confissoes de aurelio - completo

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Romance filosófico-espiritualista publicado em 2015.Autor: Leonam Rocha

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Leonam Rocha Leonam RochaIlustrao da CapaArtur BicalhoProduo EditorialTasa Siqueira taisasiq.blogspot.com.brRevisoHelton Gonalves de SouzaRocha, LeonamR672cConfsses de Aurlio / Leonam Rocha. Belo Horizonte: Do autor, 2015.395p.ISBN: 978-85-918894-0-21. Fico brasileira. I. Ttulo.CDU 869.0(81)-3FICHA CATALogRFICAElaborao: Helenice Rgo dos Santos Cunha CRB 1461Nota ao leitorRendemoshomenagemaAurlioAgostinho,maisconhecido comoSantoAgostinho,queviveuentre354e430d.C.Erahomemde notveis virtudes, um inquieto, um buscador espiritual, e por fm encon-trou na Igreja o recanto de seus anseios. Fez-se bispo de Hipona, na fri-ca romana. Suas obras correram o mundo, rendendo importantssimos frutos espiritualidade catlica. Escreveu suas famosas Confsses livro que fgura entre os mais editados do mundo ocidental em 397 d.C., e contribuiuenormementeparaconsolidaraautobiografacomogne-ro literrio legtimo e de profundidade introspectiva. Seu nome jamais ser apagado da Histria. Estudiosos o chamam de o ltimo homem da Antiguidade, aquele que, por seu exemplo de vida e legado intelectual, rematou a arquitetura do homem da ento nascente Era crist. Rendemos homenagem e pedimos: Santo Agostinho, rogai por ns. No mais que isso. Zelamos mormente pelos passos dos presentes caminhantese,maisainda,pelodestinodosvindouros,defnidosas-sim: os que tateiam e ainda tatearo no escuro, garimpando solues para os desafos dos novos tempos.Entre os homens susceptveis de serem acolhidos pelaFilosofia,creiodistinguircomoquetrs espcies de navegantes. A primeira daqueles que, tendo chegado idade em que a razo domina, afastam-se da terra, mas no demasiadamente. Com pequeno impulso e algumas remadas chegam a fixar-se em algum lugar de tranquilidade, de ondemanifestamsinaisluminosos,pormeio deobrasrealizadasnaintenodeatingiro maior nmero possvel de seus concidados, para estimul-los a virem ao seu encalo.Santo Agostinho, A vida feliz(Dedicatria a Mnlio Teodoro)9Acordei. Era cedo, era muito cedo. Tinha sede. Mal havia aber-to os olhos, mas sabia que tinha sede, uma sede fora do comum, inten-sa,tointensaqueeupareciadispostoabebervinagreouqualquer coisa que aliviasse. Saltei da cama num pulo e fui at a janela. Vendo a cidade espreguiar-se naquele fnal de madrugada, percebi que uma frase ressoava meio solta em meus pensamentos: Pai, por que me aban-donaste?Fiqueicomaimpressodequetinhaescutadoaquilonodia anterior; mas, no. Seriam os resqucios de um sonho?Imagensvvidasaforaramemminhamente.Vitudodeuma svez.Umlugardesconhecido.Umtipoderitolitrgico.Euvestia branco e era cercado por pessoas estranhas e taciturnas. Minha roupa pareciaummandriodebatismocomumapombabordadanopeito. Nodesfechodaordenao,recebiumacordaeumofcioescritoem letras de ouro, mas, subvertendo totalmente a santidade do momento, algoinesperadoaconteceu:fqueitodeslumbradocomabelezadas letras que no li o texto. Quando dei por mim, eu j havia me amarra-Prlogo10 PRLOGO do a um madeiro rstico que marcava o centro do enorme salo, e, ao tentar consultar novamente as instrues do ofcio, sentindo-me inse-guro quanto ao que estava por fazer, deparei com um papel em branco jogado a meus ps. Meu corpo todo tremeu, no mesmo instante em que a longa tnica branca tingiu-se de vermelho-sangue. J com as vistas embaralhadas e a mente turva, ouvi minha voz quebrantada repetir o enigmtico clamor de Jesus no glgota. Eli, Eli [...].Arecordaodaquelesonhonofezmuitosentidoparamim, at porque nem pude refetir sobre seu signifcado. Enquanto ainda ti-nha aquelas imagens na cabea, a sede terrvel que me consumia piorou, tornando-se insuportvel. Tentei primeiro a geladeira. Desci meio litro de gua gelada diretamente do gargalo. Foi como se no tivesse bebido nada.Continueisentindoamesmasecuranagarganta.Ummal-estar, uma nusea. Debruado sobre a mesa do caf, chupei um cubo de gelo; nada.Euestavadesesperadoenomeapercebiademeusgestosani-malescos. Por fm, lembrei-me de ouvir dizer que gua gelada no mata sede e fui ao fltro de barro. Dois, trs, quatro copos, e nada.Inquietude talvez seja uma boa palavra para defnir o quadro psicolgico que se instalou a partir de ento. Angstia, tambm. Minha face, terrivelmente sinistra, no espelho tremulava sem vida.Aquele dia, o primeiro de outros tantos, foi o pior. Meu deses-pero aumentava a cada instante. Como compreender tamanha aberra-o? Que sede era aquela? A sensao era repugnante. Confuso, eu ten-tava me convencer de que estava sob o efeito do sono, tal como num pesadelo, ou sob o efeito de algum tipo de droga que, provavelmente, tinham colocado em meu copo na noite anterior; mas, no: eu estava defnitivamente acordado. S me faltava compreender o prenncio da metamorfose. CONFISSES DE AURLIO 11Eracedo,eosraiossolaresmalhaviamrompidoabrumada madrugada.Porm,logoqueatineiparaasquestesprticasdodia que estava por nascer, o relgio passou a correr mais depressa. Como faria no trabalho? Ser que as pessoas notariam alguma diferena em mim? Ser que conseguiria chegar at o escritrio, ou me espatifaria noprimeiromeio-foqueselevantassediantedemeuspserradios? Invadiu-meumsentimentodeimpotncia.osentimentoevoluiuem pnico. Eu provavelmente enfartava. Era o fm. Minhas vistas escurece-ram. Um aperto no peito, um n na garganta, uma pontada. Um grito. No! No segundo seguinte, eu ainda estava ali, via os mveis, o quadro abstrato na parede e uma mulher adormecida em meio a edredons.Se no vai por bem, vai por mal. Assim, a semana passou, en-quanto eu me deixava levar como quem sobrevoa o palco da vida ou tangencia a superfcie de um oceano. Aquela estranha sede no deu trgua.Algumaspessoasperguntaramseestavatudobemcomigo; outras, se era ressaca. Tudo dentro dos bons costumes. os brasileiros so cordiais. Minha namorada tambm no tocou diretamente no as-sunto, nem no primeiro dia nem nos seguintes, manteve-se compre-ensiva,emboranotenhadeixadodemanifestaralgumasopinies maisimediatasdotipogostoquandovocfazabarbaouesque-ceu-se de pentear os cabelos?; isto , embora no tenha deixado de exigir, com delicadeza, seus direitos de namorada. Fora isso, meu si-lncio foi respeitado.Uma, duas, trs semanas, o estado mantinha-se inalterado, mi-nha mente vagava alhures, as pessoas pareciam distantes. Na verdade, eunoconseguiapensaremmuitacoisa.Sentiaumvaziotenebroso. E a sede, muita sede, insuportvel, indescritvel, me castigava; melhor seria estirar-me sob o sol escaldante de um deserto. PRLOGO 12Inquietude.Porfm,chegueiaomeulimite.Nopudeconti-nuar. Pedi licena ao pessoal do trabalho e me tranquei em casa. No joguei a chave fora. Joguei dentro. Mas o mais terrvel era, a despeito do recolhimento, no ter para onde correr, porque, aonde quer que eu fosse,levavaminhasedecomigo.Somentequandochegueiaoponto de entrega total quando e somente quando me dei por vencido , vi uma luz brilhar em meu corao. Era uma esperana, no fnalzinho da madrugada, mais ou menos mesma hora em que semanas antes tudo aquilo tinha comeado. Da janela do meu apartamento, vi brilhar, pou-co acima dos arranha-cus da cidade, a estrela da manh. Vi a magia daquela estrela que, tal como me piedosa, irradiava suas bnos para um novo dia.Foi como se eu ouvisse uma voz me aconselhando a ter pacin-cia; uma voz que tambm me dizia para crer que sou amado incondi-cionalmente. Ento, com os medos e mpetos suavizados manso e re-signado , comecei a compreender o que estava acontecendo comigo, a comear por entender que eu no tinha de lutar contra a sede, e que, naverdade,ocasoeramuitomenosdelutadoquedeautoconheci-mento. Se havia algo ou algum querendo me derrubar, logo, seria ne-cessrio estar mais atento e consciente para no cair, apensa isso. Pela primeira vez, aps tantos dias de desespero, no tive medo da sede, e at considerei a possibilidade de nunca mais me livrar dela.Clareou o pensamento. Eu podia enfm decifrar aquele sonho. No como quem decifra um enigma, mas como quem fnalmente cons-tata existir um adversrio oculto e decide cham-lo s claras.Quem estiver a, aparea!, lancei essas palavras no vasto deserto do meu co-rao. A voz que ouvi se disfarava entre meus pensamentos, tecendo seudomnio,eminhaconscinciaaignoravatantoquantoaluzno CONFISSES DE AURLIO 13toca a escurido. A voz era a do acusador que inferniza eternamente a vida dos coraes divididos, e o que ela dizia era: Aurlio, onde est o seu Deus?Eis o inimigo: voc chama e ele aparece. Mas depois se esconde outra vez. Se na noite daquele sonho eu me deitava imaginando erro-neamente poder me dar ao luxo de um descanso, agora, tendo penado semanas de desequilbrio, eu descobria o contrrio: a estrela da manh me revelou o tempo propcio para o combate. Hora de ver, ouvir, com-preender e seguir em frente. E foi isto que fz, comeando por procu-rar o esconderijo do hspede tinhoso: procurei-o conscientemente no lugarmaisbvioondeelepoderiaseocultar,ouseja,emmeuponto fraco. E l estava ele, com voz de falso conselheiro:Aurlio,ondeestavaseuDeusquandoelasefoi?Amulher que voc mais amou...15 15.1.[...] fizeste-nos para ti, e inquieto est o nosso corao, enquanto no repousa em ti.Santo Agostinho, Confisses (I, 1)Das confissesAcrianaquehabitaemmimadormeceuumsonodemorte, deixando acesa apenas uma centelha de esperana, como promessa de um tempo no qual as manhs lhe pertencero. Convices caram por terra,sonhosdesvaneceram.AcordouAurlio,umhomem.Maisum homem. Mais um que desperta para a batalha csmica imemorial que deu origem ao mundo. Mais um que compreende que, nessa batalha, a displicncia e a falta de iniciativa favorecem a campanha do mal. Mais um que procura fazer sua parte.Assim,subiaomontedeminhaalmaeaquipermaneo,em retiro, neste lugar onde me vejo mais perto de mim e de Deus. Meu ora-trio est aberto. Peo a guarnio divina para o trabalho que tenho a fazer. Hei de ir ao passado. Mas aprendi com os antigos que o passado terrarepletadearmadilhas,decujoshabitantesnosedistinguemfa- CAPTULO 1 16cilmente os atributos reais das iluses, sendo que, ao revisit-lo, bom no estarmos ss, pois corremos o risco de nos equivocarmos quanto a quem so nossos verdadeiros aliados. Por isso, estou aqui. Sei dos perigos que me aguardam. Ao ludbrio do vasto corao humano, concorrem as incontveis artimanhas do adversrio: pelo nome esconjurado, Satans. Dou incio s confsses de uma vida e quero que meu objetivo esteja bem claro. Por que confessar? Para encontrar Deus em cada ca-ptulo de minha histria. Para recolher, em meu oratrio, os santos de minha devoo.Mas por que no recorrer, por exemplo, ao div, que tambm um bom lugar para se fazer um balano biogrfco? Penso que se trata de uma imprescindvel questo de mtodo. Alguns preferem a psican-lise. outros, a introspeco. Quanto a mim, creio que o ato de confessar trazavantagemdenodarchanceaoengano.Aanlisepodesele-cionar o contedo da investigao. A introspeco pode ser ludibriada pela fantasia. Somente a confsso infalvel, porque a confsso ver-dadeira consiste no ato de no mentir nem omitir uma palavra sequer. Eu tambm poderia escrever uma autobiografa. Por que no? Primeiramente,nosouescritor.Ademais,noescrevoaleitoresim-plcitos: falo! S quem me escuta Deus.Vou me confessar, para