chs 2014 - apostila de processos administrativos 2

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PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR FUNDAMENTOS TEÓRICOS

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Apostila do Curso de Habilitação de Sargentos da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo - PMES. 2014.

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  • PROCESSO ADMINISTRATIVO

    DISCIPLINAR

    FUNDAMENTOS TERICOS

  • LISTA DE SIGLAS

    CBMES Corpo de Bombeiros Militar do Esprito Santo

    CD Conselho de Disciplina

    CJ Conselho de Justificao

    CPM Cdigo Penal Militar

    CPPM Cdigo de Processo Penal Militar

    IP Inqurito Policial

    IPM Inqurito Policial Militar

    PAD Processo Administrativo Disciplinar

    PAD-RO Processo Administrativo Disciplinar de Rito Ordinrio

    PAD-RS Processo Administrativo Disciplinar de Rito Sumrio

    PMES Polcia Militar do Esprito Santo

    RDME Regulamento Disciplinar dos Militares Estaduais do Estado do Esprito

    Santo

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .................................................................. 8

    2 O PROCESSO....................................................................... 12

    2.1 HISTRICO........................................................................... 12

    2.2 CONCEITO............................................................................ 16

    2.3 FINALIDADE.......................................................................... 19

    2.4 ESPCIES............................................................................. 21

    2.4.1 Processo Legislativo........................................................................... 22

    2.4.2 Processo Judicial................................................................................ 22

    2.4.3 Processo Administrativo.................................................................... 27

    3 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR............... 35

    3.1 CONCEITO............................................................................ 35

    3.2 FINALIDADE.......................................................................... 39

    3.3 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS......................................... 42

    3.4 ESPCIES............................................................................. 49

    3.4.1 Inquisitrios......................................................................................... 50

    3.4.2 Acusatrios.......................................................................................... 53

    4 A TRANSGRESSO DISCIPLINAR..................................... 60

    4.1 ASPECTOS DEONTOLGICOS.......................................... 60

    4.2 CONCEITO............................................................................ 65

    4.3 MEIOS DE APURAO........................................................ 68

    4.3.1 O Inqurito Policial Militar.................................................................. 68

    4.3.2 A Sindicncia....................................................................................... 71

    4.4 MEIOS DE JULGAMENTO.................................................... 75

  • 4.4.1 Consideraes gerais......................................................................... 75

    4.4.2 O processo como garantia da defesa................................................ 77

    4.4.3 O Processo Administrativo Disciplinar de Rito Sumrio................ 81

    4.4.4 O Processo Administrativo Disciplinar de Rito Ordinrio............... 84

    4.4.5 O Conselho de Disciplina................................................................... 88

    4.4.6 O Conselho de Justificao............................................................... 96

    5 PRINCPIOS.......................................................................... 104

    5.1 CONSIDERAES GERAIS................................................. 104

    5.2 CONCEITO............................................................................ 105

    5.3

    PRINCPIOS POSITIVOS DO DIREITO E PRINCPIOS

    GERAIS DE DIREITO............................................................ 107

    5.4 AS TRS FASES DOS PRINCPIOS.................................... 108

    5.4.1 O jusnaturalismo................................................................................. 108

    5.4.2 O juspositivismo.................................................................................. 109

    5.4.3 O ps-positivismo............................................................................... 110

    5.5 NORMAS JURDICAS: PRINCPIOS E REGRAS................. 111

    5.6 A FUNO DESEMPENHADA PELOS PRINCPIOS.......... 112

    5.7

    PRINCPIOS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

    DISCIPLINAR........................................................................ 114

    5.7.1 Legalidade............................................................................................ 114

    5.7.2 Impessoalidade.................................................................................... 117

    5.7.3 Moralidade............................................................................................ 118

    5.7.4 Publicidade.......................................................................................... 120

    5.7.5 Eficincia.............................................................................................. 122

    5.7.6 Devido Processo Legal....................................................................... 125

  • 5.7.7 Ampla Defesa e Contraditrio............................................................ 128

    5.7.8 Motivao............................................................................................. 132

    5.7.9 Verdade Material (Formal).................................................................. 134

    5.7.10 Informalismo (Formalismo Moderado ou Instrumentalidade das

    Formas)................................................................................................ 136

    5.7.11 Oficialidade (Impulso Oficial)............................................................. 137

    5.7.12 Pluralidade de Instncias................................................................... 139

    5.7.13 Persuaso Racional (Livre Convencimento).................................... 140

    5.7.14 Imparcialidade..................................................................................... 141

    5.7.15 Igualdade.............................................................................................. 143

    6 ASPECTOS CONCLUSIVOS TERICOS............................ 145

    7 PROCESSO E PROCEDIMENTO......................................... 148

    7.1

    DENNCIA E COMUNICAO DE INFRAO

    DISCIPLINAR........................................................................ 148

    7.2 SINDICNCIA ....................................................................... 148

    7.3

    PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR DE RITO

    SUMRIO.............................................................................. 150

    7.3.1 Breves consideraes........................................................................ 150

    7.3.2 Roteiro de atividades e sequncia de peas.................................... 151

    7.3.3 Fluxograma PADRS........................................................................... 152

    7.3.4 Orientaes.......................................................................................... 153

    7.3.4.1 PORTARIA............................................................................................ 153

    7.3.4.1.1 Suspeio ou impedimento do encarregado......................................... 154

    7.3.4.1.2 Erros na portaria.................................................................................... 155

    7.3.4.1.3 Ausncia de fato na portaria.................................................................. 156

    7.3.4.2 AUTUAO........................................................................................... 158

  • 7.3.4.3 TERMO DE ABERTURA....................................................................... 159

    7.3.4.4 CITAO............................................................................................... 160

    7.3.4.5 LIBELO ACUSATRIO......................................................................... 162

    7.3.4.6 OITIVAS................................................................................................ 163

    7.3.4.6.1 Forma.................................................................................................... 163

    7.3.4.6.2 Interrogatrio......................................................................................... 165

    7.3.4.6.3 Confisso............................................................................................... 166

    7.3.4.6.4 Registro das declaraes...................................................................... 167

    7.3.4.6.5 Ordem das testemunhas....................................................................... 167

    7.3.4.6.6 Ausncia de testemunha....................................................................... 169

    7.3.4.6.7 Constrangimento da testemunha.......................................................... 170

    7.3.4.6.8 Declarao da testemunha havendo vrios acusados.......................... 170

    7.3.4.6.9 Oitiva de superior hierrquico................................................................ 171

    7.3.4.6.10 Direito ao silncio.................................................................................. 171

    7.3.4.6.11 Analfabeto............................................................................................. 172

    7.3.4.6.12 Embriaguez........................................................................................... 172

    7.3.4.6.13 Menor de 18 anos.................................................................................. 173

    7.3.4.6.14 Consulta a apontamentos...................................................................... 173

    7.3.4.6.15 Testemunha noutra localidade.............................................................. 174

    7.3.4.7 JUNTADAS............................................................................................ 174

    7.3.4.8 ACAREAO........................................................................................ 175

    7.3.4.9 APREENSO E RESTITUIO............................................................ 176

    7.3.4.10 RECONHECIMENTO............................................................................ 177

    7.3.4.11 RECONSTITUIO.............................................................................. 178

    7.3.4.12 INSPEO............................................................................................ 179

    7.3.4.13 CINCIA DOS ATOS PROCESSUAIS................................................. 180

  • 7.3.4.14 RECUSA DO ACUSADO EM RECEBER DOCUMENTOS................... 181

    7.3.4.15

    NEGATIVA DO ACUSADO EM ACOMPANHAR OS ATOS

    PROCESSUAIS .................................................................................... 182

    7.3.4.16 AUSNCIA DE ADVOGADO (DEFENSOR) ........................................ 183

    7.3.4.17 POLCIA DAS SESSES...................................................................... 183

    7.3.4.18 DENEGAO DE PEDIDOS................................................................ 184

    7.3.4.19 SISTEMA DE REPETIO DA PROVA............................................... 185

    7.3.4.20 VCIO PROCESSUAL........................................................................... 186

    7.3.4.21 EXCESSO DE PRAZO.......................................................................... 188

    7.3.4.22 DENNCIA ANNIMA.......................................................................... 189

    7.3.4.23 AFASTAMENTO MDICO DO ACUSADO........................................... 190

    7.3.4.24 OCORRNCIA DE FATO NOVO.......................................................... 192

    7.3.4.25 MOVIMENTAO DO ACUSADO........................................................ 192

    7.3.4.26 PRESCRIO....................................................................................... 193

    7.3.4.27 INDEPENDNCIA DAS INSTNCIAS PENAL E ADMINISTRATIVA... 194

    7.3.4.28 ASSENTAMENTOS FUNCIONAIS....................................................... 196

    7.3.4.29 ALEGAES FINAIS............................................................................ 196

    7.3.4.30 RELATRIO.......................................................................................... 196

    7.3.4.30.1 Noo.................................................................................................... 196

    7.3.4.30.2 Estrutura................................................................................................ 197

    7.3.4.30.3 Fato que constitua outra transgresso.................................................. 198

    7.3.4.30.4 Parecer do Encarregado....................................................................... 199

    8 CONCLUSO.................................................................................... 201

    9 REFERNCIAS ................................................................ 202

  • 8

    1 INTRODUO

    A tarefa daquele que opera o direito administrativo disciplinar, em seu aspecto

    material ou processual, no das mais simples, e se afigura muitas vezes como

    extremamente tormentosa, da porque inmeras dificuldades na produo de um

    manual. Tais dificuldades vo desde o no reconhecimento da existncia de uma

    processualstica administrativa (negada por alguns) a at mesmo a dificuldade na

    fixao de normas gerais aplicveis a esses processos. Diferentemente do que

    ocorre no campo do direito penal e do direito processual penal, em matria de

    processo administrativo escassa a produo literria, que a bem da verdade

    somente se acentuou depois da Constituio Federal de 1988.

    A primeira explicao possvel para tal fenmeno reside no fato de que antes de

    1988, em matria de processos levados a curso perante a Administrao, apenas se

    reconhecia pacificamente garantias, tais como a da ampla defesa, em processos

    que pudessem importar na perda do cargo pblico. Negava-se, ento, tal

    possibilidade nos processos destinados aplicao de sanes de menor

    gravidade, e, portanto, de cunho corretivo.

