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Educao e Sade

Educao e Sade

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Educao e Sade

FUNDAO OSWALDO CRUZ Presidncia Paulo Buss Vice-Presidncia de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico Jos Rocha Carvalheiro Coordenao da rea de Fomento e Infra-Estrutura Win Degrave Coordenao do Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgica em Sade Pblica (PDTSP) Mirna Teixeira ESCOLA POLITCNICA DE SADE JOAQUIM VENNCIO Direo Andr Malho Vice-Direo de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnolgico Isabel Brasil Pereira Vice-Direo de Desenvolvimento Institucional Sergio Munck

Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade Coordenao Mrcia Valria G. C. Morosini

Est publicao contou com o apoio do PDTSP/Fiocruz2

Educao e Sade

Educao e SadeOrganizao Carla Macedo Martins Anakeila de Barros Stauffer

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Educao e Sade

Projeto Grfico e Editorao Eletrnica Marcelo Paixo Capa Gregrio Galvo de Albuquerque Diego de Souza Incio Reviso Janana de Souza Silva Soraya de Oliveira Ferreira Reviso Tcnica Anakeila Macedo Martins Carla Macedo Martins

Catalogao na fonte Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio Biblioteca Emlia Bustamante M386e Martins, Carla Macedo (Org.) Educao e sade. / Organizado por Carla Macedo Martins e Anakeila de Barros Stauffer. Rio de Janeiro: EPSJV / Fiocruz, 2007. 192 p. : il. , graf. ; (Coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade, 6). Coordenadora da coleo Mrcia Valria G. C. Morosini.

1. Agente Comunitrio de Sade. 2. Educao Popular. 3. Sade. 4. Comunicao. 5. Cultura. 6. Informao. 7. Educao. 8. Livro Didtico. I. Ttulo. II. Stauffer, Anakeila de Barros. III. Morosini, Mrcia Valria G. C. CDD-362.10425

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Educao e Sade

AutoresAnakeila de Barros StaufferPedagoga, doutoranda em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), professora pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/ Fiocruz) e professora da Secretaria Municipal de Educao de Duque de Caxias, Rio de Janeiro.

Anglica Ferreira FonsecaPsicloga, mestre em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz), professora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Carla Macedo MartinsLicenciada em Letras, doutora em Lingstica pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Eduardo Navarro StotzGraduado em Cincias Sociais, doutor em Cincias da Sade e pesquisador titular da pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz).

Helena Maria Scherlowski Leal DavidEnfermeira sanitarista, doutora em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/ Fiocruz), professora adjunta do Departamento de Enfermagem de Sade Pblica, Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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Inesita Soares de ArajoGraduada em Comunicao Social, doutora em Comunicao e Cultura pela Escola de Comunicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), pesquisadora do Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica da Fundao Oswaldo Cruz (Cict/Fiocruz).

Isabel Brasil PereiraBiloga, doutora em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), professora e pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz) e professora da Faculdade de Educao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Jos Ivo dos Santos PedrosaMdico, doutor em Sade Coletiva pelo Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas (DMPS/FCM/Unicamp) e professor adjunto do Departamento de Medicina Comunitria do Centro de Cincias da Sade da Universidade Federal do Piau (UFPI).

Mrcia Valria G. C. MorosiniPsicloga, sanitarista, especialista em Educao Profissional pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), mestranda em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e professora pesquisadora da Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).

Vera Joana BornsteinAssistente social, doutora em Sade Pblica pela Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e sanitarista da Vila Olmpica do Joo.

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SumrioApresentao Educao e Sade na Prtica do Agente Comunitrio Mrcia Valria G. C. Morosini, Anglica Ferreira Fonseca e Isabel Brasil Pereira Educao Popular em Sade Eduardo Navarro Stotz, Helena Maria Scherlowski Leal David e Vera Joana Bornstein Cultura Popular e Identificao Comunitria: prticas populares no cuidado sade Jos Ivo dos Santos Pedrosa Comunicao e Sade

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Inesita Soares de ArajoInformao e Comunicao como Problemas: notas sobre o trabalho lingstico dos agentes comunitrios de sade

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Carla Macedo MartinsConcepes de Educao e Livro Didtico: dialogando sobre suas relaes na formao do agente comunitrio de sade

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Anakeila de Barros Stauffer

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ApresentaoO livro Educao e Sade o sexto da coleo Educao Profissional e Docncia em Sade: a formao e o trabalho do agente comunitrio de sade, composta de seis volumes voltados aos docentes e s instituies responsveis pela formao deste segmento de trabalhadores. As discusses abordadas no livro, tambm de forma semelhante ao restante da coleo, emergiram dos debates realizados com docentes, agentes comunitrios de sade (ACS), gestores e especialistas representantes das coordenaes municipais e estaduais da Sade da Famlia em oficinas regionais desenvolvidas em trs escolas da Rede de Escolas Tcnicas do Sistema nico de Sade (Retsus) no Centro de Formao de Pessoal para os Servios de Sade (Natal-RN), na Escola Tcnica em Sade Maria Moreira da Rocha (Rio Branco-AC) e na Escola Tcnica de Sade de Blumenau (BlumenauSC) , contemplando trs macrorregies geoeconmicas do pas, respectivamente, Nordeste, Amaznia e Centro-Sul. Nessas oficinas, participaram tambm o Centro Formador de Curitiba, a Escola de Formao em Sade de Santa Catarina e o Centro de Formao de Recursos Humanos da Paraba. Nesses encontros, almejou-se reconhecer as condies do trabalho dos ACS, buscando a interlocuo necessria construo da coleo. Esse processo se deu no mbito do projeto Material Didtico para os Docentes do Curso Tcnico de ACS: melhoria da qualidade na Ateno Bsica, coordenado pela Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio da Fundao Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz), em parceria com as Etsus, e financiado pelo Programa de Desenvolvimento e Inovao Tecnolgica em Sade Pblica: Sistema nico de Sade (PDTSP-SUS) da Fiocruz, edital 2004. O referido projeto, assim como os demais temas desenvolvidos, foram apresentados no livro O

Territrio e o Processo Sade-Doena, primeiro ttulo da coleo.A relevncia da temtica tratada no presente livro se evidenciou pela forma como a atuao profissional dos ACS vem sendo definida: trabalhadores na linha de frente das aes de sade que visam transformao das condies de vida, promovendo a relao entre cidados e servios de sa9

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de. Nestes termos, refletir sobre a prtica profissional desses trabalhadores da sade implica colocar a trade educao-comunicao-informao como foco. Seis artigos compem o livro. Mrcia Valria Morosini, Anglica Ferreira Fonseca e Isabel Brasil Pereira, no artigo Educao e sade na prtica do agente comunitrio de sade, partem do princpio que o trabalho educativo do trabalhador de sade tem a mediao como um dos seus elementos principais. A mediao remete ao tratamento de outras noes, como a de sade, de sujeito histrico como ser ativo na transformao das condies de vida, de cultura e de cotidiano. O segundo artigo, intitulado Educao popular em sade, de Eduardo Navarro Stotz, Helena Maria Scherlowski Leal David e Vera Joana Bornstein, inicia com a seguinte pergunta: quais so as alteraes que o adjetivo popular introduz na tradicional rea de educao em sade que integra os programas de sade?. Os autores exploram a perspectiva de que a educao popular em sade implica abrir um dilogo, via participao e problematizao, entre as diversas concepes do binmio sade-doena e do cuidado na cultura popular, com vistas transformao das condies de vida. Em Cultura popular e identificao comunitria: prticas populares no cuidado sade, artigo de Jos Ivo Pedrosa, retorna-se ao conceito de cultura e de sujeito na modernidade e ps-modernidade, para levantar a questo do encontro entre cultura/saber popular e cultura/saber profissional. Considerando que muitas vezes este encontro apenas suscitou uma reificao da cultura popular e um uso utilitarista da mesma, o autor aponta, entretanto, que este mesmo dilogo pode promover tambm a ressignificao do trabalho em sade, pela incorporao de outros saberes, outras prticas, outras falas e outros rearranjos institucionais para a promoo do cuidado. Inesita Soares de Arajo, no artigo intitulado Comunicao e sade, trata da construo histrica dos modelos de comunicao e do campo da comunicao em sade. A autora conclui com a perspectiva de que a rea da sade vem expressando a necessidade de novas concepes e prticas comunicativas para o SUS, no sentido de superar as formas mais tradicionais de comunicao e educao sanitria.10

O quinto artigo, Informao e comunicao como problemas: notas sobre o trabalho lingstico dos agentes comunitrios de sade, de Carla Macedo Martins, discute, com base na histria dos estudos sobre a lngua, os riscos de consider-la instrumento de trabalho. A autora critica as noes de lngua como reflexo, inveno criativa ou cdigo, indicando as implicaes destas para o trabalho comunicativo-educativo. No sexto e ltimo texto, Concepes de educao e livro didtico: dialogando sobre suas relaes na formao do agente comunitrio de sade, Anakeila de Barros Stauffer analisa o papel de artefato cultural ocupado pelo livro didtico no processo educativo. Valendo-se de uma discusso do livro didtico no mbito das polticas pblicas, a autora aponta para o conflito entre a necessidade de democratizar o acesso ao conhecimento para a qual o livro didtico relevante e as condies hodiernas de produo deste mesmo material. Esta breve apresentao dos textos indica que as reflexes tratadas neste volume da coleo trazem baila inmeras questes sobre o trabalho, a qualificao formal e a escolarizao desses trabalhadores. Esta multiplicidade de questes se expressa, inclusive, na diversidade de conceitos que atravessam, ao longo deste volume, a relao educao-sade: cultura, sujeito, cotidiano, prticas, instituio, poder, cincia, tecnologia, lngua e comunicao. Os temas abordados neste livro indicam que a maneira de conceber a formao est diretamente relacionada ao entendimento de que este profissional realiza um trabalho complexo, cujas bases tcnicas no podem ser descontextualizadas das relaes sociais e polticas que as condicionam. Tal premissa marca a concepo de educao profissional promovida pela EPSJV/ Fiocruz, que entende o trabalho como princpio educativo, e a formao docente como um processo contnuo em que pesquisa e ensino se articulam em objetos de trabalho e investigao permanentes. Podemos afirmar, assim, que a natureza multifacetada do conhecimento implicado no trabalho do ACS evidencia a complexidade das atividades desenvolvidas por este trabalhador, sobretudo se considerarmos o potencial da Sade da Famlia para a superao da dimenso individual e curativa do modelo assistencial biomdico. O que os artigos deste livro exploram como tal11