que no reste pedra sobre pedra, para que eu me veja fora da tenda, a cu aberto. Assim, talvez, direi amanh quemeconheomelhordoqueontem,semasmculasdavaidade, sem neuroses. Mas, se tudo vaidade debaixo deste sol,... quem sou eu? Sublime insignifcncia.Tal como a tartaruga marinha, que depois de trinta anos retor-na mesma praia onde nasceu para sua primeira desova; como o ele-fante, que jamais se esquece da fonte que um dia saciou sua sede; como CONFISSES DE AURLIO 17aninfa,quesabeahoracertadesairdasprofundezasdaterra,para no alto das rvores morrer como ninfa e renascer no canto da cigarra; comoocondor,quenodescansaenquantonoencontraocumeda mais alta montanha para fazer seu ninho; e como todo e qualquer ser vivo que cumpre seu papel natural, eu tambm sou guiado pela nature-za. Meus instintos me fazem buscar Deus. Sou como a tartaruga mari-nha realizando a viagem de retorno; sou como o elefante caminhando rumo fonte para matar a sede; sou como a cigarra saindo de dentro da casca; sou como o condor andino procurando um lugar nas alturas.ofereo minhas confsses ao meu Deus e a mais ningum. Ne-nhumjuizdestemundomejulgar.Acadavezqueeufalaromeu Deus, haver uma grande parcela de mentira em minha lngua, por-quanto estou infnitamente distante de conhecer o Deus do universo, o Inefvel, e me manteria muito mais prximo da verdade se perma-necesse calado. Mas preciso falar ainda um tanto antes de alcanar o silncio verdadeiro. Sigo falando por necessidade. Preciso de palavras edifcantes. Preciso das palavras que fazem andar. Preciso dar uma fa-xina em minha casa. At que chegue o tempo do silncio, as palavras ainda valero mais que ouro.MuitagenteseincomodacomessejeitodesereferiraDeus comoomeuDeus.Masnadadireisobreisso.opiniesnomeaba-lam. No creio que os incomodados conheam o juzo Dele. Sigo minha intuio, e ela me diz que estou a marchar numa boa direo.Vejo-mecomopartedeumacontecimentohistrico;somos muitos, somos os portadores de uma nova conscincia religiosa. Dize-mos acredito no meu Deus simplesmente para marcar esta diferena: no aceitamos o deus de um povo, de uma religio, de uma instituio. Etambmacrescentamosessepronomepossessivoparaindicarque CAPTULO 1 18vivemosnossafnointeriordensmesmos.Visamosaumaexperi-ncia universal do divino, nada mais; queremos sentir o sagrado como a intimidade de algo do qual fazemos parte ou como a intimidade do irmo que sorri e fala de amor.No subverto, no transgrido; procuro minha verdade na srie de manifestaes da nica verdade que no cessa de se transmitir. Tra-dio aquilo que fala aos coraes, a qualquer tempo.Confessarei o que fui para compreender o que sou: luz e tre-vas. Algumas batalhas perdi, de outras sa vencedor. Quando chegar l na frente, quero estar pronto para dizer que combati o bom com-bate. No alimento iluses. Sou responsvel por todos os meus erros. A luz vem de Deus.Minhacasaprecisadereformaparatornar-semaioremais bela.Porisso,continuoacaminho,avanandoapassoslentos.olho para trs e vejo as pegadas que deixei. Comecei por uma rua que foi dar no meu corao. Da em diante, s encontrei ladeira para subir.19.2.[...] eu que sou p e cinza [...] Que pretendo dizer,SenhormeuDeus,senoqueno sei de onde vim para c, para esta vida mortal, ou antes, para esta morte vital? Santo Agostinho, Confisses (I, 6) Do desejo dos pais de Aurlio Meu nome Aurlio. Tenho 33 anos. Sou brasileiro. Nasci no final de um sculo problemtico, em tempos de grandes incertezas etransformaes.Minhamequisquemeupartofossenormale ignorouaorientaodoobstetraquealertavaparaofatodeque sua pelve no dava passagem suficiente ao beb. Ela havia sonhado trsvezescomonascimentodeumfilhohomemeestavamuito seguradequetudocorreriabem.Nossonhosnohaviamdico, era ela quem dava luz por si mesma. Histrias contadas pela fam-liaatestamquefoiprecisofazertantaforanahoradopartoque, esgotada,aparturienteapagouantesmesmodeacriancinhasair completamente de seu ventre. CAPTULO 2 20Meu pai, por sua vez, tinha l suas supersties. No quis assis-tir cena da mulher parindo seu primeiro flho, o qual, misteriosamen-te, e sem o auxlio da ultrassonografa, ele j sabia que era macho. Nada poderia dar errado. A presena de um progenitor ansioso tambm em nada ajudaria. Ele, ento, com a melhor das intenes, rezou um pai--nosso e colocou um radinho de pilhas no ouvido, para se distrair com uma partida de futebol. Somente quando a enfermeira o chamou para me ver na incubadora que conseguiu voltar a si. Sem querer, gritou: gol!Percebeu a gafe, disfarou e soltou o ar preso nos pulmes: Ufa! graas a Deus!Emsuasmosseencontravamapenaspedaosdeumapare-lhoestilhaado.Ningumjamaissoubeoqueaconteceu.Sabe-seto somente que o desejo de um pai capaz de realizar muitas faanhas, incluindo o esmagamento de um radinho de pilhas entre os dedos.Assimchegueiaestemundo,euquefuifeitoparatornarao p. No tenho a mnima ideia de como se dera minha verdadeira ori-gem, no sei de onde vim, sei somente que fui acolhido a quatro braos. Enxovalcompleto,casalimpa,berodemadeiradelei.Tudoissofez partedocenrioqueabrigouminhasprimeirasaventurasnomundo doshomens;tudoparaseresquecido,comoquesubmersonasguas deumgrandedilvio.oqueseidaminhaprimeirainfnciamuito pouco, resume-se nos relatos que ouvi de terceiros e em meus parcos conhecimentos de psicologia infantil.Meuspaisnuncaforamricos.Naverdade,passarammaisde trs anos se preparando, para que pudessem dispor de suas economias quando o primeiro flho viesse. No sem antes conquistar casa e carro prprios,logicamente.Tudotinhadeserperfeito.Tirandoamorte, CONFISSES DE AURLIO 21nohaviaobradoacasoquepudessepeg-losdesurpresa.Porisso, devodizerquesehalgumacoisadaqualelesdefnitivamenteno podem ser acusados de terem sido imprudentes e desprevenidos.Vivamosconfortavelmentenumacidadedointerior.Eraum localbomparaseviver,noqual,emboranohouvessetantasopor-tunidadesdeemprego,tinha-sefcilacessoatodotipodenovidade disponvelnomercado.Nomais,noeralongedaCapital;sefaltas-se alguma coisa no comrcio da regio, bastava rodar uma centena de quilmetros para resolver o problema.Fao parte de uma gerao mpar na histria deste pas. Somos os nascidos entre o fnal da dcada de 70 e o incio da dcada de 80. Na infncia de meu pai, j existia um esforo das famlias para que os f-lhos chegassem aos estudos superiores, e boa parte dos jovens da classe mdiajsedirecionavaparaumaprofssoestabelecidanosmoldes universitrios.Entretanto,enquantoaindaeramcrianasesomente sonhavamcomsuasprofsses,pensavammaisnaconquistadebens durveis como casa, carro e fazenda. No havia nem mesmo televiso. Na poca de meu av, nos idos anos 20, muitas vezes era preciso espe-rarsemanasoumesesatquechegassealgummascatecomroupas, tecidos, lminas de barbear e coisas do gnero. Meu av fabricava seus prprios brinquedos; talvez seu maior desejo de consumo fosse um dia comprar um belo campolina. Comigo, foi tudo muito diferente.Minhageraofoiaprimeiraaternainfnciaumsonhode consumosemprecedentes:consumir.Noentanto,justamenteporter sido a primeira, o sonho se realizava de maneira lenta e gradativa. os produtos novos no mercado eram sempre caros, e, alm disso, a velo-cidadecomqueiamaparecendonovidadesnasprateleirasevitrines era bem menor do que o bombardeio frentico atual. Isso sem contar o CAPTULO 2 22fato de que algumas das tecnologias mais essenciais vida contempo-rnea ainda no existiam em nossa infncia, como por exemplo micro--ondas, internet e smartphone. Costumo dizer que somos um ponto de partida de grandes transformaes culturais, isto , tambm temos um p no passado. Essa condio intermediria nem l nem c nosso maior diferencial, e nos ajuda a manter uma reserva crtica quanto ao que vemos no mundo hoje. Lembro-me de ter escrito uma carta a meu primeiro amor. Carta de papel. Ela havia se mudado para outro estado. Precisei esperar mais de um ms para levar um fora.Como disse, papai no era rico. Tinha, sim, uma profsso es-tabelecida. Formou-se tcnico em Contabilidade e trabalhava para um dos homens mais ricos da cidade. o tal homem possua uma rede varia-da de comrcio na regio e, apesar de ter sido conhecido por conduzir seus negcios com mos de ferro, no pagava mal a seu contador-che-fe. Minha me tambm chegou a ser funcionria de uma das lojas dele, noperodoemqueocasallutavaparaformarabasedopatrimnio familiar, mas, logo que engravidou, preferiu deixar as ambies profs-sionais e se dedicar ao rebento que viria.Patrcio, meu pai, era catlico. No muito atuante, mas catlico convicto. Na verdade, fora sempre um homem conservador, avesso aos ataques contra a ordem pblica, aos atos imorais e s ofensas dirigidas soberania do Estado. Muitas vezes o vi entoar sua ladainha. gostava de frases de efeito. Em seus momentos de irrupo moralista, gesticu-lava de modo caricato e franzia o cenho, provavelmente imitando meu av.certoque,najuventude,chegouaseinteressarpelocomunis-mo, leu alguns livros e sonhou, como todo jovem; mas era conservador, s se permitiu adentrar superfcialmente nesses guetos, sem assumir amilitncia.Porfm,noresistiu:emmeiosintensaspropagandas CONFISSES DE AURLIO 23dogovernoditatorial,acabouseconvencendodequeocomunismo ofereciaperigoordempblica,estimulavaatosimoraiseameaava asoberaniadoEstado.Foiporissoque,comcertarazo,acaboume ensinando a no confar tanto em utopias polticas.Mnica, minha me, fora sempre uma mulher espiritualizada. gostavadeestudarasvriasreligiese,tambm,deconversarsobre otema,emboranopossusseumaidentidadereligiosaestabelecida. Costumava abusar de trejeitos lingusticos do catolicismo popular, tais como graas a Deus, vai com Deus, Deus te abenoe, ai, minha nossa senhora, e dizia simpatizar mais com o cristianismo. Sei que era umasimpatiaparcimoniosa,jquetodasasvezesquetocavanoas-sunto frisava em seguida: Falo do verdadeiro cristianismo, aquele que Jesus pregou, porque religio no deve se misturar com poltica. Sua lucideznoescondiaomnimotraodearrogncia,muitopelocon-trrio;conversavasempredemodoagradveletinhafacilidadepara cativar pessoas. Mnica tinha um enorme corao.Ageraodelesviveunalinhadefogodemaliciosaspropa-gandas. A verdadeira guerra fria tinha o corao do povo como campo de batalha. Era tempo de liberdade. Liberdade para qu? Havia muita gente poderosa querendo propor respostas para essa pergunta.Mnica e Patrcio no compreendiam bem o alcance daquela disputa. No lhes importava tanto a situao real da vida nos pases comunistas ou os motivos do estratosfrico investimento na corrida espacial.Aboa-novasituava-senomagodeumarevoluocultu-ral: isso eles podiam sentir e compreender. Quanto a ter uma crtica consistente sobre a circulao de novas ideias polticas, morais, re-ligiosas,institucionais,cientfcaseartsticas,possvelqueno chegassem a tanto. CAPTULO 2 24Puderam, sim, ver uma juventude que criticava seus pais e avs por terem servido como peas de manobra de um envelhecido sistema exploratrio; puderam ver os heris carem por terra, enquanto dolos de calas jeans iam surgindo e fazendo o maior sucesso entre as garotas histricas;puderamouvirosclamoresemnomedapazedoamore puderam pressentir os ecos longnquos de uma gerao que dizia no s guerras e danava rock num xtase quase mstico; puderam aplaudir, ainda que em seu brasileirssimo silncio, o apelo coletivo em nome de um novo mundo: Chega de autoritarismo, chega de hierarquia, chega de diviso de classes, chega de lei!. E o que mais? o