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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo VII (81-80 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo VII

(81-80 a.C.)

Maria Galito

2017

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Capítulo VII

673-674 AUC

Na guerra não se limpam as armas, mas faz-se a paz com piedade.

O que era feito de César? Eu não tinha notícias dele há muito tempo. Andava apreensiva sem saber o seu paradeiro. Por isso, sentei-me ao lado de Cota, na Cúria Régia, enquanto Metelo Pio se atrapalhava com os rituais.

Cota andava coxo, mas já ninguém o perseguia! Sila tinha outras prioridades e o irmão de Aurélia passava pelos intervalos da chuva, para ninguém dar por ele.

Estou melhor, obrigado. Nem dá para perceber que levei uma tareia. – Troçou, para espantar os maus-espíritos.

Aproveita para descansar em casa, o mais que puderes.

Perguntei-lhe pelo sobrinho. Ele contou-me que César fora acometido por febres, durante a fuga por terras sabinas. Fagita conseguira capturá-lo, mas deixou-se corromper e aceitou dois talentos pela vida do rapaz. Foi então que César galopou até ao mar, onde apanhou um barco em direção a Mitilene. Desde então, residia com o tio-avô Rutílio e entretinha-se com exercícios de retórica.

Segundo ouvi dizer, César está melhor do que eu, que estou manco. – Admitiu Cota, queixando-se de perna enrugada por feias cicatrizes.

Quando terminei as minhas funções, na Cúria Régia, subi ao Palatino. Eu sabia que Marco agora era pretor e perguntei sobre ele, logo à entrada da casa patriarcal, a Amílcar:

O seu irmão, ontem, estava completamente bêbado! Entaramelava a língua e não se percebia nada do que ele dizia. Hoje está mais ou menos, domina.

Isso quer dizer o quê?

Que começou a emborcar vinho sem água ao acordar, mas ainda está lúcido.

Estou a ver…

Olhei em volta, apreensiva. O lar paterno já não parecia o mesmo! Novos elementos decorativos preenchiam o átrio e as alas. Por todo o lado havia acumulação de estátuas, quadros, móveis e tapeçarias. Coisas que eu nunca tinha visto antes! Pedi esclarecimentos acrescidos ao mordomo. Amílcar tinha ar de entendido no assunto:

São peças dispendiosas e raras das mais diversas proveniências: gregas, etruscas, sírias. Repare aquelas ali! São cartaginesas. Parecem ser do tempo das guerras

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púnicas, mas estão em bom estado de conservação. Portanto, estiveram guardadas nalgum sítio.

Pertencem a coleções privadas, é isso? – Quis confirmar.

Falei demais, domina? – Hesitou. Acalmei-lhe os nervos:

Não se preocupe, Amílcar. – Pedi, com bons modos. Eu conhecia-o desde criança e confiava nele. – No seu entender, onde foi o meu irmão buscar estas peças?

Ouvi dizer que foram adquiridas em hasta pública, domina. Fiquei azul.

Obrigada, Amílcar. Pode ir.

Não diga ao seu irmão que eu a avisei. – Rogou, receando represálias.

Claro que não, fique descansado. Agradeço que me vá contando as novidades. – Pedi-lhe e ele prometeu continuar a desempenhar bem o seu trabalho.

Bati à porta de um tablino que parecia uma adega! Quando entrei, avistei dezenas de ânforas. Marco abriu os braços e encetou um sorriso:

Olha maninha, isto é licor dos deuses. Ora prova! O seu bafo era entorpecedor!

Marco, eu sou uma vestal. Não posso beber vinho.

Oh, pois. Que pena! Sentou-se e eu fui direta ao assunto:

Marco onde foste arranjar ouro para pagar estas ânforas? Ele nem pensou duas vezes. Respondeu logo. Não estava a mentir ao explicar:

A maior parte deste vinho é nosso. Vem de Circeo, sabes?

O promontório que herdaste do nosso pai.

A propriedade é um imenso calhau! Praticamente não dá rendimento. – Não se coibiu de informar, pois ele não media as palavras e dizia tudo o que pensava. – Tem poucas parras, mas produz boas uvas nas suas encostas. Eu recebi ontem o carregamento enviado pelo feitor. Olha que maravilha! Isso explicava muita coisa!

Este vinho também é teu? – Estranhei, pois eram ânforas menos toscas.

Três foram-me oferecidas por Pompeu. Estas duas comprei-as a um mercador etrusco. – Enalteceu, orgulhoso da sua carga. Até aqui, tudo bem! Obriguei-me a fazer mais perguntas:

A tua casa parece um mercado de arte antiga, Marco. Ele considerou-o um elogio e inchou o peito de ar ao exclamar:

Está bonita, eu sei! Tenho recebido muitos elogios dos meus amigos.

Quais amigos? De onde vem tudo isto?

Vou com Pompeu aos leilões, pois ele é demasiado jovem para distinguir um Fídias de um Praxiteles. Compramos tudo por truta e meia! – Garantiu.

Achas normal fazer esse tipo de aquisições a tão baixo preço? – Insisti com ele.

Eu não reclamo. Os romanos sempre pilharam os povos conquistados.

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Eu vou fingir que não ouvi o que tu disseste! – Irritei-me.

Marco tinha mais vinte anos do que eu e era paterfamílias. Eu não podia simplesmente apontar críticas ao seu comportamento. O que não me impedia de lhe puxar as orelhas se fosse preciso!

O que é que se passa? – Perguntou ele. Apesar de ébrio e brincalhão, ele começava a mostrar-se incomodado com o interrogatório.

Marco, ouve-me! Sila fez proscritos, cujos bens estão a ser vendidos em hasta pública, por poucas moedas, para que possam ser facilmente adquiridos pelos capangas do ditador. Tu recebeste alguma gratificação do Estado?

