coisa que explora.

Existe nesta construção teórica um animus possidendi que se

226 POSSE: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DAS TEORIAS DE SAVIGNYE IHERING E DO REGIME DA FUNÇÃO SOCIAL

configura por uma vontade abstrata, modelada pelo fato e pela causa jurídica da posse. Há vontade de realizar o corpus, de explorar economicamente a coisa, ou seja, a posse se revelaria quando da apropriação econômica da coisa por parte do possuidor, quando houvesse vínculo econômico entre o indivíduo e a coisa. Por isso a posse se distingue da detenção, não mais por uma previsão legal como em Ihering, mas por seu vínculo econômico e social, ausente na segunda.

A posse, nesta visão, deveria ser estudada em relação aos costumes de dada época, levando em conta o seu papel econômico e social, respeitando a pertinência moral e a opinião pública. Isto se justifica pois, segundo o autor, haveria uma consciência coletiva da posse, a qual se estabeleceria a partir da vontade individual do possuidor, que deveria ser respeitada, porque os demais indivíduos da sociedade também teriam a necessidade de apropriação e exploração das coisas.

É inegável que a teoria da posse de Raymond Saleilles como apropriação econômica das coisas tem pontos de convergência com a teoria objetiva de Ihering. Porém, elas divergem consideravelmente no que concerne à justificação do instituto possessório. Para Ihering, seria a posse uma exteriorização da propriedade, protegida em sua homenagem, enquanto que para Saleilles ela se desvincularia totalmente da propriedade, e sua proteção seria um “direito decorrente apenas da posse em si mesma e não em homenagem ao direito de propriedade” (ALBUQUERQUE, 2002, p. 131).

Por derradeiro, com a obra La Posesión (1987) o espanhol Antônio Hernández Gil apresenta uma teoria da posse que fortalece ainda mais seu caráter de direito dotado de função social. Afirma o autor que a posse é a instituição jurídica de maior densidade social.

A partir disso, o ator critica a posição adotada por Savigny, para o qual a posse seria em parte fato e também direito. Para Gil, “a posse implica um poder e uma tutela jurisdicional, embora nutrida de grande conteúdo fático” (ALBUQUERQUE, 2002, p. 135). Deve a posse ser entendida como um direito real, porque nela “encontramos a pessoa em sua manifestação de contato com o mundo exterior, como forma indispensável da utilização dos bens” (ALBUQUERQUE, 2002, p. 139).

É possível aferir, portanto, que para o autor a posse revela uma necessidade primária do homem, qual seja, a apropriação daquilo que lhe é necessário. Encontra-se nela uma função social com pressuposto e fim, justificados pelo fator social presente nas relações humanas e pela indagação da finalidade do instituto.

227Mariana Maria de Carvalho Mattos - Marcela Macedo Féder

Tendo em vista esses apontamentos, conclui o autor que a posse contém uma força social que deve ser aproveitada para uma maior homogeneização dos grupos humanos. Deve ela ser utilizada como base de uma política de justiça social implantada pelo Estado, de modo que possa ser garantido o desfrute de bens indispensáveis. Estaria a posse “ao serviço das grandes exigências de todo ser humano, que são a necessidade e a liberdade” (PEROZZI apud ALBUQUERQUE, 2002, p. 140).

7 CONCLUSÃO

A posse e a propriedade são temas que sempre foram objeto de discussão na doutrina e jurisprudência e não há qualquer perspectiva que indique que vão deixar de ser. O objetivo central do trabalho era de demonstrar sucintamente algumas das principais problemáticas relacionados ao instituto jurídico da posse, quais sejam, o eterno embate entre as teorias subjetiva de Savigny e objetiva de Ihering, desenvolvidas ambas no contexto pós-clássico do Direito Romano, mas com conteúdos diametralmente opostos e, em segundo lugar, a mudança de perspectiva provocada por uma realidade social que deu início a um processo de constitucionalização da norma civil, dando maior margem à aplicação de teorias sociológicas, que fortaleceram os interesses sociais dando maior enfoque nos princípios constitucionais.

Por mais que já houvesse discussões teóricas sobre a posse antes da teoria de Savigny, esta enriqueceu consideravelmente o debate, que acabou sendo em torno da teoria subjetiva e objetiva, depois de Ihering, que questionou a necessidade do elemento volitivo de Savigny para configuração da posse.

Percebe-se que hoje, havendo unanimidade doutrinária de que o CC/2002 teria adotado a teoria objetiva em quase a sua totalidade, a preocupação do jurista, no que concerne ao tema da posse, é dar a ela tratamento constitucional, afinal, o Código Civil também é destinatário da norma suprema.

A função social da posse, vista sob a ótica da Constituição Federal, conforme destaca Ana Rita Vieira de Albuquerque, é um instrumento de afirmação da cidadania, na medida em que concretiza o direito fundamental à moradia, valoriza o aproveitamento do solo e lança mão de meios eficazes de erradicação da pobreza. Deve-se fazer valer os direitos fundamentais na tutela possessória, por força dos arts. 1º, inciso III, 5º, inciso XXIII e art. 6º da

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norma constitucional, pois é na intersecção desses dois campos [Direito Civil e Constituição] que se apresenta o fundamento contemporâneo do regime tutelar da posse.

O presente estudo buscou demonstrar que para verdadeiramente concretizar o instituto da posse é necessário que ele seja entendido como entidade autônoma, desvinculado da propriedade, em decorrência de sua função social. Seja pela visão sociológica proposta por Perozzi, Saleilles ou Gil, cada qual com suas peculiaridades, todas revelam a necessidade de analisar a figura da posse a partir da sociedade e conforme suas transformações. Assim, Albuquerque (2015) assevera:

A funcionalização social do instituto da posse é ditado pela necessidade social, pela necessidade da terra para o trabalho, para a moradia, enfim, necessidades básicas que pressupõem valor de dignidade do ser humano, o conceito de cidadania, o direito de proteção à personalidade e à própria vida.

Hodiernamente, portanto, destaca-se o papel que o sujeito de direito assume perante a posse, visto que a pessoa está no centro da preocupação e não o seu patrimônio. Todos os ramos do direito civil, não apenas aqueles relacionados à tutela da posse e da propriedade, são instrumentos de efetivação dos direitos fundamentais, mediante a relativização das normas infraconstitucionais frente aos princípios constitucionais.

REFERÊNCIAS

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BEVILAQUA, Clovis. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea (uma perspectiva da usucapião imobiliária rural). Porto Alegre: Fabris, 1988.

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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

FULGÊNCIO, Tito; VIANA, Marco Aurelio S. (Atual). Da Posse e das Ações Possessórias: Teoria Legal. 10 ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2008.

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GOMES, Orlando; FACHIN, Luiz Edson (Atual.). Direitos Reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

MIRANDA, Pontes de; FACHIN, Luiz Edson (Atual.). Direito das Coisas: Posse. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012 – (coleção tratado de direito privado: parte especial; 10).

PEROZZI, Silvio. InstituzionidiDiritto Romano. vol I. Roma: Atheneum.

SALEILLES, Raymundo. La Posesíon. Trad. J. M. Navarro de Palencia, Madri: Libreria General de VictorianoSuárez, 1909.

SAMPAIO, Thiago Felipe. Função Social da Posse e sua prevalência sobre

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o direito de propriedade. Rio de Janeiro: Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, 2011. <http://www.emerj.rj.gov.br/paginas/trabalhos_conclusao/2semestre2011/trabalhos_22011/ThiagoFelipeSampaio.pdf>. Acesso em: 03 de setembro de 2015.

SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Estudos avançados da posse e dos direitos reais. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

POSSESSION: AN ANALYSIS UNDER THE VIEW OF SAVIGNY AND IHERING’S THEORIES AND IT’S SOCIAL ROLE

ABSTRACT

The possessory institute and its applications in the legal field is a theme that has already been very discussed for a long time. Besides the practical ordered debates, several authors question the legal nature of the institute, as well as try to explain such phenomenon within the predominant understanding of each historical context. It appears, indeed, that the current context demands a more lenient interpretation of ownership, compared to the understanding at the overvaluated individualism times from the civil law. The change intended to be shown here, therefore, assumes utmost legal significance for affording new approach to the treatment of possession inside the civil and constitutional law.

Keywords: Possession. Savigny. Ihering. Social role. Social theories of possession.

UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCADA (IN)CONSTITUCIONALIDADE

DOS IMPEDIMENTOSMATRIMONIAIS

Luiz Felipe Dantas dos SantosAcadêmico do 8º período do curso de Direito da UFRN

RESUMO

Entende-se que, com a constitucionalização do direito, a família é que deve existir em função de seus membros, e não o contrário. Chega-se à conclusão de que Família nada mais é do que um núcleo privilegiado em que os indivíduos podem desenvolver livremente a sua personalidade. Essa evolução na concepção do Direito das Famílias trouxe novas interpretações acerca dos impedimentos matrimoniais. Outrossim, para que se compreenda melhor a temática, faz-se necessário recorrer a hermenêutica constitucional. Nos dias atuais, pode-se falar que há um certo consenso na existência de uma bipartição das normas jurídicas em normas-princípios e normas-regras. Enquanto os princípios podem ser sopesados de acordo com o caso concreto (técnica da ponderação de interesses), as regras se limitam a análise de sua validade. Diferentemente dos princípios, as regras possuem uma textura fechada, que estabelecem um comando imperativo a ser seguido. O presente trabalho pretende analisar os impedimentos matrimoniais sob esta óptica da bipartição das normas jurídicas. Em síntese, os impedimentos matrimoniais são proibições absolutas que impossibilitam determinadas pessoas de casarem entre si. Não há dúvidas de que

232 UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADEDOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

se tratam de normas-regras, haja vista possuírem um comando normativo extremamente rígido. O controle de constitucionalidade da norma-regra é que irá determinar a validade ou não dessa norma. Conclui-se, no presente trabalho, que, por afrontar diretamente as diretrizes axiológicas e teleológicas apontadas pela Constituição Federal de 1988 como vetores máximos do ordenamento jurídico brasileiro, os impedimentos matrimoniais devem ser revistos em sede de controle de constitucionalidade e, consequentemente, declarados inconstitucionais.

Palavras-Chave: Constitucionalização. Bipartição das normas jurídicas. Regras.Impedimentos matrimoniais. Controle de Constitucionalidade.

1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS

O significado da palavra família deriva de uma conceituação que está em constante evolução desde os tempos mais antigos, podendo ela ser compreendida apenas quando considerado o período histórico em que é analisada. A conceituação de “família” nos anos 50, por exemplo, já em muito difere do ideal dos dias atuais.

Um importante acontecimento, que teve grande influência na construção da concepção atual do direito de família (ou das famílias, como alguns doutrinadores preferem chamar), foi a Constituição Federal de 1988. A carta Magna foi um marco histórico não apenas à compreensão do direito de família, mas sim a todo o direito vigente no país à época. Através da chamada “constitucionalização do direito”, a Lex Fundamentallis passou a irradiar seus princípios formais e materiais por todo o ordenamento infraconstitucional, fazendo com que os valores dispostos na Carta Política brasileira se tornassem fundamento e filtro do que seria chamado esse “novo direito”. Sendo assim, reformulou-se completamente o direito vigente, tendo ele a necessidade de ser compreendido e interpretado em estrita consonância ao prisma constitucional.

Se torna ainda mais latente essa evolução quando analisadas as mudanças ocorridas nos ideais da população brasileira ao longo dos últimos

233Luiz Felipe Dantas dos Santos

50 anos. À título ilustrativo, 20 anos atrás, não seria possível nem sequer imaginar que a sociedade e o próprio direito acolheriam e dariam guarida as uniões homoafetivas (união de pessoas do mesmo sexo). É bem verdade que as uniões homoafetivas ainda enfrentam uma grande carga negativa, advinda do preconceito da parcela mais conservadora da sociedade, contudo, não há como negar que houve inúmeros avanços à proteção do ser humano e de sua dignidade.

Importante destacar como se deu essa mudança paradigmática no Direito das Famílias. A concepção tradicional de família, disposta no Código Civil Brasileiro de 1916, remontava um modelo patriarcal e hierarquizado, no qual o matrimônio era o elemento essencial ao seio familiar, tendo em vista que o direito vigente à época deixava claro que o matrimônio era a instituição a ser protegida, pouco se importando com o ser humano envolvido naquela relação. Ilustrando muito bem essa concepção, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2015, p. 5) destacam que “[...] imperava a regra ‘até que a morte nos separe’, admitindo-se o sacrifício da felicidade pessoal dos membros da família em nome da manutenção do vínculo do casamento”. Ou seja, o direito resguardava a instituição do matrimônio e não a dignidade e felicidade dos membros familiares.

Entretanto, com a evolução da concepção social acerca da definição tradicional de família, os novos valores da sociedade contemporânea não apenas alteraram a forma que a população compreendia as relações intrafamiliares, como também serviram de elemento propulsor a inspirar mudanças em dogmas que a muito tempo tinham sido tidos como imutáveis. Mudanças como, por exemplo, a proclamação da igualdade absoluta entre os cônjuges, que colocou homens e mulheres no mesmo patamar acerca de direito e deveres, a trazer o fim da visão hierarquizada da família. Nesse diapasão, Maria Berenice Dias enaltece a oxigenação que a Lex Fundamentallis trouxe ao ordenamento jurídico pátrio dispondo que:

A Constituição Federal, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de família e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 § 3.º) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CF 226 § 4.º), que começou a ser chamada de família monoparental. (2013, p. 40)

É cristalina a mudança no conteúdo do conceito que se tem da palavra“família”. Enquanto anteriormente o matrimônio ocupava o núcleo a

234 UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADEDOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

ser protegido a todo custo pela instituição familiar, nos dias atuais são o afeto e a dignidade da pessoa humana que ocupam este lugar.

