cobaia | #106 | 2010

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Cobaia #106 | Novembro | 2010 | Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - Univali Ritmo jamaicano da década de 1960 chega ao litoral catarinense Deficientes visuais acessam literatura por meio da impressão em braille Um outro som Na ponta dos dedos O último corte: barbearia mais tradicional de Itajaí fica na lembrança | 11

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Um jornal especial com 24 páginas, muitas delas coloridas, encerra as publicações de 2010 do Jornal Cobaia. Todos sabemos das peculiaridades de um jornal-laboratório, de periodicidade mensal, cujas pautas giram em torno dos mais diversos temas. Uma preocupação da academia tem sido, reiteradas vezes, ampliar o contato entre os acadêmicos e o mercado de trabalho, além de proporcionar uma experiência além da sala de aula. Nas disciplinas de redação, todos aprendem como o texto se constitui. No jornal laboratório, a oportunidade de colocá-lo em circulação é o que mais assusta. Mas também excita.

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Page 1: Cobaia | #106 | 2010

Cobaia#106 | Novembro | 2010 | Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - Univali

Ritmo jamaicano da década de 1960 chega ao litoral catarinense

Deficientes visuais acessam literatura por meio da impressão em braille

Um outro som

Na ponta dos dedos

O último corte: barbearia mais tradicional de Itajaí fica na lembrança | 11

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FICÇÃO Narrativas em profundidade LITERATURA DE NÃO FICÇÃO Jornalismo Literário CONTO Crônica N LONGA Jornalismo de Profundidade NOVO JORNALISMO Jornalismo Gonzo NAMOROS COM A LITERATCRÔNICA Narrativas em Profundidade Jornalismo Literário CONTO Crônica NARRATIVA LONGA Novo J

FICÇÃO Narrativas em profundidade LITERATURA DE NÃO FICÇÃO Jornalismo Literário CONTO Crônica NARRATIVA LONGA Jornalismo de Profundidade NOVO JORNALISMO Jornalismo Gonzo NAMOROS COM A LITERATURA ContoCRÔNICA Narrativas em Profundidade Jornalismo Literário CONTO Crônica NARRATIVA LONGA Novo Jornalismo

Participaram desta EdiçãoAlexssandra Mezzomo, Amaro Paz, Ana Carolina Carneiro, Andressa Sabedot, Daniel Ricci, Daya-ne Bazzo, Diogo Campos, Fernanda Beltrand, Isadora Cruz, Jaison Felipi, Juliete Lunkes, Jú-lio Castellain, Katiana Deggau, Keli Wolinger, Leonardo Thomé, Leilane Delazere, Mariana Orlow, Miriany Kátia Farias, Natália Alcântara, Paula Casagrande Garcia, Pitter Hurmann, Sarah de Souza, Sidnei de Almeida, Suellen Rodrigues, Thayse Gioppo, Vivian Santana, Vanessa Borges.

Cobaia Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UNIVALI

EditorSandro Lauri GalarçaReg. Prof. 8357 MTb/RSProjeto Gráfico/CapaSandro Lauri GalarçaEstagiárioRafael Huppes Piassini

Ana Carolina Carneiro

E ditorial

Sandro Lauri Galarç[email protected]

Um jornal especial

Você já deve ter ouvido falar que o futuro do país está nas mãos das crianças. Agora analise: elas são autodidatas? Exatamente. Salvo as exceções, a afirmação é uma inverdade, porque sem uma educação de qualidade, es-sas crianças não têm desenvolvi-mento crítico digno de tanta res-ponsabilidade. O futuro do país está nas mãos dos responsáveis por esses pequenos que devem a todo custo propiciar o melhor aprendizado perante os alicerces

A educação é quem faz o cidadão

Um jornal especial com 24 pági-nas, muitas delas coloridas, encerra as publicações de 2010 do Jornal Cobaia. Todos sabemos das peculia-ridades de um jornal-laboratório, de periodicidade mensal, cujas pautas giram em torno dos mais diversos temas. Uma preocupação da aca-demia tem sido, reiteradas vezes, ampliar o contato entre os acadêmi-cos e o mercado de trabalho, além de proporcionar uma experiência além da sala de aula. Nas disci-plinas de reda-ção, todos apren-dem como o texto se constitui. No jornal laboratório, a oportunidade de colocá-lo em cir-culação é o que mais assusta. Mas também excita.

Por esse motivo, muitas das pau-tas aqui publicadas surgiram dentro da sala de aula, nas disciplinas de Jornalismo Literário e Redação Jor-nalística VI. Outras, para cumprir a contrapartida social daqueles bene-ficiados pela bolsa de estudos do Ar-tigo 170. Assim, a multiplicidade de

temas e assuntos volta a ser destaque nesta edição do Cobaia. Importante salientar que as matérias surgem de uma demanda menos jornalística e mais social. Muitas vezes relegados na grande imprensa, alguns temas ganham espaço em jornais universi-tários ou segmentados, e uma abor-dagem mais aprofundada é quase uma obrigação. Assim como o tempo para a produção das matérias ajuda

neste aprofunda-mento, uma vez que o estudante de jornalismo dis-põe de um período maior para produ-ção, apuração e re-dação do texto.

Assim, desco-brimos boas histó-rias no cotidiano comum de muitas pessoas e lugares.

Como a Avenida das Rendeiras, em Florianópolis e os camelôs de Bal-neário Camboriú. Ou do cinema brasileiro em tempos de grandes produções. Ou o último corte de um tradicional salão de barbearia. O preço da fé. Vida de palhaço com o circo teatro Biriba. A vida às escuras de seu Ivo. Ou a nova verdade sobre a Revolução Farroupilha, orgulho dos gaúchos questionado pelos his-toriadores. Entre e aproveite.

da sociedade: família, escola, re-ligião, entre outros.

A receita para a consolida-ção desta educação é simples: paciência. Os pais/responsáveis devem ter a calma necessária para poder acompanhar o pas-so da criança em todos os seus lugares de atuação, sendo que o principal deles é o âmbito esco-lar, onde ela se relaciona não só com o conhecimento, mas com amizades e diferentes níveis de autoridade.

É ali, na entrada da vida es-colar, que o acompanhamento dos pais é mais importante. A

criança não deve ser doutrinada, mas sim, provocada, instigada a descobrir coisas novas e tomar gosto por isso. Só a paciência daqueles que abdicarão do seu tempo para acompanhá-la é que trará bons resultados mais tarde no desenvolvimento da sua per-sonalidade, caráter e educação. Porque não só os ensinamentos da escola fazem o ser humano, os pais têm que ser exemplos, dignos heróis de uma realidade às vezes tão sofrida como a fic-ção.

Essa constatação é fácil de ser observada: em alguns colé-

gios de Balneário Camboriú, ao final da aula, uma viatura da polícia se encontra em frente ao local para apartar possíveis brigas de “gangues” que es-peram o sinal tocar para entrar em ação. Qual a conclusão? Es-ses indivíduos não têm pais em casa que os eduquem. Simples assim.

Numa época em que se dis-cute sobre a imposição da Lei da Palmada, deveríamos pen-sar em como a sociedade reage diante de nossos atos: tudo é negócio, troca ou escambo. Se você tem um bom rendimento

no colégio, certamente será bem acolhido pelo mercado. Se você respeita as pessoas, na maioria das vezes receberá esse respei-to de volta. Se você trabalha da melhor maneira, poderá encon-trar uma promoção mais à fren-te. Se você educa seu filho para a vida, acompanha seus atos e o faz entender que tudo no mun-do é moeda de troca e tem suas consequências, você vai colher mais tarde orgulho de si mesmo por fazer a sua parte: ter cria-do alguém que vai sem dúvida alguma, fazer a diferença para melhor no mundo.

http://chargesdocerino.blogspot.com

As matérias surgem de uma demanda

menos jornalística e mais social

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Participaram desta EdiçãoAlexssandra Mezzomo, Amaro Paz, Ana Carolina Carneiro, Andressa Sabedot, Daniel Ricci, Daya-ne Bazzo, Diogo Campos, Fernanda Beltrand, Isadora Cruz, Jaison Felipi, Juliete Lunkes, Jú-lio Castellain, Katiana Deggau, Keli Wolinger, Leonardo Thomé, Leilane Delazere, Mariana Orlow, Miriany Kátia Farias, Natália Alcântara, Paula Casagrande Garcia, Pitter Hurmann, Sarah de Souza, Sidnei de Almeida, Suellen Rodrigues, Thayse Gioppo, Vivian Santana, Vanessa Borges.

Cobaia Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da UNIVALI

EditorSandro Lauri GalarçaReg. Prof. 8357 MTb/RSProjeto Gráfico/CapaSandro Lauri GalarçaEstagiárioRafael Huppes Piassini

Mariana Orlow [email protected]

Paula Casagrande [email protected]

O cheiro é de fritura. O chão irregular com cores e texturas de diferentes tipos de pisos traçam o caminho por onde os visitantes e turistas devem pisar. É preci-so cuidado, pois cada espaço é disputado. Se sobram trinta cen-tímetros, este já é ocupado por uma nova mercadoria. "Não po-demos perder de vender nada", diz Andréia Cristina, proprietá-ria da menor loja do camelô lo-calizado próximo à igreja central de Balneário Camboriú. O sol está situado bem acima de nos-sas cabeças, o calor incomoda aqueles que ficam parados, mas não há para onde correr. Cada cantinho deste lugar apertado está ocupado por alguém. Se não são pessoas, são cachorros. E quando nem eles aguentam o sol, os pombos ocupam seus lu-gares. O barulho da música alta e dos gritos dos vendedores tam-bém incomoda. Pergunto a Cris-

tina se aquilo não a aborrece. Ela responde que já passou do tempo...

Há vinte anos trabalhando no mercado dos camelôs, Cristi-na, como assim prefere ser cha-

mada, veio de longe, mais pre-cisamente Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Ela, juntamente com marido e filhos mudaram-se para Balneário Camboriú há apenas um ano, e cultivam os mesmos costumes obtidos na terra gaúcha. "O camelô é a minha vida, e não sei fazer ou-tra coisa", diz. A banca de Cris-tina é repleta de diversas peças de roupas, calçados, chinelos e também de roupa íntima. Ela diz que prefere trabalhar com esse tipo de mercadoria, pois além de ter um preço baixo se compara-do a outras, ainda ganha-se cem por cento de lucro em todos os artigos.

Quando questionada sobre a procedência dos produtos, Cris-tina fica receosa. Diz que não sabe ao certo, pensa mais um pouco, e ao fim, diz que tudo vem dos países como Paraguai, Argentina e Uruguai. Ressalta ainda que em vinte anos de pro-fissão, nunca recebeu nota fiscal pelas mercadorias que comprou, mas não se sente envergonhada. Diz ter consciência de que não

paga o imposto que é cobrado pelo governo, mas que é exata-mente por este motivo que ven-de tanto. Ela atribui o sucesso do lugar onde trabalha justamente a isso: o preço mais em conta do que nas lojas.

Em meio à multidão, Cristi-na acena para alguém que vem vindo em direção a sua banca, e com um sorriso no rosto, diz que o seu melhor cliente está chegan-do. Daniel Flores, 24, é um moto-taxista que só usa roupas de mar-ca compradas no camelô, e não tem vergonha disso: “Sei que são imitações, mas estou sempre bem vestido. Os outros não precisam saber que compro as coisas aqui”. Sua namorada, Suzanna Arruda, 22, também adquire diversos pro-dutos no camelô, e adora princi-palmente os cremes importados: “Não vejo diferença no cheiro dos cremes vendidos aqui, dos que são vendidos no shopping. Não sei quanto à qualidade, mas o que eu procuro mesmo é o chei-ro”, afirma.

Dizer que todos os produtos comercializados ali são de proce-dência ilegal ou duvidosa, como de costume nesse ramo, seria um equívoco. Além das bancas de CDs, eletrônicos, bolsas, óculos, relógios, perfumaria e das famo-sas bijouterias artesanais, estão

O mercado emergente dos ambulantes

bancas de ferramentas, livros e artigos de decoração encontra-dos normalmente em outros co-mércios da cidade. Mas o camelô de Balneário Camboriú tem ain-da outro diferencial: a moderni-dade.

Os pontos comerciais acom-panharam as tendências de de-coração, as diversas formas de negociação com o cliente, e isso inclui a forma de pagamento. Nas aproximadamente 150 ban-cas, duas delas se destacam. As microlojas do mesmo proprie-tário, que diferentemente das outras, trabalham apenas com produtos originais trazidos dos Estados Unidos. Relógios, roupas e tênis que custam de R$ 150,00 até R$ 800,00.

Há quem diga que o preço dos produtos vendidos no came-lô estão acima da média. Talvez por isso as simples bancas que víamos há uns anos, agora estão modernas e nem de longe lem-bram a bagunça que eram. Dona Josélia Freitas, 63, conta que não acha mais um bom negócio comprar ali, já que os preços es-tão elevados. “Vale mais a pena comprar nas lojas, pela garantia e até mesmo pela questão dos va-lores, que são quase os mesmos. Comprei lá por quinze anos, hoje quase não compro mais, mas a

escolha é de cada um”.Jeverson Saramento, que é

responsável pela fiscalização de comércio ambulante de Balne-ário Camboriú, ressalta que a fiscalização é feita diariamente, e que é intensificada na tempo-rada, quando mais trinta pessoas são contratadas para esta fun-ção. Para que este comércio seja legal, Jeverson diz que é neces-sário que o dono da banca tenha alvará e licença para trabalhar. Caso contrário, o estabelecimen-to é fechado e multado em até o dobro do valor do alvará.

A noite cai e Cristina nem pensa em recolher a mercadoria. Ela sabe que ainda restam algu-mas horas para isso. Há quem diga que a vida de trabalhador brasileiro é dura e sem muitos motivos para sorrir, mas Cristina tem esperanças. Ela traz consi-go o amor pelo marido e filhos, e o sonho de vê-los doutores um dia. Quando seu relógio de pul-so marcar pontualmente 21h30 é que ela começa a tirar as roupas dos cabides e junto com o marido unir e enfileirar os pares de sa-pato na mochila. Assim acontece todos os dias. Ela fecha o local de trabalho, sai com um sorriso no rosto e a sensação de dever cum-prido que lhe acompanha até o ponto de ônibus em frente.

A realidade de quem vive deste comércio em Balneário Camboriú

Foto: Mariana Orlow

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A vida de quem temfomeht

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Escolher o dia para comer não é uma opção, é uma questão de trabalho, ajuda e até mesmo de sorte

Jaison [email protected]

O som do machado cortando a lenha é mais comum no in-verno pra família de Raimundo Serpa, 45 anos. A lenha é usa-da para acender o fogo nos dias que tem comida, mas as labare-das são mais comuns durante o período frio pra aquecer. Em outros tempos, Raimundo acen-de o fogo menos de quatro vezes por semana. Comida na panela é raridade por aqui.

Um barraco de madeira, sem divisórias na parte interna. Mó-vel dá pra contar nos dedos: um fogão a lenha, um tanque que serve para lavar louça e roupa, duas camas antigas com col-chão de mola e estampa florida, uma mesa simples, cadeira de palha e um sofá vermelho com cortes no tecido. Essa é a casa do catador de lixo Raimundo, lo-calizada em uma rua sem nome, no Bairro Porto das Balsas, que concentra um dos bolsões de pobreza em Navegantes.