Claro que não! Por quem me tomas? – Replicou, sentindo-se ofendido. – Eu seria incapaz de matar por dinheiro. Empunho a minha espada em batalha, pela glória de Roma. Jamais a usei contra cidadãos indefesos. Eu sou um Emílio Lépido!

Sila também é um patrício.

Não queiras comparar. Ele é um animal!

Está bem, Marco. – Conclui, até porque tinha provas a suportar o seu testemunho. – O teu nome não consta da lista de beneficiários do Tesouro, da época das proscrições, pelo que, a receberes dinheiro, teria de ser à socapa. Se me dizes que não fizeste mal nenhum, eu acredito em ti.

Juro pela minha honra! Respirei fundo, tentando acalmar-me.

Ainda assim, não me parece correto que frequentes estes mercados… Marco defendeu a sua causa de uma perspetiva que não me ocorrera:

Preferes que as peças sejam adquiridas por criminosos? Novos-ricos, libertos e pategos que furtam tudo o que é bom, mas ignoram o que têm em mãos? Que as expõem em festas e as deixam destruir por descuido, malvadez ou divertimento? São assassinos e brutos que nem uma porta e eu não vou deixar que partam tudo!

Bom, eu não tinha pensado nisso. – Reconheci, levando a mão à testa.

Eu estou a preservar estas obras de arte para a posteridade! – Garantiu Marco. Fui sensível ao argumento:

Se o Estado não cuida do património mundial, suponho que compete aos privados… fazer serviço público.

Com certeza! É exatamente isso que eu faço. Eu sou neto de Porcina! Eu ainda não estava completamente convencida:

Os proscritos, em princípio, eram marianos. Conhecias algumas destas famílias. Portanto, pergunto-te, se um dia o filho de um capturado entrar aqui e apontar para uma estátua e disser: eu devia tê-la herdado, mas os chacais de Sila extorquiram-

na ao meu pai durante as invasões enquanto lhe abriam a garganta a gritos. O que é que tu fazias?

Dava-lhe a estátua de presente. – Foi a sua resposta imediata.

As lágrimas até me vieram aos olhos! Ele abriu-me os braços e eu enrolei-me ao seu peito. Éramos dois irmãos perdidos num mundo horrível. Não bastava ter consciência. Era

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difícil sobreviver num contexto tumultuoso e perigoso como aquele! Era preciso aguentar o barco durante a tempestade até chegar a bom porto. Mas quando nem a praia se avistava, era duro!

Esta não é a Roma em que eu nasci! – Queixei-me, desolada.

O nosso pai revoltava-se contra a cidade entregue à incúria, ao desfalque e à corrupção. O que se passa em Roma é revoltante! Está tudo partido, arruinado, abandonado, incendiado! Não há segurança, nem saúde, nem políticas públicas decentes! Enquanto pretor tento ser o mais justo possível e muitas vezes enfrento os interesses de Sila, mas Pompeu pediu-me para ser menos suicida. – Declarou e eu não soube o que dizer-lhe, pois queria muito que ele continuasse vivo. – Queridinha vou para a Sicília como pro-pretor.

Vais sair de Roma?

Não aguento mais isto! As pressões, a que estou sujeito, são insuportáveis e eu já disse que há coisas que eu não faço, nem que me obriguem. O meu irmão era um valente!

Compreendo. Tens de ir. Mas e os teus filhos?

Os três mais velhos têm encarregados de educação que eu controlo à distância, pois são obrigados a enviar-me correspondência regular sobre os seus progressos.

Eu mal conhecia os sobrinhos que tinham pais adotivos. Sabia que Cipião queria fazer carreira nas armas e passava os seus dias no Campo de Marte. Era audaz, tinha feitio difícil e era revoltado contra o sistema, o que não era de pasmar, dadas as circunstâncias. Regilo estudava oratória e frequentava os tribunais, juntamente com outros jovens advogados da sua geração. Os dois nunca se deram com a mãe, mas tinham uma proximidade razoável ao pai que os visitava amiúde. O terceiro vivia na província. Paulo era conservador, sensível e tímido.

Lépido continua a viver cá em casa?

Esta casa é uma fortaleza! Queres que o envie para onde? Ele ainda é menor de idade. Fica entregue ao literador, à Ana e ao Amílcar.

O pedagogo visita-o regularmente?

Vai passar a residir cá em casa, enquanto eu estiver na Sicília.

Isso ajuda.

O literador é competente e tem personalidade. É boa influência para o miúdo que já sabe ler e escrever as primeiras letras. Também sabe fazer contas de somar. – Fez questão de frisar. – Mamerco é nosso vizinho, aqui no Palatino. Ele ficará encarregue de tudo o resto.

Mamerco é sogro de Sila. Não sei se é boa ideia. Era melhor ser outra pessoa.

Quem?

Eu posso ocupar-me de Lépido.

Tu és uma vestal!

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Eu sei. Mas Fonteia dá-me alguma liberdade. Metelo Pio pouco se ocupa de nós, desconhece as regras, portanto, eu vou subir ao Palatino o mais que puder enquanto tu estiveres na Sicília.

Tens a certeza?

Sim, eu desenrasco-me. – Prometi.

Estamos a falar de ti. – Avisou Marco, apontando para o filho, que tinha acabado de chegar e nos espreitava de trás da porta.

Lépido correu até às pernas do pai, mas depois enrolou-se nas minhas, pois eu dava-lhe mimo. Ele fazia tudo para chamar a atenção! Carente e carinhoso, queria muito agradar, sentia-se sozinho e parecia ficar mais calmo na minha companhia. O seu rosto oval, de olhos claros e brilhantes como os do pai e do avô, iluminava-se quando me via.