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complexidade est presente nas dimenses educativa, comunicativa e informativa do trabalho do ACS, sobretudo porque estas so intrinsecamente atravessadas pela dimenso poltica. Considerar esta complexidade e a relevncia do trabalho desenvolvido pelo ACS implica, portanto, o reconhecimento da necessidade de uma formao de carter omnilateral e pblica. Por esta razo, em ltima instncia, o livro busca contribuir tambm para indicar como uma escolarizao ampla e universal fundamental para a tarefa histrica de reconhecimento deste segmento de trabalhadores da sade. Carla Macedo Martins Anakeila de Barros Stauffer

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Educao e Sade na Prtica do Agente ComunitrioMrcia Valria G. C. Morosini Anglica Ferreira Fonseca Isabel Brasil Pereira Introduo Este texto tem por objetivo refletir, junto aos docentes do Curso Tcnico de Agente Comunitrio de Sade, sobre o papel educativo deste profissional no cotidiano do trabalho na estratgia Sade da Famlia. Trata-se, ento, de pensarmos como os conceitos de educao, de sade, de trabalho humano,1 de trabalho em sade,2 de cultura e de comunicao esto articulados nessa discusso. Alguns deles so trabalhados em outros textos desta srie, mas ns os recolocamos agora no interior da temtica educao e sade. Comecemos, portanto, afirmando que o trabalhador da sade desempenha um papel educativo. Essa afirmao baseia-se na compreenso de que o trabalho em sade, ao mesmo tempo que exige reflexo, exige ao, ambas com o objetivo de alcanar a transformao da realidade, componentes bsicos do trabalho educativo. Este trabalho educativo pode estar presente nas diversas prticas que o trabalhador desenvolve, mas se torna mais visvel quando este realiza atividades de preveno e promoo da sade. Entretanto, h diferentes concepes de educao que podem expressar-se no trabalho educativo em sade. A compreenso de educao como um ato normativo, no qual a prescrio (ato de indicar o que deve ser feito e o modo de faz-lo) e a instrumentalizao (ato de ensinar ou repassar uma tcnica ou ainda treinar o manuseio de ferramentas para o trabalho) predominam, reduzindo o sujeito a objeto1 Sobre trabalho, ver Ramos, texto Conceitos bsicos sobre trabalho, no livro O Processo Histrico do Trabalho em Sade, nesta coleo (N. E.). 2 Sobre trabalho em sade, ver Ribeiro, Pires e Blank, texto A temtica do processo de trabalho em sade como instrumental para a anlise do trabalho no Programa Sade da Famlia, e Abraho, texto Tecnologia: conceito e relaes com o trabalho em sade, no livro O Processo Histrico do Trabalho em Sade, nesta coleo (N. E.).

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passivo da interveno educativa, encontra correspondncia em uma compreenso limitada de sade. Em outras palavras, esta concepo de educao reduz quem educa no caso, o trabalhador da sade a um mero reprodutor de normas; e o aprendiz no caso, a populao atendida a um simples depsito de informaes. Outra forma de compreender educao como um processo que no tem como objetivo adaptar o homem s condies econmicas, sociais e polticas em que vive, e sim possibilitar que este homem se compreenda como autor desta sociedade, podendo alter-la. Dito de outra maneira, como nos lembra a imagem em espiral de Marx, as circunstncias geram um tipo de homem que, ao ser educado, torna-se diferente e modifica as circunstncias, produzindo um novo homem, uma nova sociedade, portanto, outras circunstncias, e assim sucessivamente. Se compreendermos a sade como expresso das condies objetivas de vida, isto , como resultante das condies de habitao, alimentao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a servios de sade (Brasil, 1986: 4), interessa-nos pensar educao em sade como formas de reunir e dispor recursos para intervir e transformar estas condies objetivas, visando alcanar mais e melhor sade. Precisamos destacar que educar comunicar, portanto precisamos dizer que o trabalhador que educa, de fato, est comunicando; est realizando um trabalho de mediao entre o conhecimento que adquiriu na rea da sade e a populao a qual visa informar a respeito daquele conhecimento. Da mesma forma, a populao tambm comunica um conhecimento adquirido na experincia vivida e realiza um trabalho de mediao entre este conhecimento da realidade e o trabalhador da sade com quem dialoga. O agente comunitrio de sade (ACS) tem a mediao como um dos elementos principais do seu trabalho. comum, em documentos e discursos de tcnicos, gestores e instituies de sade, o ACS ser identificado como o elo, a ponte entre o servio e a comunidade, o que denota a sobrevalorizao do papel mediador e, portanto, educativo desse trabalhador. Vamos a seguir, refletir um pouco mais sobre os principais elementos dessa mediao.14

EDUCAO E SADE NA PRTICA DO AGENTE COMUNITRIO

A Importncia do Conceito Ampliado de Sade A medicina e a biologia cincia sobre a qual se baseia a maior parte das prticas mdicas por muito tempo foram as principais e talvez nicas referncias para a definio de conceitos de sade, ou seja, para a criao das idias em torno das quais podemos dizer O-que--ter e O-que--no-ter sade, O-que- e O-que-no- uma vida saudvel. Resulta disso termos, ainda nos dias de hoje, um entendimento de que ter sade no estar fisicamente doente e no ter sade estar doente. Por ser muito simples, e por ter sido criado a partir da rea de maior poder e prestgio dentre aquelas que se dedicam a lidar com questes de sade, ou seja, a medicina, esse conceito ganhou grande aceitao e ainda considerado hegemnico,3 isto , de maior poder de influncia na sade. Ao afirmarmos que esse conceito simples, estamos considerando que ele de fcil entendimento e, ao mesmo tempo, oferece uma boa explicao bem estruturada a respeito de uma situao. Essas condies contribuem para a sua aceitao e difuso pela populao e, conseqentemente, para a sua incorporao ao senso comum sobre a sade. Nesse caso, se aceitamos que sade apenas a ausncia de doena, estaremos aceitando tambm que, para ter sade, basta no ter doena. Como deduo lgica, provavelmente concluiremos que para solucionar os problemas de sade precisamos apenas curar as doenas e, portanto, nossas necessidades acabam reduzidas a mdicos, hospitais e remdios. Entretanto, a experincia nos faz perceber que esse conceito de sade reduzido, pois nos traz to-somente uma parte dos problemas de sade e tambm das aes necessrias e solues possveis para resolv-los. Quem trabalha nas comunidades, como os ACS, sabe bem que muitos dos problemas de sade que a populao enfrenta tm sua origem em questes ambientais, tais como o saneamento. Isto quer dizer que, na prtica, os ACS j pensam em sade de modo ampliado. A tentativa de ultrapassar esse conceito reduzido de sade tem obtido sucesso no campo da sade pblica. Diversas linhas de pensamento nos mostram que no existe a sade totalmente separada da doena, e sim um processo deSobre hegemonia, ver Braga, texto A sociedade civil e as polticas de sade no Brasil dos anos 80 primeira dcada do sculo XXI, no livro Sociedade, Estado e Direito Sade, nesta coleo (N. E.).3

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sade-doena.4 Assim, compreendemos que situaes de doena podem fazer parte da vida, parte do modo como os seres humanos se relacionam entre si e com a natureza; mais do que isso, hoje, acreditamos que a sade uma conquista, no apenas de cada indivduo na sua vida particular, mas tambm dos sujeitos sociais que tm a capacidade de lutar coletivamente para transformar a si mesmos e ao mundo, e assim se aproximarem de uma situao de qualidade de vida que favorea a sade de todos. Quando falamos de qualidade de vida, e pretendemos relacionar essa idia de sade, estamos apenas reforando o conceito de sade presente na VIII Conferncia Nacional de Sade realizada em 1986 que j mencionamos e aqui ressaltamos: Sade a resultante das condies de habitao, educao, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos servios de sade (Brasil, 1986: 4). Esse conceito de sade tem sido caracterizado como um conceito ampliado, pois nos faz ver a sade como algo a mais que a ausncia de doena. Isto nos compromete com a idia de que uma situao de vida saudvel no se resolve somente com a garantia do acesso aos servios de sade o que tambm fundamental , mas sobretudo com condies de vida dignas que, em conjunto, podem nos proporcionar essa situao. Nesse sentido, so indissociveis o conceito de sade e o conceito de sujeito social e ambos esto intimamente relacionados com a compreenso do trabalho em sade como uma prtica social. Trataremos disso a seguir. comum a crtica sociedade conforme est predominantemente organizada hoje, como uma sociedade onde predominam concepes individualistas. Essa crtica no senso comum geralmente associa o individualismo ao egosmo e, assim, estaria sendo dito que, na sociedade atual, cada pessoa pensa e age considerando cada vez mais apenas seus prprios interesses. Mas outros sentidos podem estar associados idia de individualismo. Por exemplo, a idia que cada pessoa somente uma pessoa, sem levar em conta que ela vive em sociedade e que a sua vida relacionada a outras. Criticamos o individualismo predominante nas relaes sociais hoje porque compreendemos que, mesmo existindo emoes e aes experimentadas e4 Sobre processo sade-doena, ver Batistella, textos Sade, doena e cuidado: complexidade terica e necessidade histrica e Abordagens contemporneas do conceito de sade, no livro O Territrio e o Processo Sade-Doena, nesta coleo (N. E.).

