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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo VI (82-81 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo VI

(82-81 a.C.)

Maria Galito

2017

César e a Vestal 143 Maria Galito

Capítulo VI

672-673 AUC

Na Monarquia havia sacrifícios humanos. Na República havia guerra civil.

Sila venceu a batalha de Porta Colina nas calendas do nono mês de 672 AUC1. Na tarde subsequente entrei na Domus Publica atrás de Fonteia e de Metela, como se ela ainda fosse a nossa chefe, e fomos recebidas por homem moreno de estatura média em traje militar, com feridas nas pernas e nos braços, que eu conhecia de vista.

Prima, a que de-devo a vi-visita? – Perguntou Metelo Pio, com voz seca.

Vim salvar as vestais. E tu o que fazes aqui? – Admirou-se Metela. Ela punia por Fonteia, que lhe guardava segredos e a mim por arrasto.

Sou-sou o novo pon-pontífice má-máximo. – Respondeu ele, ao desafio.

Mas tu gaguejas, homem!

E tu já-já foste exonera-dada! – Como quem diz, não me chateeis.

Metelo Pio era rico e pertencia à mais poderosa das Gens plebeias (naquele momento!). Também era o mais famoso dos legados de Sila. Filho do falecido Numídico, ele tinha plena consciência da trapalhada em que estava metido! A sua língua trôpega impedia-o de concluir um ritual sem falhas. O que transtornava qualquer protocolo religioso. Portanto, o futuro de Roma não parecia risonho.

Tiveste tempo para ser… eleito? – Estranhou Metela, com dedos na cintura.

Fui no-nomeado. Or-ordens de Sila. – Confessou ele, com mãos atrás das costas.

O líder dos optimates mandava agora na cidade e queria que os outros, simplesmente, lhe obedecessem! A nomeação de Metelo Pio ainda não era oficial, mas recebera instruções para marcar território que, daí em diante, lhe pertencia.

Para quê tanta pressa? – Metela não era inexperiente na política, mas parecia surpreendida. – Sila substituiu o falecido Mário na liderança do colégio dos áugures e, portanto, ele já garante, sozinho, que os augúrios sejam sempre favoráveis aos seus interesses.

Cé-cévola travou Ci-cina e Carbão. Eu de-devo abrir alas-alas a Sila. Metela pareceu compreender o que o primo quis dizer, pois perguntou:

Ainda há resistência à vossa invasão?

Sim, no Se-senado. – Confessou Metelo Pio. A prima manifestou a sua posição naquela matéria:

Sendo assim, faria mais sentido que tu fosses chefe de cavalaria de Sila.

César e a Vestal 144 Maria Galito

Ele es-escolheu Flaco. – Disse Metelo Pio à prima.

O flâmine de Marte era o novo interrex. O objetivo era agilizar o processo de nomeação do ditador e, por isso, Sila convidara-o também para chefe de cavalaria. A escolha justificava-se, pois Flaco era o atual Princeps Senatus, o mais veterano e ilustre dos membros da Cúria Hostília (enfim, do que restava dela, pois tinha sido destruída no dia anterior!). Ele tinha prestígio junto dos seus pares e, nessa medida, era o nome indicado para afirmar a “legitimidade do golpe” de Sila.

Metelo Pio tinha currículo de pretor e de pro-pretor na guerra contra os samnitas. Um ano antes, fora nomeado inimigo público, por um Senado liderado por Carbão. Por enquanto, não era o melhor candidato a interrex ou chefe de cavalaria, admitindo que Sila queria disfarçar o golpe com medidas “legais”.

Tenho a certeza absoluta que Sila vai ajudar-te numa futura candidatura a cônsul e enviar-te, como procônsul, para combater os seus inimigos. Tu és um militar por excelência. Nem costumas ficar muito tempo em Roma. – Argumentou Metela. – Portanto, continuo sem perceber porque ele não escolheu Crasso para pontífice máximo, quando dois dos seus ancestrais ocuparam o cargo2 … ele é mais homem para estar sossegado na cidade, a enriquecer e a engordar… e não gagueja!

Cra-crasso não é-é sequer pon-pontífice – Replicou ele, indignado. Mas essa não era a única razão. Crasso e Metelo Pio davam-se mal e eram rivais no partido.

Sila, se quisesse, podia ter nomeado Crasso, tal como fez a ti. – Admitiu Metela. As suas palavras não foram bem recebidas.

Era rebuscado, até para Sila, arranjar maneira de Crasso ser pontífice num dia e pontífice máximo no dia seguinte, não te parece? – Escandalizou-se Fonteia. Metela continuava a pensar da mesma maneira, mas fingiu reconhecer o erro:

Vocês têm razão, claro. Mas custa-me imaginar o meu primo a gaguejar nos rituais religiosos daqui em diante! Vai ser penoso para ele… e para toda a gente! Metela já não era vestal. Fonteia ainda o era e dava prioridade à sua segurança:

Cévola foi assassinado agarrado às colunas do templo de Vesta e o seu cadáver atirado ao Tibre. Foram ultrapassados todos os limites! Não é qualquer homem que se atreve, ou tem condições, para ocupar o lugar de pontífice máximo, neste momento Metelo Pio eriçou-se logo:

Eu-eu não te-tenho medo e nin-ninguém se atreve a le-levantar armas contra mim!

Exato. Foi o que eu disse. – Reforçou Fonteia. Acreditei nele. Metelo Pio podia ser tartamudo, mas era rápido no uso da espada.

Mas-mas afinal, o que-que vieram vo-vocês cá fazer? – Perguntou ele.

Dalmática avisou-me que hoje havia julgamento na via-sacra. Decidi vir em defesa das minhas amigas vestais. – Explicou Metela. Metelo Pio encolheu os ombros e sentou-se, com cara de estar no sítio errado:

Por-porquê? O-O anho é de Jo-jove. – Informou Metelo Pio. Ousei abrir a boca, espreitando atrás das costas de Metela:

César e a Vestal 145 Maria Galito

Querem fazer mal ao flâmine de Júpiter?

Cé-césar não-não é flâ-flâmine nen-nenhum. – Corrigiu-me Metelo Pio. Metela aventurou-se numa observação aguçada:

Sila quer sacrificar os marianos todos?

E fa-fzer da morte de-deles um-um exemplo. – Rematou Metelo Pio. Ele tinha o corpo encurvado no assento, com as pernas abertas e os braços sobre os joelhos, quando mirou prima com olhar vazio. – Cé-césar é o único que fal-falta.

Fiquei sem pingo de sangue. Na verdade, Sertório também estava a monte, mas o nosso chefe julgava-o morto em batalha. Sila obtivera as primeiras informações de senadores reunidos num templo, às portas da cidade. Também convocara uma assembleia de pontífices e áugures para impor a sua ordem de trabalhos.

Pouco depois, estávamos na Cúria Régia. Havia muitos legionários à nossa volta! Sila estava refastelado na cátedra que pertencera a Aenobarbo e a Cévola e agora era de Metelo Pio. O comandante trincava costeletas assadas, daquelas bem gordurosas, que os escravos lhe traziam em travessas. Descontraído, lacerava a carne com os seus longos caninos. Mas não estava sujo. Pude constatar que tinha tomado banho e vestido roupa lavada. Colocara sapatos senatoriais. As suas feridas até estavam curadas!

Sila assustava as pessoas por manter a serenidade quando mais ninguém conseguia. Mas o seu corpo não era incólume aos excessos de guerra. Ele estava calvo e envelhecido! A sua pele, muito branca, coberta de manchas rubras, escamava-se com o sol. Tal como os gregos haviam escrito, ele parecia uma amora salpicada de farinha!

Sila tinha queixo bifurcado, que observava nariz aparatoso com covinha na ponta. Os seus olhos, enormes, eram de um azul gelado! Ele parecia um fauno de rosto histrião, com papos no pescoço. Mas nada nele perdera a garra ou a força de espírito. Pelo contrário! Com os anos conquistara confiança em si próprio, para desgraça de terceiros! Ou seja, o comandante dos optimates passara de arrojado a intrépido. Se ele antes era uma ameaça ambulante, agora era homem perigosíssimo!

Metelo Pio sentou-se à direita de Sila. Fisicamente, eles não tinham nada em comum. O primo de Metela tinha nariz aquilino, olhos estreitos e boca de dentes pequenos. Ainda não se tinha lavado. Continuava a envergar o traje militar, sem pedir aos escravos que lhe sarassem as feridas, que deviam doer bastante, para mostrar valentia! Nem espreitou a comida e pareceu ficar enojado com o cheiro. Curvou-se sobre as pernas e começou a rebolar, nas mãos, a patera dos sacrifícios que pertencer a Cévola. Ele não estava satisfeito por estar ali.

Metela sentou-se connosco, nuns banquinhos de madeira, junto à porta. Depois surgiu Mamerco, mantendo a pose, de costas direitas, como era seu apanágio. Estava com ar de quem tinha sido atropelado por uma carroça! Mas os seus olhos mantinham-se incisivos e atentos aos colegas.

Sabes alguma coisa sobre o meu irmão, Mamerco? – Perguntei-lhe, a medo.

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Eu tremia, pois tinha ouvido dizer, a Metelo Pio, que os marianos tinham morrido ou estavam a ser empurrados para o reino de Platão! Mamerco pegou-me nas mãos, que eu lhe colocara ao seu peito e sussurrou-me:

Não te preocupes. Marco está vivo e os filhos também.

Onde estão eles?

Não faças mais perguntas. Deixa-te estar sossegada e não chames a atenção.

Sentei-me, novamente, ao lado de Metela. Mamerco colocou-se à esquerda de Sila e entrou na conversa, que avaliava a possibilidade de aumentar o número de membros dos colégios religiosos. A ideia era fazer nova legislação. As vestais não foram consultadas sobre tais procedimentos.