Tens saudades dos teus irmãos? – Perguntei-lhe, envolvendo-o com o meu braço.

O meu pai precisa de mim e eu gosto de viver aqui com ele, na casa do avô. – Foi a resposta decidida que me deu. Marco sorriu, orgulhoso.

És um bom menino. – Comentei, passando a mão pelos seus cabelos lisos. Dei-lhe um beijinho na testa, tal como o meu irmão me fazia quando eu era criança. – Vamos conseguir superar esta fase, vais ver. Mas o meu sobrinho sentia-se muito inseguro.

Eu também vou ser adotado? – Perguntou aflito, com olhos esbugalhados. – Vou ser abandonado numa sargeta, como têm feito a alguns meninos na cidade?

Claro que não, que horror! – Exclamei, atordoada.

Lépido, os teus irmãos não foram lançados na sarjeta, foram entregues a bons pais. – Esclareceu Marco. – Tu não vais ser adotado, és o herdeiro da casa patriarcal.

Então porque é que o pai se vai embora? – Estranhou Lépido de rosto rubro.

Já te expliquei, filho. Eu vou para a Sicília como pro-pretor. Tu ficas em Roma, nesta casa excelente, a ter aulas com o professor, para cresceres inteligente. Mas dou-te uma novidade. A tua tia prometeu visitar-te sempre que puder.

É verdade, tia vestal? – Quis confirmar o menino, de rosto rubro.

Sim, meu querido. Eu gosto muito de ti e não vou deixar-te sozinho. – Reconfortei-o, brincando com o seu nariz. – O teu pai vai fazer de tudo para vocês terem uma vida boa e eu estou aqui para vos ajudar. – Asseverei. Ele agarrou-se mais a mim, a rebentar de mimo.

Maninha, vê lá não exageres! Lépido tem de crescer para ser forte e destemido.

Isso quer dizer o quê? Que eu não posso dar beijinhos nas bochechas ao menino mais lindo que existe na face da terra? – Perguntei. Eu era maternal e adorava dar abraços de urso, daqueles bem repenicados! Eles deixaram-se rir. – E se pedíssemos à Ana que nos fizesse umas sopas de leite?

Eu adoro pão com leite de cabra! – Aplaudiu Lépido.

É também boa ideia para ti, Marco, que não podes beber só vinho! – Aconselhei.

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O meu irmão encolheu os ombros e aceitou o convite. Lépido, que raramente via a mãe, ficou animado com os meus carinhos e atenções. Eu coloquei-o ao colo, decidida a protegê-lo.

Uns meses depois, Marco conseguiu finalmente desprender-se de Roma e partir para a Sicília. Eu ocupei-me de Lépido, que era um menino doce e pouco aguerrido. Conforme combinado, eu subia regularmente ao Palatino e ajudava a gerir a casa com a Ana e o mordomo.

O que se passa Amílcar? – Perguntei-lhe um dia e esta foi a resposta que obtive:

Os seus lictores comem e dormem menos do que eu. Ironia do destino, não lhe parece? Eu sou cartaginês e vivo bem no Palatino, quando os romanos sobrevivem mal na sua cidade.

Muito dos lictores provinham de famílias que passavam dificuldades, por causa das guerras constantes. Mas os sacerdotes mandavam-nos trabalhar horas a fio, esquecendo-se de lhes encher a barriga. O que estava errado!

O que ouviste dizer aos lictores, Amílcar? Podes falar.

Ao que parece, eles trabalham interruptamente. Um deles tem dezoito anos, não vê a mulher e o seu bebé, há sete dias, pois tem sido obrigado a pernoitar no fórum… à chuva! Olhei para ele, estarrecida.

Eu não sabia disso!

Há muita miséria em Roma.

A vida está difícil para todos. Eu vou cuidar deles. Obrigada pelo aviso.

Amílcar sorriu-me, satisfeito por ter feito a sua boa ação do dia. Ele tinha coração de ouro e eu resolvi recompensá-lo. Perguntei-lhe indiretamente o que ele queria e dei-lho. Eu gostava de vê-lo contente e a verdade é que era o melhor mordomo da cidade!

Os guardas também receberam tratamento especial. Para começar, dei-lhes folga para poderem descansar e ver os filhos. Depois arranjei um esquema que incluía visitar o meu sobrinho e enviar os lictores para a cozinha, para se sentarem e comerem uma refeição. Portanto, comigo os guardas andavam nutridos e não adormeciam em serviço.

Os lictores gostavam de render guarda comigo, também porque não estavam sempre parados, qual estátuas, de costas para o muro do santuário. Acompanhavam-me de um lado para o outro. Tinha o seu lado lúdico, sem que o trabalho fosse necessariamente uma obrigação. Eles serviam de arautos à minha missão, que era solidária. Eu continuava a distribuir pão no fórum e pagava a Eurísaces para se ocupar dos bairros onde eu não podia entrar. O meu campo de ação era circunscrito, pois restringia-se ao fórum e ao Palatino.

Anda, Pales, vamos dar de comer a quem precisa. – E ele vinha.

Eu caminhava a seu lado. O jumento só carregava as cestas de pão. Assim o peso não era excessivo e ele vinha de livre vontade. No regresso ao templo, já cansada, eu sentava-me no seu dorso de alforges vazios, fazendo-lhe festinhas no cocuruto.

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Portaste-te muito bem, Pales. Deste-me uma grande ajuda hoje…

Eu tinha escolta e boas intenções, mas os níveis de insegurança eram elevados. Não cheguei a temer pela vida, mas houve situações de desconforto físico. Uma mulher mole teria sido literalmente passada a ferro! Uma autoritária acabaria por incitar à revolta e à violência.