Brilhantemente, Farias e Rosenvald ensinam que:

Outrossim, deixando a família de ser compreendida como núcleo econômico e reprodutivo (entidade de produção), avança-se para uma compreensão socioafetiva (como expressão de uma unidade de afeto e entreajuda), e surgem, naturalmente, novas representações sociais, novos arranjos familiares. Abandona-se o casamento como ponto referencial necessário, para buscar a proteção e o desenvolvimento da personalidade do homem. É a busca da dignidade humana sobrepujando valores meramente patrimoniais. (2015, p. 7). (Grifos Acrescidos)

Sendo assim, chega-se à conclusão de que “Família” nada mais é

do que um núcleo privilegiado em que os indivíduos podem desenvolver livremente a sua personalidade humana.

Desta feita, resta vencida a compreensão de que a instituição familiar (matrimônio) deve ser protegida a todo custo. A família é o ambiente no qual os indivíduos se sentem mais à vontade, desenvolvem sua personalidade e trabalham suas relações interpessoais da maneira mais íntima possível.

Entende-se que, com a constitucionalização do direito, a família é que deve existir em função de seus membros, e não o contrário. É o Direito que está à disposição do indivíduo conferindo-lhe proteção máxima a sua dignidade e desenvolvimento pessoal. Esta concepção trata de sintetizar, não exaustivamente, relevantes mudanças proporcionadas pela evolução do direito nos últimos anos, e em especial, no Direito das Famílias.

Trazendo uma visão crítica desta evolução do Direito das Famílias, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho acreditam que:

[...] em virtude do processo de constitucionalização por que passou o Direito Civil nos últimos anos, o papel a ser desempenhado pela família ficou mais nítido, podendo-se, inclusive, concluir pela ocorrência de uma inafastável repersonalização. Vale dizer, não mais a (hipócrita) tentativa de estabilização matrimonial a todo custo, mas sim a própria pessoa humana, em sua dimensão existencial e familiar, passaria a ser a especial destinatária das normas de Direito de Família. (2013, p. 63).

235Luiz Felipe Dantas dos Santos

2 NORMAS-PRINCÍPIOS E NORMAS-REGRAS

2.1 Definições

Nos dias atuais, pode-se falar que há um consenso na existência de uma bipartição das normas jurídicas em normas-princípios e normas-regras. Quando se identifica o tipo de norma jurídica que está sendo analisada, o operador do direito tem em suas mãos ferramentas que lhe possibilitam compreender seu conteúdo e desdobramentos de maneira mais simples e objetiva.

Segundo Robert Alexy, princípios jurídicos são:

Mandamentos de otimização que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. (apud FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 36).

Os princípios, em suma, se tratam de comandos genéricos que servem para orientar e guiar a conduta e modos de agir das pessoas. Por isso, são considerados como comandos normativos abertos, tendo em vista que não estabelecem condutas específicas a serem seguidas, mas sim um ideal a ser resguardado em qualquer situação (o máximo possível). E importante salientar que apesar de possuir um caráter orientador, os princípios são enunciados com força normativa e, por isso, tendem a produzir efeitos concretos.

A Constituição Federal, alicerce fundamental a definir as diretrizes axiológicas e teleológicas do ordenamento jurídico brasileiro, possui tanto princípios explícitos, como implícitos, que devem ser levados em consideração em todos os casos concretos.

Já as regras, são muito bem definidas por Farias e Rosenvald, que as conceituam como:

[...] relatos descritivos de condutas, com um conteúdo objetivo, certo e específico, a partir dos quais, mediante uma atividade de verdadeira subsunção, haverá o enquadramento de um fato cotidiano à previsão abstrata na norma, atingindo-se um objetivo (conclusão almejada). (2015, p. 37).

Isto posto, percebe-se que, diferentemente dos princípios, as regras

possuem uma textura fechada, que estabelecem um comando imperativo a

236 UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADEDOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

ser seguido. Enquanto os princípios podem ser sopesados de acordo com o caso concreto (técnica da ponderação de interesses), as regras se limitam a análise de sua validade em relação ao ordenamento jurídico como um todo.

Impera também destacar a conceituação feita por Robert Alexy acerca das regras, na qual dispõe que estas:

São normas que são sempre satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige, nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio. (apudFARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 38)

Assim sendo, enquanto as noras-princípios seriam “mandamentos de otimização”, as normas-regras se apresentariam como “mandamentos de definição”. Perfilhando-se a esse entendimento, Ronald Dworkin acredita que as regras estariam compelidas a obedecer ao brocardo “anallornothing” (tudo ou nada), ou seja, se a regra for considerada válida (em estrita conformidade com o ordenamento jurídico como um todo), deve ser aplicada, porém, se considerada inválida, deve ser expurgada do sistema jurídico.

2.2 Conflitos entre Normas-Princípios X Normas-Regras

Diante da nova hermenêutica constitucional introduzida no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição Federal de 1988, o direito passou a ser compreendido como um sistema complexo que possui diversas normas que devem ser levadas em consideração, harmonizando-as ao máximo (princípio da unidade da constituição) para que coexistam da maneira mais efetiva possível, moldando sua incidência e intensidade de acordo com o caso concreto.

No Estado Democrático de Direito fica evidente que não existem valores constitucionais absolutos. Pode-se ilustrar facilmente essa situação quando analisados casos concretos em que há um choque entre normas jurídicas, sejam normas-princípios ou normas-regras. Farias e Rosenvald (2015, p. 20) dispõem que essa “é a chamada teoria dos limites imanentes dos direitos fundamentais, por meio da qual todos os direitos e garantias são passíveis de limitações, mesmo que não expressas no texto constitucional”.

237Luiz Felipe Dantas dos Santos

Como dito anteriormente, enquanto os princípios podem ser sopesados de acordo com o caso concreto (técnica da ponderação de interesses), as regras se limitam a análise de sua validade. Quando existirem regras conflitantes, a solução se dá através da análise da assertiva “anallornothing” (tudo ou nada), ao passo que, tendo uma das regras sido aplicada, a outra será automaticamente desconsiderada. Desta forma, podemos identificar o que se deve fazer quando se está diante de um conflito entre princípios (princípio x princípio) e um conflito entre regras (regra x regra).

Entretanto, situação diversa se dá quando há um conflito entre um princípio e uma regra (princípio x regra). Como se resolveria esse eventual impasse? Diante de várias possíveis soluções ao impasse (prevalência dos princípios; prevalência das regras; ou mesmo grau de relevância), perfilha-se o presente trabalho à corrente de que inexiste hierarquia normativa entre princípios e regras. Recapitulando, em apertada síntese, enquanto as normas-princípios são comandos genéricos que apresentam valores como objetivos a serem perseguidos pelo operador do direito; as normas-regras se apresentam como mandamentos de definição prontos e acabados que determinam soluções precisas. Sendo assim, por possuírem naturezas completamente diversas, não se pode determinar que dentro de um mesmo plano hierárquico, há a prevalência de um tipo de norma sobre a outra.

Desta forma, uma regra somente não será aplicada a um caso concreto quanto esta não estiver em conformidade com o conteúdo axiológico e teleológico do texto constitucional, o que representará a invalidade da regra. Será o controle de constitucionalidade da norma-regra que determinará a apreciação de sua validade. Por conseguinte, se deliberado em sede de controle de constitucionalidade que a norma-regra está em estrita consonância com a Lex Legum, não há motivo para afastar sua aplicabilidade (a não ser que sua aplicação cause danos excessivamente desmedidos a um caso concreto extraordinário – extreme case). Entretanto, quando deliberado em sede de controle de constitucionalidade que a norma-regra está indo de encontro aos imperativos constitucionais dispostos na Carta Magna, essa regra será declarada inconstitucional (inválida), devendo ser expurgada do ordenamento jurídico.

Discutindo a temática, Humberto Ávila assevera que:

As regras e os princípios desempenham funções diferentes, não se podendo falar, portanto, da primazia de uma norma sobre a outra.[...]No caso de regras infraconstitucionais, os princípios

238 UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADEDOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

constitucionais de fato servem para interpretar, bloquear e integrar as regras infraconstitucionais existentes. Os princípios Constitucionais, no entanto, só exercem sua função de bloqueio, destinadas a afastar a regra legal, quando ela for efetivamente incompatível com o estado ideal cuja promoção é por eles determinada. O aplicador só pode deixar de aplicar uma regra infraconstitucional quando ela for inconstitucional, ou quando sua aplicação for irrazoável, por ser um caso concreto extraordinário. Ele não pode deixar de aplicar uma regra infraconstitucional simplesmente deixando-a de lado e pulando para o plano constitucional, por não concordar com a consequência a ser desencadeada pela ocorrência do fato previsto na sua hipótese. Ou a solução legislativa é incompatível com a Constituição, e, por isso, deve ser afastada por meio da eficácia bloqueadora dos princípios, sucedida pela sua eficácia integrativa, ou ela é compatível com o ordenamento constitucional, não podendo, nesse caso, ser simplesmente desconsiderada, como se fora um mero conselho que o aplicador pudesse, ou não, levar em conta como elemento orientador da conduta normativa prescrita. (Grifos Acrescidos)

3 IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

3.1 Conceito

Os impedimentos matrimoniais estão dispostos no art. 1521 do Código Civil de 2002 (legislação infraconstitucional), estabelecendo, ipsis litteris:

CAPÍTULO IIIDos Impedimentos

Art. 1.521. Não podem casar:I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;II - os afins em linha reta;III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;V - o adotado com o filho do adotante;VI - as pessoas casadas;VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.Art. 1.522. Os impedimentos podem ser opostos, até o momento da celebração do casamento, por qualquer pessoa

239Luiz Felipe Dantas dos Santos

capaz.Parágrafo único. Se o juiz, ou o oficial de registro, tiver conhecimento da existência de algum impedimento, será obrigado a declará-lo.

Os impedimentos matrimoniais, em síntese, nada mais são do que

comandos proibitivos da lei que estabelecem situações em que pessoas não poderão contrair casamento. Assim sendo, os impedimentos matrimoniais são proibições absolutas que impossibilitam determinadas pessoas de casarem entre si. O comando normativo “não podem casar” é claro e objetivo, impossibilitando de forma absoluta o casamento nas situações descritas.

Diante do exposto, não há dúvidas de que os impedimentos matrimoniais se tratam de normas-regras. Possuem um comando normativo extremamente rígido que deve ser aplicado através das técnicas de subsunção, não havendo espaços nem da aplicação da técnica da ponderação de interesses e nem da análise do caso concreto.

Pertinente ressaltar que os impedimentos matrimoniais também são plenamente aplicáveis à união estável (CC, art. 1723, § 1º), haja vista que somente poderá ser caracterizada a união estável quando existir uma relação convivencial capaz de ser convertida em casamento. O que, por conseguinte, acaba por afetar um número ainda maior de pessoas.

Noutra perspectiva acerca da temática, importa compreender no que se alicerçam os impedimentos matrimoniais. O que dá fundamento a existência do caráter cogente das normas relativas aos impedimentos matrimoniais é a chamada “proteção à ordem pública”. Teoricamente, são normas que devem ser aplicadas pelo Estado para que se torne possível uma tutela jurídica mais efetiva, resguardando direitos e garantias fundamentais.

Farias e Rosenvald, para efeitos didáticos, estabelecem que:

Organizam-se, assim, em especial para efeitos didáticos, os impedimentos matrimoniais em três diferentes grupos: (i) impedimentos decorrentes do parentesco, abrangendo as hipóteses dos incisos I a V do art. 1.521 da Lei Civil. Aqui chancela-se a proibição com base na existência de uma relação de parentesco, em linha reta ou colateral, decorrente de vínculo consanguíneo ou adotivo; (ii) impedimentos decorrentes da proibição da existência de casamento anterior, obstando a prática da bigamia, que continua caracterizando um ato ilícito no sistema jurídico brasileiro; (iii) impedimentos decorrentes da prática de crime, tendo o propósito de obstaculizar o casamento do cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio

240 UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADEDOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

ou tentativa dele conta o ex-consorte. (2015, p. 171) (Grifos Acrescidos).

3.2 Os fundamentos dos Impedimentos Matrimoniais

Apontando um excelente quadro ilustrativo acerca dos motivos que levaram o Poder Legislativo a consubstanciar o art. 1521 do Código Civil de 2002, Carlos Roberto Gonçalves destaca:

O Código Civil de 2002 considera impedimentos apenas os dirimentes absolutos, ou seja, os que visam evitar uniões que possam, de algum modo, ameaçar a ordem pública, resultantes de circunstâncias ou fatos impossíveis de serem sanados. [...]Os impedimentos visão preservar a eugenia (pureza da raça) e a moral familiar, obstando a realização de casamentos entre parentes consanguíneos, por afinidade e adoção (CC, art. 1521, I a V), a monogamia (art. 1521, VI), não permitindo o casamento entre pessoas já casadas, e evitar uniões que tenham raízes no crime (art. 1521, VII). (2011, p. 68-69)

Data vênia, as pretensas razões que justificam a existência dos impedimentos matrimoniais não encontram guarida constitucional. A chamada “proteção à ordem pública” não se justifica por si só. O imperativo constitucional não pode ser suprimido diante do formalismo excessivo contido no Código Civil. Há de ser feita uma nova interpretação do texto infraconstitucional, para que este esteja em estrita consonância aos comandos constitucionais.

