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• CIÊNCIA

PSIQUIATRIA

EnzimadenunciaAlzheimerIdentificada molécula que podeservir para diagnosticar doençaanos antes de sua manifestação

SUZEL TUNES

Umaequipe da Faculdade de Me-

dicina da Universidade de SãoPaulo (FM-USP) obteve uma vi-tória importante na luta contra ogrande desafio do mal de Alzhei-

mer: compreender o mecanismo da degeneraçãocerebral'que caracteriza a doença para estabelecerum diagnóstico precoce e preciso. Wagner FaridGattaz, Cássio Bottino e Orestes Forlenza, do Ins-tituto de Psiquiatria, identificaram uma enzima- a fosfolipase A2 - que esperam poder ser umeficiente marcador biológico para a detecção pre-coce da doença ou mesmo a chave de sua cura.A partir da medição dessa enzima no sangue,eles pretendem atuar na prevenção de Alzheimervários anos antes de a doença se manifestar.

Atualmente, embora se baseie em evidênciasclínicas,o diagnóstico de Alzheimer é dado como"possível" ou "provável". Certeza mesmo, só naautópsia, quando o cérebro revela seu terrívelestado de degradação: tecido cerebral atrofiado,fibras nervosas emaranhadas, neurônios inva-didos por placas da proteína beta-amilóide. Ospesquisadores acreditam que os primeiros sin-tomas do mal de Alzheimer, normalmente sóaparentes depois dos 60 anos de idade, sejamo ponto culminante de um processo silenciosoque começa de 20 a 30 anos antes - mas podedeixar suas marcas no sangue desde o início.

PESQUISA FAPESP • fEVEREIRO DE 2002 • 49

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Gattaz examinou o sangue de idosossaudáveis e o comparou com amos-tras coletadas de pacientes de Alzheimere de transtorno cognitivo leve (TCL)- distúrbio caracterizado apenas pordeclínio de memória. Os dois gruposapresentaram diminuição dos níveisde fosfolipase A2 (ou PLA2), enzimaque atua no metabolismo dos fosfolí-pides, componentes da membrana ce-lular. Além disso, quanto mais com-prometidas as funções cerebrais,menores eram as taxas da fosfolipase.

Esquizofrenia e demência - As primei-ras hipóteses sobre a ação da fosfoli-pase no cérebro são da década de 80,quando Gattaz estava na Universida-de de Heidelberg, Alemanha, e estu-dava os mecanismos da esquizofrenia.A fosfolipase era então pouco conhe-cida.Descobriu-se que, além de ser pro-duzida como enzima digestiva pelopâncreas, está presente em todas as cé-lulas, inclusive os neurônios: "Amem-brana dos neurônios é formada poruma camada dupla de fosfolípides. Énessa camada, fronteira da célula como meio externo, que estão os neuror-receptores - responsáveis pela trans-missão de informações de um neurô-nio a outro. Alterando a composiçãodessa membrana pela ação de enzimas,você altera sua arquitetura e, conse-qüentemente, a ação dos neurorre-ceptores", explica Gattaz.

Sua hipótese inicial foi conceber aesquizofrenia como doença do pân-creas, e não do cérebro. Supôs que pu-desse ter um mecanismo semelhanteao de outros quadros neuropsiquiátri-cos, não originados primariamente docérebro, mas do metabolismo perifé-rico - como a fenilcetonúria, doençado fígado decorrente da falta de umaenzima e que leva a distúrbios da ma-turação do sistema nervoso central.Para a esquizofrenia, não se constatoufalta de fosfolipase, mas excesso.

Não demorou para que Gattaz vol-tasse a atenção para o mal de Alzheimer,por ter este uma característica oposta àesquizofrenia: é muito raro um esqui-zofrênico desenvolver esse tipo de de-mência (deterioração cerebral). Mesmoquando há déficits graves de memória

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e compreensão, os exames cerebraispost-mortem não revelam deposiçõesda proteína beta-amilóide - as placas,senis, marcas típicas de Alzheimer. Senos esquizofrênicos havia aumento dosníveis de fosfolipase, convinha verificarisso nos pacientes de Alzheimer. "Ve-rificamos que a fosfolipase A2 estavadiminuída no cérebro e a diminuiçãose relacionava com a intensidade dalesão cerebral: quanto mais baixo onível da enzima, maior a ocorrênciadas placas senis."

Foi encontrado um paralelo entre adiminuição da enzima no cérebro e nosangue: ''Avaliamos a presença de fos-folipase A2 tanto em tecido cerebralpost-mortem quanto em plaquetas. Apresença da fosfolipase no sangue per-mite fazer extrapolações para a ativi-dade no cérebro e facilita o acesso dopesquisador". Estava descoberto umpotencial marcado r biológico do malde Alzheimer.

