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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo I (100-94 a.C.) Maria Galito 2017

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Page 1: César e a Vestal · professor de muitos alunos, entre os quais Tibério Graco que, por sua vez, teve grande influência sobre o meu avô. ... (por alturas do meu aniversário)

PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo I

(100-94 a.C.)

Maria Galito

2017

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César e a Vestal 4 Maria Galito

Capítulo I

654-660 AUC

Em nome da mãe.

O meu nome é Emília e sou uma patrícia romana. Nasci na domus1 mais antiga do Palatino nos idus martius de 654 AUC,2 dois meses após Mário assumir funções de cônsul pela sexta vez. Na época, a República estava em sobressalto por causa de Saturnino, o sogro do meu irmão, um tribuno da plebe que dava voz à revolta dos populares.

Durante os ludi apolinares3, quatro dias antes dos idos do quinto mês4, surgiu César, em berço patrício mas falido, no insalubre bairro de Subura. Enquanto sobrinho de Mário, frequentava o morro de Rómulo5, onde o tio adquirira, recentemente, uma casa vizinha à nossa. Portanto, as famílias conviviam regularmente e eram aliadas políticas.

César e eu nascemos em ano de matança no Senado, pois Saturnino foi lapidado pelos colegas quando o inverno abriu portas à Saturnália. No que foi também um ataque ao regougar da raposa de Arpino6. A terra de lobos rejeitava Mário que insistia em manter o poder e Sila, em nome dos optimates, afincava caninos nos homens novos que queriam a reforma agrária e a distribuição da cidadania romana aos habitantes das novas colónias à custa do Estado.

Saturnino não foi o primeiro tribuno da plebe a ser assassinado, mas a sua morte

desequilibrou sistema instável desde o tempo dos irmãos Graco. No que parecia um ataque aos campeões do povo. Mas estes plebeus possuíam origens e calepinos diferentes. Por exemplo, Saturnino brotara da classe média em busca de fama e dinheiro. Mário era o primeiro da família a entrar no Senado e a declarar independência dos seus patronos (os Cecílios). Tibério Graco colocara em risco a vida e o estatuto social em prol de um ideal que desafiava os interesses dos mais ricos como ele. Caio Graco, o seu irmão, tentara seguir-lhe o exemplo e o resultado só fora mais macabro.

O sangue dos tribunos da plebe era sacrifício humano aos deuses de uma Roma dilacerada que, apenas aparentemente, era mais civilizada que os povos que dominava através do culto mensal a Júpiter e a Saturno a cada sete dias. É preciso não esquecer que Roma era um caldo entornado desde Rómulo. A urbe fora construída por fratricida que agradecera a Jove as vitórias em batalha, destronando o pai do Capitólio, como castigo por este se ter virado contra os filhos. O bom rei Numa Pompílio ainda tentou converter os guerreiros de Rómulo em lavradores, mas os seus sucessores abriram alas a política expansionista contra os vizinhos. Depois a Monarquia foi substituída pela República, para distribuir melhor recursos e pelouros. Mas o regime político caiu à força e, desde então, a violência alimentava infindável luta de poderes entre plebeus e patrícios;

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que se transformou em rivalidade entre nobres e pobres; e a insatisfação geral deflagrou em mais conflito pela vã glória de mandar num jogo de cara (ROMA) ou coroa (AMOR).

A intenção dos tribunos da plebe era enfrentar o poder dos patrícios. Mas estes perdiam privilégios a favor dos plebeus, sem que Roma deixasse de ter mais nobres, embora tivesse cada vez mais pobres; e os antigos guerreiros de Rómulo perguntavam-se porque abdicavam do poder, se apenas para deixar passar outros à sua frente no Senado. É verdade que o tribunato reivindicava direitos sob pressão das bases, mas não punia pelo povo; velava pelos interesses dos plebeus nobres que resistiam à partilha de

privilégios (que haviam conquistado) com o resto da população. Para tal contribuía a falta de escrúpulos e a corrupção dos costumes num mundus altamente competitivo, que ultrapassava regras e alimentava egos.

Saturnino era um tribuno da plebe especial, pois atacava mais os plebeus nobres do

que os patrícios. Também pelo facto da sua filha Apuleia ter casado com o meu irmão, que pertencia a uma das famílias mais antigas da cidade.

O meu pai sofreu com o assassinato de Saturnino e absorvia-se na sua quimera de ilusões perdidas. Apesar de residir no Palatino, com átrio apinhado de efígies de antepassados ilustres, tivera dificuldade em afirmar-se na política. Encontrara resistência ao seu cursus honorum e sentia-se renegado pelos optimates que não lhe davam espaço para progredir. Teve de vender propriedades para financiar a sua carreira, assegurar dotes às filhas e guardar um pé-de-meia para a entrada do filho no Senado.

Por ser patrício, o meu pai não podia candidatar-se a tribuno da plebe, pelo que não era nem rico nem famoso. Os seus princípios morais colocavam, em primeiro lugar, o interesse de Roma e da família, mas também o atrapalhavam num sistema bipartidário. Na Monarquia só havia o rei a quem obedecer e o povo a quem proteger. Mas, na

República, ele tinha de ser optimate ou popular quando não sabia bem que causa

defender. Ele tendia a ser conservador. Mas, como o dinheiro escasseava, os optimates mais abastados costumavam vencê-lo nas eleições. Por isso, aliara-se a Mário que, após casar com Júlia, se tornara líder do partido popular.

O Pater nunca foi além de pretor. O seu carater tradicionalista não convencia as massas. A maior parte dos romanos não o considerava progressista mas um optimate disfarçado! Assim perdeu a primeira candidatura ao consulado. Ao concorrer pela segunda vez, recorreu ao apoio de Saturnino, uma estrela em ascensão sob as boas graças de Mário. A parceria foi improfícua. O Pater perdeu o escrutínio e colocou a família numa posição desconfortável, ao associar-se a homem controverso que acabou lapidado na Cúria Hostília.

Os optimates sempre responsabilizaram Saturnino pelas ações que tomava. Até Mário lhe virou as costas! Talvez por o sogro do meu irmão ter acusado, de corrupção, os senadores que haviam recebido subornos dos embaixadores do rei Mitridates. Sabe-se que após a morte do tribuno, o comandante viajou para oriente e visitou o monarca asiático, tendo regressado a Roma carregado de ouro, com o qual comprou uma domus no Palatino. Este

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volte face da raposa de Arpino enfadou o meu pai que começou a queixar-se daquele mamarracho à sua porta!

De facto, a casa de mármore cor-de-rosa de Mário contrastava com as paredes austeras dos Emílios Lépidos; argamassa do patriarcado, com linhas direitas e padronizadas, onde dominavam frescos estilizados sem Priapos ou exageros de decoração. O nosso lar era o reflexo da personalidade estoica e fleumática do meu pai; e ele não entendia porque Mário podia ter casa de luxo quando o progenitor fora censurado por algo semelhante. Como se houvesse duplo critério para plebeus e patrícios, a desfavor dos últimos.

O meu avô paterno fora castigado pelos censores por possuir uma casa grande em Alsium e receber rendas de 6000 ases de outra domus em Roma. Mas cujo património não pagava o estilo de vida epicurista que lhe garantira a alcunha: Porcina. Portanto, era um esbanjador compulsivo, com fama de filho pródigo. Isto porque o meu bisavô perdera o primogénito na guerra e transferira todas as suas expetativas para o segundo filho, que passou a ser homónimo do irmão que falecera com a categoria de tribuno militar.

Não cheguei a conhecer o meu avô paterno. Ele faleceu antes de eu nascer. Mas o Pater contava que Porcina era homem refinado. Um verdadeiro lépido! Recebeu a mais eloquente das educações e tonou-se num orador de primeira água! Foi ele quem introduziu em Roma uma retórica fluida e graciosa, de estilo helenístico, que virou moda. Começou como optimate e defendeu leis conservadoras no Senado. Fez carreira de advogado e foi professor de muitos alunos, entre os quais Tibério Graco que, por sua vez, teve grande influência sobre o meu avô. Caio Graco também era visita regular em nossa casa antes de morrer. Os irmãos demagogos, contemporâneos do pai de Druso, tinham sido muito amigos do Pater.

Porcina fora extravagante. Do seu paterfamílias só herdáramos elogios. O meu bisavô

paterno ainda não tinha vinte anos e já recebera uma coroa cívica por coragem excecional! Mais tarde, mandou construir grandes obras públicas, tais como a via Emília e a cidade de Régia Emília. Estabeleceu colónias em Parma e Modena. Foi pontífice máximo, duas vezes cônsul, censor e seis vezes princeps senatus7! Teve morte natural e não foi esquecido. Roma recordava-o com respeito e ele servia de exemplo ao meu pai e a toda a nossa linhagem!