Depois apareceu o flâmine de Marte. Tossiu ao entrar na Cúria Régia. Atravessou o espaço com os seus cabelos brancos e crespos, arrastando os pés com dificuldade. Coçou a cabeça com nervosismo e sentou-se ao lado de Mamerco, ou melhor, esborrachou as ancas no assento.

Estou com fome. – Reconheceu o novo interrex.

Flaco piscou o olho às travessas de comida. Tomou balanço e aproximou uma costeleta da boca. Ainda hesitou, semicerrando os olhos. Mas ao desferir uma dentada na carne, tomou-lhe o gosto e mastigou com vontade. Gabou o tempero. Tentou ser discreto, mas a gordura escorreu-lhe pelos dedos, borrifou a toga com nódoas e a sua falta de jeito não passou despercebida.

O meu amigo Isáurico ainda não chegou? – Estranhou Flaco.

Isáurico deu sinal de vida quando trouxe, consigo, os seus cinquenta anos de experiência. Era senador respeitado, de perfil conservador, estoico e pragmático. Mas tinha olheiras. Parecia desconfortável. Não dava exatamente para saber porquê.

Vinguei-me. É o que interessa! – Exclamou Catulo, ao entrar pela porta.

O filho de Lutácio era irrefletido e desbocado. Era também um poeta e um admirador da cultura grega. Entrara para o colégio dos pontífices por indicação de Sila e, bastava olhar para ele, para perceber que possuía carater quizilento. Falava alto. Era homem de quero, posso e mando, embora fosse um pau mandado de Sila!

Onde está Cota? – Perguntou Mamerco, preocupado.

O tio de César surgiu a lamber feridas e a ser empurrado por dois legionários. Nunca fora homem bonito mas, o rosto esmurrado, fazia-lhe sombra. Tinha as vestes em frangalhos! Fora sujeito a grande violência física e parecia mais cativo do que pontífice.

Sila deixa César em paz! – Exclamou com coragem.

Sejas bem aparecido, Cota! – Troçou Sila, abrindo-lhe os braços. Catulo olhou para o pontífice com vontade de o trucidar!

O meu sobrinho nunca te fez mal e só quer viver calmamente no Capitólio!

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Pois, mas isso não é possível. – Respondeu Sila ao destemido Cota.

O tio de César tinha sido torturado, mas mantinha a capacidade de raciocínio. Revoltou-se por o sobrinho estar em perigo e teceu todo o tipo de argumentos, num discurso improvisado.

Os oradores não sabem estar calados. – Rosnou Sila, com desprezo, a mastigar lentamente a carne que comia.

A um gesto de Sila, Cota foi castigado. Um legionário deu-lhe uma cacetada, abriu-lhe uma ferida na perna e atirou-o por terra.

Onde está César? – Perguntou Mamerco.

Fagita! Vai buscar o sobrinho de Mário. – Ordenou Sila.

Sim, senhor. – E o legionário foi tratar do assunto! Sila continuava a mastigar. Mas pouco comia, ao contrário de Flaco:

Vieste morrer aqui hoje, Cota? – Perguntou ao advogado.

Estas feridas não são autoinfligidas. – Protestou Cota, com espírito revoltado. – Os teus capangas é que insistem em espancar-me! Sila abanou a cabeça:

Eu não tinha nada contra ti, até tu me desafiares.

Eu só defendi o meu sobrinho. – Avisou Cota.

Regressaste do exílio, mas não trouxeste Rutílio. Que estranho! Eu posso dar-lhe um salvo-conduto, para compensar o facto de ele ter sido injuriado por equestres! Era uma armadilha? Cota admitiu que sim:

O tio Rutílio não regressará a Roma. Ele prefere viver a velhice, calmamente, longe das nossas guerras intestinas.

Que pena! – Retorquiu Sila, com displicência. – Planeio remediar injustiças perpetradas por cavaleiros e legislar nesse sentido. Rutílio não quer a minha ajuda? Ingrato!

Foi então que César chegou. Nunca mais esquecerei daquele momento! Fiquei em pânico! César estava lavado em sangue. Tinham-lhe arrancado as vestes de flâmine de Júpiter. O seu corpo, envolto numa túnica rasgada, fora chicoteado. Tinham-lhe batido com toda a brutalidade! As pernas e os braços pareciam uma imensa nódoa negra, púrpura e suja. O cabelo, banhado em suor, colava-se à sua pele. Ele tremia e dava dó.

Cota ergueu-se na perna ferida e coxeou em direção ao sobrinho. Flaco parou de comer. Isáurico cruzou os braços e as pernas. Catulo fixou os olhos em César.

Olha quem chegou? O filho de Vénus! – Troçou Sila, com desdém.

Como é que o apanhaste? – Perguntou Flaco, que parecia interessado em saber.

Fagita tirou o coelho da toca. – Informou Sila, com desdém.

Já percebi! Por isso é que o templo de Júpiter optimus maximus está todo destruído. – Concluiu Catulo. – Heróstrato mandou destruir o templo de Artemisa em Éfeso, por acreditar que, assim, o seu nome seria espalhado pelo mundo. – E

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perguntou a Sila. – Pensas que, deitando abaixo as colunas de Jove, ascenderás à imortalidade? Sila até parou de comer.

Ouve! Os marianos é que deitaram fogo ao templo de Júpiter! Sila parecia estar prestes a mordê-lo de raiva.

Pois claro. – Aquiesceu Catulo, ao aperceber-se da gafe que cometera. – Tens toda a razão. Os populares é que destruíram o templo do Capitólio e, portanto, precisam ser castigados. Sila resolveu atirar-lhe, para cima, o pão quente que tinha nas mãos:

Tu ficas encarregue de reerguer o edifício dos escombros.

Eu? – Atrapalhou-se Catulo. – Sou um poeta. Não percebo nada de arquitetura!

Pede inspiração a Homero e tudo se resolve. – Disse-lhe Sila.

Combinado. – Respondeu Catulo, sem mais remédio. Respirou fundo. Abanou a cabeça, desprendeu os cabelos encaracolados e mudou de ideias. Agora parecia engrandecer-se com a incumbência. – Pensando bem, se eu reconstruir o templo de Júpiter, o meu nome ficará para a história como Catulo Capitolino.

Isso é que é falar! – Rematou Sila, mais satisfeito. Catulo sorria, mas foi sol de pouca dura, pois virou-se para Isáurico e perguntou:

Ajudas-me?

Enquanto os dois colegas de partido se entretinham a imaginar a nova planta do edifício, Sila virou-se para César, que tudo fazia para manter-se em pé.

Ouve lá, miúdo! Enfiaste o barrete de flâmine de Júpiter, sem que o pontífice máximo te ungisse, porquê? Era uma pergunta retórica. Talvez por isso, César não retorquiu, cuspiu sangue.

Ele é tímido. – Foi a proposta de Mamerco, talvez por ser amigo de infância de Cota. Ele conhecia César desde criança e sabia perfeitamente que o rapaz não era introvertido. Sila mostrou-se indiferente a sofrimento alheio.

Barricaste-te no Capitólio, porquê? Desde que Mário te casou com a filha do Cina que só arranjas sarilhos na cidade! Pensas que és profeta da desgraça e do mundo que há-de vir?

Fez-se silêncio. Ficámos suspensos na resposta de César. Mas ela não veio. Um patrício não pedia clemência. Ele era neto de Márcia Rex, jamais se submeteria! Não se queixava do opressor, para não lhe entregar o poder de bandeja. Mostrava valentia e enfrentava o inimigo com dignidade, de cabeça erguida.

Sila, que também descendia dos velhos guerreiros de Rómulo, ficou furioso, porque conhecia as regras que impediam um nobre de se subordinar a outro. Reconheceu em César um rival e irritou-se contra a sobranceria. Fechou o punho e atirou-o, com toda a força, contra uma pequena mesa. O repasto projetou-se jocosamente em várias direções! O pessoal ficou cheio de nódoas. Catulo cuspiu a comida que lhe foi parar acima. Flaco, com dedos papudos, mandou os escravos limparem o chão.

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A assistência assustara-se com Sila. César nem pestanejou. O comandante resolveu dar-lhe um corretivo. Fez sinal a Fagita. O liberto deu joelhada no prisioneiro e um murro.

O filho de Aurélia vibrou em arco, cuspiu mais sangue, mas susteve-se nas pernas. A sua resistência passiva, gerou grande desconforto num comandante habituado a golpear a torto-e-a-direito!

Eu não estava em mim de infelicidade! Ver César sofrer daquela maneira era absurdo! Sila galhofava, virando-se para os aliados, para que se rissem com ele. Catulo e Flaco fizeram-lhe a vontade. Isáurico manteve os dentes rigidamente contraídos, de sobrolho levantado. Eu levantei-me indignada com aquela barbaridade! Mamerco fez-me sinal, para que me sentasse. Eu não queria. Mas cedi.

O que tens a dizer em tua defesa, César? – Atirou-lhe Catulo. A ideia era dar-lhe uma oportunidade de defesa, mas o filho de Aurélia não a quis.

Responde, miúdo! – Exigiu Flaco de boca cheia.

Em tempos, o flâmine de Marte fora acusado de ser submisso a Mário. Agora dançava ao ritmo de Sila. Portanto, possuía a maior qualidade dos oportunistas: fraca personalidade, nenhuma ideologia e grande instinto de sobrevivência!

Fagita, o miúdo estava mudo quando o capturaste? – Troçou Sila.

Não, senhor. Gritou que não podíamos prendê-lo, pois ele não era… ladrão.

