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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo XI (75-73 a.C.) Maria Galito 2017

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Page 1: César e a Vestal · o cavalo de madeira era um logro. Tentou avisar a cidade, mas ninguém acreditou no arauto da desgraça. Portanto, ... Sim, porque é o homem mais teimoso de

PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo XI

(75-73 a.C.)

Maria Galito

2017

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Capítulo XI

679-681 AUC

Nem todas as vestais eram virgens ou santíssimas.

Os ventos eram de mudança. Roma já não possuía os livros sibilinos para navegar na incerteza. Mas embaixadores temporários tinham sido enviados às províncias, para recolher cópias privadas dos originais destruídos no incêndio. Estas tinham, entretanto, chegado da Sicília, da Eritreia, de Samos, de Troia e da província da África, para serem avaliadas e selecionadas pelos decênviros dos factos fecundos. Os textos não eram exatamente iguais e alguns eram falsos, portanto, era preciso cuidado e critério de análise, para a emenda não ser pior do que o soneto.

Contava-se que os papiros eram originalmente troianos. Cassandra, sacerdotisa do templo de Apolo (em Gergis, no Monte Ida), fugira com eles para Troia e guardara-os no templo de Atenas, onde se refugiara. Mas, antes da invasão da cidade pelos gregos, confiou o Paládio e os manuscritos a Eneias, para que os salvasse. Ela sabia, com antecedência, que o cavalo de madeira era um logro. Tentou avisar a cidade, mas ninguém acreditou no arauto da desgraça.

Portanto, quando o nosso herói se instalou no Lácio, poderá ter escolhido uma mulher para guardar os manuscritos. Uma sibila, que tinha Cassandra como modelo de referência. Uma virgem, filha de rei, que mantinha a tocha acesa para lembrar que o perigo estava iminente.

Os livros sibilinos estavam associados ao fim da monarquia em Roma. Ao que parece, Tarquínio o soberbo arrasara os altares das sibilas do Capitólio, para ampliar o templo de Júpiter. Uma delas tentou vender-lhe os manuscritos que possuía. O rei recusou pagar o montante solicitado, por o considerar exorbitante. A sacerdotisa queimou três dos nove rolos de papiro e voltou a oferecer-lhe os restantes, pela mesma quantidade de ouro. O soberano hesitou mas recusou novamente. Ela desfez-se de mais três rolos e convenceu o líder a adquirir três volumes pelo valor de nove. Mais tarde, o rei arrependeu-se de os não ter comprado todos pois, com base nos textos, teria talvez evitado o seu fim trágico.

As sibilas perderam a sua residência no Capitólio mas, durante a República, os livros continuaram guardados no morro de Júpiter, pelo colégio dos decênviros dos factos fecundos. O incêndio no templo destruíra os manuscritos. Mas agora recuperavam-se os textos e a cidade parecia mais aliviada. Enfim, mais ou menos! Um jovem fanático e de voz estridente decidiu interpretá-los, à sua maneira, colocando em risco a vida das vestais:

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Os livros sibilinos são claros. Se Roma foi invadida e conspurcada, é porque a deusa Vesta retirou a sua proteção à cidade.

Aquele é quem? – Estranhou Perpena, que não conhecia o narigudo. Eu sabia quem ele era. Fiz as apresentações.

O novo sacerdote de Apolo. Chama-se Catão e está armado em Cassandra! Infelizmente, era pior do que isso. Ele queria limpar a casa.

Penso que as vestais se deixaram corromper. Pelo menos uma delas terá cometido sacrilégio. Ou não teria havido invasões do pomério. Temos de agir para apaziguar a deusa e purificar a cidade em prol da República! – Argumentou Catão, com gestos largos mas firmes.

Catão parecia determinado a não passar despercebido. Eu não o via há anos! Ele vivera em reclusão, enquanto estudava ética, numa casa que comprara com a herança que recebera (de cento e vinte talentos!). Até aparecer no fórum, com obstinação férrea, para impedir descaracterizações na Basílica Pórcia e convencer os tribunos da plebe a fazerem duas coisas: a reunirem-se noutra morada e a desistirem de mudar a fachada do edifício, nomeadamente a não derrubarem uma coluna, por ele, muito estimada.

Catão transformara-se num filósofo intolerante e perfecionista que queria ganhar todas as batalhas em que se via envolvido. Infelizmente, nós estavam sob a sua mira.

Ele é perigoso? – Quis saber a nossa sumo-sacerdotisa.

Sim, porque é o homem mais teimoso de Roma e está contra nós. – Constatei.

Estamos tramadas! – Sibilou Fábia.

Como é que nos livramos de Catão? – Indagou Licínia.

Boa pergunta. – Observei, cruzando os braços sem saber o que responder.

Eu não estou preocupada. Quem não deve, não teme. – Concluiu Fonteia. Ela não acreditava no Senado, nem no colégio dos pontífices, mas confiava na justiça da deusa. – A minha inocência é suficiente para salvar-me da morte! Ela estava iludida!

As vestais são responsáveis pela inviolabilidade do pomério. – Gritou Catão.

Sim, mas não fazemos truques de magia. – Avisou Licínia.

Vocês queriam que nós tivéssemos feito o quê? – Foi a perplexidade de Fonteia. – Que nos colocássemos entre a espada e a parede? Entre Mário e o gládio? Entre Sila e as muralhas? Teríamos morrido de imediato!

A questão é simples. – Declarei, embora a soubesse complexa. – As vestais não invadiram Roma. Os exércitos de Mário e de Sila é que o fizeram.

E o teu irmão quase o fez também. – Protestou Catão.

Isso dizes tu! Marco não o fez. Isso é que interessa. – Contra-argumentei. – Seja como for, o meu irmão suicidou-se. Mário morreu agonizante e Sila também. Portanto, os deuses já castigaram a quem de direito. Roma deve respirar e preparar-se para consolidar a paz por muitos anos. Catão, magro que nem um espeto e toldado pelo vinho, insistia na sua teoria:

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As vestais já não são castas e puras. É a única explicação para o clima de guerra civil e para a constante ameaça que sofrem as muralhas sérvias.

Se bebesses menos, Catão, talvez eu percebesse a tua verborreia. – Atirou Fábia.

A acusação que nos faz é injusta. – Reclamou Fonteia.

Calma, pontífices! Vamos a manter a ordem. – Pediu Mamerco. Mas Catão não me inspirava confiança, por isso, acrescentei:

Caros colegas, Catão ainda agora chegou ao colégio dos pontífices e já fala como se mandasse em nós. Ele é inexperiente mas atreve-se a dar-nos ordens e lições de moral. Alguém lhe explique, por favor, que a Cúria Régia não é a casa dele e que nós não somos os seus escravos. Obrigada. – Declarei com firmeza na voz, para que o novo colega não pensasse que podia definir as regras logo no primeiro dia. Eu precisava ganhar-lhe por antecipação! – Houve três invasões romanas após a guerra contra os italianos. Neste período, o colégio de pontífices perdeu quatro líderes: dois pontífices máximos e duas chefes de vestais (Metela morreu três anos após a sua exoneração, mas perdeu a vida, portanto, conta para o facto). A cabeça de Vopisco também foi espetada no fórum. O nosso colega Druso foi assassinado. Eu podia enumerar todas as mortes que tivemos nos últimos anos, mas não creio ser necessário discutir mais a questão. Basta! Os deuses não querem mais sangue! Vesta roga pela paz entre os romanos. Portanto, Catão que sossegue. Não vamos admitir que um colega recém-chegado e inexperiente destabilize este colégio. – Rematei com determinação. Para que a situação terminasse mesmo, perguntei. – Mamerco, qual é o próximo ponto da agenda? Este está concluído.