    Ocorre que de tal situao surgia, no mnimo, uma contradio: a reiterao na

    prtica de ilcitos menores podia dar azo, quando considerados conjuntamente,

    instaurao de processo destinado perda do cargo. Assim, como negar o direito de

    defesa na aplicao dessas penas menores? Como possvel que em um processo

    voltado perda do cargo o servidor possa se defender de fatos sobre os quais j foi

    punido (situados no passado), sendo que muitas vezes deles sequer se recorda, at

    porque em muitos casos inexistia processo?

    Dessa forma, a Constituio Federal de 1988 (chamada de Constituio Cidad),

    marco da passagem para o perodo democrtico, veio a corrigir esse e outros

    grandes problemas existentes no ordenamento jurdico, tanto que fez inserir

    expressamente em seu texto garantias processuais aplicveis aos processos em

    geral, inclusive aos processos administrativos disciplinares, tais como o devido

    processo legal, a ampla defesa e contraditrio, a igualdade, dentre outras.

  • 9

    Assim, as previses expressamente contidas na Constituio no deixam dvidas de

    que o Legislador Constitucional deu extrema importncia aos processos

    administrativos, em especial queles que se destinam imposio de sanes.

    Outra explicao a que se pode creditar a escassez de obras sobre o assunto diz

    com uma caracterstica intrnseca do direito disciplinar, seja ele material ou

    processual: a competncia para legislar sobre a matria, privativa de cada uma das

    Pessoas Jurdicas de Direito Pblico sobre a qual versa.

    Dessa forma, a dificuldade de se construir uma teoria aplicvel indistintamente aos

    processos administrativos em geral reside no fato de que a norma disciplinar do

    Estado x diferente da do Estado y, e pode se distinguir da do Municpio z; por

    seu turno, nenhuma delas deve obedincia s normas disciplinares (materiais ou

    processuais) relativas Unio, mas todas, inclusive esta, necessitam estar conforme

    o Texto Constitucional.

    Essa ausncia de primazia de uma norma em relao outra, decorrncia clara da

    forma como so independentes os entes que as edita, pois so entidades isnomas,

    dificulta a compreenso do tema e afasta doutrinadores, porquanto poucos se

    interessam em militar nesse campo. Quando o fazem, debruam-se sobre normas

    relativas Unio ou a Estados como So Paulo, trabalho que pouca ou nenhuma

    valia tem para os demais entes, mormente quando o estudo versar to somente

    acerca de direito material.

    Partindo do problema da ausncia de uma teoria una em matria de processo

    administrativo disciplinar, indaga-se sobre se o ordenamento jurdico permite dele

    extrair preceitos gerais aplicveis a esses diversos processos, mesmo diante da

    competncia privativa de cada uma das Pessoas Jurdicas de Direito Pblico para

    legislar sobre a matria. Vale dizer: possvel identificar no ordenamento jurdico

    princpios aplicveis aos processos administrativos disciplinares em geral?

    A fim de esclarecer tal ponto, a metodologia usada no trabalho foi realizada em trs

    planos: cotejando o Texto Constitucional a fim de identificar preceitos que sejam a

    todos aplicveis; buscando na doutrina obras que tratam do processo administrativo,

    especialmente o de cunho disciplinar; identificando pronunciamentos judiciais sobre

    o tema.

  • 10

    Durante o estudo que se faz busca-se, ao incio, compreender a fenomenologia

    processual. Para tanto, necessrio apresentar o processo em sua vertente

    histrica de instrumento destinado realizao da justia, praticamente pondo fim

    aos meios de mediao entre particulares, mecanismos quase sempre injustos.

    Reala-se, assim, o carter instrumental do processo, que tem caractersticas

    prprias de acordo com o campo material de atuao estatal.

    Posteriormente, apresenta-se o processo administrativo como uma realidade ps

    Constituio Federal de 1988, pois esta o alou ao status de garantia individual e

    coletiva, e avanou ainda mais: alm de estabelecer o processo como um direito

    inerente ao indivduo, traou inmeros preceitos de ndole constitucional que devem

    necessariamente ser observados, fazendo referncia expressa aos processos

    administrativos.

    Em seguida, embora o objetivo precpuo do estudo seja o direito processual

    disciplinar, resulta impossvel no abordar aspectos relativos ao ilcito administrativo,

    at para que assim se possa ter uma melhor compreenso da matria, porquanto o

    processo e ser instrumento destinado a operacionalizar o direito material.

    Ao tratar da transgresso disciplinar, busca-se abord-la na perspectiva da Polcia

    Militar do Esprito Santo (PMES), analisando inclusive questes de cunho

    deontolgico que envolvem o desempenho da funo policial-militar.

    Depois de traados os principais elementos que envolvem o ilcito administrativo

    disciplinar militar, passa-se anlise das ferramentas existentes na PMES

    destinadas apurao a ao julgamento das transgresses. Fala-se, assim, em

    Inqurito Policial Militar (que anomalamente indica a ocorrncia de transgresso),

    Sindicncia, Processo Administrativo Disciplinar de Rito Sumrio (PAD-RS),

    Processo Administrativo Disciplinar de Rito Ordinrio (PAD-RO), Conselho de

    Disciplina (CD) e Conselho de Justificao (CJ).

    Posteriormente, analisa-se o fenmeno dos princpios e demonstra-se a fora

    cogente que possuem, pois no se tratam de normas fluidas e destitudas de

    qualquer normatividade, mas, ao contrrio, integram, ao lado das regras, o conceito

    de norma jurdica, da porque se irradiam no processo administrativo. Assim,

    identificam-se princpios aplicveis ao processo administrativo disciplinar, extrados

    em sua maioria do texto constitucional, contribuindo sobremaneira para uma atuao

  • 11

    estatal mais clarividente em matria de processo e permitindo, seno resolver, ao

    menos minorar o problema suso mencionado relativo falta de uniformidade na

    compreenso sobre a matria.

    Depois, explana-se sobre orientaes acerca de como proceder quando da

    ocorrncia de certos incidentes durante o desenvolvimento de um processo

    disciplinar, de modo a esclarecer o posicionamento a ser adotado pelo encarregado.

    Por fim, apresentam-se modelos de diversas peas processuais e ainda pequenas

    orientaes sobre a finalidade das peas e sobre como elabor-las.

  • 12

    2 O PROCESSO

    2.1 HISTRICO

    A noo de um processo como meio necessrio soluo dos conflitos havidos no

    seio da sociedade confunde-se com a prpria histria da humanidade.

    Nesse contexto, a evoluo da sociedade foi acompanhada tambm do

    aprimoramento nos meios para a soluo dos litgios.

    Sabe-se que no passado ao particular era dado o direito satisfazer como bem lhe

    conviesse suas pretenses, por meio da autotutela (ou autodefesa).

    Conforme assinalam GRINOVER et al (2007, p.26), inexistia, em tempos remotos,

    um Estado suficientemente forte para mediar os conflitos surgidos na sociedade e,

    assim, impor o interesse coletivo ao individual. No havia, portanto, um aparato

    estatal que, com soberania e autoridade, pudesse efetivar plenamente o direito

    posto.

    Dessa forma, no restava ao particular alternativa seno valer-se de sua prpria

    fora para obter aquilo que considerava justo, seja para alcanar suas pretenses,

    seja para refutar agresses de outrem.

    Conforme bem anota ALVIM (2000, p. 10) a mais primitiva modalidade de soluo

    de conflitos entre indivduos era a autodefesa, pois no existia acima destes uma

    autoridade capaz de, a um s tempo, decidir e impor tal deciso aos contendores.

    Assim, nos primrdios da humanidade, aquele que pretendesse determinado bem da

    vida, e encontrasse obstculos a isso, no tinha alternativa seno valer-se da fora

    bruta (individualmente ou em grupo) para obt-lo (ALVIM, opus citatus, p. 11).

    A necessidade de resoluo dessas contendas surge, ento, da prpria condio

    humana, pois se de um lado o homem no pode viver seno em sociedade (FILHO,

    F., 2001, p. 1-2), de outro tal convivncia com outros indivduos terreno frtil para o

    surgimento de conflitos, contendas que necessitam ser solucionadas, seja pelos

    prprios interessados, seja por um terceiro com poderes de impor sua vontade s

  • 13

    partes. Cumpre assinalar, nesse particular, que a inexistncia de tal poder externo

    poderia levar a prpria sociedade runa, da porque a histria mostrar, no passado,

    diversos e constantes conflitos entre grupos com interesses diferentes.

    Trao marcante desse perodo inicial, no qual era dada ao particular a soluo de

    todo e qualquer litgio, corresponde autotutela, cujas caractersticas eram:

    a) a inexistncia de um juiz imparcial e distinto das partes;

    b) a imposio de uma deciso por uma das partes envolvidas (GRINOVER et

    al, opus citatus, p.27).

    No demais afirmar que os resultados obtidos com tal modalidade de soluo

    conflitos eram, no mais das vezes, extremamente injustos, porquanto o ofendido

    poderia ser, por exemplo, mais fraco que o agressor, e ainda que obtivesse xito em

    sua defesa poderia, no futuro, ser alvo de um novo e mais grave ataque (ALCAL-

    ZAMORA, 1945, p. 10, apud FILHO, F., opus citatus, p. 5).

    Paralelamente a tal hiptese de mediao de conflitos, assinalam GRINOVER et al

    (opus citatus, p.27) que os particulares se valiam ainda de outras ferramentas aptas,

    tanto quanto possvel, a solucionar os litgios. Fala-se, assim, em meios alternativos

    de resoluo, tais como autocomposio. Tal modalidade comporta, ainda segundo

    os autores citados, trs formas distintas:

    a) a desistncia, segundo a qual o interessado literalmente renuncia sua

    pretenso;

    b) a submisso, isto , a renncia resistncia oferecida pretenso;

    c) a transao, procedimento segundo o qual ambos os interessados fazem

    concesses recprocas.