O catador é nanico, pele clara queimada pelo sol, tem cabelos pretos e pesa em média 50 quilos, mora com a esposa Valdeci Serpa, 42, mulher de estatura mediana, pele morena com ausência de um dente ca-nino. Ambos são analfabetos. O casal tem dois filhos. Deixaram a agricultura, há cinco anos, em Luis Alves.Vieram pra cida-de em busca de uma vida me-lhor. Sem estudo, viver do lixo é acontecimento banal. Pagam R$ 150,00 de aluguel, R$ 30,00 de energia elétrica, e se viram como podem. Com a venda do

material reciclável ganham R$ 5,00 por dia, o que representa R$ 150,00 por mês. Recebem au-xílio de R$ 112,00 do Programa Bolsa Família totalizando uma renda de R$ 262,00 mensal.

A situação da família Serpa é parecida com a de outros catari-nenses. A Síntese dos Indicado-res Sociais de 2002 mostra que, no Estado, 7,4 % de um universo de mais cinco milhões de catari-nenses possui renda per capita de meio salário mínimo. Nessas condições, fica difícil uma fa-mília se manter com custos de habitação, alimentação, saúde e educação.

A música gospel sai de um rádio velho e se expande pelo casebre, na inversão da triste-za ainda sobra espaço pra ale-gria. Essa alegria dá pra ver no sorriso tímido e no olhar meigo dessa gente, que some tão rá-pido quanto o movimento das asas do beija-flor que acaba de chegar como um visitante ines-perado.

Escolher o dia pra comer não é uma opção. É quase uma questão de trabalho, sorte, de ajuda. Quando seu Raimun-do terminou de cortar a lenha, dona Valdeci foi ao encontro do marido buscar a madeira. Hoje é um dia melhor pra essa famí-lia. Tem comida no prato.

- Pode levar o que sobrou! Ordena Raimundo se referindo à madeira e carrega a lenha pra dentro do casebre.

- O pai, deixa que levo mais, depois você reclama de dor na coluna.

Valdeci responde como se previsse mais uma noite de re-clamações do marido.

Quando pergunto o que é a fome. Raimundo baixa a cabeça

e lamenta.- É de doer, é triste. As crian-

ças pedem, mas não tem. Aí o que podemos fazer? Isso é o que mais dói, não poder fazer nada.

O catador e esposa se diri-gem ao barraco, enquanto os fi-lhos Marcelo de três e Bruno de quatro anos aguardam com o es-tômago roncando de fome. Além disso, uma refeição à base de biscoito ou feijão seco, por dia, não garante os nutrientes ne-cessários para uma alimentação sadia. São quietos, tímidos, des-confiados. Vestem trapos de rou-pas, camisas amarrotadas, mas para eles isso pouco interessa. O mais importante é quando o es-tômago para de doer por falta de alimentação. Mas, os filhos de Raimundo poderiam fazer parte de uma estatística mais cruel. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), no Brasil, a cada cinco minutos morre uma criança. A maioria de doenças da fome, quase 300 crianças por dia.

É sábado. São seis horas da tarde. Está frio. O vento balança as poucas árvores que restam no bairro. O sol se esconde entre as montanhas e a fumaça emerge através da chaminé. Uma pane-la amassada no fogão dá sinais de que o feijão já está no pon-to. Valdeci derrama a comida no prato e serve. Seu Raimundo parece estar mais contente com os poucos grãos de feijão que se escondem na imensa quan-tidade de água. Dados da ONU indicam que pelo menos 36 mi-lhões de brasileiros nunca sabem quando será a próxima refeição. A família de Raimundo faz par-te desses números. Depois de se alimentar, o catador organiza o carrinho e volta ao trabalho, mas

agora só. A esposa e os filhos fi-cam em casa, ele deve retornar perto das dez horas da noite.

Tic tac, tic tac, tic tac. Trimmm...trimmm….trimmm. Seis horas da manhã de domin-go. Aqui não tem descanso. Se não trabalha todo dia, não tem casa e diminuem os dias que tem comida. De manhã até a tar-de todos vão pra rua. E tem que ser rápido, senão o lixo é coleta-do por outros catadores ou pelo caminhão da prefeitura.

É gente como a família de Raimundo, que passa por uma tragédia mundial. Silenciosa,

se esconde nas periferias, no interior das cidades. Onde quem come não en-xerga essa população famin-ta. Uma pesquisa realiza-da pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2006, revelou que aproximadamente 14 milhões de brasileiros con-vivem com a fome e mais de 72 milhões estão em situa-ção de insegurança alimen-tar. Números que viram só estatísticas, como se atrás deles não houvesse, dramas, histórias, Raimundos.

http://alicemepersegue.blogger.com.br

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A vida de quem temfome Fernanda Beltrand

[email protected]

Suellen [email protected]

O dia nublado e a chuva da noite anterior explicam o frio que faz neste momento em Curitiba. Os termômetros instalados nas ruas registram a tempe-ratura de 13ºC em um dos bairros mais nobres da cidade, o Batel. Estamos es-perando. O lugar poderia até se passar por uma sala de cinema, afinal faz frio ali dentro, mas está longe de ter o con-forto das poltronas reclináveis. Não es-tamos onde o filme roda, mas onde ele é produzido. Estamos em um produtora de filmes esperando Gil Baroni.

A produtora WG7 fica no segundo andar de um dos prédios da rua Dr. Car-los de Carvalho. Lá o cineasta deixa fluir a imaginação para estimular a veia de artista. Durante o trabalho o clima é de correria para cumprir prazos, mas isso não o desanima enquanto produz.

— Fico muito compenetrado no tra-balho, sério, atento aos detalhes, ao cronograma de filmagens, aos ensaios dos atores. Tudo tem que dar certo, con-forme planejado. Quando estou no set de filmagens, deixo as brincadeiras de lado e me visto de seriedade, mas isso não deixa o trabalho pesado, sinto te-são, como provavelmente Deus deva ter sentido quando criou o céu, a terra, as criaturas, o homem e a mulher.

Toda essa dedicação em mais de 100 obras audiovisuais e na direção de cerca de 50 filmes lhe rendeu um dos prêmios mais importantes do cinema brasileiro, o Kikito de melhor produção no Festival de Cinema de Gramado em 2003.

Quem observa de longe consegue perceber que Baroni é apaixonado pelo que faz. Nas paredes da produtora es-tão pendurados cartazes de filmes co-nhecidos como Pulp Fiction, o Gordo e o Magro e Os Simpsons, que dividem lugar com longas assinados por ele. Um deles, intitulado Mystérios, fez história: ganhou o II Prêmio Estadual de Cinema e Vídeo do Paraná. Em 2005 o longa foi

Luz, câmera, Brasil:contemplado com um milhão de reais. Quatro anos depois venceu nas catego-rias Direção de Fotografia, Direção de Arte e Ator Coadjuvante, todos no CINE PE Festival de Audiovisual de Recife. Ganhou, ainda, melhor Maquiagem no Festival de Cinema da Lapa e melhor Direção no Festival de Cinema Latino do Paraná em 2008.

Gil Baroni já pensou em seguir vá-rias carreiras como a de ator, cantor, médico, mas desde pequeno era o ci-nema que despertava seu interesse. Na adolescência cismou em cursar medici-na, tentou dezessete vestibulares e aca-bou fazendo Direito. Todas suas experi-ências deram a ele uma personalidade única.

— O silêncio vale ouro; eu diaman-te.

Durante a faculdade, dedicou-se às questões jurídicas da cultura brasileira. Agora ensina outros aficcionados por cinema a produzir filmes com o apoio das leis de incentivo à cultura, direitos autorais e a Agência Nacional do Cine-ma, Ancine, que é a responsável pela fiscalização de parte das atividades dos cineastas.

As leis de incentivo a cultura são importantes, principalmente, para os cineastas que estão entrando agora no mercado de trabalho. Para Gabriela Beltrand, uma das alunas de Gil Baroni e estudante do quarto período de cine-ma na Faculdade de Cinema do Paraná a CineTV PR, a lei de incentivo a cultu-ra é essencial:

— É uma pena que alguns ainda se utilizem de má fé.

O estudante de cinema Rodrigo Alonso pensa de forma diferente. Acre-dita que existem outras formas de con-seguir incentivo.

— Existem empresas que ficam feli-zes em patrocinar nossas produções.

Para Baroni são inúmeras as dificuldades na captação de recursos. Hoje é pos-sível recorrer a algumas leis de incentivo, as mais comuns são a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual. A maior dificuldade é que as empresas que pagam im-postos, valor de onde sai o benefício fiscal para os

projetos, geralmente estão atreladas aos grandes produtores, sufocando os peque-nos produtores.

— Em suma, os recursos ficam con-centrados nas mãos dos mesmos.

Atualmente o cinema brasileiro faz cinema-verdade, aquele com desejo de chegar o mais próximo da realidade na-cional. É por essa razão que alguns apre-ciadores do cinema nacional chegam a reclamar que os filmes só retratam os problemas do Brasil. É o que pensa a re-lações públicas e estudante de jornalismo Cristielle Mara Pereira.

—Faltam filmes ficcionais como “Mu-lher invisível” e “Se eu fosse você”. O brasileiro tende a explorar os problemas do país como “Carandiru”, “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, achando que só isso faz sucesso internacional.

No Brasil, segundo o cineasta Baroni, o cinema nacional não fica atrás das pro-duções estrangeiras.

—Em termos de qualidade de produ-ção, não ficamos devendo nada. Nosso único problema é que os filmes nacionais quase não chegam nas salas de cinema e quando chegam ficam pouco tempo em cartaz. Mas nossos filmes são excepcio-nais. Nosso país é um continente! Cheio de histórias e diversidade. Essa diversi-dade pode ser vista nos trabalhos que são produzidos em cada região. Acho ótimo essa safra diversificada de conteúdos, de ideias, de formatos... tudo isso é inspira-dor!!! Inspira a gente a continuar fazendo mais, mais, mais.

É isso que o espectador espera, pro-duções cada vez melhores e filmes de qualidade.

Produções nacionais ganham espaço no cinema, embalados por sucessos como Tropa de Elite

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Fotos: Júlio Castellain

Júlio [email protected]

Era uma casa “nem tanto” engraçada

Tem teto, paredes e certa privacidade. Seu projeto não previa nenhum dormitório. Só salas de aulas e laboratórios. Nasceu escola, virou faculdade. Mas, fatores econômicos e a in-tempestividade e o autoritaris-mo da natureza transformaram o local. Um centro educacional vira habitação coletiva, um abri-go provisório.

É quase unanimidade: todos sonham com um canto seu para morar. Agora, quando a espera para reconstruir o sonho des-truído por uma catástrofe natu-ral já dura 23 meses, a situação assemelha-se a um pesadelo.

Uma senhorinha franzina, quando vê minha chegada ao antigo prédio da faculdade Ces-blu, no início no bairro Garcia, em Blumenau, faz sinais frené-ticos com suas mãos para cha-mar a atenção.

– Psiu! Eih! Moço. Vem aqui, vem aqui.

Era quase um sussurro. A impressão era de que não que-ria que vissem ela me chamar. Abanei, cumprimentando-a. Es-perava a responsável pelo abri-go provisório.

Niguém podia entrar nela não

Na portaria do prédio de quatro pavimentos três crian-ças, aparentando menos de cin-co anos, correm descalças pelos corredores. Há dois homens e uma mulher varrendo o chão. É um trabalho coletivo e, pelo engajamento, de colaboração mútua. Observo, esperando o atendimento com paciência. Um deles pede para aguardar. Na parede, uma série de regras dita as normas que todos os mo-radores precisam seguir. Entre elas, uma dizia que visitas só eram permitidas quando pre-viamente autorizadas pela Se-

mascri – Secretaria Municipal de Assistência Social, Criança e Adolescente, órgão da prefei-tura.

– Pois não, o que deseja? Pergunta Simone Couto, a co-ordenadora do abrigo, já com olhos de desconfiança. Começo a explicar o motivo da minha vi-sita quando ela afirma enfática:

– Para entrar aqui, conver-sar com alguém, fazer fotos, só com autorização da Prefeitura. São ordens.

Os versos de Vinícius de Moraes começaram a ecoar na minha mente. Evidentemente que com algumas alterações. Não adiantou argumentar que ali era um espaço público. Que viviam famílias. Mais de 250 pessoas que, como qualquer outra, tinham o direito de re-ceber visitas. Estava diante de mais uma consequência perver-sa do desastre natural ocorrido em novembro de 2008, que ma-tou 135 pessoas em Santa Cata-rina e que desabrigou cerca de 5.600 em Blumenau.

Na saída, aquela senhori-nha faz sinal novamente.

– Não te deixaram entrar, né? Eles têm medo.

É Araci Manoel Ponciano, 75 anos, uma das moradoras do abrigo. Além do prédio, há uma casa anexa. É ali que dona Araci mora com uma neta de 15 anos. É a sua segunda moradia provisória. Segundo ela, a di-reção do abrigo não gosta que saibam das brigas e encrencas que acontecem ali. Nem que existem privilégios para alguns. Quando pensei que tinha per-dido a minha viagem, as res-postas começaram a aparecer.

Para saber como vive uma família que perdeu sua casa e ainda vive em um abrigo provi-sório depois de quase dois anos, só conversando com uma. A pre-feitura paga a conta de energia elétrica, água e gás de cozinha. Todos são responsáveis pela limpeza e organização dos es-paços coletivos. Tem hora para

entrar e sair. Inspeções podem ser feitas a qualquer hora, em qualquer dia da semana. Tudo isso para esperar a tão sonhada casa própria, que no caso, são apartamentos de um programa do governo federal para famílias de baixa renda.

Os apartamentos já estão prontos. Ficam no bairro Itou-pavazinha, mas ainda é preci-so esperar por uma burocracia que não é muito compreendida pelos abrigados. A casa onde dona Araci morava, na rua Pedro Krauss Sênior, no bairro Vorsta-dt, foi condenada pela Defesa Civil. Da família, outras quatro residenciais foram atingidas, onde moravam os seus três filhos casados e seus netos. Todos estão morando no abrigo. A tragédia contabilizou mais de 3.000 pon-tos de deslizamentos, atingindo cerca de 34% da população.

A senhora idosa queria me receber na sua sala. Mas não po-dia. Queria mostrar os recortes de jornais que ela guarda, quan-do cinco soldados do Pelotão de Operações Especiais da Polícia Militar a retiraram da casa em-bargada.

– Precisou de cinco daqueles de “camuflado” pra dar conta de mim.

Estava explicado o porquê dos gestos e acenos do início da história e a vontade louca de contar alguma coisa, escondido da coordenadora do abrigo. Era da sua personalidade.

– Vem um dia de manhã aqui e entra direto ali na minha porta. É a despedida. Depois de con-tar um pouco de sua história, de revelar os bastidores do abrigo, dona Araci revela o seu sonho e faz um pedido:

– Eu só queria uma casinha. Uma meia água de madeira. Não dá para você falar com o Gugu?

O velho e bom Vinícius can-tarola de novo. Em tempos de eleições presidenciais no país e de promessas sem fim, os elei-tores desabrigados continuam na “rua dos bobos, no número zero”.

Dois anos depois da tragédia de 2008, abrigados ainda dividem espaço em um local de pouca estrutura e muitas histórias

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Marisco e seu livro de receitasLivro de receitas mostra importância e diversidade da cultura de mariscos na região

Vanessa [email protected]

A prefeitura Municipal de Penha, através da Secretaria de Pesca e Agricultura, com o apoio da AMAP-Associação dos mari-cultores de Penha, desenvolveu o primeiro livro de receitas gas-tronômicas da cidade, incenti-vando o consumo dos produtos da maricultura familiar.