Dentro do possível, consegui manter o equilíbrio e a serenidade no meu espaço de ação. Mantendo o espírito solidário aguentei firme o desafio, pois era gratificante. Os pobres de Roma recebiam pão e, mais tarde, donativos diversos que me eram entregues pelas matronas caridosas da cidade, em cestas cheias de víveres.

A pobreza é mais do que muita! Nem sei como as pessoas aguentam viver assim. – Comentei, ao sentar-me ao lado de Fonteia, junto ao fogo sagrado.

Ao regressar das missões solidárias, Fonteia perguntava sobre o meu dia e eu fazia-lhe um relato pormenorizado das atividades desenvolvidas, para ela, enquanto sumo-sacerdotisa, manter o controlo da situação.

Emília andas cansadíssima! Era boa ideia abrandares e passares mais tempo no templo. Já olhaste para ti? Estás magra, rapariga! – Aconselhou.

Como posso comer rodeada de tanta miséria? Como posso acomodar-me quando na cidade os romanos choram e enterram os seus mortos…

Eu percebo, é difícil. Mas nem tu, nem eu, conseguimos concertar o mundo.

Talvez eu possa melhorar um pouco a vida de quem vive à minha volta…

As minhas intenções eram boas, mas foram testadas quando um pretendente da Ana subiu ao Palatino para pedir a sua mão em casamento, quando ela não estava disponível de acordo com os estatutos. Primeiro, nunca tal me tinha acontecido e a audácia do homem surpreendeu-me! Segundo, Marco era o único que podia alforriá-la, eu não tinha voto na matéria. Terceiro, o meu irmão não estava em Roma, Lépido precisava de uma ama que cuidasse dele todos os dias e eu não podia entregar o bem-estar do meu sobrinho a alguém que não fosse da nossa confiança. Quarto, eu pensava que Amílcar gostava dela e que os dois eram um casal.

Quem é este homem, Ana? – Inquiri, na tentativa de avaliar a situação.

Chama-se Joaquim e reside em Roma. Pertence a família de copistas que trabalha para a classe equestre. Conheci-o no mercado livreiro. Perguntou-me se eu queria casar com ele e eu disse-lhe que não sou livre para tomar essa escolha. Foi por isso que ele veio falar consigo.

Gostas dele?

Sim, domina.

Mas…e Amílcar?

Somos amigos, domina.

Só isso?

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Residimos no Palatino há muitos anos e estamos habituados um ao outro. Mas temos expetativas de vida e personalidades distintas, talvez por sermos de regiões que, pouco ou nada, têm em comum. – Explicou ela. – Sempre tive o sonho de constituir família, de nutrir uma relação de exclusividade e de ser mãe de vários filhos a quem eu pudesse educar de acordo com costumes da minha terra.

Tens a certeza que o Joaquim quer casar contigo? Às vezes os homens dizem uma coisa e fazem outra… e pode querer levar-te para longe!

Ele tem boas intenções. Eu já conheci uma irmã dele e uns sobrinhos.

Porque veio ele bater à nossa porta, para reclamar alguém que está fora do seu alcance? Parece-me suspeito.

Ele diz que se apaixonou por mim.

Pois, ele disse-me. O Joaquim tem meios para providenciar o vosso sustento?

Sim, domina. Ele tem trabalho remunerado e casa própria. Vive num bairro que fica entre o fórum magno e a Porta Capena.

Perderás todos os luxos a que estás acostumada. Sabes disso?

Sim, sei. Amílcar nunca abdicaria deste conforto. Mas eu tenho outras prioridades e prefiro viver humildemente, num espaço só meu e organizar a vida à vontade.

Mas tu não vai viver sozinha, Ana. Um conjugue tem poder de vida e de morte sobre a mulher e costuma ser controlador, sabes disso? – Adverti. – Há quanto tempo o conheces?

Há seis meses. No dia em que lhe disse, fui ao mercado livreiro. Eu procurava um rolo de pergaminho para as aulas do menino Lépido e fui atacada por desordeiros. O Joaquim estava com a família, protegeu-me e salvou-me a vida.

Se ele cuidou de ti, é bom sinal. Mas… o meu irmão não regressa a Roma enquanto Sila estiver no poder e, portanto, alguém tem de cuidar do filho na sua ausência. Eu apenas estou de visita, entendes?

Sim, domina. – Respondeu, baixando os olhos.

A situação era complicada. Primeiro, eu não podia libertar apenas a Ana, pois Amílcar trabalhava connosco há mais anos do que ela. Eu sentia gratidão para com os dois. Mas eles eram responsáveis, desde a morte do meu pai, pela gestão quotidiana do pessoal e dos recursos materiais. Marco só se ocupava das decisões importantes, pois não era homem para entrar numa cozinha, fiscalizar se a parede precisava de pinturas ou se havia comida na despensa.

Segundo, a alforria era uma questão complexa. Havia diferentes tipos de contratos em vigor mas, regra geral, estava sempre implícita uma obrigação de obséquio. Na prática, se o Joaquim se casasse com a Ana, tornava-se cliente da casa dos Emílios Lépidos. A Ana e o Amílcar não podiam ausentar-se de Roma sem a autorização de Marco e mantinham-se disponíveis para responder ao chamado, se necessário. Numa sociedade hierarquizada e clientelista como a nossa, a liberdade era condicionada, havia sempre alguém sob a nossa cabeça. Ninguém era completamente livre. Foi isso que eu expliquei ao Joaquim. Mas, para minha surpresa, ele aceitou as condições.

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Entrei em contacto com o meu irmão, por mensagem escrita. Na primeira missiva, ele enviou-me um redondo “Não”. Portanto, seis meses duraram as negociações! No final, as partes intervenientes, obtiveram o que queriam. Marco concedeu alforria a ambos mas, em contrapartida, os contratos incluíam cláusulas de obséquio exigentes.