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vividas por cada indivduo, estas se expressam, formam sentido e se realizam em sociedade. Um outro conceito se impe, ento: o conceito de sujeito. De uma certa maneira, entender o homem como sujeito tambm compreendlo como aquele que, junto com outras pessoas, constri a sociedade. Quando falamos sujeito, est implcito o ser humano que tem a conscincia como princpio determinante para as suas aes, o que o oposto do ser humano como parte passiva das relaes que estabelece com o mundo. Quando insistimos em dizer que o trabalho em sade uma prtica social, estamos ressaltando o entendimento de que as possibilidades de transformaes no campo da sade no dependem da simples aplicao de conhecimentos cientficos e/ou normas tcnicas. Estamos dizendo tambm que existem relaes sociais entre membros da comunidade, entre a populao e o espao geogrfico, entre as instituies pblicas diversos nveis de relaes assim como os mais diferentes tipos de interferncias nessas relaes que podem atuar promovendo ou prejudicando a sade das comunidades. Por isso, dizemos que o trabalho do ACS nas comunidades no uma ao sobre a populao, e sim com a populao. No plano da experincia de trabalho dos ACS, encontramos algumas situaes exemplares dessa discusso. Eis a seguinte situao: evidente, para um profissional da sade, que a presena de pneus acumulando gua representa um risco evidente para a sade da populao. Neste caso, a norma bastante clara: os pneus devem ser descartados em locais adequados. Contudo, como raramente h coleta de pneus, cria-se um problema: eles so depositados em qualquer local, e, como normalmente ficam expostos ao ar livre, tornam-se locais que acumulam gua de chuva. Nesse exemplo, temos um problema extremamente srio cuja soluo definitiva est alm da aplicao de um conhecimento, requerendo uma medida de infra-estrutura. Na maior parte das vezes, mudar situaes no campo da sade pode significar atuar sobre condicionantes e determinantes que mexem com questes econmicas, culturais e at mesmo emocionais. Cabe notar que no abandonamos uma idia: necessrio lutar para transformar, possvel transformar. Quando dizemos que o trabalho em sade uma prtica social, estamos convencidos de que no h uma receita pronta que possa ser adotada. Estamos tambm acreditando que, atravs do trabalho junto populao, descobre-se e constri-se um conjunto de possibilidades de17

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ao que vo-se alterando com a realidade. A educao em sade uma dessas possibilidades, algo que tem seu lugar nessa histria. Notas sobre Educao em Sade Assim como na sade, no campo da educao, tambm encontramos diferentes concepes de educao que correspondem a diferentes perspectivas acerca da sociedade e das relaes sociais, assim como a diferentes projetos de conservao ou de transformao da ordem social. Passaremos a tratar aqui de alguns modos de se pensar sobre educao e sobre a educao em sade. Quando falamos de educao, duas associaes so comuns. A escola e a educao transmitida da famlia para as crianas. A idia de que a educao tem o objetivo de construir a criana tornando-a um ser social nos faz pensar em algumas coisas. Por exemplo: a educao uma ao que se dirige queles que seriam, a princpio, incapazes de se relacionar de um modo culturalmente aceito. Nesse caso, existiria um plo que recebe a educao (o que no sabe) e tambm um nico sentido da educao que vai de quem educa para quem educado. Mas, tal qual na sade, na educao, a discusso tambm vai alm. Vamos propor aqui um modo mais amplo de se pensar sobre a educao. De acordo com a nossa proposta, educar seria um processo por meio do qual criam-se formas de perceber a realidade, pensar intelectualmente sobre o que nos cerca, conceber nossas alternativas de interferir na realidade, e ainda, de relacionar-se emocionalmente com os fatos da vida. Essa perspectiva torna a compreenso de educao um tanto mais complexa. Como recurso para explicitar melhor esse pensamento sobre a educao, recorremos a um exerccio de imaginao, lembrando de uma criana de nossa convivncia; pensando no quanto ela j influiu e mudou o nosso modo de pensar sobre um assunto, de nos sentirmos em relao a algumas coisas, de mudar os nossos valores... Embora sejamos adultos e experientes, possvel reconhecermos que um ser com pouca experincia de vida capaz tambm de exercer, atravs da relao conosco, uma ao educativa. Esse exerccio, facilmente reconhecvel como uma experincia comum no dia-a-dia da maioria da populao, vale para nos ajudar a afirmar que existe

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uma ao educativa um poder de educar, que se coloca para as mais diferentes relaes, quer sejam com pessoas, quer sejam com instituies. No caso do trabalho do ACS, isso particularmente importante porque preciso lembrar que muitas formas de agir na relao com a comunidade e com o territrio tm o resultado de uma ao educativa, algo que pode gerar, nos espaos de nossa convivncia cotidiana, formas de perceber, agir e pensar sobre questes relacionadas sade e ao ambiente. Mas, no caso de nossa discusso, e para fins de qualificao do ACS, queremos destacar um outro aspecto. Trata-se do fato de que uma parte significativa do trabalho desse profissional pode ser considerado trabalho educativo. Trabalho Ao Educativa e Trabalho Educativo Ao comentarmos que todas as relaes sociais so potencialmente educativas, estamos considerando que a ao educativa pode ocorrer espontaneamente, sem que haja necessariamente uma conscincia sobre essa ao, ou ainda uma reflexo sobre sua inteno. Dito de outra maneira, compreendemos que a educao no seu sentido amplo de humanizao se d ao longo de toda a vida, acontecendo em lugares sociais, como no ambiente familiar, no trabalho, na rua, na igreja, na escola. Esta seria uma diferena importante entre ao educativa e trabalho educativo.5 Quando afirmamos que uma importante parcela do trabalho exercido pelo ACS trabalho educativo, estamos dizendo que este trabalho traz consigo uma inteno, e deve, portanto, incluir reflexes sobre seus objetivos e as formas atravs das quais caminhamos para nos aproximarmos desses objetivos. possvel que neste ponto de nossa discusso surja a indagao se isso no seria um excesso de trabalho ou de expectativas que se coloca alm do que deveriam ser as atribuies do agente comunitrio de sade. Talvez, fortalecendo essa idia, esteja a crena de que o trabalho educativo s deveria ser desempenhado por pessoas que receberam uma qualificao especial para isso, os mestres ou docentes propriamente ditos.A concepo de trabalho educativo qual nos referimos discutida por autores como Saviani, nos livros Escola e Democracia (1999) e Pedagogia Histrico-Crtica: primeiras aproximaes (1991), e tambm Betty Oliveira (1996) em O trabalho Educativo: reflexes sobre paradigmas e problemas do pensamento pedaggico brasileiro.5

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Nossa posio aponta para o contrrio. No podemos supor que o trabalho educativo no requer reflexo, mas achamos que essa reflexo crtica tem de ser realizada, acima de tudo, por aqueles que efetivamente realizam esse trabalho. Por todos aqueles que incluem entre seus objetivos de trabalho a inteno de: partilhar conhecimentos sobre sade; contribuir para que as populaes reconheam as situaes de risco sade nas quais esto envolvidas; promover a mobilizao popular para garantir direitos que nos permitam melhorar nossas condies de vida; em resumo: interagir conscientemente com os sujeitos sociais (indivduos, instituies, grupos) que ativamente podem fazer a diferena. Ou seja, particularmente importante para o trabalho do ACS, cujas atribuies so to prximas lista que apresentamos, que a sua formao possibilite refletir sobre questes especficas da educao em sade, assim como importante discutir com esse trabalhador as caractersticas do trabalho que realiza, tendo em vista o fato de que todo trabalho em sade deve ser compreendido como trabalho humano. Pode-se entender o trabalho humano como um processo no qual os seres humanos atuam sobre a natureza, transformando-a em formas teis para a sua vida, para a garantia da sobrevivncia e a continuao do indivduo e da sua espcie. Ao modificar a natureza, o trabalhador coloca em ao a sua capacidade de pensar, imaginar, planejar (capacidades intelectuais) e suas energias fsico-musculares. importante distinguir o trabalho humano das aes instintivas realizadas pelos outros animais. Marca bem essa diferena a seguinte imagem : o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele figura na mente sua construo antes de transform-la em realidade (Marx, 1968).6 O que queremos ressaltar que o trabalho humano se caracteriza pelo pensar ao desenvolver suas aes. Sabemos que, ao longo da histria, a maioria dos trabalhadores foi condenada a achar que no possua capacidades intelectuais. Ou seja, uns (poucos) foram feitos para realizar trabalho de pensar6 Trata-se de uma imagem usada por Karl Marx (1968), filsofo alemo, no livro O Capital: crtica da economia poltica, escrito no sculo XIX, e que, no Brasil, teve vrias edies, uma delas, publicada em 1968, pela Editora Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro.

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e comandar, e outros (muitos) foram destinados somente ao fazer. Ora, isso foi uma inveno de uma minoria para dominar e explorar o trabalho desenvolvido pela grande maioria da populao, desvalorizando o trabalho que esta maioria desenvolve e criando nos trabalhadores que o executam um sentimento de incapacidade para pensar. Na verdade, sabemos que, ao desempenhar suas atividades, os trabalhadores, no mnimo, refletem sobre os meios e os modos de realizarem o seu trabalho e atingirem seus objetivos. Outra coisa que precisa ser ressaltada que essa desvalorizao ligada diviso social do trabalho. Ou seja, aos trabalhadores que pertencem a grupos de menor poder econmico, relegado o trabalho menos valorizado, composto de atividades menos valorizadas na sociedade. A esse trabalho pouco valorizado destinam-se os menores salrios, resultando em um ciclo vicioso de dominao que acaba por inculcar nesses trabalhadores a sensao de incapacidade de pensar e refletir. Compreender que o trabalho em sade requer o pensar, o refletir, pode nos permitir constatar a possibilidade de o trabalhador desempenhar uma atividade de pensar no-crtica (no questionando, nem reformulando, sempre que necessrio, as suas aes). Vamos dar um exemplo: se a funo de ACS basear-se na crena de que esses trabalhadores da sade s precisam, na realizao do seu trabalho, aprender e transmitir informaes tcnicas para a populao, como mediadores em um nico sentido, ou seja, do servio para a populao, no podemos negar que esse trabalho em sade se constitui em um trabalho educativo, pois exige reflexo e ao, vislumbrando alcanar a transformao da realidade. Porm, neste exemplo, de repasse de informaes e tcnicas, poderamos dizer que o ACS estaria realizando um trabalho intelectual no-crtico e adaptado, com poucas chances de alterar as situaes e de provocar mudanas possveis. Podemos assim listar alguns riscos comuns no trabalho de educao em sade que implicam a reduo da educao a um trabalho de conservao com baixa possibilidade de transformao da realidade: O processo de conheceratrelar-se ao no-pensar criticamente; O ato da reflexo ser substitudo por um ato de consumo de informaes; A criao ser substituda pela aquisio de habilidades e reproduo mecnica de tcnicas e procedimentos.21

EDUCAO E SADE

Entendemos que o ACS deva compreender o trabalho em sade que desenvolve como algo que:

Requer pensar criticamente situaes vividas e desenvolver aes mediante essas reflexes;

Assuma a concepo de educao como um processo que possibilite apopulao a ver-se como construtora da sociedade, podendo alter-la;