O lançamento do livro de re-ceitas foi atrativo principalmente no Festival Nacional do Marisco em Penha neste ano de 2010. A atração foi divulgada em todo município de Penha e região, contando com mais de 4.000 exemplares gratuitos para toda a população. Segundo Luis Fer-

nando Vailatti, Presidente dos Democratas, "tivemos o apoio da indústria Natubrás Pescados, Indústria Peixe Vivo e Pesqueira Catarinense. Sem eles não con-seguiríamos lançar o livro. Fico muito feliz em fazer parte deste incentivo cultural”, conta Luis Fernando.

Neste Livro foram seleciona-das algumas receitas com os ma-riscos e ostras, visando atender públicos distintos sendo elas: receitas penhenses elaboradas pelos produtores de mariscos, receitas açorianas que é as prin-cipais formas de consumo des-ses produtores pelos açorianos, receitas exóticas que apresenta sabor especial e criativo aos ma-riscos de Penha.

No Brasil, o consumo de mo-luscos bivalves remonta a pré história. As populações indíge-nas, ao descartarem as conchas,

formaram os sítios arqueológi-cos conhecidos como samba-quis. Já o cultivo organizado de moluscos no Brasil é re-cente e representa impor-tante fonte de substância e fator de redução de êxodo em diversas comunidades do estado de Santa Catari-na.

A aquicultura tem sido considerada uma atividade

importante no supri-mento alimentar

do planeta, ga-nhando cada

vez mais im-portância à medida

que o consumo, baseado na ex-ploração dos estoques naturais, sofre redução gradativa, verifi-cando-se ainda uma crescente demanda por alimentos oriun-dos da maricultura.

Na produção de mariscos são utilizadas sementes coletadas no ambiente natural e através de coletores, que são acondiciona-dos em cordas de 2,5 metros de cumprimento, em média. Num período médio de oito meses, o produto está pronto para colhei-ta, quando é efetuada a seleção e limpeza dos mariscos, que são encaminhados para o benefi-ciamento. A partir desta etapa o produto está pronto para a comercialização e utilização na alimentação humana. Explica Jorge Martins, produtor de ma-risco.

A cooperativa de Maris-co, localizada no centro de Penha,trabalha só com estes Mariscos (moluscos). Maciel dos Santos, que trabalha no setor de Controle de qualidade, explica: “eles são invertebrados, com um corpo não articulado, de simetria bilateral e que essencialmente está composto por quatro regi-ões: cabeça, pé, saco visceral e manto. “Os mariscos da classe bivalve vivem somente na água, possuem as conchas formadas por duas valvas unidas dorsal-mente por um ligamento”, conta Maciel.

Os mariscos são de sexo se-parado, raramente ocorrendo hermafroditismo, e sua fecunda-ção ocorre livremente na água.

De acordo com Dona Zélia, proprietária da franquia Recanto Da Sereia “quando comprar ma-riscos, mexilhões ou ostras, veja se as conchas estão fechadas. Quando as conchas estiverem li-geiramente abertas os moluscos estão estragados. Lave-os primei-ramente fechados ainda com uma escovinha e muita água. Depois ponha-os em uma assadeira ou ta-buleiro e coloque ao calor do fogo no forno ou fogão, não importa. O

Em todo o mundo existem clas-sificadas mais de 20.000 mil es-pécies de moluscos bivalves. A maior concentração do marisco ocorre na parte inferior da região entre as marés, até um metro de profundidade.

A fecundação é externa e ocorre no ambiente aquático. Na desova a emissão dos gametas é estimulada por fatores físicos ou climáticos, principalmente pelo aumento na concentração de nutrientes no meio e pela va-riação repentina da temperatura ou da salinidade de água. Já a fêmea de mariscos (Mytilus edu-lis) pode desovar 20 milhões de ovos. As larvas alimentam-se por si mesmas na água por aproxi-madamente 21 dias. Após cinco a oito meses de crescimento, o marisco pode atingir a uma ma-turação, estando apto a reprodu-zir.

Os animais atingem a matu-ridade sexual com um máximo de desenvolvimento dos folícu-los das gônadas e da maior es-pessura do manto. Os mariscos chegam a formas densas popu-lações nos contões rochosos ma-rinhos, tanto em pontos de forte arrebentação como em locais mais abrigados podendo ocorrer até a profundidade de 30 me-tros. Como animais micrófagos filtrados que são, alimentam-se de organismo planctônicos. No entanto, foi com todo este estudo da vida do marisco que Luis Fer-nando e todos os patrocinadores já citados contribuíram com o li-vro receitas marisco de cultivo.

calor fará com que as conchas se abram ou facilita a abertura que deverá ser feita com a ponta de uma faca. Não afervente as con-chas fechadas porque tira o sabor do molusco. Retire os mariscos das cascas, lave-os muito bem e retire uma bolsa de areia que tem- o que é intestino. Lave mui-to bem, a água encontrada dentro da casa desses moluscos deve ser aproveitada para o cozimento dos mesmos”, aconselha Zélia.

Como preparar

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Chove nessa quarta-feira, véspera de primavera. São seis e meia da manhã. Na Avenida Central, em Balneário Cambo-riú, são poucos os transeuntes. O céu está carregado e pare-ce noite. Propício para um bom sono, correto? Depende, se você for o mestre de obras de um pro-jeto digno de apreço, estima e importância, certamente estará desperto antes de o sol nascer.

É o que faz Wanderlei Sub-til, 51 anos, quase todos os dias, desde que tinha 13 anos, na ser-rana Vacaria (RS). De estatura mediana, pouco menos de 1,80 metro de altura, corpo rijo e se-vero, um sorriso fácil e cabelos grisalhos, Wanderlei é também a simplicidade em pessoa. A pele com marcas do labor e da labuta expõe, ele começou como ser-vente de pedreiro em 1972. Os olhos brilham e molham ao lem-brar como tudo teve início, ainda na infância: Perdi minha mãe com 13 anos. Meu pai sempre esteve ausente. O jeito foi traba-lhar”, explica o mestre de obras do futuro Teatro Municipal de Balneário Camboriú.

Em 1974, o Brasil investia pesado na construção civil. Nes-sa época se colocou em prática o projeto de construir a Usina Hidrelétrica de Itaipu, na fron-teira do Brasil com o Paraguai. Trabalhadores foram chamados de todo o país. Em 1975, com 16 anos, Wanderlei trabalhava numa das maiores obras da ar-quitetura moderna e dava prin-cípio a uma vida meio nômade.

Subtil trabalhou na constru-ção de edifícios, casas, estradas e barragens. Morou em 19 paí-ses – da Ásia, África e América.

Jogou futebol profissional na Co-lômbia e Venezuela. Há oito anos fixou residência em Navegantes. Apesar da experiência, é a pri-meira vez que ele trabalha para erguer um teatro. A chuva cessa por alguns instantes. Permitindo assim, caminhar nas ruas 200 e 300, que ladeiam o prédio. Wan-derlei mostra as rampas de aces-so e detalhes do projeto: “Uma parte do teto será de vidro. Tudo material de primeira”.

Com o barulho das máquinas ao fundo, ele reflete a respeito desse templo da cultura, das ar-tes e da representação: “Não co-nheci teatros. Mas sei que esse é um lugar especial. Dos artistas. Em termos de trabalho é pare-cido com outras construções, só que aqui estamos fazendo algo para nossos netos”, filosofa o mestre de obras, com o sotaque carregado no espanhol. Seu fi-lho é de Caracas, na Venezuela.

Após começar em agosto de 2008, os trabalhos foram para-lisados em novembro de 2009, devido a um desacordo contra-tual com a empresa Concretil, de Itajaí, vencedora da primeira licitação. O Teatro Municipal de Balneário Camboriú está orçado em R$ 3,5 milhões, e o prazo de entrega é de 18 meses. A respon-sável pelo andamento do servi-ço é a construtora JFP, de Barra Velha, que alegou não poder dar detalhes do trabalho.

A chuva aperta no meio da manhã e interrompe nossa cami-nhada na Rua 200. Fomos para o escritório, onde inúmeros dese-nhos e cálculos tomam conta da pequena sala com um banheiro contíguo. O ambiente é limpo e agradável. Wanderlei diz que um engenheiro formado vistoria todo dia o local. Nas suas pala-vras, Subtil define-se “um en-genheiro na prática”, que só se

adquire “com esforço, trabalho e atenção”.

Wanderlei é um sujeito dis-creto, afável e inteligente. Há cerca de dez metros de onde estamos um operário também circunspecto, chama a atenção pela voracidade com que conso-me um sanduíche de mortade-la. Timidamente, o carpinteiro Isaias Souza, 28 anos, morador de Camboriú, explica: “Tem que comer rápido para não perder tempo”. O mestre de obras é respeitado e querido pelos cole-gas de trabalho, como afirma o próprio Isaias: “Seu Wanderlei é o melhor mestre de obras com quem eu trabalhei!”. Os funcio-nários andam de um lado ao ou-tro, com o som da britadeira e da chuva, eles carregam ferramen-tas, materiais e, invariavelmen-te, fumam o seu cigarrinho.

O Teatro Municipal terá área total de 2,3 mil metros quadra-dos, sendo 300 metros destina-dos à galeria de artes. O local será sede da Fundação Cultural de Balneário Camboriú e abriga-rá 320 espectadores.

Teatros são fundamentais para a sociedade. Sendo assim, o que restringe o acesso da po-pulação? Diferente de Wanderlei Subtil, uma mulher de Itajaí tem uma vida dedicada aos palcos; diferente do mestre de obras, ela perdeu a conta de quantas vezes esteve num teatro. A atriz, produ-tora e diretora do Teatro Munici-pal de Itajaí, Denise da Luz, 37 anos, enxerga outras prioridades no público: “Já foi mais restrito. Hoje, o Sesc traz espetáculos gratuitos. Que são sofisticados e bem preparados. O que res-tringe o teatro é a mentalidade do indivíduo, sua prioridade por outras formas de cultura de mas-sa – shows, televisão, enfim...”.

Independente do quão restri-

Leonardo Thomé[email protected]

to seja o teatro, muita coisa está sendo feita em Itajaí para suprir essa carência. A 15 Km do can-teiro de obras comandado por Wanderlei Subtil, funciona um espaço destinado a perpetuar o gosto pelo teatro. Na Aveni-da Sete de Setembro, em Itajaí, uma articulada e perspicaz mo-rena de cabelos longos, traços marcantes e olhar profundo, comanda uma escola de atores – focada também nos jovens -, que tem por objetivo inseri-los e enraizá-los na arte teatral.

A escritora e professora Fer-nanda Moroso, 27 anos, acredita que o poder público poderia fa-zer algo pela cultura; no entan-to, faz uma ressalva: “o político só vai conseguir melhorar algo,

quando eles se melhorarem. As-sim como está fica difícil”. Ape-sar do desencanto com a classe política, Fernanda confia no seu trabalho: “Tenho alguns projetos e dentro de vinte anos, eu quero criar a cultura do teatro aqui. O pontapé inicial para isso é a es-cola e os jovens”.

Com tanta disposição e von-tade, talvez em um futuro pró-ximo tenhamos um mercado mais atuante na área e, por con-seguinte, pessoas diversas fre-quentando o teatro. Se depen-der de Wanderlei Subtil, ao final desses meses de trabalho, ele vai apreciar o teatro, como o mesmo merece: com a cabeça aberta ao novo e diferente, levando tudo além da imaginação.

A obra e o operário No meio da obra do novo Teatro Municipal de Balneário Camboriú, surge um artista anônimo do trabalho diário

Fotos: Leonardo Thomé

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Quanto custa a sua fé?Na sessão do descarrego, fiéis acreditam na cura através da aliança com Deus, mas ela tem um preço: 10% daquilo que receberem

Andressa [email protected]

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Uma lenta canção instrumen-tal acolhe os fiéis, que aos poucos começam a formar um modesto público pelos 1.400 assentos do amplo e luminoso edifício. Pes-soas de todos os tipos começam a chegar: elas são magras, gor-das, altas, baixas, de pele clara ou escura, de diferentes classes sociais, algumas acompanha-das de crianças pequenas. Um evento muito peculiar está para começar. E cada um está ali por um único motivo: livrar-se de to-dos os males que possam afligir suas vidas.

No altar, alguns vasos com vi-nho e o óleo que representa o Es-pírito Santo chamam a atenção. O óleo, que tem um cheiro um pouco desagradável, é uma es-pécie de “condutor” para a cura – ele é passado nas palmas das mãos, que são levadas à cabeça ou à parte do corpo que está do-ente. Atrás do púlpito, a fotogra-fia de uma paisagem que compõe a decoração tem um significado: pedras e plantas verdes envol-vem a água que cai em cascata – a água representa o batismo. O púlpito é comum, de madeira, com uma cruz talhada na parte da frente. É neste local que o Pastor Edson Nascimento dos Prazeres, 46 anos, passa a maior parte do tempo lendo os dizeres da Bíblia, ou transmitindo suas ideias, suas crenças. Assim que ele sobe ao altar, todos se levantam.

– Diga “graças a Deus”. Bote a mão no coração, que nós vamos falar com Ele, diz o Pastor, que

logo dá início à primeira can-ção de louvor de maneira desa-finada, com ajuda do tecladista: “Seguuura na mão de Deeeus... e vaaai.”

A moeda da fé

Terminada a canção de lou-vor, pastor Edson começa a fa-lar de dinheiro, como numa aula de matemática financeira (os sermões parecem ser decorados como um texto, um roteiro, pois pouco se diferenciam conforme a cerimônia):

– Uma das coisas que baseiam nossa fidelidade com Deus é o dízimo. Independentemente de quanto você receber, 10% deve ser devolvido a Jesus. Se você ganha R$ 10 mil, R$ mil é de Je-sus, se você ganha R$ 500, R$ 50 é de Jesus. – O dízimo é coletado em envelopes. O fiel ainda pode fazer uma oferta de quanto qui-ser. É através da oferta que ele pode reafirmar sua aliança com Deus.

A servente escolar Nereusa Borges, 48, diz que os pastores da Congregação Cristã no Bra-sil ensinam que só se deve dar o dízimo se sentir-se à vontade. “Eu acredito fielmente no que o pastor prega porque tudo o que ele diz está na Bíblia e nossa igreja segue somente a palavra Deus, aí não tem como duvidar”, diz Nereusa. Assim como a ser-vente escolar, muitos creem em pastores como Edson, que afir-mam: “para ser feliz, sacrifícios são necessários”. E Edson sabe bem o que é isso. Antes de pre-gar na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Edson era al-coólatra, como o pai: “Meu pai morreu na cachaça, usava lan-ça-perfume, vivia nas drogas”. De acordo com ele, a igreja é a salvação, a cura para doenças do corpo, da mente e da alma, como o câncer, a depressão, as visões e

até mesmo a AIDS. Começa, então, a oração pe-

los dizimistas. “Que Deus possa fazer coisas maravilhosas pelos dizimistas de Itajaí”, diz Edson. Para ele, Deus é alguém muito rico, contudo, não se deve pen-sar que para seguir à palavra, o fiel deve abrir mão de ter posses, bens materiais.

– Essa história de que Jesus foi simples, humilde, de que a pessoa tem que viver e não pode ter riquezas, não pode adqui-rir bens, isso é história para boi dormir. Aliás, nem boi está dor-mindo mais com essa história. – Edson eleva o tom da voz e per-gunta aos fiéis:

– Deus quer que você tenha uma vida abençoada. Amém? Ele quer que você ande rasga-do? Que você viva mal? Venha a se alimentar mal? Se vista mal? Não, Ele quer que você tenha o melhor, por isso está escrito: “Comereis o melhor desta terra e vos fartareis”. Então, se você quer comer desta terra, venha fazer uma parceria com Deus, venha tornar-se dizimista.