Uivou como um cão? – Troçou Sila. – Agora podia fazer mais do mesmo… e nós cortávamos-lhe a língua! – E soltou uma gargalhada, como se tal ideia tivesse piada.

Sila deu uma cotovelada em Mamerco, para que este pegasse no pergaminho enrolado sobre a mesa. O genro, sem mais remédio, leu o documento em voz alta, que incluía uma longa lista de acusações contra o filho de Aurélia. Só recordo a última frase:

César é acusado de altivez, culto à personalidade, perturbação mental e fanatismo.

Portanto, o rapaz é doido. Merece a morte. – Concluiu Sila, que estava interessado numa execução primária.

A ansiedade era palpável. Naquele espaço fechado, respirava-se suor, comida e um tipo de insolência que me pôs doente! Poderia César sair dali vivo?

Este julgamento é uma fachada! – Queixou-se Cota.

Ninguém perguntou a tua opinião. – Disse-lhe Sila. Mamerco tentou remediar a situação:

O povo considera César afável, bem-disposto e espirituoso.

Oh poupa-me! Deixa Cota entreter-se com essa bazófia! – Rosnou o comandante.

Enquanto vestiu as vestes de flâmine de Júpiter, César não pegou em armas. Para todos os efeitos, o miúdo é pacífico. – Insistiu Mamerco.

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Sabes lá tu! – Atirou-lhe Sila. – Há quanto tempo não vives em Roma? – Perguntou-lhe. Mamerco calou-se. Sila mostrou-lhe os dentes, antes de se virar para Flaco. – E tu? Escolhi-te Interrex para dizeres alguma coisa!

O velho flâmine de Marte puxou pelo instinto de sobrevivência, remexeu-se no assento e arengou contra o não ungido:

César é um traidor. Ouvi-o insultar o sistema bipartidário, que ele considera corrupto e responsável pela guerra civil.

Que mais disse ele? – Inquiriu Sila, a saborear a vitória.

Escutei César louvar a monarquia. – Disse Flaco. Eu não tinha escutado tal coisa! – Eleições todos os anos, segundo ele, perturbam a paz e manipulam o povo. Sila salivava dos caninos quando se dirigiu a César e perguntou:

Portanto, ele canta de galo do Capitólio. – Concluiu o líder dos optimates.

Ele diz que é uma águia de Júpiter. – Notificou Flaco. Sila virou-se para César com olhos gelados e perguntou-lhe:

És o rei dos romanos?

O pior espetro era o da monarquia. As pessoas temiam a vinda de um novo Tarquínio o

soberbo que, com base nos relatos históricos, abusara da população mas também dos nobres da cidade.

Tu o disseste, não fui eu. – Murmurou César. O interlocutor congratulou-se por o ter obrigado a falar.

Não ouves o que dizem contra ti? – Perguntou-lhe Sila. O filho de Aurélia parecia febril e não disse mais nada.

Ele ouviu todas as acusações, deixa-o. – Pediu Mamerco. Mas o comandante precisava enterrá-lo e exclamou:

És a sétima águia de Mário, César? Ele sabia que era difícil combater símbolos, uma vez identificados.

Que disparate! O meu sobrinho nunca liderou um exército. – Revoltou-se Cota. – Daqui a pouco, parece que queres que ele o faça? Levei a mão ao rosto, de susto!

César é um demagogo e há nele mais do que um Mário! – Gritou Sila.

O meu sobrinho só quer ver reconhecido o estatuto para o qual foi eleito. – Insistiu Cota, até ser novamente agarrado pelo legionário e se impor contra a violência de que era alvo. – Larga-me! Eu sou um pontífice. Sila pouco se importava com Cota. Ele queria humilhar César:

Não me enganas com essa cara de santo sob a tríade do Capitólio. Estás armado em pai (Júpiter), filho (Marte) e espírito (do povo romano)? – Ironizou Sila.

Rómulo queria incarnar Quirino para subir aos céus e sentar-se à direita de Júpiter. – Teorizou Catulo, na ânsia de agradar ao comandante. – César quer fazer o mesmo, por julgar descender de Vénus e se vestir como Flamen Dialis… A blasfémia era total!

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Podemos testar essa hipótese. – Admitiu Sila, com cara deslavada e caninos à mostra. – Matamos César a ver se ele é um novo Quirino, o que vos parece? O filho de Aurélia falou pela segunda vez e foi enigmático no comentário que fez:

Aos deuses o que lhes pertence. A César o que é de César.

O que quer isso dizer? Fala direito! Não digas heresias! Não vês que, assim, enterras mais o machado no teu pescoço?

Ele não é como tu, Catulo! Ou pensas que não sabemos que sacrificaste Gratianiano a golpes de machado. – Acusou Cota. – Mandaste Catilina torturá-lo até à morte sob o túmulo do teu pai. És um homem doente. Doente!

Não te dou o direito de me matracares o juízo com os teus discursos da treta, Cota! – Irritou-se Catulo, erguendo-se em fúria.

Sila resolveu silenciar o advogado de uma vez por todas. Fez sinal aos legionários para o levarem. Cota foi arrastado para longe, com a perna em chaga. Sem medo, continuou a gritar pela sua vida, até que, a dada altura, deixei de o escutar. O comandante rebolou os olhos, antes de atacar César com toda a determinação:

Este mariano, a quem prezam a salvação, quer acabar com os optimates!

Os homens agitaram-se. A onda era conservadora, contra membro do partido da oposição. César contorcia-se e travava batalha consigo mesmo, como se a mente ultrapassasse em coragem as suas capacidades físicas. Mamerco apiedou-se e tentou substituir Cota na defesa do prisioneiro:

Há cento e cinquenta anos, o primeiro Sila de Roma foi flâmine de Júpiter. César tentou ocupar o lugar da melhor forma que podia e sabia. – Começou por dizer. – Mas coitado, ele já não tem pai que o defenda, guie e aconselhe. Peço clemência. Sila olhou para o genro com voz cavernosa.

Mamerco falas tanto… queres ir fazer companhia a Cota? O genro engoliu em seco.

Desculpe, meu sogro. Só estava a tentar ajudar…

Tenta menos. – Aconselhou Sila. Flaco teceu as suas considerações a favor do chefe:

Sila foi clemente. Convidou César a divorciar-se da mulher, filha do traidor Cina. Ele não aceitou. Portanto, mordeu a quem lhe estendeu a mão e merece castigo.

Desconfiem do jovem que aperta mal a cintura! – Sila riu-se da própria piada. Era trocadilho em relação às vestes de flâmine de Júpiter. – Desafiar tudo e todos em tenra idade faz-me suspeitar dele no futuro. Falo a sério! Depois não digam que eu não avisei.

Sila não estava disposto a perder mais tempo com o assunto e resolveu atalhar a questão, virando-se para o pontífice máximo:

Catulo já honrou a memória do pai ao vingar-se de Mário, sacrificando-lhe um sobrinho. Queres a oportunidade de fazer justiça ao teu?

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Pelo que se depreendia da conversa, Gratidiano fora assassinado pela lei do olho por olho,

dente por dente. Sila aproveitava-se do ódio de Metelo Pio para sacrificar César.

A audiência fixou os olhos no novo pontífice máximo. O que iria ele fazer? Temi a sua decisão. Resolvi agir. Ergui-me pela segunda vez. Não fui travada por Mamerco, nem por Metela. Fonteia apenas me puxou pela estola, em vão.

Retirei o véu da cabeça e aproximei-me do jovem atormentado. A situação era humilhante para ele. O grau de coragem que demonstrava, ao não chorar, implorar ou vergar mediante as dificuldades, era admirável. Mas não o suficiente para o salvar, atendendo a que estava fisicamente desfeito. César não conseguia olhar-me. Não lhe exigi que o fizesse. Deixei que repousasse o rosto no meu véu, para lhe limpar a testa de suor e de sangue; os quais foram absorvidos pelo linho, que agora refletia a sua imagem.

Eu queria muito ajudá-lo. Estiquei o braço para pegar no cocho, que servia o pequeno altar, à entrada da porta. Tinha pouca água e não havia forma de o encher sem autorização de Sila. Mas dei-o, assim mesmo, a César para lhe saciar a sede.

A menina leve o tempo que quiser! – Ironizou Sila. – Flaco, esta é quem?

É a vestal Emília. – Respondeu o Interrex. As atenções estavam agora centradas sobre mim.

A irmã de Marco! Bem me parecia. – O comandante mastigou a informação com desdém – Eu lembro-me dela… do casamento de Mamerco, não foi? Ela ofereceu o véu à minha filha. O genro fez um gesto afirmativo com a cabeça:

Não lhe faça mal, ela é boazinha. – Pediu-lhe o rex sacrorum.

Estavas tão bem calado. – Atirou-lhe Sila. O outro coseu os lábios. Metela foi suficientemente destemida para me defender:

Não assustes a rapariga, Sila! É absolutamente inacreditável que estejas a sujeitar as vestais a este espetáculo deprimente! – Exclamou.

Tu já não és vestal e sabes o que pode acontecer-te se continuares a falar. – Rosnou Sila. Ela ficou lívida. – Também posso ter uma conversinha com a tua prima ao chegar a casa, queres?

Uma ameaça que Metela levou muito a sério. Calou-se para que o homem não lhe fizesse mal a ela, nem a Dalmática. Eu compreendi a sua posição. Soube-me sozinha na berlinda. De nada adiantava apelar a Sila. Caminhei em direção ao pontífice máximo. Metelo Pio parou de remexer na patera.