Compreende a sade como expresso das condies objetivas de vida,isto , entende a sade na sua concepo ampliada e crtica. Refletindo um pouco mais sobre educao, reconhecemos que as teorias educacionais podem ser entendidas em dois sentidos opostos, mas que convivem no pensamento educacional dos trabalhadores que realizam um trabalho pedaggico. Vrios autores nomeiam e classificam essas teorias como crticas e no-crticas; ou ainda, de progressistas e liberais. Jos Carlos Libneo (1985), por exemplo, em seu livro Democratizao

da Escola Pblica: a pedagogia crtico-social dos contedos, classifica as tendncias encontradas na educao em liberais e progressistas. Para este autor, a concepo amplamente difundida que atribui escola a funo de preparar os indivduos para os papis sociais, conforme as aptides de cada um, sustentada pela pedagogia liberal. J as tendncias progressistas partem de anlises crticas das realidades sociais e sustentam implicitamente as finalidades sociopolticas da educao. Trata-se de classificao de concepes da educao prxima quelas feitas por Dermeval Saviani (1983), no texto Tendncias e correntes da educao brasileira, publicado no livro intitulado Filosofia da Edu-

cao Brasileira, organizado por Durmeval Trigueiro Mendes.As teorias crticas, ou progressistas, referncias para o presente texto, tm em comum o posicionamento em favor de uma educao emancipadora que vise construo de um cidado questionador, crtico e ativo. Tambm comum a essas teorias a compreenso de que a educao tem um componente tico e que precisa promover a idia de que a solidariedade necessria para a construo de um mundo melhor, menos violento, portanto, mais saudvel. Para o trabalho em sade, em especial aquele realizado pelo ACS, fundamental que o trabalhador perceba o quanto importante desenvolver argumentos, perante os indivduos, de que a sade de todos tambm depende deles e dos vnculos de solidariedade que traam com os seus prximos.22

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igualmente importante que o agente encare o seu trabalho como ao polticaem que, dentre outros pontos, tenha de ressaltar a organizao da comunidade como forma de atingir os objetivos do seu trabalho. O fenmeno educativo, na sua interpretao crtica, deve ser considerado sempre em movimento e como processo inacabado, e no deve desconsiderar a sua relao com a comunicao. Educao e Comunicao Assim como acontece com a educao, h vrias formas de conceber a comunicao. possvel pensar que comunicar entre duas pessoas, por exemplo, implica uma que sabe, outra que transmite a informao e uma que recebe passivamente a idia o pensamento da outra. Tambm possvel pensar que, quando duas pessoas se comunicam, ambas se revezam no papel de quem informa e de quem informado. Quando uma pessoa escreve e responde uma carta, isto fica mais visvel, mas o mesmo no acontece, por exemplo, quando um ACS tenta entrar em uma casa para cumprir as suas atividades na visita domiciliar e a dona da casa finge que no est. O que parece surdez, ignorncia ou teimosia, primeira vista, pode ser um ato de recusa que comunica no o desconhecimento, como costumamos pensar, mas talvez a pouca f da senhora nas iniciativas do poder pblico representado naquele momento por esse trabalhador. O que queremos dizer que a comunicao no tarefa fcil, sem conflitos. O receptor, seja ele um indivduo ou uma comunidade, no passivo; isto significa que ele constri sentidos diversos para a informao recebida, muitas vezes, sem perceber. Cada um, transmissor ou receptor, ativo neste processo e realiza um rduo trabalho de compreenso, de traduo do conhecimento, para que ele possa ser comunicado. Este trabalho, na maior parte das vezes inconsciente, acontece com base nas crenas, as concepes, enfim, a forma de ver e compreender o mundo das pessoas que dele participam. Isto , ele se d sem que a gente se perceba, sem que a gente tenha conscincia dele, mas reflete a nossa percepo do mundo. Outra caracterstica importante a ser ressaltada que o processo de comunicar gera mudanas no homem que se comunica, e o homem modificado gera mudana nas circunstncias com base nas quais ele se comunica, e assim23

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por diante, lembrando a mesma imagem da espiral qual j recorremos para ilustrar o processo educativo. Trabalho Cultura 7 e o Trabalho em Sade Ao refletirmos sobre o processo de trabalho do ACS, temos de nos referir, obrigatoriamente, cultura e comunidade. A cultura o processo pelo qual um grupo social garante a permanncia de sua identidade, daquilo que lhe confere singularidade, distinguindo-o dos demais grupos sociais. Trata-se de um legado de linguagem, valores, tradies, concepes, costumes, produes artsticas e outras formas de expressar o conhecimento do mundo em geral e do universo de experincias locais vividas por um determinado coletivo. O homem preserva a sua cultura comunicando-se. H vrias formas de preservar a cultura de um povo as festas, as cantigas de roda, de ninar, as danas, o dialeto de uma comunidade. A tradio oral dos ndios brasileiros como a Bblia para os catlicos, ou as enciclopdias para os homens letrados. Os ndios contam a sua histria de gerao em gerao para que ela no seja esquecida, assim ela permanece registrada na memria coletiva das geraes que se sucedem. Mas a cultura, apesar deste carter conservador, vive um movimento de transformao contnuo, mesmo que este no se torne visvel rapidamente, modificando a cara da cultura de um povo. As mudanas so as interaes entre pequenos atos que se vo instituindo e modificando hbitos, criando novidades, questionando valores, construindo at mesmo outras formas de as pessoas se relacionarem. O mesmo exerccio que fizemos a respeito da educao e da comunicao precisa ser refeito quando se discute cultura. A cultura de uma sociedade tambm o resultado de uma relao conflituosa, a qual expressa um movimento entre idias e costumes muitas vezes antagnicos. Pode-se pensar tambm que alguns hbitos incorporados cultura de uma populao nem sempre representam as escolhas desse grupo, mas, por vezes, representam a falta de opes que acaba por perpetuar situaes, que acabam sendo reconhecidas como traos culturais. Por tudo isso, considerar a7 A respeito do conceito de cultura, indicamos o texto de Alfredo Bosi (1992) Cultura brasileira e culturas brasileiras que est no livro do autor Dialtica da Colonizao.

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cultura da comunidade significativa no desenvolvimento do trabalho educativo em sade no sinnimo de respeitar e reafirmar normas e costumes repressores e individualistas existentes em uma determinada populao. Portanto, entender as diferentes formas culturais no deve ser igual a respeitar preconceitos e estigmas. importante lembrar que a nfase no aspecto cultural no pode deixar de lado ou subestimar a realidade das diferenas de classes sociais, sob pena de se aderir a uma prtica oriunda de certas concepes liberais que tambm fazem parte do pensamento educacional, como, por exemplo: a idia de que o processo educativo tem por funo preparar os indivduos para o desempenho de papis sociais j definidos pela sociedade de classes. No caso do trabalho educativo em sade feito pelo ACS, isso quer dizer que deve ser esclarecido populao sobre as condies de vida que levam ao adoecimento e sobre o que compete ao indivduo e comunidade em relao a essas condies, para que estes sejam aliados de um projeto de vida saudvel. Isso tambm quer dizer que no se deve criar iluso e culpabilizao dos indivduos pelos problemas de sade relacionados s condies de vida que so, em ltima instncia, determinadas pelas condies sociais e econmicas em que vive a populao. Esse um movimento a ser feito pelo trabalhador da sade que entende as suas aes como uma prtica voltada transformao. Portanto, uma postura de um trabalhador intelectual crtico, no caso o ACS, e que responde e reflete uma viso crtica em educao em sade. Um outro destaque na relao cultura e comunidade para pensarmos o trabalho em sade o fato de que a comunidade elege os lugares privilegiados para a troca e a divulgao de informaes. No desconhecemos que as igrejas, as vendinhas, as feiras, as escolas, as reunies de associaes de moradores, as rdios comunitrias so instituies e lugares significativos para que o conhecimento sobre as questes de sade seja propagado. Trata-se ento de vislumbrar essas instituies e locais como espaos que podem contribuir para o desenvolvimento do trabalho do ACS, quer seja participando de reunies de moradores, quer seja reivindicando espao nas rdios comunitrias para o reforo de conhecimentos que se deseje divulgar populao, quer seja destacando os temas relacionados sade junto aos grupos de teatro e manifestaes culturais nas ruas. Esses recursos contribuem tanto para ampliar e diversificar as formas de acesso populao quanto para25

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legitimar o trabalho do ACS na comunidade. Para tanto, enfatizamos mais uma vez que os eventos culturais peas de teatro da comunidade, festas escolares abertas comunidade, festas de igrejas, festas de largo so espaos que devem ser aproveitados para a prtica da educao em sade. A essa altura, vislumbramos uma concluso importante a respeito do trabalho em sade: ele se d na interface entre sade, educao e comunicao. Cabe notar tambm que significativo para o trabalho do ACS que este reflita sobre a questo que, ao desenvolver o seu trabalho, ao ir casa das pessoas, ele est entrando no mundo privado de cada indivduo, de cada famlia. Isso quer dizer que, neste caso, o espao do seu trabalho aquele em que as pessoas mais intimamente vivem os seus desejos, seus afetos, seus conflitos, suas emoes e sentimentos. Portanto, ao entrar com orientaes, com conhecimentos que podem vir a contrariar os hbitos familiares e de cada indivduo, o trabalhador da sade precisar estar sempre atento educao da sua sensibilidade, estar atento s coisas sensveis. Um exemplo o fato de que vasos de plantas e animais, que para o agente podem representar uma ameaa sade em funo da proliferao de mosquitos, podem representar, por outro lado, algo muito especial para a vida das pessoas. importante ento estar atento e sensvel para as questes do cotidiano da vida do indivduo e da populao. Educao em Sade e Cotidiano Defendemos que a ao educativa se d no cotidiano e, na maior parte das vezes, espontaneamente. O trabalho educativo tambm acontece no cotidiano, mas no como uma experincia que ocorre mecanicamente. Pensamos que devemos enfatizar o inverso. Ou seja, que o ponto principal do trabalho educativo colocar em questo as experincias do cotidiano. Muitas vezes, isso se d por meio do conhecimento cientfico que o educador aprendeu e considera importante partilhar. Vejamos uma situao que nos ajudar a esclarecer esta idia. Em diversas comunidades, a populao tem o hbito de armazenar gua nos mais diferentes recipientes. Essa prtica de guardar gua, em geral, uma soluo para os problemas de abastecimento irregular. Entretanto, com os conhecimentos que o ACS adquiriu por exemplo, sobre o modo como uma larva pode ser depositada na gua parada e, a partir da, gerar um inseto que faz26