Edson diz que o aluguel pago pelo local onde acontecem as ce-rimônias, que fica na R. Heitor Liberato em Itajaí, é de R$17 mil, mas esse valor não sai do bolso dos fiéis, pois não é possí-vel arrecadar tanto. No entanto, não importa a posição financeira dos frequentadores – a maioria confia na palavra do pastor e não hesita em contribuir, embo-ra muitos sequer saibam o que é feito posteriormente com o dinheiro. Jaqueline Boaventura Delfim, 26, é fiel da Assembleia de Deus e há oito anos deposi-ta todo mês R$ 140 nos cofres da igreja. Apesar de não saber o que é feito com o dízimo, a zela-dora não se arrepende: “Eu não sei para onde vai esse dinheiro, só penso que Deus está vendo: minha parte eu faço.”

“É hora de exterminar todos os males da famí-lia: doenças, drogas, amantes, brigas e o cigarro, que é a chupeta do diabo...”, diz o pastor Edson, dando início à parte principal da cerimônia: a sessão do descarrego. Todos se aproximam do al-tar e o óleo malcheiroso, símbolo do Espírito San-to, é passado nas mãos de cada um. O pastor or-dena: “bote suas mãos no local da enfermidade, ou então na cabeça”. Como num ritual de exor-cismo, dois pastores se aproximam e começam a expulsar os males dos fiéis, apoiando a mão em suas cabeças e orando em um tom de voz quase ensurdecedor.

As orações são incompreensíveis. Apesar da voz exaltada e do auxílio do microfone, é difícil entender o que é dito. E embora a reza seja in-decifrável, todos, inclusive as crianças, se emo-cionam, choram. Como numa dança, pernas inquietas embalam o corpo de um lado para o outro, até que tudo fica em silêncio novamente. Os fiéis se mostram cansados, tristes. De repente, um homem de aproximadamente 60 anos chama Edson, que pergunta:

– Qual era o local da dor? Está se sentindo bem agora, não está? – O homem responde, mas o pastor se esquece de levar o microfone à sua boca:

– O braço estava doendo – diz o homem, que havia carregado materiais pesados durante o dia. Não satisfeito com apenas uma resposta, ou com um simples braço, Edson pede mais um depoi-mento, mas ninguém responde. O descarrego parece não ter funcionado muito bem. Com um olhar desapontado, de pálpebras semiabertas, o pastor encerra com uma oração, uma canção de louvor, e oferece mais uma vez o envelope do dí-zimo, envelope que carrega o preço da fé.

O descarrego

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Juliete [email protected]

Não fosse por um casal, for-mado por um negro robusto e uma loura de feições simpáticas, dividindo uma mesa próxima ao palco, e mais uma animada garo-ta de calça estampada dançando sozinha no lado oposto, eu diria que o DJ estava colocando músi-ca para um bar vazio. Tudo bem que era uma quinta-feira e o reló-gio do meu decrépito celular ain-da nem marcava meia-noite, mas antes de chegar eu imaginei en-contrar outro cenário. Nada que fosse tirar o entusiasmo do DJ e toaster Wilson de Jesus Guicha-beira, mais conhecido como W SoulJah, que induzia seus pesa-dos dreadlocks junto com o frené-tico movimento corporal.

Alguns notívagos fumavam qualquer-coisa escorados na cer-ca de madeira instalada na areia da praia – vista que o bar propor-cionava –, e outros começavam a dar as caras no ambiente peculiar onde W SoulJah reinava absolu-to. Marcela, a encantadora garo-ta de cabelos cacheados e calça estampada, agora sacudia no ar dois malabares cobertos de te-cido e fitas coloridas, enquanto a voz do toaster acompanhava o som saído das caixas de som em alguns improvisos.

– Se você quiser pode chegar e dançar. – Cantava o enérgico W SoulJah.

O som que toma conta do am-biente não é nada parecido com o que se ouve normalmente por aí. Trata-se do dub, estilo criado na Jamaica na década de 60, que in-jeta batidas de bateria e impetuo-sas linhas de baixo e efeitos sono-ros em ritmos como o reggae. Por cima do compasso instrumental, os toasters criam as mais variadas e expressivas rimas, em uma vaga lembrança ao atual e popular hip-hop. A festa que rolava na fresca noite de quinta-feira, no Kwarup Bar, na praia Praia Brava, trazia

Letras cheias de personalidade são quase um manifesto à sociedade por um jeito simples e puro de se viver

no flyer o número 1. Era a pri-meira festa dub promovida por aqui. E certamente não seria a última.

Mais do que um simples es-tilo de música, o dub é para os jamaicanos uma filosofia, uma forma de conhecer e misturar sons e efeitos diferentes. Há cer-ca de cinco décadas, quando o dub dava seus primeiros suspi-ros, quase não havia tecnologia para tanto experimentalismo. Hoje, porém, mesmo com as mais modernas técnicas disponí-veis, o estilo ainda é pouco co-nhecido no Brasil.

– Por isso eu resolvi fazer es-sas festas. Já tava de saco cheio de ouvir esses reggaes de cacho-eira. – Desabafou Wilson alguns dias depois da festa, já pensando em como será a próxima.

Cultivando boas ações

– O que era aquele negócio que tu tava girando no ar antes? – Pergunto para Marcela após saber seu nome e explicar o que eu fazia por ali.

– Ah, aquilo? É um swing. Tu podia falar com aquele cara lá, ele é jamaicano – apontava Marcela animada para o negro sentado próximo ao palco, que agora trocava carinhos com sua companheira de mesa. – E de-pois vai ter uns caras muito le-gais aqui!

O swing, vim a saber mais tarde conversando com Wilson, são duas bolinhas feitas com grãos de arroz envoltos por um plástico. Depois de prontas, as bolinhas de arroz são revestidas com um tecido que é trançado, formando então um pêndulo.

– E aqueles foram confeccio-nados por ela mesma – Explicou-me Wilson, pacientemente.

Durante seus meneios e im-provisos, W SoulJah informava ao seu público ainda modesto que a atração principal da noite logo estaria ali. Eram os tais ca-ras legais mencionados por Mar-cela momentos atrás. Uma dupla paranaense de Sound System

influenciada diretamente pelo dub, o Cidade Verde Sound Sys-tem.

Não demorou até surgir ao lado de W SoulJah o duo forma-do por Paulo Dubmastor e Gui-lherme Adonai. O primeiro era responsável pelo ritmo, enquan-to Adonai, um rapaz que aparen-tava ter seus 20 e poucos anos, também de dreadloks no cabelo, circulava pelo palco com um mi-crofone em mãos. Gente de todo o tipo agora deixava as mesas do lado de fora do bar e o cercado da praia para entrar no clima envolvente do ritmo jamaicano. Os mais interessados uniam-se intrépidos cada vez mais perto do palco e da incrível energia do cantor.

Entre os festivos, aproximou-se uma garota com várias tatua-gens espalhadas pelo corpo, al-guns piercings no rosto e cabelo de tom alaranjado. Visivelmente deslocada no ambiente pouco familiar, Alana me disse ter pre-cisado da ajuda dos amigos para se vestir adequadamente ao lo-

Fotos: Juliete Lunkes

cal.– Eu não tinha nada

pra fazer, aí falaram que ia ter isso hoje aqui. Eu nem sabia o que ves-tir! Tava com uma blusa cheia de tachas, mas não me deixaram sair de casa daquele jeito.

O som alto e ritmado promovido pela Cidade Ver-de quase obriga as pessoas a não ficarem imóveis. As le-tras cheias de personalidade, quase um manifesto, são re-flexo direto da vida da dupla. A plenos pulmões, Guilherme Adonai canta que rejeita quem tenta mudar seu jeito de viver e de pensar, para em seguida falar sobre cultivar boas ações. À me-dida que a festa da Cidade Verde vai ficando ainda melhor, com a participação do jamaicano Eek a Mouse – o negro robusto – e do próprio W SoulJah, ela chega ao fim, deixando no ar a mensagem positiva e a mistura das energias díspares do público que os pres-tigiava.

undergroundO ritmo

underground da Jamaica

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O último corteBarbearia mais tradicional de Itajaí fica na lembrança

Dayane [email protected]

São duas e meia da tarde de uma tranquila quinta-feira. Quem chega neste momento na barbearia da rua Brusque, em Itajaí, pode ver um senhor de cabelos brancos sentado, espe-rando o tempo passar, à espera do próximo cliente. Nome, o local não tem. Apenas uma pla-ca, pendurada no teto do lado de fora, indica que ali funcio-na uma barbearia, conhecida popularmente como Barbearia Santo. Há 61 anos cortando ca-belo e fazendo barba da cliente-la masculina, a carreira de um dos barbeiros mais conhecidos da cidade está chegando ao fim.

Quando resolveu largar o trabalho na roça em 1949, San-to Russi ainda era moço, tinha 22 anos. O convite para apren-der o ofício da barbearia veio de um amigo, que o encorajou

a deixar a terra onde nasceu e morou, o bairro Brilhante, na zona rural de Itajaí, para ir ga-nhar a vida no centro da cidade. Dois dias antes do seu aniversá-rio, Santo dava os primeiros ma-nejos com a tesoura e a navalha. No dia 6 de dezembro de 1949 foi seu primeiro dia de trabalho como barbeiro.

Foi na antiga Barbearia Vi-tória da rua Brusque, com o Seu Alvin como professor, que a car-reira de Santo começou. "Primei-ro cortava cabelo de moleque", conta Santo, ao mesmo tempo que sorri ao lembrar de quando era apenas um aprendiz: "Anti-gamente tinha uma prateleira em cima do espelho cheia de produtos. As máquinas de corte já existiam, mas eram manuais, cansava muito o pulso."

Mas o tempo passou e depois de 14 anos ao lado do Seu Alvin Sandri, Santo teve que seguir sozinho, principalmente depois que o companheiro de profissão ficou doente e fechou as portas da barbearia. Foi então que Santo abriu o próprio estabelecimento para cortar e fazer barba e bigo-de. A nova barbearia ficava perto do Parque Dom Bosco, no bairro de mesmo nome. Lá ele atendeu por quatro anos seus clientes, que aliás, o acompanharam na

mudança de endereço. No final do ano de 1963

Santo comprou um terreno na rua Brusque. Construiu uma casa e a barbearia com a ajuda da esposa, onde mora e traba-lha até hoje. "Com a barbearia criei cinco filhos. Três mulheres e dois rapazes e construí esta casa". A alegria ao falar dos filhos faz brilhar os olhos, que mesmo com a idade avançada, não necessitam o uso de ócu-los.

Trabalho e silêncio

Já passa das três horas da tarde quando um cliente entra. O barbeiro lava as mãos numa pia minúscula, liga a máquina, a que comprou no camelódro-mo da cidade, e com o auxílio de um pente inicia o corte. O silêncio do ambiente só é in-terrompido pelo barulho dos carros passando na rua e pelas gotas de água que pingam da torneira. O silêncio tomou con-ta da barbearia há mais de 15 anos. Os clientes se acostuma-ram a falar pouco, por exigên-cia de Seu Santo, que diz que a conversa atrapalha o serviço, e mais ainda porque ele não es-cuta muito bem. Depois da má-quina chega a vez da navalha.

Com as mãos um pouco trêmu-las, mas com muita habilidade, ele troca a lâmina vagarosamen-te, sempre com uma expressão nos lábios de quem vai abrir um grande sorriso.

A sala com pouco mais de cinco metros de comprimen-to por quatro de largura não possui aparelhos eletrônicos. Na parede, três calendários de modelos diferentes lembram que os dias estão passando. A mesinha de ferro encostada na parede perto da porta, já gasta pelo tempo, serve para guardar alguns jornais velhos e a toalha branca, pintada com o desenho de uma cesta de flores, esconde o que o tempo fez com o móvel. Os passos lentos de Seu Santo não conseguem esconder o que a idade lhe fez. Há dois meses atacou-lhe a pneumonia. Sem poder trabalhar, teve que fechar a barbearia por um mês.

Com a barba feita e o cabelo bem cortado, Edson Wippel paga os R$18 (R$10 do corte e R$8 da barba) e se despede. Hoje Ed-son tem 35 anos. "Desde os três anos os pais já traziam ele para cortar o cabelo", lembra Seu Santo. E desde a adolescência Edson repete o ritual todo mês, o de fazer uma visita a Seu San-to. O capricho com a higiene e

o serviço bem feito são motivos de orgulho para o barbeiro. Com a ajuda da mulher, Dona Maria de Lurdes Philippis, de 76 anos, uma senhora que adora falar e cuidar do seu jardim, Seu San-to vai planejando o fechamento definitivo da barbearia.

Depois de anos trabalhando de segunda à sexta, das 8h30 às 12h e das 14h às 18h, e sábados das 8h30 às 12h, Santo resolveu parar. "O serviço está prejudi-cando minha saúde", lamenta o barbeiro. Ele não parece triste ao falar do fechamento, muito pelo contrário, se mostra satisfeito com o que fez da vida até aqui. São 82 anos muito bem vividos e aproveitados, ainda mais sendo um pé de valsa como Seu Santo. Ele adora um baile.

As pessoas estão prestes a ver mais um capítulo da história da cidade terminar. Os amigos ficam, mas os fregueses se vão. Clientes que o acompanham há mais de 52 anos terão que procurar outro estabelecimen-to para o corte mensal. Já Seu Santo Russi, com seu silêncio e sua calma, continuará seguindo a vida com a esposa e os filhos, sem deixar de frequentar os bai-les de que tanto gosta, porque esses têm hora para começar, mas não para terminar.

Fotos: Dayane Bazzo

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ndando pelas ruas de Florianópolis com sua bengala, atrás de mais um volume de “Viver para Contar” de Gabriel Garcia

Marquez vai Ivo, hoje cego, mas sempre um leitor voraz. Criado no asilo Irmão Joaquim há sessenta anos, hoje com 62. Ivo não tem mágoas do pas-sado nem traumas, é feliz, vai pelas ruas deter-minado e sorridente em busca de seu prazer: a leitura.

O livro que está lendo atualmente está divi-dido em dezesseis volumes pegos sempre na bi-blioteca da Acic - Associação Catarinense para Integração do Cego, no bairro estreito, situado na porção continental da capital catarinense.

– Eu ia pegar o primo Basílio, que lá na bi-blioteca da outra associação o povo leva e não de-volve, então a pessoa quer pegar e não tem como pegar, tá faltando a parte. Então tem cinco partes, eu vou ler quatro partes e a primeira não? Quan-do eu leio, eu leio todo.

O medo do volume seguinte de sua leitura fi-car trancado com alguém é uma coisa que per-siste, pois Ivo gosta de ler um livro do início ao fim sem grandes interrupções. A outra associação de que fala fica na rua Tenente Silveira, uma rua muito movimentada do centro de Florianópolis, mas isso não o impede de ir até lá buscar seus livros, nem tem medo, seu medo é de não encon-trá-lo.

A

Amaro [email protected]

Isadora [email protected]

O mundo na ponta dos dedos

Sem mágoas nem traumas do passado, Ivo é feliz e vai pelas ruas determinado e sorridente em busca da leitura

Fotos: Amaro Paz

Especial

Page 13: Cobaia | #106 | 2010

Em passos inseguros, mas muito determinados, Ivo caminha pela ci-dade acompanhado de sua bengala para cegos. – Tem calçada que é mui-to quebrada, pior que eles (políticos) prometem na eleição, mas quando é para fazer não fazem. Por isso agora quando tiver o debate eu vou acom-panhar o jogo.