A minha Gens era das mais antigas de Roma. O Pater contava histórias dos nossos egrégios avós, com os seus olhos caeruleus8, claros e brilhantes, sem elevar o tom de voz; ao passear-me pelas arcadas da Basílica Emília enquanto eu treinava os primeiros passos em público. Eu espreitava-o com atenção, com beicinho de lábios pulposos, caçapeando tão rápido quanto podia, a seu lado, com orgulho por ter pai tão bonito; à sombra de arcadas e estátuas de um corredor a caminhar para o infinito.

O meu pai gostava de passear com a família, que era constituída por mulher e quatro

filhos. A Mater engravidara de mim numa fase tardia. Marco, por exemplo, já tinha vinte anos quando eu nasci e casou, nesse ano, com Apuleia, filha de Saturnino.

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O meu irmão quebrou a tradição familiar de casar com uma patrícia. Preferiu unir-se a uma plebeia rica. Apuleia tinha temperamento tribunício. Como não podia seguir carreira política, por ser mulher, vivia intensamente a atividade legislativa da cidade através do marido. O facto de ter abortado espontaneamente e de ainda não ter filhos, não ajudava na relação com a sogra, que a considerava má dona de casa, por andar sempre a correr de um lado para o outro – o que era considerado pouco salutar nas mulheres que almejavam a maternidade.

Lembro-me que Apuleia falava pelos cotovelos, com gestos largos de grande convicção. Não era raro brigar com Marco, o que irritava solenemente a minha mãe e, como vivíamos todos juntos, as paredes calavam muitas discussões que escutavam. Não sei se por causa disso, o irmão de Apuleia raramente nos visitava e sentia-se desconfortável à nossa mesa, com complexos por ser plebeu em casa de patrícios. O cunhado punha-o à vontade, estava sempre a convidá-lo para as caçadas e era com ele que seguia para as reuniões do partido popular.

Apuleia passava mais tempo com as minhas irmãs, mas dela nunca tive queixas. Quem cuidava de mim era a Ana. A Mater optara por não me amamentar, para evitar que os seios descaíssem, para conservar a beleza. Pelo que fui entregue a uma ama. Uma cativa estrangeira de peito cheio de leite, a quem tinham vendido o filho. A Ana evitava falar do seu passado e eu, em criança, desconhecia-o por completo. Mas sei que ocupei um lugar vazio no seu coração de ouro.

A Ana tinha ascendência hebraica, mas era romanizada nos costumes, pois adaptara-se aos nossos hábitos e comia carne de porco pela Saturnália. Muito calma, tinha paciência infinita para mim. A educação que me dava era complementar à dos meus pais, que me ensinaram valores do estoicismo, da frugalidade e da caridade, demonstrando preocupações sociais ao distribuir pão pelos mais pobres nas celebrações de Ana Perena (por alturas do meu aniversário). Eles eram orgulhosos do seu sangue, mas não beijavam o seu próprio umbigo. Transmitiam aos filhos os valores da cidadania e do bem-estar de todos os romanos, herdados da fidelidade ao rei e mantidos em lealdade pela República.

A Ana contou-me peripécias minhas de bebé curioso, a gatinhar com todo o vigor por alas e cubículos, com ela no meu encalço; até que Marco me apanhava do chão e me colocava no seu colo, para me fazer cócegas na barriga e dar-me beijinhos nas bochechas. O meu irmão dava-me mimo e eu gostava muito dele.

Assim fui crescendo nos braços de Marco que, sonhando acordado, me contava os seus planos para o lar patriarcal. Ele pertencia à nova geração que queria mudar o mundo, torná-lo mais justo e equitativo. Ambicionava o consulado mas também a jubilação do lar paterno que, por ser antigo, precisava de restauros e lutava contra a decadência. De facto, as paredes soluçavam por revestimentos que as mantivessem em pé. Na minha infância, faltavam confortos ao interior, que casas mais ricas já tinham. Mas o orçamento doméstico nem sempre permitia avançar com as obras e o paterfamílias convencia-se que a ostentação da vizinhança tinha fraco gosto e abusava das mordomias.

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Marco tinha bom coração. Herdara o temperamento epicurista do avô, pelo que não era dado ao estoicismo do pai. Era líder de peito aberto! Tudo nele gerava emoções fortes. Podia chorar e rir em público sem constrangimentos. Talvez por isso, era tremendamente popular no partido e na cidade; e mal visto entre os optimates que, apesar de tudo, não lhe resistiam. Marco tinha muitos amigos. Carinhoso e espalha-brasas, desenrascava-se bem com a esposa. O casal era feliz e, de forma caótica, os dois lá se entendiam! Menos com a matriarca da família.

A minha mãe evitava a hodiernidade, dando uma no cravo outra na ferradura. Reclamava da nora e insistia em incumbi-la das tarefas domésticas; as quais nunca se davam por terminadas em lar de orçamento limitado. Sob a sua batuta, todas as mulheres participavam nas lides da casa – não só as escravas – para garantir que todas tarefas se davam por terminadas. Portanto, o ambiente doméstico era disciplinado, elegante, sóbrio e muito bem decorado.

A Mater era uma pessoa devotada à família. Como patrícia dos sete costados, era dona da casa. Dava ordens e supervisionava tudo o que acontecia no seu espaço de influência. Com a ajuda do marido escolheu patrícios para maridos das duas filhas mais velhas. Incentivou-as a preparar o enxoval e educou-as com base em preceitos tradicionais, que incluíam a discrição e o máximo decoro. O Estado defendia uma política monogâmica

e a República era orientada para a família, pelo que a mulher de um senador

assumia lugar importante na sociedade e, entre os Emílios Lépidos, a questão era levada muito a sério!

A minha mãe tinha fama de virtuosa e era motivo de orgulho para o meu pai, que podia vangloriar-se publicamente de ter esposa fiel e dedicada. Ela tinha olhos castanhos e cabelos morenos. Baixinha e gordinha era uma rebitesa de rosto redondo, lábios finos e nariz romano. Muito esperta e extrovertida, conhecia todas as fofoquices da cidade. Tinha uma boa rede de contactos e dissertava longamente sobre casamentos, divórcios, banquetes e festas de aniversário.

Aurélia era uma das melhores amigas da minha mãe. A progenitora de César também debatia política com Apuleia e Júlia. Tinha faro para o negócio e era arguta. Mas era igualmente circunspecta e discreta. Possuía olhos de águia, pequenos e acutilantes. Quando a conheci estava no auge da pulcritude! Não tinha uma ruga, nem um fio de cabelo fora do penteado. Dotada de personalidade vincada, brilhava nas ausências do marido, pois criava os filhos sozinha em Roma enquanto o marido andava em campanha militar (e ela até lhe agradecia a distância!).

Aurélia casara com Júlio, um patrício de pais patrícios (tal como fizera Apuleia, o que, em Roma, correspondia a uma ascensão social). Ela tinha três irmãos. Eu conhecia Cota, o mais velho, um homem opinativo, que refutava a ideia epicurista dos deuses serem incontáveis. Enquanto orador, gostava de rebater argumentos com os quais discordava. Enquanto filósofo era adepto do neoplatonismo.

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Rutília era a mãe de Aurélia e de Cota. Típica dona de casa fiava a lã e dedicava-se aos filhos, enquanto mãe abnegada e apegada à família. Guiava-se por princípios morais rígidos e não chorava em público.

No ano do consulado de Dalmático e do primeiro marido de Rutília, estes haviam chamado Mário ao Senado para que este se explicasse, pois propunha lei que alterava o sistema de votação para que os optimates influenciassem menos os resultados das eleições. Mas o tribuno da plebe não subiu à berlinda de rabinho entre as pernas. Pelo contrário! Ameaçou os cônsules com a prisão e mandou acorrentar Dalmático, o mais velho dos dois. O esposo de Rutília, ainda de mãos livres, engoliu o orgulho e cedeu às reivindicações do tribuno, para salvar-se a si e ao colega, mas nunca perdoou a ousadia da raposa de Arpino.

Quando Rutília ficou viúva, casou em segundas núpcias com o cunhado. Este decidiu aliar-se a Mário – já que não conseguia vencê-lo! Desde então, as famílias davam-se (mais ou menos) bem.