Eu não sentia a cabeça, nem os braços, nem as pernas, como se levitasse em plumas. Naquela fase mais crítica, eu não estava em pânico. Nem sentia o corpo. Como se a minha alma se tivesse separado da sua carapaça física e estivesse incólume ao sofrimento. A minha prioridade era salvar César. Guiada pelo instinto, dei a mão ao meu novo líder. Cobri os nossos pulsos com o véu ensanguentado e olhei para Metelo Pio com lágrimas a rolarem pelo rosto.

César e a Vestal 153 Maria Galito

Que poderia eu dizer? A retórica de Cota fora infrutífera. Mamerco engolira os apelos. O rex sacrorum ficara com medo. Metela fora discriminada por ser mulher. Portanto, eu não tinha razão nenhuma para acreditar que as minhas palavras seriam ouvidas.

Eu estava cansada e profundamente triste. Queria orar, regressar ao templo redondo. Por isso, deixei o véu com Metelo Pio. Ele guardou a faca dos sacrifícios no cinto e disse:

As ves-vestais podem sal-salvar a vida a um con-condenado. O meu coração voltou a bombear freneticamente. Até César recuperou as cores!

Não podes soltar César. – Horrorizou-se Sila.

Não lhe é re-reconhecido o es-estatuto de flâmine de Ju-jupiter e perde to-todos os bens. Mas po-pode continuar vi-vivo. Que fi-fique preso até ga-ganhar juízo. – Foi a decisão de Metelo Pio. – Levem-no! Pelos vistos, o comandante não tinha poder sobre o líder dos Cecílios.

É o que dá trazer mulheres para os julgamentos! – Resmungou Sila, fazendo birra como uma criança. – Fagita leva o trinca espinhas, que depois falamos!

Portanto, César não estava completamente salvo. Trocou olhares comigo, despedindo-se, de quem o tentou salvar, com ar de mil infinitos. Era a segunda vez que alguém o arrastava para longe de mim. Em criança, o pai puxara-o para fora da casa de Mário. Em jovem, Sila empurrava-o para a incerteza. Que futuro seria o dele?

Eu mantinha-me fixa na porta aberta por onde César desaparecia, qual miragem, cada vez mais disforme, quando Metela e Fábia se agarraram a mim. Elas procuravam uma tábua de salvação e queriam partir, tanto quanto eu. Mas foram obrigadas a permanecer no sítio onde estavam. A nossa presença ainda era requisitada na Cúria Régia. Para dar consentimento tácito, claro. Ninguém ali estava interessado em ouvir o que tínhamos para dizer, quanto mais em aceitar o nosso voto, se fosse contrário ao desejo da maioria.

Te-temos pouco tem-tempo e muito pa-para fazer. – Foram as ordens de Metelo Pio. – O que-que falta de-decidir?

Precisamos nomear uma nova vestal. – Avisou o rex sacrorum. – Só temos cinco.

Sila, quem-quem propões? – Perguntou Metelo Pio.

Crasso disse-me que tem prima, em boa idade de entrar no sacerdócio. Eu não tenho nada contra e quero recompensá-lo por ter sido um bom legado.

Feito. Se-seguinte! – Concluiu Metelo Pio, sem pensar duas vezes no assunto. A rapidez, com que ele deliberava, agradava claramente a Sila.

Qual das atuais sacerdotisas substitui Metela na liderança do templo? – Perguntou o rex sacrorum.

Fábia. – Foi a proposta de Sila.

Ela é totalmente inexperiente! – Sarapantou-se o rex sacrorum. Isáurico veio em sua defesa. Eles eram os mais velhos do colégio:

Sim, concordo. É arriscado colocar uma criança à frente do templo de Vesta.

Se queres entregar o santuário de Vesta a uma patrícia, escolhe Emília. – Propôs o rex sacrorum, que era da Gens Cláudia.

César e a Vestal 154 Maria Galito

A irmã de Marco? Nem pensar! Ela gosta de distribuir véus pelas pessoas e eu não quero salvar os meus inimigos, quero matá-los. – Declarou Sila. O rex sacrorum pigarreou desconfortavelmente. Isáurico calou-se.

Sogro, não querias recompensar Fonteio pelos seus serviços na guerra? Pois aqui tens a oportunidade. – Lembrou-se Mamerco. – A irmã dele é a veterana do grupo, tem muita experiência, é discreta e não é pessoa para te causar problemas. A ideia agradou ao comandante, que se virou para Fonteia como leão para corsa:

Vais fazer tudo o que eu mandar, certo? – Quis ele confirmar. Fonteia prometeu logo que sim. Sila aceitou a nomeação. – Muito bem. Fonteia é a nova vestal máxima de Roma.

Me-menos uma cha-chatice. Se-seguinte! – Concluiu Metelo Pio, consultando a ordem de trabalhos, cujas pendências resolvia a toque de marcha. Habituado a liderar legiões, tratou dos assuntos pendentes com insensibilidade administrativa e, em pouco tempo, estava tudo despachado.

Quando a assembleia terminou, fomos as três logo embora. Caminhámos rapidamente até ao santuário de Vesta, onde Metela conversou connosco, longamente, sobre aquela experiência. Aconselhou-nos comedimento e saídas limitadas à rua. Segundo ela, o pior ainda estava para vir.

Desfiz-me em pranto, com medo pelo meu irmão e sobrinhos, por César e por Roma! Enrolei-me ao pescoço de Metela. Sei que soluçava, de tão nervosa. Fonteia, a nova vestal máxima, não estava menos nervosa.

Metela resolveu pernoitar no templo, para fazer companhia às ex-colegas, que se sentiam perdidas naquela guerra. Ela também buscava segurança no santuário, pois presenciara assassinatos e atos de vandalismo. Foi ela quem nos contou as primeiras histórias sobre a invasão e nenhuma boa para mais tarde recordar. Estava traumatizada!

Acordei a meio da manhã, depois de uma noite mal dormida. Envolvi-me numa manta de lã. Orei junto ao fogo sagrado. Caminhei descalça até ao portão do santuário, apesar do muito frio que fazia. Assomei-me à porta. Pedi a um lictor que me trouxesse notícias sobre Marco e sobre César.

Algum tempo depois, o guarda regressou com o meu irmão a tira a colo! De facto, Marco apareceu, das ruas de Rómulo, como uma alma penada. Fiquei aflita e corri para ele, com o coração nas mãos:

Marco! Por Júpiter!

Sobrevivi à batalha e à purga, queridinha…

Deixa-me curar-te. Por Vesta! – Roguei.

Eu estou bem. Deixa-me só sentar numa pedra… aqui, isso! – E sentou-se à sombra do lictor que nos fazia companhia.

O que aconteceu? – Quis eu saber, assustada com a sua aparência esfrangalhada.

César e a Vestal 155 Maria Galito

César escapara da prisão, após uma visita da mãe e da tia. Portanto, Eneias conseguira fugir da nossa Troia em chamas. Eram boas notícias! Enfim, mais ou menos. Ele andava a monte, perseguido por Fagita!

Não sei se a fuga de César embruteceu Sila.

Porque dizes isso? – Perguntei a Marco.

Quando o ditador tomou posse, deixou-se de contemplações. Roma foi esventrada por dentro, como já fora por fora!

O patrício que crescera nos esgotos, não defraudou nas expetativas. Vingou-se implacavelmente dos seus inimigos! Impôs um regime de terror capaz de punir todos quantos nutriam, por ele, menos do que simpatia.

Conta-me tudo desde o início, Marco. – Pedi-lhe.

Tudo começou nas calendas do nono mês. Sila acampara o seu exército primeiro a norte, sobre o monte Quirinal, onde a Via Nomentana e a Via Salaria se cruzavam, por volta do meio-dia. A batalha de Porta Colina revelou que a ala esquerda, sob a sua supervisão, era a mais frágil e o comandante chegou a ser dado como morto.

Sila quase perdeu a batalha de Porta Colina? – Surpreendi-me. Era uma novidade!

Mas apareceu vivo e tudo mudou. - Advertiu Marco. – O ditador bem pode agradecer a Crasso, pois foi ele quem venceu a batalha.

Metelo Pio inveja Crasso?

E não é pouco. – Confirmou o meu irmão.

Sila entrou em Roma montado numa mula e conseguiu ser mais bárbaro que os antigos gauleses! Atordoou uma cidade a cheirar a óbito e achocalhou-a aos seus caprichos.

Os legionários violaram o pomério e transformaram bairros num imenso funeral! A Cúria Hostília foi reduzida a cinzas e o Capitólio também. Vários outros monumentos foram parcialmente destruídos.

Sila reuniu o Senado para granjear poder e castigar os inimigos. Como os colegas de toga resistiam à sua vontade, ele mandou encher o Circo Máximo de prisioneiros marianos, na sua maioria samnitas, condenou-os à morte e chacinou-os.

Sila mandou matá-los a todos? Eu estava estarrecida!

Milhares no mesmo dia. Não foi em batalha, mas a sangue frio, a golpe de espada, como chibos no matadouro. – Disse Marco, de olhar vazio.

O meu irmão estava traumatizado pela experiência. Segundo ele, os senadores estiveram um dia inteiro, fechados no templo de Belona, a deliberar sobre normas que reformavam significativamente o sistema político, enquanto os legionários, nas imediações, massacravam milhares de cativos às ordens do seu comandante. O barulho devia ser arrepiante!

César e a Vestal 156 Maria Galito

Os senadores mantiveram-se em pé, ou mal sentados, onde não havia condições para os receber. Ali ficaram, até ao cair da noite, sob coação, a aceitar tudo o que o ditador queria. Eles temiam ser condenados, tal como as vítimas que se contorciam, aos gritos, como se estivessem no Tártaro e Sila fosse Plutão em pessoa.

Foi a capitulação total. – Concluiu Marco. Após escutar o relato, peguei na mão do meu irmão. Ele estava desfeito!