A doutrina divide os impedimentos matrimoniais em três categorias diferentes, sendo elas: resultantes do parentesco; decorrentes de casamento anterior; e da prática de crime. É perceptível que estes impedimentos estão embasados em uma política legislativa sob forte carga moral (social). Cumpre destacar, ainda, que os impedimentos resultantes do parentesco se fundamentam em um binômio: saúde pública/preceitos morais. Portanto, conclui-se que existem dois pontos chaves que servem de fundamento à “proteção da ordem pública” resguardada nos impedimentos matrimoniais: a) saúde pública; b) caráter moral (social).

Quanto ao caráter sanitário, alega-se que se permitido fosse o casamento entre parentes em linha reta, ascendente ou descendente (relação popularmente conhecida como incesto), estar-se-ia criando problemas referentes a saúde pública da sociedade. A ciência apresenta um fato irrefutável:

241Luiz Felipe Dantas dos Santos

estudos biológicos apontam a grande possibilidade de deficiências físicas e psíquicas na formação de crianças concebidas por parentes consanguíneos. Isso não se questiona. O que se questiona é a função social da família e do matrimônio. Ora, se houve uma mudança do núcleo central do casamento, substituindo-se a procriação pelo afeto, não seria justificável então “permitir” que pessoas se casem sem necessariamente terem filhos?

Essa concepção que estatuía a procriação como objetivo necessário ao matrimônio mostrava-se “aceitável” antes da Constituição Federal de 1988. À época em que se considerava o matrimônio como instituição responsável por juntar indivíduos com o intuito da procriação, esta regra apresentava-se em estrita consonância aos objetivos determinados. Todavia, com a evolução do Direito das Famílias e com a irradiação dos princípios constitucionais dispostos na Lex Fundamentallis por todo o ordenamento infraconstitucional, o matrimonio passou a ter como núcleo central o afeto. O maior objetivo do casamento, nos dias atuais, é construir um ambiente em que os indivíduos possam exercer livremente sua personalidade. Casais se relacionam objetivando a comunhão de vidas, algo que não necessariamente culminará na procriação.

Não se pode olvidar que a Carta Magna demonstra ao operador do direito que não é a sociedade que deve servir o direito, e sim o contrário. O direito existe para conferir proteção aos indivíduos, fornecendo-os um ambiente digno, respeitoso e pacífico em que possam desenvolver suas personalidades, criando regras, é claro, para que isso se torne possível. Portanto, não se vê nexo em não conferir tutela à uma família (relação de afeto – casamento/união estável) apenas porque o Estado considera que ela não “deve” ter filhos. Hoje em dia, o matrimonio não mais pressupõe a procriação. Argumento que resta vencido.

Quanto ao caráter moral (social), Caio Mario da Silva Pereira (apud GAMA, 2008, p. 26) dispõe que “os impedimentos são considerados por motivos de moralidade social, e, por isso, a ordem jurídica os inscreve como portadores de maior gravidade”.

Essa forte justificativa moral (social) também ganha legitimidade sob uma ótica religiosa. No tocante aos impedimentos resultantes de casamento anterior, por exemplo, está sendo resguardado o modelo monogâmico de família, que é um dos conceitos fundamentais da igreja católica, que há muito tempo esteve tão próxima da cúpula diretiva estatal. Outrossim, mesmo com a laicidade do Estado brasileiro, alguns dos “valores religiosos” continuam a exercer uma forte influência no ordenamento jurídico nacional. Não se

242 UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADEDOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

vislumbra outra razão que embase esse impedimento que não seja decorrente do conceito familiar monogâmico.

Noutra vertente, referindo-se aos impedimentos matrimoniais resultantes da prática de crime, Guilherme Calmon Nogueira da Gama enuncia que:

Tal proibição se fundamenta na violação do valor moral, ético e cultural relacionado ao intuito perverso de perpetrar crime de homicídio justamente da pessoa que até então era o cônjuge daquela outra com que o autor do crime pretende casar. (2008, p. 33-34)

Destarte, demonstrando um importante avanço quanto à temática, observa-se uma certa superação tanto da justificativa moral como da sanitária, quando analisada a relação entre tios e sobrinhos (parentes colaterais no terceiro grau). O Estado brasileiro, nesses casos, já permite que o juiz autorize o casamento, superando o impedimento matrimonial, se houver laudo médico que comprove a inexistência de risco de natureza genética ou sanitária para a prole, exame esse que deve ser realizado obrigatoriamente antes do casamento.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, conclui-se que os impedimentos matrimoniais se tratam de normas-regras que se fundamentam em preceitos responsáveis por salvaguardar a ordem pública, tanto em nome dos valores morais como da própria proteção da saúde pública.

Porém, no caso concreto em comento, a validade da norma-regra infraconstitucional (impedimentos matrimoniais) há de ser aferida em sede de controle de constitucionalidade, de acordo com uma hermenêutica constitucional. O fundamento e filtro dessa análise deve ser pautado sob os princípios constitucionais dispostos na Carta Magna brasileira. Como verificou-se anteriormente, restou-se comprovado que esta norma-regra (impedimentos matrimoniais) está sim indo de encontro aos imperativos constitucionais dispostos na Lex Fundamentallis.

Sendo assim, por afrontar diretamente as diretrizes axiológicas e teleológicas apontadas pela Constituição Federal de 1988 como vetores máximos do ordenamento jurídico brasileiro, tais como a dignidade da

243Luiz Felipe Dantas dos Santos

pessoa humana, os impedimentos matrimoniais devem ser revistos em sede de controle de constitucionalidade e, consequentemente, declarados inconstitucionais.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. “NEOONSTITUCIONALISMO”: ENTRE A “CIÊNCIA DO DIREITO” E O “DIREITO DA CIÊNCIA”. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 17, janeiro/fevereiro/março, 2009. Disponível na internet: <http://www.direitodoestado.com/revista/rede-17-janeiro-2009-humberto%20avila.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2015.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília, 10 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 26 nov. 2015.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil 6: Famílias. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil 6: Direito de família: As famílias em uma Perspectiva Constitucional. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: Família. São Paulo: Editora Atlas, 2008.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro 6: Direito de Família. 8.

244 UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADEDOS IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.

A CRITICAL ANALYSIS ABOUT THE (UN)CONSTITUTIONALITY OF THE MARRIAGE IMPEDIMENTS

ABSTRACT

It is understood that with the constitutionalization of law, the family is that there must be working in function of its members, and not the other way around. We can conclude that family is a privileged center where individuals can freely develop their personality. This evolution in the design of the Family Law has brought new interpretations of marriage impediments. Furthermore, in order to understand better the issue, it is necessary to resort to constitutional hermeneutics. Nowadays, we can say that there is a certain consensus in the existence of types of legal rules: principles and rules. While the principles may be weighed according to the case (the technique of weighting interest) the rules are limited to the analysis of its validity. Unlike the principles, rules have a closed texture, which set an imperative command to follow. This paper discusses the marriage impediments under this approach of splitting the legal rules in two. In short, marital impediments are absolute prohibitions that prevent certain people from marrying each other. There is no doubt that these are standards-rules, given possessan extremely rigid regulatory control. The judicial review of the standard-rule will determine the validity or otherwise of this standard. It can be concluded in this work, which, by directly confronting the axiological and teleological guide line soutlined by the Constitution of 1988 as maximum vectors

245Mariana Maria de Carvalho Mattos - Marcela Macedo Féder

of Brazilian law, marital impediments should be reviewed in judicial review of headquarters and consequently declared unconstitutional. Keywords: Constitutionalization. Two types of legal rules. Marriage Impediments. Judicial Review.

ArtigosConvidados

O NOVO CPC E A ALEGORIA DA CHARNEIRA: UMA

INFLEXÃO FILOSÓFICA AO MITO DA SEGURANÇA EM

PINDORAMA

Ricardo Tinoco de GoesJuiz de Direito, Professor da UFRN, Mestre pela UFRN

e Doutor pela PUC-SP

RESUMO

Diante da eminente vigência do Novo Código de Processo Civil e das questões por ela trazidas relativas à valorização dos precedentes, o presente artigo se volta à análise da segurança jurídica trazida pelo novo texto normativo, a partir do estudo da política de precedentes adotada atualmente e a que se propõe ser adotada pela sistemática do novo código. Diante disso, far-se-á um estudo crítico das questões trazidas pelo novo CPC a respeito do assunto, especialmente no que tange à estabilidade das decisões, ao efetivo contraditório e à priorização do mérito processual.

Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil. Segurança jurídica. Precedentes.

250 O NOVO CPC E A ALEGORIA DA CHARNEIRA: UMA INFLEXÃOFILOSÓFICA AO MITO DA SEGURANÇA EM PINDORAMA

1 INTRODUÇÃO

Certamente, um dos maiores problemas da doutrina à brasileira do positivismo jurídico sempre consistiu em creditar-se ao Direito um necessário compromisso com a segurança jurídica, sem que ao mesmo tempo se buscasse encontrar uma equivalente relação desse objetivo com o seu correspondente axiológico, extraído dos valores que compõem o plano moral no seu respectivo ethos social e humano.

Imaginou-se que o sistema jurídico qualificava-se como a fonte para as respostas que do Direito se espera, na perspectiva de fechar-se questão em torno de todas as espécies de conflitos, sendo certo que essa missão, cometida à normatividade jurídica, sempre teve sua gênese fundada no mito da autoridade a qual, de sua vez, sempre validou o dever-ser das regras jurídicas consubstanciadas nos textos legais, ao enunciarem o que é proibido, o que é permitido e o que é obrigatório (VILANOVA, 2005, p.75).

O ponto alto da teoria juspositivista sempre foi a proposição da stufenbau, ou seja, a sacralização da validade da norma pelo apego a sua fonte autoritativa estatal, a partir da enunciação do fundamento de validade a permear todos os degraus da imensa pirâmide normativa até o seu cume, divisado na pressuposição lógica que se situa na norma fundamental hipotética (Grundnorm) (KELSEN, 2000, pp. 169-170).

Para os paladinos do Monismo ou Unitarismo Jurídico, essa quase deificação da validade jurídica alcançou por igual as fontes de produção normativa do Direito pelo viso da atuação do Poder Judiciário. É que se a sentença é norma abstrata que se faz concreta (CARNELUTTI, 2000, pp. 223-224), como dissera vultosa corrente tradicional do Direito Processual, a segurança jurídica adviria desse desdobramento normativo produzido pela conversão da norma geral em norma específica e concreta, produzida pela sentença.

Com isso, amarrada se encontrava a promessa de validade aos atos que, por força da divisão de poderes, escapavam da centralidade política do Legislativo. Agora, o Judiciário atrelado estava ao mito da segurança, ceifado de toda e qualquer possibilidade reconstrutiva dos fatos, enquanto tentativa para que se encontrasse, sempre, a “justiça do caso”, a realidade que espargida dos fenômenos, poderia representar verdadeiramente o anseio de equidade, pacificação e composição do conflito pelo viso do que é, à luz do sistema, sempre e necessariamente justo.

Com a passagem do Estado de Legalidade para o Estado da

251Ricardo Tinoco de Goes

Legitimidade, sopraram aos quatro ventos os postulados de um novo modelo para a atuação dos poderes estatais. Uma inevitável onda democrática varreu toda e qualquer herança aprisionadora da legitimidade ao formalismo do que, por conceito, representara até então, a definição de legalidade. Decidir legitimamente é decidir com atenção a uma validade por conteúdo e não mais a uma validade por fundamentação, puramente formal e normativa.

A legitimidade é impositiva, agora, em nome de outro tipo de segurança, posto que tradutora de uma estabilidade jurídica que se horizontaliza e se capilariza nas mais diversas camadas da tessitura social. Não basta que a aceitação do conteúdo normativo se afigure testificada pela vertical demonstração do exercício do poder. É preciso que essa aceitação se traduza na participação, por representação ou deliberação discursiva da cidadania que passa a atuar, pelas eclusas do poder central (HABERMAS, 2003, p.94), dizendo “o quê”, “como” e “quando” deve o Direito expressar esse ou aquele sentido para as múltiplas relações vivenciadas pela cidadania, seja no âmbito privado de suas interações, seja na dimensão pública de seus interesses.

As normas que tratam da procedimentalização do Direito no âmbito da atuação do Poder Judiciário, de fato, não poderiam fugir desse curso natural. Era chegada a hora de editar-se um novo diploma normativo, um novo Código de Processo Civil, capaz de refletir essa luminosa forma de conceber a produção dos atos decisórios estatais, atentos sempre à sua gênese democrática, mas para tanto, sem abdicar da segurança, a mesma segurança que sempre infundiu a visão de tantos quantos pensaram o processo como um verdadeiro instrumento destinado a viabilizar a atuação do Direito Material ao caso concreto.