Rutílio era irmão de Rutília e fora companheiro de Mário no exército. Educado nas virtudes romanas, era considerado um homem honrado. Chegara a cônsul com alguma dificuldade, após perder a primeira candidatura às eleições no ano anterior. Mas era famoso pelos ensaios literários e filosóficos que publicava em rolos de papiro, de muitas colunas de texto, reproduzidos por copistas e distribuídos às dezenas pela cidade.

Rutílio e o sobrinho Cota exerciam grande influência sobre César, uma criança frágil de corpo, mas de mente brilhante. Eles foram os seus primeiros professores de retórica.

Tanto assim que César era inteligente como a mãe, arguto como Mário, formoso como o pai e cativante como os oradores da família. Recordo-o alourado, com espelhos de génio típicos dos timoratos. Ele sempre respirou carisma – algo peculiar que não se traduzia em palavras mas que atraía os demais. A mim também.

Onde é que a menina pensa que vai? – Perguntou a Ana quando me descobriu a descer a rua principal do Palatino, em direção ao fórum. Olhei para ela e percebi que a coitada estava aflita.

Vou ter com César. – Respondi com naturalidade. Eu não sabia que a verdade provocaria reação tão desconcertada.

O quê!? A menina ia sozinha para Subura? Nem sabe onde fica a casa dos Césares! – Exclamou, pegando-me pelo braço, não fosse eu fugir-lhe. – Estas romanas não dão de mamar às filhas e depois admiram-se dos resultados! Na minha terra não é assim! – E continuou a declamar aos céus pela redenção eterna, embora eu não soubesse o que era, e levou-me para dentro do lar patriarcal.

Portei-me mal? – Questionei, de olhos pestanudos. Ana explicou a razão do seu desassossego:

Há muitos perigos em Roma, menina! – Referiu, contando-os pelos dedos. – Pode ser atropelada por uma carroça, ou empurrada ao chão pelos carregadores de uma liteira, ou raptada! – Explicou e eu peguei na sua mão, para a tranquilizar. Ela

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derreteu-se comigo. – Bom, está bem. Comigo está segura. Venha comigo e não se fala mais nisso. Mas não volta a sair sozinha sem me avisar, promete?

Jurei obediência. Fui levada para o jardim do peristilo, para me distrair com os passarinhos. Sei que subi a uma árvore para tocar no céu, mas fui repreendida pela Ana, que tinha medo que eu caísse e partisse uma perna.

Os meus pais nunca me levaram ao bairro dos Júlios. Em Roma, o Palatino era o dia e Subura a noite. As procissões de consagração a Júpiter desciam do Capitólio pela via-sacra, em que povo suspirava pelo morro da elite, à sua direita; mas fazia caretas ao tártaro de habitações encavalitadas à esquerda (sinistra).

Os Emílios não viviam nos jardins suspensos da Babilónia, mas quase! Em especial, se a comparação era Subura. Por algum azar do destino, os Júlios foram os primeiros patrícios a perder casa no Palatino e a sobreviver na região pantanosa, sujeitos a mosquitos e a doenças de todo o tipo, que haveria de encher-se de casas, na sua maioria precárias, pois aquela zona da cidade expandiu-se e empobreceu.

Ao longo dos séculos, os Júlios deram luta! As cerimónias dos idos do oitavo mês (equus october) eram disso exemplo. Envolviam tradicionalmente duas equipas, uma de Subura e outra da via-sacra. As festividades incluíam corridas em bigas no Campo de Marte e coincidiam com o fim da época das campanhas militares e do princípio do inverno agrícola. Sacrificava-se o melhor dos cavalos, em honra do deus da guerra e o vencedor enterrava a lança especial do flâmine de Marte no pescoço do campeão coroado com grinalda de mola salsa cozida no forno das vestais. A cabeça do cavalo era depois decepada e disputada, pois todos a queriam exibir. Se a vitória pertencesse à via-sacra, a carcaça era colocada no muro exterior à Regia. Os de Subura preferiam expô-la na Torre Mamília. A seguir, a cauda era levada para a Regia, em pleno fórum, para derramar o seu sangue no coração de Roma.

Este costume fora introduzido por Eneias no Lácio. Conta-se que os troianos domadores de cavalos já faziam este sacrifício e que Ulisses abusara das tradições de Príamo para vencê-lo (cavalo de Troia). Os Júlios davam extrema importância a estes rituais, pois afirmavam-se descendentes dos troianos. Mas só já o ramo dos cabeludos (caesaries) lutava por lugares no Senado.

Pater porque mataram o cavalinho se ele venceu a corrida? – Perguntei, ainda escandalizada com a oblação a que assistira.

Não reparaste, Emília? O carro do auriga era puxado a dois cavalos e só um dos animais foi sacrificado, o da direita. – Explicou-me o paterfamílias.

Porquê? – Indaguei, de olhos pestanudos.

A atividade militar começa nos idos de Marte, por alturas do teu aniversário. Termina pelos idos do oitavo mês. Mas os cavalos que correram hoje foram os escolhidos durante a Parilia em honra do deus Pales, onze dias antes das calendas do mês de Maia, percebeste? – Quis saber o meu pai.

Não. – E fiz beicinho.

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O meu irmão aproveitou para dissertar sobre as suas teorias:

Queridinha, Roma foi fundada por Rómulo e Remo e, por isso, ainda hoje somos governados por dois cônsules. Mas um dos gémeos matou o outro para governar sozinho como rei. Como os romanos detestam a Monarquia, sacrificam um cavalo todos os anos, para que mais nenhum cônsul precise morrer em serviço.

Que heresia! – Repreendeu o meu pai, corrigindo a teoria do filho. – O cavalo é consagrado a Marte e a sua morte representa o fim da atividade militar antes do inverno. É um ritual de purificação para os guerreiros que lutaram corajosamente por Roma.

Marco encolheu os ombros e não insistiu. O meu pai levou-nos para casa e resmungou entredentes, ao passar pela casa de mármore cor-de-rosa, onde a minha mãe conversava com Júlia que era madrasta do palerma do Mariozinho, filho do primeiro casamento do comandante e que invejava o primo.

César preferia entreter-se com o tio Mário. As suas duas irmãs brincavam com bonecas. Mas eu escutava, com ele, infinitas histórias de batalhas, de rabo pregado no chão e olhos esbugalhados de interesse. À nossa frente, o comandante esborrachava-se num banquinho de exército, a falar com as suas portentosas sobrancelhas, que subiam e desciam num rosto expressivo, a cada solavanco da narrativa.

Lembro-me de Mário. Tinha pernas cheias de varizes e voz de trovão. Quando o conheci, parecia um cogumelo, pois era largo da barriga para cima. Poucos cidadãos tinham a sua valentia! A idade, para ele, era um medalhão ao peito. Celebrava o aniversário como uma vitória contra o tempo, em que tinha de triunfar sempre! Há muito superava a expetativa média de vida de um romano e era incrível que tivesse sobrevivido a tantos combates. Era espadaúdo e enchia o átrio com a sua personalidade. Possuía nariz papudo e boca larga. O cabelo crescia nas orelhas e nas pontas da cabeça qual coroa em torno de crânio calvo. As suas rugas faziam com que tudo o que dissesse parecesse importante. Até porque não havia quem o convencesse a desligar-se da política e a baixar as armas. Com carater rude e áspero, era um homem simples, que retirava sofisticação a Júlia, à custa de nunca cumprir com o protocolo e orgulhava-se de não falar grego, apenas latim.

É ridículo aprender a língua de um povo escravo… Rutílio era dos poucos a contrariar a teimosia de Mário:

A cultura é um bem inestimável. Na filosofia, na literatura e no teatro devemos muito aos helénicos.

O tio-avô de César viera visitar o amigo, antes de partir para a província da Ásia enquanto legado de Cévola. A sua frase foi curta e falou enquanto pôde, pois o comandante cortou-lhe logo o pio:

Isso é um disparate! Quem manda define o caminho, os outros seguem e acabou! Mário não recorria à retórica, impunha-se.

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O meu tio é um líder nato. Eu quero ser como ele quando crescer! – Confessou-me César, antes de se virar para a raposa de Arpino e pedir pela continuação da história, entretanto interrompida. – E depois?

César tinha paciência para a conversa de caça dos mais velhos. Não se importava que os monteiros afirmassem ter matado trezentas perdizes quando, na verdade, mal tinham levado meia dúzia para casa. Rutílio achava piada à curiosidade do petiz. Mário ficava inchado de orgulho por ter público atento aos seus caprichos de valente.

E depois encontrei um ninho de águia com sete crias. – Explicou o mestre.

A águia é o animal sagrado de Júpiter. – Disse César, para mostrar que sabia.