Amílcar não se rebelou contra as regras, pois era do seu interesse continuar a viver na casa patriarcal dos Emílios Lépidos e agora até tinha estatuto acima do pessoal doméstico. Ele era alto, espadaúdo e experiente, mas já vira muita coisa. Temia aventurar-se numa cidade onde alastrava o caos e onde os cartagineses ainda eram considerados inimigos, alvos fáceis a abater, por capricho ou maldade. Fora das muralhas sérvias, dizia ele, os perigos eram maiores, por causa das tocaias e dos traficantes que podiam capturá-lo. Ao menos, no Palatino, ele conhecia os cantos à casa e sabia o que dela esperar! Ele também ouvira dizer que Cartago fora arrasada pelos romanos, no fim da terceira guerra púnica e que sal fora espalhado sobre o território para impedi-lo de germinar. Portanto, convencia-se que não tinha cidade para a qual regressar.

Num mundo onde os indivíduos se matam uns aos outros, são capturados por piratas, perdem batalhas ou são prisioneiros de guerra, ele prefiro estar aqui sossegado. – Argumentou Amílcar. – Eu nunca poderei viver numa casa melhor do que esta, domina. Isto para mim é um luxo! – Exclamou. Não me competia julgá-lo, nem teorizar filosoficamente sobre o assunto. Se ele preferia assim, não se falava mais no assunto.

A Ana e o Joaquim tiveram de ajustar-se às condições impostas pelo meu irmão, portanto, ela subia ao Palatino pelas manhãs e regressava à sua nova casa no final da tarde.

Sob a minha perspetiva, era forma de compensá-la pelos anos que fora minha ama e por todos os riscos que assumira ao fazer-me as vontades ao longo dos anos. Sem esquecer que ela fora flagelada pela Mater por minha causa, quando eu era criança. Eu queria emendar tal injustiça! Não sendo eu culpada do seu infortúnio, sentia-me em dívida para com ela e, portanto, vivia agora melhor com a minha consciência.

A Ana convidou-me para assistir ao seu casamento. Quando cheguei ao seu bairro, fui rodeada pela família do noivo. A cultura dela era, realmente, muito diferente da nossa e, portanto, a boda incluiu uma série de rituais que me eram desconhecidos. Havia pelo menos cinquenta convidados, porque todo o bairro fora convidado para o banquete! Os homens usavam cabelo negro aos cachos, barbas e bigodes fartos e mantos pesados até aos pés. As mulheres cobriam a cabeça.

A família do Joaquim não tinha grandes meios, mas era empreendedora e organizava-se em tribo, pelo que havia sempre alguém que aparecia para desenrascar qualquer situação. Conclui, portanto, que ela estava bem entregue.

Eu não contava era com a disponibilidade da família para participar no meu movimento solidário. Não o exigi, nem o propus! Mas o Joaquim, antes do casamento, já elogiava a ideia de distribuir comida gratuitamente aos desfavorecidos da cidade e disponibilizou-se

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para contribuir no que pudesse pois, na sua cultura, segundo me disse, a responsabilidade social era levada muito a sério.

Conheci Eurísaces através de si e resolvemos estabelecer uma parceria. – Avisou-me o Joaquim, no dia do casamento.

Ah sim? – Espantei-me. Ele era mesmo dinâmico!

Uma tia minha é uma excelente cozinheira e já nos organizámos para expandir o negócio das padarias, colocando carne por dentro do pão, com tempero especial, sabe como é? – Perguntou-me. O Joaquim parecia entusiasmado. Mas eu não sabia ao que ele se referia. Nunca tinha provado. Nesse dia, porém, pude saborear a receita e constatar que era uma delícia. – Garanto que vai ser um sucesso, vestal Emília.

Mas o Joaquim não era escriba?

Eu não sou escriba. Eu faço a gestão do negócio familiar. Eles são todos copistas. Eu lido com dinheiro.

Isso quer dizer o quê?

Empresto moedas a troco de uma percentagem e vou investindo em diferentes negócios que considero rentáveis. É por isso que posso estabelecer uma parceria com Eurísaces. Aliás, eu convidei-o para a boda e ele disse que vinha mais tarde, mas deve estar a chegar. Podemos falar todos sobre o assunto, se quiser.

Sim, pode ser.

Enfim, a economia está fraca. Mas as oportunidades são para ser agarradas, pois sempre se pode ganhar mais algum e ajudar a sustentar as várias famílias.

Parece-me um bom plano. Mas já sabe, não meta a Ana em sarilhos.

Não se preocupe, eu cuido bem dela. A noiva apareceu pouco depois, acompanhada pelas cunhadas.

Estás feliz, Ana? – Sorri-lhe.

Sim, estou. Os romanos não são todos como a vestal Emília, obrigada.

Eu fico contente por vocês. Mas a cidade está perigosa. Tenham cuidado.

Prometemos, vestal Emília.

Quando Eurísaces apareceu com a família, na boda da Ana e do Joaquim, o ambiente alegrou-se, pois ele tinha voz de tambor e uma barriga enorme! A mulher e a filha dele também eram roliças e divertidas.

Eu fui convidada a investir no negócio das padarias, do qual receberia em percentagem, se fosse bem-sucedido. Alinhei na ideia, porque não? A única coisa importante para mim, era assegurar a distribuição gratuita de pão pela cidade, pois havia quem disso dependia para sobreviver. Eles explicaram-me que eram dois processos distintos. Se o primeiro fosse rentável, o dinheiro disponível para caridade aumentaria e eu acreditei.

A Ana parecia contente e tudo lhe corria de feição. Nove meses depois deu à luz uma menina saudável, que era a alegria dos pais e do bairro inteiro, pois as mesmas pessoas que compareceram no casamento marcaram presença na festa organizada em honra da criança!