Lamento, meu irmão… Ele nem me ouviu. Continuou com o seu relato:

No Senado houve quem dissesse: Não lhe pedimos que liberte do castigo a quem

determinou matar, mas que não mantenha em ansiedade aos que pretende salvar. Deprimente, não é? – Perguntou Marco. Ele estava perdido nas palavras. – Sabes o que Sila lhe respondeu? Ainda não sei a quem vou poupar. Então uma das criaturas do comandante propôs: Sila diz-nos a quem queres punir.

Vais ser poupado, Marco?

Não sei. A sua resposta escandalizou-me!

Tu ainda não sabes se estás a salvo?

O ditador vai publicar listas de proscritos.

De inimigos públicos? Para lhes ficar com o património e a cidadania?

E a vida.

Por Vesta! – Exclamei, em pânico.

Emília reza para que eu não esteja incluído nesse rol! – Pediu. – Eu já me divorciei de Apuleia, para a salvar. Ela sai hoje da cidade. Não fica cá nem mais um dia! – Explicou-me. – Gastei os meus últimos cobres a comprar-lhe uma vila rústica, para ela viver afastada desta sujeira! Quero a filha do falecido Saturnino bem longe de Sila! Se as minhas preces a Juno funcionarem, nada de mal lhe vai acontecer! Mas eu…. fiquei falido e sem esposa. Fiquei com pena dele. Eu adorava o meu irmão e não suportava vê-lo assim!

Onde estão os teus filhos?

O Cipião está com o pai adotivo. Entreguei dois filhos a parentes afastados, para tentar controlar o prejuízo. Um deles agora é Regilo, o outro Paulo e estão a passar férias no campo, a ver passar gambuzinos… pelo menos enquanto Sila for ditador deste campo de concentração!

Marco era pai biológico de quatro filhos, adotara três e ficara com um para herdar oficialmente o legado dos Emílios Lépidos, as efígies dos ancestrais, a casa patriarcal e a morada no Palatino, se Sila o permitisse, claro! Ouro, Marco, quase não tinha. De mal o menos, eles continuavam patrícios.

Colocaste a salvo a tua família, Marco. Muitos paterfamílias fizeram menos!

Calma, que posso ser assassinado amanhã…

César e a Vestal 157 Maria Galito

A primeira lista de proscritos foi publicada bem cedo. Continha oitenta nomes. Ainda os pergaminhos estavam a ser pregados, à porta do Senado e já havia homens a tombar no fórum. A maior parte dos condenados não sobreviveu ao crepúsculo.

Marco apanhara uma bebedeira e não foi acordado, nem pelo filho, nem por carrascos. Dormiu até à tarde e levantou-se com uma ressaca. A minha visita é que o acordou. Portanto, ele apareceu-me no tablino, com olhos cheios de ramelas, a bocejar:

Ainda estou vivo? – Perguntou-me, a cheirar a vinho, completamente fora de jogo!

Sabes que mais? Eu fico cá em casa, hoje. – Determinei, criando raízes no chão.

Para quê? Enfrentei a situação com coragem:

Eu sou uma vestal, não vou permitir que te matem e acabou-se a conversa! Marco pestanejou, depois limpou os olhos e passou a mão pelos cabelos.

Como chegámos a este ponto? Esta é a terceira invasão de Roma! Eu estou vivo, vai-se lá saber como! Preciso da minha irmã para me salvar e tenho a casa vazia, sem esposa, sem ninguém! Resolvi interromper-lhe o raciocínio. Sentei-o numa cátedra e disse-lhe:

Tem calma! Vou chamar a Ana, para te preparar uma refeição. Caminhei para a porta, de onde espreitava um boneco de cabelo arrepiado:

O pai está bem? – Perguntou Lépido, o mais novo dos meus sobrinhos.

Está sim, querido. Não te preocupes. – Sorri-lhe carinhosamente. Peguei-o ao colo e beijei-lhe as bochechas, enquanto o meu irmão se erguia em pé.

Vou buscar a espada e defender esta casa!

Senta-te, Marco. Primeiro vais cear e curar a ressaca. Depois vamos pensar os dois no que fazer nos próximos dias. – Pedi-lhe, agarrada a Lépido, que pendia a cabecinha no meu ombro.

No dia seguinte, Sila proscreveu mais duzentos e vinte homens. Na manhã subsequente, outros duzentos e vinte, na sua maioria da ordem dos cavaleiros. Para garantir que eles morriam mesmo, foi publicada uma lei segundo a qual se proibia assistência aos condenados e se estipulavam recompensas monetárias pelas capturas.

Dão quarenta mil sestércios por cabeça! Ou seja, um homem livre recebe dez mil denários por matar um inimigo de Sila. Se o captor for escravo, é alforriado. – Explicou-me Marco, no seu tablino.

Realmente, não dá para acreditar…

Há pessoas a delatar por ganância. A atropelar inocentes para sobreviver, ganhar a liberdade ou enriquecer. Ninguém está a salvo na cidade neste momento. Talvez agradeça o facto de ser pobre. – Riu-se com a garganta, com vontade de vomitar. Aliás, recogitou mesmo.

Marco não foi listado. Foi poupado, por ter bons padrinhos como Mamerco e Pompeu; e por se disponibilizar a participar no sistema instaurado por Sila. Em resposta, emborcava vinho de caixão à cova e passava os dias perdido de bêbado.

César e a Vestal 158 Maria Galito

Sou a primeira a reconhecer que Mamerco nunca voltou as costas ao meu irmão. Mostrou ter grande consideração por ele. Vendera-se a Sila, através do casamento com Cornélia, mas mantinha-se fiel à sua Gens de acolhimento.

Pompeu não era ideológico. As suas alianças políticas não eram constantes. As do pai também não haviam sido. Os homens de Piceno eram oportunistas e a balança pendia para o lado que lhes dava mais jeito. Marco sempre apoiara publicamente o novo Alexandre e este, em contrapartida, parecia admirar a personalidade do meu irmão. Eles tinham amigos em comum, gostavam de caçar e ir para as tabernas à noite, haviam servido juntos em Asculum, portanto, entreajudavam-se mutuamente.

Na guerra tudo muda. Mas Pompeu e Mamerco gostavam do meu irmão e ainda consideravam vantajoso manter a amizade que os unia. É difícil explicar, porque Marco era algo trapalhão. Fazia tudo com o coração. Era profundamente carismático, mas vulnerável, pelo que os amigos tinham tendência a protegê-lo. Marco preocupava-se genuinamente com as pessoas e gerava, em torno de si, grande entusiasmo. Fazia rir as pessoas. Dava dinheiro ao desbarato, pelo que nunca tinha ouro nos bolsos. As pessoas criticavam-no – e não era pouco! – mas adoravam-no.

Para Sila, o meu irmão era ridículo. Criticava o facto de Marco ser volúvel e emotivo. Só aceitou poupá-lo, depois de lhe exigir contrapartidas exigentes. Mas poupou-o por ser patrício. O comandante mandou matar centenas de plebeus, em especial questores, mas evitou assassinar os da sua classe social.

Mamerco considerava Marco um patrício de sangue, com comportamento justificável por ter ego inflamado e orgulho do tamanho de dois homens! Sila, pelo contrário, invejava a infância fácil de Marco, considerava-o mimado e infantil mas, também por isso, moldável como barro. Manipulava-o sob a orientação do genro, que era um fantoche do ditador.

Fosse qual fosse a razão, o nome do meu irmão nunca surgiu nas listas de Sila. Após o divórcio de Apuleia, Marco ainda ficou noivo da filha de um protegido de Sila, mas protelou a ideia de casar novamente e nunca chegou a fazê-lo. Ele continuava a gostar da filha de Saturnino. Preferia emborrachar-se.

Eu subia ao Palatino para cuidar dele. Temia que caísse sobre o gládio, tal o desespero a que se entregava! Em teoria, um patrício devia matar-se para preservar a honra. Mas eu não concordava com isso e tentei mantê-lo vivo:

Não dês vitória a Sila. – A ideia era elevar-lhe o espírito. – Tu és forte, meu irmão!

Ele incendiou a cidade, mas vou lutar pelo que é nosso! – Exclamou. – Mas tu és uma vestal. A tua responsabilidade é para com Roma. – Alertou, pois eu incorria em grandes riscos, ao manter a ligação umbilical à família.

Os Emílios Lépidos são romanos. Tu fazes parte das minhas obrigações. Ele ficou convido com a minha dedicação e levou a mão ao peito.

O nosso pai costumava invocar os nossos antepassados com orgulho…

César e a Vestal 159 Maria Galito

Assistir a pranto compulsivo, de um homem adulto, era sufocante! Eu só não chorava porque não podia. Estava determinada em ajudar o meu irmão. Ele nunca me abandonara. Sempre se preocupara comigo e eu queria muito aliviar-lhe a dor, mantendo-me por perto.

O meu irmão estava sujeito a uma pressão atroz nos tribunais, no fórum, no Senado! Em público ainda se aguentava. Em privado desmoronava-se! Ele não era vítima inocente. Mas era um romano numa cidade sem rei, nem República.

Para o ditador, qualquer oposição era brutalmente silenciada e, se as aves voavam na direção errada, ele mandava-as abater. Portanto, enquanto áugure, interpretava os sinais e a vontade dos deuses conforme lhe convinha.

O pontífice máximo também se impunha aos sacerdotes, como aos legionários, só não os obrigava a fazer flexões! Atrapalhava o resto com a gaguez. Ele podia não perceber de religião e possuir língua desajeitada, mas não admitia desordem na Cúria Régia!

Abram alas para Licínia! – Foi assim que a nova vestal foi apresentada ao colégio.