Alelo suspeito - Não é o único marca-dor investigado.Num grupo de pacien-tes que acompanhou por quase cincoanos, Cássio Bottino testou um poten-cial marcado r genético, o alelo e4. Lo-calizado no cromossomo 19, o e4 éuma das três formas do gene que co-difica a apolipoproteína E, ou ApoE(as outras são os alelos e2 e eô). AApoE é uma proteína do plasma rela-cionada ao transporte de colesterolparao fígado, o cérebro e outros tecidos.Acontece que, segundo várias pesqui-sas, portadores do alelo e4 têm maischance de desenvolver o mal de AI-zheimer e tendem a apresentar os sin-tomas mais cedo do que os portado-ras de alelos e2 e e3.

Na tipagem para alelo e4 de 20 pa-cientes-controle (idosos saudáveis)"mais 41 doentes de Alzheimer e 21com TCL, Bottino confirmou estudos'que indicam nos idosos portadores,do alelo e4 um risco 2,4 vezes maiorpara o desenvolvimento de Alzheimer."Nos pacientes com TCL,o risco foi umpouquinho aumentado. Não atingiu.significância estatística, mas aponta 'uma tendência': revela.

Esse marcado r genético, porém,está longe de permitir um bom diag-

nóstico. "O risco estatístico - duas vezese meia - é muito pequeno se compa-rado a marcadores de outras doenças,onde você encontra um aumento de100, 1.000 vezes",ressalva Gattaz.

Neurotransmissor afetado - Já a fosfo-lipase A2 tem animado os pesquisa-dores com a perspectiva de ser mais doque um marcador, mas uma substânciaenvolvida na própria origem da doen-ça. "Para a doença de Alzheimer", dizGattaz, "tudo indica que essa enzima te-nha significado duplo: contribui tantopara a formação das placas senis quan-to para a diminuição da atividade co-linérgica - de liberação do neurotrans-missor acetilcolina"

A liberação de acetilcolina, um neu-rotransmissor fundamental para o fun-cionamento do cérebro, fica diminuí-da nos doentes de Alzheimer. Por isso,os remédios mais utilizados agem nosentido de aumentar essa liberação nocérebro. Entre eles,há substâncias pre-cursoras de acetilcolina e outras inibi-doras da acetilcolinesterase - enzimaque degrada esse neurotransmissor.São tratamentos sintomáticos, que me-lhoram a qualidade de vida de cerca de70% dos pacientes.

Acontece que a diminuição da en-zima fosfolipase A2 também prejudicaa formação da acetilcolina: ''A fosfoli-pase libera colina da membrana celularpara formar acetilcolina. Portanto, umadiminuição da atividade dessa enzimaresultaria num agravamento do déficitcolinérgico já existente na doença deAlzheimer. Esse déficit é primariaÍnen-te conseqüência da morte maciça deneurônios colinérgicos em regiões docérebro relacionadas com a memória".

Outro mecanismo que sofreria in-fluência dessa enzima é a própria for-mação das placas senis, segundo hi-pótese de Gattaz. Ele explica que aproteína beta-amilóide, que forma asplacas, é recortada de uma proteínamaior chamada PPA - proteína pre-cursora de amilóide - que fica anco-rada na membrana da célula nervosa.O metabolismo ou digestão da PPA éfeito pela enzima alfa-secretase, quenormalmente a quebra ao meio. Noentanto, a diminuição da fosfolipase

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resulta numa redução do metabolis-mo dos fosfolípides. Isso significa queocorre um aumento na quantidade defosfolípides da membrana. A altera-ção da arquitetura da membranamuda também os pontos de clivagem(quebra) da PPA. Agora, a alfa-secre-tase que a quebrava não atua mais. Elaé, então, clivada por uma beta-secre-tase e depois por uma gama-secretase,que liberará a molécula inteira dobeta-amilóide - livre, portanto, paraformar as placas.

Alvo mundial- "Seria muito otimismopensar que a fosfolipase seja a únicacausa do Alzheimer", pondera Gattaz."No entanto, por ter uma implicaçãodireta com a produção de placas senise com a neurotransmissão colinérgi-ca, talvez possamos vir a considerá-Iacomo a doença em si - da mesma for-ma que a glicose, por exemplo, não éapenas um marcador diagnóstico parao diabetes, mas a própria doença. En-tão, poderíamos desenvolver estratégiasterapêuticas alternativas, para evitar aformação das placas. Pelo menos, esseé o nosso desejo."