Exato! Percebi que era um achado! Só podia querer dizer que eu, um dia, entraria para o Senado e seria cônsul sete vezes! O sobrinho assobiou. Depois fez contas de cabeça e disse:

Mas o tio só foi seis.

Falta uma, não é? – Avisou o comandante, remexendo as sobrancelhas.

Tu ainda acreditas nisso? – Espantou-se Rutílio, preocupado.

Estava escrito nos céus. Ninguém acreditou em mim quando o disse no Senado. Mas vamos a ver se não chego lá! – Desafiou, com firmeza.

Mário não ameaçava, nem mandava vir. Era homem para fazer o que queria! Quanto mais tentassem bloquear-lhe o caminho, mais nesse objetivo ele insistia. Acreditava num sétimo consulado porque o povo parecia disposto a votar nele. César confirmava-o nos passeios que fazia com o tio pela cidade. Dizia-me ficar fascinado com o entusiasmo da turba pelo comandante que não arrumava as cáligas. De facto, o homem era adorado pelos capite censi da mesma forma que era desprezado pelos nobres que lhe reconheciam poucas virtudes.

Já és velho, Mário. O povo só volta a atribuir-te comandos militares ou a votar em ti para um sétimo consulado, se Roma se vir cercada de inimigos! – Avisou Rutílio, consternado. Mário encolheu os ombros e falou com base na sua experiência:

Andamos sempre com as armas na mão, Rutílio. Tu vais para a Ásia combater, não vais? – Lembrou-lhe o mestre.

Sim, mas… – Balbuciou o amigo. Mário fez-lhe pouco caso e rematou a conversa, voltando-se para o sobrinho:

Bom, como eu estava a contar, encontrei um ninho…

No tablino, Mário impressionava porque ria com vontade ou falava a gritos. A sua voz mais branda ouvia-se a léguas! Tudo o que narrava era pessoal e sob todos os aspetos exagerado. Mas, mal começava a falar, eu não conseguia tirar os olhos dele.

Meu bem, os nossos convidados devem estar com fome. – Avisou Júlia, ao espreitar da porta. Ela era uma boa anfitriã.

Não te preocupes comigo. – Foi a cortesia de Rutílio, que era um cavalheiro.

A tia Júlia mandou fazer torradas? – Perguntou César.

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Com certeza. Barradas com manteiga das Gálias, como vocês gostam. – Avisou, mostrando um prato cheio de fatias de pão. Foi uma festa! Rutílio deixou-se rir com o nosso regozijo.

Que bom! – Exclamámos nós, batendo as palmas.

Mário olhou para as crianças e baixou as sobrancelhas farfalhudas, como quem reconhece ser boa altura para uma pausa. A esposa ajudou-o a ceder um bocadinho, aproximando as torradas do seu nariz pulposo.

Queres comer alguma coisa, meu bem?

Foi então que entraram as escravas com outros petiscos. Rutílio fartou-se de dar ao dente, pois estava cheio de fome e tinha boa barriga para alimentar! Enquanto os homens bebiam vinho, Júlia sentou-se ao lado deles, a conversar.

Sabias que os Júlios descendem de Vénus? – Perguntou-me César, enquanto os mais velhos se entretinham a falar de política e as irmãs corriam em círculos com as bonecas na mão.

Sim, já me disseste. – Respondi-lhe. Ouvira-lhe contar essa história uma centena de vezes! Ele insistiu comigo e perguntou:

Sou bonito, não sou?

César era lindo de morrer! Mas eu nada respondi. Encolhi os ombros e olhei noutra direção, para não lhe alimentar a vaidade. Ele ficou desiludido com a minha reação. Mas assim que ficámos sozinhos, agarrou-me e fez-me cócegas. Afastei-o e sacudi a roupa. Enrolei, em carrapito, os cabelos já soltos. Depois fiz-lhe uma careta e desatei a correr. Ele foi atrás de mim, pois não me largava de contente.

César era fisicamente parecido ao pai. Mas também Júlia era bonita. Um jardim florido de cara cheia, olhos grandes e lábios finos. Sempre foi carinhosa comigo e quase nunca me ralhou. Os seus rasgos de altivez herdou-os da mãe. O pai morrera relativamente novo, de ataque fulminante e ninguém se lembrava dele na cidade. Digamos que era um falido de nariz comprido espetado ao vento.

A mãe de Júlia chamava-se Márcia Rex. Era filha de um pretor e descendente do quarto rei de Roma, Anco Márcio. Tinha manias de grandeza associadas ao cognome (Rex=rei) e a alcunha de rainha. César levou com a brincadeira uma vida inteira, mas devia o legado à avó paterna.

Márcia Rex embirrava com Mário. Fazia-lhe confusão que a filha aturasse uma bisarma daquelas (como cheguei a ouvi-la murmurar entredentes, quando ela se julgava sozinha) sem lhe corrigir as maneiras, nem a ideologia radical.

A esse propósito, recordo episódio ocorrido na casa de mármore cor-de-rosa, em que a anfitriã mandou servir uma pequena refeição em honra das convidadas. Estavam presentes as crianças, a minha mãe, Aurélia, Rutília, Júlia e Márcia Rex.

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Quando chegámos, cumprimentei as matronas com esmero protocolar, pois a rainha era austera. Só depois fui ter com os meus amigos, sentados a um canto, onde começámos a brincar, sossegados e sem fazer barulho. Havia guloseimas sobre a mesa, mas ninguém ousava servir-se. As crianças bem podiam salivar que não tinham direito às broas de mel!

Sei que Aurélia e Júlia falavam de política. Elas não tinham acesso ao Senado, mas andavam atualizadas sobre leis, acordos e procedimentos. As duas pareciam dominar as matérias e discorriam longamente sobre vários desses temas, quando Márcia Rex começou a enfadar-se com tanta conversa!

A princípio, a rainha tolerou a partilha de ideias. Mas dava a entender que o assunto a aborrecia profundamente. Bebericava água tépida com mel, de sobrancelha arqueada e firme nas alturas, quando pigarreou. Como a filha insistia em não mudar de assunto, a sua montanha começou a gelar! Nuvens formaram-se sobre a sua cabeça. Até decidir fazer intervenção que sugou o sangue a Júlia e empalideceu Aurélia.

Para os homens a política é um desporto. Para as mulheres não devia ser um entretém. – Declarou, magnânima, com frieza de cortar as goelas a um boi! Aurélia virou-se para Rutília, que baixou os olhos. A Mater engoliu em seco.

Os nossos maridos são senadores e nós não podemos fazer-nos de estúpidas! – Observou Júlia, a única capaz de lhe resistir.

Quando o marido é um Mário até dá jeito. – Atirou Márcia Rex, em resposta. O que foi uma descortesia para com a filha.

A mãe devia ter mais respeito pelo meu esposo. – Insistiu Júlia, de pescoço erguido, sem vergar à pressão, que era palpável. A rainha fixou os olhos na filha e sem mexer uma ruga retorquiu:

Compete à mulher apurar as arestas ao marido, para que ele não faça fraca figura em público.

A Mater não sabia onde meter-se. Rutília agarrou-se à filha. Aurélia acompanhava com atenção o choque de titãs, mas não fez qualquer comentário à situação. Júlia, humilhada pela mãe e ferida no seu orgulho, ganhou fôlego para defender o seu território:

É por isso que o seu esposo só chegou a pretor e o meu já foi cônsul seis vezes!

Aurélia esbugalhou os olhos. A mãe dela amareleceu. A Mater parou de respirar por uns momentos. Márcia Rex aguentou firme e não vergou um dedo.

Eu descendo de reis e sou viúva. Se o meu falecido marido não esteve à minha altura, o problema não foi meu. – Declarou solenemente. Mas tal mãe tal filha e a discussão continuou:

O seu pai também só foi pretor. Márcia Rex respondeu sem hesitar:

Mas mandou construir o Aqua Marcia, um aqueduto que ficou para a posteridade! O meu irmão foi cônsul. No que me compete, dei à luz muitos filhos e não chorei em público os que morreram. – Declarou, pois culturalmente, era comportamento que causava respeito e reconsideração entre os estoicos. E acrescentou. – Os meus

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rapazes entraram para o Senado e seguem carreiras políticas, como lhes compete. A minha filha, que hoje me enfrenta, graças a mim e ao pai, pode vangloriar-se de ter casado com homem seis vezes cônsul. Só posso estar orgulhosa do meu legado. – E com esta tirada calou a filha.

A decisão de introduzir um saloio rico na família garantira a entrada dos filhos de Márcia Rex no Senado. Sem ajuda externa, o marido teria enfrentado a desonra de não conseguir dar um futuro aos seus descendentes. Com Mário, o falecido pretor cumpria com a sua obrigação e morria em paz.