Pega ônibus, conversa com as pessoas, atravessa as pontes Colom-bo Salles e Pedro Ivo para pegar seus livros. Poucos sabem que além de seus romances ele gosta muito de ler todas as noites um trecho de sua bí-blia em braile.

Ivo tem lido ultimamente Harry Potter e a Pedra Filosofal e Harry Pot-ter e a Câmara Secreta, de J. K. Ro-wling e As Travessuras da menina má de Mário Vargas Llosa. Gosta muito das histórias de Monteiro Lobato, de Castro Alves, Os Sertões de Euclides da Cunha, Sinhá-Moça - o livro, de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, Capitães da Areia de Jorge Amado.

Vítima de uma catarata operável que o deixou cego desde criança, seu Ivo pode ser encontrado em dias en-solarados lendo seus romances em braile no ponto de ônibus na frente do asilo onde reside toda a vida. Al-gumas pessoas que passam e o veem, puxam conversa, outras querem sa-ber do braile, ele fica feliz e explica. Crianças têm medo, ou ficam tímidas normalmente, isso o chateia um pou-co, ele gosta de crianças. Pelos cál-culos de Ivo, mais pessoas conver-

sam e são gentis com ele do que as que o ignoram. Mais vai saber? Tão absorto em sua leitura. Já fiquei ao seu lado querendo conversar com ele, mas é muito chato interromper uma leitura tão agradável e gostosa, como ele faz parecer. Existe também um espírito de porco, que uma vez ameaçou Ivo, disse que jogaria um balde de água nele. Hoje vai com menor frequência ao ponto de ôni-bus, um pouco por receio. –Molhar o livro não dá.

Com um jeito de sorrir com os olhos e espontaneidade aflora-da, Ivo é a figura mais querida no asilo, e que está há mais tempo lá também. Nas confraternizações que acontecem sempre nas tardes de ter-ça-feira, todos o aplaudem quando ele chega para tocar. Como faz parte da banda, toca teclado e acordeom. E toca muito bem. Hoje tem um te-cladista, então Ivo toca acordeom. Anima-se e contagia o ambiente, até quem não estava no salão vai che-gando ao ouvir a música. O nome da banda composta por jovens e senhores é “Os Voluntários”. Tocar um instrumento se descobre com o toque, Ivo tira as músicas de ouvido e decora-as para poder reproduzir, gosta de tocar sertanejo.

Manezinho da maternidade Carlos Correia foi entregue por sua mãe para as freiras que cuidavam do Asilo Irmão Joaquim quando ele ia completar três anos de idade pois não tinha condições de cuidar de

uma criança com deficiência visu-al, ele não era seu único filho. Ele manteve sempre, até a morte de sua mãe por complicações do dia-betes em agosto de 2003 o contato, mesmo que distante e entende que ela não teve condições de criá-lo, sempre foi carinhoso com a familia e ainda vê seu irmão quando ele o visita.

Ivo que não é apenas Ivo: é Ivo Manoel de Jesus. Nome dado pelo asilo onde foi criado. Seria José, mas decidiram por Ivo, que ele pre-fere.

– Gosto de Ivo. Tem o Pedro Ivo, o Ivo Silveira governador, nome de rua, eu gosto.

Católico praticante, gosta de tocar as músicas da igreja e tocar na missa. Assiste os canais mais li-gados a rede católica, por isso não gosta muito da rede Record, ora sempre antes das refeições e lê a bíblia antes de dormir.

Esteve em 1959 nas olimpíadas da Acic em São Paulo jogando fu-tebol, com uma bola de guizos. Foi levado por seu padrinho na época também até o Rio de Janeiro, onde estudou. Estudou até o colegial. Na Acic aprendia, além das matérias normais de escola, o braile. Apren-deu como fazer café, passar roupas sem medo. A fundação também en-sina a cozinhar, usar garfo e faca. Coisas que não percebemos como é importante por ser tão simples e automático.

Nunca casou, mas não foi por-que não quis, possui ainda um ar juvenil. Nunca trabalhou, mas lê e escreve em braile, ensinou um me-nino de sete anos a tocar teclado, e abrilhanta a vida de quem está por perto. Inclusive de seus dois cole-gas de quarto, o Amilton e o Neri. No Irmão Joaquim, o ambiente é bem organizado. Em cada quarto fi-cam três adoráveis personagens de outras lindas histórias. No quarto do Neri, Amilton e Ivo, também fica sua bíblia em Braile, seu teclado, acordeom, um grande armário e três pequenas camas, além de um armá-rio de ferro tipo arquivo, um criado -mudo feito altar ao lado da cama de Ivo, que também têm uma TV com imagem em preto e branco com fun-ção rádio.

Ainda não é um frequente ou-vinte de áudio-livro, até porque se criou na Acic e lá aprendeu a ler, desde pequeno em braile. Mas por um tempo recebeu a assinatura e acompanhou os áudio-livros da Veja e Cláudia, assim como os livros da fundação Dorina para cegos. Quan-do se tem a capacidade de absorver tudo na ponta dos dedos, e viajar para o mundo da imaginação, esse processo é a leitura mesmo, assim como se lesse com os olhos, não se perde em nada. Seus dedos, lisos de tanto tocar, absorvem tudo, o forma-to de nossos rostos, as palavras de grandes poetas e escritores, a vida que o permeia.

Sem mágoas nem traumas do passado, Ivo é feliz e vai pelas ruas determinado e sorridente em busca da leitura

Especial

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Alexssandra [email protected]

"Estou neste hospital com meu filho há uma semana e des-de que chegamos ele não vem se alimentando de forma correta, não havia como fazê-lo comer um prato de arroz e feijão, seu alimento era somente leite na mamadeira. Moço, já estávamos ficando preocupados, pois era um largo tempo sem se alimen-tar, então gostaria de agradecer vocês, Terapeutas da Alegria, por conseguirem através da alegria e do riso prender a atenção do meu filho e fazer com que pela primeira vez ele comesse toda sua comida".

Esse é o relato de uma mãe, extraído de www.terapeutasda-alegria.com.br. É desta forma e tantas outras que os Terapeutas contribuem uma horinha por semana para a melhora dos pa-cientes que visitam em três ins-tituições. O projeto criado em Tubarão no ano de 2002 foi adap-tado aqui em Itajaí pelos alunos da Univali, no dia 9 de maio de 2003. Desde então acadêmicos dos cursos de Enfermagem, Far-mácia, Fisioterapia, Medicina, Fonoaudiologia, Psicologia, Re-lações Públicas, Publicidade e Propaganda, Direito e Música levam para os Hospitais alegria, que sem duvida alguma vem sendo uma forma eficaz de me-dicamento para as pessoas que são atendidas.

No inicio do projeto, os Tera-peutas da Alegria atendiam ape-nas o Hospital Pequeno Anjo, em Itajaí. Mais tarde, o grupo per-cebeu que tinha forças e pessoas suficientes para estender suas atividades a outras instituições e

no ano de 2007 passaram a visitar o Hospital e Maternidade Marie-ta Konder Bornhausen, também no município, e pouco tempo de-pois o Hospital e Maternidade Santa Inês, em Balneário Cam-boriú. As visitas ocorrem todas as quintas e sextas-feiras, do meio-dia à uma da tarde no Hospital Marieta Konder Bornhausen e no Hospital Pequeno Anjo e das 18h às 19h no Hospital Santa Inês.

Os Terapeutas se dividem em três grupos que variam confor-me a disponibilidade de horário de cada integrante. E o principal tempero para toda a alegria que levam aos pacientes das insti-tuições é o fato de não agirem simplesmente com a formalidade que os profissionais da saúde ge-ralmente agem, mas sim criando um laço afetuoso com cada pes-soa, independente da idade, que é atendida por eles. Além de pro-mover o bem, o pessoal da área da saúde aproveita para apren-der os ofícios da profissão que es-colheram para seus futuros. Mais do que apenas palhaços, anima-dores, visitantes, se tornam ami-gos das pessoas que alegram. E o aprendizado vai muito além da área profissional, pois acrescenta para eles na vida e no crescimen-to pessoal, para que se tornem mais humanos, e não esqueçam nunca que ajudar realmente só faz bem.

O grupo todo mantém con-tato através de reuniões que são feitas semanalmente, para que possam compartilhar as novas experiências nos diferentes gru-pos em que trabalham. E segun-do informações colhidas no site dos Terapeutas, uma das maiores dificuldades que eles enfrentam é conciliar horários, já que todos estudam em períodos diferentes na Univali, e outros ainda traba-

lham. Porém, segundo João Ma-noel Cândido da Silva, “apesar de todas as dificuldades o traba-lho é tão gratificante que cada integrante desse grupo tão em-penhado se doa ao máximo para não faltar em nenhuma visita. Porque depois que criamos certo vinculo com os pacientes, bate uma saudade tremenda quando não os visitamos”. João ainda falou que agora em época de fé-rias, quando eles geralmente não fazem as visitas, porque perdem o contato que a universidade acaba exigindo deles, o grupo mesmo assim se junta, para vi-sitas esporádicas aos pacientes que precisam de mais atenção e com que eles tem mais proximi-dade.

Essa, como tantas outras ati-vidades e projetos desenvolvidos por acadêmicos, são iniciativas que mostram o potencial que o aluno enquanto aprende tem de praticar para melhorar como pro-fissional e como pessoa. “Este é apenas um projeto, apenas um exemplo de que ser voluntário é uma das melhores coisas que fa-zemos na condição de ser huma-no. Se temos saúde e possibili-dade de ajudar aos que precisam nada mais justo do que realmen-te o fazer. Porque ninguém ima-gina a satisfação que dá quando chegamos aos hospitais e vimos nossos velhos pacientes nos es-perando com um sorriso no rosto. E melhor ainda, quando conquis-tamos os novos pacientes e po-demos compartilhar com eles a alegria de em situações difíceis, poder sorrir. É um aprendizado que certamente eu vou levar pra minha vida toda, e que sim, me fez crescer muito.”, avaliou João Manuel Cândido da Silva, aca-dêmico de Enfermagem e volun-tário dos Terapeutas da Alegria.

Projeto leva humor e carinho a quem precisaTerapeutas da Alegria contribuem com uma hora de seu tempo

para mudar a história de internação dos pacientes

Fotos: Divulgação

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Um dia normal

Miriany Kátia [email protected]

Maurício acordou cedo ape-sar de ter dormido tarde. Na noi-te passada, ficou até 2h30 forma-tando seu computador portátil. Manhã nublada de sexta-feira, na ilha da magia, apelido cari-nhoso para a cidade de Florianó-polis, onde agora mora sozinho, mas, sempre acompanhado de muitos desafios e de amigos, que estão sempre presentes quan-do ele mais precisa. Maurício já conhece cada canto do seu apar-tamento com detalhes que pou-cos prestariam atenção. Levanta da cama tateando tudo ao redor, meio sonolento ainda, vai ao ba-nheiro e escova os dentes com muito cuidado. Antes de trocar de roupa, abre a janela e sente a temperatura amena, típica das manhãs de primavera no litoral. Já sabe que roupa usar: na sema-na passada ganhou um moletom da sua mãe, dona Marion, que agora apenar da preocupação com o filho morando longe, tem a certeza de que ele se vira muito bem.

O moletom não é nem mui-to grosso nem muito fino, é bom para a estação. E assim ele desce as escadas numa velocidade que surpreende a todos. O bairro de Cordeiros respira os primeiros movimentos do dia. São 7h23, a criançada espera o ônibus para escola e o vai e vem de veícu-los daqui pra frente só aumenta. Rumos diversos, mas a maioria segue do continente para a ilha para mais um dia de trabalho. A 300 metros de sua casa, Maurí-cio toma café todas às manhãs na lanchonete do seu Ezequiel. “Café com leite melhor do que

esse, pode andar por toda Flo-ripa que não acha”. Para acom-panhar, um misto quente de pão francês na chapa, bem quen-tinho, com o queijo mussarela sobrando nos cantinhos do pão e deixando no ar aquele cheiro que dá fome em quem passa. Seu Ezequiel é só alegria ao ver Maurício.

– Bom dia, “quirido”.– Bom dia, seu Zé. Tudo

bem?– Tudo. Café?– Claro, que a fome “tá”

grande hoje.Seu Zé, como chama Maurí-

cio, já conhece o gosto do clien-te e vai logo servindo. O jovem tem pressa, afinal, precisa pegar duas conduções para chegar à escola. Na companhia de uma senhora um pouco cabisbaixa, adentrando os 90 anos, Maurí-cio atravessa a esburacada rua do bairro. Há um mês, a Prefei-tura Municipal iniciou as obras de restauração da rede pluvial. Algumas árvores que tocavam os fios elétricos também foram podadas pela Celesc e algumas vias para ciclistas foram implan-tadas para melhorar a circulação para todos.

– Bom dia, Dona Maria. Vai ao Centro?

– Oi, meu filho. Não, hoje vou à feirinha, na rua debaixo. Tem que economizar né e lá sempre tem coisa boa e barata.

Por todo seu caminho, Mau-rício é cumprimentado por muita gente, nunca viu nenhum deles, mas sempre corresponde com muita simpatia. Um garoto hu-milde, educado e feliz. Apesar das dificuldades e obstáculos que enfrenta todos os dias, está sempre com um belo sorriso no rosto. Um exemplo de vida. Quem conhece com mais intimi-dade, sente até inveja, de tanta sabedoria, inteligência e auto-estima.

Na condução, Maurício sobe

e vai direto para o seu lugar, sen-ta sempre na mesma poltrona, exceto quando o ônibus está lo-tado e tem que ficar em pé e lu-tar para se equilibrar no balanço do coletivo. São 12 minutos até a troca de carro. Já no outro ve-ículo, o cobrador Vinícius, acos-tumado com ele, já o espera na porta. Senta-o bem ao seu lado e como todas as manhãs batem um papo.

– Começou cedo hoje, Vini-cíus?

– Pois é, sexta-feira é sempre mais corrido, começo cedo. Pra sair antes né. Tem aula de que hoje, “Mané”?

– Culinária...(risos)...não vem com piadinha não.

– Tem medo de se machucar não? Quebrar uma unha? Deve-rias contratar uma empregada! (risos)

– Que nada, eu me viro as-sim. Estou aqui em Floripa pra isso. Quero ter vida própria e não depender de ninguém.

O ônibus para e Maurício desce. 100 metros adiante, fica a escola que ele frequenta. No portão vermelho, o jovem é re-cepcionado pelo porteiro João. Uma escola aconchegante. To-das as salas com um diferencial. As cores frias que cobrem as pa-redes dão um ar de paz e respei-to. Nos murais, cartazes alertam sobre as eleições e outros falam sobre os preconceitos. Em cada corredor, uma caixa de som é instalada e guia os alunos até suas devidas salas de aula. Hoje, a aula de culinária é na sala 201. A professora Marise já aguarda os alunos com tudo pronto. Mau-rício ajeita os óculos, entra na sala e cumprimenta a professora e os colegas. Como de costume, as aulas de Marise inicia-se com uma frase de motivação.

– Nunca deixe que nenhum limite tire de você a ambição da auto-superação. Bom dia, pessoal. E hoje vamos conhecer

um pouco mais sobre a culinária francesa.

– Hummmmm (coletivo)Cozinhar é um grande desafio

para Maurício, assim como ou-tras tarefas do lar. Apesar de ter ajudado a criar seu irmão mais novo, muitas vezes ficando so-zinho com ele em casa enquan-to a mãe trabalhava fora. Desta forma, as aulas de culinária lhe agradam muito. Mais que isso, só nas aulas de informática, que é seu grande sonho fazer facul-dade de sistemas de informação.