Assumi a liderança e, nessa tarde, impus-me. A minha vontade prevaleceu. Consegui ser porta-voz da insatisfação das vestais, porque Fonteia parecia incapaz de enfrentar Catão. Confiava na sua sorte, admitindo ser inocente, sem perceber que avançava como um anho para o sacrifício.

Mas a situação não ficou resolvida. O descontentamento dos colegas mantinha-se e Catão não se calava. O colégio de pontífices também estava sob pressão dos decênviros dos factos fecundos e do Senado, que diziam querer acalmar a superstição da população. Era evidente que queriam fazer, de nós, bodes expiatórios!

O pontífice máximo foi consultado, através de mensagem escrita, pois continuava a lutar Sertório na Lusitânia. Mas foi Varrão, durante a campanha eleitoral, que prometeu apurar

a verdade e, se necessário, punir os responsáveis – como se ainda houvesse inocentes na cidade e a verdade interessasse para alguma coisa!

Varrão foi eleito cônsul e Mamerco avisou-me que o colégio de pontífices se reuniria novamente, em breve. Eu já me preparava para a desgraça, quando ocorreu um fenómeno que desviou as atenções das vestais e adiou a assembleia. O nosso principal adversário perdera a voz e, portanto, estava indisponível para discursos e grandes conversas. Porquê?

Já sabem do escândalo em que Catão se meteu? – Perguntou Fábia, deliciada, ao entrar no templo, para nos contar as novidades.

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Mamerco tinha uma filha com Cornélia. Ele tentara casá-la com o enteado de Crassa, ou seja, com o filho adotivo de Metelo Pio. Mas, para espanto de todos, o noivo desistiu do intento e renegou a rapariga. Foi então que Mamerco organizou um segundo noivado da filha com Catão.

Numa reviravolta do destino, o filho de Metelo Pio mudou de ideias e decidiu reconquistar a rapariga. A noiva lançou-se nos seus braços, para evitar os beijos do filósofo. Resultado, Mamerco cancelou o noivado da filha com Catão e anunciou que ela, afinal, casava com o filho do líder da religião romana.

Que grande confusão! – Exclamei. Fábia conhecia a história por alto. Eu soube pormenores, através de Crassa.

Emília, eu explico. – Disse-me a mulher do pontífice máximo. – O meu enteado andava enrabichado por alguém. Eu não sei quem. Não cheguei a saber! Mas o meu marido escreveu duas linhas ao filho a dizer-lhe que o deserdava se ele não se retratasse imediatamente com Mamerco. O rapaz, que não é parvo, voltou atrás na conversa. – Explicou-me Crassa, com gestos a condizer.

E Catão? – Perguntei com alguma curiosidade.

Ele quer levar o tio a tribunal.

O quê?

Mamerco foi adotado pelos Emílios Lépidos, como sabes. Mas ele era irmão de Drusa, a falecida mãe de Catão. Portanto, eles são todos da mesma família. O que estava acordado era um casamento entre primos direitos.

Eu sei…

Catão sente-se usado e ferido na sua dignidade, por isso, quer levar o pai da noiva a julgamento por atentado ao pudor. Mas o tio não lhe fez mal. Foi a prima que se rentou nele, percebes? Catão está a arrastar a família na lama, ao tornar pública uma matéria que, até então, era gerida a título privado. É uma vergonha!

E agora? – Perguntei. Ela explicou-me:

Os amigos de Catão tentam convencê-lo a desistir da ação em tribunal. – Riu-se Crassa. – Mas isto é tudo tremendamente divertido, não é? Nem por isso.

Já vi que Catão quer levar toda a gente a tribunal… Ela riu-se mais ainda:

Ninguém contrata Catão como advogado. Mas ele quer ter experiência de tribuna, percebes? – E riu-se da própria piada, empurrando-me o braço com a mão; e quase me atirou ao chão com a graçola, pois ela era tão forte como Cornélia!

Por Vesta! – Exclamei, tentando recompor-me.

Mas tem melhor. Ouve esta. – Pediu. – Ele anda a escrever versos de escárnio e maldizer em métrica arquiloquiana sobre o assunto! – E com isto, partiu-se a rir.

Ele é estúpido?

Fala em tom de desprezo, como se todos lhe devessem e ninguém lhe pagasse!

O que faz dele um homem perigoso. – Conclui.

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O filho do falecido Saloniano levava a peito qualquer censura e conseguia ficar amuado durante dias, em silêncio sepulcral. Estudava as técnicas de oratória para convencer multidões, mas dentro de casa, onde ninguém o ouvisse.

Catão falava quando ele não fosse dizer o que era melhor não ser dito. Tinha boa memória, mas era de compreensão lenta. Nos exercícios físicos levava o corpo à exaustão e andava sempre com mazelas. Era perfecionista obsessivo e um obstinado inflexível.

Catão é circunspecto, fiel às antigas virtudes. – Explicou Isáurico, noutro dia.

O homem anda seminu e descalço pelo fórum, apenas com uma toga por cima do corpo na estação das chuvas, para provar o quê? – Perguntou Cota, com má cara.

Que é mais optimate do que os outros optimates. – Resumiu Isáurico.

Catão quer ser como Pórcio. – Alertou Mamerco, ainda atordoado.

Ele não conheceu o bisavô. Catão quer ser a sua interpretação do que Pórcio terá sido, o que não é bem a mesma coisa. – Criticou o tio de César, com requintes de retórica.

Oh, Cota, não compliques! – Pediu-lhe Mamerco, cheio de dor de cabeça.

A filha de Cornélia casou sem problemas! Catão não lhe arruinou a boda. Embebedou-se numa ceia com amigos, que o irmão Serviliano organizou para ele. Afogou as mágoas a declamar a poesia que escrevera. Depois caiu para o lado e ressonou toda a noite.

Assim que acordou, Catão casou com a filha de um proscrito da invasão mariana. Da prima nunca mais falou, nem mais lhe dirigiu palavra, como se ela tivesse morrido. Vingou as suas frustrações nas vestais, que estavam à mão de semear. Soube-o por Fonteia, quando ela mudou de turno, no templo redondo.

Catão está furioso e imparável! – Disse Fonteia. – Mas eu não posso ser enterrada viva. É injusto. Sou inocente.

Calma, pode ser que não te aconteça nada.

Eu sou a chefe das vestais, Emília. Sabes o perigo que eu corro, neste momento?

Sei sim, Fonteia. Nós também.

Já sei! Tenho uma ideia.

Qual?

Temos pilhas de rolos de papiro no arquivo. Pode ser que tenham informação pertinente. Vamos vasculhar! – O que era mais fácil de dizer do que fazer. – Vem comigo, vamos procurar uma forma de nos defendermos de Catão. – E puxou-me pela mão.

O Penus Vestae era um mar de pó e de teias de aranha! Mas se eu sobrevivera ali dentro, tantos anos, durante o mandato da primeira sumo-sacerdotisa, agora tinha de consegui-lo à força, para ajudar Fonteia a tirar-nos daquele sufoco!

Por onde começamos? – Indaguei, pois a líder era ela.

Pelo princípio, ora essa! – Exclamou, aproximando-se dos papiros mais antigos. Sentei-me a seu lado, sem grandes expetativas:

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Por Amata? – Estranhei.

É esse o nome da primeira vestal, certo?