A escolha principal para o alcance desse objetivo, dentre tantas outras de menor envergadura, deu-se por meio da apropriação, pelo novo diploma, da conhecida Teoria dos Precedentes Judiciais, de origem anglo-saxã. Uma forma de teorizar-se sobre a democracia no Judiciário, fundada no diálogo e no discurso, pela problematização tópica de cada caso, participativamente e segundo ainda uma nova forma de conceber-se o contraditório, dinâmico, efetivo e, sobretudo, influente.

Lado a lado, passaram a conviver a legitimidade de conteúdo e a segurança das decisões... A charneira [dobradiça (HABERMAS, 2003, pp.)] que alegoricamente se abre, ora para um lado, a ensejar a confiança no modo de produção das decisões, ora para o outro, a favorecer a certeza na previsibilidade dos resultados desses mesmos atos decisórios, decerto vem a ser o fiel da balança desse novo tempo. Essa busca do equilíbrio, temperando a faticidade

252 O NOVO CPC E A ALEGORIA DA CHARNEIRA: UMA INFLEXÃOFILOSÓFICA AO MITO DA SEGURANÇA EM PINDORAMA

da realidade conflitiva com a legitimidade das decisões que servem às suas composições. Esse é o mote a inspirar o Código de Processo Civil de 2015.

Mas, a despeito de tudo isso, o Brasil de agora, em certo sentido, ainda é Pindorama.1 Um lugar à espera de tudo... Um espaço aberto ao povoamento... À ignominiosa forma de conceber e ao mesmo tempo confundir o civilizar com o dominar... Ao tempo em que se sabe que a segurança jurídica é algo que se impõe, por força mesmo da necessidade que há de obter-se do processo e das decisões que dele promanam um mínimo de previsibilidade e de estabilidade nas relações jurídicas, bem não se sabe, por outro lado, a qual segurança esse modelo poderá servir... Pindorama é linda, mas é aberta a tudo e a todos e por isso mesmo é preciso muito cuidado...

Nessa parte introdutória, minha intenção parece ser já percebida. Desejo enunciar a convicção que hoje tenho de que o novo CPC se traduz como uma necessidade de um novo tempo, uma segurança que amenize os medos de uma sociedade complexa pautada na noção do risco (BECK, 2010, p. 61), pelo qual a sina de uma conflituosidade infinita termine por carregar consigo a perda de confiabilidade nas decisões judiciais. Tudo isso é certo, não tenho dúvida, mas duvido que isso se concretize sem que Pindorama eleja antes o que, para si, deva consistir essa tão abalançada segurança.

Numa sociedade marcada pela desigualdade, pela dívida histórica com os seus ancestrais (RIBEIRO, 2012), a homogeneização de uma segurança jurídica fundada na Teoria dos Precedentes não pode dispensar uma necessária preocupação com a formação de uma tradição jurídica genuinamente nossa, a começar pelo resgate dos nossos próprios valores, interesses e escolhas.

Mesmo que o espírito do novo Código se identifique com o alcance de uma uniformidade decisória fundada na dialogicidade e discursividade da participação dinâmica em contraditório, ainda assim é preciso pôr as instâncias judiciárias, que pelo novo regime procedimental são comprometidas com essa uniformização, em total sintonia com as mais autênticas formas de vida da nossa Pindorama. Se o Brasil definitivamente se afirma como um país, cujo Estado assume a natureza de uma Democracia Constitucional, nenhum conceito de segurança jurídica pode passar ao largo da garantia ou da confiança de que é na cidadania que se deve revelar a fonte de legitimação para o exercício de todo e qualquer processo decisório, especialmente quando

1 Pindorama: “Terra das Palmeiras”, como assim era chamado o Brasil em Tupi-Guarani.

253Ricardo Tinoco de Goes

esse processo assume, logo textualmente, o compromisso com a uniformidade. A uniformidade, como viés para a estabilidade e para a

previsibilidade, é um objetivo do hoje, do agora, mas pode se transformar num mito, pois a segurança que por ela se almeja pode ser a (in) segurança para a própria democracia que se quer realidade. Estamentos de poder que se sentem livres para definir qual o sentido a ser dado à mesma questão de direito, apanhados pelo sonho de uma abertura cooperativa ampla, mas apenas endoprocessual, podem se colocar a serviço de outros objetivos, claramente estratégicos e absolutamente descompassados com uma estabilidade que deve se afinar com o significado da legitimação democrática.

Antes que os nossos olhos vaguem pelo horizonte à procura de um porto seguro, melhor é que o nosso olhar pouse logo sobre o chão que já pisamos, com os rastros que já deixamos, ao longo do tempo, perdidos, e às vezes propositadamente diluídos na poeira de nossa História.

2 RECONSTRUIR OU CONSTRUIR UMA HISTÓRIA DE PRECEDENTES?

A genuína Teoria dos Precedentes, chantada na experiência inglesa, concebe uma Hermenêutica da Reconstrução, enquanto guia para o processo argumentativo-aplicativo do Direito pela Jurisdição.

A idéia é perceber o quanto há de afinidade entre a história dos precedentes formulados sobre o caso, para a partir daí introjetar-se o debate acerca da possibilidade ou não desses precedentes serem aplicados ao caso sub judice. Mas o importante de notar é que esses precedentes, muitos deles, já surgiram dessa mesma técnica, desse mesmo aporte. Quer dizer: ao invocar-se um precedente, já se sabe que na sua história radica também uma tradição com a invocação de outros tantos precedentes, que igualmente serviram ao mesmo objetivo dialógico e discursivo. Em outras palavras: a hermenêutica reconstrutiva supõe sempre a existência de uma história, de uma tradição, que precisa ser revivida caso a caso para ser reinterpretada e novamente compreendida e, assim resignificada!

Mas é possível pensar-se em algo com essa mesma latitude para o Brasil? Ou então: há uma tradição jurisprudencial que comprometa positivamente as esferas judiciárias da Jurisdição brasileira com uma história digna de ser contada em futuros capítulos do que seria, em metáfora, um romance em cadeia? (DWORKIN, 2003, pp. 275-276).

Difícil é dizer, mas ainda creio fortemente que não!

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Antes de reconstruir essa história, precisamos é absorver a nossa historicidade e, com ela, construir a tradição que de Pindorama se ceifou. Pois, como pensar numa reflexiva forma de conceber o passado de nossos precedentes, se precedentes, de fato, nunca tivemos?

Mais do que creditar a uma Teoria Reconstrutiva do Direito a saída para a nossa falta de estabilidade na solução dos casos jurídicos, necessitamos mesmo é de uma Hermenêutica Construtiva, vazada nos rigores sociológico e antropológico de nossos costumes, crenças, escolhas e interesses mais autênticos. Só aí poderemos, depois, reconstruir para decidir...

Desde logo, então, e para evitar mal entendidos, preciso assentir que me afirmo como alguém que crê na opção legislativa de agora, mas a ela associa a obrigatoriedade de reconhecer-se que a técnica reconstrutiva idealizada deve antes pautar-se na edificação (construção) dos nossos verdadeiros precedentes, pois nada adianta conceber um debate que traga ao centro da discussão, enunciados e súmulas despidas de uma autêntica inserção no querer legitimador de nosso povo, somente pelo fato desses julgados virem a compor a nossa Jurisprudência e, dessa forma, terem decorrido do exercício isolado de um ato de poder.2

A segurança advinda do modelo adotado na tradição da Common Law antes de radicar na técnica da reconstrução hermenêutica, a partir dos precedentes, parte mesmo da confiança de que esse passado, quando de sua construção, contou com a mesma possibilidade de gerar precedentes nascidos de um autêntico retorno às suas fontes primeiras, em especial os costumes jurídicos que conferiram esse amálgama entre o Direito e a sua respectiva práxis social3.

Por isso, a reconstrução desses precedentes em cada caso mostra-se como uma técnica louvável, pois o retorno à história de cada um deles é representativo de um passado que jamais corrompeu os ideais e esperanças do que majoritariamente delineou-se como o que é reto e justo, a considerar

2 Isso porque, de ordinário, enunciados e súmulas são editados por iniciativa isolada do Tribunal que os lançou, sempre na compreensão de que os textos sumulados são o reflexo do que, ao longo do tempo, seria o entendimento dominante da Corte.3 É conhecida a divisão dos costumes daquela tradição em mores e folkways, exatamente para indicar aqueles de maior latitude e densidade e os que diziam respeito às práticas diárias, introjetadas no universo da família, das relações de vizinhança, do trabalho e do cotidiano.

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a realidade de cada tema e das decisões que os enfrentaram. O suporte filosófico para a consolidação desse paradigma

interpretativo partiu da absorção dos postulados da conhecida Teoria do Direito como Integridade de Ronald Dworkin. (DOWRKIN, 2003, pp. 213-272) Nela, há uma convicção de que é possível encontrar uma resposta correta segundo a realidade exteriorizada por cada caso, sem, contudo, ceder-se à discricionariedade do julgador, que movido pelas inevitáveis aberturas cognitivas presentes no sistema jurídico, subverte, de quando em quando, o sentido finalístico de sua função decisória, transmudando-a no que prestigiosa corrente doutrinária logrou nominar de decisionismo ou arbítrio judicial. (STRECK, 2010, p. 97).

Para corrigir esse desvio, Dworkin aponta como caminho o retorno à história dos precedentes. Isto é, defende que o único meio de conter esse sempre possível excesso interpretativo é a vinculação dos juízes e tribunais ao que, historicamente, a Jurisprudência erigiu como uma posição digna de ser reproduzida aos casos futuros, sempre, contudo, mediante o exercício de uma interpretação que é reconstrutiva, pois ao tempo que autoriza o recuo ao passado, promove a sua recontextualização, segundo os princípios que, na atualidade, podem infundir a correção dessa única resposta.

Concebe, então, o Direito de modo íntegro e unitário. Sua teoria, por isso, não se insere no âmbito das formulações que põem a Justiça como centro de abordagem e de especulação filosófica. Não se trata mesmo de mais uma Teoria da Justiça, como em Rawls (2002a) (b) (2002c), mas sim de uma Teoria sobre o Direito, que considera a justiça como conseqüência natural de um labor jurídico reconstrutivo e que toma os casos concretos como realidades a serem interpretadas na esteira de um Direito revelado ao longo do tempo, considerando-se, principalmente, os precedentes jurisprudenciais retomados a cada situação nova que viceja.

Esses precedentes, por seus turnos, devem formar um todo coerente, balizado pela circunstância com que os princípios são, caso a caso, invocados. Aqui consiste um dos pontos altos de sua teoria, porque a observância imparcial da escolha desses princípios, segundo a predominância com que uns se impõem frente aos outros, sem anulá-los, leva em consideração a coerência dos precedentes, mas em contrapartida estima também as diferenças que cada situação expressa, isoladamente. Portanto, não se trata de pensar o Direito retroativamente. O que há é a preocupação de fundamentar a invocação de princípios no presente, considerando a coerência que ao longo do tempo se consolidou, conforme denotam os precedentes judiciais, na perspectiva do

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que se deu quando da construção de sua história.De ver, então, como é importante, imprescindível mesmo, que essa

história já exista e que essa existência reflita a dignidade de um passado de interpretações motivadas por escolhas pautadas num cenário de legitimação pública, em que a vontade cidadã tenha sido imperativamente seguida e que a preponderância dos argumentos vencedores, na edição de cada decisão, tenha se refletido na consolidação de cada precedente.

Embora o Novo CPC não abrace, apenas, a Teoria do Direito como Integridade de Dworkin, mas igualmente a tempere com a Teoria da Argumentação de Alexy, na perspectiva de conceber espaços de dialogicidade e discursividade suscetíveis à influência axiológica para a formação de consensos, o que a nosso ver não encerra qualquer dificuldade ou incompatibilidade, mesmo que para Dworkin a interpretação sobre princípios não se confunda, como pensa Alexy, com a argumentação sobre valores, havendo intensa diferença quanto ao modo com que aquele e este enxergam os princípios; o que é certo é que independentemente dessa convergência teórica, o pressuposto básico para que se insira, nessa informação filosófica, o precedente judicial é a compreensão de que ele é um resultado de uma tradição jurídica já construída.

Fala-se numa tradição jurídica já construída para designar-se uma histórica rica de valores comprometidos com os padrões de comportamento adotados por cada sociedade, por cada povo. Por isso é possível reconstruir hermeneuticamente o caminho a ser seguido para encontrar-se cada resposta correta para cada caso posto à apreciação e à decisão do Poder Judiciário.

A invocação de um precedente importa, então, na aceitação de algo que já é, enquanto fonte histórica de um vivo e intenso debate em torno do tema a decidir, de tal modo que a técnica de reconstrução, a partir do precedente não é algo além de uma técnica mesma, de um método a guiar legitimamente as instâncias decisórias da estrutura Judiciária num dado Estado.

Mas no Brasil, como já é possível antever, não podemos nos assegurar disso. Não tivemos a chance de construir essa nossa história jurídica, pelo menos nos moldes de um passado rico de vivências e experiências de que se serve a Teoria dos Precedentes. Não nego que temos uma História Jurídica do Direito Nacional, mas não é essa História que, concebida enquanto

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historicidade,4 pode revelar do que dinamicamente a sociedade brasileira pôde se valer para contribuir valorativamente à edificação de padrões interpretativos genuinamente autênticos, segundo uma identidade só nossa, compatível também com as aspirações que somente nós, enquanto brasileiros, sempre sonhamos e nos detivemos, ao menos nostalgicamente...