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A família da Ana é muito… unida. – Comentei, quando me apercebi rodeada de pessoas, como se fosse uma ilha, no dia em que visitei a minha antiga ama, cuja casa ficava a caminho da Porta Capena, onde eu ia buscar água, como era costume as vestais fazerem.

Entretanto morreu o pai adotivo de Paulo e o meu sobrinho regressou à cidade. Marco ainda se mantinha na Sicília e eu subi ao Palatino para desejar as boas-vindas ao miúdo. O rapaz vinha mudado. Parecia distante.

Tentei contrariar a estranheza entre irmãos que tinham vivido separados durante tantos anos. Amílcar e o literador ajudaram no processo. Era importante garantir que Paulo e Lépido aprendiam a conviver, com base em regras comuns. Não foi fácil! Eles tinham mentalidades diferentes. Mas lá se articularam, com esforço, colaboração mútua e alguns amuos, pois ambos frequentavam o Campo de Marte com os irmãos Cipião e Regilo, para serem ágeis nos exercícios militares, individuais e coletivos.

No final do ano de 673 AUC um dos sobrinhos de Sila organizou os Ludi Victoriae Sullae. Nas calendas do nono mês do calendário, o homem forte de Roma celebrava o aniversário da sua entrada na cidade. De acordo com a propaganda do Estado, era uma forma de expurgar a cidade e de glorificar o herói que terminara com o conflito armado. A oposição estava praticamente silenciada no Senado. Para manter a cabeça sobre os ombros, durante seis dias, foi assistir aos jogos fúnebres em honra dos mortos da guerra civil.

Os exercícios paramilitares, executados pelos mais jovens, recordavam os antigos Jogos

de Troia que tinham caído em desuso, conhecidos por lusus troiae ou simplesmente lusus, uma tradição funerária da terra natal do herói Eneias. Eram também um ritual iniciático para rapazes com idade de ir para a guerra e uma oportunidade para os jovens romanos demonstrarem valentia.

Os meus sobrinhos tinham sido convidados a participar no evento. Eu não acompanhei diariamente os progressos de Cipião e de Regilo. Mas os irmãos mais novos queriam suplantar-se e corresponder às exigências do momento! Como viviam juntos no Palatino, eu visitava-os amiúde. Estava preocupada com eles. Eu não percebia porque haviam sido chamados a participar nos lusus, quando tinham idades inferiores a dez anos.

Então, preparados? – Perguntei-lhes na véspera dos jogos.

Tia Emília veja! – Pediu o mais novo.

Lépido mostrou-me braços finos e pernas escalavradas como quem exibe troféus. Mas era um querido e eu reguei-lhe o pezinho.

Com esses músculos todos? Não sei se os outros rapazes se aguentam contigo!

Lépido riu-se e deu-me um abraço. Aproveitei para o encher de mimos e muitos beijinhos. Paulo parecia apreensivo, para não dizer aterrado de susto, só de pensar no dia seguinte.

Ele está a borrar-se de medo de Catão! – Troçou Lépido.

Eu não tenho medo nenhum dele, ora essa! – Queixou-se o irmão.

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César e a Vestal 180 Maria Galito

Foi então que recordei a conversa da minha mãe com Aurélia, quando eu era pequena, sobre a gravidez de Drusa. De facto, a falecida dera à luz um Catão. Perguntei aos meus sobrinhos pormenores sobre a vida do rapaz.

Ao que parece, antes da guerra contra os italianos, um márcio amigo de Druso viera visitá-lo a Roma. No decurso da sua estada, terá conversado com os sobrinhos do anfitrião. Chegou a desafiar Serviliano e Catão (o mais novo na época teria uns quatro anos!) a pedirem a cidadania romana para os italianos. Serviliano foi na conversa. Catão não gostou da ideia e fez cara feia. O márcio resolveu dar-lhe uma lição, obrigando-o a implorar por isso. Catão, já em garoto, era obstinado e não lhe fez a vontade. O italiano agarrou no miúdo pelos pés e debruçou-o de cabeça para baixo num parapeito. A criança resistiu à pressão e não vacilou na sua pertinácia. Ao colocar o rapaz outra vez no chão, o márcio foi contar ao anfitrião o que sucedera. Este ficou impressionado com a resiliência do garoto. Orgulhoso, Druso terá repetido várias vezes esta história aos amigos, os quais a transformaram em lenda! Para os membros do partido optimate, Catão dera mostras de infinita coragem. Para os marianos, ele era teimoso como uma mula!

Serviliano e Catão cresceram órfãos, sem pais nem tio, só com a ajuda de parentes e rédea solta. Diz-se que tinham muitos amigos. Numa das brincadeiras, ainda em crianças, dividiram-se em dois grupos, uns a fingirem-se advogados, outros condenados à prisão. Um dos rapazes, que era mais bonito, foi fechado dentro de um cubículo pelos mais fortes, até começar a gritar por Catão. Este apressou-se a salvá-lo. O rapaz bonito era Serviliano, de todos o único que Catão podia levar para casa. O irmão era o típico menino que cresceu a usar perfume.

Serviliano é rapaz moderado. Mas quem não é, quando comparado com Catão? – Troçou Lépido, cruzando os braços.

Não sei, parece inseguro. – Avisou Paulo.

Catão protege muito o irmão. Às vezes exagera. Não o deixa respirar sozinho! – Censurou Lépido, encolhendo os ombros. Na sua opinião, Serviliano feria-se para dar mostras de sacrifício e elevação de espírito.

Se perguntassem a Catão quem era a pessoa que ele mais adorava no mundo, ele respondia o meu irmão. E em segundo lugar? O meu irmão. E em terceiro lugar? E em quarto lugar? A resposta era sempre a mesma.