Bom, sim. Todas nós ouvimos os sacramentos no ritual de captura que precede a entrada no templo redondo da deusa: Tomo-te Amata para seres sacerdotisa de

Vesta e realizares os rituais sagrados, pois é lei fazê-lo em benefício do povo

romano e nos termos da função a que te assiste.

Vamos consultar os registos. – Pediu Fonteia. – Deve estar tudo aqui, algures…

Não era fácil procurar esclarecimentos num emaranhado de fontes de informação. A maioria dos documentos não estava nas melhores condições. Ler gatafunhos podia ser um bicho-de-sete-cabeças! No geral, aquele arquivo parecia mais um descargo de consciência coletiva, do que um lugar para fazer pesquisa. Os escribas eram de tal forma crípticos, nas palavras e nos significados, que provavelmente não desejavam ser lidos ou interpretados no futuro.

Havia uma ou duas Tarpeias? – Perguntei, a dada altura.

Tarpeia é uma rocha, da qual se atiram os traidores…

Também era uma mulher que foi castigada por traição a Roma.

E então?

Tenho registos de uma mulher com esse nome no tempo de Rómulo… e outra no reinado seguinte. São a mesma pessoa? – Foi a dúvida que lhe apresentei.

Mostra cá isso. – Pediu, com olhos em bico.

Levámos uma tarde inteira a inteirarmo-nos do tema, pois as inscrições não eram explícitas e pareciam inconsistentes entre si. Portanto, uma Tarpeia fora atirada de um penhasco, por ter aberto os portões da cidade ao inimigo de Roma, razão pela qual houve invasão do pomério e o nome da rapariga ficara associado à pena capital.

O reinado de Rómulo fora violento. O do sucessor fora pacífico. Supostamente, não houve guerras enquanto Numa Pompílio governou a cidade. Fazia mais sentido que a imolada tivesse sido contemporânea de Rómulo.

Ninguém carregaria esse nome maldito depois da ocorrência! – Alegou Fonteia.

Discordo. Tarpeia é a filha de Tarpeio. Em teoria, pode haver várias pessoas assim chamadas. Admitindo esta hipótese, as primeiras vestais de Roma seriam: Tarpeia (1) durante o primeiro reinado; Gegânia, Verénia, Canuleia e Tarpeia (2) no mandato seguinte. A segunda rapariga poderia estar ao serviço da deusa, para limpar o nome da família. – Foi a minha proposta, a aguardar por confirmação.

Vai buscar as tabuinhas de cera daquela caixa. Vamos ler o que dizem sobre o reinado de Túlio Hostílio. Resolvi interromper-lhe a rapidez com que avançava naquela matéria:

Espera! Eu ainda não percebi porque Tarpeia traiu Roma. Tu já?

Isso importa para quê?

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A ideia é safar-nos de uma acusação do colégio de pontífices, não é? Temos de descobrir a razão pela qual esta vestal foi castigada. Se ela tinha culpa ou se foi supliciada por outro motivo. – Argumentei e ela deu-me razão.

Nós sabemos a razão. A história de Tarpeia é amplamente conhecida.

Será? Deixa-me ver. – Pigarreei, antes de reunir a informação disponível. – A forma mais neutra de contar a história é a seguinte: Tarpeio, por ser o mais valente dos guerreiros de Rómulo, ficou incumbido de defender o Capitólio durante a guerra dos romanos contra os sabinos. Ele tinha uma filha chamada Tarpeia que abriu o portão das muralhas a Tito Tácio, rei dos sabinos e morreu após a invasão.

Isso assim não explica nada, Emília! – Alertou Fonteia. – Ouve a história, como ela deve ser contada: Tarpeia trocou mensagens com Tito Tácio, através de uma escrava, com quem combinou abrir os portões da cidadela a troco do que os guerreiros do rei levavam nos braços. Os sabinos usavam braçadeiras de ouro e, quando entraram nas muralhas, atiraram os seus escudos sobre ela. Tarpeia traiu os romanos e os sabinos puniram-na. Os dois povos fizeram um acordo de paz. Após a morte de Rómulo, subiu ao trono Numa Pompílio, de origem sabina. Refleti sobre o exposto.

É uma hipótese, mas não estou completamente convencida. – Repliquei, pois estava cheia de dúvidas. – Os romanos raptaram as sabinas porque precisavam de mulheres para povoar o território. Então, como podia um guerreiro de Rómulo ter uma filha com idade casadoira se, nesta fase, a cidade só tinha homens?

Quando Rómulo construiu casa no Palatino, estava sozinho. Para ser rei de uma cidade, precisava de pessoas para governar. A fama de fratricida não atraía voluntários. Então, ele prometeu asilo político a qualquer fora-de-lei entre os bosques do Capitólio e do Arx. Responderam ao apelo vários homens, entre aventureiros, bastardos, bandidos, falidos, escravos fugitivos ou até assassinos, que o ajudaram a erguer uma paliçada, a proteger o pomério. Portanto, o mundus era reduto dos sem terra! Como uma cidade não se faz apenas com homens, Rómulo organizou uma festa para atrair mulheres. Como elas só vinham com os pais e os irmãos, ele combinou uma corrida de cavalos.

Para os troianos, os cavalos estavam sob a égide de Neptuno que, no Lácio, correspondia ao deus Conso. Por isso, Rómulo chamou às celebrações ludi consuales. Os sabinos engoliram o anzol, pois gostavam de disputar prémios e competir entre si. O nosso rei e os seus guerreiros aproveitaram para raptar as sabinas.

Rómulo reinou uns trinta e cinco anos, Emília! A guerra com Tito Tácio pode ter sido mais tarde. – Alertou Fonteia.

Peguei noutro rolo de papiro e desenrolei-o. Comecei a ler o seu texto em colunas, sobre Tarpeia ser uma sabina e uma virgem vestal, na sua cidade de origem. Ela era uma filha do rei Tito Tácio. Rómulo capturou-a e tornou-a sua concubina. Mas a rapariga fugiu-lhe e abriu as portas da fortaleza aos sabinos que, assim, entraram no espaço sagrado dos romanos. Rómulo e os seus homens desceram do Palatino, onde estavam aquartelados e venceram os invasores. Tarpeia morreu nesse dia.

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Lê o que diz aqui, Fonteia. Faz sentido. – E expliquei-lhe a minha nova teoria. – Se Tarpeia fosse uma sabina, faria sentido que abrisse as portas da cidadela, sem precisar de trocar mensagens com o exterior, pois teria motivo para querer fugir à captura. Talvez na confusão da entrada, a rapariga tenha sido atropelada pela infantaria sabina. Ou foi capturada pelos romanos e atirada por eles do penhasco.

Mas se Tito Tácio era o pai de Tarpeia, por que é que ela não se chamava Tácia? Apontei para outra coluna de texto e alertei para um facto interessante:

Há uma lenda segundo a qual o nome antigo do Capitólio era Tarpeio.

Sim, eu sei. A mais baixa das sete colinas de Roma possuí duas mesetas separadas por uma comba. O Arx fica a norte, onde se ergue o templo de Juno Moneta. No pico sul, o último rei de Roma Tarquínio o soberbo encontrou a caveira de Tolus e, uma vez consultados os áugures, chegou-se à conclusão que a cidade seria a cabeça de todas as nações e a montanha recebeu a designação de Caput Toli ou Capitolium. Mas antes de tudo isto… o monte chamava-se Tarpeio. Então a explicação era simples:

Portanto, a rapariga podia chamar-se Tácia! Mas ficou para a história como Tarpeia, por ter morrido num penhasco chamado Tarpeio.