Mas o meu pai acusava o marido de Márcia Rex de ter vendido os filhos por talentos de ouro. Esse tipo de transação era legal. Com base nas leis das XII Tábuas, o paterfamílias tinha direito de vida e de morte sobre a prole, e o Estado só intervinha no negócio, para o impedir, se o pai vendesse o mesmo filho mais do que três vezes. De qualquer forma, o processo era desvenerado pela elite.

A avó de César desprezava Mário. Mas engolira a afronta de se associar à raposa de Arpino, para contrariar a pobreza abjeta em que vivia e conseguir um dia residir no Palatino. Como o marido de Márcia Rex morreu cedo, Mário preenchera informalmente o seu lugar e assumira a responsabilidade de impulsionar as carreiras dos cunhados. Portanto, era injusto que a avó de César menosprezasse o genro, atendendo ao muito que ele fazia pelos filhos dela.

Sexto e Júlio, pelo menos, aceitavam a liderança do comandante. Nunca os ouvi refutá-la. Até lhes eram submissos. Belos, alourados e de pele caiada, eram corajosos em batalha. Sexto possuía estatura média-alta, era do tipo responsável, calmo e pragmático. Júlio era alto mas imprevisível e tinha feitio complicadíssimo, a quem só Mário e Márcia Rex colocavam freio.

Na velhice, Mário ocupava-se do sobrinho trinca espinhas que ambicionava ser líder de exército. Pelo que César passava muito tempo na casa de mármore cor-de-rosa. Eu fazia-lhe companhia quando a minha mãe me levava, e por lá ficava, às vezes sem supervisão da Ana, pois ela nem sempre seguia connosco. Júlia tinha muitos escravos que podiam controlar-nos. Porém não o faziam, porque os meus amigos passavam-lhes a perna. A dona da casa estava encarregada de olhar por nós, mas dava-nos liberdade para brincarmos enquanto ela se ocupava dos seus assuntos.

Uma das nossas brincadeiras favoritas era o esconde. Um de nós tapava os olhos e os outros ocultavam-se onde podiam. Certo dia, enquanto Juliana contava até dez, César levou-me para trás do canteiro das flores do peristilo. Começámos a rir baixinho. Então, ele colou os seus lábios aos meus. Foi rápido. Pestanejei. Fez-se silêncio entre os dois.

Sigilo absoluto. Prometes? – Pediu-me.

Não posso contar a ninguém? Nem mesmo à Ana? – Perguntei.

Não. – Ele insistia no meu silêncio.

Porquê, estamos a fazer algo de errado? – Estranhei. Ele respondeu com outra questão, pois assim fora ensinado pelo tio Cota:

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Diz-me tu. Gostaste do beijo que te dei?

Foi molhado. – Declarei, depois de refletir sobre o assunto.

César considerou a resposta original e sorriu-me.

Na casa de mármore cor-de-rosa havia frescos ousados, ao contrário do que acontecia na casa dos meus pais. Julinha achava piada a uma fonte em particular e, um dia, fixou o seu olhar nela. Juliana pediu-lhe para fechar os olhos, mas a irmã negou-se a fazê-lo.

O que tem de especial? – Questionei inocentemente.

É tão grande! – Ciciou Julinha.

O que é que é grande? – Perguntei, pois a fonte era uma pequena estátua de bronze. Julinha apontou para a figura masculina que parecia mictar água e disse:

É Priapo.

E então? – Indaguei. César aproximou-se de mim e murmurou-me ao ouvido, com voz marota:

É o deus da fertilidade. Eu sou como ele, queres ver? Julinha, que ouviu tudo, enrubesceu e empurrou o irmão para longe de mim:

Vai-te embora e deixa Emília em paz.

É isso mesmo. Vai ter com o tio Mário. – Enxotou-o Juliana.

Olhei para as irmãs de César e não fiz comentários. Ele não insistiu e afastou-se.

Quinze dias depois, tornei a encontrar os meus amigos na casa de mármore cor-de-rosa. Enquanto César escutava mais uma história de Mário, Julinha e Juliana foram comigo até junto de uma janela, aberta para a rua, de onde começaram a voar pratos de barro seco ao sol. Juliana tinha-os roubado da cozinha e atirava-os ao chão, com a irmã e riam-se muito por causa disso.

Foi então que Júlia apareceu. Muito surpreendida com o ocorrido, ela ameaçou levar-nos à presença do marido. A sobrinha mais velha, temendo pelo castigo, resolveu acusar-me, afirmando-me autora do infração e que a ideia fora minha, quando eu nem sequer tocara nos objetos! Ainda neguei ter sido eu, mas a suspeita produziu efeitos e a dona da casa encaminhou-me até Mário, que admitiu punir-me fortemente, se eu não me retratasse.

Peço desculpa. – Pedi, com o corpo a tremer. Mário era intimidante!

O comandante não estava minimamente preocupado com a perda dos pratos, os quais ele podia substituir sem grande despesa. O importante era o princípio inerente ao processo: num acampamento tem de haver disciplina e, da sua perspetiva, eu agira como um legionário insurreto, que tinha de ser posto na ordem. Portanto, eu corria o risco de ser açoitada.

Juliana e Julinha tinham ficado para trás, a brincar no peristilo, como se fossem inocentes. Nem me tinham vindo ajudar. Mário e Júlia suspeitavam de mim e eram eles quem detinham o poder naquela casa. A mim competia-me defender das acusações, mas estava demasiado aflita para falar! Até que César me perguntou calmamente, numa voz ainda pueril mas firme:

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Partiste os pratos, Emília?

Não.

Foi ideia tua?

Não.

Então, de quem foi? – Indagou, embora suspeitasse da resposta.

Os amigos não se denunciam. – Respondi, pois chibar alguém era considerado um ato de fraqueza moral.

Mário pareceu ficar surpreendido com a minha resposta e remexeu as sobrancelhas no seu rosto expressivo quando Júlia, a sua mulher, pousou a mão no seu ombro. César trocou olhares com a tia e assumiu o papel de advogado de defesa da vítima. Ainda era um garoto, mas o comandante ficou agradavelmente surpreendido com a sua atitude e eloquência. Também me absolveu. Júlia deu um beijinho na testa de César, passou a mão pelo meu queixo com um sorriso e mandou vir torradas com manteiga para todos!

Eu só soube, dias mais tarde, que as sobrinhas de Mário tinham levado uma bofetada cada uma, pela mentira que haviam pregado. Mas elas ficaram ressentidas.

Isto porque, quando Aurélia veio visitar a minha mãe ao Palatino, trouxe apenas as duas filhas. A princípio, tudo corria bem. Até que Julinha ficou com a cara cheia de terra, de tanto mexer nos canteiros das flores. Foi então que a irmã mais velha me convenceu que Aurélia espancaria a filha mais nova por ela se ter sujado.

Aquilo preocupou-me! Eu não gostava de levar descomposturas, nem estava habituada a receber palmadas. A Ana evitava fazer queixa de mim, pois convencia-se que eu aprendia mais com carinho do que à pancada; e eu agradecia aos deuses por não ter Júlio e Aurélia como progenitores, que emendavam os seus à bruta! Mas a admoestação violenta era considerada normal para os padrões romanos e amplamente praticada pelas famílias nobres. Para salvar a minha amiga da mãe, levei-a para junto de uma pia, junto à qual havia um caldeiro cheio de água. Reguei-lhe as mãos. Untei-lhe a cara com óleos perfumados. Até que Julinha começou a reclamar e a chorar a altos berros! O que alertou a irmã e depois o pessoal doméstico. Ouvi gritar do outro lado da porta, que entretanto se tinha fechado.

Abismada com a agitação, afastei-me da pia e sentei-me num banquinho. Julinha parecia agoniada sem que eu entendesse porquê. Sentei-me quietinha e calada a um canto, com as pernas muito juntas. Até que a porta foi deitada abaixo a pontapé.

Amílcar o cartaginês, que era o mordomo da casa de meu pai, irrompeu da nuvem de pó. Forte e musculado, levou-nos as duas ao colo para junto da Ana. Esta nem queria acreditar no sucedido e parecia mortificada. Eu não queria desiludi-la e fiquei triste. Enrolei os lábios para dentro e tentei perceber porque estava ela tão aflita. Amílcar, que achava piada às minhas traquinices, afastou-se a rir. As escravas ocupavam-se das irmãs de César. Mas a Ana sentou-se sobre as pernas para me olhar de frente e perguntou:

Menina Emília, porque fechou a porta?