declnio da antiga lgica patriarcal no poupava ningum. Evidentemente, o rebulio res-valou na igreja l de Roma, porque, ressuscitando vozes do sculo XIX, noforadifcilirromperumchegadeDeus,comoseoDeusdeles no passasse de mais uma forma tirana das representaes do sistema dominante. Vejam como esse Deus rico! Vejam como matou muitos na Inquisio! os artistas abusavam desses brados.Nesse contexto, considero um fato importante: naturalmente osincretismoreligiosocomeouaserestimulado.Bomporumlado, nem to bom por outro, tendo em conta a multido de lderes e malu-cos que invadiu o vazio das mentalidades.No que me toca, como flho de Mnica e Patrcio, certas ideias aceitas por eles se fzeram sentir em minha criao. Fui educado para a felicidade, com dilogo, sem opresso, sem represso sexual, sem falso moralismo e com uma viso plstica de futuro; alm do mais, tive a sor-te de ter vindo a este mundo para ser flho de Mnica, a mulher que me salvou de cair no mesmo engano desta atual gerao, que vem fazendo a palavra felicidade virar sinnimo de consumo. CONFISSES DE AURLIO 25Enfm,notenhomuitomaisadizer.Digoapenasquemeu nome Aurlio e que me sinto infnitamente honrado por meus pais. Noseideondevim,masseiquevimpelodesejodeles,eissobas-ta. A escolha desse nome causou certo frisson durante a gravidez, pois, paraospaisdeprimeiraviagem,daronomeaumflhojeradar luz uma pessoa; era como materializar uma ideia, uma imagem. Claro que houve uma lista. Na verdade, trs. Patrcio no queria misturar as etimologias e, para que isso no ocorresse, subdividiu a lista em nomes bblicos,nomeslatinoseavulsos.Peloquesei,porpouconoacabei sendo mais um Joo Paulo neste mundo; fui salvo disso graas a uma leve excentricidade de minha me, que vetou o nome evanglico por-que desejava um nome de sonoridade mais complexa.MarcoAurliotemapompadeumimperador.Esse,sim,era umnomequeatendiaaodesejodeMnica;maspapai,sentindoseu direito ferido pelo veto do nome que escolhera, incluiu uma condio, como que para poder se gabar de sua autoridade paterna. Marco, no; Aurlio, sim. Tirou uma carta da manga para justifcar sua posio. Ha-via um tio em sua famlia chamado Marco, j falecido. o dito cujo, um fotgrafo que vivia em viagens pelas capitais do pas, no chegara a se casar nem tivera flhos. Rondavam nos pores da famlia boatos sobre suas prticas sexuais nada convencionais. Era um farrista. E provavel-mente no distinguia muito entre homens e mulheres. Morrera cedo, devido a uma cirrose heptica.Meu nome, ento, Aurlio; Marco, no. Mesmo antes de nas-cer, Aurlio. Feito de ouro.27.3.Mas,ento,eunadamaissabiaseno sugaroleite,aquietar-mecomoque agradavaaosmeussentidos,echoraro que importunava minha carne, e nada mais.Santo Agostinho, Confisses (I, 6)Do primeiro despertaro primeiro despertar no mundo e so tantos! foi traumti-co. A mudana de ambiente provocava sensaes demasiado intensas, de modo que, para meus sentidos virgens, fosse qualquer estmulo, por maisleve,seriasemelhantedor.Maisdedezgrausdediferenade temperatura. Frio. A primeira respirao mais parecia um sufocamen-to, fazendo nascer a pior das faltas: a falta de oxignio. Ar, ar, mais ar; a ansiedade nascia em mim com a marca de que, embora eu no tivesse pedido para vir ao mundo, agora me dispunha a lutar para permanecer aqui. Meu corao j estava condenado a bater at o ltimo minuto. Que jeito estranho de comear uma histria! No gostei. Faltou--me a sensibilidade potica. Ento, melhor recomear com mais estilo. CAPTULO 3 28No dia em que desembarquei neste planeta, vindo sei l donde, fui entregue a uma anftri que assim se apresentou: Maternalmente cruel, eu sou a Vida.Sa do hospital envolvido num manto bordado pelas mos de minha av materna. A princpio, incomodei-me com uma novidade, o movimento; era estranho ser transportado no espao e, mais estranho ainda, ser retirado do colo de minha me. Mas eu no estava desampa-rado; os diversos panos e braos em torno de mim formavam um casulo de amor. Em casa, outro manto aguardava minha chegada. A outra av veiologocobrir-mecomsuaoferenda.Asduasexperientessenhoras sabiam das coisas. Meu corpinho ainda no possua energia sufciente para manter-se aquecido.Por um milagre divino, minha me transbordava em leite. Fui fartamente nutrido desde o primeiro momento em que repousei a ca-bea na pele macia de seu seio. No sentia ainda prazer com o sabor do leite ou com sua suave temperatura, entretanto, medida que sorvia o nctar desconhecido e me saciava, mergulhava numa sonolncia oce-nica, at desaparecer. Isso era bom. Mas o nirvana era perdido pouco depois. Novamente a vida batia porta, chamando para fora. Acorda! Dores gastrointestinais, fezes, urina. Ansiedade. Luz e som. Eu passava a esperar novamente por aquele cheiro, aquela pele...Com uma aluso explcita ao chamado pecado original, dou o nome de recusa original ao desejo primevo de mergulhar no oceano e desaparecer. Escolho esse nome porque vejo em tal desejo a recusa de um chamado. A vida nos chama e nos convida a nos mantermos num permanente estado de tenso, e quem puder perceber isso ver que s existe repouso na morte. CONFISSES DE AURLIO 29 preciso confar na vida. Por mais brutal que ela seja, por mais imperativa,noacompreendemosplenamentesemnosrendermos ao fato de que ela tambm cuida de ns, exatamente como uma me. VejoamodeDeusnamaneiraordenadacomoanaturezanutree desenvolveseusfrutos.Recebidoleiteanutrio,ahidrataoeas defesasdocorpo.Fuibanhadoehigienizadoporpessoasquemal sabiam que estavam me ajudando a combater microscpicos parasitas. Fuiaquecidopelomantodasavs.obtiverevigorantesmomentosde paz ao sugar o seio de mame. E por isso, e por muito mais, digo que fora pela vontade eterna de Deus que eu, este p da terra, esta poeira csmicaanimada,nometransformei,aindanaqueletempo,emali-mento para os vermes.Masquempoderentenderabrutalidadedessedivinocha-mado? Queimava-me os ps, para em seguida adoar-me a boca. Pela dor e pelo prazer, obrigava-me a ser. Que grande mistrio a ipseidade consciente!Vejo-menooutroporqueooutrodesdeoinciobate porta.Eembaladopelocolodemamemeucorpofoitomandofor-ma, porque a alma ia tomando corpo. Dedinho com dedinho, beijo no beijo, abrao meu abrao.observo minha prpria complexidade, o quanto sou capaz de produzir, pensar, sentir, desejar; o quanto o mundo se transforma por minha causa. De onde surgiu tudo isso? No principio havia uma coisa s,apenasantidadistinoentreprazeredesprazer;isto,sim;isto, no. Por exemplo: ainda que a suco do leite materno iniciasse pelos movimentosrefexos,eraodeleitequepropiciavaacontinuaode tal comportamento at o repouso no oceano da saciedade, pois, se no fosse assim, se houvesse o importuno da dor, meus msculos produzi-riam um grito espasmdico de rejeio. CAPTULO 3 30Aos poucos, fui evoluindo para um estado de maior interativi-dade com o ambiente. Tornei-me capaz de sorrir em resposta aos olha-res.Umadeterminadafaceouexpressofacial,assimcomotambm umdeterminadotomdevozeatmesmoapronnciadecertaspa-lavras j conhecidas, agora eram sufcientes para me confortar. Esses elementos funcionavam como sinais de que meus desejos seriam reali-zados, compunham uma rotina segura, demonstravam a existncia de uma ordem no fuxo dos acontecimentos. Na verdade, ainda muito pre-maturamente,essessinaisindicavamcomoqueumaportaporonde eu queria passar; uma porta de retorno que, passando pelo repouso da saciedade, levar-me-ia erroneamente ao nada.Mas se existiam sinais, logo seria preciso mais que reconhec--los:seriaprecisocaus-los.Asprimeirastentativasdecomunicao vieram da, impulsionadas pelo desejo de controlar os fenmenos ex-teriores.Eufaziaumesforoenormeparaimporminhasvontadesa quempudesseatend-las.Eraumtaldeviradec,viradel,dum chorinho, balbucia desengonado, balana os braos, faz chutes no ar, em suma, um escasso repertrio pouqussimo efciente. Quase sempre, num misto de raiva e frustrao, um acesso de choro esganiado fnal-mente cumpria a funo de expressar o que eu queria.Abro uma pergunta fundamental: devo confessar que fui uma crianam?Antesmesmodecompletaroprimeiroanodeidade,eu jusavaochoro,noparacomunicar,masparacontrolar,dominare terprazer.Maisfrente,meussorrisostambmnoteriamfunes menossrdidas.Parapioraraindamais,nodemoreiaperceberque aqueles que me amavam tinham o costume de agir mais rapidamente quando eu chorava com maior intensidade, e por isso passei a usar meu choro como uma arma, com a qual eu constantemente me vingava de CONFISSES DE AURLIO 31meus cuidadores desobedientes. Nesse caso, curiosamente, o alvo mais visado era sempre minha me. E ento? Qual era meu pecado? No me arrisco a responder. E tambm no sei se justo condenar o broto por no dar frutos. Tudo o que sei que Deus me fez assim e deve haver um motivo para isso.Quandomedoucontadequefalodecoisasquenoexistem realmenteemminhamemria,concluoquejmorriinmerasvezes desde que vim ao mundo. o beb que se extasiava com o cheiro da mis-turadeleiteesuornoexistemais,defnitivamente.Entretanto,ele compe o fuxo daquilo que sou. Ser legtimo desconsiderar os nove meses que passei no tero? E antes disso? onde comea a histria de uma pessoa?Muitos so os que acreditam na existncia do esprito anterior aocorpo.outrostantosprocuramexplicaramentehumanasomente pela derivao de processos neurofsiolgicos, completamente indepen-dentes de qualquer noo metafsica de esprito. Quanto a mim, prefro no concluir, pois a presuno uma porta fechada para o futuro.Deus estava lFalo de um tempo morto estranha maneira de iluminar o pas-sado. Desejo religar o que fui ao que sou.oqueprecisoparabuscarDeus?Tenhoumcorpovivoea conscincia. o primeiro, o corpo, mal nasce e j comea a morrer. No posso confar nele. A conscincia, por sua vez, est bem aqum do que seesperadela.Defnitivamente,nomegaranto.Minhaimperfeio severa. Mas j sou um pouquinho melhor do que era ontem disso CAPTULO 3 32tenho convico , e essa constatao faz o esforo valer a pena. Conti-nuo querendo.ondeestavaDeusnaquelestemposdeinfncia?Sevejouma sementinhabrotarnaterra,perguntoquemplantou?.Seguindoa mesma lgica, reconhecer a imperfeio dar o primeiro passo no sen-tido de apreender a evoluo e a Histria da humanidade. Qualquer um pode ver que o choro estridente do infante precede o discurso sofsti-cado do mestre da retrica; que a garatuja desordenada vem antes da Mona Lisa, de da Vinci; que o brinquedo imaginrio estimula a inventi-vidade do futuro cientista. E depois? Haver sempre um depois? Ser esta vida como que um casulo de borboleta? At aqui, o que sei que j nos primrdios de minha jornada os desafos do dia a dia constituam o nico caminho para a superao. Em meio a dores fsiolgicas de um organismo imaturo, frustraes de desejosdesordenadosetorrentesdeemoesprimitivas,avidame conduzia para o lao com o outro e, a partir desse lao, preparava os moldes das duas asas do meu esprito: o conhecimento e o amor.A recusa originalSou um pecador, desde o primeiro segundo, isto , desde que sadoventredeminhameparahabitarestemundo.Meupecado sempreums:recusarochamadodavida.Naverdade,pensoquepor trs de todos os pecados da humanidade existe a infuncia da recusa original.Emtodadesobedincia,emtodasasformasdeorgulho,em todas as preferncias no permutveis, que fazem com que coisas re-lativas se tornem absolutamente necessrias, em todo delrio, em toda CONFISSES DE AURLIO 33forma de destruir o outro em proveito prprio e, mais