    Quadra evidenciar, no entanto, que conforme nota de GRINOVER et al (opus citatus,

    p. 27) tais modalidades de mediao operadas entre os particulares tinham, no mais

    das vezes, o carter de parcialidade, pois dependiam da vontade e da atividade de

    cada um dos envolvidos.

    Ademais, de se acrescentar que outro aspecto sobre o qual no se pode olvidar

    trata-se da prpria precariedade da deciso, passvel de modificao futura pela

    simples vontade de um dos envolvidos.

  • 14

    Tambm no se pode desconsiderar o fato de que embora em princpio fosse uma

    excelente soluo, devido prpria economia quanto aos gastos, a autocomposio

    [...] no pode ser estendida generalidade dos conflitos, uma vez que, com

    frequncia, envolve uma capitulao do litigante de menor resistncia. Ademais, e

    se um dos litigantes no quisesse a composio? (FILHO, opus citatus, p. 5).

    Cumpre assinalar que os males advindos desse sistema foram pouco a pouco se

    tornando mais ntidos e incompatveis com as aspiraes de uma sociedade em

    desenvolvimento, da porque os indivduos passaram a buscar a soluo proferida

    por rbitros, ou seja, terceiros estranhos questo e sobre os quais era depositada

    a confiana mtua dos envolvidos (GRINOVER et al, opus citatus, p. 27).

    Em regra - assinalam os autores - tal misso era confiada aos sacerdotes (que

    decidiam segundo alegadas ligaes com as divindades) ou aos ancios (que

    conheciam as tradies do grupo social no qual estavam inseridos os interessados).

    A linha divisria e bastante ntida entre a autotutela e autocomposio bem

    explicitada no seguinte trecho:

    Na autotutela, aquele que impe ao adversrio uma soluo no cogita de apresentar ou pedir a declarao de existncia ou inexistncia do direito; satisfaz-se simplesmente pela fora (ou seja, realiza a sua pretenso). A autocomposio e a arbitragem, ao contrrio, limitam-se a fixar a existncia ou a inexistncia de um direito: o cumprimento da deciso. Naqueles tempos iniciais, continuava dependendo da imposio de soluo violenta e parcial (autotutela) (GRINOVER et al, opus citatus, p. 28).

    Retorna-se, assim, ao problema inicial: se a autocomposio resolvia a questo

    relacionada ao dizer o direito, ou seja, proferir deciso segundo na qual havia

    manifestao sobre o mrito da demanda formulada, faltava-lhe o carter cogente,

    capaz de obrigar a parte cujo pedido fora julgado improcedente, da porque os

    autores afirmarem que mesmo aps a autocomposio e a arbitragem comumente

    se recorria posteriormente autotutela.

    A linha evolutiva para a soluo dos litgios, ou seja, da autotutela at a fase atual

    bem explicitada por ALVES (1971, p. 203-204, apud ALVIM, p. 10-11):

    Conjectura-se, com base em indcios que chegaram at ns, que essa evoluo se fez em quatro etapas: na primeira, os conflitos entre particulares so, em regra, resolvidos pela fora (entre a vtima e o ofensor ou entre grupos de que cada um deles faz parte), mas o Estado, ento incipiente, intervm em questes vinculadas religio, e os costumes vo estabelecendo, paulatinamente, regras para distinguir a violncia legtima da violncia ilegtima. Na segunda, surge o arbitramento facultativo: a vtima em

  • 15

    vez de usar da vingana individual ou coletiva contra o ofensor, prefere, de acordo com este, receber uma indenizao que a ambos parea justa, ou escolher um terceiro (rbitro) para fix-la. Na terceira etapa, aparece o arbitramento obrigatrio: o facultativo s era utilizado quando os litigantes o desejassem, e, como este acordo nem sempre existia, da resultava que, as mais das vezes, se continuava a empregar a violncia para defesa do interesse do lesado; por isso o Estado no s passou a obrigar os litigantes a escolher o rbitro que determinasse a indenizao a ser paga pelo ofensor, mas tambm a assegurar a execuo da sentena, se, porventura, o ru no quisesse cumpri-la. Finalmente, na quarta e ltima etapa, o Estado afasta o emprego da justia privada, e, atravs de funcionrios seus, resolve os conflitos de interesses surgidos entre os indivduos, executando, fora se necessrio, a sentena.

    Nessa medida, a ideia de Estado surge, dentre outros fatores, da necessidade de

    um ente dotado de poderes para a salvaguarda dos interesses de seus sditos,

    ainda que para tanto tenha de impor-lhes sanes, inclusive penais (que passam a

    ser seu monoplio).

    Quadra evidenciar que descabe no presente trabalho entrar em mincias acerca da

    formao do Estado Moderno, mas o ponto sobre o qual no se pode descurar diz

    respeito indissocivel linha evolutiva que liga a formao desses entes com a

    necessidade de existncia de algum apto a solucionar os conflitos internos para,

    assim, atingir a paz social.

    A linha evolutiva para a mediao desses conflitos desgua, ento, no processo,

    porm conforme tambm anotam GRINOVER et al (opus citatus, p. 29) [...] antes de

    o Estado conquistar para si o poder de declarar qual o direito no caso concreto e

    promover a sua realizao prtica (jurisdio), houve trs fases distintas: a)

    autotutela; b) arbitragem facultativa; c) arbitragem obrigatria.

    O processo pode ser considerado, ento, como sendo o fim dessa linha evolutiva e

    instrumento por meio do qual se objetiva a soluo de um conflito havido em uma

    dada sociedade, tendo como escopo uma deciso final emanada pelo Estado.

  • 16

    2.2 CONCEITO

    Por processo entende-se o desencadeamento lgico de atos destinados

    consecuo de um objetivo, razo pela qual se afirma que a forma, o instrumento,

    o modo de proceder.

    Tempo houve em que a terminologia processo vinha necessariamente

    acompanhada da ideia de algo relacionado atividade jurisdicional. Sabe-se

    atualmente, no entanto, que o processo no uma exclusividade do Poder

    Judicirio, em razo de existir tambm nos demais Poderes, ou seja, tanto no

    Executivo quanto no Legislativo, devido necessidade de utilizao de um mtodo

    de atuao.

    Sob o ngulo etimolgico, o termo processo significa marcha avante ou

    caminhada (do latim, procedere, ou seja, seguir adiante), da porque por muito

    tempo ele foi confundido com a simples sucesso de atos processuais, isto , com o

    prprio procedimento (GRINOVER et al, opus citatus, p. 295). Atualmente, todavia, a

    doutrina apercebeu-se de que a noo de processo vai alm da simples sucesso

    de atos que o corporificam, porquanto abarca tambm a prpria relao estabelecida

    entre os sujeitos e suas garantias processuais. Os mesmos autores esclarecem e

    enfatizam que:

    O procedimento , nesse quadro, apenas o meio extrnseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo; a manifestao extrnseca deste, a sua realidade fenomenolgica perceptvel. A noo de processo essencialmente teleolgica, porque ele se caracteriza por sua finalidade de exerccio de poder [...]. A noo de procedimento puramente formal, no passando da coordenao de atos que se sucedem. Conclui-se, portanto, que o procedimento (aspecto formal do processo) o meio pelo qual a lei estampa os atos e frmulas da ordem legal do processo.

    Assim, a noo de processo algo que ultrapassa o prprio direito processual. , na

    realidade, o mais legtimo instrumento para o exerccio do poder, que est presente

    nas mais diversas modalidades de atuao estatal (GRINOVER et al, opus citatus,

    p. 296).

    Em termos conceituais, observa-se existir inmeras teorias acerca da natureza

    jurdica do processo, da porque GRINOVER et al (opus citatus, p. 296) chegam a

    evidenciar que alguns autores manifestam o enorme ceticismo quanto a uma

  • 17

    conceituao cientfica, razo pela qual o caracterizam como um jogo, ou mesmo

    como a misria das folhas secas de uma rvore, ou vendo nele uma busca

    proustiana do tempo perdido. Dentre tais teorias, as principais so aquelas que

    atribuem ao processo a natureza de: a) contrato; b) quase contrato; c) relao

    jurdica processual; d) situao jurdica; e) procedimento informado pelo contraditrio

    (GRINOVER et al, opus citatus, p. 297).

    A (ultrapassada) teoria do processo como contrato, em voga nos sculos XVIII e

    XIX, principalmente na Frana, tem ligao com a ideia romana de processo, e

    fundava-se no falso pensamento de que as partes se submetem voluntariamente ao

    processo e aos seus resultados, realizando verdadeiro negcio jurdico privado.

    Sabe-se, contudo, que a noo de aceitao no corresponde realidade, pois o

    Estado-Juiz impe sua vontade aos seus sditos independentemente da voluntria

    aceitao (GRINOVER et al, opus citatus, p. 297).

    No sculo XIX surge tambm na doutrina francesa a noo de processo como um

    quase-contrato, teoria que, igualmente, incorreu no mesmo erro de buscar

    enquadrar o processo dentre as categorias do direito privado (GRINOVER et al,

    opus citatus, p. 298).

    A noo de processo como relao jurdica surge somente na segunda metade do

    sculo XIX e foi exposta no livro Teoria dos pressupostos processuais e das

    excees dilatrias de Blow (GRINOVER et al, opus citatus, p. 298). Tal obra

    considerada como sendo a primeira a adotar um mtodo cientfico para explicar o

    fenmeno do direito processual, e funda-se na noo de que o elemento central do

    processo a relao jurdica estabelecida entre as partes que o integram, dando,

    inclusive, muito destaque existncia de dois planos de relao: o de direito

    material (aquilo que se discute no processo) e o de direito processual (campo no

    qual se discute o direito material). Acentuou, ainda, que o direito processual se

    distingue do material pelo fato de naquele se observar a existncia de trs aspectos:

    a) a existncia de sujeitos (em regra, autor, ru e Estado-Juiz);

    b) por seu objeto (prestao jurisdicional);

    c) por seus pressupostos (pressupostos processuais).

    As principais crticas que se faz a tal teoria, dizem com o fato de ela cindir o

    processo em duas fases, ou mesmo por colocar as partes em uma relao de

  • 18

    sujeio autoridade do rgo jurisdicional (GRINOVER et al, opus citatus, p. 298-

    299).