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parte da cadeia de transmisso de uma doena , ele pode, como educador, que domina esse conhecimento, construir com a populao um novo modo de olhar o armazenamento de gua, que uma atividade do cotidiano dessa comunidade. Esse novo modo de olhar, que incorpora o saber cientfico, pode produzir uma reflexo sobre como no transformar o que parece a soluo de um problema em um outro problema. Por vezes, dar continuidade ao trabalho educativo pode colocar o ACS diante de situaes pouco convencionais, como, por exemplo, apoiar a mobilizao da comunidade por um abastecimento regular de gua. Diramos que essa situao pouco convencional, pois remete o ACS ao fato de que educao em sade no se refere exclusivamente s necessidades fsicas, mas a um campo mais amplo do qual faz parte a reordenao do modo de vida para satisfazer necessidades ticas, emocionais e polticas. Resumindo, a educao aliada sade tem o poder de nos fazer reconhecer novas necessidades, que podem nos fazer pensar e agir alm do que estamos acostumados. Para finalizar, preciso dizer que, ao chamarmos a ateno para a ao educativa, no queremos dizer com isso que o ACS no pode mais ser espontneo no seu dia-a-dia de trabalho, na comunidade, porque, afinal, ele um educador e todo o tempo de que estar atento a isso. O que precisamos reconhecer que existem aspectos que o ACS e o seu grupo de trabalho, a sua instituio, podem identificar como importantes o bastante para compor o seu trabalho educativo. E, sobre esses temas, preciso refletir como educador. Mas no existe somente a nossa idia de educao em sade. Existem outras formas de conceb-la que do origem a outros modos de agir. Certamente, algumas dessas formas, que comentaremos a seguir, so familiares aos ACS. Educao para Sade Grande parte da histria da educao em sade pode ser contada atravs de inmeras aes voltadas para mudanas no corpo dos indivduos. As campanhas antitabagistas ou para o uso de preservativos so exemplos bastante conhecidos. Por conta dessa longa histria e tambm da aceitao que o conceito de sade vinculado apenas ausncia de doena teve, comum a compreenso de educao que chamamos aqui de educao para a sade. Passaremos a destacar as suas principais caractersticas.27

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Em primeiro lugar, a educao para a sade privilegia as informaes sobre autocuidado e acredita firmemente que a sade uma questo apenas biolgica. Na sua relao com a educao e com os objetivos que pretende alcanar, as etapas aparecem esquematizadas: Educa-se o que, de acordo com essa concepo, seria transmitir a informao ou as normas corretas. Indivduo ou grupo recebe a informao nesse caso, no interessa ao educador saber quais as formas de pensar e perceber problemas e solues que a populao partilha. O educador pensa que a comunicao no tem conflitos, ou seja, o que ele disse foi e sempre entendido do modo como ele imaginou que seria. um problema de cada indivduo e da comunidade se no adotarem as condutas corretas. Afinal, so eles que vo ficar doentes. Dentro desse esquema descrito, existem algumas sutilezas que merecem nossa ateno. A primeira delas que essa educao reduz o seu prprio poder educativo. O educador pensa em si prprio apenas como um emissor de informaes ou normas que, provavelmente, so repetidas em manuais e cartilhas. Por trs dessa idia, reside a crena de que a informao suficiente para causar mudanas. Essa construo reserva um lugar de receptor passivo aos indivduos/comunidades aos quais se dirige a informao. No h valorizao do saber que a prpria populao detm sobre seus problemas e, assim, no h dilogo entre sujeitos. Normalmente, desapontado com os resultados desse tipo de trabalho educativo, o profissional/educador tende a apostar que lhe faltam recursos materiais: cartilhas, folhetos, vdeos, e estaria a a causa de certo fracasso de suas intervenes. Ou ento ele adota uma postura bastante comum de culpabilizao dos indivduos pela no-adoo das medidas corretas conforme a orientao apresentada. Vamos nos aprofundar nessa questo da culpabilizao dos indivduos, pois esse um procedimento velho conhecidonosso dos trabalhadores da sade pblica. O primeiro requisito necessrio para um educador investir na culpabilizao dos indivduos como efeito final do processo educativo o fato de ele no considerar que a sua relao se d com sujeitos vivos, concretos, com uma histria. Um jeito tradicional de conceber as pessoas para as quais dirigimos nossos esforos de educao entend-las como tbulas rasas ou, nos dias atuais,28

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podemos imagin-las como um computador vazio, aguardando nossos programas e comandos. Quando se tem o maior cuidado em executar os comandos apropriados e transmitir as informaes e, ainda assim, os objetivos no so alcanados, s pode haver um culpado: o computador ou seja, nesta nossa imagem, os indivduos para os quais nossa ao se dirige. Em geral, j temos frases feitas para caracterizar essa culpa, e ns j dissemos ou ouvimos algo como: esse pessoal no liga pra nada mesmo, No adianta falar que eles no aprendem, dentre tantas outras. O que no estamos observando quando repetimos esse tipo de comportamento que, por meio dele, estamos desconsiderando que as pessoas no escolhem, simplesmente, estarem expostas a alguns riscos. Para contribuir para um pensamento diferente sobre a relao entre preveno e risco e, conseqentemente, entre a educao em sade e a promoo da sade, vamos trazer um conceito elaborado por profissionais comprometidos em melhorar a qualidade do trabalho de preveno Aids, doena que preocupou e preocupa ainda hoje toda a sociedade. Este conceito o de vulnerabilidade.8 Antes de pensar em termos prticos, os estudiosos que foram construindo esse conceito9 assumiram as seguintes posies: A compreenso das questes de sade no pode estar desarticulada das questes de cidadania. Pensar sobre sade requer mais do que pensar apenas em indivduos, exige pensar em contexto social. A preveno no passa, em primeiro lugar, por uma atitude exclusivamente individual. Muitos comportamentos que envolvem riscos tm a ver com o modo como as pessoas esto vivendo, sua forma de trabalhar e morar; os bens materiais dos quais necessitam e os bens aos quais tm acesso; suas necessidades emocionais e suas possibilidades de negociar essas necessidades. A prpria histria da Aids nos deu exemplos claros disso. Por exemplo: quantas mulheres, mesmo aps saberem o quanto a Aids estava aumentandoSobre vulnerabilidade, ver Gondim, texto Do conceito do risco ao da precauo: entre determinantes e incertezas, no livro O Territrio e o Processo Sade-Doena, nesta coleo (N. E.). 9 No Brasil, o conceito de vulnerabilidade foi desenvolvido, particularmente, pelo professor Ricardo Ayres, da Faculdade de Medicina Preventiva da Universidade de So Paulo (USP).8

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entre mulheres casadas, no passaram a usar preservativos nas relaes sexuais com os maridos? Ser que elas (ou, melhor dizendo, os casais) no usaram simplesmente porque escolhiam se arriscar ou existem outros aspectos mais complexos que interferem na adoo desse mtodo de preveno? O conceito de vulnerabilidade nos ensina a buscar a identificao das situaes que tornam determinados grupos (e at indivduos) mais fceis de serem atingidos e por isso vulnerveis por situaes que favorecem o aparecimento de doenas. Ao fazermos isso, deixaremos de banalizar, de reduzir nossa compreenso sobre o conjunto de condicionantes, determinantes, que esto presentes na rede de produo de problemas de sade. Assim, ganhamos a chance de realizar um trabalho educativo menos superficial e com maior probabilidade de colher bons resultados. Outra conseqncia provvel e desejvel que abandonaremos a velha postura de censores das atitudes alheias e poderemos partilhar cada movimento, cada conquista que aproxime os grupos aos quais dedicamos nosso empenho profissional das situaes de menor risco sade. Muitas vezes, esses movimentos no so diretamente ligados sade, o que torna mais difcil para ns reconhec-los como positivos. Em algumas situaes, o grande avano a ampliao da conscincia sobre a sua prpria situao de vida, a identificao dos problemas que envolvem a sade, mas no se limitam a ela, e, em especial, a organizao para o encaminhamento de demandas, que, uma vez alcanadas, podero gerar impacto sobre condies de vida, qualidade de vida e, por fim, sobre a sade. Isto nos coloca, indiretamente, mais um aspecto da educao como um todo e da educao em sade, em particular, que diz respeito viso muito pragmtica e imediatista do nosso trabalho. Poderamos dizer que todo o trabalho em sade voltado para a ao. As prticas dos cuidados em sade esto profundamente associadas aos objetivos diretos de gerar resultados o mais rpido possvel. Isto no ruim, afinal quem quer ir ao servio de sade doente e sair sem uma recomendao ou tratamento que nos leve cura? Entretanto, embora voltado para a ao, o trabalho em sade pode ser chamado de reflexivo, pois exige do trabalhador um esforo de interpretar as situaes que ele observa para, a partir da, elaborar uma proposta de interveno.30

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Outra caracterstica atual do trabalho em sade o seu parcelamento, ou seja, muitos problemas requerem a ao de trabalhadores de diferentes reas e profisses, cada um atuando sobre certa parcela da situao. Essa prtica do parcelamento tem relao com a especializao do trabalho em sade. Em geral, os problemas de sade e, em especial, as doenas, fazem com que o ser humano seja tratado em partes. Se o problema de corao, vai-se ao cardiologista que tende a se preocupar somente com os problemas do corao, deixando de lado o todo que, nesse caso, o ser humano. Esse modo de estruturar o pensamento e o trabalho em sade trouxe possibilidades de avano, medida que o desenvolvimento da cincia produziu tantos conhecimentos que se tornou impossvel para um s profissional dominar todas as reas. Entretanto, essa lgica, quando se une educao em sade, pode tornar-se um complicador. Isto porque pode nos fazer formular sempre objetivos imediatos, quando o processo educacional, em geral, deve apontar para objetivos que se constroem e se estendem no tempo. No raro que as transformaes em sade, baseadas na educao, demandem um tempo prolongado para acontecer, sobretudo porque a educao no transforma diretamente, ela busca, tendo em vista o compartilhamento de conhecimentos, percepo, conceitos ticos e tudo ao qual j nos referimos, criar as condies para que os sujeitos sociais produzam as transformaes que nos permitam viver melhor. Para ilustrar essa discusso, podemos trazer um problema freqente em comunidades populares de difcil acesso e condies precrias de saneamento a coleta de lixo. Sabemos que nos bairros urbanizados das cidades a coleta regular, tendo dia e horrio estabelecidos para acontecer. Contudo, esta coleta regular no acontece nas comunidades populares, ou, quando se d, pode no ser adequada s condies das moradias que, geralmente, no tm espao para acumular lixo, expondo seus moradores ao convvio com sujeira e pragas. Isso faz com que os moradores coloquem o lixo em sacos plsticos nos becos e vielas da comunidade antes do dia da coleta, e estes acabam se tornando alvo dos ces e gatos em busca de restos de alimentos. H ainda o recurso caamba coletiva de lixo, que acumula o lixo individual das moradias at o dia da coleta na comunidade. Entretanto, se a coleta pblica no se d com regularidade, estas acabam transbordando e poluindo o seu entorno, atraindo animais e insetos. Um outro fator associado a esse problema o fato de muitos cidados viverem da coleta e venda de material reciclvel31