Metelo Pio agilizou o sistema, para a prima de Crasso assumir funções imediatamente. Licínia era traquina. Na época, ela teria uns dez anos. Estava no limite de idade, mas podia ser mais velha, pois já era menstruada! Baixinha, tinha cara grande e olhos redondos. Ria-se muito e falava pelos cotovelos, características a quem Fonteia não punha freio. Justificação? A miúda era a única a dar-nos alegria, numa urbe atolada no pântano.

É difícil fazer uma estimativa à segunda invasão de Sila. Na famigerada Batalha de Porta

Colina morreram uns 8000 homens. Outros 6000 foram aprisionados e trucidados durante a primeira reunião do Senado, no templo de Belona. Oficialmente houve 520 proscritos, distribuídos por três listas. Ele condenou à morte adversários políticos sem lhe poupar os filhos e os netos. Portanto, foram assassinados uns 15 ex-cônsules, 90 senadores e 2600 equestres e, a todos, os seus bens foram confiscados.

Hoje, na sessão do Senado, estive literalmente a apanhar moscas com a língua, como um sapo… sentado sozinho na minha fila. Atrás de mim não havia ninguém. – Rematou Marco, de volta ao Palatino. – Sila quer matar todos os senadores e substituí-los por outros, da sua confiança, sabias?

Tu já comeste alguma coisa hoje? – Preocupei-me em saber.

Não, mas bebi tudo o que pude. – Confirmou, com ironia. Abriu os braços e eu desenrolei-lhe a toga. Depois, tirei-lhe os sapatos senatoriais.

Marco, tu precisas de dormir…

Não quero. Tenho pesadelos! – Confessou traumatizado. – Sabes o que Sila faz? Convoca-me para o Senado, para eu dizer que sim à sua reforma legislativa, mas não ouve a minha opinião. Ele só quer que eu confirme a votação. Que raio de República é esta?

Não podes abster-te? – Propus como alternativa.

O último que ousou fazer isso… desapareceu! Eu nunca mais o vi.

Por todos os deuses!

César e a Vestal 160 Maria Galito

Sila não admite a neutralidade. Tens de ser a favor ou contra ele. Os primeiros vivem, os segundos morrem. – A consciência pesava ao meu irmão e ele recorria à ironia. – Se eu soubesse que crescia para ser fantoche, não tinha assistido a tantas aulas de retórica, quando podia andar a caçar tordos com os meus amigos, não é?

Á situação é insustentável, eu sei.

Sob a batuta do ditador, os censores deixaram de ser responsáveis pela escolha dos senadores, agora nomeados diretamente por Sila, entre os seus clientes. Muitos deles tinham origem italiana.

O Senado duplicou em tamanho. – Informou o meu irmão, num dia à tarde, em que eu tomava conta do meu sobrinho mais novo.

De 300 para 600? – Perguntei.

Numericamente, sim. Mas a maior parte dos novos membros é inexperiente nas lides domésticas e, portanto, manipulável pela cor do dinheiro! – Foi aquilo que ele me disse. – Pensa assim: é como se o Senado fosse um coro que canta sob a batuta de Sila.

Os novos membros não são fiéis a Roma, é isso?

Alguns serão. Não sei, não os conheço. – Admitiu Marco, encolhendo os ombros.

A eleição para questor passou a ser critério de entrada no hemiciclo. Pretores eram oito, pois era esse o número de tribunais. Os advogados discursavam perante júris com mais senadores e menos cavaleiros.

Sila quer acabar com os populistas e demagogos, por isso, reduziu os poderes dos tribunos da plebe, por o terem obrigado a invadir a cidade duas vezes! – Ironizou Marco. – Retirou, ao cargo, o poder de veto e a iniciativa legislativa.

Que pode fazer, hoje em dia, um tribuno da plebe? – Indaguei, sem perceber a amplitude da medida.

Nada.

Como assim… nada?

Bom, podem-se por bonitos para Sila.

Sila mandou destruir o túmulo do seu arqui-inimigo. As cinzas de Mário foram lançadas ao Tibre – conspurcando, assim, a memória de um homem sete vezes cônsul!

No colégio de pontífices, ouvi falar no azar de Mariozinho. Os meus colegas discutiam a sua morte, como corolário de uma vida sem glória. Portanto, ele fugira para Preneste, cujas muralhas subiu, agarrado a uma corda que alguém lhe atirou por misericórdia (pois as autoridades da cidade tinham-lhe fechado os portões e queriam evitar que ele entrasse). Quando o legado de Sila deu ordem de batalha, Mariozinho estava a dormir debaixo de uma árvore, estafado. Despertou para a derrota, com o exército inimigo a invadir a cidade! Tentou escapar por um túnel.

E depois? – Perguntou Fonteia.

Ele foi descoberto e assassinado. – Explicou Isáurico.

César e a Vestal 161 Maria Galito

Ele suicidou-se antes de cair nas mãos dos carrascos. – Propôs Mamerco.

Qual das hipóteses é verdadeira? – Confundiu-se Fonteia.

O que interessa é que a cabeça do filho de Mário foi ontem pendurada no fórum, na tribuna dos oradores. – Atalhou Catulo, friamente.

Preneste ficou nos anais de história pelas atrocidades que, nessa cidade, foram cometidas! Sila insistiu em castigar os moradores por terem acolhido Mariozinho. Começou por levá-los a julgamento, um a um.

Sila queria matá-los a todos e o sistema era demasiado lento. – Concluiu Catulo.

Ao que parece, Sila mandou reunir os prisioneiros e deu ordem de abate. Doze mil pessoas – entre homens, mulheres e crianças – foram degoladas, nesse dia, para ser mais rápido! No matadouro terá participado Catilina. Não sei se ele já era um estafermo, antes de Preneste, mas apurou o instinto de sobrevivência, ao provar a Sila que sabia matar a sangue frio.

Catilina era um patrício, inicialmente tão falido quanto Sila. Casara com Gratídia, uma sobrinha de Mário, a quem gerara um filho. Assassinou os dois. Se admitirmos isto como verdade, ele era filicida. Também era fratricida. Supliciou um dos tios da esposa, que era igualmente tio de Mariozinho. Depois entregou as cabeças ensanguentadas ao líder dos optimates e foi lavar as mãos na água sagrada do templo de Apolo, para se purificar.

Que nojo! – Exclamei.

Os irmãos Grânios foram exterminados. Catulo usou Catilina contra Gratidiano. O mais famoso dos sobrinhos de Mário foi torturado, do outro lado do Tibre, sobre o túmulo de Lutácio, da forma mais violenta possível! Segundos relatos, o carrasco começou por esmurrar a vítima. Depois partiu-lhe as pernas e os braços. Esguichou-lhe os olhos, antes de começar a cortá-lo aos pedaços. A vítima morreu lentamente, sob dor excruciante. No final, o assassino arrancou-lhe a cabeça e levou-a pingando até ao fórum, para a mostrar a Sila!

A morte de Gratidiano foi um ato de vingança e um sacrifício humano. Já era proibido por lei. Mas havia indícios dessa prática ancestral nos rituais religiosos.

Os mortos celebravam-se nas festividades da Lemúria, quando os sacerdotes recolhiam as efígies (sacra argeorum), da via-sacra até ao sopé do Aventino, onde eram atiradas da ponte Sublícia. Este local mantinha rituais desde os tempos dos etruscos. Porquê? Conta-se que, após a queda da Monarquia, o rei Porsena atacou Roma, depois de dar exílio a Tarquínio o soberbo. Uma das primeiras heroínas da República, Clélia conseguiu salvar os compatriotas mais jovens de um grupo de prisioneiros. Dizem que ela era virgem. Como as mulheres casavam cedo e, dificilmente, uma miúda com menos de doze anos atravessava o Tibre a nado, para enfrentar um rei, é possível que ela fosse uma vestal. Seja como for, os prisioneiros mais velhos, que ficaram para trás, foram sacrificados.

O pontífice máximo… quer não sei o quê. Vai ver o que se passa! – Disse Fonteia.

César e a Vestal 162 Maria Galito

Fonteia não saía do templo e evitava o novo pontífice máximo, tanto quanto possível. Por isso, quando ele convocava a vestal máxima, ela enviava-me a mim. A princípio, o militar estranhava ver-me chegar, em substituição da chefe. Mas não chegou a preocupar-se muito com isso. O importante, para ele, é que alguém o ajudasse a despachar o que era preciso. De facto, ele precisava regularmente de ajuda, pois o colégio dos pontífices tinha regras diferentes daquelas que os exércitos seguiam e ele estava atrapalhado.

Te-temos de preparar a pro-procissão dos Argei. Vem-vem cá. Explica-me isto!

As procissões dos Argei, no mês de Maia, eram rituais de purificação. As efígies, ao longo da via-sacra, absorviam o infortúnio, o mal-olhado, a contaminação, o cheiro a morte e a doença. Os cidadãos confessavam brigas familiares e crimes aos bonecos de trigo. Depois, atiravam os males ao rio para, pelo menos em teoria, expurgarem a cidade de tudo o que era ruim!

As procissões dos Argei também invocavam o sacrifício dos mais velhos; dos cidadãos que pensavam ter vivido o suficiente para satisfazer a natureza e a glória. Os que se expurgavam, através da morte, lançando-se ao rio. Os que queriam aliviar os familiares do encargo que tinham com eles, numa época em que havia pouca solidariedade social, ou se entendia este ato como honrado e altruísta.

As procissões dos Argei podiam ser representativas de uma época em que se despejavam os cadáveres no Tibre, talvez em desespero, em tempo de guerra ou quando não havia tempo para funerais. A tradição também nos remetia para o castigo de criminosos.