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Eu deixei-a aberta. – Afirmei, pois era verdade. – Só levei a Julinha até à pia para lhe lavar a cara, para que a mãe não a castigasse se a visse toda suja!

Mas assim molhou-a toda… – Reclamou a Ana.

Porque deitaram a porta a baixo? Não a conseguiam abrir? – Estranhei.

Não, estava trancada por dentro.

Como? Eu não coloquei a tranca… só se foi a Julinha, quando eu fui buscar o caldeiro. – Admiti, enquanto refletia.

A Juliana mandou chamar a mãe. – Avisou-me a Ana. – Ela estava com medo que a Emília fizesse mal à irmã.

Porquê? – Admirei-me, espreitando as irmãs de César, agora mais calmas.

Porque Julinha estava a chorar.

Mas eu estava só a lavar-lhe a cara, Ana. Ela respirou fundo e atalhou:

Calma, menina. Eu não incomodei a sua mãezinha nem Aurélia, que continuam a conversar animadamente lá dentro. Vamos tentar remediar a situação sem grandes agitações. Enfim, o que interessa é que está tudo bem.

A Ana penteou-me os cabelos com os dedos e foi ter com Julinha, a quem secou a roupa junto ao lume. As filhas de Aurélia insistiam em chamar pela mãe. Mas a minha ama convenceu-as que seria imprudente importuná-la, a meio de uma conversa importante e elas acabaram por se ir embora, ao final da tarde, sem fazer mais alarido sobre o assunto.

A Ana nunca reclamava de mim, porque admitia que as crianças, até inadvertidamente, podiam contar a verdade aos pais, a qualquer momento; e eu tinha-a apanhado em flagrante delito com Amílcar. Como eles eram escravos domésticos, não podiam casar-se, mas encontravam-se às escondidas e eu, certo dia, dei com os pés da Ana encavalitados nas sandálias do cartaginês. Quando foram puxados para cima, eu espreitei-lhes o voo por debaixo de uma cortina, junto à cozinha. Só depois percebi que a minha ama estava enrolada ao mordomo, um homem muito moreno e bem constituído, de ombros largos e pernas musculadas.

Tratei de observar o que se passava, com a mesma curiosidade com que inspecionava o voo de uma borboleta ou os saltos de uma rã. Reparei que os beijos do casal eram sôfregos de língua, com boca cheia de cuspo; e que Amílcar e a Ana estavam ofegantes. Mas ela viu-me e assustou-se. Após um momento de atrapalhação, os dois abriam a cortina, enquanto eu me endireitava e me agarrava ao cabelo, com olhos pestanudos:

Ups? Eu não estava constrangida, mas eles estavam e muito!

O que é que a menina está aqui a fazer? – Perguntou Amílcar de mãos grandes.

Andava à procura da Ana. – Respondi de olhos pestanudos, dizendo ao que vinha. – Eu não encontro a caixinha dos meus totós. Eles entreolharam-se. O cartaginês deixou-se rir. A Ana pediu-me:

Não vai contar nada do que viu aos seus paizinhos, nem irmãos, a ninguém!

Está bem. – Aquiesci calmamente.

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Eles admiraram-se por eu ter cedido com facilidade.

Podemos confiar em si? – Insistiu em saber a Ana.

Claro que sim. – Prometi. Eles ainda hesitaram, mas Amílcar tomou a minha palavra como certa.

Está bem. Vou buscar a sua caixinha. – Admitiu a Ana, murmurando para o mordomo. – Depois falamos…

Amílcar regressou ao seu posto de trabalho e a Ana, pouco depois, começou a entrançar-me o cabelo. Sentada a seu lado, entretive-me a balançar as pernas. Quando o penteado se deu por concluído, fui atrás da Ana até à cozinha, onde ela começou a fazer um caldo quente de legumes, na cavaqueira com as outras escravas. O pessoal doméstico tratava-me bem, vivia-se em sossego e eu sentia-me em paz na casa paterna.

Dois ou três meses depois, a minha mãe levou-me a merendar junto ao Tibre. Ela estava farta de estar encafuada em casa e aproveitara o dia ameno para dar um passeio. Sei que a Ana tomava conta de mim quando a Mater avistou Aurélia, que caminhava por ali com os filhos. As matronas saudaram-se pela feliz coincidência e sentaram-se lado a lado. Começaram a coscuvilhar sobre vida alheia e nós desatámos a correr que nem doidos! A Ana pediu para não nos aproximarmos do rio e convenceu-se que acataríamos o seu conselho. Ela até aproveitou para se ausentar por um momento.

Mas César cansou-se de correr e convenceu as irmãs a segui-lo até à borda de água. Eu hesitei, pois não costumava desobedecer à Ana. Mas as Júlias troçaram de mim, por ficar para trás e eu acabei por ir com delas.

Os irmãos queriam apanhar girinos. Insistiram comigo, para fazer o mesmo. Havia por ali muitos, junto às margens do rio. Mas os maiores, com patinhas, eram difíceis de agarrar. Para os procurar, coloquei-me em cima de uma rocha, de rabo para o ar e braço esticado, enquanto os meus amigos enfiavam os tornozelos dentro de água.

Estou toda molhada com esta porcaria! – Reclamava Juliana.

Se não queres, vai-te embora para o pé da mãe. – Lançou-lhe o irmão.

Juliana preferiu não interromper as matronas, em emana cavaqueira. Suspirou e convenceu-se a alinhar na brincadeira.

Apanhei um! – Avisou Julinha, pouco depois.

Não tem patas. Não conta! – Exclamou o irmão.

Porquê? – Revoltou-se a irmã mais nova.

Os pequenos agarram-se à mão cheia. Vê-se mesmo que não percebes nada disto! – Acusou César.

Os dois irmãos entreolharam-se, começaram a empurrar-se e a trocar insultos de crianças. Juliana tentou separar os desaguisados mas, no meio da confusão, chocou comigo. Perdi o equilíbrio e fiz chapa na água. Senti dor na colisão e o rio varreu-me a cabeça com o seu manto.

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Recordo-me dentro de água, de pensamento vazio. Não sei se respirava. Tudo me parecia tranquilo. Eu não teria regressado à superfície se a Ana não me tivesse puxado para cima, pelos cabelos.

Menina Emília! Ah, meu Deus, que susto! – Clamou, invocando a sua religião.

Não sei de onde ela veio, mas apareceu no momento certo. A ama tinha-se apercebido da minha queda e correra para mim de coração aos pulos, conseguindo resgatar-me da água atempadamente. Ela estava a meu lado quando mais precisei dela! Agarrou-se a mim e tremia mais do que eu, de tão preocupada. Enrolou-me no seu manto quente e começou a limpar-me freneticamente.

Mas o que é que se passa aqui? – Perguntou Aurélia.

As duas matronas tinham-se aproximado, atraídas pelo ruído. Depois de confirmarem que estávamos bem, tentaram apurar responsabilidades. De quem era a culpa? A Mater tentou incriminar a Ana pelo sucedido. Fui imediatamente em seu socorro, repetindo dez vezes que, se não fosse a ama, eu teria morrido. A minha mãe ainda hesitou no veredito, mas aceitou a explicação e deu o caso por encerrado.

Aurélia, pelo contrário, fazia contas aos filhos. Desconfiava que tivessem contribuído para a desgraça e encharcou-os com perguntas. Eles acusaram-se mutuamente, apontando o dedo e recriminando da situação.

Fixei-me nos olhos de águia de Subura, com a sensação desconfortável de ter água nos ouvidos. Resolvi acudir aos meus amigos, até porque eles estavam a borrar-se de medo de levar uma surra. Aurélia não ficou convencida com as minhas explicações e manteve-se qual ave de rapina sobre crias enrufadas e muito quietas. Felizmente, a Mater conseguiu que a amiga esquecesse o episódio. Por fim, respirei fundo e espirrei.

A Ana reuniu o cesto da merenda e, quando terminou a tarefa, beijou-me a testa e pegou-me pela mão. Os filhos de Aurélia estavam reunidos, à força, junto à mãe. Foi então que tomei atenção ao tema que entretinha as matronas: os escândalos da sobrinha de Rutílio.

Numa sociedade conservadora como a nossa, era raro uma nobre decidir o seu destino, com medo de ser marginalizada. Mulheres sem berço ousavam desafiar os costumes, por não terem dinheiro nem estatuto a perder. Mas uma matriarca da elite raramente o fazia.

Drusa criou esta confusão e agora tem um drama familiar à perna. Ela está grávida daquele pinto calçudo com sardas! – Opinou a Mater.