    A teoria do processo como uma situao jurdica nasce, por seu turno, da crtica

    teoria do processo como relao jurdica. Parte de uma metfora com a guerra, na

    qual aps a vitria de uma das partes no mais se cogita se ela tinha de fato direito

    ou no antes da contenda. Faz, assim, um paralelo entre a guerra e o processo, e

    arremata dizendo que quando o direito assume uma posio dinmica (no processo)

    ocorre uma verdadeira mudana estrutural, pois onde antes havia direito passam,

    agora, a existir apenas chances (incertezas).

    Tal teoria, pouco adotada por sinal, tambm no foi imune de crticas, dentre as

    quais se pode citar o fato de argumentar pela exceo e no pela regra; ademais,

    confunde o processo com o seu objeto: as incertezas no dizem respeito ao

    processo e s garantias nele estabelecidas, mas so relativas ao direito material

    (GRINOVER et al, opus citatus, p. 299-300).

    Dentre todas as teorias citadas, observa-se que nenhuma delas imune de crticas,

    embora seja possvel afirmar que a teoria do processo como relao jurdica seja a

    mais bem aceita no Brasil.

    Cumpre evidenciar, todavia, que hodiernamente tem ganhado corpo a teoria que, ao

    analisar a natureza jurdica do processo, evidencia as garantias das partes

    envolvidas como sendo sua principal caracterstica.

    No se pode negar que um processo no se reduz ao mero procedimento, ou ainda

    o fato de que tanto o Estado quanto as partes esto nele ligadas por uma srie de

    laos jurdicos atribuindo-lhes, de um lado, poderes, direitos e faculdades, e de outro

    deveres, obrigaes, sujeies e nus (GRINOVER et al, opus citatus, p. 300).

    Cumpre ressaltar, no entanto, conforme os autores, que a aceitao da teoria da

    relao jurdica processual, todavia, no significa afirmar, como foi feito desde o

    aparecimento desta, que o processo seja a prpria relao processual, isto , que

    processo e relao processual sejam expresses sinnimas.

    Nessa esteira, ento, se insere a teoria do processo como procedimento em

    contraditrio. Surgida na Itlia, tal teoria repudia a insero da relao jurdica

    processual no conceito de processo; prefere falar em mdulo processual,

    representado pelo procedimento realizado em contraditrio e prope que, no lugar

  • 19

    daquela, se passe a considerar como elemento do processo essa abertura

    participao, que constitucionalmente garantida (GRINOVER et al, opus citatus, p.

    303).

    Assim, numa espcie de fuso entre tais teorias, GRINOVER et al (opus citatus, p.

    303) preferem afirmar que o processo o procedimento realizado mediante o

    desenvolvimento da relao entre seus sujeitos, presente o contraditrio, o que se

    coaduna com a garantia estampada no Art. 5, inc. LV, da Constituio Federal,

    segundo o qual so garantidos a ampla defesa e o contraditrio aos litigantes, seja

    em processo judicial, seja em processo administrativo.

    2.3 FINALIDADE

    Conforme bem assinala ALVIM (opus citatus, p. 15), a existncia de um processo

    no garantia de uma soluo justa, mas pela nota de imparcialidade a que so

    conferidos poderes ao Estado, afigura-se tal modalidade de resoluo de litgios

    como sendo aquela em que existe uma maior probabilidade de prolao de uma

    melhor deciso.

    Nesse contexto, no demais considerar que, afora as possibilidades de

    autocomposio ainda existentes em nossa legislao, mormente quando se tratar

    de direitos disponveis, o processo corresponde ao meio de soluo que mais se

    coaduna com o atual Estado Democrtico de Direito, tendo em conta os direitos e as

    garantias individuais.

    Todavia, no se concebe a existncia de um processo (seja ele judicial ou

    administrativo), bem assim o conjunto de regras a ele atreladas, se nele no se

    perfaz o fim a que se destina, ou seja: a produo de uma deciso justa, e

    preferencialmente clere (FRANCO, 2008, p. 62). Nesse particular - reala o autor

    falar em devido processo legal (ponto sobre o que h de se debruar mais

    detidamente no momento oportuno) nada mais que tratar desse aspecto.

    Ademais, cumpre assinalar que a tutela prestada no processo (seja ele judicial ou

    administrativo) no se limita apenas a seu resultado, isto , aos seus efeitos finais,

  • 20

    mas, sobretudo, abarca ainda a utilizao dos meios adequados para essa

    prestao estatal.

    Importante salientar, ainda, que se de um lado deve-se evidenciar a importncia da

    existncia de um processo para a soluo dos mais diversos conflitos, de outro no

    se pretende aqui, como fazem alguns, sobrep-lo ao prprio direito material: que

    tanto as normas de direito material quanto as de direito processual possuem campo

    de incidncia que lhes prprio; aquelas no podem muitas vezes ser satisfeitas

    sem a existncia de um regular processo, e estas somente so concebveis como

    instrumento apto a materializar direitos previamente concebidos.

    A necessria distino entre direito material e direito processual pode ser bem

    explicitada na seguinte passagem:

    Para Chiovenda e outros, o ordenamento jurdico cinde-se nitidamente entre direito material e direito processual (teoria dualista do direito): o primeiro dita as regras abstratas e estas tornam-se concretas no exato momento em que ocorre o fato enquadrado em suas previses, automaticamente, sem qualquer participao do juiz. O processo visa apenas atuao (ou seja, realizao prtica) da vontade do direito, no contribuindo em nada para a formao das normas concretas; o direito subjetivo e a obrigao preexistente a ele. Para outros, como Carnelutti, o direito objetivo no tem condies para disciplinar sempre todos os conflitos de interesses, sendo necessrio o processo, muitas vezes, para a complementao dos comandos da lei. O comando contido nesta incompleto, como se fosse um arco que a sentena completa, transformando-o em crculo. Para quem pensa assim (teoria unitria do ordenamento jurdico), no to ntida a ciso entre o direito material e o direito processual: o processo participa da criao de direitos subjetivos e obrigaes, os quais s nascem efetivamente quando existe uma sentena. O processo teria, ento, o escopo de compor a lide (ou seja, de editar a regra que soluciona o conflito trazido a julgamento) (GRINOVER et al, opus citatus, p. 45).

    Feita essa necessria distino, pode-se afirmar que a finalidade do processo se

    coaduna com a prpria razo de ser do Estado Moderno, ou seja, trata-se de meio

    efetivo para a realizao da justia (GRINOVER, opus citatus, p. 43). Assinalam os

    autores, ainda, que: afirma-se que o objetivo sntese do Estado contemporneo o

    bem comum e, quando se passa ao estudo da jurisdio, lcito dizer que a

    projeo particularizada do bem-comum nessa rea a pacificao com justia

    (idem, ibidem).

    Como se disse, a utilizao de um determinado tipo de processo est relacionada

    com a prpria atuao estatal, ou melhor, com o campo de incidncia dessa

    atuao.

  • 21

    No Brasil, tal qual nas naes que adotam o sistema de tripartio do poder, o

    desempenho das funes legislativa, executiva e jurisdicional conferido aos

    Poderes Legislativo, Executivo e Judicirio, respectivamente, cada qual com suas

    competncias estabelecidas na Constituio Federal (SILVA, J., 2007, p. 106).

    Assim, embora no se deva confundir a distino entre as funes (tpicas) de cada

    poder com a prpria separao entre os Poderes, existe entre ambas as coisas uma

    conexo necessria (idem, ibidem, p. 108).

    Nessa medida, cumpre assinalar que cada um desses Poderes se vale de um meio

    prprio para sua atuao, e pode-se identificar que todos se utilizam, em maior ou

    em menor grau, de uma modalidade de processo, sendo certo que o processo

    administrativo comum a todos. Logo, o termo processo passa a designar, em

    sentido amplo, a maneira pela qual os trs Poderes se utilizam para a realizao de

    seus objetivos.

    certo que, em razo da prpria atividade a ser desempenhada, os processos

    judicial, administrativo e legislativo, possuem caractersticas prprias, que so

    peculiares a cada um deles, mas mesmo assim pode-se afirmar que existem alguns

    preceitos estabelecidos da seara Constitucional comuns aos dois primeiros, algo

    que se mostra de suma importncia para seu estudo.

    2.4 ESPCIES

    No desempenho de suas funes definidas no corpo da Constituio Federal, os trs

    Poderes utilizam-se, precipuamente, de espcies de processos distintos, cada qual

    com caractersticas que lhes so prprias.

    Diz-se, assim, que no desempenho da funo legislativa, o Poder Legislativo utiliza-

    se de um processo legislativo para a criao das normas gerais e abstratas de sua

    alada. Igualmente, fala-se na existncia do processo judicial (civil, penal,

    trabalhista, etc.) quando se pretende referir-se atuao do Poder Judicirio no

    desempenho de sua funo jurisdicional.

  • 22

    Por fim, grande parte dos atos ligados funo administrativa, proeminente no

    Poder Executivo, corporifica-se por meio de um processo administrativo, de cujo

    gnero decorre o processo administrativo disciplinar, que ser estudado no captulo

    seguinte.

    2.4.1 Processo legislativo

    O processo legislativo est relacionado com o mecanismo constitucionalmente

    estabelecido (Art. 59 a 69 da Constituio Federal) para a criao das normas e atos

    da alada do Poder Legislativo, e aqui abordado com a finalidade de diferen-lo

    dos processos (judicial e administrativo), nos quais existe a figura dos litigantes (ou

    acusados).

    Compreende [...] o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votao, sano, veto)

    realizados pelos rgos legislativos visando formao das leis constitucionais,

    complementares e ordinrias, resolues e decretos legislativos (SILVA, J., opus

    citatus, p. 524).

    Trata-se, como se disse, do processo de formao das normas, no havendo,

    assim, a participao de particulares que almejam uma deciso estatal que ponha

    fim a um determinado litgio.

    2.4.2 Processo Judicial

    O processo judicial, como o prprio nome est a indicar, trata-se da espcie de

    processo mais estudada e corresponde ao meio pelo qual o Estado-Juiz presta a

    tutela jurisdicional, pondo termo a lides por meio de decises definitivas e com

    carter cogente.