A história de Tarpeia fora remodelada para que o nome do fundador da cidade não ficasse associado à morte de uma virgem vestal. Até havia mitos sobre Remo não ter sido executado pelo irmão, com o mesmo intuito de purificar Rómulo do fratricídio que cometera. Como os romanos tinham raptado as suas esposas, os primeiros inimigos dos romanos eram os pais, irmãos e maridos extremosos das mulheres capturadas. A lenda de Tarpeia colocava poeira sobre todos estes factos.

Na versão original, as sabinas teriam pedido às suas famílias para não combaterem os romanos, manifestando interesse em permanecer no pomério. Mas se os homens liderados por Rómulo venceram a batalha e elas tinham sido sequestradas, é mais provável que as mulheres se tenham sacrificado para salvar a vida aos parentes. – Foi a minha proposta. – O que não significa que, anos mais tarde, não tenha havido revolta de uma filha de casal desaguisado. Não sabemos. Mas é provável que as primeiras vestais de Roma tenham sido: Tácia (a sabina raptada por Rómulo e sacrificada no monte Tarpeio); e depois Gegânia, Verénia, Canuleia e Tarpeia.

Mas Tarpeio é nome de colina. – Fonteia parecia confusa.

Diz aqui que o pronome de Tarpeio era Espúrio. O que significa bastardo. Então, é possível que o homem fosse um bebé abandonado. – Foram as minhas hipóteses. Fonteia encolheu os ombros e avançou com a seguinte conjetura:

Mas nós estamos a fazer genealogia? – Reclamou a sumo-sacerdotisa. Tentei alertá-la para o que era mais importante:

O que estou a explicar-te é que Tarpeia, a primeira vestal romana, foi

condenada à morte por razões que não tinham nada a ver com o facto de ela

ser virgem ou respeitadora dos rituais da deusa. Ela viu-se envolvida na

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primeira guerra entre sabinos e romanos. Inocente ou culpada, foi sacrificada num ritual de purificação dos mortos. – Conclui.

Tarpeia era uma traidora. Eu não fiz mal a ninguém!

Eu também não. Mas será o suficiente para nos salvar da foice? Não sei. Fonteia ficou lívida de preocupação:

Nós estamos em perigo, independentemente de sermos inocentes ou culpadas das acusações que nos fizerem no colégio dos pontífices ou em tribunal?

Creio que sim. – Admiti.

Mas isso é assustador!

Catão levou a sua avante. Os trâmites legais foram, de facto, instaurados contra as vestais. Nós fomos obrigadas a comparecer em peso a uma reunião extraordinária do colégio dos pontífices. Nesse dia de lua, Fonteia exigiu ficar a velar pelo fogo sagrado. Alguém teria de permanecer no templo e, como ela era a nossa chefe, tinha preferência. A sua vontade foi respeitada.

Fui a primeira das vestais a entrar na Cúria Regia, como se fosse a sumo-sacerdotisa, pois as quatro colegas vinham cautelosamente atrás de mim. Sentei-me. Popília, Perpena, Licínia e Fábia fizeram o mesmo, em silêncio.

Na falta de pontífice máximo, Mamerco assumiu a liderança com o apoio de Cota. Crassa não foi chamada a pronunciar-se, embora tenha interferido, na mesma, a nosso favor. Estava o caos instalado!

Mas afinal, o que é que vocês têm contra nós? – Perguntei, sem medo. Eu não podia acobardar-me, precisava defender-me. – Com que bases fundamentam as vossas acusações? Não podem instruir um caso sem provas, nem motivos, só porque estão desorientados e se deixam levar pela superstição ou pelo fanatismo.

Muito bem, Emília. Dá-lhe forte! – Exclamou Crassa, depois de ter feito o seu discurso, de todo brilhante, perante os colegas. Foi então que tivemos direito a ouvir Catão:

Em 640 AUC, Emiliana, Liciniana e Marciana foram condenadas por incestum. Eu nunca ouvira falar no episódio. Fiz contas de cabeça e assustei-me:

Há quarenta anos foram enterradas vivas… três vestais? – Perguntei, fora de jogo.

Não sabias? Então ouve, que eu explico. – Foi a ameaça do sacerdote de Apolo.

Catão mostrou pergaminhos antigos que, nas suas pesquisas, descobrira arquivados na Cúria Régia. Supostamente serviam de fundamento para o caso pois, na sua opinião, o passado repetia-se.

No primeiro documento constava que a vestal Emiliana fora indigitada a comparecer num tribunal especial em 640 AUC. Sob acusação de crime de incestum contra Roma. Ela fora condenada a ser sepultada viva.

Duas colegas acompanharam Emiliana no infortúnio, poucos meses depois, mas já no ano de 641 AUC. Liciniana e Marciana tinham sido ilibadas, numa primeira instância, pelo colégio de pontífices liderada por Dalmático, o tio de Metelo Pio. No entanto, este foi

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acusado de proteger as sacerdotisas e, por pressão dos tribunos da plebe, elas também foram condenadas à morte, acusadas de comportamento impúdico.

Metela, Fonteia e a minha primeira chefe tinham preenchido os lugares deixados vagos por Emiliana, Liciniana e Marciana. Uma suicidara-se. Metela falecera pouco após terminar o seu mandato. A terceira mantinha-se viva e dera mostras de não querer abdicar, uma vez que não era obrigada a fazê-lo, mas estava sob escrutínio e corria riscos de ser condenada à morte.

Posto isto, proponho o sacrifício de Fonteia, a atual chefe das vestais. – Foi a conclusão do orador, com base numa lógica de casca de noz.

Obrigado, Catão. Pode sentar-se. – Mamerco não estava a pedir, era uma ordem.

O filósofo obedeceu, satisfeito consigo mesmo. Alguns dos colegas aplaudiram-no. Portanto, o contexto era hostil e os chacais já pareciam ter uma vítima em mente. Cota pediu a palavra e Mamerco cedeu-lha.

Não me parece justo acusar alguém ausente e que não está aqui para defender-se. – Alegou o tio de César. – Nem creio que faça sentido condenar uma mulher pelo simples facto de liderar as vestais, ou porque há quarenta anos substituiu uma sacerdotisa condenada à morte. A lógica de Catão é uma falsa aplicação do princípio do silogismo. É uma falácia passível de ser desconstruída e eu posso explicar tudo, se quiserem ouvir-me até ao crepúsculo! – Ameaçou, sabendo que ninguém ali tinha paciência para tal.

Então o que propões? – Perguntou-lhe Mamerco.

Um teste de virgindade. – Foi a sugestão de Cota.

Queres mandar examinar o corpo das vestais? – Escandalizou-se Mamerco.

Mas isso é um despautério! Ninguém tem o direito a tocar-me! – Ripostou Popília. As vestais estavam em pânico.

Não podem fazer-me uma coisa destas! – Berrou Perpena. – Nunca fiz mal a ninguém. Sou virgem! Nunca sequer beijei o rosto de um homem! – E começou a chorar. – Porque fazem isto comigo?

Perpena estava assustada e a sua agitação generalizou-se. A situação descontrolava-se. A pressão era palpável e atingia ponto de não retorno. Eles queriam uma vítima, desse lá por onde desse!

Por favor, sentem-se. – Pediu Mamerco, a suar da testa.

Calma, estamos num colégio. – Gesticulou Cota, como se estivesse a nadar.

Sentem-se e caluda, ou vou começar à estalada a toda a gente! – Gritou Catão.

Mamerco era o líder, competia-lhe tomar uma posição. Para acalmar as hostes, perguntou aos pontífices qual das hipóteses preferiam.