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encontrado no lixo e transformarem suas casas em verdadeiros depsitos de garrafas plsticas, latas, papel etc. Em algumas experincias de educao em sade, trabalhadores da sade e moradores mobilizam esforos no sentido de enfrentar o problema do lixo no recolhido das comunidades ou recolhido de forma inadequada. Essas experincias incluem a discusso sobre o descarte seletivo do lixo, separando e destinando de forma diferenciada o lixo conforme o tipo: lixo orgnico, reciclvel, e outros tipos e subtipos, o que implica um trabalho educativo dos moradores a respeito do lixo, de suas caractersticas, do seu impacto ambiental, de sade e das possibilidades de emprego social do material reciclvel. No entanto, essas experincias no perdem o norte de que a coleta e o destino do lixo so responsabilidade do Estado e, portanto, a populao precisa tambm se organizar no sentido de exigir que o poder pblico garanta esses servios em forma de poltica pblica. J se conhece tambm que uma experincia local bem-sucedida em relao ao lixo pode vir a ser aproveitada em nvel macro, sendo incorporada como proposta para outras regies de condies semelhantes em uma cidade. Assumimos que existe uma contribuio especfica a ser dada pelo ACS, que se d quando este ensina, discute e mobiliza a populao. Mas nem todas as possibilidades de provocar uma mudana efetiva esto com os ACS ou estariam de fato no campo da educao em sade. Alis, os processos educativos em geral no devem ter seus resultados medidos somente pelo alcance imediato de objetivos pontuais, devem ser vistos tambm como uma aposta para o futuro. Mas o ACS realiza um trabalho fundamental ao fortalecer a possibilidade de os sujeitos se reconhecerem com poder e responsabilidade pela prpria histria e pelo processo de construo de sua cidadania. E responsabilidade diferente de culpa, pois nos faz reconhecer o nosso lugar no mundo e no tempo, ao contrrio da culpa que, muitas vezes, s serve para nos sentirmos submetidos e sem condies de transformar a realidade. Ns falamos de um trabalho que se apresenta de uma forma to complexa que se pode concluir que isso um nus excessivo para o ACS, j to comprometido com o preenchimento de fichas, as visitas domiciliares e outros procedimentos da rotina do trabalho em Sade da Famlia.

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Entretanto, acreditamos que, quanto menos ns banalizarmos o nosso trabalho, maiores so as chances de obtermos satisfao com ele. Nessa perspectiva, o trabalho uma forma especial de se realizar como ser humano, e, se todo o trabalho humano um trabalho complexo, essa complexidade se torna mais contundente no trabalho que se constri essencialmente na relao com os outros seres humanos. Esse o caso do trabalho do ACS que se efetiva no contato com a comunidade e, sobretudo, com as pessoas que a compem. O desafio que temos a enfrentar o de desconstruirmos os preconceitos que amarram as nossas prticas e experimentarmos a alegria de surpreendermonos com o inusitado, com o que cansamos de olhar, sem ver, com as expectativas vrias que a populao inventa para a vida, construindo juntos modos de sentir, de conhecer o mundo, de driblar as adversidades e de enfrent-las, como e quando possvel. o de assumirmos o desejo de contribuir para aumentarmos essas possibilidades, compreendendo quo longo e trabalhoso, mas quo prazeroso e gratificante isso pode ser, seja no trabalho de formao dos ACS, seja no trabalho educativo por eles realizado. Indicaes de Leitura Sobre o tema educao em sade e especificamente sobre educao popular e sade, recomenda-se a leitura dos textos dos professores Victor Vincent Valla (Valla, 2000; Valla & Stotz, 1993, 1994; Valla; Guimares & Lacerda, 2005, 2006) e Eduardo Navarro Stotz (Stotz, 2004; Stotz, David & Wong, 2005) do Departamento de Endemias Samuel Pessoa da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca da Fundao Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e do professor Eymard Mouro Vasconcelos (1998, 2000, 2001, 2004), do Departamento de Promoo da Sade da Universidade Federal da Paraba (UFPA). Referncias BOSI, A. Cultura brasileira e culturas brasileiras. In: BOSI, A. Dialtica da Colonizao. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. BRASIL. Ministrio da Sade. Relatrio da VIII Conferncia Nacional de Sade. Braslia, 1986. LIBNEO, J. C. Democratizao da Escola Pblica: a pedagogia crtico-social dos contedos. So Paulo: Loyola, 1985.

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Popular Educao Popular em SadeEduardo Navarro Stotz Helena Maria Scherlowski Leal David Vera Joana Bornstein Introduo Uma pergunta que ocorre a quem abre este captulo no livro : por que educao popular em sade? Quais so as alteraes que o adjetivo popular introduz na tradicional rea de educao em sade que historicamente integra os programas de sade? Para responder a esta pergunta na perspectiva da prpria educao popular, nada melhor do que convidar voc, leitor, a refletir sobre a sade como uma prtica social. Vamos comear por uma das atribuies dos agentes comunitrios de sade (ACS), a visita domiciliar.1 Imaginemos visitas domiciliares, realizadas por duas agentes em diferentes momentos.Claudete chegou casa de Dona Francisca, cumprimentou e perguntou como estavam todos. Dona Francisca, que estava beira do fogo a gs fazendo uma comida, conta que Roberto, de dois anos, est com diarria desde ontem. Claudete procura saber quantas vezes a criana tinha tido diarria, se tinha vomitado e se estava com febre. A me explica que a criana teve diarria trs vezes, s vomitou uma vez e no estava com febre. A agente de sade explica que importante dar bastante lquido, em pequenas quantidades e muitas vezes ao dia e entrega trs envelopes de soro oral. Explica que a diarria uma doena que tem a ver com a falta de higiene e fala da necessidade de ferver a gua, lavar as mos ao preparar ou comer alimentos, manter a casa limpa e tampar o lixo. Diz Dona Francisca que se a criana no melhorar durante o dia, dever lev-la ao Posto de Sade para uma consulta mdica. A me agradece a ateno, diz que vai dar o soro e com a ajuda de Deus Roberto vai melhorar.

No ms seguinte, Dona Francisca voltou a ser visitada, desta vez por Andria porque a outra agente, Claudete, tinha sido aprovada em concurso para auxiliar de enfermagem e atualmente trabalha apenas no posto. Andria e os demais agentes ficaram muito contentes porque, apesar de gostarem muitoSobre visita domiciliar, ver Abraho e Lagrange, texto A visita domiciliar como uma estratgia de assistncia no domiclio, no livro Modelos de Ateno e a Sade da Famlia, nesta coleo (N. E.).1

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do que fazem, consideram um trabalho difcil e de grande responsabilidade, porm mal remunerado e poucas vezes reconhecido pelos demais profissionais de sade.Quando Andria chegou casa de Dona Francisca, cumprimentou-a e perguntou como estavam todos. Dona Francisca parou de preparar a comida que fazia no fogo a gs e disse que estava preocupada porque Roberto, que mal acabara de completar trs anos, estava de novo com diarria. Andria procura saber quantas vezes a criana teve diarria, se tinha vomitado, se estava com febre. A me conta que esta era a quarta vez desde ontem, que tinha vomitado, mas no estava com febre. A agente de sade tambm procura saber se comum que Roberto tenha diarria e como esto as outras crianas da casa. Dona Francisca conta que freqentemente as crianas tm diarria, costuma dar ch de folha de goiaba, suspende a comida normal das crianas e d s biscoito de gua e sal. Quando no consegue controlar a diarria, leva a criana para o Posto de Sade ou Hospital. Ela diz que a crianada bota muita porcaria na boca, come qualquer coisa que pode. Andria sabe que Dona Francisca faxineira e sai alguns dias na semana para trabalhar, tambm sabe que na casa tem quatro crianas entre 6 meses e 8 anos, e que Dona Francisca no conta com a participao de um companheiro para educar e manter as crianas. Pergunta com quem as crianas ficam de dia quando ela sai para trabalhar. A me conta que no conseguiu vaga na escola para a maior e nenhum est na creche. Tem que cuidar de todos, limpar a casa e sair para trabalhar quando arruma uma faxina para fazer. Como ela no tem dinheiro para deixar as crianas com algum, Melinha, a menina mais velha toma conta dos outros dois menores e ela leva o beb para o trabalho. a menina que limpa a casa e d a comida para os outros dois. Andria pergunta como tratada a gua que bebem. Dona Francisca explica que obrigada a armazenar gua num barril porque onde mora o abastecimento de gua precrio. Antes de sair de casa para trabalhar, procura deixar a gua fervida, mas s vezes a gua no suficiente e Melinha acaba usando a gua armazenada para que os meninos tomem. A agente de sade comenta que os problemas de sade geralmente esto ligados ao jeito como as pessoas vivem. Dona Francisca concorda e diz que sua vida anda muito corrida mesmo. A agente continua conversando sobre este assunto com Dona Francisca, mostra compreenso com o fato de Dona Francisca cuidar de tudo sozinha, sem apoio de creche, escola e emprego. Fica difcil mesmo olhar as crianas o tempo todo, e diarria uma doena que tem a ver com estas questes que ela est contando, ou seja, com as condies de vida que ela leva. Andria fala sobre a possibilidade de conseguir vaga na creche e vaga na escola, e convida a me para levar a criana na puericultura. Orienta sobre reidratao oral, voltar a dar comida normal e cuidados de higiene, valoriza o ch de folhas de goiaba e deixa envelopes de soro oral. Lembra que se a criana no melhorar durante o dia, dever lev-la ao Posto de Sade 36

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para uma consulta mdica. Andria tambm convida Dona Francisca a participar de um grupo de mes que est acontecendo no Posto de Sade semanalmente, onde todas tm oportunidade de trocar suas experincias e aprender algumas novidades. Despede-se dela desejando a melhora de Roberto. Se Deus quiser, diz Dona Francisca ao agradecer a visita de Andria.