Na escola, assim como em todos os lugares, Mauricio é sempre muito bem tratado. Tem amizade com todo mundo e cla-ro a identificação é muito maior quando está em um lugar onde as pessoas querem e lutam pelo mesmo ideal.

Livre das piadinhas da infân-cia nos anos primários, por causa de seus óculos fundo de garrafa, Maurício encontrou na ACIC (Associação Catarinense para Integração do Cego), o lugar para realizar todos seus sonhos e apoio para atividades que an-tes ele nem pensava em realizar. Romper medos e vergonha e en-carar o mundo com sentidos que lhe é permitido. E se depender dele, a vida será longa e reple-ta destas realizações. Esportes, lazer, culinária e muito mais. Maurício diz que as pessoas com deficiência são chamadas de es-peciais. Para ele, especiais são as pessoas que ensinam e ajudam a ele e a muitos outros a terem uma vida melhor.

Já é noite e Maurício está de volta em casa, acende a luz para iluminar o apartamento que ele nunca viu, liga o rádio já sinto-nizado na Jovem Pan, faz café, senta-se perto da janela, relaxa e me pergunta:

– Então, como foi passar o dia com um cego?

– Respirei e disse: Nunca foi tão normal...

"Quero ter vida própria e não depender de ninguém. Estou aqui em Florianópolis para isso mesmo."

sxc.hu

sxc.hu

Pitter [email protected]

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Amor que sustenta a vida

Em meio ao cotidiano movi-mentado e com o tempo cada vez mais escasso, muita gente ainda arruma um momento para fazer o “bem”. Atualmente, são várias pessoas que dedicam parte do dia para ajudar os mais necessi-tados.

Em Balneário Camboriú, uma entidade trabalha há cerca de dois anos dando assistência, inclusive financeira, para pesso-as portadoras de doenças dege-nerativas, já que essas famílias precisam dos mais variados tipos de apoio.

A primeira impressão sobre o Centro de Solidariedade, a sala comercial localizada na Avenida Central de número 46, engana. Da entrada discreta e de leve escondida pelo hall e pela de-coração, até o próprio espaço da sala, pouco poderia se imaginar sobre a riqueza que este lugar abriga. No entanto, este espa-ço, primariamente um escritório, está abrigando a FACDD –Fa-mílias Carentes e Portadoras de Doenças Degenerativas. Uma organização não governamental, sem fins lucrativos, cujo foco de atuação está centrado no desen-volvimento sócio-humano.

O objetivo do centro é auxiliar e reduzir o enorme desequilíbrio social de pessoas com situação de vulnerabilidade econômica e exclusão social, oferecendo a essas famílias com o problema, uma melhor qualidade de vida.

Nascida de dois sonhadores, aparentemente diferentes, mas, com muita determinação e espe-ranças. Duas pessoas que acre-ditaram no futuro, e hoje tocam a história de muitas famílias do

Vale do Itajaí. A ONG, situada em Balneário Camboriú, com apenas dois anos de existência é proveniente de muita coragem da parte da hoje diretora Cleuza Geremias, e do jovem Fernando Fernandes Faria.

Tocados pelo descaso da so-ciedade, os dois idealizadores resolveram fazer a diferença. A luta por um futuro melhor lhes rendeu muitas horas de sono perdido, mas ressurgiu dentro de tanta incerteza uma ideia fixa que hoje se tornou totalmente concreta.

Esta ONG é apenas um exemplo de tantas que já torna-ram realidade uma vida melhor. Uma chance para aqueles que já não viam nem a luz no fim do túnel, a chance de reconstruir o mundo lentamente com dignida-de e respeito.

Um dos casos mais recentes é de dona Orlanda de Lima dos Santos, que tem diabetes. Há poucos meses a paciente teve que amputar o pé esquerdo, por conta de uma ferida que não ci-catrizava.

De acordo com o tesoureiro da entidade, Fernando Fernan-des Farias, a mulher recebe um salário mínimo por mês, do siste-ma público de saúde. Suas des-pesas são inúmeras, aí entra em cena a instituição, que contribui com fraldas geriátricas e ali-mentação especial. “A ONG en-tra auxiliando na alimentação e com fraldas geriátricas, além de complementos alimentares que hoje são o nosso grande foco, ajudar essas pessoas aqui dentro da entidade.”

A ONG contribui para a me-lhora da qualidade de vida de pessoas carentes portadoras de doenças degenerativas como o câncer, HIV, vitimados por se-quelas psicológicas e motoras.

Através da assistência de au-xílios materiais, orientações, apoio e acompanhamentos.

Um dos recursos utilizados pela FACDD é o telemarketing. Uma mulher com voz simpática telefona para as residências de Balneário Camboriú e região, explicando a importância das doações. Todo mês é utilizado um caso como referência. Mui-tas pessoas contribuem men-salmente, uma moto da própria FACDD passa nas casas para recolher o dinheiro. Em troca, o doador recebe um folder de agradecimento.

Além disso, há algumas cam-panhas em que as pessoas po-dem se envolver para colaborar com a iniciativa, ajudando com alimentos ou contribuindo com valores em dinheiro ou o que tiver para oferecer. No mês de junho de 2010 a entidade con-seguiu fazer uma doação de um computador e impressora para o pequeno Vitor Iago Moreira. O menino se mostrou muito apto a aprender, se destaca na escola como um bom aluno. A ONG re-solveu incentivar seus estudos, doando o computador para com-plementar o seu conhecimento.

Fernando Farias argumenta que as dificuldades são imen-sas, ainda mais quando se tra-ta do contexto que a nossa so-ciedade esta inserida: “muitas ONGs são taxadas como sendo uma lavagem de dinheiro”, ex-plica. Na instituição não é isso que foi evidenciado, na própria sala apertada é encontrada di-versos tipos de materiais para doação, como fraldas e suple-mentos alimentares, amontoa-dos em uma prateleira estreita, são de diversos tipos e cada um com um valor especifico. “Se todo mundo der a mão, agente vai para frente”.

Leilane [email protected]

Centro de solidariedade em Balneário Camboriú apoia famílias carentes e portadoras de doenças degenerativas

Fotos: Leilane Delazere

Para quem quiser ajudar

Avenida Central, nº46, Sala 08 (dentro da galeria do edifício Imperador) – Centro – Balneário Camboriú.

Fone:/Fax: (47)3363-6488

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Amor que sustenta a vida

À margem Oeste da BR -101 há um lado despercebido pelos visitantes fascinados no comér-cio e praias do mais famoso polo turístico do litoral catarinense. Local de moradias modestas e enfileiradas de ar interiorano preservado. Um curso desértico. Movimentado unicamente nos horários de entrada e saída do campus universitário. Abaixo da Quinta Avenida, onde os cami-nhos acabam e o Rio Camboriú estende seu braço por entre as residências, eleva-se uma cons-trução emissora de sons pecu-liares sob o manto negro do céu, enquanto a lua se incumbe de distribuir pontos prateados para decorar a abóboda enegrecida. Apenas algumas nuvens fazem sombra ao clarão do astro notur-no indicando a frieza da noite.

Os carros passam lentamen-te nas ruas de calçamento desi-guais, iluminando com seus fa-róis as vielas de pouca claridade. No pouco asfaltamento regular, um chão rabiscado com giz, de-senhos de traço infantil constru-íram os blocos enumerados da amarelinha e as demarcações das traves de futebol em grafa-dos ainda recentes.

Cenas prosaicas de viventes desgarrados do movimento, ca-sais que desembarcam dos car-ros e caminham despreocupados pelo meio da rua, ao tilintar dos saltos das madames a bater no asfalto de sinalização apagada e de postes fincados apenas a um lado da rua. A avenida pare-ce miúda diante das conduções nada carentes do público, o es-tacionamento de ambos os lados preenche a extensão de três qua-dras. Mesmo de longe é possível ouvir o rufar dos tambores.

Entre sete ruas paralelas, atrás de um Pé de Chorão com galhos rastejantes, em um ter-reno triangular, o casarão azul

e branco de paredes decoradas com pedras de água doce, arre-dondadas e lisas pelos anos in-contáveis aos quais ficaram ex-postas sob líquido corrente. Os adornos metálicos nas portas de vidro chanfrado desenham sím-bolos de um reino intimidante, mas mantém o tapete posto para qualquer visitante que se sinta à vontade de entrar.

Reino de Juna Bomy

Um adolescente sem nome faz sua primeira visita a casa. Deixa sua mão repousar sobre a maçaneta metálica. Parado dian-te da inscrição na placa retangu-lar “Centro Espírita de Umbanda Reino de Juna Bomy”, seu maior receio é não encontrar as respos-tas pelas quais busca. Ele pen-sa em retroceder, porém a porta abre sem seu mando e um corpo envolto em vestes brancas, dono de um sorriso de boas vindas, lhe dá espaço para passar.

– Entre, fique à vontade.As portas arredondadas o en-

golem, as paredes traduzem a cor do nada, o branco a ausência de memória, da não lembrança, a cerâmica cinza do chão dese-nha uniformemente os triângu-los sobrepostos em seus vértices. A estranha luminosidade da sala quase o cega, o som dos tam-bores ecoa, o cheiro do incenso queima suas narinas, uma ener-gia reverbera e seu corpo es-quece como classificar calor ou frio. Um misto de cantos e cores eclode.

– Nessa casa tem quatro can-tos /Cada canto tem um santo/Pai e filho, Espírito Santo/Nes-sa casa tem quatro cantos/Zum zum zum... /Olha só Jesus quem é/Eu rezo para santas almas/Ini-migo cai/Eu fico de pé/ Zum zum zum....

Os presentes estão sentados em cadeiras plásticas brancas dispostas no centro da sala. Os cavalos (médiuns) os cercam, mais do que os olhos podem contar, ‘pelo menos setenta’ são os menos graduados, todos imó-veis, de olhos vidrados no hori-zonte norte, para o oceano pin-

tado no fundo do altar. Vestidos de branco entoando cânticos ora africanos, ora em língua da pá-tria mãe, com as mãos sob a tes-ta em forma de triângulo, estão os chefes do centro: a Babá (sa-cerdotisa) Mãe Lê, e o Babalaô (sacerdote) Mestre Marne, coor-denam a gira (sessão), e os guias de luz emanam força espiritual sob o templo.

– Bem-vindos, filhos de fé! Que bons ventos os trazem até aqui. Se fores de bem que aqui permaneçam, e o mal que aqui deseja entrar Oxalá, há de nos valer e salvar! Saravá, irmãos!

Os olhos assustados do ado-lescente visualizam o que seu ceticismo não lhe permite com-preender, entretanto a angústia habitada em seu peito firma os pés no chão, abre seus olhos e sua mente para a magia da incor-poração. Mestre Marne e Mãe Lê, de olhar a esmo, peregrinam como se carregassem fardos so-bre as costas. Os cavalos, que outrora os cercavam, andam len-tamente com olhar fixo em lugar nenhum.

Mãe Lê agora se autodeno-mina Juna Bomy. Cordial, e com uma voz que não lhe pertence solicita que o público disponha-se de pé ao centro da casa, é hora da irradiação.

Em espaços calculados, cada homem, mulher e criança per-manecem de pé e olhos fecha-dos. O visitante espreita de trás de seus cílios e contempla o passe. Entidades paradas frente a cada pessoa, murmuram cânti-cos e preces em uma língua des-conhecida e a volume inaudível.

Seus olhos se fecham e o co-ração dispara. O que motiva as pessoas a buscar a Umbanda? Todos quais com suas razões, ou eles se sentem tão angustiados quanto o visitante? Vêm seja por dinheiro, amor, um casamento findo, o filho que fugiu, ou estão ali simplesmente para agrade-cer? Ele viera apenas em busca de respostas. Essa é a procura das pessoas, não? Respostas, um caminho pelo qual seguir, al-guém para dizer se está fazendo a coisa certa.

Vozes doanoitecer

Diogo Campos [email protected]

Keli [email protected]

Seus olhos se abrem, todos os pensamentos ruem e desaparecem junto a seu coração acelerado e sangue glacial. Todos tomaram seus assentos. Sozinho meio ao salão, apenas ele e uma mulher muito mais baixa de ca-belos bagunçados. Com os olhos fixos aos dele, sorriso amarelo e hálito de cachimbo ela indaga:

– “Quim é ôce?”A pergunta o pega despreparado, qualquer humano

diria “Qual é seu nome”, ao invés de “Quem é você”. Com a boca entreaberta abrigando um grito que se re-cusa a sair, olha sobre o ombro percebe todos sentados a lhe observar, pensa em fugir. Entretanto não havia essa opção.

– “Ocê não visita mia casa, ôce num é daqui. O qui ocê faz aqui? Ôce inda tem grandis feito pra fazê. Tu’alma tá clara i pura, só pricisa aceita teu distino. Vai im paiz meu irmão.”

Juna Bomy, sob trejeitos de Mãe Lê o abraça, sor-ridente dá-lhe as costas retorna até seu altar, senta-se, chama um cavalo para novamente acender seu cachim-bo, novas guias (cordões de proteção) são trazidas e co-locadas envolta de seu pescoço, tal como o manto de linho azul escuro.

O jovem sem nome ruma em direção à saída, junto aos demais que não agendaram horário com Mãe Lê. Antes de seus pés cruzarem a porta ele olha para a mais graduada entidade do centro, seus olhares se encon-tram e ela sorridente lhe abana, antes de soltar uma profunda baforada de fumaça do cachimbo.

“Quim é ocê?”

Fotos: Divulgação

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“Abandonar ou maltratar ani-mais é crime, pena de 3 meses a 1 ano de detenção e multa – (Lei 9.605/98) – Proibido abandonar animais.” Essa é a frase expos-ta ao lado da casa que serve de abrigo para centenas de animais no bairro de Meia-Praia, em Ita-pema. A residência pertence a Roseli Fátima Perozzo, atual presidente de uma ONG de ani-mais da cidade. A ONG intitu-lada Associação Educacional do Bem Estar Animal de Itapema é popularmente conhecida como “Amigo Bicho” e foi fundada em julho de 2005.

Como o próprio nome diz é uma entidade com fim educa-cional, que por problemas eco-nômicos e por falta de apoio de órgãos públicos caiu no descaso total e sequer conseguiu uma sede própria. “Daí as pessoas acham que ONG é pra recolher e tratar animais, não entendem o seu verdadeiro fim”, diz a atu-al presidente, enquanto faz uma breve apresentação do trabalho exercido por ela e por outras oito pessoas, ainda em frente ao portão da residência. Onde o cheiro, imaginem, é comple-

Amor por animais faz razão ser esquecida

Alexssandra [email protected]

tamente insuportável, já que a casa onde os mais de 100 gatos e 20 cães estão abrigados não tem estrutura para tantos animais.

A casa é bege com as aber-turas em marron. Dois pisos e cercada por uma calçadinha de dois metros de largura, mais ou menos, nesta calçada, na lateral da casa onde avistei a faixa e por onde fui convidada a entrar tem pelo menos cinco cães, e o fedor faz arder o nariz de quem passa inclusive do outro lado da rua. É um cheiro de fezes, urina e vômi-to animal, misturado com ração, mofo e produtos de limpeza mal utilizados. A próxima parte da casa que é possível ver é o que creio eu tenha sido uma gara-gem algum dia. Nela você pode encontrar caixas de papelão, pe-daços de pano, madeira, arames (que separam os cães com al-guma deficiência), gaiolas onde são colocados os que ainda não foram castrados e estão no cio, e no mínimo dois tipos de animais, sendo cães e pássaros.