    Cuida-se, assim, de instrumento destinado a compor conflitos de interesses, de

    acordo com o caso concreto (SILVA, J., opus citatus, p. 553), ou seja, destina-se,

  • 23

    em ltima anlise, prolao de uma determinada deciso com o escopo de se

    alcanar a paz social.

    Tendo por base todo o ordenamento jurdico vigente, de acordo com a matria

    veiculada o juiz atua decidindo o direito segundo regras pr-estabelecidas (leis,

    costumes ou normas gerais) e perfaz o papel singular do Poder Judicirio,

    consubstanciado na distribuio da justia.

    No pode, contudo, estabelecer critrios particulares, privados ou prprios, para,

    assim, resolver conflitos que lhe so postos apreciao, salvo nas hipteses do

    mandado de injuno (Art. 5, inc. LXXI da Constituio Federal), situao na qual o

    Poder Judicirio, devido inao do Poder Legislativo, acaba por criar a norma

    aplicvel ao caso concreto, nas hipteses de omisso legislativa que torne invivel o

    exerccio dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes

    nacionalidade, soberania e cidadania.

    Conforme nota de SILVA, J. (opus citatus, p. 554), nenhuma dificuldade se

    apresenta entre diferir jurisdio de legislao, pois nesta esto os comandos de

    ordem geral e abstrata, ao passo que a jurisdio as aplica na soluo das lides.

    A sentena judicial, portanto, acaba por criar verdadeira norma de cunho individual e

    concreto. Individual, porque somente alcana os envolvidos na contenda, e concreta,

    porque a partir de sua definitividade costuma-se dizer que a deciso faz lei entre as

    partes. Assim:

    Veja-se, por exemplo, um ato jurisdicional tpico: a sentena. Esse ato, em termos muito simplificados, declara: Condeno Fulano a restituir a Beltrano determinado imvel, e mais os honorrios do advogado e os frutos do imvel pelo tempo que indevidamente o ocupou. Est a o dispositivo de uma sentena. Dirige-se a determinada pessoa, com determinada ordem individualizada e concreta sobre um bem especificado. Compare-se com o ato legislativo, a lei, que diz, por exemplo: aquele que por vinte anos, independentemente do justo ttulo e boa-f, possui o imvel como seu, adquirir-lhe- o domnio. Dirige-se, indistintamente, a todas as pessoas. No d nada a ningum especificamente. Confere a todos um direito abstratamente, e aquele que vier a encontrar-se na situao de fato descrita no texto da lei ter um direito subjetivo ao objeto nela indicado (SILVA, J., opus citatus, p. 554).

    Ora, se de um lado certo que a distino entre o papel da jurisdio e da

    legislao se afigura como algo simples, o mesmo no ocorre quando se pretende

    diferenciar jurisdio de administrao.

  • 24

    CHIOVENDA atribui administrao uma atividade primria (ou originria), pois a

    desenvolve no seu prprio interesse, ao passo que jurisdio caberia uma

    atividade secundria (ou coordenada), e isso devido ao fato de o juiz substituir a

    vontade de algum. Nessa medida, o juiz julga a respeito de outrem e em razo da

    vontade da lei concernente a outrem; a administrao decide a respeito da prpria

    vontade (1965, p. 12, apud SILVA, J., opus citatus, p. 555).

    Citando os problemas decorrentes das dificuldades em se estabelecer um parmetro

    cientfico para estabelecer o limite entre a funo administrativa e a jurisdicional, e

    que no tenha por base to somente o critrio orgnico, decorrente do prprio texto

    constitucional, MEDAUAR (2008, p. 47) chega a sustentar ser essa inclusive uma

    das razes pelas quais ainda existe, nos dias atuais, aqueles que neguem a

    existncia de um processo administrativo, e que assim preferem a expresso

    procedimento administrativo, ainda que da tambm decorram inmeros

    inconvenientes terminolgicos, posto que o termo procedimento incompleto, pois

    no abarca o fenmeno em sua plenitude.

    A questo ganha ainda mais importncia por que para alguns a referncia a

    processo administrativo somente faria sentido em pases como a Frana, nos quais

    subsiste a figura do contencioso administrativo, ou seja, as causas que envolvem a

    Administrao no so apreciadas pelo Poder Judicirio, tal qual ocorre no Brasil,

    que adotou o sistema de jurisdio una. Sobre pases que adotam sistema diverso

    do que tem lugar no Brasil, cumpre assinalar que:

    Originou-se na Frana a ideia de vedar ao Judicirio o julgamento de controvrsias que envolvessem a Administrao, em virtude, principalmente, de uma interpretao peculiar do princpio da separao de poderes, combinada a fatos histricos a ocorridos antes da Revoluo Francesa. [...] Tal modo de soluo de controvrsias suscitadas pela atuao administrativa difundiu-se em muitos pases europeus no sculo XIX e at no Brasil a Constituio de 1824 criou um Conselho de Estado, depois extinto pelo Ato Adicional de 1834, reinstaurado em 1841 e abolido tacitamente pelo Dec. 1, de 15 de novembro de 1889 (MEDAUAR, opus citatus, p. 48-49).

    Observa-se que o termo contencioso administrativo nasceu, no Brasil, como algo

    ligado noo de um julgamento posto aos cuidados da Administrao, que atuaria

    a um s tempo como juiz e parte (MEDAUAR, opus citatus, p. 49).

    Ainda segundo a autora, posteriormente na Frana, e tambm em outros pases,

    reconheceu-se ao Conselho de Estado (ou a outro rgo que realizasse esse papel)

  • 25

    a independncia para decidir, motivo pelo qual desde ento se formou uma

    verdadeira jurisdio administrativa.

    Logo, e com o rigor tcnico necessrio, empregar o termo contencioso

    administrativo somente se afigura como correto no caso de pases dotados de uma

    jurisdio autnoma, independente tanto da administrao quanto da jurisdio

    comum, e que tenha como papel resolver litgios referentes Administrao Pblica,

    tal qual ocorre, por exemplo, na Frana, na Itlia e na Blgica (MEDAUAR, opus

    citatus, p. 49).

    Sendo assim, no correto referir-se no Brasil existncia, dentre ns, de um

    contencioso administrativo. Incorrem, ento, em erro, os que confundem a existncia

    de um processo administrativo com a figura do contencioso administrativo, pois no

    so expresses sinnimas.

    Ademais, pela garantia estampada no Art. 5, inc. XXXV, da Constituio Federal,

    segundo a qual a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio leso ou

    ameaa a direito, as decises emanadas pelo Poder Executivo (a includas as

    decorrentes do processo administrativo) so passveis de apreciao pelo Poder

    Judicirio.

    Retornando ao ponto relativo possibilidade de se demarcar o espectro de atuao

    entre a funo administrativa e a jurisdicional (e, por conseguinte, entre o processo

    administrativo e o judicial), MEDAUAR (opus citatus, p. 50), acentua que talvez to

    importante quanto identificar suas dissemelhanas seja apontar suas pedras de

    toque, isto , os pontos que, sendo comuns a ambos, permitam uma melhor

    compreenso da matria. Partindo dessa noo, a autora esclarece que inmeras

    tentativas de tangenciar as funes administrativa e jurisdicional foram buscadas ao

    longo da histria, contudo sem se obter em contrapartida um critrio mais seguro.

    Fala, assim, em:

    a) critrio fim, segundo o qual a funo administrativa objetivava os fins do

    Estado, ao passo que a funo jurisdicional os fins daqueles particulares

    interessados no ato emanado;

    b) parmetro do litgio, que se baseia na ideia de que a funo jurisdicional tem

    por fim a soluo de uma lide, algo que inexistiria na funo administrativa;

  • 26

    c) critrio da unilateralidade da atuao administrativa (desigualdade entre os

    sujeitos) e bilateralidade da atuao jurisdicional (igualdade), pois consoante

    tal pensamento o critrio distintivo seria o fato de a administrao ser parte

    envolvida, ao passo que jurisdio seria isenta;

    d) hierarquia e dependncia versus inexistncia de hierarquia e independncia,

    as primeiras presentes na funo administrativa e as ltimas na jurisdicional;

    e) parmetro quanto ao modo de atuao, ou seja, se de ofcio ou mediante

    provocao; consoante tal corrente, o fator distintivo seria que a funo

    jurisdicional somente age mediante provocao, ao passo que a

    administrativa pode agir tanto por provocao quanto de ofcio;

    f) outra baliza que se tentou traar diz com a obrigatoriedade de decidir, pois

    alguns chegam a afirmar que somente estaria presente no desempenho da

    funo jurisdicional, e isso como se normas diversas no cominassem

    inclusive sanes para a omisso administrativa;

    g) outro meio de diferenciao buscado seria quanto aos efeitos do ato, pois

    consoante essa linha de pensamento a funo jurisdicional, diferentemente da

    administrativa, atingiria somente as partes em litgio;

    h) por fim, o ltimo critrio distintivo seria o de que na funo jurisdicional h

    duas partes diante de um juiz, que atua de modo substitutivo em nome do

    Estado, enquanto que na administrativa, em regra, h apenas duas partes

    (MEDAUAR, opus citatus,. p. 51-54).

    Observa-se que a longa enumerao de correntes que buscaram explicar a linha

    demarcatria entre funo administrativa e funo jurisdicional j algo suficiente

    para demonstrar que, isoladamente, nenhuma delas imune de crtica, da porque,

    e j falando em matria de processo, ser importante traar as semelhanas

    existentes.

    No por outro motivo que existem correntes que chegam mesmo a negar a

    existncia de distino entre administrao e jurisdio. Para tal linha de

    pensamento, a bem da verdade existiriam apenas duas funes de Estado: a

    legislao e a aplicao da lei, e esta se desdobraria em administrao e jurisdio

    (SILVA, J., opus citatus, p. 555).

    Ressalte-se que quando se leva em conta apenas as chamadas funes tpicas de

    um determinado Poder, ou seja, o principal papel que desempenha, segundo o texto

  • 27

    constitucional, acabam sendo menores as dificuldades para traar o liame entre

    funo judicial e administrativa, bem assim das modalidades processuais de que se

    valem para execut-las. O problema surge, no entanto, pelo fato de tais Poderes

    realizarem tambm as chamadas funes atpicas, e atpicas porque justamente

    correspondem a uma funo tpica de outro Poder.