Vamos agora refletir sobre as situaes apresentadas. Podemos nos perguntar sobre vrios aspectos, a partir das atitudes das agentes diante do relato da me do menino Roberto: iniciemos nossa conversa sobre o entendimento de sade, de doena e de cuidado manifestado por Claudete e por Andria, para em seguida tentar entender que concepo de educao em sade elas encaminharam em cada uma das situaes de visita. Sade, Doena e Cuidado A idia que fazemos do que doena ou sade no nasce pronta. Vai-se construindo ao longo do tempo e varia entre pocas e culturas. Basta lembrar que, at um sculo atrs, a maior causa de mortalidade era o contgio de bactrias por meio da gua (clera), entre animais e pessoas (peste bubnica) ou das pessoas entre si (tuberculose). Tambm se pode lembrar como, na gerao de nossos avs, a gravidez e o parto aconteciam em casa, entre mulheres. Hoje cada vez mais difcil para as mulheres terem seus bebs desta forma. E entre culturas diferentes, como nas populaes indgenas, a maneira de enfrentar os problemas muito diferente da nossa. No mundo todo, foi-se construindo ao longo dos anos, desde o sculo XVIII, um modo de olhar a sade e a doena que se baseia exclusivamente na explicao cientfica das profisses da rea de sade: medicina, psicologia, odontologia e outras. Como so estes profissionais que definem o que sade2 ou o que doena, parte deles tambm as maneiras de resolver os problemas hospitais, clnicas, consultas, remdios, cirurgias. impressionante como a histria da humanidade mudou com as tecnologias de sade.3 Quem poderia imaginar hoje um mundo sem vacinas, ou sem cirurgias de transplante para as pessoas com insuficincia renal? Essas inovaes, produzidas principalmente aSobre processo sade e doena, ver Batistella, texto Sade, doena e cuidado: complexidade terica e necessidade histrica, no livro O Territrio e o Processo Sade-Doena, nesta coleo (N. E.). 3 Sobre tecnologia em sade, ver Abraho, texto Tecnologia: conceito e relaes com o trabalho em sade, no livro O Processo Histrico do Trabalho em Sade, nesta coleo (N. E.).2

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partir desde meados do sculo XX, vieram melhorar a vida, prevenir doenas e salvar pessoas. Mas ser que somente dando remdio e fazendo cirurgias que se melhora a sade? Lembre da situao das crianas com diarria, os filhos de Dona Francisca. Na visita da agente Claudete, esta diz me que a diarria acontece por falta de higiene, e que, para resolver o problema, preciso manter a higiene, lavar as mos, manter tudo limpinho. Ser que s isso que est por trs desta situao de diarria? J a agente Andria, antes de prestar orientaes, tenta conhecer como a vida daquela me, e juntas se do conta de que a situao de ter de deixar as crianas sozinhas uma coisa que pode, no fim das contas, estar relacionada ao problema da diarria do pequeno Roberto. Neste caso, lavar as mos ou usar remdio vai resolver apenas na hora mas, como avanar para uma soluo de fato? No h nada errado em lanar mo de remdios, cirurgias, hospitais. O problema que a forma como os profissionais olham a sade das pessoas e explicam o adoecimento est baseada, quase sempre, apenas nos aspectos biolgicos, do corpo, conhecimento fundamental da medicina aloptica predominante nos servios de sade. Essa idia to forte, que acaba sendo um jeito natural de todas as pessoas explicarem a sade e a doena, no s os profissionais de sade. J reparou que quando algum vai ao mdico, e este no pede exame ou passa remdio, a gente estranha? Ento, vemos que no apenas o profissional de sade que explica os problemas de sade deste jeito. Acaba sendo um modo de olhar as coisas uma concepo de sade-doena que faz parte de toda a sociedade. De modo geral, possvel diferenciar trs modos de explicar a sade e a doena: 1. Tem sade quem no tem doena. Ou seja, a sade a ausncia de doena. Doena algo relacionado dor, ao sofrimento, incapacidade para trabalhar, morte. Esta uma concepo cuja base a biologia humana, o entendimento do corpo fsico como o elemento central nos processos de sadedoena. E j que o corpo com seus sistemas de funcionamento que fica doente, a abordagem dos problemas acaba privilegiando o indivduo. Nesta concepo a prpria pessoa, individualmente, quem deve se cuidar, ou, no caso da criana, a me ou pai. Um exemplo que comum, e que vimos h algum tempo nas campanhas de educao sobre a Aids, o aviso Se voc no se cuidar, a Aids vai te pegar. Mas, e no caso das pessoas que pegam HIV-Aids por causa38

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das transfuses de sangue, como fica? Mesmo no caso da transmisso sexual, a responsabilidade apenas da pessoa? O que a sua condio ou sua cultura favorece ou dificulta para que tenha uma atitude preventiva? Em resumo: esta concepo de sade-doena se baseia na responsabilidade individual, no esforo de cada indivduo em evitar doenas e providenciar a soluo dos problemas. Se no conseguir resolver, a culpa dele. Em outros termos, culpabiliza-se a vtima, a pessoa doente. O profissional de sade, principalmente o mdico, apresenta a soluo tomar remdio, fazer a preveno, seguir direitinho o que foi orientado. Isto acaba por endossar uma idia de que somente o saber do mdico importa para a sade e refora a relao de dominao do profissional sobre o paciente. Por isso, os ambientes da assistncia mdica so repletos de regras e proibies, a comear do silncio constrangedor, onde todos falam baixo: ou ser que algum tem coragem de discutir com o mdico dentro do hospital? Os profissionais de sade tm uma formao tcnico-cientfica que no cotidiano dos servios assume um carter fortemente normativo. Essa formao rompe com a viso mgica das culturas antigas e se centra numa determinada maneira de ver o corpo, os problemas, o tratamento a ser institudo. Madel Luz (1997) denomina essa viso racionalidade mdica, e identifica que a racionalidade predominante nos pases ocidentais e no nosso, portanto a chamada racionalidade biomdica, tambm denominada biomedicina. Hoje, discute-se muito sobre os limites desta racionalidade e o quanto ela pode acabar servindo a interesses econmicos das indstrias (farmacuticas, de equipamentos mdicos). Mas este um debate recente, e esta viso predomina, mesmo sofrendo criticas. 2. Em outra perspectiva, sade no s no estar doente: conseqncia das condies de vida, incluindo alimentao, moradia, salrio, participao nas decises, educao, paz, justia social. Cada vez mais, esta idia ganha fora no mundo, e os pases reconhecem que no basta ter muitos hospitais e remdios se a qualidade da vida das pessoas no boa. Ser suficiente no padecer de nenhuma doena, se onde a pessoa mora no tem como sair noite? Se no trabalho ela no tem nenhuma chance de crescer, e se sente humilhada? Se ela obrigada a conviver diariamente com o sofrimento e o mal-estar de situaes opressivas para as quais no percebe sadas individuais? Ter sade ter cada vez mais uma vida boa, plena. De acordo com Daniela Sophia (2001: 4), os39

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fatores que decidem entre a vida e a morte esto predominantemente fora dos hospitais. Deve-se considerar que os sinais e sintomas de doena so vivenciados de modo subjetivo pelas pessoas; que, alm disso, h fatores passveis de interveno coletiva e que podem ser tambm objeto da interveno das polticas sociais, dentre as quais a de sade.4 No caso da diarria que acometia freqentemente Roberto, um destes fatores era a falta de gua encanada e tratada. Outro, mais imediato, tinha a ver com o cuidado das crianas. Esta concepo que foi chamada de concepo ampliada de sade na VIII Conferncia Nacional de Sade, realizada em Braslia, no ano de 1986 considera o processo de sade-doena de modo crtico, procurando estabelecer um vnculo entre este processo e as condies de vida e trabalho. Embora no seja incompatvel ou excludente em relao ao enfoque da biomedicina, tal concepo, por se constituir em um olhar mais amplo, permite tambm que outras racionalidades sejam includas como possibilidade de enfrentamento dos problemas. Por ltimo, vale observar que as formas populares de lidar com a sade podem estar presentes dentro desta viso ampliada. Vamos analisar agora detalhadamente o modo como as pessoas das classes populares vem a sade, a doena e a cura. Trata-se de uma terceira concepo, cujo exame tem fundamental importncia para a compreenso do papel da educao na sade. 3. Entre as duas concepes que circulam com maior legitimidade, uma vez que expressam o ponto de vista mdico e o ponto de vista da sade coletiva, existe uma outra, leiga, baseada no senso comum e na religiosidade da imensa maioria das pessoas que adoecem e sofrem. Os problemas de sade acarretam sempre uma desorganizao das relaes sociais imediatas dos papis sociais de chefe de famlia, de arrimo de famlia, de marido ou de esposa, de trabalhador e implicam o questionamento do sentido da vida individual principalmente para os que no tm formao cientfica e nem uma viso de mundo racionalizada com base na cincia. A desorganizao da vida traz uma pergunta fundamental por que adoeci? O que eu4 Sobre polticas de sade, ver Baptista, texto Histria das polticas de sade no Brasil: a trajetria do direito sade, no livro Polticas de Sade: a organizao e a operacionalizao do Sistema nico de Sade, nesta coleo (N. E.).