ainda, na igno-rncia generalizada do indivduo sobre si mesmo, a recusa primordial que se faz repetir s escuras.Essa recusa tem sua origem no trauma do nascimento, na ma-neira brutal com que cada um sofre obrigatoriamente o primeiro des-pertar. E no h qualquer chance de fugir disso, pois, de certa forma, trata-se de algo hereditrio. o sujeito nasce, e a primeira coisa que se lhe apresenta uma tenso inexplicvel em seu ser. Ento, para man-ter-sevivo,eleluta,paradoxalmente,contraessatenso.Eignorar porlongosanosqueatensonooutracoisasenoaprpriavida; genuinamente, a vida.Hoje, vejo que os lances decisivos de minha existncia conver-gem para a escolha de uma das duas possibilidades, a recusa ou a acei-tao do chamado. E quero crer na possibilidade da aceitao. Crer em que cada experincia vivida abre simultaneamente portas para ambas. Crer que a recusa no soberana. Estou ciente de que ningum escapa a essa dualidade e, por isso, peo fora para frmar no lado certo.Existe, contudo, uma faceta da recusa original que difcilmente podereisuplantar.Elaseinstalamuitocedoequasesempredeforma de tal maneira o ego da pessoa que, por toda a vida, fca comprometida sua capacidade de amar. A pessoa se torna prisioneira de uma iluso e no pode evitar sentimentos como inveja, orgulho e cime, porque se sente constantemente ameaada por outros indivduos. Falo da iluso que faz com que o prximo seja percebido como rival. Umcorriqueiroexperimentocientfcopodeilustrarbema natureza desse fenmeno: dois ratos so colocados dentro de uma cai-xa previamente preparada e, de tempos em tempos, so eletrocutados por um sistema eltrico acoplado ao piso. o que acontece? Logo aps CAPTULO 3 34o choque, eles se atacam. A tenso descarregada pela funo motora, e mesmo com a repetio do experimento no chegam a exibir graves sinais de estresse nem adoecem. o curioso que a coisa muda muito de fgura quando o rato colocado sozinho na caixa. o rato isolado sem ter como descarregar a tenso no resiste, adoece e morre.Souhumanodemais.Comocompreenderquenascersejato parecidocomserexpulsodeumparaso?Porqueraiosnossajorna-da neste mundo precisa ser to tortuosa e cheia de difculdades? Pois bem, imagino que exista uma meta. Toda a sabedoria dos antigos ensi-na a ver que a meta Deus. Ento? Sou humano demais mesmo. Certa-mente me afasto quando penso que me aproximo. E, como caro, caio quando penso que voo.35.4.Por a se conclui, com bastante clareza, que para aprender mais eficaz a livre curiosidade do que um constrangimento ameaador.Santo Agostinho, Confisses (I, 14)No comeo era o verboCreio que uma pessoa desperta vrias vezes na vida. Desper-tarsignifcapassardeumacondioaoutra.Aconteceumaviagem entre mundos.Todos experimentam diariamente a forma mais bsica do des-pertar. A pessoa abre os olhos e repete a mesma sensao de acordar para algo mais verdadeiro. Ento, ela pensa ah, sim, eu estava sonhan-do e agora estou diante da realidade!.No comeo foi o trauma. Sobre isso, basta. Nasci, fui expulso do paraso.Emseguida,nocomeoeraoverbo.Nocomoumfatodo qual se diz que foi, mas como um transe que se instala e do qual se deve dizer que era. Era qualquer coisa encarnada, como uma entida-de, um fantasma, uma coisa viva invisvel.Quando se pergunta o que faz do humano um humano ou o que o distingue dos animais , comum ouvir as pessoas dizerem que CAPTULO 4 36a linguagem o elemento de separao, o atributo humano por exce-lncia. Existem tambm os que defendem a funo do polegar opositor como divisor de guas na evoluo; e, ainda, uma minoria que aponta para a prematuridade do beb humano, no intuito de ressaltar os fato-res fundamentais do processo de humanizao. Simpatizo com essa l-tima teoria, pois, ao contrrio do que ocorre com os outros mamferos, quecomumentejnascemprontosparaexercersuashabilidadesvi-tais, como andar e buscar o prprio alimento, nossos flhotes precisam fcar anos com seus progenitores para sobreviver; e isso signifca que, para se adaptarem, eles devero estabelecer profundos laos de amor.Essa duradoura intimidade da criancinha com seus cuidado-res preciosa. o recm-nascido levar de dezoito a trinta anos para conquistar a independncia. No h na natureza selvagem qualquer precedente para esse fato. No obstante, as pessoas em geral no per-cebem os efeitos extraordinrios que advm da: assim como no h nenhumanimalquefaleouescreva,tambmnohnenhumque possua uma vida afetiva to complexa quanto a nossa. Se me pergun-tassemsobreaprincipalcaractersticaouatributodahumanidade, eucertamenteapontariaparaalinguagemcomoresposta,mas,de outra forma, se me perguntassem por que somos humanos, diria: por nascermosmuitopequeninos,excessivamentefrgeis,eporviver-mos muitos e muitos anos em completa dependncia de nossos pais. Acreditomesmoque,emessncia,serhumanonopensarcomo humano, mas amar como um de ns.Talvez a senha seja esta: o amor. Quem mais seno o amor po-deriaabrirosportesdocudalinguagem?Quandocomeceiafalar, por exemplo, no foi por mero entretenimento, como se houvesse um tdio existencial precoce a me aperrear. No assim. Eu no teria fei- CONFISSES DE AURLIO 37to todo esse esforo de aprendizagem simplesmente por um capricho, comoquemdizai,mesintos,precisoconversar.Acreditoquea necessidade em questo era unicamente a de expressar meus desejos a quem tinha o poder de realiz-los; ou seja, no vejo como pensar a fala sem pensar na pessoa a quem a palavra se enderea.Inicialmente,eunotavaasdiferentesreaesquemeuscom-portamentos provocavam. Quando eu sorria, ou quando produzia sons amenos, minha me tambm sorria e falava comigo em um tom de voz agradveleacolhedor.Quandoeuchoravalevemente,elaprocurava entreter-me com objetos coloridos e brincadeiras. Se o choro era for-te,trazia-meoalimentoeinvestigavameucorposapalpadelas.ou, ainda,seminhavozesganiava-seaosberros,demonstravaenorme preocupao; no fcava tranquila at resolver meu problema. Assim, fui compreendendo que era preciso me manifestar para que fzessem minhas vontades.E como tudo nesta vida muito complexo, a construo dessas primeiras garatujas lingusticas no poderia ser diferente. No comeo, interessei-me pelos gestos, as feies, a voz e as palavras mais simples comopapai,mame,mam,bubu.Depois,comeceiaprestar maior ateno no que diziam minha volta, para identifcar sinais po-sitivos ou negativos. At que, por fm, passei a imitar os sons articula-dos. Foi s a que me dei conta de que a linguagem dos adultos era bem diferente da minha. As palavras deles tinham o poder mgico de fazer ascoisasacontecerem,jasminhasquasenuncaeramcompreendi-das. Isso me dava uma raiva danada; e eu era obrigado a me virar para aprender a falar direito. CAPTULO 4 38O espelhoSe no princpio era o verbo, ento quem falava?Tosignifcativaquantoapronnciadasprimeiraspalavras foi a conquista da imagem corporal. Por essa conquista, eu soube que cesegatosnofaziampartedafamliae,damesmaforma,entendi que eu desafortunadamente no era como os adultos. Como se diz: o espelho no mente.ofcialmente, aqui nasce o eu; inaugurei-me enquanto pessoa no plano da dualidade: sou, no sou; dou, no dou; quero e tenho medo; amoeodeio.Duasportasseabriramparamim.Sempoderescolher apenasuma,tivedepartirmeucoraoedeixarcadametadeseguir seucaminho.Umadasportasmelevouaoscamposentrincheirados darivalidade.Erauminfernohabitadopormonstrosdevoradorese crianasexatamenteiguaisamim.Ametadezinhadesamparadado meucoraosentiumuitomedoquandolchegou.Conheciosperi-gos do mundo, os territrios, os interesses, a guerra, as estratgias de defesa,oataque,afugaeaespionagem.Aoutraporta,porsuavez, conduziu-me aos jardins da amizade. Descobri o cu. Conheci anjos e crianas felizes, cada qual com seu sorriso. Meu corao sentiu-se em casa e, desde ento, sonha em reaver a metade perdida.Predestinado a ser livreJamaisfuiumcapetinha,comosedizporadascrianasin-teiramente indomveis; no tiranizei os mais novos, no maltratei os animais,noaprendiamentirdecaralavada.Mastambmnoera CONFISSES DE AURLIO 39santo, devo admitir. Com um corao dividido daquele jeito, o mximo que eu conseguia era ser um anjinho travesso na Terra. Ento, d para imaginar a baguna...Com meus amiguinhos de jardim de infncia, queria somente buscar maneiras de subverter a ordem do mundo adulto. Quando era repreendido, baixava a cabea e no respondia a mais nada; s vezes, at chorava, mas no fundo era desobediente, questionava em silncio quasetudooquemefaziamconhecercomocerto.Defnitivamente, minhaeducaofoipenosa.osprimeirosprofessoresquetivecome-ram o po que o diabo amassou por tentarem enfar algo de bom em minhacabea.Esetentassemconversarcommeuspaissobremeus problemas de comportamento, a coisa apertava, porque acabavam sen-doacusadosdeleviandadeoudefaltadepreparopedaggico.Meus pais sempre acreditaram piamente na boa ndole da cria deles.Alguns anos mais tarde, no ensino fundamental, quando chegas-se o boletim trimestral, a reao de papai seria outra, nada condescen-dente. Recebi tantos castigos que j nem sei qual pde ter me ensinado alguma coisa. Eu fcava triste por ser impedido de jogar com meus ami-gos, ou por ter de resolver as mesmas contas de matemtica dez, vinte, trinta vezes. Ficava com muita raiva tambm, pois julgava que no mere-cia passar por tais privaes. E, no fnal das contas, meu comportamento no mudava muito; eu ia como se diz levando nas coxas.Hoje,entendoquedenadavalemsermesecastigoscontra um corao recalcitrante. Somente os anos e o amor de mame pu-deram ensinar-me algumas poucas virtudes.Creioqueavidadecadapessoatemumpropsitoeques existemduascoisascompodersufcienteparamoldarumdestino: Deus e o tempo.No meu caso,desdecedo, j eravisvel que eu tinha CAPTULO 4 40sido predestinado a seguir o caminho torto do livre-pensar. Jamais per-miti que me bloqueassem o direito de escolher entre crer ou duvidar. Ainda que fosse preciso baixar a cabea, de minha conscincia eu no abriamo.Eporqueagiaassim?Tudoindicaquevimaestemundo comamissodenosucumbiraosdogmatismosquesemultiplicam por a afora.Lembro-me bem da repulsa que as primeiras aulas do catecis-mo provocaram. Eu tinha oito anos de idade. A parquia era um lugar tranquiloebastantefamiliarparamim,jque,almdenelatersido batizado,tambmfrequentavaamissamaisou menosregularmente, porvontadedepapai.Minhamenoqueriamecoagir,achavaque eumesmodeveriaescolheressetipodecoisa,notempocerto,mas cedeupresso,vistoquePatrciodefendiatantooaspectopedag-gico quanto prtico do ensino religioso. J no primeiro dia, desanimei; a mulher que ministrava as aulas causou-me horror, pois parecia uma me severa que jamais tive e jamais quisera ter. Se ao menos as aulas fossemcomosimpticopadreparoquial;mas,no;elenemaparecia por l. Resolvi fazer o mesmo no terceiro dia, e no voltei mais.Certa vez, ao tocar-me com volpia durante o banho, senti um estranho remorso. No havia ningum comigo, no entanto, ao mesmo tempo, parecia que algum estava me olhando. Pensei em meus pais, em Deus e, curiosamente, no padre, cada qual me encarando friamente emsinaldereprovao.Nopudeevitarnemosentimentodeculpa nem a indiferena, ambos plausveis e substanciais. Minha conscincia entrouemdebate.Sempodermentirparamimmesmo,solucioneio impasse com um atrevido sofsma infantil: Se eu tivesse certeza de que Jesus era Deus, eu nunca mais ia fazer coisas erradas. CONFISSES DE AURLIO 41Aindanotinhavividonoveanosnestemundoquandoisso aconteceu, e, se pudesse, voltaria