Nossos enunciados e súmulas sempre estiveram a mercê de influências estrategicamente pautadas em diretrizes da política e do mercado, mesmo aquelas, mais conhecidas, que inclusive tiveram um importante papel destinado à delimitação dos espaços para o exercício do poder, inclusive do arbítrio travestido de poder. Não faz mal. Não é sobre esse ponto que me refiro, pois aqui não se enceta uma crítica direta ao conteúdo desses nossos julgados consolidados, até porque foi assim que aprendemos a usá-los e foi assim que os adotamos como razões de nossas decisões, por décadas e décadas.

O problema central não é esse, propriamente. A grande questão, o ponto arquimediano dessa peleja se centra mesmo no modo de conceber o surgimento disso que chamamos indevidamente de precedentes!

Chamamos de precedentes o que seriam somente julgados advindos de causas-piloto, as quais, por força da abrangência temática e da recorrente possibilidade de terem seus fundamentos retomados em cada hipótese sob julgamento, terminam servindo de fonte de inspiração para que juízes e tribunais, espalhados pelo país, os invoquem, muitas vezes inclusive sem a atenção e o cuidado com que cada situação é, de fato, merecedora. Não há uma historicidade a pulsar a cada vez que esses julgados são invocados. Não se percebe essa força atrativa, que pudesse ser exercida pelos acontecimentos, os quais, situados no passado, deram vida ao conteúdo da decisão judicial, passando eles mesmos – os acontecimentos - a condicionarem a possibilidade ou não de aplicar-se esse juízo de valor já consolidado a outros casos de idêntica natureza jurídica.

Quando se invoca uma decisão superior, geralmente por simples ementa, somos levados a fazê-lo como mera referência a algo que, por advir

4VICO, Giambattista. La scienza nuova. In. www.letteraturaitaliana.net/pdf/Volume_7/t204.pdf Clássico do pensamento humanístico que introduz o conhecimento de que a História deve ser vista enquanto historicidade, quer dizer, esse devir temporal que é capaz de produzir sentido, conferindo significado às novas formas de vida e acrescendo à tradição, dinamicamente, outras tantas formas, sempre sujeitas a diferentes experiências e resignificações.

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de uma instância hierarquicamente acima da nossa (e somente por isso), deve ter seguimento obrigatório, atraindo quase que por força gravitacional, todo e qualquer caso que a um primeiro lance de olhar balizado esteja pelo texto que ali é enunciado.

Não se alude aos casos que pelo correr do tempo foram formatando, mentalmente, na “consciência” do Tribunal o desenho esquemático daquela jurisprudência. Não se incentiva, pelo menos, a retomada da argumentação que invariavelmente ensejou tudo isso. Muito ao contrário, invoca-se o julgado como se ele tivesse surgido do “vácuo” e sua validade apenas se justificasse por sua origem autoritativa (origem advinda da autoridade, do agir autorizadamente) (BOBBIO, 2000, p. 143). E assim vamos repetindo essa prática continuadamente, quase que por reflexo condicionado, pois se quanto a essa crença positivista, da validade formal, a decisão se impõe, nada mais coerente do que colocá-la à disposição dos órgãos jurisdicionais para que sirva como um dos fundamentos de peso à conformação daquela decisão que está por vir. Essa é a técnica da aplicação jurisprudencial, verdadeira releitura do modelo subsuntivo utilizado para a aplicação das leis, sendo estendido agora, mecanicamente, às decisões dos tribunais nacionais.

O que se denomina de precedente tem assim, alegoricamente, o papel de conferir segurança às decisões de menor estatura, valendo novamente como uma charneira, isto é: seja para que lado for o pêndulo de sua dobra, o que importará, no final de tudo, é que a decisão que nela se apóia pode impor-se com maior grau de confiança, certeza e respeitabilidade... Afinal de contas, seu conteúdo estribou-se num fundamento que, do ponto de vista formal, é válido e nada mais, além disso, realmente importa!

Será?O problema, como se viu, é que essa percepção em torno dos

precedentes é absolutamente equívoca e, por isso mesmo, a técnica de reconstrução, num país em que a jurisprudência muitas vezes foi formada ao sabor das contingências, não pode validamente (e agora, validade no sentido de legitimidade) ter sua história argumentativamente reconstruída, para traduzir-se, ao final, em decisões que possam respaldar o substancial compromisso que hoje se exige entre os atos de poder e a justificação pública de suas escolhas. E não pode, pois como já se viu, essa história jurisprudencial é claramente carente de legitimidade democrática.

Ela não se formou sob o manto da simetria argumentativa, da criação e ampliação dos espaços de discussão sobre os grandes temas que reclamaram, depois, a atenção da Jurisdição, nem tampouco ela se viu surgir

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a partir do amadurecimento natural da própria doutrina brasileira, que por se ver catapultada do seu sonho em construir um verdadeiro Direito Brasileiro, sempre teve que beber em fontes alienígenas a informação conteudística dos institutos jurídicos abarcados pelo nosso sistema.

Desse modo, sem qualquer crítica ao caráter reconstrutivo do método interpretativo de que se serve a Teoria dos Precedentes, o que é certo é que, entre nós, precisamos antes é construir esses espaços temáticos para a edificação de posições jurisprudenciais autenticamente consolidadas. Assim, em passo seguinte, poderemos invocar esse passado e reconstruí-lo em cada controvérsia posta em julgamento.

3 ENTRE O “RECONSTRUIR” E O “CONSTRUIR” UMA HISTÓRIA DE PRECEDENTES: COMO SITUAR O NOVO CPC?

Nesse cenário antes apresentado nasce o novo CPC e vinga com uma promessa vanguardista digna de aplauso: buscar o mínimo de previsibilidade e de segurança para as relações jurídicas, tendo por escudo a verticalidade na aplicação do Direito, por Juízes e Tribunais, com a confiança de que a observância desse sentido vertical, que adota as teses jurídicas consolidadas pelas Cortes Superiores, decorreu de uma intensa maturação histórica.

Visa-se o alcance de segurança e estabilidade, mas com a confiança de um real sentido de justiça, cuja essência centrada esteja na garantia do debate, do diálogo e da veiculação de argumentos visando o consenso discursivo. Trata-se da imperiosa necessidade de preparar-se um ambiente para uma realidade decisória propícia à construção dos precedentes, os quais guiarão a interpretação das instâncias inferiores, devendo, somente assim, vinculá-las de forma segura, mas igualmente legítima!

A esse respeito, fácil é constatar como o Novo Código de Processo Civil enxerga, nesses termos, o papel dos precedentes. A tanto, valemo-nos, para fins de exemplificação e densidade expositiva, de uma das mais notáveis novidades introduzidas nesse novo regime normativo: o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR.

Adotamos aqui o IRDR porque ao tempo em que sua finalidade se mostra comprometida com a uniformização de entendimentos, visando à eliminação da repetitividade de demandas e a heterogeneidade de decisões, ainda informadas pelo princípio do “livre convencimento”, vê-se que nas suas disposições gerais há a regra do 4º do art. 976, que prevê o seu não cabimento,

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quando no âmbito de sua respectiva competência, os tribunais superiores já tiverem afetado recurso para a definição de tese destinada ao enfrentamento da questão de direito material ou de direito processual repetitiva.

Regramento em destaque, embora de fácil explicação à luz do sistema de vinculação proporcionado pelos precedentes, pode, se não observada a necessidade de ainda construir-se uma tradição nacional para a formação de teses jurídicas pelos Tribunais, gerar vinculação a recursos afetados, cuja tese paradigma não recebeu a necessária influência dos postulados da hermenêutica reconstrutiva, ontologicamente comprometida com a história dos precedentes.

Em outras palavras: entrando em vigor o novo Código de Processo Civil, impossível não é que o IRDR deixe de ser instaurado ante a só possibilidade de já existir um recurso especial afetado, cuja tese ali prevalecente, seja fruto, apenas, de uma mera tomada de posição do Tribunal Superior, a considerar, por exemplo, o conjunto de decisões assemelhadas proferidas sobre o mesmo tema ou questão jurídica, sem que o cuidado com o amplo debate, o sopesamento de valores e a verdadeira construção de uma história em cadeia em torno desse tema tenham ocorrido realmente!

Neste sentido, estar-se-ia admitindo a reconstrução de um entendimento, agora para o caso concreto, sobre um precedente que, na sua essência, ainda não existe, pois repise-se: não há precedente quando se tem, apenas, uma decisão superior tomada enquanto mera jurisprudência, ou ainda, quando diante se está, somente, de uma decisão que resulte de um patamar hierarquicamente mais alto na estrutura da organização judiciária a que estão submetidos Juízes e Tribunais do país.

E a leitura sistemática da referida disposição (art. 976, 4º do NCPC) com o regramento extraído do art. 927, inciso III, não nos deixa esquecer o sentido vinculativo com que se estabelece o regime do novel diploma, segundo a premissa da verticalidade da aplicação das decisões superiores aos casos concretos submetidos aos órgãos de jurisdição inferior.

A esse respeito, o inciso III desse último artigo, ao repetir o que já sabíamos, sobre a obrigatória observância, pelos Juízes, “dos acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos” fecha, hermeticamente, a exemplificação antes dita, no sentido de admitir-se que os juízes e tribunais, vinculados ainda estejam às decisões provenientes de recursos afetados, sem que a chance de construir-se um genuíno precedente em torno do tema tenha, de fato, se verificado. É que estando afetado um recurso

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sobre esse mesmo tema e com isso, inadmitida a instauração do respectivo IRDR, essa afetação anterior já poderá ter decorrido da visão monológica e solipsista da instância superior julgadora, que ainda movida pela “consciência” do relator, tenha se posicionado sobre o tema, sem a necessária construção de uma história contextualizada sobre as suas singularidades e sem a obrigatória atenção ao sentido de validade da decisão, enquanto legitimidade.

Lógico que se o recurso se encontra apenas afetado, a decisão que poderá sobrevir de sua análise já pode se pautar no modelo interpretativo/argumentativo inaugurado pelo NCPC, inclusive contando com a necessária influência do espaço público, como se dá com as previsões normativas referentes à realização de audiências públicas e intervenção de amicus curiae. Mas, veja-se, se alguns recursos já estão afetados, ainda que a decisão a ocorrer se dê segundo essa novel ambiência jurídico-positiva, deve-se reconhecer que subsiste toda uma motivação anterior, como dito, guiada pela “consciência” do Tribunal que afetou o recurso, no sentido de fazer valer, com maior grau de densidade, teses jurídicas que valeram para situações análogas ou semelhantes, todas hauridas de uma realidade em que essa abertura discursiva e essa legitimação pelo diálogo e pela cooperação ainda não existiam.

O mesmo se diga em relação à jurisprudência consolidada que está aí, nos termos do que agora é dito no inciso IV do mesmo art. 927, que tem a seguinte dicção: “os juízes e tribunais observarão: IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional.” Ora, se a vinculação é expressa ao Direito Sumular advindo do STF e do STJ, como suscitar um IRDR para dirimir a mesma questão de direito a envolver inúmeras demandas repetitivas, de acordo com a necessária formação de uma tese jurídica, se todo esse percurso pode ser simplesmente substituído pela já preexistente súmula de tribunal superior, cujo conteúdo, por expressa remissão do retrocitado inciso IV, continua a vincular todos os juízos singulares e colegiados de inferior hierarquia espalhados pelo país afora?

É preciso reconhecer que o NCPC, embora inaugure uma nova etapa para o Direito Processual Civil Brasileiro, não irromperá no mundo jurídico afastando, por completo, toda uma tradição já sedimentada, seja na maneira de conceber o processo, de acordo com a nossa cultura, seja no especial modo de aplicar-se a regra processual aos casos concretos.

Não se pode olvidar, ainda, a cultura do produtivismo jurisdicional que a despeito de ancorar-se num fundamento social e politicamente aceito, consistente na necessidade de apresentar-se uma resposta rápida aos mais

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diversos conflitos que aportam no Judiciário, traz a difícil questão, que agora se mostra, de como conciliar essa necessária rapidez com o tempo igualmente necessário para o diálogo e para o debate. Não tenho dúvida de que a construção de uma história para a tomada de posição, inclusive, no sentido deliberativo/decisório não pode menoscabar a importância do tempo. Isso para mim é um fato!

Creio, assim, que em Pindorama precisamos mesmo é construir uma tradição realmente devotada ao incremento do argumento democrático no poder decisório cometido a Juízes e Tribunais!

E digo ainda: precisamos assim agir atribuindo maior largueza a essa construção, no sentido de depositarmos confiança nesse labor, pois se sabe que a magistratura, assim como uma charneira, que se move para abrir e fechar janelas, ora pode significar um valioso instrumento para a “manutenção da ordem e do status quo” constituído na conformidade de objetivos às vezes indefensáveis, ora pode simbolizar uma grandiosa peça de reavaliação e crítica das formas de vida estrategicamente criadas pelos sistemas, político e econômico, para seqüenciarem os seus próprios projetos de dominação e de poder, a despeito do sacrifício permanente dos interesses, projetos e sonhos da maioria dos jurisdicionados.