    Exemplificando: a compra de material de expediente se d por meio de um processo

    administrativo (licitatrio) conforme o estabelecido pela Lei n. 8.666/93, que institui

    normas para licitaes e contratos firmados pela Administrao Pblica para todos

    os Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios; igualmente,

    os ilcitos administrativos praticados pelos servidores em geral (faltas disciplinares)

    ho de ser apurados e julgados conforme normas de processo administrativo de

    cunho disciplinar, de acordo com estatuto prprio. Nesses casos, est-se diante do

    exerccio da funo administrativa, ainda que tais atos sejam praticados por

    integrantes de outros Poderes que no o Executivo.

    Assim, verifica-se, por exemplo, que alm de ser importante a identificao de um

    ncleo comum aos processos judiciais e administrativos, cumpre ressaltar tambm o

    fato de que a utilizao deste no exclusividade do Poder Executivo (no

    desempenho de suas funes tpicas), mas tambm largamente usado pelos

    demais Poderes.

    2.4.3 Processo administrativo

    As consideraes mais aprofundadas acerca do processo administrativo sero

    tecidas no captulo seguinte, onde se tratar especificamente do processo

    administrativo disciplinar. Por ora, cumpre evidenciar o fato de que embora sua

    utilizao se d com maior incidncia na atuao do Poder Executivo, no

    corresponde tal modalidade processual a uma exclusividade desse Poder. Liga-se,

    ao contrrio, ao desempenho de atividades relacionadas funo administrativa,

    seja no prprio Poder Executivo, como se disse, seja no Poder Legislativo ou no

    Poder Judicirio.

  • 28

    Nessa esteira, no h como falar em processo administrativo sem que se aborde a

    temtica referente funo administrativa.

    Conforme salientado anteriormente, muitos critrios foram utilizados pela doutrina

    para buscar tangenciar a funo administrativa para, assim, diferi-la da jurisdicional.

    Nessa medida, existem aqueles que a caracterizam como a funo que tem por

    escopo o atendimento concreto do interesse pblico. Diferiria, portanto, da legislativa

    pelo fato de esta ter em conta o interesse abstrato e da jurisdicional pelo fato de ela,

    embora atue no atendimento do interesse concreto, apenas o faz entre as partes

    envolvidas em um litgio (MEDUAR, opus citatus, p. 55).

    Incorre em erro tal corrente, porquanto existem casos em que a atuao

    administrativa pode alcanar to somente um nmero restrito de indivduos, tal qual

    em um processo de desapropriao por interesse pblico, da, portanto, em nada a

    se distinguiria da funo jurisdicional (salvo o carter de definitividade das decises

    desta ltima).

    Outros estabelecem os critrios imediatos e mediatos para definir a funo

    administrativa. Consoante tal corrente, a funo administrativa, diferentemente das

    demais, atuaria de modo imediato na satisfao do interesse pblico. Difcil, no

    entanto, definir o que seria tal atuao imediata e a mediata (MEDUAR, opus citatus,

    p. 56).

    A corrente que se filia ao critrio orgnico de repartio de competncias liga a

    funo administrativa atuao do Poder Executivo (MEDUAR, opus citatus, p. 56).

    Incorre, no entanto, em erro, pois no explica a contento o fato de tal funo tambm

    poder ser exercida no mbito de outros Poderes, embora de modo atpico.

    Existem ainda aqueles que se utilizam do critrio residual, isto , funo

    administrativa corresponderia o plexo de atividades no compreendidas na funo

    legislativa e na jurisdicional (MEDUAR, opus citatus, p. 56). Tal concepo, embora

    se afigure como til e de fcil compreenso, tem o inconveniente de no utilizar um

    critrio cientfico como mtodo, pois argumenta pela exceo.

    H tambm os que buscam definir a funo administrativa como sendo uma

    atividade subordinada, no autossuficiente, pois se destinaria realizao das

    diretrizes polticas fixadas por autoridades de cpula ou pela lei (MEDUAR, opus

    citatus, p. 56).

  • 29

    A crtica que se faz a tal corrente de pensamento advm do fato de a atuao da

    Administrao no se dar, necessariamente, de ofcio, ou seja, como uma simples

    aplicadora de prescries normativas previamente estabelecidas. Ao contrrio, em

    muitas hipteses a prpria Administrao que fixa o modo de atuao diante do

    caso concreto.

    Por fim, tambm se buscou adotar um conceito de funo administrativa tendo em

    conta o elemento teleolgico. Consoante tal pensamento, a funo administrativa

    teria uma tarefa realizativa, isto , trata-se de verdadeira atividade de realizao

    de tarefas e atribuies, sendo fundamental para sua identificao a projeo para

    os fins sociais, percebidos como obrigatrios (MEDUAR, opus citatus, p. 57).

    As restrio que se pode fazer a tal critrio distintivo liga-se ao fato de que nas

    demais funes (legislativa e jurisdicional) tambm existem atribuies e tarefas que

    se projetam para os fins sociais.

    V-se, assim, que antes mesmo de se fixar os parmetros de atuao (campo de

    incidncia) de um processo administrativo, de modo a diferen-lo do processo

    judicial, o problema j ocorre quando da delimitao do prprio espectro de atuao

    da funo administrativa.

    Buscando pr termo incompletude das teorias acima apontadas, MEDAUAR (opus

    citatus, p. 57), aps reconhecer a dificuldade de se estabelecer um conceito,

    constri sua prpria noo acerca da funo administrativa:

    Na verdade, apresenta-se difcil a caracterizao objetiva da funo administrativa. As atividades que dela decorrem so desprovidas de unicidade, fragmentando-se em inmeras variedades, cada qual com caractersticas jurdicas e tcnicas prprias. A dificuldade de caracterizar sempre existiu, mas na poca atual se agravou porque a Administrao se tornou mais complexa e se mostra cada vez mais como ncleos diferenciados que realizam atividades de diferentes tipos, sob formas e regimes tambm diversos. Pode-se tentar uma sntese, para identificar a funo administrativa como a atividade estatal que: coadjuva as instituies polticas de cpula no exerccio da atividade de governo: organiza a realizao das finalidades pblicas postas pelas instituies polticas de cpula; produz servios, bens e utilidades para a populao. Aspecto relevante a se salientar diz respeito atividade multiforme da funo administrativa, expressando-se portanto, em amplo e complexo leque de atuaes. Falta funo administrativa a unicidade (ou uniformidade), predominante na funo jurisdicional e na funo legislativa.

    de se evidenciar, ento, que o exerccio das diversas atividades decorrentes da

    funo administrativa pode ou no depender da prvia existncia de um processo

  • 30

    administrativo, meio segundo o qual a Administrao decide algumas questes de

    sua alada.

    Assim, a instaurao de regular processo administrativo deve ocorrer: na

    decretao de sanes, disciplinares ou no; no consentimento de atividades que

    possam prejudicar terceiros ou a coletividade; e ainda quando a funo

    administrativa sujeita-se, no seu exerccio, observncia de igualdade entre

    administrados (MEDAUAR, opus citatus, p. 57).

    O grande leque de atividades decorrentes da funo administrativa, alm de

    dificultar a compreenso do conceito de tal funo, acaba tambm por contaminar

    a prpria conceituao acerca do que seja o processo administrativo.

    Nessa esteira, observa-se que a expresso processo administrativo muitas vezes

    adotada sem o necessrio rigor cientfico, da porque DI PIETRO (2002, p. 505-506)

    identificou o uso do termo nas seguintes acepes:

    1. num primeiro sentido, designa o conjunto de papis e documentos organizados numa pasta e referentes a um dado assunto de interesse do funcionrio ou da administrao; 2. ainda usado como sinnimo de processo disciplinar, pelo qual se apuram as infraes administrativas e se punem os infratores; nesse sentido empregado no artigo 41, 1, da Constituio Federal, quando diz que o servidor pblico estvel s perder o cargo em virtude de sentena judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa; 3. em sentido mais amplo, designa o conjunto de atos coordenados para a soluo de uma controvrsia no mbito administrativo; 4. como nem todo processo administrativo envolve controvrsia, tambm se pode falar em sentido ainda mais amplo, de modo a abranger a srie de atos preparatrios de uma deciso final da Administrao.

    Assinala PORTA (2003, p. 43) que o fenmeno da processualidade no condio

    exclusiva do direito, eis que presente em diversos outros campos da vida humana.

    Ressalta o autor que existiria inclusive uma processualidade da vida humana em

    sentido amplo, consistente em todo o caminho percorrido desde o nascimento at a

    morte. Sustenta, ainda, existir o que denomina de processualidade restrita, que

    consiste nos diferentes processos em que vivemos imersos no dia-a-dia e que se

    desenvolvem por intermdio de aes direcionadas para os mais diversos fins

    (idem, ibidem).

  • 31

    Logo, o fenmeno da processualidade algo que ultrapassa a prpria atuao

    estatal: algo inerente necessidade de estabelecimento de um mtodo de atuao

    diante de determinada situao.

    nesse campo que se insere o processo administrativo a terminologia adequada

    no pacfica, havendo, ainda, menes a procedimento administrativo, o que se

    apresenta como incorreto, dado o fato de que esta expresso traduz to somente

    parte da questo (o ato) que corresponde maneira pela qual a Administrao se

    vale para a implementao de seu fim de bem gerir a res (coisa) pblica, naquelas

    hipteses acima estampadas, ou seja, nas quais exista a possibilidade de atingir

    direitos dos particulares.

    Importante realar, mais uma vez, nesse ponto, que quando se fala em

    Administrao, no se est a referir-se to somente ao Poder Executivo, mas

    tambm ao Legislativo e ao Judicirio. Isso porque, embora para o cumprimento de

    suas finalidades precpuas esses Poderes se valham, respectivamente, dos

    processos legislativo e judicial, dada a natureza das atividades que desempenham,

    deve-se ter em mente que tambm realizam atos de administrao no exerccio

    atpico da funo administrativa cujo principal corresponde ao trato com seus

    servidores razo pela qual tambm utilizam o processo administrativo.