ao passado para dizer-me que eu es-tava no caminho certo. Algumas mentes nebulosas insistem em repri-mir a expresso da dvida na alma das crianas, e isso terrvel; no veem que a dvida subversiva a primeira manifestao de um espri-to lcido, e que a suscetibilidade no conta entre as tendncias inatas deumbuscadorespiritual.Porfm,acabamcometendotodotipode violncia.Masdeixeestar,otemposeencarregardessesqueainda pensam assim.Por ora, melhor ir em frente, sei que a estrada destas confs-ses ser longa. Quero incluir apenas uma ltima recordao pertinen-te queles primeiros anos escolares.Falei do aprendizado da linguagem e da insero no universo da cultura pela via escolar; agora me ponho a pensar nos livros que me iniciaram no mundo da leitura. os livros? ou melhor: a ausncia deles.Na escola, vez ou outra, lamos pequenos pargrafos ou livros ilustradoscomquasenenhumcontedotextual.oensinodalngua portuguesaeraexageradamentefuncional,emdetrimentodofoco na formao humana; raramente adentrvamos no universo das per-sonagensarquetpicasdaliteraturanacional.MonteiroLobato,por exemplo,apareciamaisporsuaobraadaptadaparaatevdoque propriamentepelosseuslivros.Todavia,cantvamosdiariamente ohinonacional,emfla,meninasdeumladoemeninosdeoutro, distadospeloespaodeumbrao.Euachavaessarotinaumtanto cansativa, devido repetio; o hino, porm, me parecia lindo e era agradvel de ser cantado.Curiosamente,jamaismeexplicavamosentidodefrases como o lbaro que ostentas estrelado ou iluminado ao sol do Novo CAPTULO 4 42Mundo.Minhasprofessorasprovavelmentenoerammuitoleva-das a exegeses. Contudo, ainda assim, devo minha iniciao potica a essa maante imposio patritica. E, por mais engraado que possa parecer,afaltadeexplicaesfavoreceumeuladocriativo;acabei dando meu prprio sentido ao texto, por achar que o autor era o mes-mo que dissera a to famosa frase Independncia ou morte!. Ficava contentecomoherosmodomeupassoberano,apesardenemde longe imaginar o porqu de cantar o hino diariamente e o porqu de, em meados do fnal da dcada de 80, esse hbito ter cado em desuso na Escola Estadual Castelo Branco.Alm de ter encontrado salvao literria na beleza potica do hino nacional do Brasil, tambm tive a sorte de cair nas mos de uma almacheiadesensibilidade.Minhaprofessora,coitada,nopodiase meter a escolher livros que estimulassem demais a imaginao dos alu-nos; porm, no havia qualquer restrio quanto a pedir que cada um escrevesse seu prprio livro. Viva! Bravo! Uma salva de palmas para a criatividadedaprofessoraMariadaConsolao.Escritoeilustradoa prprio punho, meu primeiro livro foi intitulado A casa de meu pai.43.5.[...]tinhaboamemria,tinhafacilidade parafalar,erasensvelamizade;fugia da dor, da humilhao, da ignorncia. Que haviaemtalcriaturaquenofossedigno deadmiraoelouvor?Mastudoissoso dons de meu Deus; no os recebi de mim mesmo; so coisas boas, e o conjunto deles constitui o meu eu.Santo Agostinho, Confisses (I, 20)Reflexes sobre a infnciaDedico-me a estas confsses no s pelo desejo de me conhecer melhor, mas tambm pela esperana de encontrar dentro mim algo aci-ma de mim mesmo. onde devo procurar, se no quiser entoar um emara-nhado de memrias e especulaes ao lu? A Bblia diz que fomos criados imagem e semelhana de Deus, ento, vou puxar por esse fo; e parto do pressuposto de que Deus impenetrvel a nossa compreenso, haja vistaainsufcinciadenossosconceitosquandosetratadedefni-lo. Quem Deus? Deus , no mnimo, abstruso: material e imaterial, impes-soal e pessoal, eterno e temporal, criador e imutvel, bom e onipotente. CAPTULO 5 44E quanto a mim, o que sou? Existo,vivo,quero,recordo,penso,examinoefao.Soucapaz de criar. Aprendi a falar com facilidade, pois era um menino ativo e ta-lentoso. Muito cedo j podia dizer eu: eu quero, eu fao, eu sou. Parece simples, como se fosse bvio, mas ser pessoa um grande mistrio.Uma parte de mim apenas coisa, isto , matria inanimada, mistura de gua, minerais, protenas, gordura e tudo o quanto h. Po-rm,soucoisaviva,dotadadeenergiaemovimento,elutoparame manter vivo e expandir minha vitalidade. No ltimo grau, no esteio da liberdade, sou ainda coisa pensante, respondo por um nome e desejo saber das coisas.Por que fui criado com tal desejo de conhecer? Mesmo na mais tenra idade, jamais apreciei o engano, o erro e a ignorncia.Deus,talvez,queiraserconhecido.Creionisso;creioemque eledeixouvestgiosdesuapresenaportodaparte,principalmente em mim, que sou sua imagem e semelhana. Alm disso, o que mais? Recebidonsdivinosquesemanifestaramaindanainfncia, mas nenhum deles veio pronto para uso, ou de tal modo acabado que no permanea, at hoje, em contnua evoluo. Sou uma coisa em de-vir.Umapartedemimparececondenadadecadncia,enquantoa outra parte tem mania de guia turstico e sempre me convence de que aprximaparadavaleapena.Noconheomaneiramaislcidade sentir a presena de Deus em minha vida: ver Deus naquilo que deve ser cultivado. E derivo essa ideia de uma interpretao particular que fao do Gnesis bblico.Ahistriasagradacontaque,noinciodostempos,osseres criadosimagemdocriadorforamcastigadospelopecadodadeso-bedincia,cujoresultadofundouumaheranadetrabalhoemorte. CONFISSES DE AURLIO 45Comeo por perguntar: o que signifca a expulso do Paraso? Eis uma bela metfora. E continuo: no que tivesse o homem sido criado per-feitopara,depois,perderaperfeio,poismeparecemaisplausvel conceber a imagem de Deus em potencial, ou seja, conjecturar sua ma-nifestaofutura,eassentiremqueelavsetornandomaisntida medida que aperfeioamos nossos dons.47.6.E o que que me encantava,seno amar e ser amado?Santo Agostinho, Confisses (II, 2)Dentro de mimMuita coisa acontecia nos dias de minha adolescncia, dentro de mim. Se fosse preciso eleger um ano como smbolo de todo aquele catico movimento subterrneo de placas, eu escolheria meus dezes-seis anos. Foi com essa idade que o ardor das experincias aumentou, eaumentoutantoquepasseiameconsiderarhomemfeito,comose estivessenoaugedaexistncia,comosedesfrutasseagenunaliber-dade, como se fnalmente pudesse dizer: Eu conheo a vida. Pseudo--erotismo,amoresplatnicos,amigos,identidades,utopias,vividos com a ingnua urgncia de quem acredita estar prximo de encontrar a soluo de um enigma.No nego que fui um jovem talentoso, cativante, cheio de ener-gia e curiosidade. os professores me elogiavam com frequncia, e isso eu atesto, mas tambm reconheo que eu no era exatamente aquele tipo de aluno cujo destaque se deve a atitudes exemplares de dedica- CAPTULO 6 48oeinteresse.Euosimpressionavapelasensibilidadecrtica,fazia perguntaspoucocomunsparaafaixaetriaeescreviaredaesque demonstravamjalgumaintimidadecomaspalavras.Agoraooutro lado da moeda: mesmo com algum talento, a onda dos dezesseis anos quebrava noutra praia. Pensar em futuro, profsso e famlia no satis-fazia minhas exigncias mais profundas. o foco dos meus interesses in-cidia ora sobre a descoberta do sexo, ora sobre as querelas da incluso na microssociedade adolescente. Como poderia me dedicar com afnco a atividades srias e produtivas?Falsaliberdadeconquistada.Eudavaumadehomenzinhore-beldeedescompromissadoe,assim,desafavameusprprioslimites. Estavalongedemeencontrar.Novoavanempousavaalgures;como avionapista,apenastestavaapotnciadasturbinas.Entretanto,por trs de quase tudo o que eu fazia, por mais contraditrio que fosse, havia uma motivao profunda, perfeitamente humana e positiva. Que Nossa Senhora, de quem sou devoto, interceda em favor do adolescente que fui e me faa serenar a recordao dos erros que cometi. o que movia meu corao mesmo no erro era a vontade de amar e ser amado.Mas desafar limites coisa muito perigosa. E mesmo o amor podesergravementedeturpadoporsentimentostrevosos.Eucriava hbitos que posteriormente me trariam vrios problemas. Na verdade, no s posteriormente, porque, j naquele tempo, o resultado de meus erros se fazia sentir como uma espcie de turbulncia interior.Estaalei:aoereao.Paracadaato,umaconsequncia. Uma pedra lanada ao ar deve cair; da mesma forma, um corao habi-tuado a desejos ardentes deve sucumbir ao medo; um ego envaidecido deve perder-se em iluses; uma vontade desobediente deve culminar em dor; uma mente tola deve se tornar presa do mal. CONFISSES DE AURLIO 49Os dezesseis anosMeu pai foi muito alm do que seus recursos fnanceiros per-mitiam para investir em minha educao formal. Para o bem e para o mal,aosdezesseisanosfuienviadocapitaldoestadocomamisso de completar o ensino mdio num Colgio Arquidiocesano de altssimo nvel.Mesmocomovalordasmensalidadessobrecarregandooora-mento da famlia, tambm fz curso de lngua estrangeira, morei numa boa penso, em quarto individual, tive livros, computador e, ainda, as assinaturasmensaisdeumdosmaioresjornaisdopasedeumare-vista de divulgao cientfca. Recebi tudo isso e no precisei dar nada em troca; no me esforava nem mesmo para obter o aproveitamento mximo do que me era oferecido; alis, tampouco dava o devido valor ao sacrifcio daquele tcnico em contabilidade que, com seu exemplo, esperava ao menos ensinar o flho a ter vergonha na cara.Mame, por sua vez, injetava mais combustvel nessa mquina, acreditando cegamente num futuro pleno de possibilidades para mim. Acima de tudo, mantinha postura amorosa e compreensiva, indepen-dentementedoerroqueeucometesse.Noprocuravamedirecionar para as profsses mais rentveis, e quase nunca falava sobre meu fu-turo fnanceiro, muito pelo contrrio; dizia ela que, antes, eu descobri-ria os verdadeiros valores da vida, pois o resto viria por consequncia. Aos quinze anos, presenteou-me com O Pequeno Prncipe, de Antoine de Saint-Exupry.E por isso que costumo dizer que, no fosse o apoio incondi-cional de meus pais, talvez eu tivesse me tornado uma pessoa grosseira; talveztivesseafundadonabrutalidadedeespritoevivessecomoum troglodita tpico, desses que brigam nas partidas de futebol, xingam no CAPTULO 6 50trnsito e acham que, se um cara no se mostra babando por uma bunda feminina transeunte, porque deve ser gay. Devo isso a eles. A razo de serdetodoocuidadoquetiveramcomaformaodomeucarterse faria notar no tempo certo, quando, por uma imposio trgica, a vida me obrigaria a ter mais responsabilidade comigo mesmo. Antes disso, contudo, tive de pagar o preo dos maus hbitos adquiridosemmeioqueleturbilhodehormnios,desejoseideais. Um hbito como argamassa umedecida; coisa que seca e fca dura com o tempo. os mais arraigados se formaram a partir da maneira neu-rtica com que inicialmente solucionei o enigma da libido. Corri o risco de me deformar para o resto da vida, sem nenhum exagero, e por sorte no acabei como um desses tantos viciados em sexo. Eu pendulava da masturbao para a fantasia; da pornografa barata para o falatrio dos grupos de adolescentes.Juntoameusamigoshaviaumacompetioparaverquem possuamaisconquistasnocamposexual,dotipo:eujfzisso,eu aquilo, pus a mo aqui e ali. Era como se disputssemos um poder invi-svel ou uma imagem com a qual pudssemos nos comparar e nos sen-tir eventualmente melhores uns que os outros. Porm, ramos liberti-nosimaginrios.Asgarotasdenossaidadetinhamprefernciapelos rapazes mais velhos; as mais novas no cediam facilmente s investidas de rapazolas inexperientes. Vivamos dando pontos sem n e, por isso, mentamos sobre nossas experincias. Somente diante de revistas e fl-mes porn, surrupiados cada qual com sua estratgia, descobramos o objeto de nosso desejo, sem cheiro