Necessitamos, então, de uma construção e não da crença, com certo grau de ingenuidade, numa reconstrução sem uma base ontológica prévia, definida e autenticamente comprometida com a participação/deliberação democrática. O porvir de uma hermenêutica fundada num grau zero (STRECK, 2008, p. 81) procedimental e discursivo pode ser a grande ferramenta para esse projeto. A chance de construirmos uma história de precedentes em que, desde o primeiro passo, se verifique e se contemple, na formação do pensamento que conduzirá à prolação das primeiras decisões, a interferência direta do argumento democrático, aberto à pluralidade e aos diversos contextos que só o Brasil, como caso particular, ostenta, é a chave para esse grandioso projeto e para a estruturação de uma Jurisdição substancialmente democrática.

Do contrário, o que teremos é a reprodução de mais um modelo sem o cuidado de reconhecer-se, nessa reprodução, as diferenças abissais que nos colocam fora do alcance de uma hermenêutica reconstrutiva, nos moldes da common law. Certamente, isso até poderá nos trazer a impressão de uma mudança de rumos, a considerar a realidade da jurisprudência nacional que se evidencia. Mas, de outro tanto, em pouco tempo nos gerará a certeza de que estamos a vivenciar, apenas, a fé no mito da segurança, cuja confiança na legitimidade do processo decisório escapou, ante a reprodução de teses e

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idéias anteriores à proposição de fundo encorpada no NCPC. Se o peso de uma jurisprudência já consolidada não for relativizado

frente à necessária construção de uma verdadeira teoria de precedentes, estaremos inocentemente reconstruindo um caminho hermenêutico que sequer foi demarcado... Estaremos alegoricamente “inventando a roda que sequer se intuiu” e isso tudo é dito, porque numa democracia não se pode admitir uma simples ou mera adaptação de paradigmas teóricos. É fundamental que se propiciem condições reais para a formação de linhas de pensamento, condutoras de posições sobre temas relevantes, no campo do Direito Público e no plano do Direito Privado, que tempos após, aí sim, no seu conjunto, venha a se revelar como a verdadeira tradição jurídica nacional, sedimentada numa linha de precedentes logicamente estruturada no tempo. Nessa etapa, certamente, poderemos reconstruir...

4 À GUISA DE CONCLUSÃO: ESTABILIDADE E PREVISIBILIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS SEM PREJUÍZO DA LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA. DO CONTRÁRIO, SEGURANÇA DE QUÊ E PARA QUEM?

Com o objetivo de oferecer um desfecho a esse escrito, penso que é chegado o momento de refletir em termos finais sobre a motivação que me move a defender ardentemente a construção de uma tradição de decidibilidade de conflitos com vistas à formação, entre nós, de uma cultura dos precedentes. Essa motivação relaciona-se com todo vigor a outro plano de abordagem filosófica. Presa está à filosofia política do Direito e ao compromisso que ela tem de oferecer bases especulativas sobre a opção histórica dos Estados Constitucionais pela Democracia.

Com isso, diante de nós se afigura clara a necessidade de conciliar-se o grande objetivo prático do NCPC, que é o de estabilizar o mundo da fenomenologia jurisprudencial, visando conferir previsibilidade à solução dos conflitos levados ao conhecimento da Jurisdição Estatal com a também necessária obtenção de legitimidade para esses atos decisórios.

É assim que o NCPC deve ser percebido: como um complexo de regras que se de um lado objetivam conferir segurança e estabilidade ao sistema de decisões judiciais, de outro também devem assegurar que essas decisões sejam cunhadas com a participação efetiva em contraditório, com a primazia do mérito e com a vanguarda de conteúdos firmados na pluralidade dos interesses em jogo.

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Não se trata, portanto, de formular uma crítica dirigida à orientação filosófica que informou a principiologia do novo diploma processual civil. Nem mesmo se conjectura sobre a necessidade ou não de visar-se a estabilidade e a previsibilidade das decisões como o grande alvo dessa nova etapa da ciência processual no Brasil, como se apenas os fins econômicos representassem o leitmotiv dessa grande mudança e que, mais uma vez, os paladinos da Teoria dos Sistemas, com isso, tentassem fazer prova de que, realmente, o sistema do Direito sempre esteve em intercomunicação direta com o sistema da Economia. Ou como querem os prosélitos da Teoria Crítica, quando afirmam que, colonizado por ela, o Direito torne-se refém, quase sempre, de interesses estratégicos e instrumentais pertencentes à política e ao dinheiro.

Realmente, à guisa de conclusão, o que quero dizer é que para salvar o projeto de um novo diploma processual civil para o Brasil, fundamental é que reconheçamos ao nosso país a sua face verdadeira, a sua identidade enquanto Pindorama e, assim, possamos resgatar na base dessa estabilidade tão decantada, um autêntico projeto de construção de uma Jurisdição Democrática! Uma arquitetônica, não um arquétipo, que se mostre completamente sintonizado com os anseios de uma sociedade abalançada por uma esfera pública atuante, vigilante e permanentemente ajustada ao termômetro do debate, da discussão...

É essa estabilidade que se almeja, nascida de raízes argumentativo-discursivas que são só nossas, pois partidas de uma história construída na conformidade de nossa experiência judiciária, que conte com ampla participação de todos os segmentos sociais, fortemente comprometidos com o ideário democrático, na sua dimensão participativa e de conteúdo.

Do contrário o mais humilde dos jurisdicionados, o mais rústico e pouco letrado dos destinatários da Jurisdição, paradoxalmente dirá, do mais alto de sua sapiência haurida da cultura e da experiência de sua rica vida de trocas e câmbios vivenciais, em alto e bom som:

Segurança de quê e para quem?

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NEW CCP AND ALLEGORY OF HINGE: A PHILOSOPHICAL INFLECTION TO THE MYTH OF SAFETY PINDORAMA

ABSTRACT

Faced with the imminent effect of the new Code of Civil Procedure and and the questions brought related to the appreciation of precedents, the present paper intends to analyse the Legal Certainty present in the new normative text, from the study of precedent policy currently adopted and the one which is proposed to be adopted by the new code system . Thus, it will be made a critic review about the new questions brouth by the new CCP, especially in the matter of the stability of decisions , the contradictory effect and prioritization of procedural merit.

Keywords: New Code of Civil Procedure. Legal Certainty. Precedents.

REGRA-MATRIZ DEINCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA:

UMA INTRODUÇÃO

Robson Maia LinsGraduação pela UFRN. Mestre e Doutor

em Direito Tributário pela PUC-SP.Professor nos cursos de graduação,

especialização, mestrado e doutoradoem Direito da PUC-SP e do IBET. Advogado.

RESUMO

Neste trabalho exponho em linhas gerais a Teoria da Regra-Matriz de Incidência Tributária, desenvolvida pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho, a partir das categorias do Constructivismo Lógico-Semântico. Esta técnica de compreensão dos textos legislativos tem se mostrado muito valiosa para os estudiosos do direito tributário, do Brasil e do Exterior, e também em outros campos do direito. Seu bom êxito deve-se, em grande parte, aos expressivos ganhos analíticos que seu emprego propicia no estudo de diferentes tipos normativos.

Palavras-chave: Teoria da Norma Jurídica; Regra-matriz de Incidência Tributária; Constructivismo Lógico-Semântico.

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1 Introdução e objetivos

Neste trabalho pretendo fazer uma apresentação da teoria da regra-matriz de incidência tributária, concebida pelo Prof. Paulo de Barros Carvalho e considerada entre os estudiosos do direito tributário hodierno como uma das mais valiosas contribuições para o desenvolvimento deste campo no Brasil e no exterior.

As bases teóricas dessa técnica de interpretação do direito têm sido estudadas também por pesquisadores de outros ramos jurídicos e inspirado a elaboração de muitos trabalhos no direito penal, administrativo, trabalhista etc., especialmente nos cursos de especialização, mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-SP.

Para bem cumprir o papel de introduzir essa teoria em meio às restrições de espaço que o formato desse artigo comporta, dividirei o tema em três blocos: no primeiro deles exponho as duas premissas mais importantes para o desenvolvimento da teoria da regra-matriz de incidência tributária; no segundo deles, pretendo chamar atenção para sua natureza de técnica científica, explicando aí o porquê de sua ampla utilização não apenas no Brasil, mas também no exterior e, em certa medida, o porquê de ela servir de base para estudos em outras áreas do direito; o terceiro bloco é dedicado à exposição dos componentes da regra-matriz, seus critérios, e como eles podem ser vislumbrados no estudo das normas que tratam da incidência de tributos.

2 Pressupostos para elaborar a regra-matriz de incidência tributária

1.1 A Norma Jurídica e a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen

O alicerce da regra-matriz de incidência tributária encontra-se no setor da Teoria Geral do Direito que se ocupa do estudo das normas jurídicas. Não quero, com isso, dizer do setor que se encarrega de certas normas aplicadas, como o direito penal brasileiro, ou o direito civil espanhol, mas tratar daqueles estudos que se pretendem ainda mais gerais: que cuidam de responder à pergunta “que é uma norma?”, antes mesmo de se preocupar com “quais são as normas de um ordenamento jurídico X”.

Sobre esse problema, muitos estudos foram produzidos, mas é fundamental a contribuição de Hans Kelsen (2008) com sua Teoria Pura do Direito. Muitas vezes mal interpretado por vários autores hodiernos, é inegável

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que a obra citada constitui o primeiro esforço no sentido de construir um método científico que fosse autêntica e puramente jurídico. O cuidado na demarcação do objeto, colocando a norma jurídica no centro das atenções e erigindo barreiras para evitar a confusão metodológica com outros ramos do conhecimento (em especial os que muito se aproximam do direito, como a economia, a sociologia, a psicologia etc.) são características que marcam a formação de toda e qualquer ciência, como diz Karl Popper (2010).

A opção de Kelsen foi examinar o direito a partir da norma e limitar-se a ela. Não porque considerasse irrelevantes as pressões econômicas na formação de um ordenamento, ou o exame de como os dados históricos e políticos influenciam a forma que o direito assume num dado momento, mas porque uma ciência jurídica carece de um traço comum para que possa identificar o seu objeto, mesmo em meio a tanta variação, sem confundi-lo com o objeto dos cuidados de nenhuma outra ciência. E assim fez Kelsen ao afirmar que “ter normas” é o traço comum a todo e qualquer ordenamento jurídico, tal como o “ter vida” é o traço comum a todos os organismos que são estudados pela Biologia, por exemplo.

Para conseguir lidar com um conceito de norma jurídica que fosse o mesmo para todo e qualquer ordenamento, Kelsen voltou-se à estrutura da norma jurídica. Trata-se de opção metodológica que o levou a construir uma teoria predominantemente formal do direito. Essa visão é, com efeito, redutora do fenômeno jurídico, mas é uma redução “estratégica”, para que se possa compreender esse objeto mais complexo a partir de uma base sólida e uniforme. Se pararmos para pensar o que têm em comum as normas jurídicas de todos os vários ordenamentos que existem (e também os que já existiram), certamente não encontraremos uniformidade nem no plano do conteúdo, nem mesmo nos efeitos históricos por eles desencadeados. A genialidade de Kelsen foi apurar que toda norma pode ser descrita mediante uma proposição logicamente denominada “juízo hipotético-condicional”. É essa a forma lógica que serve de suporte para toda e qualquer ordem, comando, diretriz, regra, e assim também acontece com a norma jurídica. Essa uniformidade é o que se convencionou chamar “homogeneidade das normas jurídicas”.

A norma jurídica, portanto, em qualquer ordenamento, tem sempre essa mesma forma que é revestida com o conteúdo que os sujeitos competentes, em certas condições de tempos e espaço (que, por óbvio, variam), decidem implementar. Ainda que não concordemos os valores prestigiados por um certo ordenamento, como o do Brasil escravista, por exemplo, é certo que havia uma norma jurídica que permitia a escravidão; de outro lado, hoje existe

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no ordenamento jurídico, uma norma que proíbe a escravidão. Vê-se, com um exemplo simples assim, que não poderia ser o conteúdo que diz o que é um dado para a ciência jurídica, pois este varia.

Muitos seguiram a linha inaugurada por Kelsen, construindo uma teoria formal do direito, assentada em conhecimentos de lógica, como foi o caso de Georg Von Writght (1963) e, entre nossos compatriotas, vale destacar o pernambucano Lourival Vilanova (2005). A concepção teórica da regra-matriz de incidência tributária carrega muito desses estudos de Teoria do Direito, em especial a premissa inaugurada por Kelsen e aperfeiçoada por Lourival Vilanova de que as normas jurídicas têm uma mesma estrutura lógica que se repete, através dos tempos e dos ordenamentos.

2.2 O Direito é Texto

Uma segunda premissa chave para bem compreender a regra-matriz de incidência tributária é a noção de que o direito é texto. Para melhor explicar tal ponto de vista, lembrar aqui um exemplo de Gregorio Robles, teórico espanhol fundador da Teoria Comunicacional do Direito: imaginemos o Código Civil espanhol. Se por alguma operação técnica conseguíssemos suprimir todas as palavras deste código, que restaria? Além de um volume de papel, do barbante da encadernação, da cola que prende os cadernos na lombada, do papelão com que se fez a capa… nada restaria e, certamente, ninguém cometeria a sandice de dizer que ali está o Código Civil espanhol (2005, p. 38).