    MELLO (2002, p. 429), de quem no escapou a observao a respeito da falta de

    consenso na legislao e na doutrina a respeito da nomenclatura adequada para

    designar tal modalidade de atuao Estatal, se processo ou procedimento, ressalta o

    seguinte:

    Procedimento administrativo ou processo administrativo uma sucesso itinerria e encadeada de atos administrativos que tendem, todos, a um resultado final conclusivo. Isto significa que para existir o procedimento ou processo cumpre que haja uma seqncia de atos conectados entre si, isto , armados em uma ordenada sucesso visando a um ato derradeiro, em vista do qual se comps esta cadeia, sem prejuzo, entretanto, de que cada um dos atos integrados neste todo conserve sua identidade funcional prpria, que autoriza a neles reconhecer o que os autores qualificam como "autonomia relativa". Por conseguinte, cada ato cumpre uma funo especificamente sua, em despeito de que todos co-participam do rumo tendencial que os encadeia: destinam-se a compor o desenlace, em um ato final, pois esto ordenados a propiciar uma expresso decisiva a respeito de dado assunto, em torno do qual todos se polarizam.

    Igualmente, FILHO, R. (2003, p. 39-46) depois de apontar as diversas posies de

    autores de renome sobre o tema, assevera que o procedimento corresponde a um

  • 32

    requisito fundamental atuao estatal, pois diz respeito forma como se

    exterioriza sua competncia. Chama a ateno, no entanto, para o fato de que todo

    processo procedimento, porm a recproca no verdadeira: nem todo

    procedimento converte-se em processo (idem, ibidem, p. 51).

    Evidenciando a importncia do processo, FRANCO (opus citatus, p. 62) afirma que:

    processo , como j mencionado, um mtodo de trabalho. So passos necessrios

    para atingir determinada finalidade, praticados por todos aqueles que sero

    atingidos, ou so responsveis, por essa finalidade.

    Cumpre assinalar que a necessidade da existncia do processo administrativo surge

    do crescente controle da atuao Estatal. No basta, assim, saber to somente os

    fins a que se destina a Administrao Pblica. Necessrio desvendar o iter

    (caminho) adotado para a soluo de determinada situao.

    Assim a atuao Estatal, por adentrar, em regra, no mbito das liberdades dos

    administrados, necessita ser conhecida e controlada no somente na verificao de

    sua deciso final, mas tambm no modo como se chegou a tal deciso, algo que

    somente possvel se houver normas disciplinantes de sua atividade.

    Na lio de MELLO (opus citatus, p. 432), no estado de direito todos os

    administrados tm no s a garantia de que o poder pblico est adstrito aos fins

    que a lei especifica, mas tambm quanto ao modo de agir, pois deve perseguir seu

    objetivo pela maneira previamente determinada, e conclui: dizer: a contrapartida

    do progressivo condicionamento da liberdade individual o progressivo

    condicionamento do modus procedendi da Administrao, e prossegue afirmando

    (opus citatus, p. 433):

    certo, como bem salienta Carlos Ari Sundfeld, que entre a lei e o ato administrativo existe um intervalo, pois o ato no surge como um passe de mgica. Ele produto de um processo ou procedimento atravs do qual a possibilidade ou a exigncia suposta na lei em abstrato passam para o plano da concreo. No procedimento ou no processo se estrutura, se compe, se canaliza, e a final se estampa a "vontade" administrativa. Evidentemente, existe sempre um modus operandi para chegar-se a um ato administrativo final.

    Segundo bem anotou PERES (1964, apud MELLO, opus citatus, p. 435), para a

    caracterizao de um determinado expediente como processo administrativo, ou se

    preferir procedimento, necessrio a conjugao de alguns elementos:

  • 33

    [...] a) em primeiro lugar necessrio que cada um dos atos componentes da cadeia seqencial possua uma autonomia, uma individualidade jurdica, de sorte a conservar sua identidade prpria, embora tal autonomia seja qualificada - como o , por muitos autores - de "relativa", uma vez que, ainda que possuindo finalidades prprias, todos se encartam no plexo orientado para um resultado final, de maneira a integrar a fattispecie, conforme diz Pietro Virga; b) em segundo lugar, estes vrios atos tm que estar conectados em vista da unidade de efeito jurdico que se expressa no ato final; c) o terceiro requisito o de que haja entre os vrios atos uma relao de causalidade de tal modo que um dado ato suponha o anterior e o ato final suponha a todos eles.

    CRETELLA JNIOR (1999, p. 19) pem em evidncia o fato de que o termo

    processo administrativo, na prtica quotidiana, formado por alguns princpios

    tericos que o norteiam e ainda por precisas regras do direito positivo, sejam elas de

    cunho constitucional, legal ou estatutrio. Reala, ainda, que:

    Processo administrativo o prprio processo, no mbito da Administrao, mas levando-se em conta a divergncia dos autores a respeito, bem como as vrias acepes da expresso, preciso cuidado especial para, numa s definio, designar a realidade que esta expresso pretende. Assim, em acepo ampla, processo administrativo refere-se ao conjunto sistemtico de atos dos rgos da Administrao que, em matria administrativa, objetiva a concretizao das relaes jurdicas reguladas, anteriormente, pelo direito substantivo (idem, ibidem, p. 20).

    Conforme muito bem salienta DI PIETRO (opus citatus, p. 507), o processo

    administrativo pode ser classificado, nos pases que admitem a jurisdio

    administrativa, em contencioso e gracioso.

    No processo gracioso, modelo adotado pelo Brasil, compete aos prprios rgos da

    Administrao a incumbncia de fazer atuar a lei, com fim ao exerccio das

    atribuies estatais. H, no entanto, segundo a autora, conforme j assinalado,

    pases que, por razes histricas, trilharam pela criao de um contencioso

    administrativo. Em tal hiptese, o processo administrativo se desenvolve perante um

    rgo independente e imparcial, competente para solucionar as questes surgidas

    entre a Administrao e o administrado DI PIETRO (opus citatus, p. 507).

    Embora a Constituio de 1967 tenha previsto no Brasil a figura do contencioso

    administrativo, com o escopo de dirimir questes decorrentes das relaes de

    trabalho de servidores com a Unio, autarquias e empresas pblicas federais, alm

    de questes financeiras e previdencirias, inclusive as relativas a acidentes de

    trabalho, tal situao no se afigurava como verdadeiro contencioso. Isso porque as

    decises na esfera administrativa no tinham fora de coisa julgada, pois a

  • 34

    Constituio apenas impunha a necessidade de exaurimento da via administrativa

    para a postulao em juzo (DI PIETRO, opus citatus, p. 508). Cabia, assim, ao

    Judicirio, decidir com o carter de definitividade tais questes.

    Todavia, cumpre assinalar que com o advento da Constituio Federal de 1988 tal

    situao (necessidade de exaurimento da via administrativa para ingresso em juzo)

    passou a no mais existir. Dessa forma, o contencioso, que a bem da verdade

    sequer existia em razo da no definitividade das decises administrativas, no foi

    nem mesmo mencionado no novo texto constitucional, caindo por terra tal

    necessidade de se esgotar a via administrativa.

    A nica exceo a tal situao corresponde chamada justia desportiva, pois

    conforme Art. 217, 1, da Constituio Federal: O Poder Judicirio s admitir

    aes relativas disciplina e s competies desportivas aps esgotarem-se as

    instncias da justia desportiva, regulada em lei.

    Portanto, no h, no Brasil, a figura do contencioso administrativo, competindo ao

    Poder Judicirio analisar e controlar os atos da Administrao, ex vi do Art. 5, inc.

    XXXV, da Constituio Federal: "a lei no excluir da apreciao do Poder Judicirio

    leso ou ameaa a direito".

    Nesse contexto, verifica-se que compete ao Poder Judicirio resolver, em ltima

    instncia, questes surgidas entre administrao e administrados, deciso essa com

    o carter de definitividade, atributo decorrente da chamada coisa julgada.

    Como dito anteriormente, as garantias dos servidores em processo administrativo

    disciplinar (PAD) ganharam o status de dogma constitucional, pois o legislador

    constituinte inseriu no Art. 5 da Constituio Federal o direito ao devido processo

    legal e ampla defesa e contraditrio.

    Sabe-se que o processo administrativo tem por misso precpua tangenciar a

    atuao Estatal num determinado caso concreto. Assim, embora se possam

    identificar caractersticas que lhes so comuns, algumas dissemelhanas ho de

    existir, de acordo com o objeto versado.

    Seja como for, quadra evidenciar que o processo administrativo atende a um duplo

    objetivo: resguarda os administrados (ou servidores) e concorre para uma atuao

    administrativa mais transparente, o que permite com maior facilidade o controle dos

    atos administrativos pelo Poder Judicirio.

  • 35

    3 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

    3.1 CONCEITO

    Falar na existncia de um processo administrativo disciplinar implica reconhecer

    estar superada a clssica noo segundo a qual o fenmeno da processualidade

    estaria adstrito somente funo jurisdicional. Nesse sentido, a Constituio Federal

    de 1988, ao prever expressamente tal espcie de processo, ps fim a tal discusso,

    pois em seu texto reconheceu claramente a existncia de processos no apenas no

    desempenho da funo jurisdicional, mas tambm em determinados atos da alada

    da funo administrativa, mormente quando possam atingir interesses de

    particulares ou de servidores que integram os quadros da Administrao.

    Conforme j assinalado anteriormente, embora no processo administrativo no se

    verifique uma identidade quanto aos sujeitos do processo da mesma forma como

    ocorre no processo judicial, pois neste existem sempre trs partes (autor, ru e juiz)

    ao passo que no processo administrativo h duas partes (particular e administrao),

    possvel notar a existncia de um ncleo de processualidade comum a ambos os

    processos, porquanto, por adentrarem ao mbito das liberdades individuais, ho de

    respeitar os postulados jurdicos inerentes ao direito de contraditrio.