É um desejo compartilhado comgrupos de pesquisa de todo o mundo.Por diferentes abordagens, a formaçãodas placas de beta-amilóide é um dosalvospreferenciaisde trabalhos que bus-cam o combate ao Alzheimer na ori-gem. Já se desenvolveuaté vacina contraessa proteína. Em 1999, o laboratórioamericano Elan Pharmaceuticals criou ,uma vacina com pequenas doses sin-tetizadas de beta-amilóide. Os resul-tados preliminares foram animado-

res: em ratos, formaram-se anticor-pos contra a proteína. Pouco depois,pesquisadores da Escola de Medicinade Harvard usaram o mesmo princípiopara criar um imunizante em forma despray nasal, também testado em ratos.

Umaoutra linha da pes-

quisa mundial com abeta-amilóide segue nosentido de evitar a agre-gação da proteína. Uma

equipe dos departamentos de Bioquí-mica Médica e de Anatomia da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro,coordenada pelo bioquímico SérgioTeixeira Perreira, desenvolveu um me-dicamento à base de nitrofenóis paraimpedir a agregação da beta-arnilóideem culturas de células neuronais e emratos. O estudo foi publicado em 20de março de 2001 no Faseb [ournal,publicação da Federação das Socieda-des Americanas de Biologia Experi-mental dos Estados Unidos.

Além de investigar a origem dadoença, a pesquisa de Alzheimer nomundo busca melhores métodos dediagnóstico e novas drogas. O Institu-to de Psiquiatria da FM-USP tambéminveste nesse campo. No Laboratóriode Neurociências, coordenado porGattaz, a equipe de Orestes Forlenzafaz culturas de neurônios e testes comcobaias, que recebem substâncias parainibir ou estimular a fosfolipase. O la-boratório, inaugurado em 1999, é dosbeneficiados pelos recursos do Pro-grama de Infra-estrutura da FAPESP:bem equipado para análises neuro-químicas, de biologia molecular e de

OS PROJETOS

Metabolismo dos Fosfolípidesna Esquizofrenia e na Doençade Alzheimer

MODALIDADE

Projeto temático

COORDENADOR

WAGNER FARID GAnAZ - Faculdadede Medicina da Usp

INVESTIMENTOR$ 1.590.193,43

Demência do Tipo Alzheimer, TranstornoCognitivo Leve e EnvelhecimentoNormal: Estudo Longitudinal de AspectosClínicos, Neuropsicológicos, Genéticos,Neuroquímicos e de Neuro-imagem

MODALIDADE

Linha regular de auxílio à pesquisa

COORDENADOR

CASSIO MACHADO DE CAMPOS Bornso -FM/USP

INVESTIMENTOR$ 102.961,39 e US$ 86.119,09

genética, permite aos pesquisadoresatuar em outras frentes, como examesde neuroimagem funcional, que po-dem mostrar as regiões do cérebroonde há baixo metabolismo, e examesde ressonância magnética, nos quais sepode ver a redução de estruturas cere-brais. Bottino notou, por exemplo, quea comparação das medidas volumé-tricas da amígdala, hipocampo e giropara-hipocampal permite separar por-tadores de doença de Alzheimer leve amoderada dos saudáveis com umaprecisão de 88%.

TCL e Alzheimer - Também são pro-missores os resultados obtidos com osportadores de transtorno cognitivo leve,um distúrbio ainda pouco estudado."O TCL é diagnosticado, geralmente,em pessoas com mais de 50 anos quese queixam de problemas de memóriae apresentam piores resultados em tes-tes cognitivos, comparados aos idosossaudáveis, mas ainda não têm com-prometimento das atividades do dia-a-dia. Alguns melhoram com o passardo tempo, mas 5% a 10% evoluempara Alzheirner', revela Bottino.

Os pacientes com TCL tiveram ní-veis menores de fosfolipase A2 emrelação ao grupo controle, mas níveismaiores em relação ao grupo com Al-zheimer. Esses dados permitiram es-tabelecer um gráfico no qual o TCLocupa a porção mediana. No entanto,o grupo de TCL é muito heterogêneo:alguns tinham valores muito seme-lhantes ao da normalidade, enquantooutros beiravam os limites da demên-cia."Por isso,queremos, agora, fazer umestudo de seguimento com amostramaior. Como 10% dos portadores deTCL evoluem para demência, pre-cisamos de uma amostra com 100,150 pessoas. Assim, poderemos in-vestigar se os pacientes que se encon-tram mais para baixo no gráfico serãoaqueles que evoluirão para Alzhei-meroSeria mais um estudo confirma-tório do valor preditivo da enzima eé isso que está nos movendo agora",informa Gattaz. E resume: "Essa é amedicina do século 21. Nosso objeti-vo não é tratar ninguém, mas evitarque se fique doente". •

PESQUISA FAPESP . fEVEREIRO DE 2002 • Sl