A consciência desse aspecto do objeto jurídico é o que justifica o uso de uma série de instrumentos desenvolvidos pelos teóricos da linguagem e da semiótica (teoria geral dos signos) para entender essa linguagem com a qual são feitos os textos jurídicos, reconhecendo seus três níveis: (i) o formal ou lógico, seu plano dos (ii) conteúdos e, ainda, seu aspecto (iii) pragmático ou funcional. Esses níveis não se contrapõem, mas se sobrepõem para formar um texto qualquer. Assim também acontece com os textos jurídicos.

A teoria de Kelsen, sobre a qual falamos há pouco, destaca-se pela análise de um desses planos: o formal; apresentando deficiências nos demais. Isso, no entanto, não descredencia sua teoria, apenas chama atenção para que o cientista do direito não se limite ao aspecto lógico, lembrando-se da importância de inquirir sobre os dois outros planos: o semântico e

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o pragmático1. Daí a riqueza que os estudos complementares de Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho assumem na conformação de uma escola de pensamento que é hoje conhecida pelo nome Constructivismo Lógico-Semântico.

A unidade da forma e seu estudo, no entanto, mostra-se um bom ponto de partida, tal como a estrutura de uma frase qualquer da língua portuguesa aparece como um requisito para que possamos interpretá-la bem. De fato, a sequência de palavras “não livro grande o é”, por não se adequar às estruturas usuais da língua portuguesa, não diz o mesmo que “o livro não é grande”. A estrutura aparece como uma condição necessária, um prius, para que a frase tenha sentido. Assim também no direito: sem que o texto jurídico seja revestido de uma estrutura normativa básica, nenhuma ordem ele conseguirá dar e não logrará cumprir seu propósito de regrar uma sociedade e implementar os valores mais caros a um povo.

Lembrar que o direito é texto significa reconhecer nele a presença de estruturas, de formas lógicas, de uma sintaxe em suas normas. Mas é também recordar que existe algo mais para além dessa forma, sem o qual as ordens não têm sentido ou são incapazes de cumprir sua função de regular condutas entre os homens.

3 A regra-matriz de incidência tributária é uma norma?

Para dizer de modo bem simples, a regra-matriz de incidência tributária é uma fórmula, que expõe a estrutura de uma norma jurídica que cuida da incidência dos tributos. Justamente porque é uma fórmula, não carrega os sentidos, nem dá ordens: é apenas um arranjo lógico com variáveis que devem ser preenchidas com conteúdos que a experiência jurídica apresenta.

Se fizermos um paralelo com a física, a regra-matriz de incidência tributária está para um tributo tal como a fórmula da 2ª Lei de Newton (F= m.a) está para uma força qualquer. Assim como a fórmula não é a força propriamente

1 Lourival Vilanova, em seu livro “Estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, reiteradamente adverte para os riscos do logicismo, essa atitude de limitar-se ao aspecto lógico no estudo de um tema pertencente aos domínios da cultura. É uma parte do estudo e, como tal, é importante, mas não completa.

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dita, não é aquele objeto do mundo físico, mas um modo de reduzir os muitos dados de um problema para poder representar e estudar essa força específica, a regra-matriz de incidência tributária é um modo de tomar todo um conjunto de leis que tratam de um dado tributo e organizá-lo numa estrutura mais simples e inteligível, facilitando seu estudo e compreensão.

A regra-matriz de incidência tributária, portanto, não é, em si, uma norma, mas um modo para construir o sentido de normas, como expõe Aurora Tomazini de Carvalho, in verbis: “A regra-matriz, considerada como estrutura logica, é desprovida do conteúdo jurídico, trata-se de um esquema sintático que auxilia o intérprete no arranjo de suas significações, na construção da norma jurídica.” (2015, p.382).

E tal como a mesma fórmula da física pode ser usada para tratar problemas com variáveis diferentes, assim também no direito se pode usar a fórmula da regra-matriz de incidência tributária para estudar tributos bem distintos, como o Imposto sobre a Renda (IR), o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICMS) etc. e também tributos de outras épocas, como o Imposto do Selo, e até de outros países, como se registra com o emprego da regra-matriz de incidência tributária em vários trabalhos desenvolvidos na Itália, Espanha, França, Estados Unidos, Argentina, Peru, Colômbia, Chile, dentre outros.

4 Os critérios da regra-matriz de incidência tributária

A regra-matriz de incidência tributária é uma fórmula composta de cinco variáveis que formam os seus critérios, todos eles devem ser preenchidos com conteúdos dos textos legais para que possamos entender um comando jurídico. Que falte um e ficará comprometida a clareza quanto ao que se prescreve no ordenamento jurídico ante uma dada situação e, consequentemente, inviabilizado fica o trabalho de aplicar a norma jurídica tributária.

Partindo do pressuposto de que as normas jurídicas tributárias têm sempre a mesma estrutura hipotética-condicional, o Prof. Paulo de Barros Carvalho assim enuncia os componentes da regra-matriz de incidência tributária, dando um exemplo com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI):

Dentro desse arcabouço, a hipótese trará a previsão de um fato (se alguém industrializar produtos), enquanto a consequência

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prescreverá a relação jurídica (obrigação tributária) que se vai instaurar, onde e quando acontecer o fato cogitado no suposto (aquele alguém deverá pagar à Fazenda Federal 10% do valor do produto industrializado).A hipótese alude a um fato e a consequência prescreve os efeitos jurídicos que o acontecimento irá propagar, razão pela qual se fala em descritor e prescritor, o primeiro para designar o antecedente normativo e o segundo para indicar seu consequente.Os modernos cientistas do Direito Tributário têm insistido na circunstância de que, tanto no descritor (hipótese) quanto no prescritor (consequência) existem referências a critérios, aspectos, elementos ou dados identificativos. Na hipótese (descritor), haveremos de encontrar um critério material (comportamento de uma pessoa), condicionado no tempo (critério temporal) e no espaço (critério espacial). Já na consequência (prescritor), depararemos com um critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo) e um critério quantitativo (base de cálculo e alíquota). A conjunção desses dados indicativos nos oferece a possibilidade de exibir, na sua plenitude, o núcleo lógico-estrutural da norma-padrão de incidência tributária. (2015, p.239)

Representados num esquema lógico, os critérios da regra-matriz de incidência tributária têm a seguinte disposição:

D [ Cm ( v . c ) . Ct . Ce ] [ Cp ( Sa . Sp ) . Cq ( bc . al ) ] Em que: D representa a cópula deôntica; Cm é o critério material,

composto por um verbo v e um complemento c; Ct é o critério temporal; Ce é o critério espacial; Cp significa o critério pessoal, formado pela indicação de um sujeito ativo Sa e um sujeito passivo Sp; Cq é o critério quantitativo integrado por uma base de cálculo e uma alíquota.

Para que se possa ter melhor noção do potencial analítico dessa fórmula, convém examinar cada um desses critérios com mais vagar.

4.1 Hipótese tributária

A hipótese, explica-nos Lourival Vilanova (2005), é sempre a descrição de um fato, daí chamar-se também muitas vezes de descritor. Seu papel é estipular qual comportamento precisa ser identificado para que possa instalar a relação jurídica resultante da incidência da norma, ou seja, qual a condição para impor sobre os sujeitos envolvidos os direitos e deveres que pretende o direito implementar. Em outras palavras, diz quê, quando e onde se devem procurar as condições para justificar a aplicação de uma norma jurídica.

No caso dos tributos, esse pedaço da norma jurídica também se costuma denominar “fato gerador”, como se observa, por exemplo, no art.

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114 do Código Tributário Nacional (CTN), que assim define: “Fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência”.

Os critérios que compõem a hipótese da regra-matriz de incidência tributária são três: material, espacial e temporal, a identificação de cada um deles em meio ao texto legislado comporta uma série de observações e abre um leque extenso de possibilidades para a pesquisa jurídica.

4.1.1 Critério material

Sempre composto pela cópula de um verbo e um complemento, o critério material da regra-matriz de incidência tributária serve ao propósito de especificar qual o comportamento que precisa ser realizado pelo agente para dar ensejo à incidência do tributo.

A identificação do critério material deve ecoar diretamente as faixas de competência delimitadas na Constituição. Assim, quando o legislador federal exercita a competência que lhe foi conferida para criar o imposto sobre a renda, não pode escolher critério material diverso de auferir renda, não apenas porque renda é o complemento expressamente previsto na Carta (art. 153, III), mas também porque a escolha do verbo que o acompanha deve ser orientada pelo princípio da capacidade contributiva (art. 145, §1º, da Constituição), que restringe a escolha legislativa apenas a signos presuntivos de riqueza, não sendo constitucional, por exemplo, tributar a perda da renda, apenas o seu ganho.

Para além da pesquisa nos textos das leis que cuidam da instituição da cobrança por enunciados que, literalmente, indiquem o verbo e o respectivo complemento, é possível isolar o critério material de um tributo também na “implicitude” da legislação, apoiando-se na necessária ligação que deve haver entre ele e a base de cálculo do tributo. Com efeito, Alfredo Augusto Becker já dizia que a base de cálculo é núcleo da norma tributária2 e, de fato, dentre as funções que ela desempenha3, está a função comparativa: que lhe permite

2 “Na composição da hipótese de incidência, há um fato que desempenha a função de núcleo e, por exclusão, todos os demais fatos exercem a função de elementos adjetivos. Na hipótese de incidência tributaria, o núcleo é o fato escolhido para base de cálculo.” (BECKER, 2013. p.281.)3 Segundo Paulo de Barros Carvalho (2005) são três: (i) objetivar a matéria que está sendo tributada; (ii) mensurar a intensidade com que o sujeito pratica o fato descrito

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afirmar o critério material ali onde ele estiver oculto, confirmar quando, uma vez expresso, ele coincida com a matéria mensurada na base de cálculo ou, ainda, infirmá-lo quando houver disparidade entre o critério material expresso e aquele posto na base de cálculo do tributo.

Um exemplo interessante dessa habilidade da base de cálculo de infirmar o critério material ocorreria se um município qualquer, a título de “adicional de IPTU”, tributasse os imóveis urbanos alugados não apenas pelo IPTU, mas também cobrando um percentual sobre o aluguel. Ora, ao tomar como base para o cálculo o valor do aluguel, está o município em questão tributando um fato diverso daquele “ser proprietário”, que é o critério material do IPTU. Estaria ele fazendo incidir o tributo sobre a renda, invadindo esfera de competência que pertence à União.

Examinar com mais atenção o critério material permite perceber que alguns impostos previstos na Constituição escondem, por detrás de um só nome, diferentes normas de incidência. É o exemplo do ICMS: que não incide apenas sobre a hipótese circular mercadorias, mas também sobre “sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação” (art. 155, II, da Constituição); ou ainda o IPI que, segundo o art. 46 do CTN, incide sobre tais produtos em três situações bem distintas:

[…]I - o seu desembaraço aduaneiro, quando de procedência estrangeira;II - a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;III - a sua arrematação, quando apreendido ou abandonado e levado a leilão.

4.1.2 Critério temporal

O critério temporal dita o instante em que se deve apurar a ocorrência da conduta descrita no critério material. Pode ser que remeta a uma das etapas do procedimento dessa conduta, como é o caso no ICMS, dos dispositivos que dizem que o “fato gerador ocorre na saída da mercadoria do estabelecimento” (art. 12, I, da Lei Complementar nº 87/96) ou, ainda, que atue fazendo referência a um dia específico no ano, como no imposto sobre

na hipótese tributária; e (iii) comparativa para afirmar, infirmar ou confirmar os enunciados que tratam do critério material nas leis.

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a renda é o último instante do último dia de cada ano.Mesmo diante dos chamados fatos jurídicos continuados, como é o

caso da propriedade de bem imóvel, o critério temporal da regra-matriz de incidência tributária sempre aponta para um único instante, como o primeiro dia de cada exercício, no caso do IPTU. Os fatos jurídicos tributários, explica-nos o Prof. Paulo de Barros Carvalho, são sempre instantâneos:

O acontecimento só ganha proporção para gerar o efeito da prestação fiscal, mesmo que composto por mil outros fatores que se devam conjugar, no instante em que todos estiverem concretizados e relatados, na forma legalmente estipulada. Ora, isso acontece num determinado momento, num especial marco de tempo. Antes dele, nada de jurídico existe, em ordem ao nascimento da obrigação tributária. Só naquele átimo irromperá o vínculo jurídico que, pelo fenômeno da imputação normativa, o legislador associou ao acontecimento do suposto. (2015, p. 334)

4.1.3 Critério espacial

Assim como o critério temporal demarca um instante em que se deve verificar a ocorrência do fato jurídico tributário, com o critério espacial o que se faz é demarcar a coordenada de espaço que é relevante para a incidência do tributo. Esse critério encontra relação muito próxima com a definição do sujeito ativo da obrigação, como acontece, por exemplo, na determinação do lugar em que incide o Imposto sobre Serviços (ISS) em atividades que ocorrem em mais de um município. Onde tributar um escritório de advocacia de Natal, que tem um cliente em Jardim de Piranhas, mas apresenta apelação para o Tribunal Regional Federal da 5ª Região em Recife e, ainda, interpõe Recurso Extraordinário, em Brasília, contra o acordão daquele Tribunal? A função do critério espacial é justamente cortar essa complexidade geográfica e reduzindo-a a unidade, como bem apontou Lucas Galvão de Britto (2014) em monografia sobre essa matéria.