Se é que o filho anterior era mesmo do marido…

Aurélia conseguiu escandalizar a minha mãe. Mas os rumores tinham barbas! A sobrinha de Rutílio estava grávida do seu quarto filho. Servílio legitimara duas meninas e um menino, mas a paternidade deste último gerava controvérsia.

O amante é esperto. Conquistou mulher rica e agora quer, através dela, conquistar estatuto social. – Queixou-se a minha mãe, julgando tratar-se de um golpe do baú.

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Saloniano é um questor que, em breve, se candidatará a pretor. – Lembrou Aurélia, admitindo que o homem não era um rega-botas.

E então? – Perguntou-lhe a amiga. – Drusa substituiu patrício que já foi pretor, por plebeu descendente de escravos! Essa é que é a verdade.

O que estava em causa era mais do que uma coscuvilhice. Era reflexo da antiga luta de poderes entre patrícios e plebeus.

Saloniano descende de Pórcio o censor. – Contra-argumentou a mãe de César. A referência não deteve os comentários críticos da amiga:

Por isso mesmo! É um optimate avesso à veia popular do irmão dela. Druso não conseguirá dar-se bem com o novo cunhado, é impossível! Aurélia, que era letrada, preferiu descrever o amante de Drusa com eloquência:

Quem haveria de dizer? A minha prima apaixonou-se pelo neto… desse falso ruivo de olhos persas, que enfastiava e mordia todo o mundo! Plutão não quer que ele entre nos seus infernos, ainda que morra, com medo que o repreenda.

Saloniano é um mesquinho, tal como Pórcio era uma traça! – Criticou a Mater, considerando o contexto embaraçoso. – Ela não devia ter deixado o marido. Agora é uma adúltera e mergulhou no atasqueiro!

Não sei. Ela parece gostar muito dele. – Avisou Aurélia.

Porquê? – Estranhou a minha mãe. – O que lhe terá dado para se meter com aquele pernas-longas?

Drusa disse-me que Saloniano é carinhoso, ao passo que o marido… era uma tábua. – Informou Aurélia.

Não percebi. O que quer isso dizer? – Estranhou a minha mãe.

Mau na cama. – Rematou Aurélia, apesar de tudo, com contenção. A minha mãe ficou indignada!

Não me contes mais pormenores! – Exigiu, antes de comentar a preceito. – Drusa teve o que queria. Agora responsabiliza-se e acarreta com o prejuízo! Aurélia tentou desculpar a conduta de Drusa:

A minha prima é uma mulher que tem os seus próprios desejos e vontades…

Ela devia querer ser boa esposa! – Declarou a minha mãe, uma tradicionalista.

Nem todas as mulheres têm um bom marido, como tu. Tenta compreender. Drusa tem direito ao divórcio, a ser feliz.

Mas Aurélia… e os bons costumes? – Hesitou a minha mãe.

A questão não é essa! O paterfamílias, quando escolhe marido para as filhas, fá-lo por conveniência. Mas elas é que têm de deitar-se com um desconhecido, aturá-lo uma vida inteira e dar-lhe filhos. Isso não é fácil! – Argumentou a mãe de César, com fervor. Conviver com Júlio devia ser uma tourada!

O adultério é imoral. – Insistiu a minha mãe, fiel à sua cartilha. Aurélia pensou antes de falar:

Concordo que Drusa não devia ter traído o marido. Bastava divorciar-se de forma limpa, sem lavar roupa suja em público, para evitar arrastar o bom nome da família na lama.

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Druso, coitado, levou por tabela e ela podia ter pensado mais no irmão, na sua carreira política, que foi afetada por causa disto tudo…

Sim, tens razão.

Com certeza que tenho. Foi tudo uma vergonha! – Concluiu a Mater, contente por ter vencido (pensava ela) o debate de ideias. Mas a mãe de César não deu a conversa por terminada:

Desta vez, se o bebé de Drusa nascer rapaz, será Catão. – Advertiu, pois tal nome era famoso pelas implicações que acarretava. – Os homens daquela família são falsos moralistas! Saloniano armava-se em conservador, mas depois seduziu mulher casada, ou seja, deu mostras que enchia a boca de regras… a aplicar aos outros.

É um hipócrita como o falecido avô. – Recordou a minha mãe.

Sim, os púdicos são os piores! – Argumentou Aurélia. – Pórcio dizia-se austero e taxou tudo quanto podia durante décadas… desde o vestuário, às joias, às liteiras, aos luxos. Até expulsou do Senado um marido por este ter beijado a mulher na boca, em público. Ele era um censor perigoso. Não admira que tenha descambado num velho tarado que, aos oitenta anos, engravidou uma rapariga!

O pior não foi isso. Pórcio casou com a liberta e legitimou-lhe o filho.

Ele queria salvar a face… justificar o facto de a jovem lhe entrar para os lençóis como se, no fim da vida, o censor fosse flor que se cheirasse!

Pórcio reconheceu a criança! Ao fazê-lo, roubou metade da herança ao filho que tinha da primeira esposa.

Eu conheço a história. O primogénito perguntou ao pai se fizera algo de errado, para merecer ser castigado. Ao que Pórcio respondeu que não. Pelo contrário, ele almejava dar mais cidadãos ilustres a Roma. A minha mãe fez uma careta:

Parece conversa de advogado, que talha a verdade a seu favor! – Exclamou, antes de acrescentar. – Seja como for, devem vingar os valores de uma sociedade que defenda a monogamia e, assim, as mulheres romanas e os seus filhos legítimos. A mãe de César fez questão de explicar o seu ponto de vista:

Mas não podemos viver sob a égide da censura, amiga! O direito à liberdade foi adquirido com muito esforço e ainda há caminho a percorrer.

Eu sei. Sou a favor da liberdade, mas não da libertinagem…

Não podemos voltar atrás no tempo, nem admitir abusos! – Argumentou Aurélia.

Tudo na vida tem peso e medida. – Admitiu a minha mãe, sabiamente. Mas a mãe de Aurélia temia pelo futuro:

Pois eu cá rogo às Parcas para não trazerem ao mundo um novo Pórcio! A minha mãe negligenciou a ameaça e relativizou o assunto:

Amiga, não dês tanta importância ao rebento. O pinto ainda nem saiu da casca para ser galo de tão grande crista!

Aurélia suspirou e olhou para os céus, onde não sei se identificou sinal divino. Virou-se para o filho, que caminhava a seu lado e colocou uma mão sobre o seu ombro.

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Se nascer um novo censor, tu serás um anti-Catão.

César sentiu o peso da responsabilidade, mas não se deixou intimidar. Pelo contrário, endireitou o porte e retribuiu olhar firme à pedagoga, como quem aceita o desafio.

Alguns dias mais tarde, casou a minha irmã mais velha. No dia da boda, a Mater não conseguia estar parada e as escravas gravitavam à sua volta, para satisfazer as suas muitas exigências. Prima estava muito nervosa. Secunda cochichava sobre temas relacionados com o casamento. Mas as minhas irmãs não queriam partilhar comigo as suas conversas. Por isso, quando a Ana se sentou num banquinho a escovar-me o cabelo com pente de madeira, perguntei-lhe:

O que é uma noite de núpcias? Ela pensou antes de responder.

É a primeira noite em que os noivos dormem juntos depois de casados.

Juntos, à noite? – Estranhei. – Os meus pais têm, cada qual, o seu cubículo. A Ana tentou explicar-me a cultura associada ao tema:

Em Roma, o cidadão comum partilha o leito durante o casamento mas, entre a elite, marido e mulher optam por espaços separados. É mais cómodo.

Porquê?

Por questões práticas… por exemplo, se o conjugue ressona. – Esclareceu. Deixei-me rir. A Ana retomou o assunto principal. – Enfim, o que interessa é que a lua-de-mel é um momento especial. Não se preocupe, um dia a menina casa-se, vai descobrir o que é e ser muito feliz. – Foi a ilusão que me vendeu. Acreditei nela e sorri-lhe, recebendo em troca um beijinho na testa.

O casamento de Prima começou pouco depois. A receção aos convidados foi organizada na nossa casa do Palatino. Aninhei-me a um canto e mantive-me sossegada a espreitar as pessoas, que entretanto chegavam à cerimónia, com olhos cheios de curiosidade.

As cores e as pessoas impressionavam-me. Também me intimidavam, pois era tímida. Mas até estava entretida quando apareceu a família de Subura. Enquanto Aurélia e Júlio despertavam a atenção dos senadores, Juliana e Julinha foram caçadas pela minha irmã Secunda, que as atualizou sobre as novidades. César foi o único que deu por mim e se aproximou, de mansinho, com um sorriso nos lábios.

Olá Emília. Porque estás aqui sozinha?