Ele não tem medo de nada! – Acrescentou Paulo.

Catão só faz o que quer e o irmão deixa que ele mande em tudo. É por isso que se dão bem. – Troçou Lépido.

Aquela história ficou-me no ouvido. Em Roma muitos primogénitos eram protetores dos irmãos ou, pelo menos, eram educados nesse sentido. Era menos comum reconhecer liderança a um irmão segundo, mas não era caso único. A dinâmica de poder entre Catão e Serviliano é que era rara. O que podia justificá-la? Primeiro, eram órfãos desde pequeninos e frequentadores da casa de Sila.

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César e a Vestal 181 Maria Galito

Muitos homens tinham sido torturados debaixo do teto do ditador. Catão revoltava-se contra o que acontecia lá dentro. O seu professor ter-lhe-á explicado que as pessoas

temiam Sila mais do que o odiavam e que, por isso, não o enfrentavam. O rapaz pediu uma espada para livrar Roma da escravidão. O docente ficou com medo que o miúdo se metesse em sarilhos e passou a protegê-lo. Lépido acreditava que Catão devia a vida a esse gramático.

Amanhã vou assistir aos jogos. Vou lá estar na primeira fila, a apoiar-vos! – Garanti maternalmente.

Vai ficar orgulhosa de nós, tia Emília! – Entusiasmou-se Lépido e Paulo sorriu.

A moralização dos lobitos estava feita. Restava orar por eles a Vesta! No dia seguinte levantei-me cedo. Eu não costumava ocupar o meu lugar nos jogos mas, desta vez, fiz questão de comparecer. Eu não confiava em Sila.

Só não levei os meus sobrinhos debaixo do braço, porque eles foram inseridos num grupo de rapazes da idade deles. Tive de confiar nos deuses. Fonteia aproveitou a boleia e veio comigo, deixando Perpena e Popília a resmungar no templo. Fábia ficou com elas, mas Licínia aproveitou a boleia no carpeto.

Estacionámos mesmo à entrada do Circo Máximo. O complexo ficava aninhado num vale, entre os montes Palatino e Aventino, inserido no Campo de Marte que teria uns 600 acres desde o Capitólio até à Porta Flamínia, e entre o monte Quirinal e o rio Tibre.

O Circo Máximo era uma estrutura permanente que existia em Roma há séculos, mas sofrera várias adaptações à época. Ainda tinha assentos em madeira. Era mais utilizado para corridas de bigas ou de quadrigas e para combates de gladiadores.

Apeámo-nos com a ajuda do lictor. Àquela hora o espaço abarrotava de transeuntes e de comerciantes com pregões para atrair clientela. Dada a natureza do evento, havia muitos nobres a deambular pelas imediações. Nós optámos por nos dirigir diretamente para o nosso lugar. A multidão deixou-nos passar à frente.

Ao subir as escadas, o ruído aumentava exponencialmente. Ondas de pessoas vibravam nas bancadas. Eu estava ansiosa, nervosa e só queria que aquilo tudo acabasse depressa.

O que se passa, Emília? – Perguntou Fonteia apercebendo-se que eu não ouvia nada do que ela dizia, pois só Licínia respondia aos seus comentários.

Temos uma boa vista. – Referi e era um facto. Mas eu estava preocupada com os meus sobrinhos e não conseguia pensar noutra coisa.

Apareceram os primeiros miúdos para os exercícios de aquecimento. Os meus sobrinhos demoraram a aparecer. Aguardei, rebolando as mãos no regaço. Eu estava nervosa!

Foi então que o burburinho aumentou. Ouviram-se trompetas a anunciar a chegada de Sila e a sua comitiva encheu a tribuna. Eram umas trinta pessoas. No grupo reconheci Mamerco e Cornélia, mas também Dalmática e o amante de Sila, Metróbio.

Haverá drama? – Perguntou Fonteia, apontando para as duas primeiras damas.

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César e a Vestal 182 Maria Galito

Hesitei antes de responder. Evitavam-se e sentaram-se separadamente:

Talvez não. – Respondi, com olhos pregados no campo.

A população aplaudia o homem forte de Roma. Havia uns quantos urros e assobios, logo abafados pelos guardas. Quem apupasse o comandante arriscava-se à tortura ou à morte, o que ia dar ao mesmo!

O Circo Máximo ainda está a encher! – Comentou Licínia.

A população continuava a entrar no recinto. Chegava e sentava-se, em confraternização com os amigos, com o seu farnel, preparado para ficar toda a tarde a assistir aos jogos.

Onde estão os meus lobitos que nunca mais aparecem? – Perguntei, inquieta.

Lá estão eles! – Apontou Licínia, que aplaudia.

Identifiquei Lépido e Paulo no meio de vários miúdos de diferentes idades que marchavam, uns atrás dos outros. Vinham trajados como legionários, até formarem duas colunas. Avançaram, a pé, em direção à bancada principal. Vinham saudar Sila.

O comandante dirigiu-se às massas num discurso curto e elitista que não terá sido do agrado da maioria. Mas não foi a turba a desafiá-lo. O imprevisto aconteceu em campo. Os rapazes estavam irrequietos e não sossegavam de maneira nenhuma.

O que é que se passa? – Perguntou Sila aos rapazes. Ele podia tê-los mandado chicotear. Evitou fazê-lo, por serem crianças. Para não desagradar às massas! Licínia, a mais jovem das vestais, parecia especialmente interessada no assunto:

Um dos grupos é liderado pelo filho mais velho de Dalmática e enteado de Sila. O outro é encabeçado pelo sobrinho de Pompeu.

O que estão eles a fazer? – Perguntei-lhe.

A desafiar a liderança do sobrinho de Pompeu. – Explicou-me Licínia.