Não julgar nenhuma vestal? – A proposta foi aplaudida apenas pelas sacerdotisas.

Aceitar a proposta de Catão? – A ideia foi apoiada pelo próprio e por dois outros pontífices.

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Mandar fazer o teste de virgindade? – Foi a ideia que venceu.

Havia mais pontífices homens do que sacerdotisas e eles preferiam a proposta de Cota, pois havia grande consideração pela vestal máxima e a maioria dos elementos devia o seu lugar a Sila. Eles eram optimates como o irmão de Fonteia.

Muito bem. Vamos fazer um exame de virgindade às vestais. Assim, esclarecem-se as dúvidas de uma vez por todas. – Rematou Mamerco.

Nós fomos escoltadas até ao santuário por legionários; não apenas por lictores, para não fugirmos. Licínia e Fábia entraram no átrio das vestais, provavelmente para discutir o tema entre elas, pois sabiam estar em perigo.

Eu subi os degraus do templo com Popília e Perpena. Fomos nós que inteirámos Fonteia das principais conclusões da reunião. Após tomar conhecimento sobre a deliberação dos colegas de colégio, a chefe suspirou de alívio. Ajoelhou-se perante o fogo sagrado de Vesta e agradeceu antecipadamente à deusa por a ter salvado de uma condenação à morte; partindo do suposto que a sua inocência seria comprovada pelo teste de virgindade.

E eu, como me sentia? Péssima. Eu não era inocente. Por isso, pedi perdão a Vesta por não ser a sacerdotisa que ela provavelmente desejaria:

Vesta, deusa grande de Roma, seja feita a sua vontade. Aceitarei o meu destino. – Foi a minha oração.

O exame de virgindade foi marcado para um dia de Saturno. Quando nós chegámos à Curia Regia já nos aguardavam os colegas homens e uma parteira com mandato legal. O exame, conforme combinado entre eles, seria público e realizado perante os membros do colégio de pontífices. Mas foram tomadas medidas para preservar a dignidade das sacerdotisas durante a peritagem. Trouxeram um para-vento em madeira, atrás do qual se colocaria a parteira e a vestal. Para além do anteparo, a mandatária trouxera também um manto comprido, no qual nós podíamos enrolar-nos para ajudar a preservar o corpo de olhares atrevidos.

Se os testes forem negativos, em breve regressarão ao templo livres e absolvidas. – Anunciou-nos um Mamerco terrivelmente desconfortável e impaciente. – Que o processo seja rápido.

Levaremos o tempo que for necessário. – Corrigiu Catão com altivez. Mamerco não respondeu à provocação, apenas arqueou a sobrancelha:

Começamos por Fonteia, a chefe das vestais. – Avisou. Naquele dia, Perpena estava de serviço. Conforme estipulado, ela seria chamada à assembleia após a nossa superiora realizar o teste.

Fonteia foi com a parteira para detrás do para-vento. A sumo-sacerdotisa manteve-se em pé e abriu as pernas. A examinadora baixou-se. Do sítio onde estávamos sentados, não dava para ver mais nada. De repente, a minha colega soltou um grito que desassossegou quem a ouviu. A desconhecida levantou-se, contornou a madeira e veio ter connosco, antes de bradar como uma varina.

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Hímen intacto! Teste negativo.

Menos uma… – Comentou Isáurico. Fonteia contornou a madeira de rosto rubro. A sua postura impressionou-me.

A prova da sumo-sacerdotisa deu-se por concluída. – Declarou Cota, enquanto a parteira lavava as mãos numa pia com água. Mamerco pareceu ficar aliviado, mas dirigiu-se à sumo-sacerdotisa formalmente:

Vestal Máxima de Roma estás livre de todas as acusações e não serás constituída arguida em Tribunal Especial ou em qualquer barra pública. Podes regressar ao templo de Vesta.

Fonteia peço-te que substituas Perpena. Avisa a tua colega que esperamos por ela, pois deve vir ter connosco de imediato. – Solicitou Cota, de olhos baixos. Ela aguardou que Cota e Mamerco terminassem de falar:

Ouçam bem o que vos digo e falo para todos. – Avisou Fonteia, com a boca contraída e os punhos cerrados. – Estou ao serviço de Vesta há quarenta anos e nunca senti tanta vergonha como hoje! Podem ter a certeza que não vos perdoo pelo teste a que me sujeitaram, a mim que sou uma inocente! – Exclamou e virou-nos as costas, caminhando em direção à porta, levada pela revolta.

Cota suspirou. Catão cruzou braços e pernas. Isáurico começou a coçar-se. Mamerco pigarreou e arranjou forças para prosseguir:

Proponho o critério da idade. Sendo assim, a próxima a ser testada é Popília. – Rematou, limpando o suor que lhe caía em bica pela testa. O espaço estava cheio de gente e o anseio era visível nos rostos de quem assistia. A minha colega aguentou o desafio sem gritar e o seu exame foi rápido.

Hímen intacto! Teste negativo. – Confirmou a mandatária.

A sacerdotisa contornou o anteparo, a passo lento, de rosto pálido e a tremer da cabeça aos pés. Mamerco e Cota repetiram em voz alta o que tinham dito a Fonteia. Popília não calou o seu ultraje:

Como é que se atreveram a sujeitar-me a isto, seus pulhas! Eu sou uma inocente! Nem posso olhar para vocês! Vou-me embora e é já!

Pelo caminho, passou por Perpena que entrava na Cúria Régia, ladeada por um lictor. Popília quase nem deu por ela, de cega que estava, qual turbilhão de vento.

Chegaste em boa hora, pois agora és tu. – Avisou-a Mamerco.

Perpena tinha acabado de chegar e nem reagiu, deixando-se levar para trás do anteparo pela parteira. A colega geralmente respondona e agressiva fez o teste sem reclamar. Recebeu veredito abençoado, igual ao de Fonteia e de Popília. Mas, das três, foi a que mais lágrimas derramou. Ela chorava de rosto agarrado às mãos. Dava pena vê-la naquele estado de desespero!

Oh Cota! Já não sei se esta ideia foi boa... – Protestou Mamerco, sem saber onde se meter. Ele estava verdadeiramente incomodado com aquilo.

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Só faltam três. – Avisou Isáurico.

Há quarenta anos foi condenada Emiliana, Liciniana e Marciana. Agora vamos testar Emília, Licínia e Fábia. A ver se alguma se safa! – Troçou Catão, puxando pela lógica. Ninguém lhe achou graça.

É a vez da Emília. – Declarou Mamerco.

Levantei-me calmamente, sem dizer uma palavra. Fui até ao local indicado e enrolei-me no manto. A mandatária do Estado ajoelhou-se, pediu-me para abrir as pernas e enfiou o dedo dentro de mim. Todo o meu corpo se contorceu de horror!

Hímen intacto. Teste negativo. – Disse a parteira.

Foi uma sensação brutal de alívio! Descomprimi. Respirei fundo, passei a mão direita pelas tranças e tentei compor-me, pendurando o manto no sítio. Contornei a madeira. Avancei até Perpena, abracei-a e ela, que chorava copiosamente, enfim acalmou. Em todo o processo eu não disse absolutamente nada. Mamerco deu o meu exame por terminado:

Emília estás livre de todas as acusações. Não serás constituída arguida em Tribunal Especial ou em qualquer barra pública. – Declarou, virando-se para assistência. – A próxima é Fábia.