Portanto, a tradição religiosa não esquecia os sacrifícios humanos no nosso rio. Antes da guerra civil, as procissões dos Argei eram celebrações sem significado aparente. Usavam-se bonecos. Os romanos aproveitavam o feriado para não trabalhar e conviver com a família, incólumes ao sentido primitivo dos rituais e, na maior parte das vezes, até os desconheciam! Agora eu não tinha tanta certeza! Muitos romanos enfiavam-se em casa, que nem coelhos na toca, com medo de serem atirados ao Tibre.

O pa-passado veio pa-para assombrar-nos! – Suspirou Fonteia, ao verme chegar.

Popília e Perpena encarregavam-se de instruir Fábia e Licínia. Em troca, podiam assistir aos julgamentos, onde as vestais, institucionalmente, tinham lugar garantido na primeira fila. Não sei que graça elas achavam àquilo! Mas Fonteia, que não tinha paciência para crianças, agradecia que as colegas se entretecem sem a incomodarem muito, para ela se dedicar em exclusivo às orações, aos lavores e às leituras que tanto apreciava. Todas velávamos pelo fogo sagrado. Mas eu lidava com agentes políticos e religiosos.

Aproveitei para dedicar-me à cidade. Instaurei um sistema de solidariedade social, não partidário e voluntário. Tudo começou no meu aniversário e prolongou-se até à Vestália, após a invasão, quando o sol espreitou de um inverno de devastação na cidade!

As vestais confecionavam mola salsa e eu convenci as colegas a alterarem um pouco a sua receita, para fazerem pão, não muito saboroso mas comestível, que podíamos distribuir às mulheres que o pedissem, à entrada do portão do santuário.

César e a Vestal 163 Maria Galito

Porque não oferecemos flores? – Perguntou Fábia, talvez influenciada pelos primeiros rasgos de Primavera.

Vesta não é Ana Perena! – Estranhou Licínia, mas sem maldade. Elas ainda eram novinhas e estavam completamente fora de jogo! Fui pedagógica:

As pessoas têm fome e preferem comer a cheirar flores. – Expliquei, com bons modos. – Meninas ajudam-me a colocar os pães, que fizemos, nos alforges de Pales? – Pedi e elas disseram que sim.

Popília apoiou a minha saga na cozinha. Ela não era completamente desprovida de sentimentos e sabia que famílias, algumas delas suas conhecidas, passavam tormentos, sem casa, sem sustento, sem nada!

Dos alforjes de Pales sai alento e esperança de um dia melhor. – Disse Popília. Fonteia acreditava nisso. Infelizmente, a realidade não se compadecia com poesias!

Ao contactar o povo de Roma, deparei-me com realidade assustadora! Centenas de viúvas desesperadas, crianças desamparadas e homens mutilados vagueavam pelas ruas como almas penadas. Temendo uma epidemia de cólera, os agentes sanitários tinham ordens para cremar os cadáveres que se amontoavam nas valetas e debaixo das pontes, e erguer pilhas de lenha ardentes por toda a cidade! A situação era deveras preocupante. Mas o ditador não tinha piedade! Ele legislara contra o auxílio a proscritos.

Mas não há lei que impeça as vestais de partilharem o seu pão. – Declarei.

A iniciativa solidária prolongou-se e ganhou adeptos. Junto ao santuário, fazia-se fila para o peditório. A ideia era bem-intencionada e tinha algum impacto positivo na população. Não resolvia a vida a ninguém, mas era útil. O problema é que a fila de indigentes era longa, não passava despercebida e já se atrapalhava a si própria, colocando-nos sérios problemas logísticos!

Surgiram as primeiras queixas. Nós não conseguíamos confecionar pães em quantidade suficiente para satisfazer a procura. As pessoas desesperavam e acotovelavam-se. Popília, que se mostrara inicialmente favorável à ideia, começou a preocupar-se com o impacto de tanto desespero na nossa segurança. Fábia e Licínia tinham pesadelos e não conseguiam dormir, com medo da turba e das histórias que ouviam. Também admito que os lictores tenham reclamado da falta de condições de trabalho naquela balbúrdia! Sei que o pontífice máximo me chamou à sua presença e me pediu explicações, as quais eu dei sem hesitar:

Estamos a distribuir pão a quem tem fome, de forma apartidária, pacífica e ordeira.

As ves-vestais não po-podem ajudar pros-proscritos! – Exclamou irado, como se não tivesse ouvido uma palavra!

Então que Sila termine com as proscrições. – Pedi corajosamente. Ele sentiu-se desafiado e assumiu uma posição de força:

Emília pen-pense antes de falar. Eu-eu posso condená-la à-à morte. – Avisou.

César e a Vestal 164 Maria Galito

Por Vesta! A questão não é política, é humanitária! – Fiz questão de frisar. – Pontífice máximo ajude-nos na nossa tarefa! Nós existimos para proteger Roma e a cidade chora dia e noite! Ninguém aguenta viver nestas condições miseráveis e de total agonia! Tenha piedade! Metelo Pio nem pestanejou e foi perentório na sua afirmação de poder:

Avi-visaram-me que on-ontem houve con-confusões! Encolhi os ombros. Fingi que o comentário não me afetara:

Coisa pouca. Pedi às pessoas para dividirem o pão e tudo se resolveu. Ele pareceu impressionado com a minha resposta.

Emília o que-que quer com-com isto? – Perguntou diretamente.

Paz e sossego. – Respondi, sem medo. – O que não se paga com dinheiro nenhum e apenas se consegue com boa governação. Por momentos, Metelo Pio nada disse, de tão espantado!

Vou pen-pensar. Pode ir. – Rematou, com gesto que dispensava os meus serviços.

Metelo Pio mandou chamar os lictores à sua presença. Deu-lhes instruções. A ideia era manterem controlo sobre a situação, garantirem a minha segurança e darem a entender, à população, que a atividade decorria sob as suas graças. Assim, ele também ganhava com isso, em termos de popularidade.

Emília é a única vestal com autorização para distribuir pão à população.

As novas instruções foram um alívio para as minhas colegas, que só queriam fechar o portão do santuário até à próxima Vestália. Elas voltaram às suas atividades diárias, sem mais preocupações. Pelo contrário, eu entrava no forno de madrugada, passava a manhã com as mãos na massa e enchia os alforges de Pales, antes de ir para o portão, para distribuir o tão desejado alimento. Não temia enfrentar o ditador, esquecia as dores de costas e lidava o melhor possível com a pressão das pessoas. Se Metelo Pio pensava que eu me cansava depressa, enganou-se!

Vá em paz. – Dizia eu, sempre que entregava um pão.

Os indivíduos, no início, não se identificavam, com medo de serem associados aos proscritos e perseguidos por isso. Tinham vergonha de pedir ajuda, quando antes possuíam meios para colocar comida na mesa. Alguns estavam doentes. Vinham aos trochos mochos, arrastados por ferimentos nas pernas ou nos braços. No geral eram simpáticos, pelo menos comigo. Eu recebia-os sempre com respeito e consideração. Eles correspondiam com sorriso suave ou com tristeza, amargura, frustração, desalento e revolta:

Os delatores, os bufos e os que enriquecem à custa dos proscritos, não mendigam por comida. – Ouvi dizer à porta do santuário de Vesta, a um dos pedintes.

Mas caem, todos os dias, às mãos uns dos outros. – Disse eu. Ele agradeceu o pão.

A elite queixava-se do seu povo, mas eu nunca tive razões de queixa de quem ganhava a vida de forma decente. Apesar das dificuldades, muitas pessoas eram trabalhadoras, honradas e generosas. Pude constatá-lo todos os dias.

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Lembro-me quando um padeiro meteu conversa comigo. Ele chamava-se Eurísaces. Era um liberto de origem helénica, de pele morena, barba curta, cabelos e olhos pretos. Perguntou se eu estava disposta a contratá-lo para fazer e talvez distribuir pão. Ao mesmo tempo, ele recomendava alargar a iniciativa a uma camada mais abrangente da população. Agradeci a sugestão, mas expliquei-lhe que eu não podia recorrer ao erário público.

Lamento. Porque não abre uma padaria no fórum, se quer expandir o negócio? A minha pergunta fazia sentido para mim. Para ele não.

Virgem santíssima, eu sou pobre. Não tenho dinheiro para arrendar padaria aqui.

Compreendo…

No bairro onde vivo já ninguém me compra côdeas! As pessoas, em geral, passam mal. Eu desejava ajudar, mas preciso ganhar uns cobres, pois tenho família para sustentar. – Avisou Eurísaces.

Claro, claro…

Ponderei nas hipóteses à disposição. Eu raramente gastava dinheiro, por isso, guardava uma bolsa de moedas debaixo do colchão, das quais não fazia uso, mas que davam jeito a Eurísaces! Fiz-lhe uma proposta, modesta, mas que eu podia financiar. Ele nem hesitou.

Portanto, sou eu que pago, do meu próprio bolso e é o que tenho para oferecer.

Aceito. O lucro é pequeno. Mas é melhor do que ter a padaria às moscas e ainda contribuo para a sociedade. – Respondeu, com firmeza de caráter. Ele era um bom homem.

Muito bem, Eurísaces, negócio fechado. – Declarei, oficializando o acordo.

Organizámo-nos. A esposa do pistor vinha ter comigo, ao portão de Vesta, todas as manhãs, com as suas cestas de pão. Eu pagava-lhe conforme estipulado. Há muito que o casal não recebia dinheiro tão certinho como aquele, a tempo e horas, sem chatices! Por isso, o negócio agradava-lhes. Depois, o pão era distribuído ao longo da via-sacra, o que retirava pressão da entrada do santuário.