ou sabor.Enquanto isso, minha me falava sobre sentimentos, amizade e companheirismo, e se referia ao sexo como uma experincia mstica deunio.Sobreapornografa,mantinha-sesemprereticente,tendo CONFISSES DE AURLIO 51apenas insinuado, uma vez ou outra, que certas prticas sexuais so prpriasdepessoasrudeselimitadas.Comelaaprendiosignifcado da palavra depravar. Aprendi tambm que o amor pode elevar-se bem acima dessas relaes de consumo carnal.Masquemmederaafchativessecadologodeprimeira.o fatoqueeuaindanoestavaprontononaquelesdezesseisanos , porque no suportava ser inferiorizado entre os amigos. Eu precisa-va provar minha masculinidade, afrmar-me como homem dentro do grupo, e queria exibir minha virilidade, e comparar os cacifes, e saber quemeraquem,etudoomais,tudo,tudo,paratornarmaisntidaa imagem do que eu era.Aindabemquemeuspaisnotinhampressadeverafcha cair. Posso me gabar de ter recebido de Deus progenitores cheios de pacincia. Mantinham sempre suas palavras e atitudes, porque acre-ditavamnaflosofadodarexemplo,es:nomoviamumdedo sequerparameconvencerdenada,menosaindaparameobrigara seguir seus conselhos, e, nos momentos oportunos, diziam at que eu devia me virar para encontrar meu caminho. Por fm, ao invs de me vigiar, fzeram vistas grossas para os banhos demorados, as revistas escondidas debaixo do colcho, os cochichos ao telefone, os cheiros defumaanacamisaeaspequenasmentirascontadasparaganhar algum dinheiro extra, em acrscimo mesada. o foco deles era meu carter,eporissointervinhamunicamentenoquepoderiagerar consequnciasmaisgravesnofuturo.Nomeesqueodequando comecei a me aventurar com uma turma de baderneiros que pratica-vaatosilcitoscomopichaesedestruiodepatrimniopblico: tiveram uma atitude bem mais severa. Fui repreendido de imediato e levado de volta para minha cidade natal. Somente com a promessa de CAPTULO 6 52no mais me envolver com tais elementos, pude convenc-los a me dar uma segunda chance.No entanto, eu mentia. No estava disposto a andar na linha, tal como queria meu pai. Isso me irritava.Porqueandarnalinha?Quemquesabealinhaquedevo seguir? eu bradava em pensamentos e reforava minha rebeldia. E fazia isso como o faz toda e qualquer criana. No caso delas, ascrianas,bastaqueospaisdigamno,bastaqueoacessoadeter-minadoobjetosejainterditado,epronto!estfeitaamgica.Daem diante o pequeno mudar seu comportamento em relao coisa in-terditada. A mera curiosidade inicial se transforma em desejo. No caso dos meus dezesseis anos, acontecia outra coisa, eu dava um passo alm. A tendncia era reforada pelo hbito.Meuspaisrealmentetiverammuitocomoquesepreocupar. Quandonoeraumacoisa,eraoutra.Logo,logo,comojeradese esperar,pichaes,pequenaspilhagensedepredaessetornaram passatempos obsoletos e pouco convenientes. Eu precisava de modos mais sofsticados de desafar o poder institudo. o que veio depois? No tardou a chegar o dia de fumar meu primeiro baseado.Fumar o tal cigarro proveniente da inocente cannabis sativa me pareceuumaoportunidadetentadora.oquemaiseupoderiadesejar para fazer-me um legtimo transgressor? o papo daquela turma era en-volvente, oferecia um leque de termos bem atraentes, como liberdade, mente aberta, paz, viagens; enfm, fumei. Entrei por um caminho sem saber que talvez no fosse mais querer sair.Dei trs tragadas na primeira vez, prensando no pulmo para obter maior efeito, tal como os usurios mais experientes haviam me ensinado. Meus olhos fcaram vermelhos em poucos minutos. Mas eu CONFISSES DE AURLIO 53no sentia nada, nenhuma alterao. Fiquei to decepcionado que tive vontade de ir embora para casa. Ento, quando abri a boca para dizer a meus amigos o que estava pensando, a voz no saiu; olhei em volta e no os vi; eu estava em p diante de um muro, a uns quinze metros deles. Algum gritou de l: o Aurlio t doido!J no sentia meus ps. A sensao era parecida com acordar deumsonhopelamanh,comosehouvessealgoestranhonoar,ou como se faltasse um parafuso no real. Tive vontade de rir. Minha mente se fragmentou; uma multiplicidade de imagens invadiu minha cabea. S aos poucos comecei a dominar a turbulncia inicial e me senti mais confortvel com aquele estado alterado de conscincia. Ento, deixei--me levar por uma crescente sensao de poder, pela qual acreditei ter adentrado um nvel superior de pensamento; cheguei a um estado em que meu corpo vibrava sem culpa, medo ou qualquer emoo negativa, e somente exalava uma mistura de alegria e plenitude. A experincia foitointensaqueatmesmoapercepotemporalsedistorceu.o tempo passava mais devagar.Nomearrependodoquefz.Ponto.Aindaassimno recomendoamesmaousadiaaningum.Pensarqueexistemdrogas leves ingnuo e pode sair caro. o risco alto. Todavia, no desconsi-dero os benefcios da ruptura psicodlica com a realidade. o risco em questo est ligado ao peso do hbito pouco saudvel que, com o uso contnuo, pode se instalar. E, por outra perspectiva, se no me arrepen-do, porque talvez eu no tivesse adentrado to profundamente numa busca interior sem o despertar das drogas se que posso chamar essas experincias psicodlicas assim. Experincias: devo mesmo dizer isso no plural, porque muita gua rolou depois daquele primeiro baseado. CAPTULO 6 54Ademais, no pretendo ressuscitar os mortos, nem me agrada chorar a morte da bezerra. Tenho mais o que fazer. o caminho para dentro, para cima e sempre em frente. E como dizia minha av: guas passadas no movem moinhos.55.7.[...] e quero recompor minha unidade depois dosdilaceramentosinterioresquesofri quandomeperdiemtantasbagatelas,ao afastar-me de tua Unidade.Santo Agostinho, Confisses (II, 1)Reflexes sobre a adolescnciaComoentenderqueumapessoavenhaadesejaronada?E como entender que essa pessoa possa desejar o nada pensando desejar umbem?TalcomoaesfngedeTebas,avidanosimpeseuenigma: decifra-me ou te devoro.Somos a imagem e semelhana de nosso criador. Mas ser que fomosequipadoscomalgumdispositivoparadetectaroquebom para ns? gente para dar palpites que no falta, mas ainda est para nascer o inventor da mquina de tomar decises infalveis. E como se esse problema j no fosse exorbitantemente grave, tambm somos le-vados a admitir outro, de gravidade semelhante ou pior. Falo de nossa desgraadacapacidadedenosboicotaransmesmos,oraquerendo uma coisa, ora querendo outra, ora querendo duas, trs, quatro coisas ao mesmo tempo. Seria muito mais fcil se pudssemos nos guiar ape-nas pelo prazer. A vida seria bem menos doda... CAPTULO 7 56Muito tempo passa e muitas dores e decepes so infringidas aumapessoaatqueelaformesuasprpriasconvicesetomeum rumonavida.Sabermesmoaondevaichegar,ningumsabe.Encon-trando-seemsituaessemelhantessquerelateiaindahpouco,e semteramesmasortequeeutive,muitagenteacabamergulhando num mar de sentimentos negativos.Por que tipo de bem eu me orientava naqueles dezesseis anos?Assim como um rio que enfrenta as rochas e aclives interpos-tosemsuatrajetria,eunoconsentiaemdepurarmeusinstintos. Queria contornar barreiras, e no suavizar desejos. Eu era movido pelo qu? Pelo medo. Temia e este um dos absurdos da vida ser privado de um bem que eu desconhecia. E devido a essa instigante constatao que quero aproveitar o presente momento de refexo para avanar um pouco mais na arte que interessaaestasconfsses:aartedeerguerdefesascontraoinimigo. Todo o meu esforo no sentido de desbaratar seus esconderijos e des-cobrir por onde ele entra quando ataca meus pensamentos. Para tanto, interessa-me agora investigar a ligao entre a recusa original e o medo. Voupartirdanoodetrauma.Umdosprimeirosefeitosde qualquertraumacriarumaespciedenostalgiadotempoperdido. Isso assim desde o trauma primordial. Quando um terremoto arrasa um pas, por exemplo, as pessoas parecem chorar, caminhando por so-bre os destroos, um paraso perdido mesmo no caso de um pas de terceiro mundo, como o Haiti, em que os problemas sociais j eram su-fcientemente terrveis antes da catstrofe. Eis a lgica da recusa origi-nal, e os resultados de sua repetio no decorrer da vida de uma pessoa so desastrosos, porque ocasionam a perda da realidade potencial, isto , no a realidade de um paraso perdido, mas sim a realidade daquilo que tem potencial para vir a ser, sem jamais ter existido. CONFISSES DE AURLIO 57Arealidade potencial opresente.Mesmosendorido, mes-mo sendo deserto, no presente que, carregando pedras, caminhamos. Porm, existe a infeliz possibilidade de criar-se uma ponte imaginria entreopassadoeofuturo;e,ento,quandoosujeitotraumatizado constrisuacasanessaponte,recusando-seveementementeapular no rio que passa por baixo, d para prever o que acontece depois. Num belo dia, aparece uma pedra qualquer e bloqueia a sada, de modo que osujeito,desdeantesparalisadopelomedo,torna-seumprisioneiro desuaprpriaponte.Issosetransformanumacontecimentotrgico do qual ele dir at o fm de seus dias: No meio do caminho tinha uma pedra, nunca me esquecerei.Maisumpassofrentenesseraciocnioedeparocomuma pergunta que me permite relacionar a recusa de pular no rio e os senti-mentos negativos que podem estragar a vida de uma pessoa. Se a cria-tura, acabrunhada por seus medos, deixa de agarrar as chances que o universo lhe oferece para realizar seus sonhos, com que artifcios ela consolar os anseios mais profundos de seu corao?Volto, ento, ao problema do bem, tal como ele se apresentava nos meus tempos de adolescncia. E j arrisco uma primeira observa-o: parece-me que raramente um adolescente escapa do poder para-lisantedomedo.Aadolescnciaumafasedetransio,eporissoa pessoa que entra nessa fase fca meio perdida entre as coisas que tem de deixar para trs e os anseios que projeta no futuro. E retomando ainda a metfora da ponte, mesmo o caso de di-zer que pouqussimos adolescentes so orientados corretamente quan-do recorrem a ela pela primeira vez. os pais percebem que seus flhos estocomproblemas,percebemasdiferenasnocomportamento,a irritabilidade, a insegurana, a distoro na autoimagem, mas simples- CAPTULO 7 58mentenosabemoquefazer,porque,afnal,elesmesmospassaram por difculdades semelhantes e tambm no tiveram quem os ajudasse. Quanto a mim, tambm no tive quem me dissesse as palavras certas quando achei que a soluo era fugir para a ponte. Mas no cul-po meus pais, jamais. Eles fzeram o melhor que puderam, e s a paci-ncia deles j valeu muito. No entanto, o que eles poderiam ter dito algo to singelo que, talvez, no o tenham dito somente porque o b-vio facilmente escapa aos olhos. Eu desejo que cada adolescente possa ouvir da pessoa que ele mais ama e confa a seguinte frase, quando sentir um vazio no corao: Voc no mais quem voc era, e o futuro imprevisvel. Aceite isso e v devagar. Acolher e curar o adolescente que fui mais importante do que acusar os erros que, com ele, cometi. Ademais, a vida sbia professora: concede-nos o galope hoje, para nos ver cair do cavalo amanh.59.8.Estabeleceste, de fato, e efetivamente acontece, que toda alma desregrada seja seu prprio castigo.Santo Agostinho, Confisses (I, 12)Dos castigosMeupaimeensinouqueoprazernonosorientaconfavel-mente para o que nos faz bem. Ele costumava dizer que as pessoas que buscam somente o prazer acabam sempre se dando mal. Essa foi a lio de minha adolescncia e o legado de Patrcio. A cada vez que eu pisa-vanabola,elerepetiaseusermo.Ecomoavidanolhedeutempo sufciente para ver seu flho crescer e se tornar homem, e para teste-munhar as evidncias de que as