Eu queria ir-me embora. Mas sabia que as duas últimas vestais estavam em perigo. A suspeita confirmou-se. Perpena deixou de chorar quando a parteira anunciou o primeiro teste positivo e rebelou-se quando Licínia recebeu veredito igualmente trágico.

Eu passei por esta porcaria por causa de vocês? Não vos perdoo! – Gritou Perpena e desatou a correr em direção ao templo de Vesta, onde avisou Fonteia e Popília sobre o que ocorrido.

Temos duas culpadas, portanto. – Resumiu Catão, vaidoso da sua proeza. – Bem me parecia que algo não estava bem. Cheirava-me a esturro! Eu não vos disse? Eu sou um génio! Tenho faro para estas coisas.

Bem dizia Catão. – Observou Varrão. – Temos de começar a levar a sua opinião em consideração. Ele não é tão idiota quanto parece…

Idiota, eu? Ora essa! – Queixou-se o filósofo.

Duas optimates? Estou escandalizado. – Concluiu Isáurico, antes de se mostrar apreensivo. – Os populares vão aproveitar-se politicamente deste veredito. Vão denegrir a herança de Sila. Não me agrada nada… Defendi Licínia e Fábia que estavam assustadas, aos atropelos da emoção.

Ouçam o que elas têm a dizer. Pode haver explicações. Atenuantes!

Emília cala-te. Se elas são culpadas, devem ser punidas! – Irritou-se Catão.

O sacerdote de Apolo tem razão. – Validou Mamerco. – Emília regressa ao templo de Vesta. Não podes acudir às tuas colegas.

Elas vão ser levadas a julgamento público? – Perguntei.

Sim. Ficam presas na Cúria até subirem à barra do tribunal. – Avisou Mamerco.

Vai-te embora, Emília. A sério, é melhor. – Pediu Cota.

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Desse momento em diante, perdi o controlo aos eventos. Fonteia, Popília, Perpena e eu ficámos confinadas ao espaço sagrado. Fomos aconselhadas a não sair do santuário até o processo terminar. Foi-nos vedado o acesso à Cúria Régia, pelo que não pudemos trocar mais impressões com Fábia ou Licínia até o veredito final ser público.

Neste período, Fonteia fechou-se na sua concha e devotou-se exclusivamente ao fogo sagrado. Popília e Perpena também digeriram o trauma em privado, de votando-se à culinária, passando muito tempo na cozinha. Alguém tinha de tratar de Pales e eu nunca lhe faltei. Também me ocupei das três colegas; reconfortei-as; escutei os seus desabafos e confidências. Em todos esses dias não me queixei e guardei os meus sentimentos numa caixinha dentro do coração.

O tribunal especial (quaestio) foi montado e o processo não foi moroso, para evitar uma reação violenta da população. A acusação feita à vestal Fábia incluía uma denúncia contra Catilina e a sua defesa estava a cargo de Catulo, um ex-cônsul. A vestal Licínia foi associada ao primo, acusado de beneficiar do regime de proscrições de Sila. Crasso assegurava a sua própria defesa em tribunal, reconhecidos que eram os seus dotes para a oratória. Conclui que o partido popular queria punir as vestais, na tentativa de incriminar e eliminar, pelo caminho, dois dos maiores carrascos de Sila.

Consultei novamente os nossos arquivos. O objetivo era compreender o que sucedera quarenta anos antes. A princípio não encontrei qualquer fonte de informação sobre o assunto, o que, já de si, era suspeito. Ao fim de três dias de intensas buscas nas cestas, pilhas e estantes, encontrei um pergaminho com informação pertinente. Li devagar as suas colunas de texto.

Ao que parece, Marciana apaixonara-se por um homem. Quem? Não constava do processo. As outras duas vestais teriam vidas desregradas e escandalosas, com vários amantes a entrar e a sair-lhes da alcova. Porquê? Emiliana teria começado a deitar-se com o irmão de Liciniana e esta com o irmão da colega. Foram descobertas por alguém que as chantageou. Para não serem denunciadas, passaram a pagar o silêncio com o corpo. Participaram em orgias. O segredo foi mantido por muito tempo, até que um escravo chibou o sistema. Na véspera da Saturnália de 640 AUC, Emiliana foi condenada à morte. Dois dias depois, Liciniana foi absolvida e Marciana também.

O colégio de pontífices, encarregado de decidir sobre ofensas religiosas e que deliberara por unanimidade, não satisfez o ultraje público. A sua deliberação de poupar duas vestais foi considerada um mau serviço à nação. O prestígio da instituição foi posta em causa. Um tribuno da plebe exigiu a reavaliação do processo, através de plebiscito.

Um ex-cônsul e censor foi eleito pretor pela segunda vez, para ser o campeão do povo. Este queria sangue (ou a elite através dele) e, na qualidade de quaesitor, o acusador julgou novamente Liciniana e Marciana, que foram condenadas à morte. Elas entraram em liteiras, foram amarradas nos pulsos e nos pés e, assim, transportadas do fórum até à Porta Colina, sob escolta silenciosa de pontífices, senadores, magistrados e pelo povo de Roma. Depois o pontífice máximo desamarrou as condenadas, orou e virou-lhes as costas, como mandava a tradição. Elas pediram perdão e desceram os degraus de uma câmara que tinha

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camas com cobertores, pelo menos uma lâmpada de óleo acesa e pequenas quantidades de pão, água, leite e óleo. Quando Liciniana e Marciana entraram, o buraco foi lacrado, ou seja, fechado e tapado com terra. Não se sabe quando elas morreram. Sabe-se apenas que nunca mais saíram do buraco.

O que podia eu concluir? Teria havido um escândalo público de deboche e rebaldaria, que forçara pontífices a serem mais rigorosos, ou até severos, com as vestais. Por isso é que eu fora sujeita a tão forte disciplina nos primeiros anos de sacerdócio.

Questões paralelas despertavam suspeitas. Quarenta anos exatos separavam os julgamentos de Liciniana, Marciana e Emiliana, das acusações feitas a Licínia e Fábia. Os pontífices máximos eram parentes: agora era Metelo Pio; no passado fora o seu tio Dalmático. O que é que estava a escapar-me?

A propaganda ocultava jogos políticos. Era importante descodificar as lutas de poder por detrás das condenações. Os acusadores das vestais também eram aparentados; sem esquecer que, o mais velho dos dois, recebera a alcunha de scopulus reorum, pela severidade aplicada contra os nobres, após a morte dos irmãos Graco. Portanto, a rivalidade entre optimates e os populares era central nas duas narrativas e o verdadeiro rastilho daquelas confusões todas!

Fui dormir de cansaço. Ao acordar, fui ter com a vestal máxima. Partilhei com ela a informação que recolhera. Fonteia sentou-se. Respirou fundo, coçou as tranças na cabeça e disse-me:

Mostra-me lá o pergaminho que leste. – Ao consultá-lo, concluiu. – Esta é a ata da última assembleia, que inclui apenas um resumo sobre os factos. Tem de haver um volume com o processo descrito em pormenor.

Onde está arquivado? – Quis eu saber.

Nós devemos ter uma cópia do original, guardado na Cúria Régia, pois é um assunto que envolve diretamente as vestais.

Começámos à procura do documento. Onde estaria? Foi um sarilho até conseguirmos encontrá-lo! Levámos imenso tempo a vasculhar as estantes. Eventualmente apareceu, metido numa prateleira de parede, em zona de difícil acesso. Sentámo-nos as duas a consultá-lo.

Quem é Hélvia? – Perguntei, pois era sobre ela que o texto se debruçava primeiro.