O espaço é pequeno e não tem a menor presença de luz a não ser a abertura por onde se entra. Os animais estão todos presos e têm para cada um, uma casinha ou cama, um pote com ração e um com água. Todos es-tes “pertences” de cada bicho estão sob uma camada de jornal

que serve para que façam suas necessidades. O que quer dizer que se eles fizerem xixi ou cocô ali, estarão quase contaminando seu próprio alimento. Tenho que ressaltar que pelo menos os poti-nhos de ração e água estão sem-pre muito cheios.

O mau cheiro se dá é óbvio pela quantidade de animais abri-gados num espeço tão pequeno. E, claro, pelo fato de que as pes-soas que fazem parte da ONG, não podem passar o dia todo no local higienizando e alimentan-do os animais. Para esse traba-lho a ONG conta com a ajuda da irmã de Roseli, que é a única pessoa que ainda mora na casa, já que devido ao grande número de animais os proprietários tive-ram que deixar o local.

A parte de dentro da casa é habitada apenas por gatos. Gra-des e pequenos cercados trancam todas as saídas da casa para evi-tar que os gatos fujam e acabem brigando com os cães que ficam do lado de fora da residência. O primeiro cômodo ao qual eu fui apresentada foi a cozinha, onde eu pude ver no mínimo sete ga-tos de várias cores e tamanhos. Eles estavam por todo o lado, em cima da mesa, da geladeira, dos balcões, da caixa de remédios e ao lado dos panos de prato. Além ainda de seus potinhos de comi-

da estarem em lugares como no pé da mesa, ou grudados na por-ta da geladeira.

Mais adiante a sala, com um sofá marrom barro, uma mesa re-donda no canto, várias caixas de papelão e muitos tapetes e panos espalhados, uma velha estante e claro, gatos por todos os lados. Alguns dos gatos ali já tiveram gripe e têm deficiências percep-tíveis à primeira olhada. Segun-do Roseli é por isso que quando vão para as feirinhas, que ela mesmo organiza a cada quinze dias no centro da cidade, eles não são adotados por ninguém. No fim da sala tem algumas ja-nelas, fechadas é claro, e uma escada, que quanto mais perto você chega, mais forte o cheiro fica.

Na escada você encontra desde teias de aranha até ração, fezes, vômito, entre outras sujei-ras que auxiliam no forte odor do ambiente. No último degrau da escada há um canto, nele uma caixa com um ventilador e um travesseiro, onde por sinal tem um gato branco deitado com o rosto todo sujo. Entrando no cor-redor, à esquerda tem um quarto, que antigamente era do casal de proprietários da casa e que hoje é deles, dos gatos. Neste cômo-do há pelo menos um 20 felinos distribuídos em cima da cama,

na sacada, no parapeito da ja-nela, numa espécie de beliche para animais, debaixo da cama, em frente ao velho guarda-rou-pa que hoje tem um aspecto de móvel das trevas e por todos os lugares que você possa imagi-nar em que caiba um animal. Em frente ao roupeiro também é possível encontrar os potinhos de água e comida dos bichanos que abrigam esse andar da casa, e do lado de cada um, muita ra-ção e água espalhada.

Claro que além destes bichos todos, ainda podemos encontrar vários parasitas devido às condi-ções de higiene as quais a casa é exposta. Quando perguntada se não é exagero manter todos estes bichos dentro de casa, ela concorda, mas diz que não vê outra solução. Roseli diz que a ajuda que recebe da prefeitu-ra municipal é muito pequena, afinal eles doam para a ONG apenas remédio humano e ra-ção para gatos, o restante das despesas quem banca é seu ma-rido.

Todos os integrantes da ONG têm o foco direcionado para dois objetivos principais, que são uma sede decente para os ani-mais e um serviço veterinário de castração em massa adequado para manter a saúde dos ani-mais e evitar a reprodução.

Numa casa bege habitam centenas de animais e gatos, numa situação que misturas mau cheiro e falta de higiene

Alexssandra Mezzomo

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A comemoração de uma guerra perdida

Thayse Gioppo [email protected]

Peões circulam, pessoas to-mam chimarrão, um galpão está montado e uma música sulina, agitada, é escutada com entu-siasmo. Essa foi a (mal)dita Se-mana Farroupilha no shopping Atlântico de Balneário Camboriú, glorificada no RS e disseminada por muitos em outros estados. O espaço central do shopping exi-biu por uma semana aspectos da cultura gaúcha. Quando isso acontece com a cultura local, por exemplo, catarinense?

A “Revolução Farroupilha” ganhou destaque nacional este ano por ficar em primeiro lugar no Trend Topics, da rede social Twitter, brasileiro e mundial. O mesmo não aconteceu com o Sete de Setembro. Trata-se de um fenômeno curioso o povo gaúcho (des)valorizar tanto sua cultura ao ponto de comemorar uma guerra perdida.

Bento Gonçalves um herói ladrão, negros vendidos para pagar despesas de um conflito interno e farrapos que visavam interesses da monarquia. Esses são alguns dos fatos apontados por pesquisadores como a reali-dade da Revolução Farroupilha. Grêmios estudantis, em Porto Alegre, teriam reinventado os acontecimentos para criar a “tra-dição gaúcha”. A disputa por quem fala a verdade causa há anos conflitos entre pesquisado-res e tradicionalistas.

Natural de Passo Fundo/RS, João Carlos Solanha, 65, veio para Santa Catarina quando ti-nha apenas oito anos. Durante muito tempo em que morou no Oeste vivenciou de perto a “tra-dição” de seu povo cultivada pelos catarinenses, pois, mes-mo não sendo gaúchos faziam missas campeiras, participavam dos CTGs e comemoravam a Se-mana Farroupilha. Porém, João Carlos ama história e intrigado foi por conta própria atrás das verdadeiras histórias e descobriu algo bem diferente. Os farrapos

Vivian [email protected]

Pesquisas desmitificam o 20 de setembro e revelam um Rio Grande do Sul que reinventou tradições

perderam, e ao invés de um tra-tado de paz, líderes como Bento Gonçalves foram indenizados pelo império.

Uma história e “tradição” foram amplamente eternizadas tanto que migrou para SC. “Pelo que estudei foi uma figura in-ventada. Mas o que não se pode negar é que foi uma figura que deu certo e eles conseguiram achar a melhor forma, tanto que até hoje essa história "inven-tada" é ensinada nas escolas. Várias histórias são enfeitadas, desde a independência do Bra-sil à própria Guerra Mundial. Será difícil retirar uma tradição tão forte como essa de um Esta-do como o RS. Portanto, o jeito é nós sabermos e deixar que eles comemorem".

O sanfoneiro catarinense Moacir Cardoso não busca con-testar a história. Cresceu em meio a CTGs e música, e mon-tou um grupo de músicas tradi-cionalistas, Os Fandangos. Ele tenta manter a “tradição gaú-cha”, porém mora em Caçador, no Oeste de Santa Catarina. Ri quando perguntado se consi-dera gaúcho, e afirma que não. “Sou catarinense, porém como o meu povo não tem uma tradição assim como o gaúcho, resolvi se-guir. Para mim é uma distração e algo de que gosto muito, senão não estaria há anos "fandangue-ando" por aí”. A família segue a “tradição” e assegura que a co-memoração não é por uma luta perdida, mas sim pela intenção de se conquistar algo.

Na internet há três anos circula um Manifesto Contra o Tradicionalismo feito por histo-riadores, pedagogos e jornalis-tas como Tau Golin, que possui vários livros com essa temática. O professor universitário expli-ca fatos como a bombacha ser uma peça do exército turco ven-dida ao Brasil, e o chimarrão um costume dos índios guaranis. A própria palavra gaúcho era uma ofensa no RS antigo.

No livro “Identidades” Go-lin esclarece “historicamente, a sociedade de tipo tradicional nunca existiu no Rio Grande do Sul. Desde a sua origem ocupa-cional organizada pelo Estado Colonial Absolutista no século XVIII, na região sulina foi im-

plantada uma sociedade de clas-ses de tipo escravista alicerçada na propriedade privada”. Não há uma sociedade historicamen-te tradicional e sim conservado-ra.

Os elementos adaptados pelo viés da indústria cultural for-mam a “cultura gaúcha”, uma vez que “...o tradicionalismo é uma extensão da cultura de massa, e não o prolongamento de uma sociedade tradicional”, explica o escritor.

Livro devenda a vida dos negros no conflito gaucho e critica a criação errônea de heróis dos

pampas

Recentemente o professor, jornalista e historiador Juremir Machado da Silva lançou o livro a "História regional da infâmia – o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras". Segundo o site da L&PM Edi-tores dez pesquisadores estu-daram 15 mil documentos para produção da obra. São revelados dados como o números de mor-tos, cerca de 3 mil, durante dez anos (1835-1845) de guerra. Isso comprova como o conflito não teve a imensidão aclamada.

No site do Correio do Povo, Jornal de RS, em que Juremir Machado mantém uma coluna, esclareceu: “Posso garantir que é a mais completa história con-temporânea de que como se pro-duziu o mito farroupilha. Mostra que a revolução farroupilha foi um movimento de proprietários que agia como se fosse um MST da época. Ou como as Farc. In-vadia, desapropriava, matava, degolava, saqueava e fazia suas próprias leis”. A venda de ne-gros para financiar o movimen-to, considerado abolicionista, é outra revelação.

Devido à polêmica o profes-sor universitário recebeu ame-aças. Em seu twitter comentou “Um farroupilha ligou para di-zer que, se me encontrar na rua, vai me capar. Outro ligou para avisar que vai me processar... Uma entidade poderosa pen-sou em usar dois advogados cri-minalistas para me acionar...”. Com poucos dias de lançamen-to, o livro promete causar muito debate.

Monumento em homenagem ao General Bento Gonçalves, fixado na Praça Piratini, em Porto Alegre. A estátua feita por Antônio Caringi foi inaugurada no dia 15 de janeiro de 1936, durante as comemorações do centenário da Revolução Farroupilha.

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Quando alguém se prepara para revelar uma foto, não espe-ra encontrar algo além do que a própria pose, ou um gesto. Des-sa vez foi diferente. No lugar de olhos vermelhos havia uma mancha branca no olhar.

Em uma noite de outubro de 2005 a família de Isadora se reu-niu para tirar algumas fotos da recém nascida Eduarda. Maíra, amiga de longa data, resolveu aproveitar a ocasião para testar a câmera digital nova.

No dia seguinte, Maíra bai-xou as imagens para o com-putador. E daí veio o espanto. Em muitas fotos apareceu um reflexo branco no olho direito da pequena Duda. Preocupada, Maíra ligou para Helena, irmã de Isadora. Embora houvesse o espanto da suspeita de uma do-ença grave, não há como negar a maneira peculiar das mulheres espalharem uma notícia, seja ela boa ou ruim.

E assim, depois que Helena desligou o telefone logo telefo-nou para sua irmã, que acabou ligando para sua mãe. Esta por sua vez falou para uma tia dis-tante, e a notícia foi correndo. Apesar da gravidade da situação ninguém queria contar para Isa-dora, mesmo sabendo que deve-riam fazê-lo o quanto antes.

Esse foi um momento delica-do, e mais do que nunca o horá-rio nobre brasileiro influenciou a vida de família brasileira. Como boas telespectadoras da nove-la das oito, algumas mulheres da família já tinham assistido durante os comerciais uma pro-paganda onde a atriz Ana Pau-la Arosio explicava o assunto.

Além disso, as mais jovens foram procurar o assunto na internet e acabaram confirmando o diag-nóstico da doença. Não tem jeito, todo mundo se acha um pouco de médico e agora pensa que o Google é uma forma de consulta bem mais barata.

Mas agora, como resolver o problema? O jeito foi insis-tir com Dora assistir a novela. Após planejarem, e esquemati-zarem tudo, o inevitável acon-teceu. Claro que isso não tem o momento certo, afinal, ninguém quer descobrir uma doença como essa em uma criança de um mês de vida. É de cortar o coração...

Em trinta segundos, muita coisa mudou...

“O olho de uma criança pode dizer muita coisa. Quando está triste. Assustada. Ou quando ela está com sono. O olho de uma criança pode dizer muitas coisas — dispara o flash — inclusive quando ela tem câncer. Fotografe seu filho com flash. Se você no-tar qualquer diferença nos olhos, procure um médico. Quanto an-tes o tumor for detectado, mais chance tem de ser curado”.

... começou a surgir uma in-quietação.

— Então, Dora, nós estamos achando que a Duda pode ter essa doença — falou Helena, com todo cuidado, ao entregar as fotos nas mãos de Dora.

Isadora não teve palavras para dizer o que sentia. Olhou as fotos uma por uma. Várias vezes. E não havia dúvida, precisava procurar um médico.

Foi ao pediatra no dia seguin-te. Estava angustiada: “Será que o médico vai saber diagnosticar isso? E se ele não souber? E se souber e não quiser me contar? ” — pensou. Infelizmente estava certa. O pediatra não quis con-firmar o diagnóstico, preferiu encaminhá-las para um oftalmo-logista em Joinville.

A tensão continuou. Após muitos exames, o oftalmologista diagnosticou que essa mancha

branca era um tipo de câncer na retina chamado de retino-blastoma. Ele se manifesta em crianças de 0 a 4 anos, se desco-berto cedo tem tratamento e pos-sibilidade de cura. Pode às vezes comprometer a visão da criança e até mesmo levar a perda de um olho. Mas quando pensamos em câncer, a primeira coisa que vem a mente é a morte, já que é uma doença que é fatal.

“Meu mundo caiu. Minhas pernas tremeram. Parecia que naquele momento o mundo in-teiro havia parado. Não sabia o que fazer” — de repente Duda chorou no seu colo. Nesse mo-mento, Dora voltou à realidade.

A partir daí começou a luta. Todo mês ela passou a levar Edu-arda para São Paulo. Primeiro a cada quinze dias. Depois uma vez por mês. A cada dois meses. De seis em seis meses. Eduarda respondia muito bem ao trata-mento. Apesar da quimioterapia continuou com seu lindo cabelo loiro. Nenhum fio foi perdido.

Assim ela foi crescendo. De-pois de oito meses finalmente uma boa notícia: Duda estava com o olhinho direito curado. O “bom” desse tipo de câncer é que não ramifica para outros ór-gãos, isso foi algo que deu muita força para a família durante esse período.

“Uma certeza eu tenho: sei que é preciso viver o hoje. Viver amanhã pode ser muito tarde!” — esse era o pensamento de Dora durante todo o tratamento de Eduarda. Assim ela foi apro-veitando cada momento com a filha, mesmo durante o trata-mento e nos dias em que nada parecia melhorar. Isso serve de lição para muita gente, volta e meia ouvimos alguém dizer que as coisas podem ficar piores. E quase ficou. Entre uma viagem e outra, Dora descobriu que es-tava grávida do seu segundo fi-lho, José Vicente. Ela teve muito medo.

Katiana Deggau [email protected]

Natália Alcâ[email protected]

Zé nasceu saudável, não tem retinoblastoma. Eduarda está bem, mas infelizmente o câncer voltou quando estava com um ano e um mês, e foi preciso remover o seu olho di-reito. Hoje usa prótese. O olho esquerdo não enxerga muito bem, tem só 60% da visão. Na escola ela senta na primeira carteira, apesar de usar ócu-los para estudar. Gosta de ler e escrever. Brinca com as outras crianças, nem dá pra perceber sua prótese. Mas o que fica visível é sua alegria. Como qualquer criança gosta de ir à praia, brincar com o irmãozi-nho, assistir televisão.