4.2 Consequente tributário

Se o antecedente, a hipótese, cuida de descrever as condições necessárias à identificação do fato jurídico tributário, o consequente, por sua

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vez, delimita a conduta prescrita, o comando exarado pelo direito, a ordem que se pretende implementar. É no consequente que se diz quem cobra, o que é cobrado e de quem é cobrado.

Nesse aspecto, vale notar que o consequente tem sempre os elementos de uma relação jurídica no sentido mais estrito dessa expressão: aquela que vincula dois (ou mais) sujeitos em torno de um liame em que se encontram direitos subjetivos, deveres jurídicos e um objeto prestacional. Os critérios da consequência normativa devem, portanto, identificar as variáveis nessa estrutura que, nas normas tributárias, são duas e montam o critério pessoal e o critério quantitativo. Cada um deles, porém, subdivide-se: o primeiro em dois elementos, para expor a natureza bilateral da obrigação tributária, requerendo a identificação de duas sujeições, uma ativa e outra passiva4; o segundo também se biparte ao tratar de matéria tributária, pois a apuração dos tributos sempre se dá pela conjugação de uma alíquota a uma base de cálculo.

4.2.1 Critério pessoal

O critério pessoal é aquele que isola as sujeições da obrigação tributária, fazendo voltar a atenção do estudioso para as condições que as pessoas precisam atender para poder figurar num dos polos da relação, seja como credor, seja como devedor.

Nas normas jurídicas tributárias o sujeito ativo costuma ser uma das pessoas jurídicas de direito público interno: a União, os Estados, o Distrito Federal ou qualquer um dos Municípios. Isso porque conforme nossa Constituição prescreve, a cada um deles compreende um feixe de atribuições para que possam produzir leis e instituir tributos para custear suas funções e intervenções na comunidade. Ocorre que a atuação direta de um desses

4 Mais de uma pessoa pode ocupar uma mesma sujeição, havendo, por exemplo, a solidariedade entre os cônjuges pelo pagamento do IPTU de um imóvel que a ambos pertence a propriedade. Não se trata de duas sujeições com isso, mas de uma mesma, ocupada por duas pessoas. A esse respeito, vale notar a distinção entre pessoa e sujeito que faz Pontes de Miranda: “Rigorosamente, só se devia tratar das pessoas, depois de se tratar dos sujeitos de direito; porque ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito. Ser sujeito de direito é estar na posição de titular de direito. […] Se alguém não está em reação de direito não é sujeito de direito: é pessoa; isto é o que pode ser sujeito de direito” (MIRANDA, 1972, p.153)

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entes nem sempre é o caminho eleito para que o Estado (no sentido mais amplo da expressão) realize suas finalidades. Muitas vezes, esse agir estatal é desempenhado por outros agentes, como fundações, autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mistas etc. e, assim, em alguns casos, os tributos legalmente instituídos por uma pessoa de direito público não necessariamente colocarão na função de credor esse próprio ente, preferindo que outra entidade ocupe esse lugar e tenha a atribuição de arrecadar os montantes devidos. É a chamada “parafiscalidade”.

Um bom exemplo é a contribuição paga por todos os causídicos à Ordem dos Advogados do Brasil. Trata-se de tributo federal, instituído por Lei da União, mas cobrado por outra pessoa, a própria OAB, que a lei coloca na condição de sujeito ativo.

O que quero chamar atenção com esse apartado é que o sujeito ativo, conquanto muitas vezes o seja, não necessariamente será a mesma pessoa que instituiu a lei. Em outras palavras, deve-se separar do ponto de vista do estudo do direito as figuras do sujeito competente e do sujeito ativo na obrigação tributária: são conceitos distintos, ainda que venham apontar para uma mesma pessoa. Ser competente é ter o poder de fazer lei a respeito da incidência de tributos, ser sujeito ativo numa obrigação tributária legalmente instituída é ter o poder de cobrar (inclusive judicialmente) a prestação do devedor. Mais um exemplo pode ajudar a esclarecer a referida distinção: a Lei nº 11.250/05 autoriza a União a celebrar convênios com Municípios para que estes fiscalizem e arrecadem o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) e, nesses casos, para estes devem ser vertidos a integralidade dos recursos. Em tais situações, está o Município a ocupar a sujeição ativa da obrigação de um tributo da competência da União, pois a Lei assim dispõe.

Do outro lado da relação jurídica tributária está o sujeito passivo, este que tem o dever jurídico de adimplir o crédito tributário. Nesse ponto, é muito importante dar a devida extensão ao adjetivo jurídico, pois essa é matriz de muitas confusões na doutrina e na jurisprudência.

Quando dizemos que se trata do dever jurídico, é para limitar nossa atenção apenas àquele dever que a lei instituidora do tributo tenha determinado, excluindo qualquer outra imposição econômica, contábil ou até mesmo outras disposições de direito privado.

Vamos ao exemplo: no ICMS incidente nas vendas feitas por um supermercado no varejo, o contribuinte, segundo a Lei Complementar nº 87/96, será a pessoa jurídica do supermercado. Se ele repassa o valor do tributo no preço (transmissão econômica), se houver um destaque na nota fiscal que lhe

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diga o quanto foi pago de tributo para cada tributo devido (detalhamento contábil), nada disso interfere no dever jurídico que tem o supermercado de pagar o imposto e, consequentemente, não retira do Estado o poder de cobrar em juízo contra o supermercado e não contra o consumidor.

Outro exemplo interessante e bem comum no cotidiano pode ser encontrado no aluguel de imóveis. Nesses contratos, é prática usual de mercado estipular que o pagamento do IPTU corre por conta do locatário. Essa disposição, conquanto crie uma relação jurídica de direito privado que autoriza a cobrança pelo locador sobre o locatário do montante devido a título de IPTU, não produz nenhum efeito no sentido de alterar a sujeição passiva tributária, pois o Município, amparado na lei, cobrará judicialmente o tributo do proprietário locador e não do inquilino locatário. É precisamente o comando do art. 123 do CTN: “as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”.

Como modo de discernir a figura do devedor legal e aquela de quem financeiramente suporta o ônus, surgiu na doutrina a distinção entre as figuras dos contribuintes de direito e de fato. Diz-se contribuinte de direito aquele que, previsto nas leis que instituem o tributo, ocupa o lugar de sujeito passivo na regra-matriz de incidência tributária. Já o contribuinte de fato é aquele que, por qualquer motivo (como o repasse no preço que faz o supermercado ou a cláusula do contrato de aluguel, nos exemplos acima), factualmente arca com a despesa financeira decorrente do imposto.

Outro aspecto relacionado à sujeição passiva são as hipóteses de normas de responsabilidade tributária. Responsável, nos dizeres do CTN, em seu art. 121, parágrafo único, II, é todo aquele que “sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei”. Trata-se de definição um pouco tortuosa, pois se serve de uma cláusula muito geral e outra, que define pela negativa.

Dizer que responsável é aquele que decorre de disposição expressa de lei nada contribui para separá-lo da figura do contribuinte, pois a circunstância de alguém ser contribuinte somente se dá se a lei que institui o tributo investir uma pessoa na sujeição passiva da regra-matriz de incidência tributária. É cláusula excessivamente genérica, que se presta somente a descrever os sujeitos que poderão ser chamados a pagar uma dívida tributária.

A condição seguinte é complicada em função da negativa (“sem revestir a condição de contribuinte”), que nos obriga a entender primeiro o

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conceito legal de contribuinte para compreender a definição de responsável. Vamos a ele então. Contribuinte, diz o CTN, é a figura legal que tem “relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador” (art. 121, parágrafo único, I). A negativa dessa característica, combinada à condição genérica anterior, permite dizer que é responsável todo aquele que (i) mesmo sem ter relação direta com o fato jurídico tributário é (ii) chamado a responder por força de lei.

As causas que levam alguém a ser considerado responsável são muitas, como demonstra a extensa relação de dispositivos dos arts. 128 e seguintes do Código, nenhuma delas, por definição, envolve a participação direta na situação que causou a incidência do tributo em questão e, portanto, seu antecedente normativo não é o mesmo da norma que institui o tributo. Essa observação é importante, pois explica o porquê de a regra-matriz de incidência tributária não estudar a figura do responsável: justamente porque limita sua atenção à norma que institui o tributo, não cuida de outras normas como a da responsabilidade tributária, que tem outro fato jurídico que serve de causa à sua incidência. Assim também ocorre com as inúmeras normas jurídicas que cuidam de instituir deveres instrumentais para ajudar na fiscalização do tributo. A regra-matriz de incidência tributária limita sua atenção a saber do tributo “em si”, suspendendo a atenção de todo o mais. Não porque tais outras normas não sejam importantes, muito ao contrário! Trata-se de uma separação estratégica, para conhecer a complexidade do fenômeno jurídico por partes, estudando cada uma das normas envolvidas com o rigor que elas exigem. É certo que, sendo uma norma jurídica naquele sentido de que Kelsen falava, poderíamos trabalhar com a uniformidade lógica das normas e construir uma regra-matriz da responsabilidade tributária, mas esta já não seria mais a regra-matriz de incidência tributária da incidência tributária.

4.2.2 Critério quantitativo

Para além de delimitar as pessoas envolvidas na relação obrigacional tributária, o consequente tributário determina também o objeto em torno do qual se articula a prestação. No caso de normas que instituem tributos, esse elemento é sempre uma importância “em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir” (CTN, art. 3º). Essa quantia, por sua vez, deve guardar alguma relação com o fato jurídico descrito na hipótese, que pode ser de proporcionalidade (no IR, por exemplo, paga-se mais tributo quanto maior for a renda auferida, conforme art. 145, §1º da Constituição) ou de retributividade (numa taxa em

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que se remunera um serviço público específico pelo pagamento de um valor que não varia em função da intensidade do uso, de acordo com o art. 77 do CTN).

Para alcançar a expressão financeira do tributo, as normas tributárias articulam duas variáveis: a base de cálculo e a alíquota. Muitas vezes a base de cálculo já constitui um montante em dinheiro, como acontece com as noções de renda, faturamento, receita etc., mas há também um número expressivo de tributos que toma por base imponível um conceito que não se relaciona diretamente com uma expressão monetária, como, por exemplo, quantidade de passaportes emitidos, a metragem quadrada de um terreno ou qualquer outro elemento quantificável.

À base de cálculo conjuga-se a alíquota, que é um expediente matemático que determina o montante devido seja ao traçar um percentual sobre a base de cálculo (como no IR das pessoas físicas, que se aplica uma alíquota percentual de até 27,5% sobre o total dos rendimentos para calcular o tributo devido), seja ao converter em termos monetários a unidade tomada de referência na base de cálculo (em alguns estados, calcula-se o ICMS incidente sobre combustíveis com um valor predeterminado por metro cúbico, por exemplo).

A definição dessa quantia devida é disciplinada por uma série de princípios constitucionais que colocam balizas às exigências fiscais. É assim com os princípios constitucionais da capacidade contributiva (art. 145, §1º), da proibição do confisco (art. 150, IV), da legalidade (art. 150, I), da uniformidade territorial (art. 150, II) etc.

5 À guisa de conclusão

A regra-matriz de incidência tributária tem servido de importante amparo aos estudiosos das normas que tratam da incidência dos tributos pois ajudam a organizar textos legislativos esparsos e em constante mutação numa estrutura coesa, simplificada e de fácil compreensão. Ao fazê-lo parte de premissas sólidas de Teoria Geral do Direito e, por isso, mostra-se solução proveitosa para vários problemas que não se limitam ao direito tributário.

O estudo de suas premissas e aplicações, por obvio, é tarefa que não se pode ter a pretensão de exaurir no breve intervalo de um artigo como este. Mas espero ter demonstrado, ainda que em linhas gerais, que esse modo de arranjo lógico das variáveis que estão no fundo de toda e qualquer norma

284 REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA: UMA INTRODUÇÃO

jurídica pode ser transposto, com algumas adaptações em seus critérios, para diversas searas do saber jurídico e, dessa maneira, contribuir também para o avanço das pesquisas em outros ramos do direito.

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MATRIX-RULE THEORY OF TAX INCIDENCE: AN INTRODUCTION

ABSTRACT

In this paper, the Matrix-Rule Theory of Tax Incidence, developed by professor Paulo de Barros Carvalho, is generally exposed from the categories of Logical-semantic Constructivism . This understanding technique of legislation has been very valuable to scholars of the tax law, in Brazil and abroad , and also in other judicial fields . Its success is due largely to significant analytical gains that its operation provides in the study of different normative types.

Keywords: Legal norm theory. Matrix-rule Theory of Tax Incidence. Logical-semantic Constructivism

Todas as normas que regem a publicação de artigos na quadragésima nona edição da Revista Jurídica In Verbis encontram-se disponíveis para download no site oficial do periódico – www.inverbis.com.br -, na seção “Normas”. As referidas normas consistem em Edital e Guia de Normas, este anexo àquele. Na supradita seção, há também um artigo modelo elaborado, a convite, pelo Professor Igor Alexandre Felipe de Macêdo.

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