Hélvia era a filha de um equestre que viajou com os pais de Roma até Apúlia. Pelo caminho deflagrou uma tempestade. A rapariga ficou e o chefe de família decidiu deixar a carruagem. Cada qual montou o seu cavalo, para todos chegarem mais depressa a casa. Mas perderam o rasto à jovem e só deram com ela depois de a chuva parar.

Hélvia foi encontrada morta e o seu cavalo também. O equídeo estava prostrado no chão, despojado dos seus acessórios. O corpo de Hélvia não estava ferido mas exposto de forma vergonhosa, com as solas e as roupas espalhadas, não rasgadas, com as bandas do peito e da cintura soltas; as braceletes e o colar partidos. Tinha a língua protuberante e a boca

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aberta. Foram consultados os áugures e, que concluíram eles? Que a jovem fora atingida por um raio e que a sua má sorte era punição dos deuses contra a classe dos cavaleiros.

O quê? Estás a brincar? – Perguntei, a coçar as tranças até ficar despenteada.

É o que diz aqui. – Confirmou Fonteia, apontando para o papiro.

Um raio despiu a rapariga e desarreou o cavalo?! – Surpreendi-me. Era ridículo!

Pensas que não?

Quando um raio atinge uma árvore, o que acontece? – Perguntei-lhe, para fazer valer o argumento, para ela me acompanhar o raciocínio.

Os ramos ficam queimados.

O corpo de Hélvia foi encontrado sem ferimentos, Fonteia! – Exclamei.

Os raios são enviados por Júpiter, talvez ele…

Jove não desceu à terra para despir Hélvia no meio de uma tempestade! – Declarei. – É heresia associar Júpiter a crime praticado por um ser humano, seja ele qual for. Os áugures aproveitaram o homicídio (talvez aliado a estupro) para castigarem uma classe social inteira! – Irritei-me. Ficámos as duas em silêncio. Até que Fonteia se concentrou no texto:

Ouve o resto. Os arúspices foram consultados e concluíram que a morte de Hélvia ameaçava as vestais. A morte de uma rapariga inocente, jovem e solteira, só podia ser consequência da impureza das vestais na prática dos rituais. Inspirei com força, com olhos tão estrábicos como os do falecido Vopisco:

Deixa-me ver se eu percebi… o colégio dos áugures concluiu que a filha de um cavaleiro fora atingida por um raio no meio de uma tempestade, pelo que a culpa só podia ser dos equestres e das vestais, é isso? A conclusão? Só para malucos!

Sim, por uns vergarem à corrupção e as outras não serem virgens.

Para encobrir o crime, morreram quantas pessoas?

Pelo menos três vestais e os respetivos cúmplices.

Seis pessoas, portanto…

Não foram os únicos. Lê-se aqui que os livros sibilinos foram consultados pelos decênviros dos factos fecundos que recomendaram apaziguar os espíritos dos deuses. Na época houve pelo menos um sacrifício humano no fórum Boário.

Estou a ficar com dor de cabeça. – Queixei-me, pois a irritação era muita!

Os escravos foram imolados no fórum Boário, um local que se estendia até ao Tibre para os lados do Circo Máximo, onde era costume vender gado. Mas também albergava o templo de Hércules Victor, um edifício esférico, originalmente dedicado a Mater Matuta e muitas vezes confundido com o nosso templo das vestais, no fórum magno. Portanto, a ligação teria de ser estabelecida nesta base.

O ritual bárbaro foi praticado por um celtibero da tribo dos Bletonesii, famosa por fazer sacrifícios humanos. De acordo com os registos, foram imolados quatro indivíduos, talvez dois casais: um grego e uma gaulesa; uma grega e um gaulês. O carrasco era celtibero, mas não foi punido pelos romanos. Porquê? Eram facultadas duas explicações. Por um

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lado, o seu ato fora considerado conforme os seus costumes; embora se tenha legislado para proibir futuros sacrifícios humanos em Roma.

A imolação foi encomendada, ou aproveitada politicamente após consumada. – Foram as minhas propostas. – Mas porque se desculpa um costume ibérico pela morte de dois gregos e dois gauleses, para apaziguar deuses romanos?

Eles imolaram quatro pessoas aleatoriamente?

Diz aqui que os escravos foram enterrados vivos. – Observei com o nariz espetado no papiro, pois não acreditava no que lia e revia o latim outra vez.

Isso é muito estranho, pois em Roma só as vestais sofrem esse tipo de morte.

Portanto, o sacrifício foi deliberadamente encomendado pelos decênviros. Mas, nesse caso, porque meteram celtiberos, gregos e gauleses no assunto? – Foi a minha dúvida, que era pertinente.

Não sei, vamos continuar a ler. – Pediu Fonteia.

Na mesma época, foi erguido, no monte Aventino, um templo em honra de Vénus Verticórdia (com vista a corrigir atitudes, mais do que a preveni-las!) A deusa era uma Vénus, não uma Juno. Chamavam-lhe Verticórdia, por ser capaz de instigar uma mudança de opinião, de intenções ou de mentalidades. A ideia era convencer as mulheres a serem menos libidinosas e mais propensas ao casamento, para não se deixarem entregar aos prazeres mundanos. Por isso, as matronas foram chamadas a expurgar o mau-olhado, supostamente disseminado pela condenação das três vestais, através de procissões. Entre as cem mulheres mais honradas, dez foram pré-selecionadas. No final, foi coroada a mais

púdica das romanas (um elogio!) e, ao seu marido (um censor!), foi encomendada uma estátua da deusa.

Por isso é que hoje em dia as noivas fazem peregrinação ao Aventino antes do casamento; para manterem a pureza de espírito sob a proteção de Vénus Verticórdia. – Rematou Fonteia. O seu resumo ajudava a enquadrar as práticas sociais e religiosas no contexto atual, mas não explicavam a origem do problema.

Portanto, os três episódios reportam-se a sacrifícios humanos.

Parece que sim. Vamos continuar a ler. – Pediu Fonteia.

As três vestais tinham sido delatadas por um escravo que era confidente do amante da vestal Emiliana e sabia de tudo desde o início. Quem? Havia dúvidas sobre a sua identidade. Mas o homem colaborara no esquema enquanto dele beneficiara. Depois delatou-o. Quando o fez não foi castigado, pelo contrário, foi alforriado.

Se este escravo for o mesmo que sacrificou os gregos e os gauleses, as histórias estão relacionadas. Repara! Nas duas narrativas, houve alguém recompensado pelos serviços prestados e alforriado em consequência.

Se era celtibero, porque tinha pronome tipicamente romano? – Estranhou ela.

Como assim? Vetúrio foi condenado à morte por ter sido o amante de Emiliana. Foi flagelado pelo pontífice máximo. Mas aqui não diz o nome do delator. Fonteia mostrou-me uma tabuinha de cera onde havia mais informação:

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Aqui diz que se chamava Manius.

Deixa-me ler. – Pedi-lhe, com a cabeça às voltas.

Em latim, Manius significa aquele que nasceu pela manhã ou aquele entregue

aos manes, ou seja, às almas dos mortos. – Explicou Fonteia.

O texto pode ter sido redigido após o escravo ter sido alforriado. – Propus. – Nesse caso seria um liberto de Manius.

Mas Manius quê? Valério, Sérgio, Emílio, Papírio, Aquílio, Acílio… – Ela pensava à medida que falava mas, de repente, o seu rosto iluminou-se. – Eureca! No ano em que foi instaurado o processo criminal contra as vestais, o cônsul sénior tinha esse pronome. Confirma lá, se faz favor. Vê ali naquelas pilhas. – Pediu-me.