Eu não entrei em pânico. Mas quase! Felizmente, Lépido e Paulo não pareciam dispostos a brigar por uma causa que não era sua. De facto, aquela não era boa altura para chamar a atenção. Respirei de alívio.

Logo mudei de ideias. Cipião e Regilo faziam parte dos descontentes. Eles preferiam ser chefiados por Catão. Porquê? O meu irmão era amigo de Pompeu e os pirralhos das duas famílias conheciam-se. Por isso estranhei que os garotos se digladiassem! Talvez fosse sintomático de algo que eu desconhecia. Redobrei a atenção.

Aproveitei para observar Catão. Do ponto de vista físico era um rapaz normal de feições tipicamente romanas. Nesta fase, vestia-se como os outros. Mas, em personalidade, era um líder! Afirmava-se com corpo e alma. Sabia ao que aspirava e impunha-se. Com ele não havia nem talvez, nem mais ou menos, era como ele queria e acabou!

Sila remediou o assunto, colocou Catão ao comando e deu início aos jogos.

Os cavalos começaram a correr na arena. Tinha sido desenhado um caracol no chão. Uma espécie de labirinto! Os rapazes montavam os seus cavalos e troteavam dentro do traçado,

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sem sair fora dele, tão depressa quanto possível. Cada equipa tinha vários cavaleiros, que passavam testemunho uns aos outros. A turma, que terminasse primeiro, ganhava.

Os rapazes precisavam combinar velocidade e agilidade durante a prova. Mas não bastava que um cumprisse as regras. Era esforço de conjunto! Paulo parecia nervoso, mas portou-se razoavelmente bem.

Lépido foi mais veloz. A dada altura quase perdeu o controlo às rédeas. Depois lá se orientou. Num volte face impressionante, para a idade, acabou mais cedo que os outros! Paulo foi saudá-lo pela vitória. Quando me apercebi disso, aplaudi-o entusiasticamente, na companhia das minhas colegas.

Já acabou? Podemos ir embora? – Perguntei baixinho para Fonteia.

Este foi o primeiro dos exercícios, Emília. – Sussurrou Licínia.

Agarrei-me à barriga revolvida de preocupação. Seguiu-se a prova de velocidade, em que os cavalos tinham de seguir um percurso em linha reta e regressar ao local de partida, após o qual tinham de passar testemunho. Quando todos os elementos de uma equipa concluíssem o exercício, terminava a prova.

Catão e o sobrinho de Dalmática montaram os seus cavalos e colocaram-se, lado a lado, junto à linha de partida. Enquanto chefes de equipa, seriam os primeiros a dar o exemplo aos demais. Catão venceu com facilidade. Paulo e Lépido também se portaram bem.

A multidão parecia entretida. No Circo Máximo a intensidade dos cânticos e a destreza dos jovens cavaleiros era grande e parecia imensa, por causa do eco das palmas e dos urros! Do camarote, Sila dava mostras de satisfação e levantou-se para aplaudir os jovens, quando estes se aproximaram, em glória, montados nos seus cavalos.

Uma nova geração de romanos apresentara-se em público. O povo tivera a oportunidade, pela primeira vez, de atestar a sua coragem. Fonteia e Licínia pareciam animadas:

Serão estes os nossos futuros governantes? – Perguntou Fonteia. Virou-se para mim, à espera de um comentário.

Talvez algum deles. – Admiti.

Tudo indica que o porvir é promissor, não te parece? Eu não estava tão segura quanto Fonteia:

Os rapazes começaram os jogos em conflito. Não é bom indício. Por isso, não sei. Ainda agora acabou uma guerra civil, deveremos preparar-nos para outra?

Oh, Emília, francamente! – Horrorizou-se Fonteia. – Não digas isso nem a brincar.

Sila entregou prémios simbólicos sob a forma de faixas coloridas e pequenas bandeiras. Catão subiu os degraus para receber pessoalmente os cumprimentos do comandante, por ser o líder da equipa vencedora.

Catão parecia orgulhoso de receber encómios pelas vitórias. Mas, de repente, olhou para a direita. Um rapaz foi ter com ele para o saudar. Concluí tratar-se de Serviliano, pois era parecido com o irmão. O ditador colocou uma mão sobre o seu ombro. Mas Catão, de

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imediato, puxou o irmão para si. Foi um gesto simples que não me passou despercebido. Confirmei, assim, que Catão protegia Serviliano de Sila.

Competia-me fazer o mesmo em relação aos meus sobrinhos. Quando ouvi o comandante convidar os rapazes para um banquete, para comemorar os jogos e receber em apoteose

a nova geração de Roma, não escutei nem mais uma palavra e fui ter com os meus sobrinhos. Não cheguei a tempo no caso de Cipião e Regilo, pois eles estavam mais à frente na fila e já tinham aceitado ir, em comitiva, para a casa de Sila. Mas consegui convencer Lépido e Paulo a seguirem-me. Fonteia e Licínia vieram connosco, enaltecendo as suas proezas. Os miúdos estavam contentes e eram todos sorrisos.

Quando saímos do Circo Máximo, subimos para o carpento. Portanto, os meus sobrinhos chegaram rapidamente, sãos e salvos e gloriosos, ao Palatino. Ao despedir-me, pedi-lhes encarecidamente que não aceitassem convites de Sila, muito menos para irem à casa dele, fosse por que razão fosse. Nem que a convocação viesse de Mamerco. Eles confiavam em mim e prometeram fazer-me a vontade.

Tive pena de não ter trazido Cipião e Regilo para o Palatino. Mas eles mal me conheciam. Não estavam sob a minha influência. Eu pouco podia fazer, por eles, para além de rezar a Vesta. Entreguei aos céus o seu destino.