    Nessa esteira, pode-se afirmar que tanto no processo judicial quanto no

    administrativo (a includo o disciplinar) sobressaem caractersticas que so pedras

    de toque entre eles, posto que revelam a existncia de um ncleo comum a ambos,

    quais sejam:

    a) fieri e factum, isto , algo que est se realizando e algo realizado;

    b) sucesso encadeada de atos, na qual a ocorrncia de um provoca a

    realizao de outro;

    c) sucesso necessria, pois o encadeamento sucessivo no ocorre ao acaso,

    sendo portanto obrigatria;

    d) figura jurdica diversa do ato, uma vez que a processualidade diz com o vir a

    ser de um ato, ao passo que este o feito;

  • 36

    e) correlao com o ato, porquanto embora sejam fenmenos distintos, a

    processualidade instrumento para a prtica do ato;

    f) obteno de resultado unitrio, isto , o processo desgua em um elemento

    final, resultante na deciso adotada;

    g) pluripessoalidade necessria, que diz respeito ao papel desempenhado por

    cada uma das partes envolvidas;

    h) interligao dos sujeitos, pois a cada um dos envolvidos so atribudos

    direitos, deveres, nus, poderes e faculdades;

    i) pertinncia ao exerccio do poder, uma vez que no processo traam-se as

    diretivas de como a atuao estatal h de se pautar, tendo em conta os

    direitos fundamentais dos envolvidos (MEDAUAR, opus citatus, p. 28-32).

    Adotando conceituao prpria, LUZ (1999, p. 40-42) pe em evidncia apenas a

    existncia de duas modalidades de processo administrativo: o comum e o disciplinar.

    Por processo administrativo comum, entende ser aquele em que h um conjunto de

    papis (documentos) organizados de modo sequencial, dentro de uma autuao ou

    capa, havendo ali inmeros despachos, informaes, juntadas, pareceres etc., de

    modo a moviment-lo, tendo como objetivo a adoo de uma deciso final.

    Nessa medida, o requerimento de algum protocolizado, recebe numerao,

    caminha pelos setores competentes at que, ao final, se produza um despacho

    decisrio. Cumpre assinalar, no entanto, que nem sempre haver prvia provocao

    da Administrao pelo particular, pois esta pode, diante do caso concreto, agir de

    ofcio, dando incio a um processo administrativo comum (idem, ibidem, p. 41).

    Diferentemente do processo administrativo comum subsiste o processo

    administrativo disciplinar, ainda conforme LUZ (opus citatus, p. 42). Segundo o

    autor, trao marcante dessa modalidade processual seria o fato de ele ser mais

    especfico, porquanto destinado realizao de um ato de cunho disciplinar:

    O processo administrativo disciplinar trata, essencialmente, da ordenao dos atos e dos termos necessrios caracterizao de autos tpicos para a desenvoltura da instruo probatria e outros, ulteriores, tpicos do julgamento ou pertinentes fase recursal. Notamos, portanto, a profunda distino, porque, enquanto o processo administrativo comum trata da mais variada soma de assuntos para decises administrativas, o processo administrativo disciplinar, tal como ocorre naqueles oriundos do Direito Judicirio, trata especialmente de tudo quanto concerne imputao, apurao e, ao final, deciso e ao recurso. Do exposto, infere-se que o processo administrativo comum pertence, exclusivamente, ao direito administrativo, que ramo do direito pblico, enquanto que o processo administrativo disciplinar a ele no se filia, mas

  • 37

    nitidamente est vinculado ao Direito Administrativo Disciplinar, o qual, embora espcie do ramo, deste se destaca e, por isto mesmo, no pode, em absoluto, se confundir.

    Por seu turno, CRETELLA JNIOR (opus citatus, p. 67), depois de realar a

    autonomia do direito disciplinar em relao a outros campos do direito, porquanto

    possui caractersticas prprias, e ainda aps diferenar direito disciplinar material do

    direito disciplinar processual, conceitua o processo administrativo disciplinar como

    sendo:

    [...] o captulo do direito administrativo, extraordinariamente vasto e importante, que consiste no conjunto ordenado de formalidade que a Administrao submete o servidor pblico (ou o universitrio) que cometeu falta grave atentatria hierarquia administrativa.

    Existem, ainda, outras tantas classificaes para o processo administrativo

    disciplinar que seria na presente obra impossvel reproduzi-las todas, mormente

    porque o critrio de definio varia de autor para autor, segundo a caracterstica que

    deseja pr em destaque.

    Assim, ALVES (1999, p. 51) afirma que [...] processo administrativo disciplinar o

    instrumento utilizado na regra como prprio para viabilizar a aplicao de sanes

    disciplinares no mbito da Administrao Pblica [...].

    De outro lado, REIS (1999, p. 100) define o processo administrativo disciplinar como

    sendo:

    [...] o mecanismo estabelecido na lei para o controle das atividades dos servidores, no que concerne ao descumprimento de suas obrigaes, ao desrespeito proibies e realizao de fatos capitulveis como crimes ou contravenes, pela legislao penal ou por leis especiais, com reflexo no mbito administrativo.

    Embora respeitvel a conceituao acima estampada, observa-se que o autor

    incorre em erro ao ligar o processo administrativo disciplinar prtica de ilcitos

    penais.

    Essa confuso, ressalte-se, em nada tem contribudo para a compreenso do tema,

    especialmente porque leva alguns a imaginar que a instncia administrativa de

    deciso estaria necessariamente jungida esfera penal. Tal situao no

    corresponde verdade, tanto que atualmente unnime o entendimento (doutrinrio

  • 38

    e jurisprudencial) segundo o qual as instncias administrativa e criminal so, em

    regra, independentes, porquanto a absolvio nesta somente afasta a possibilidade

    de responsabilizao pela Administrao quando o juiz negar cabalmente o fato ou a

    autoria.

    Em contrapartida, uma vez provado o fato e a autoria na esfera criminal no mais se

    discute tal ponto em processo administrativo disciplinar, mas apenas e to somente

    se corresponde ou no a um ilcito disciplinar e, caso afirmativo, qual a pena

    correspondente.

    Tem-se, contudo, afirmado que a nica situao na qual a Administrao deve

    aguardar deciso na seara criminal, exceo, portanto, a tal independncia das

    instncias, corresponde previso contida na Lei n. 8.112/90, que prev ser

    passvel de demisso o servidor que praticar crime contra a administrao pblica

    (Art. 112, inc. I).

    Importa saber, portanto, para fins de instaurao de um processo administrativo

    disciplinar se a conduta praticada (o fato) corresponde ou no a um ilcito

    administrativo, independentemente de tambm ser um ilcito penal ou civil.

    Nesse contexto, e a fim de delimitar o objeto do processo administrativo,

    importantssima a lio trazida por MEIRELLES (2002, p. 223-224):

    Responsabilidade administrativa a que resulta da violao de normas internas da Administrao pelo servidor, sujeito ao estatuto e disposies complementares estabelecidos em lei, decreto ou qualquer outro provimento regulamentar da funo pblica. A falta funcional gera o ilcito administrativo e d ensejo aplicao de pena disciplinar pelo superior hierrquico, no devido processo legal.

    Assim, a melhor doutrina aquela segundo a qual o pressuposto para a instaurao

    de um processo administrativo disciplinar a ocorrncia de uma falta disciplinar (e

    no criminal), salvo exceo apontada. Com isso, evitam-se no apenas confuses

    terminolgicas, mas tambm, e principalmente, toda e qualquer alegao de que a

    Administrao estaria se imiscuindo em terreno que no de sua competncia, qual

    seja: o julgamento criminal do ato praticado.

    Ao definir o que, segundo sua viso, corresponde a um processo administrativo

    disciplinar, MARINELA (2010, p. 331) o conceitua como: [...] um conjunto de atos

  • 39

    que servem de instrumento para a apurao de ilcitos administrativos com a

    consequente punio de faltas graves praticadas por servidores pblicos.

    Reala, assim, a autora, o aspecto extrnseco do processo administrativo disciplinar,

    isto , o procedimento, algo que, conforme j assinalado, tambm passvel de

    crtica.

    Cumpre assinalar que a caracterizao de um processo administrativo como sendo

    de cunho disciplinar se d devido ao fato de nele ter-se por escopo a concretizao

    do chamado poder disciplinar, que inerente Administrao.

    Nessa medida, e considerando o processo como gnero, do qual o processo

    administrativo espcie, pode-se afirmar que o nome dado subespcie (in casu,

    processo administrativo disciplinar) h de variar em razo justamente do campo de

    incidncia sobre o qual versar, ou seja, a matria nele veiculada, da falar-se, dentre

    outros, em processo administrativo previdencirio, tributrio, fiscal, sanitrio, etc.,

    alm evidentemente do processo administrativo disciplinar. Seja como for, em

    qualquer dessas modalidades de processo administrativo deve-se observar a

    garantia de ampla defesa e de contraditrio estabelecida na Constituio Federal

    (Art. 5, inc. LV).

    Portanto, para uma clara compreenso desse ponto, deve-se ter em mente que o

    processo administrativo disciplinar corresponde no apenas ao conjunto de

    procedimentos destinados apurao e ao julgamento de irregularidades praticadas

    por servidores pblicos, mas engloba ainda, e principalmente, os direitos e garantias

    assegurados aos acusados em geral, especialmente os previstos no corpo da

    Constituio Federal e que tratam do devido processo legal e da ampla defesa e

    contraditrio, pontos que sero adiante abordados com maior profundidade.

    3.2 FINALIDADE

    O grau de importncia do processo administrativo disciplinar diz com o fato de ser

    ele o meio apto para, em um Estado Democrtico de Direito, apurar as

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    irregularidades praticadas pelos servidores, ou mesmo dos que contratam com a

    Administrao, para, se for o caso, aplicar a sano correspondente.

    Pondo em evidncia a nota da impessoalidade, REIS (opus citatus, P. 55) assevera

    que sendo ela um princpio que deve reger a Administrao, resulta indispensvel

    que todas as decises administrativas emanadas sejam formalizadas, de modo que

    os interessados, sejam eles quem forem, tenham a possibilidade de receber as

    informaes adequadas, inclusive no que concerne s razes de fato e de direito

    que do ensejo deciso final.

    No demais afirmar que o processo administrativo disciplinar d concretude a dois

    poderes que permeiam a Administrao Pblica: o poder disciplinar e o poder

    hierrquico.

    Ressalta DI PIETRO (opus citatus, p. 86) que os poderes disciplinar e hierrquico

    esto presentes na base da funo administrativa, pois sem eles seria praticamente