— Gosto muito de ler, mas tenho que ter um pouco de paciência. Sei que meu olho é especial. Na escola quan-do não enxergo alguma coisa paro de escrever, vou até o quadro e volto — ri Eduarda, enquanto folheia as páginas de um livro.

— A minha maior dor é saber que quando ela crescer, se quiser ter um filho, é qua-se certo que terá a mesma do-ença. Mas não fico triste, vou deixar que ela decida. O que realmente importa é que a his-tória da minha filha pode ser resumida em uma palavra: su-peração — conta Isadora Sch-mitt, professora, mãe de dois filhos e guerreira.

É difícil ser exposto a uma situação como essa e não se sentir agradecido a Deus, a uma espécie de providência divina, uma força ou qualquer coisa. E às vezes a situação nem precisa ser tão grave, bas-ta um dia que tudo deu errado, uma gripe mais forte, um em-prego negado. Qualquer coisa que foge do comum ou que não estava nos planos gera infelicidade. Mas o importan-te é saber que de alguma for-ma, podemos ajudar a salvar alguém. Seja de uma doença ou de alguma dificuldade na vida. Nos olhos da pequena Eduarda que conseguimos en-xergar melhor essa esperança de um futuro melhor.

Uma foto, um reflexo branco e uma grande lutaRetinoblastoma é uma doença rara, que tem tratamento se identificada cedo, mas muda a vida dos envolvidos

Fotos: Katiana Deggau

Exemplo de superação

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“Sente-se, tome um café. Esboce um sorriso natural. Verá que o Tempo é só uma questão de tempo”. Esse é o espírito da-queles que sentam ao redor da Lagoa para apreciar um café, com uma expressão amena e um andar leve, porém com es-tilo e tom de voz distintos. Faz 19 graus na Lagoa da Concei-ção, em Florianópolis, e apesar do vento sem trégua, o sol forte queima ligeiro. Ali é ponto de encontro de jovens, surfistas, ar-tistas, músicos, nativos, pessoas comuns, e não tão comuns as-sim. O centrinho da Lagoa é pe-queno, em menos de meia hora dá para, caminhando, conhecer todo o local. Conhecer não, ver. Para conhecer, é preciso conver-sar com o lugar, entrar no clima, sintonizar-se com o ambiente. E é justamente isso que eu fui fa-zer lá.

“Mas você é jornalista?”, perguntou Dona Maria Verôni-ca. Eu disse que estava estudan-do para me tornar um. Depois de me abordar para oferecer seus trabalhos com rendas, o papo foi fluindo e ela então fez a per-gunta. “Anota uma coisa aí, meu filho, pode anotar”, continuou ela, “meu pai é pescador, e você deve estar sabendo da baleia en-calhada lá naquela praia, como é mesmo o nome? Então, ele sem-pre dizia que baleia na praia é sinal de tempo ruim. Mas não só enchente ou seca, pode ser sinal de qualquer desastre”. Dona Maria mora na Lagoa da Conceição há 56 anos, e mesmo com uma expressão aflita, ela se diz feliz por ali ter educado seus filhos e encontrado um trabalho prazeroso e digno. Despedi-me

dela quando seu sobrinho a cha-mou para avisar que estava sain-do para a escola.

Durante uma caminhada pelo centrinho, como é chama-da a região mais movimenta-da da Lagoa, dá pra encontrar estranhezas de todo o tipo. Um flanelinha com a perna esquer-da engessada, trabalhando de muletas. Jeans rasgados, meias por cima das calças. Gente ca-minhando e falando muito alto, consigo mesmas. Outros com o guarda-chuva aberto, para se proteger da ventania, ou do sol, não sei. Na Lagoa da Con-ceição, a lei é se sentir bem. É o que o ambiente e o visual su-gerem. Esse lugarzinho perdido no meio das 42 praias da Ilha de Santa Catarina parece um cená-rio montado, onde tudo é bonito e estiloso. Há uma combinação perfeita entre os pubs rústicos que vendem chope irlandês e os bistrôs mais sofisticados, das tortas de nozes e das cartas de vinhos importados.

Atrás do prédio antigo amare-lo claro, onde é o Centro Cultu-ral Bento Silvério, fica a feirinha do centro. Beterraba, salsinha, cenoura, geleias caseiras e caldo de cana feito na hora. Um casal de turistas paulistanos, descen-dentes de japoneses, degustava a geleia de abacaxi, enquanto conversavam com um jovem na-tivo que vestia aquelas calças balão, bem largas, e camiseta bege desbotada. O moço, empol-gado e sorridente, explicava a eles como chegar à Igreja Nossa Senhora da Conceição, no alto do morro da Lagoa. A constru-ção é de 1780 e é um exemplo da arquitetura trazida pelos por-tugueses para as terras catari-nenses. Presente do imperador D. Pedro II, o sino que convoca os habitantes da antiga Fregue-

sia da Lagoa para a missa de do-mingo, ainda está lá.

A Lagoa da Conceição é uma cidade à parte. Tem supermer-cados, cabeleireiros, bancos, casas de tatuagem, chaveiro, loja de alimentos orgânicos, pet shops, câmbio. Fábio Burgaten é dono de uma banca de revis-tas, que também vende picolés e sorvetes. No fluxo contrário da maioria dos jovens, Fábio, com 19 anos na época, deixou a fa-mília na caótica capital carioca e veio morar na Lagoa. Amante dos livros, ele explicou o motivo: queria um lugar inspirador, onde pudesse viver e, de fato, extrair o que há de melhor nessa viagem tão curta, a vida. Palavras dele. O desenho que fazia com spray na lateral de madeira da ban-ca retratava seu talento para as artes abstratas. As várias letras entrelaçadas, pintadas de azul turquesa, lilás e rosa, não forma-vam nenhuma palavra, mas com certeza, na cabeça de Fábio, fa-ziam todo o sentido.

O vento começa a perder for-ça ao mesmo tempo em que o sol se despede da Lagoa. Na Aveni-da das Rendeiras, as mulheres começam a organizar todo o ar-tesanato em mochilas enormes. Nessa hora, umas falam sobre a programação para a noite, e ou-tras reclamam do vento. Para os músicos que cantam ao vivo nos bares, o dia está só começando. O observador inquieto dá lugar agora ao turista cansado e fa-minto. São oito horas da noite, e meu ensaio naquele lugar acaba com um jantar com amigos num restaurante mexicano. Na saída da Lagoa da Conceição, nenhum típico sinal dizendo “Volte Sem-pre”. Nem precisaria a formali-dade, pois as agradáveis lem-branças dali já são um convite ao retorno.

Daniel Ricci [email protected]

De boa na lagoa

Lugar para conversar, pensar, badalar e comer bem. A Lagoa da Conceição é um lugar que inspira.

Fotos: Daniel Ricci

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Mente ocupada resulta em novas oportunidadesAlém de manter os jovens na sala de aula, convênios garantem o primeiro emprego com qualificação

Katiana [email protected]

A Combemi Comissão do bem estar do menor de Itajaí, é uma instituição que busca con-tribuir para a melhoria da qua-lidade de vida dos adolescentes e jovens do municipio de Itajaí. Tem sua sede Administrativa, que define a parte teórica, como serão aplicadas os ensinamen-tos na rua Benjamin Franklin Pereira , 127, bairro São Jõao e o Núcleo Profissonalizante que conduz a prática, com as aulas, fica na rua Antônio Adão Dias, 135, bairro São Judas. Nesse endereço estão há um ano, sen-do que a primeira turma se for-mou em junho de 2010.

Atende jovens de 12 a 18 anos e tem como critério de seleção adolescentes que estu-dam em escolas públicas, que residam no minimo doze meses na cidade. Aline Ricardo Seu-bert, auxiliar de coordenaçao da Combemi, nos conta que alguns jovens que possuem bolsas in-tegrais também são aceitos na instituição. Todos os curso ofe-recidos não possuem custos para os jovens.

Todos os jovens passam por um processo de seleção para se inscrever nos cursos, passam

por uma pedagoga, que fica res-ponsável em explicar e acompa-nhar as faltas dos adolescentes, as notas na escola e o uso de uniformes, uma psicóloga que é responsável em assistir a vida pessoal e uma assistente social que estuda a renda dos jovens e a forma como cada jovem vem e volta para a instituiçao, se precisa de ajuda para isso. Cada matrícula é assinada pelo jovem e pelo pai ou responsável.

Os cursos oferecidos são: Ro-tinas Administrativas em Gestão Portuária, Turismo e Hospitali-dade (os dois cursos mais anti-gos da instituição), Informáti-ca, Assistente Administrativo e Empreendedorismo, Programa Aprendiz Banco do Brasil, In-glês em parceria com o Fisk e curso de Musicalização. Para os jovens de 12 a 14 anos é ofere-cido o curso de musicalização com flauta e técnica vocal com a professora Hortência e violão e percussão com o professor Jai-ro. Aline nos conta que primeiro os alunos tem aulas separadas, a teoria, depois quando os pro-fessores acham que eles estão preparados juntam para fazer a prática.

Com o Fisk a Combemi tem uma parceria que possibilita jovens a estudar na escola de inglês durante um ano. E no programa Aprendiz Banco do

Brasil possibilita o jovem a opor-tunidade do primeiro emprego. Alex Monteiro da Rosa, 15 anos, relata que antes de começar a fazer o curso, ele estudava de manhã e à tarde não fazia nada proveitoso. Agora já é formado no curso de Turismo e Hospita-lidade e tem no Banco do Brasil a oportunidade do primeiro em-prego. Estuda no período da ma-nhã, a tarde trabalha no Banco do Brasil de Balneário Camboriú e continua fazendo acompanha-mento de cidadania.

Cada curso possui a duração de quinhentas horas e duram mais ou menos sete meses. To-dos possuem também a infor-mática que é generalizada e o inglês que é mais direcionado ao curso, sendo que a teoria é a mesma o que muda é o vocabu-lário.

Aline nos conta do cami-nhão da informática, a unidade móvel , que circula nos bairros da cidade e fica três meses em cada um. Tem capacidade para atender vinte adolescentes por turma chegando a formar oiten-ta jovens por bairro. O curso tem a duração de sessenta horas. Em cada bairro antes do caminhão da informática começar as aulas é feito um estudo e definido o tipo de aula que será aplicado, buscando atender a necessidade dos jovens daquela região.

Foto: Divulgação

Sxc.

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Divulgação

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Hora do show

Nos bastidores do circoO que acontece por trás das apresentações do circo-teatro Biriba, sucesso na interior catarinense

São exatamente 14h30 da terça-feira, 28, e as portas de entrada para o Teatro do Biriba estão fechadas. Instalado no bairro São Vicente, próximo da rodoviária da cidade de Itajaí, já foi palco de aplausos calo-rosos de muitos moradores da cidade. Pretos, brancos, crian-ças e velhos, dão boas risadas quando Franco Adriano Passos Rosa, o Biriba, 36, entra em cena. Porém, nessa tarde chu-vosa, cujo barulho dos pingos da água deixam a tarde ainda mais monótona, Biriba, tra-balha nos preparativos para o show que acontecerá à noite.

– Xúxu, quem mudou esse sofá do lugar? Me ajuda aqui a arrumar a cortina pra noite.

Rafael Brun, o Xúxu, de 24 anos, não é muito alto, mas é bom trabalhador. Com alicate na mão, ele regula a aparelha-gem de som que, mais à noite, terá que funcionar perfeita-mente. Nada pode dar errado na gravação do 3° DVD da tru-pe. Além disso, Xúxu vai entrar em cena junto com as outras 28 pessoas que compõem o Teatro

Sidnei de [email protected]

do Biriba. No palco, dois sofás de cor

bege dividiam espaço com os outros objetos que formariam o cenário logo à noite. Um com-pacto e moderno rack e, sobre ele, um telefone antigo e algu-mas revistas. No chão, nada mais que um simples tapete que terminaria por tornar o ambien-te mais bonito. Atrás da cortina, do lado esquerdo, uma pequena capelinha que serve como “mo-mento de oração”, como diz o palhaço. Do outro lado, o espa-ço é ocupado basicamente pela aparelhagem de som, que Xúxu tanto entende e faz as últimas regulagens.

Com martelo e prego na mão, suor na testa, Biriba continua nos últimos aparatos do palco.

– Xúxu, de quem é esse ali-cate?

– Por incrível que pareça é meu, Biriba.

– Ferramenta no circo é uma coisa complicada. Se você não cuidar, eles passam a mão e, de-pois, já era.

Embaixo do palco, algumas cadeiras pretas, aquelas usadas em lanchonetes, estão todas ali-nhadas e vazias. Lá fora, aproxi-madamente 18 trailers abrigam o restante dos artistas.

– Como hoje é o “dia de fol- No decorrer da tarde, mais componentes do grupo foram chegando para ajudar. As horas passaram, a chuva cessou e a noite chegou na-turalmente. Por volta das 20h, o público come-çou a chegar. De um em um, outros em família, foram ocupando as cadeiras. As expectativas cresciam a cada minuto. Atrás da cortina, Bi-riba já estava todo maquiado e com aquele frio na barriga de sempre

– Eu senti frio na barriga desde quando co-mecei a atuar, nos meus 18 anos, e sempre sin-to isso quando entro no palco, mas é normal. O dia que não sinto o friozinho na barriga é porque tem algo errado.

Às 20h30, horário previsto para início do espetáculo, a cortina baixou e a euforia do público foi estimulante. O palhaço entrou em cena arrancando gargalhadas da plateia.

– Pessoal, hoje o espetáculo vai funcionar um pouco diferente, porque nós estamos gra-vando nosso DVD, mas sintam-se a vontade. Outros artistas foram entrando no palco e durante as apresentações só se ouviu risos e aplausos das pessoas.

O teatro Biriba surgiu na década de 60 e se mantém vivo até hoje. A trupe já passou pela maioria das cidades do interior do estado de Santa Catarina e, já alegrou também, algumas cidades do interior de São Paulo. O grande di-ferencial do grupo é misturar técnicas circen-ses com interpretações teatrais nas apresenta-ções que fazem muito sucesso por onde a trupe passa.

ga”, todo mundo está dormindo, outros saíram. Eu tô aqui, por-que quero deixar tudo pronto para a noite e, como ainda é um pouco cedo, a maioria do pessoal tá dentro dos seus trailers.

No terreno tem um pouco de tudo: carros estacionados, varais, bi-cicletas, como em uma residência comum.

– Nós somos moder-nos. Temos ar-condicionado no trailer, parabólica, máqui-na de lavar roupas, tudo que você imaginar.

– Até Sky, né Biriba?A chuva forte e continuada

abafava, por hora, os latidos de Leôncio, o cachorro do Biriba, que se exaltou com a chegada de sua esposa.

– Minha mulher foi no mer-cado comprar algumas coisas e tirou o dia para limpar a casa.

Nesse meio tempo, chega-ram os produtores que cuidaram da gravação do DVD do grupo. Antônio, Cris e Thiago estacio-naram o veículo perto do trailer, onde Biriba está hospedado com esposa, e entraram no palco.

– E aí, Biriba, só nos prepara-tivos pra gravação do show?

– Claro, Antônio, vamos co-meçar a posicionar as câmeras?

Fotos: Divulgação

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Ensaio FotográFico

Por Rafael Huppes Piassini

Uma simples elegia

Caminhozinho por onde eu ia andandoe de repente te sumiste,

— o que seria que te aconteceu?Eu sei… o tempo… as ervas más… a vida…

Não, não foi a morte que acabou contigo:Foi a vida.

Ah, nunca a vida fez uma história mais tristeque a de um caminho que se perdeu…

Mario Quintana