palavras que pareciam entrar por um ouvido e sair pelo outro no eram ditadas em vo, pois apenas falavam a um esprito ainda adormecido, dedico-lhe agora a recordao de uma de nossas conversas, como panegrico em sua memria.Na ocasio, meu desempenho escolar beirava o ridculo, e ele sabiaqueeufaziaqualquercoisa,menosempenhar-menosestudos. Ento,abordou-menumatarde,quandoeujiasaindodecasapara CAPTULO 8 60encontrar-me com meus amigos. Estava sentado no sof da sala e, pro-vavelmente,aguardavaomomentoemqueeuiriapassarporeleem direo porta da rua. Comumente, eu apenas me despedia com fra-ses curtas e displicentes, tipo Tchau, pai, No demoro, Vou ali, na casa de fulano, e esse modo informal de tratamento era sempre bem aceito em minha famlia; mas no daquela vez, pois o que escutei, antes mesmo de abrir a boca, foi: Sente-se a.Noteiqueminhasltimasprovasescolarestrepidavamem suas mos, e engoli a seco a vontade de dizer que eu no estava a fm de conversar, j que minha tpica frase Mas pai... foi cortada ao meio: Sente-se a ele repetiu com um pouco de rispidez.Eu soube que a coisa era sria; quando meu pai falava daquela maneira, no havia remdio. Era calar-me. Mas sua atitude me pegou de surpresa. No fui repreendido nem ouvi um nico comentrio a res-peito daquele irrecupervel chumao de folhas que ele logo em segui-da jogaria no lixo, sem qualquer cerimnia. Meu flho, voc no acha que est exagerando? a pergunta veio seca.Seria muito mais fcil aguentar a bronca calado e, de prefern-cia, sem olhar nos olhos de Patrcio, tal como j era do meu costume fazer, contudo, a estratgia de fcar de cabea baixa no funcionou, e fui obrigado a me defender: Mas papai, eu no fz nada de errado, s ia sair um pouco! no sei como tive coragem, mas falei isso de cara lavada.Em vo. Patrcio permanecia impassvel: Ento, isso? Voc acha que est tudo bem?Antes mesmoque eu pudesse concluir minhas promessasva- CONFISSES DE AURLIO 61zias, tpicas de quem quer apenas se livrar de um censor inoportuno, dizendo eu vou recuperar essas notas, se for esse o problema etc., ele me interrompeu: o problema que estou preocupado com voc, meu flho. o problema que voc deve estar pensando que a vida uma festa! Mas a vida tambm no s trabalho! tentei revidar, mes-mo sem saber se acreditava em meu prprio argumento.E levei mais uma: Isso conversa, Aurlio! Voc e seus amigos acham que tudo curtio! Mas no pensam nas consequncias. E depois, como vai ser? Voc no acordou para a vida ainda.A nica coisa que eu no tolerava naquele tempo era quando algum me taxava de imaturo ou me considerava como uma pessoa jo-vem demais para entender a realidade do mundo. Se meu pai pensava que podia falar comigo daquela maneira, ele estava redondamente en-ganado, porque era previsvel que, em troca, eu iria menosprezar seus conselhos: J sei que voc vai dizer que o prazer isso, que o prazer aquilo, que a gente no deve viver apenas em funo do prazer. Voc diz sempre a mesma coisa!Mas fui surpreendido:Vocestcerto,Aurlio.issomesmoPatrciotemperou sua fala com um toque de sarcasmo. Eu ia falar sobre o prazer, e sobre comportamentos repetitivos e limitantes. Mas melhor eu falar de ou-tro assunto e parar de te encher com essas minhas ideias antiquadas, das quais voc j est careca de saber. No bem isso que eu quis dizer... titubeei.Masbemporamesmoeleinsistiu,senoquisermos CAPTULO 8 62falar dos enganos e dos erros que cometemos pela nsia de prazer, po-demos falar do outro mtodo de que o universo costuma se valer para nos orientar: o castigo. o que acha?Deideombros,imaginandoquepapaihaviapuxadoaquela conversasparanomedarumcastigosemsermo.Masocastigo no veio, e Patrcio revelou-se menos previsvel do que eu pensava, fa-lando de um jeito que eu quase no reconhecia como sendo do homem que diariamente eu via sentar-se mesa e discorrer sobre assuntos de jornal, contas, manuteno da casa e memrias de famlia:Assimcomoumacrianareconhecequefoicastigadapara seu prprio bem, tambm ns podemos nos indagar sobre o sentido de nosso sofrimento e de nossos fracassos. Perguntamos: ser que estou sendo castigado por meus hbitos? ser que infringi as leis da nature-za?serqueestoucultivandosentimentosnegativos?serquemeu estado emocional favorvel ao adoecimento? E por a vai... ele fez uma pequena pausa, como se tentasse ler meus pensamentos, antes de perguntar: Est me entendendo? Voc meu pai, se quiser pode me castigar... respondi entre dentes.Mas o castigo no veio: No estou falando das suas notas na escola, meu flho. Isso peixe pequeno para voc. o que eu quero que voc entenda vai te valer para a vida toda. Preste ateno neste exemplo: o cara sofre de gastrite nervosa e acha que o problema est no excesso de gordura que sua es-posa coloca na comida. Seu cime doentio, irrita-se facilmente, fca vigiando o comportamento da mulher, o celular, o cheiro das roupas e tudo mais. Chega ao escritrio em que trabalha e olha para seu chefe de modo submisso, porque o v como um leo faminto invencvel. Esse CONFISSES DE AURLIO 63cara sofre as consequncias de sua obsesso e possessividade. Sua gas-trite, defnitivamente, no acidental.AoperceberquePatrcionotinhaaintenodemepunir, fnalmente fquei menos arredio e at arrisquei uma pergunta direta: Por que voc est falando disso?A resposta me pareceu absolutamente inusitada:Porquequeroquevoccompreendaquesexisteumpai, que Deus.Depois de alguns segundos de silncio, continuou: Veja outro exemplo: o camarada sentado na fla do consult-rio do oncologista mostra-se abatido, beira de uma depresso. Seu ar-rependimento no ajuda em nada. Foi fumante por trinta e cinco anos e agora no tem mais pulmo para respirar o oxignio que o universo lhe oferece. No entanto, o oxignio esteve sempre aqui, disposio. Mas voc no Deus! No pode julgar as pessoas arrisquei dizer exatamente o que estava sentindo, sem hostilidade.E ele concluiu, falando pausadamente: o verdadeiro pai Deus, Aurlio. Mas voc tem uma famlia aquinaTerra,parateamparar,nutrireeducar.Umdiavocvaica-minharcomsuasprpriaspernas,evaiterdeseresponsabilizarpor todas as suas escolhas. At l, fazer voc perceber a diferena entre o que certo e o que errado minha obrigao.ohomemquefalavacomigodefnitivamentenoseparecia commeupai,nocomopaiqueeuconhecia;noentanto,gosteido novoPatrcioquealiseapresentou,emesentiorgulhosoporele considerar que j podia falar comigo daquela maneira. Se ele estivesse vivohoje,nsnossentaramosmesaparajantareconversaramos longamente, como fazem os velhos amigos, e teramos muitas experi- CAPTULO 8 64ncias para trocar, e eu o recordaria sempre daquele dia em que ele me fez descobrir a natureza do amor de um pai. Quem sabe ns at no po-deramos continuar falando dos tantos castigos e frutos amargos que a humanidade colhe por persistir nos mesmos erros...A natureza castiga o planeta, eu lhe mostraria a manchete de uma revista formadora de opinio, dessas de acesso ao grande pblico. Enscomentaramosprimeiramenteumfato:derepente,depoucas dcadas para c, os especialistas do mundo inteiro passam a divulgar uma lista infndvel de catstrofes naturais que, muito em breve, sero ameaascontundentessobrevivnciadaespciehumananaTerra. E,talvez,partilharamosaesperanadequeoserhumanocomecea se compreender de uma maneira diferente, percebendo seu potencial de destruio e, de uma maneira ainda mais extrema, desvelando sua natureza parasitria em relao ao ambiente em que vive.Depois, examinaramos os indcios de que nossa esperana no partilhada em vo. Eu levantaria a hiptese de que uma das afrma-esmaisbombsticasdacinciadosculoXXjvemcumprindoa funo de acordar a humanidade: Veja, papai, estamos mais conscientes desde que percebemos que os recursos naturais so esgotveis. Eutambmpoderiadizerque,noritmoatualdassociedades de consumo, os recursos so rapidamente esgotveis. Papai concordaria comigo, dizendo:Tudocomeaa,masoutrasconclusesnochegamaser mais reconfortantes.Ele provavelmente citaria muitos exemplos e faria uma longa ex-posio de suas ideias, e, se assim lhe aprouvesse, quem sabe, enfatizaria o problema das alteraes climticas e suas terrveis consequncias; ou, CONFISSES DE AURLIO 65quem sabe, preferiria falar dos bilhes de barris de petrleo que saem de suasvetustascatacumbasparasetransformarememcalor,poluioe lixo no biodegradvel; ou, quem sabe, ainda, com o corao amolecido pelosanos,demonstrariamaiorpreocupaocomodesequilbriodos ecossistemas e a lista de espcies ameaadas extino. E, se assim fosse, vingando a derradeira hiptese, ele certamente faria um discurso cheio de sentimentalidades e choraria em razo das mazelas do urso polar, da ona pintada do Brasil, do atum azul, dos bebezinhos focas e de outras tantas criaturas que, na terra e no mar, encontram-se em vias de de-saparecer. Ele falaria desses e de muitos outros problemas do mundo, falaria da corrupo, da misria nos pases pobres, da intolerncia, das armas nucleares, da iminncia da barbrie, da poluio das guas, e a, sim, seramos dois marmanjos a chorar pela ignorncia que existe em cada um de ns, humanos.Enfm, a colheita inevitvel. Acho que aprendi a lio.Que Deus me permita honrar at o fm dos meus dias a mem-ria de Patrcio, meu pai.Do gosto pela culturaDuas formas de expresso artstica me agradavam mais: a m-sicaeocinema.Emambososcasos,oprazerestticoseuniaauma forte atrao pelas celebridades.Ao som do rock, eu dava vazo aos sentimentos de amor e dio reprimidos. As letras das msicas e as declaraes bombsticas dos ar-tistas na mdia encarnavam a voz de minha garganta muda. Uma bar-reirainvisvelseparavameussonhosdemim.Eutinhaumavontade CAPTULO 8 66imensa de agir, de fazer algo acontecer, mas, refreando meus mpetos, todos os caminhos se mostravam bloqueados, e era como se a prpria sociedade advertisse: o mundo ainda no seu.Meus dolos me ensinavam a falar. A voz deles emprestava con-tedo articulado a tudo aquilo que eu somente era capaz de sentir. Cada canotraziaumamensagem,quepodiaserumautopiapoltica,um apelodepaz,umgritodeliberdade,umclamortranscendentalouat mesmo uma singela declarao de amor. Em cada uma havia uma parte revelada de mim mesmo: traos da arte de inventar um jeito de ser.Algumas canes me acompanharam por um longo tempo, como um dirio pessoal. Eu as levava comigo. Parecia que tinham sido escritas para mim. ou melhor, parecia que eram de minha prpria autoria. Todos os dias quando acordo, no tenho mais o tempo que passou...Quero colo, vou fugir de casa... preciso amar...Ideologia, eu quero uma para viver... Porque se chamava moo, tambm se chamava estrada...Eu no sou besta pra tirar onda de heri... In the name of love, what more? Come as you are, as you were... Pacato cidado, pacato da civilizao... Sou pescador de iluses... CONFISSES DE AURLIO 67Jocinemaeraumacaudalosafontedeentretenimento,por meio da qual eu percorria mundos inteiros de fantasia e projetava todo omovimentodramticodeminhasemoes.Cinemasempredra-ma.Avidapuratrama.Emcomparaoaosherisdasantigastra-gdias gregas, as personagens que povoavam meu imaginrio tinham um sentido mais unvoco: heri-heri, vilo-vilo, o bem vence o mal. Essedualismohojemecansaumpouco,masnapocainsufava-me de ideais pelo mecanismo mesmo da estereotipia. Um movimento ver-dadeiramentecatrticoerabastanteraro,tendoemvistaque,como diziaAristteles,paralevaropblicoaatingirapurgaocatrtica, no basta que na representao uma pessoa m ou boa se d bem ou