O meu papel era dar esperança às pessoas, tão ávidas de alimento como de esperança! O meu lictor não tinha com o que se preocupar. Do ponto de vista logístico, a parceria funcionava e era um sucesso junto da população.

Eu sentia-me bem com a minha consciência. Dava sustento à família de Eurísaces. A população sentia-se menos desamparada. Mas o processo era insuficiente para salvar aquele mar de gente que tanto precisava de auxílio.

A situação era insustentável! Cada vez mais pessoas recorriam aos nossos serviços. Queixavam-se das proscrições de Sila que haviam atirados ricos e pobres para as valetas da miséria.

Senti-me impelida a tomar uma atitude. Por muito que Fonteia tivesse tentado dissuadir-me da ideia, enchi-me de coragem e fui falar, novamente, com Metelo Pio. Fiz um discurso de bradar aos céus e tentei inverter o curso dos acontecimentos. Arrisquei tudo! Se fui inconsequente? Talvez, mas medidas urgentes eram necessárias!

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Peço-lhe encarecidamente, por Vesta, que coloque um fim às proscrições. – Roguei, após resumir as atividades caridosas e os dramas a que tinha assistido.

Já-já se cansou de-de dar esmolas? – Atirou friamente.

Pontífice máximo… daqui a pouco não há gente na cidade para Sila governar!

Era uma ironia. Mas ele levou-a a peito. Aquela frase atingiu-o no coração. Ergueu-se da cátedra e começou a andar no tablino, como se estivesse numa tenda de combate, com as mãos atrás das costas. Até um comandante militar sabia que, sem exército, não podia combater os inimigos de Roma!

Vou falar com Si-sila. – Declarou, de repente, como se tivesse tomado balanço. Teria eu convencido o homem?

As proscrições vão terminar? – Perguntei. Talvez o pontífice máximo precisasse de um puxãozinho para fazer uma boa ação.

Já-já deviam ter-ter acabado. Vou falar com Si-sila e é já! – Exclamou, troteando em direção à porta, deixando-me sozinha no tablino da Domus Publica.

O período legal das proscrições findou logo depois, pelo menos legalmente. Não quero afirmar que a minha interferência aliviou a dureza do regime. Foi Vesta quem me deu forças para falar. Foi Metelo Pio quem persuadiu Sila a colocar um ponto final àquele regime de terror. Foi o comandante que se cansou da carnificina e decidiu acabar com ela… antes de desfilar pelas ruas de Roma para ser aplaudido.

O Senado concedeu um triunfo a Sila? – Perguntei, horrorizada. – Ele vai vangloriar-se de ter feito o quê? Canalha!

Todos os senadores e sacerdotes (ainda vivos!) foram convocados para a cerimónia. A presença era exigida (sem falta!), ao desfile que comemorava os feitos militares do comandante. Mas eu pedi o turno, desse dia, a Fonteia e fiquei no templo com Perpena. Portanto, eu não fui assistir ao espetáculo, porque não quis!

Fonteia, Popília, Fábia e Licínia foram à cerimónia e fartaram-se de gabar o cortejo. A entrada apoteótica terá sido imponente! Popília invocou as riquezas da Ásia. Fábia elogiou as roupas e as joias. Licínia encantou-se com os carros alegóricos, os cavalos e as cores. Fonteia deu conta ao cortejo dos retornados, pois os proscritos de Mário terão caminhado pelas ruas, coroados de flores, a invocar Sila como seu salvador.

Se Sila e Mário não tivessem invadido Roma não havia tantos exilados e retornados. – Suspirei, pois a vida das pessoas tinha sido irremediavelmente alterada nos últimos anos, com consequências ainda difíceis de prever.

Os organizadores do triunfo colocaram agentes a aplaudir os estandartes, em locais estratégicos, para incentivarem a população a fazer o mesmo. Não foi fácil entusiasmar pessoas que vinham de funerais e os ânimos estavam tensos. Mas, nos festins a rebentar de comida, o povo comeu e calou.

Fonteia fez referência ao discurso de Félix – o cognome que o Senado lhe atribuíra – em que Sila atingira o zénite do seu poder! Ele mandava sobre povo traumatizado pela guerra

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e fazia dele o que queria. Para compensar, publicou a Lex Cornelia de Maiestate, sobre crimes contra o Estado, para impedir outro comandante (como ele!) de invadir a cidade no futuro.

Que simpático! – Ironizei, descontente. Perpena foi mais assertiva nas reclamações:

Vocês gostaram da parada militar? Pois nós estivemos a fazer contas aos mortos do ditador! – Revoltou-se, pois tinha a família reduzida a sombras.

Popília pigarreou e levou as duas colegas mais novas, cabisbaixas, para o átrio das vestais, pois era tarde e elas precisavam de dormir. Fonteia sentou-se a nosso lado, junto ao fogo sagrado e perguntou:

A que conclusão chegaram? – Ela era sumo-sacerdotisa e precisava saber. Perpena estava tão furiosa e magoada, que me deu indicações para falar:

Sila publicou três listas de proscritos. A primeira tinha 80 nomes de senadores. As duas últimas condenavam 220 cavaleiros, cada uma. Ao todo, 520 mortos. Digo isto, porque nenhum escapou à espada.

Sim, eu sei. – Confirmou Fonteia, que já falara com Metelo Pio sobre o assunto.

A dificuldade surge na contabilização posterior, pois as fontes são partidárias. Na sua maioria, reduzem ou aumentam o número de vítimas conforme lhes dá jeito. – Alertei. Elas não puseram em causa o que eu disse. – Mas existe uma lista fiável, guardada no templo de Saturno. O que não foi propriamente uma novidade para Fonteia:

Sim, é verdade. O Tesouro foi autorizado, pelo Senado e com expressas indicações do ditador, a gratificar financeiramente os carrascos dos inimigos públicos de Roma, mediante prova: se trouxessem, à presença de Sila, a cabeça do desgraçado que haviam capturado. Eu divulguei, perante Vesta, o número oficial de vítimas:

Nós consultámos a lista. O Tesouro pagou o equivalente a 47003 proscritos.

São muitos. – Constatou Fonteia, tão incomodada, que mal se sentava. Foi então que Perpena abriu o leque de possibilidades:

Alguns cidadãos suicidaram-se e as suas cabeças não chegaram a ser expostas no fórum. Por outro lado, nem todos os carrascos pediram recompensa pelo crime que praticaram, para o seu nome não ficar perpetuamente associado às proscrições, ou porque a vítima não fazia parte das listas oficiais. Portanto, nada garante que as vítimas mortais não tenham sido o dobro!

Estás a conjeturar, Perpena. – Advertiu Fonteia.

Mas sabes, pelo menos, que os proscritos eram eleitores, ou seja, com direito a votar, ou seja, com idade superior a quinze anos. – Contra-argumentou Perpena. – Portanto, 4700 homens, exceto mulheres e crianças.

Sim, tens razão. – Suspirou Fonteia, desgostada. – Devem ter morrido 9.000 a 10.000 romanos, nos últimos meses, na sequência das proscrições.

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Se subires essa previsão para 20.000 romanos, não estarás longe da verdade. – Corrigiu Perpena, que queria levar a sua avante. Fonteia discordou frontalmente. Eu coloquei paninhos quentes na conversa:

Nós não sabemos o que aconteceu. Estamos só a ponderar hipóteses… Perpena, porém, estava disposta a lutar por aquilo em que acreditava:

Pereceram mulheres, crianças e homens romanos, mas… e os italianos? E os outros, provincianos, escravos, libertos, lavradores, comerciantes e mercadores, por campos e portos, cidades, pontes e estradas, que caíram aos golpes de espada, desde que Sila decidiu arrastar a nossa guerra civil até às províncias?

Sim, devem ter sido bastantes. – Admiti. – É horrível. Nem quero pensar nisso… Muita gente sofrera, pelo mundo, por causa da guerra civil dos romanos!

Perpena aguenta os cavalos! Estás a ir muito depressa. – Pediu Fonteia. Como quem diz: controla-te!

Porquê? Sila matou toda agente que conseguiu no seu percurso da Ásia até Roma! – Acusou Perpena, com os punhos cerrados.

Não sejas exagerada, Perpena! – Exclamou Fonteia. – Eu sei que Sila cometeu crimes, mas não foi o único. Perpena não calou a sua indignação, pois a ordem de grandeza era muito diferente:

Mário fez 100 proscritos. Sila fez 4700… fora todos os outros!

Sabes que mais? Proponho que inicies a contagem quando Mário invadiu Roma? – Desafiou Fonteia. – A guerra civil dura há muitos anos! Perpena aceitou o desafio e lançou contraproposta:

Eu sei! Vamos contabilizar desde que Sila trouxe armas para o pomério, pela primeira vez. Lembras-te? Elas tinham-se erguido e enfrentavam-se. Fui obrigada a separá-las:

No templo de Vesta não há luta partidária, por favor, sentem-se e acalmem-se. – Pedi-lhes. – Já chega a confusão lá fora! Querem que o fogo sagrado se apague aqui dentro? Elas temeram a cólera da deusa e mudaram imediatamente de atitude.

Sim, tens razão. – Reconheceu Fonteia.

Emília, desculpa, nem sei o que me deu. – Benzeu-se Fonteia.

Oremos! – Pois era importante. Peguei nas mãos delas e iniciei as nossas preces à volta da fogueira. – Precisamos muito de paz, em Roma. Roguemos aos céus, para merecê-la.

NOTAS FINAIS:

1 1 Novembro 92 a.C. 2 Públio Licínio Crasso Dives (pontífice máximo no séc. III a.C.) e Públio Licínio Crasso Dives Muciano (pontífice máximo no séc. II a.C.). 3 Valério Máximo, Factorum et Dictorum Memorabilium, 9.2.1.