Fiz-lhe a vontade, movida pela curiosidade. Nós tínhamos de facto uma cópia da lista de cônsules de Roma. Após a sua consulta, as suspeitas confirmaram-se.

Tens razão. – Aquiesci e disponibilizava-me a aceitar o argumento como válido. Mas ela mudou de ideias ao analisar a informação:

O nome do cônsul não faz parte do processo. Sendo assim, não podia ser um escravo seu.

Qual é a tua teoria? – Perguntei. Eu não estava a perceber onde ela queria chegar.

Vamos ler outra vez a história das vestais, pode ser? – Pediu e eu aceitei. – Após a morte de Hélvia, um escravo queixou-se publicamente de Vetúrio, um equestre famoso por seduzir mulheres e viver à custa delas.

Faz lembrar Sila. – Comentei. Ela discordou. – Adiante!

Porque se queixou o escravo de Vetúrio se o processo diz que ele beneficiava da situação. Ele foi alforriado! – Estranhou a sumo-sacerdotisa. – Um condenado também não teria interesse em libertar o escravo que contribuíra para a sua morte.

Talvez ele tivesse ciúmes de Vetúrio e o tenha delatado por causa disso.

Quem, o escravo? – Admirou-se Fonteia. Fiz-lhe uma careta.

Não. O tal de Manius! Ela mudou de versão.

Ah, já percebi, o dono do escravo. – Rematou, antes de desvendar o mistério. – Emília é isso mesmo! – Exclamou, entusiasmada, como se estivéssemos as duas a desvendar um grande mistério.

Então sempre vamos bater à porta do tal cônsul sénior?

Não. – Garantiu-me. – Tu sabes quem eram as vestais condenadas?

Claro que sim. Há dias que falamos nelas. Marciana, Emiliana e Liciniana. Mas esses eram os seus nomes! Ela reportou pormenores importantes:

Presumo que Marciana fosse irmã de Márcia Rex, a avó do flâmine de Júpiter.

A vestal condenada era… tia-avó de César? – Desta não estava eu à espera!

Liciniana era da família de Crasso e de Licínia, provavelmente uma prima.

A sério?

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Tenho a certeza que Emiliana era tia de Mamerco. – Declarou. Engoli em seco, subitamente maldisposta.

Espera, o quê? – A sua revelação emudeceu-me.

Mamerco tinha um tio homónimo do irmão. Ele cunhava moedas na época em que as três vestais foram levadas a tribunal e chamava-se Mânio.

Calma! Eu preciso de digerir a informação. – Pedi-lhe.

Ergui-me nas pernas. Saí do arquivo e atravessei o vestuário até à rua onde fui apanhar ar. Na rua tremi com frio, ou de raiva ou frustração. Fonteia seguiu-me. Colocou-se em pé, a meu lado, de frente para o portão do santuário. Cada qual suspirava para seu lado, até que ela me disse:

Eu sempre fui virtuosa. Com grande sentido de dever cumpri as normas religiosas da cidade. Pensava que as vestais eram todas virgens santíssimas mas, pelos vistos, não é o caso. Liciniana, Emiliana e Marciana foram condenadas por terem desrespeitado o cargo há quarenta anos. Em breve poderão ser sacrificadas Fábia e Licínia. Pelo menos a deusa é justa e recompensa as sacerdotisas que são cumpridoras dos seus preceitos. No fim vencem os bons. – Foi o seu discurso.

A roda dentada do destino haveria de surpreender Fonteia. Licínia e Crasso foram ilibados. Catulo salvou Catilina (e Fábia, por arrasto!), numa troca de favores, por o abutre ter sacrificado Gratidiano no túmulo de Lutácio. Mamerco e Cota fizeram um apanhado da situação no colégio, uns dias depois de os vereditos terem sido anunciados:

Foram todos absolvidos. – Notificou Mamerco.

Como se conseguiu essa proeza? – Desconfiou Fonteia.

É simples, chefe das vestais. Os delatores eram populares. Mas os acusados, os juízes e o presidente do tribunal eram todos optimates. Venceu a maioria. Assim se dão nomes aos bois. – Concluiu Cota, experimente em lutas de poder. Catulo era o líder da fação dominante no Senado e ajudou a moldar o resultado:

Cala-te, Cota! Ninguém está interessado na tua conversa.

Peço desculpa. Já não está cá quem falou. – Mas era uma ironia do tio de César. Mamerco preferiu esclarecer a questão sob perspetiva (supostamente) técnica:

No entender das parteiras que depuseram em tribunal, o hímen de uma mulher pode romper-se por razões naturais, sem interferência exterior. As vestais juraram inocência e os juízes acreditaram nelas. Catulo garantiu a defesa de Catilina e Crasso ilibou-se a si próprio. Fábia e Licínia vão retomar as suas funções no templo redondo da deusa, como se nada tivesse acontecido. – Explicou Mamerco, com voz grave. Portanto, fora inventada solução de tampão, célere e eficaz, sem mortos nem feridos à mistura.

Não se fez justiça, portanto. – Rematou Fonteia.

A guerra civil terminou e a ditadura também. Precisamos voltar todos às nossas casinhas e reconstituir as nossas vidas, em paz e sossego. – Troçou Cota.

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Não me pronunciei sobre o tema. Segui Fonteia de regresso ao santuário da deusa. No átrio das vestais, a sumo-sacerdotisa fez discurso moralista e, de tão frustrada que estava, recolheu-se aos seus aposentos.

A meia-irmã de Terência, visivelmente mais magra, salva por Catulo mas sobretudo por Cícero, estava cansada e foi dormir. No vestíbulo fiquei eu e Licínia, a quem perguntei:

O pai de Crasso tinha alguma relação com hispânicos, ou gauleses ou gregos? A minha colega disse-me o que sabia, sem pestanejar:

Ele foi procônsul na Ibéria – Declarou. Mas depois pensou melhor e disse. – Bom, o pai de Crasso já tinha visitado a península antes de ser eleito cônsul. Ele assinou o Tratado das Cassitérides e foi o primeiro romano a visitar as ilhas. Sei que também foi banqueiro na colónia da Gália Narbonense. – Explicou. – Sobre gregos não sei. Só se foi antes de ser cônsul, quando passou uma lei no Senado contra os sacrifícios humanos e as artes mágicas em Roma. Já era uma reivindicação antiga pois, o bisavô de Crasso, tinha sido pontífice máximo. – Declarou sem falsa modéstia. Sendo assim, o destino tinha-lhe pregado uma partida.

O homem que proibiu os sacrifícios humanos foi imolado no fórum.

Ele suicidou-se! Nunca ninguém teve a ousadia de lhe tocar. – Corrigiu Licínia.

Nem a ele, nem a ti. – Comentei, com ironia. Ela engoliu em seco.

Fui ilibada em tribunal, Emília. Portanto, sou inocente. Falei além da conta, depois disso, mas não consegui calar mais o que sabia:

Eu vi-te com Catilina e Fábia no casamento de Crassa.

Ah sim? Calaste a verdade. Porquê?

Porque sou tua amiga e não quero que morras. Ela pestanejou e sorriu:

Obrigada, Emília. Por nunca teres revelado o segredo. – E despediu-se.

Fui para o meu cubículo de sacerdotisa e entreguei-me aos pensamentos, ainda envolta no traje branco bordado a púrpura. Retirei o véu da cabeça e sentei-me na cama dura. O silêncio era total.

É minha impressão ou esta história ainda tem muito que se lhe diga? – Perguntei à parede lisa do meu quarto, que me fazia companhia há duas décadas.