mal,independentementedaordememquetaisjbiloseinfortnios aconteam, pois o essencial que a tragdia advenha de modo simul-taneamenteinexorvelevoluntrionavidadoheri.Semoaspecto inexorveldodestinotrgico,osentimentodepiedadenosemani-festa.Semoaspectovoluntrio,ouseja,semoserrosqueaprpria personagem acaba cometendo por sua conta e risco, no se terrifca o espectador perante a angustiante iminncia de sofrimento que a todos constrange nesta vida. Naquele tempo antigo, a pessoa que ia ao teatro voltava para casa munida de um aprendizado til para o viver, e talvez ela passasse aestarmaispreparadaparaosaltosebaixosdavida.Nessesentido, atragdiaauxiliavanaformaodecidados,semincidnciademo-ralismo.Nocinemahollywoodianodomeutempo,comumente,no acontecia assim. o heri fazia a caricatura de uma virtude monotnica, eseusofrimentosefaziapresenteapenasparafgurarapersistncia no bem ou para insufar um sabor epopeico na busca da mulher amada. o sofrimento do vilo, por seu turno, trazia tona uma vingana lcita, CAPTULO 8 68aceitvel,epromoviaadescargademonesagressivaslatentes,de modo que o resultado fnal no era tanto a catarse, mas a mobilizao de paixes e ideais em prol de um senso deveras vago de herosmo.Lembro-me de um dos flmes mais fantsticos daquela poca, Seven, no qual o serial killer fazia com que cada um de seus assassinatos simbolizasseumdossetepecadoscapitais.ofnaldothrillerdeuum nnaminhacabea,toacostumadaelaestavacomsoluesfceis. Ao mesmo tempo em que eu queria me sentir como um bom mocinho, transcendentalmentesuperioraosconfitosmorais,tambmhavia avontadededaraopsicopataseumerecidocastigo,eliminando-o queima-roupa. No resisti; o herosmo cedeu ao desejo de vingana. Fi-quei angustiado. No me reconheci. Esse voc mesmo, Aurlio? Qual o seu desejo? Atira! Explode a cabea desse desgraado!No mesmo ano, perdi meu pai.Morre o pai de AurlioEuviajavanoturbilhodofnaldosculoXX,semtercom-pletadoaindaosdezoitoanos,quandopapaiveioafalecer,atingido por um infarto fulminante. Meu mundo caiu. Tudo o que antes me ale-grava perdeu o sentido. Retra-me num profundo estranhamento com relao ao cerco do real. Morri e renasci; mas no to rpido, no sem antes descer ao breu: Ser que vale a pena? Viver para qu? deprimido, eu estan-cava em pensamentos dilacerantes.Seanteseusentiaquetudoestavaaomeualcance,seacre-ditava que meus amigos conspiravam a revoluo, adolescentes como CONFISSES DE AURLIO 69eu,paraummundomaisexcitante,esedebochavadosconselhosde papai, com sua morte, descobri minha prpria fragilidade. Meu velho era forte como um touro, eu jamais havia visto uma doena derrub-lo por um dia sequer. Perdi o cho. Como pde ir-se assim, numa frao de segundos, como que soprado aos ventos? Ser isso o homem, uma alma inquebrantvel num corao de passarinho? Alma imortal... minhas palavras assediavam o silncio de Mnica.Ns, que tanto precisvamos da fora de papai, nos encontr-vamosdesamparados.Issonofaziasentido.Meucoraoagitava-se feito mar revoltoso. onde est a bondade de Deus? Por que deixou meu pai mor-rer? No existe deus algum, e nada faz sentido eu destilava meu pr-prio caos interior.osmonstrosquehabitamosporesdaalmacorriamsoltos. Mais do que sofrer a perda, mais do que envolver-me na mortalha do luto,piorerabeberumcoqueteldesentimentosconfusoseamargos como fel. Era uma nusea, um remorso, algo que eu no podia enten-der. Desejava sumir, pensava em isolar-me num canto qualquer e sen-tia dio do mundo. Agredia as pessoas que me amavam e no aceitava consolo. Meu desempenho escolar foi a zero.Permanecinesseestadopormeses.Atque,umdia,mame pronunciou palavras mgicas: Aurlio, meu flho, meu amor, at quando continuar se punindo?Somente uma me para traduzir to bem as tormentas ocultas daalmadeumapessoa.AoouviraspalavrasdeMnica,desabeiem lgrimas. Eu tinha dvidas a acertar, precisava de perdo, por ter agido como animal desgovernado, que circula sem rumo e dorme ao relento; CAPTULO 8 70maseratardedemais,acasacaiuantesdeoflhoprdigochegar,e meu pai jamais voltaria a estar l para festejar o meu retorno.Levei minha me garagem e lhe mostrei um pneu rasgado, en-costado no canto. Prometi, aos prantos, que no dia seguinte ele estaria restaurado. Ela no entendeu muito bem a urgncia daquela promessa, e assentiu apenas em respeito minha dor. No tive coragem de contar--lhe a verdade. Eu mesmo era o autor do estrago, enquanto todos pensa-vam que o pneu havia sido rasgado por algum vadio noturno.oh,meuDeus,confessooquantosoupequenino!Comopude atacar o patrimnio da minha prpria famlia? To somente porque pa-pai me proibira de ir a certa festa e me afastara de um ambiente que eu mesmo no aprovaria para um flho meu? Na memria do universo, es-tou eternamente rasgando o pneu do carro de meu pai. Sinto vergonha.Chorei muito no colo de minha me. No dia seguinte, procurei um borracheiro especializado em recauchutagem e o convenci a fazer o servio. Como pagamento, ofereci meu sangue; uma semana de trabalho braal.Ainda guardo aquele velho pneu comigo, misto de trofu e ci-catriz no corao.Despertando a conscincia A melancolia um tipo de morte que no morre nunca. Voc padece de um sofrimento que di, di; voc se entristece, e isso dura uma eternidade. Mesmo que dure somente um dia, ou um ano, no faz diferena,durasempreumaeternidade.otemponopodemedira melancolia, porque ela no possui movimento, no muda, no evolui; a melancolia o absoluto do sofrimento. Dela, o tempo s mede a cura, quando isso, por sorte, acontece. CONFISSES DE AURLIO 71No meu caso, a cura no veio por sorte, mas por graa. S pude recuperar a capacidade de amar porque a ajuda veio de cima. ordens superiores quiseram que eu fosse salvo pelo amor ao conhecimento.Falodeumconhecimentoquesalva,nodoconhecimento tcnico-cientfco.Falodoconhecimentoque,naAntiguidade,levou Pitgoras a apresentar-se no como sbio, mas como amante da sa-bedoria,eque,naverdade,omesmoconhecimentoquedevemos amaremCristo.Trata-sedeumaimportantedistino,porque,sea cincia moderna vem do desejo de transformar o mundo, a sabedoria, por sua vez, vem da arte de dar sentido vida. claro que eu ainda no estava pronto para a verdadeira busca dasabedoria.Fuisalvoporumailuso.Umailusoboa.Umfode esperana.Euqueriaumacidade,umporto,umba,umtesouroou, ao menos, um mapa. Eu queria vencer a morte. Somente com os anos compreenderiamelhorosentidodajornada,mas,paraalgumque ainda dava seus primeiros passos, j estava bom: a iluso do porto era sufciente para me fazer navegar.Misteriosos acontecimentos fzeram despertar essa busca. No me importo se a maioria das pessoas prefere acreditar no acaso ou nas coincidncias. As pessoas geralmente recusam o espanto. Elas procuram afastar tudo aquilo que eventualmente lhes perturbe o sono do materia-lismo. E, na verdade, no h nada de estranho nisso, visto que o sonho tem funo biolgica, qual seja: impedir o sujeito de acordar. mais fcil dizer isso foi uma coincidncia do que dizer ouvi o chamado. Ento, sejaloqueforquepensefulanooubeltrano,devoconfessarquefui chamado.Numintervalodepoucosmeses,umasequnciadeeventos mudou para sempre minha maneira de ver a vida e transformou meus sonhos. Tudo comeou com a leitura de O Pequeno Prncipe. CAPTULO 8 72Faziajalgumtempoqueavelhaestantedelivrosdepapai andavaesquecida.Mesmodepoisdamortedele,elaforapreservada; mame a mantinha do jeitinho que ele gostava, embora ningum cos-tumassemexerl.Certodia,encontrando-mesozinhoemcasa,senti grande saudade do meu velho e quis ver se estava tudo em ordem no escritrio. Logo que entrei, notei que faltava um dos puxadores da por-ta da estante. Fiquei muito irritado; talvez nossa empregada no reco-nhecesse o valor daquela relquia; mas encontrei a pea cada ao lado de uma poltrona e decidi reparar imediatamente o estrago. Depois de encaix-la, abri e fechei trs vezes para testar a resistncia.Foi ento que notei um dos livros em posio invertida, com a lombada voltada para dentro; peguei: era o livro de Antoine de Saint--Exupry. No aquele que mame me dera, mas um exemplar mais an-tigo.Papai otinha guardadopor dcadas,e eu melembravadeouvi--lodizerqueahistriadoprincipezinhotinhasidoumadasleituras que mais infuenciaram o curso de sua vida. Dissera que o livro era um espetculo da beleza, enquanto eu, criana, no entendia bulhufas do que ele queria dizer com isso.Tive vontade de iniciar a leitura ali mesmo, e assim o fz. Fiquei muito animado. De cara dei risadas com a cobra que engolira o elefan-te. Eu j havia me esquecido de como era rir. Senti saudade de papai. Asaudademudoudetom,pudesenti-lopertodemim,comoseele estivesse partilhando a leitura comigo.Li tudo numa sentada s. Nem vi o tempo passar. Ao fnal, f-queilembrandocomopapaierageneroso;pareciaquenoseligava nas grandes ambies dos homens. Tudo dele era muito bem cuidado. Costumavafazerpessoalmenteamanutenodacasa.Noquartinho dosfundos,prateleirasguardavampeasreutilizveis,latasdetinta, CONFISSES DE AURLIO 73cera lquida para o carro, adubo para o jardim, tesouro, faco, botas de vaqueiro para os fnais de semana no stio, pesticida animal, pregos, parafusos, inseticida, lanterna e a caixa de ferramentas. Tudo aquilo, a olhos pouco atentos, podia parecer mero utilitarismo de um pai de fa-mlia; mas, no. Patrcio trabalhava para fazer de seu mundo um lugar harmnico, simtrico e limpo. Talvez ainda houvesse um pouco daque-le pequeno prncipe em seu corao; talvez procurasse ver mais beleza nomundoe,assimcomoeutambmaindanocompreendo,talvez no compreendesse bem a seduo do poder.Agradeciasguasquecaaminsistentemente,abenoadas,e aproveitei para lavar, em chuva fna, a sujeira de um ba de velhas hist-rias. Quantos sentimentos ambguos! Peguei uma foto de papai e disse: Te amo onde quer que esteja. Achoquepelaprimeiraveznavidafzalgoparecidocom meditar.Meuspensamentoscorriamsoltos,comumalevezaqueeu desconhecia.Deolhosfechados,respireiprofundamente.Sentimeus pelos arrepiarem. Tive orgulho de ser flho de Patrcio, o homem que fez de nossa famlia o seu jardim; e tive certeza de que eu era sua for preferida, sua rosa.No verso da foto, que levarei para o tmulo comigo, escrevi as seguintes palavras: Adeus, papai, seja bem vindo em meu corao.O nome dela SofiaPassou-sepoucomaisdeummseoutroeventoinslitoir-rompeunasuperfciedosacontecimentoscotidianos.Eraoperodo das frias escolares, eu me sentia bem e pretendia aproveitar o tempo CAPTULO 8 74livre para curtir minha famlia e amigos. Todos estavam contentes por me ver atravessar o luto. Eu conversava, sorria e agia de maneira am-vel, demonstrando uma sensibilidade jamais percebida antes. Cheguei a escutar uma conversa entre minha me e um tio, quando ele dizia: Agradea a Deus por no perdermos o Aurlio, Mnica, nosso garoto est muito bem, cada dia mais parecido com o pai.Contudo, ainda nos primeiros dias de frias, mudei o rumo dos planosparamededicarleiturademaisumlivro.gasteiboaparte das minhas economias na compra de um best-seller lanado na poca, O mundo de Sofa.No dia em que o comprei, eu no sabia muito bem o que que-ria.SadecasapensandoemcomprarumoudoisCDs.Agradava-me aideiadegastarmeudinheirinho,apenasisso,nopornecessidade, mas simplesmente porque estava de bom humor e no tinha pretenso de acumular grandes quantias. Nem sequer fui direto loja de discos, decidipassarporumaavenidaquecortavaapartedetrsdocentro comercial da cidade, um caminho obviamente mais longo. E foi ento que, ao cruzar uma rua