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fiz para ter (e merecer) isso (a doena)? que a cincia no capaz de responder, pois uma forma de conhecimento que formula a pergunta como isto acontece. Esta questo de sentido somente pode ser respondida dentro de referncias culturais, quase sempre religiosas. Esta concepo de cunho popular compartilha de elementos das duas outras concepes, atribuindo-lhes, porm, sentidos diferentes. Assim, no so somente os profissionais de sade que compreendem a sade como ausncia de doena. Quando as pessoas dizem que sade ter capacidade de trabalhar, elas esto dizendo a mesma coisa de outra forma. Contudo, at mesmo esta afirmao deve ser melhor examinada. Precisamos estar atentos para quem fala: uma pessoa com ou sem condies de parar de trabalhar quando precisa? Uma coisa poder faltar ao trabalho, apresentando atestado mdico. Outra, completamente diferente, ter de ganhar o po a cada novo dia de trabalho, situao dos biscateiros e autnomos de um modo geral. Estas pessoas geralmente so obrigadas a admitirem incmodos e sofrimentos que outras pessoas, em melhores condies no admitiriam. Este entendimento geralmente se estende s crianas. Berlinguer (1988) mostra que o adoecimento implica possibilidades diferentes para as pessoas, desde estar doente, sentir-se doente, identificar a doena at poder estar doente. O autor afirma que estas diferenas se explicam, de um lado, pela desigualdade social que acarreta maior ou menor probabilidade de adoecer e curar-se devido a certos problemas e, por outro, pela cultura relativa percepo do corpo soma , aos sinais que vm do corpo em sofrimento experienciado pelos diferentes grupos sociais. Em um estudo realizado nos Estados Unidos em 1954, a inapetncia e o emagrecimento foram alguns dos sintomas valorizados pelas pessoas mais ricas como motivo para tratamento mdico (Berlinguer, 1988). A questo da sobrevivncia por meio do trabalho aproxima a concepo popular tambm do modelo da sade coletiva, na medida em que destaca as condies em que realizado jornadas longas, intensivas, mal remuneradas para o entendimento do adoecimento e do grau de incmodo e sofrimento admitidos. Pois, como j afirmamos, nem sempre possvel estar doente. A viso popular de sade e doena tem sido objeto do estudo de pesquisadores, normalmente da rea da antropologia (Boltanski, 1984; Loyola, 1984). uma busca por entender a maneira como as pessoas das41

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classes populares, que no tiveram o acesso formao em sade, escolaridade formal, e que esto submetidas aos processos sociais de excluso e subalternizao, vem, explicam e sentem a questo sade-doena. Escolhemos, para trabalhar esta concepo, um texto de Maria Ceclia de Souza Minayo (1988), que organizou os achados de uma pesquisa sobre sade e condies de vida, identificando elementos que compem as representaes sociais sobre a origem/causalidade das doenas, o que, em linguagem mdica, se denomina etiologia. J vimos que o conceito de causa ou etiologia construdo coletiva e historicamente, e que diferentes culturas, em diferentes pocas, possuem explicaes diferentes, de acordo com suas vivncias, experincias, condies de vida. Em uma mesma cidade, como o Rio de Janeiro, esto presentes diferentes vises coletivas e diferentes modos de enfrentar os problemas. Para alm das dificuldades de acesso aos servios pblicos que, apesar da ampla e diversificada rede, no do conta de atender populao, os cariocas escolhem e buscam opes diversas no que se refere ao cuidado sade. Minayo classificou as representaes sociais sobre a causa das doenas como um sistema etiolgico e identificou domnios de causao, que separou em: 1) natural tudo aquilo que se refere relao entre o ambiente fsico e a sade por exemplo, quando as pessoas identificam a mudana de clima como a causa de alguma doena; 2) psicossocial, quando se estabelece relao da causalidade entre as emoes e os problemas de sade; 3) socioeconmico, relacionando-se a causalidade s condies de vida principalmente em situaes de pobreza extrema. Aqui, a autora verificou que os servios de sade tambm so apontados como causa de problemas de sade e ou de piora de problemas j existentes; 4) sobrenatural que diz respeito ao campo do transcendente, ou seja, aquilo que nos engloba e nos determina, alvo das explicaes msticas muito presentes nas falas das pessoas. Esta classificao meramente didtica e, na realidade, estas vises no se excluem mutuamente, sobrepem-se e permeiam a concepo geral sobre o tema. Como esta causao mltipla adquire sentido na vida das pessoas? A unidade desse sistema etiolgico definida pela religio, uma vez que o aparecimento e a cura das doenas tm a ver com a ruptura das relaes de uma pessoa com seu grupo e a natureza. Ruptura significa quebra das regras e normas em que se baseiam os vnculos humanos fundamentais inscritos nos42

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textos sagrados. O sentido da palavra religio o de re-ligar, restabelecer o vnculo que o pecado, a separao, desfez. Porm, a vontade de Deus em punir e redimir no exclui, para os cristos, afirma ainda autora, as causas socioeconmicas, emocionais e naturais do aparecimento de doenas. Marx disse que a religio o suspiro da criatura oprimida, o nimo de um mundo sem corao e alma de situaes sem alma. A religio o pio do povo (Marx, 2005: 145). Quer dizer, o lenitivo, uma forma de atenuar o sofrimento antigamente o pio era uma droga usada para casos de dor aguda ou um refgio para onde acorrem os indivduos quando precisam enfrentar foras superiores sua. Precisamos entender as prticas espirituais ou religiosas como um elemento que est incorporado s formas populares de enfrentamento dos problemas, sobretudo os de sade. No raro que, nas comunidades, as pessoas busquem os espaos de expresso religiosa nos momentos de dificuldade de uma famlia ou pessoa. Mesmo pessoas de inseres religiosas diferentes podem vencer as barreiras dos dogmas de cada religio e estabelecer processos solidrios de suporte espiritual para aqueles que esto sofrendo (David, 2001). Nesta anlise, podemos entender que o modo de as pessoas das classes populares perceberem e explicarem os problemas de sade extremamente complexo, entremeado por concepes de mundo, de vida e de morte, de justia social, de ambiente saudvel, de felicidade e bem-estar e transcendncia. preciso considerar que, quando as pessoas no cumprem determinaes mdicas, ou quando buscam alternativas de tratamentos caseiros, isto pode acontecer por razes diversas, todas juntas ou no: econmicas, culturais, familiares, entre outras. Mas geralmente os profissionais de sade s tm uma palavra para explicar isso: ignorncia. Vista como uma explicao simplria ou ignorante pelos profissionais de sade, a concepo popular se apresenta como um mosaico, em que os fragmentos de experincias e saberes diversos presentes so usados como recursos de enfrentamento; de certos problemas, de acordo com a ocasio, as possibilidades existentes e o que se acredita ser melhor. O prprio saber mdico est includo neste mosaico de saberes, misturado s concepes culturais ancestrais. importante reconhecer que no se trata de um vazio de saber, mas de uma outra forma de saber sobre sade. A ignorncia est presente, mas como modo de expresso das pessoas que no tiveram acesso educao43

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formal. Igualar pobreza e ignorncia desconhecer as reais potencialidades destas pessoas, sujeit-las ordem social dominante. no ter o que Paulo Freire (1996) chamava de f no homem. Sem f no homem no h transformao coletiva. Compreender esta forma de pensar das pessoas no profissionais nos ajuda a entender suas aes de enfrentamento, ultrapassando os prconceitos que explicam pela falta de educao esta forma de ver a sade e a doena. Quando nos dispomos a ampliar o nosso prprio olhar para compreender o olhar da populao, temos de optar por metodologias educativas que nos aproximem das pessoas, que lhes dem voz, que as tornem mais fortes como sujeitos. sobre isso que vamos tratar a seguir. Educar para Conquistar Sade Vimos nas duas situaes das visitas das agentes que a maneira como elas abordaram a questo da diarria foi diferente, e que a concepo ampliada de sade predominou na discusso da agente Andria. Claudete uma agente de sade que entende os problemas de sade a partir da doena, por isso, foi logo perguntando sobre a febre e o nmero de evacuaes da criana. Aps obter as respostas, Claudete sentiu-se satisfeita e passou para a etapa educativa das orientaes sobre higiene. Claudete uma agente de sade sria, preocupada, e quer ajudar a famlia. Da mesma forma, muitos profissionais de sade srios e preocupados com a sade das pessoas tambm desenvolvem suas aes a partir desta concepo de sadedoena: sinais, sintomas, dor, febre, exames... Trata-se de uma abordagem limitada porque procura modificar o comportamento ou as condutas da populao. Chamada por Paulo Freire de educao bancria, numa referncia possibilidade de depositar conhecimentos na cabea de um indivduo porque antes do processo educativo ele no os tinha; ou ainda, por Eymard Vasconcelos (2001), de educao toca boiada, baseada no medo do ferro, com o intuito de mostrar como a imposio de normas e comportamentos considerados adequados pelo educador capaz de conduzir um grupo de indivduos a um caminho previamente determinado. Esta abordagem estabelece uma relao vertical e autoritria entre o profissional e a populao e est baseada na crena de que o profissional o detentor do saber a ser transmitido e ensinado.44

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Fazem parte desta corrente: motivao da populao para participar de tarefas determinadas pelos profissionais e que, a juzo deles, devero beneficiar a comunidade; mensagens transmitidas em linguagem popular a fim de serem melhor entendidas e atendidas; estratgias publicitrias e de propaganda para fomentar a sade; conferncias de sade organizadas verticalmente a partir de um olhar tcnico e encaminhadas burocraticamente. Podemos entender esta concepo de educao nos termos propostos por Luckesi (1990), isto , da educao como redeno: a educao uma ao que est fora da sociedade, algo que vem de fora ou de cima para dar jeito nas coisas que esto erradas. A educao vista como algo puro, quase mgico, que vai redimir as pessoas e acabar com a ignorncia. Nesta concepo, as pessoas imaginam que, automaticamente, aps educadas, as pessoas passaro a agir corretamente, dentro do modelo proposto. O papel do educador dizer a verdade, e o aluno deve ouvir, sem argumentar ou contradizer. uma viso aparentemente ingnua, mas, se pararmos para pensar, constatamos que ela est presente em ns mesmos, muitas vezes. No comum dizermos que o grande problema das pessoas pobres a ignorncia? Lembre-se agora da visita da agente Andria: voc reparou que ela foi desenvolvendo um dilogo, uma conversa com a me, conhecendo sua vida, seus problemas, aproximando-se dela e s depois partiu para algumas orientaes. Isso no um truque para conquistar as pessoas, um jeito de trabalhar a educao e que tem a ver com a concepo de sade que o profissional possui. Esta concepo se aproxima da educao popular em sade: considera o saber comum das pessoas sobre a experincia de adoecimento e de cura, adquirido atravs de sua histria de vida e de sua cultura, o ponto de partida do processo educativo. por isso tambm que os meios freqentemente utilizados pelos educadores populares tm mais a ver com a dinmica da vida popular: rodas de conversa, diagnsticos participativos, assemblias e manifestaes da cultura popular. E tambm a preocupao em dar um carter resolutivo s conferncias de sade em cada nvel de organizao bairro, distrito, cidade, estado, pas por meio da ampliao da participao popular.45

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Os fundamentos da educao popular encontram-se nos trabalhos educativos desenvolvidos nos anos 50-60 do ltimo sculo, principalmente ligados Unio Nacional dos Estudantes e Juventude Universitria Catlica. Estas experincias, dentre as quais se destaca o Centro de Cultura Popular (CPC) e o Movimento de Educao de Base (MEB) vinculavam a educao construo de uma sociedade mais justa e democrtica. Com os nomes de educao de base, educao de adultos ou educao popular, tais experincias encontraram em Paulo Freire a sua mais