Estou a ver os convidados. – Respondi simplesmente.

César sentou-se a meu lado e ficámos a observar a festa. Foi ele quem anunciou a chegada do tio Mário, da mulher e de Mariozinho. Eu raramente via o filho do primeiro casamento do comandante. Assemelhava-se ao pai no semblante, sendo rapaz para lutar dias inteiros no Campo de Marte, de espada na mão. Mário vestira o traje militar bordado a ouro, pelo que sobressaía entre os homens de toga. Júlia vinha gloriosa com roupas caríssimas! Os três rapidamente foram rodeados de pessoas interessadas em falar com eles.

Aquele é Sila. – Avisou-me César.

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O homem em causa arrepiou-me. Inspirava pouca confiança, mas o seu sorriso falso enganava muita gente, pois era regularmente convidado para as festas. Em especial, desde que fora legado de Mário na guerra da Numídia, contra o rei Jugurta.

Sila vinha acompanhado pela segunda mulher. Élia era uma plebeia submissa e carinhosa, cujo dote, contribuíra favoravelmente para a carreira fulgurante do marido. Embora patrício, ele nascera pobre.

A minha mãe saudou cordialmente os recém-chegados. Apuleia cumprimentou Élia com distanciamento. A tia Júlia tentou ser diplomática. Aurélia parecia ser a mais estimada pelo casal, em especial por Sila.

Eu centrei as minhas atenções naquele homem de longos caninos, teatral nos modos e nos gestos, de cabelo rubro pelo pescoço. Possuía olhos de fauno. Era considerado atraente (nunca percebi porquê!) e tinha fama de sortudo – um Félix. O próprio contava a história da vidente que lhe garantira a proteção da deusa Fortuna, quando ele ainda era criança.

A história é verdadeira? – Perguntei a César.

Não sei. Ele inventa a personagem como quem talha o mármore…

César contou-me que o pai de Sila era um bêbado que casara duas vezes, a última das quais com uma viúva da classe equestre. Em testamento, o paterfamílias só lhe deixou dívidas. Mas a madrasta legou-lhe apartamento numa insula, que ele arrendava para viver.

Não era assim tão pobre, pelos vistos…

Viver da renda de um cubículo não é condição de que se orgulhe um Cornélio. – Comentou César, com altivez. – Nem devia ser suficiente para pagar-lhe o estilo de vida. Dizem que ele tinha outras fontes de rendimento…

Sila terá vivido às custas de uma meretriz com longa carteira de clientes ricos, que o nomeou como único beneficiário do seu testamento. Ao que parece, ela morreu, de repente, por razões não confirmadas.

Sila casou pela primeira vez com uma tal de llia, talvez da gens Allia, que também faleceu em circunstâncias misteriosas. Pouco se sabe dela, apenas que lhe deu dois filhos, uma menina e um menino.

Depois ele contraiu segundas núpcias com Élia. – Concluiu César. Mas eu continuava curiosa e perguntei:

Sila convenceu o pai da rapariga a aceitá-lo como genro, como, se tinha má-fama? César admitiu algumas hipóteses, pois tinham opinião para tudo:

Não sei, mas… o paterfamílias dela era plebeu. O noivo era patrício… já tinha uns cobres e bons contactos entre a classe equestre e… deixou correr o rumor que a sua primeira mulher era parente da tia Júlia, mas não é verdade.

Aos vinte anos, Sila ainda era pobre e mal-afamado e os Júlios vendiam os filhos a quem os regava com ouro, não eram obras de caridade para sangue caído em desgraça – para isso já bastavam eles! Portanto, o rumor não convencia ninguém que não fosse copista.

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Porque haveria ele de fazer isso? – Estranhei, sem perceber o raciocínio.

Para que as pessoas pensassem que os filhos dele tinham mãe patrícia.

Mas que diferença faz? Filho de pai patrício é patrício. Nunca mais me esqueço da forma como César me olhou!

Às vezes não chega. Eu sou filho de patrício, mas dizem-me que a minha mãe é uma matrona igual a todas as outras.

O que é que tu pensas? – Quis eu saber, sem vergar ao peso do seu olhar.

Que ela é uma mulher excecional! – Replicou, sem hesitar. Aprovei o seu encómio, que era sincero.

Fazes bem em defender Aurélia. – Fiz questão e frisar. – Sempre me avisaram… quando homem diz mal da mãe, geralmente não presta. César sentou-se mais perto de mim e agradeceu-me.

Obrigado, Emília. – E sorriu-me com benevolência. – Também é bom sinal quando uma filha fala bem do pai.

Gosto muito do meu pater, já te disse isso várias vezes. – Assegurei.

Eu sei. Por isso mesmo.

Está bem. Mas conta-me o resto. – Pedi-lhe.

Sila entrou para o Senado por volta dos trinta anos e mudou de estilo de vida. Passou de jovem devasso a patrício corajoso. Deixou de frequentar assiduamente teatros e tabernas. Afastou-se de atores e bufões, considerados dissolutos pela elite romana, e entregou-se a uma vida de disciplina militar. Se não o tivesse feito, Mário jamais lhe teria aberto as portas do seu exército. O tio de César era um comandante austero.

O marido de Élia obtinha vitórias como poucos e o Mário queria ganhar as guerras que combatia. Portanto, o jovem chegou rapidamente à categoria de legado e foi várias vezes recompensado pelos seus serviços.

Mas a víbora mordeu a quem lhe estendeu a mão! – Criticou César.

Sila virou-se contra Mário? – Perguntei-lhe, pois nada sabia sobre o assunto.

Há meses que conspira contra ele.

Como é que tu sabes? – Duvidei, admitindo que inventasse a preceito. – Olha para ele. É estimado pelos senadores. Todos o rodeiam…

Talvez mas eu tenho um mau pressentimento sobre tudo isto! – Queixou-se o sobrinho de Mário, que era intuitivo.

Sila despertava uma onda de coscuvilhices por onde passava. Com grandes olhos azuis, em pele branca e cabelos rubros, dava baile de galanteios aos vaidosos e eles eram muitos, em qualquer festa!

Apuleia ainda falou com Élia, mas depois deixou-a entregue a Júlia e foi ter com Aurélia que, com a minha mãe, discutiam a lex Licínia Múcia – uma norma polémica e contrária aos interesses dos italianos que aspiravam à cidadania romana. O que irritava a minha cunhada, que defendia a extensão de tais direitos às pessoas que os reclamavam. César parecia muito interessado nesse debate de ideias, mas eu fui-me afastado do grupo.

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Dentro de casa estava abafado, de fumos e de cheiros e eu encavalitei-me num banco de madeira com os braços no parapeito sobre a cidade, para aproveitar a aragem fresca que me sacudia os cabelos. César veio ter comigo e apontou com o dedo em direção à gruta dos fundadores:

Ali fica o Lupercal.

Eu sei.

Conheces a história? – Indagou, de olhos presos nos meus.

Claro que sim. Todos os romanos ouviram falar nos gémeos da loba! – Afirmei.

A história do primeiro rei de Roma contava-se às crianças antes de dormir, para

estas perderem o sono e rebolarem em pesadelos toda a noite! Ao que parece, Numitor, líder de Alba Longa, tinha uma filha muito bonita chamada Reia Sílvia. Quando o irmão do monarca usurpou o poder, obrigou a sobrinha a consagrar-se a Vesta, para ela não aceitar marido nem ter filhos que reivindicassem o trono. Mas a virgem foi seduzida por Marte, deus da guerra e deu à luz um par de gémeos. O tio soube do parto, prendeu a sobrinha num calabouço e mandou atirar os bebés ao Tibre. O cesto em que eles dormiam não se afundou no rio e encalhou numa zona baixa, entre os montes Palatino e Capitólio, que os romanos conheciam como Cermalus. Rómulo e Remo foram encontrados por uma loba que os amamentou numa gruta (Lupercal). Os irmãos cresceram e tornaram-se pastores. Quando Remo foi capturado por guardas do rei, Rómulo foi em seu socorro e matou o tio. Os gémeos recolocaram o avô no trono e partiram para fundar uma nova cidade. Rómulo firmou estacas no Palatino. Remo no Aventino. Até que os dois brigaram. Um deles pereceu e o outro tornou-se rei de Roma.

Julgava que os lobos comiam pessoas. – Comentei.

Esta loba era muito especial. – Avisou César. Sorri-lhe de olhos pestanudos.

Devia ser… o meu pai diz que, em Roma, somos todos lobos (de Saturno) ou águias (de Júpiter).

Eh lá! O tio Mário é uma raposa de Arpino. Deixámo-nos rir. Até que ele fixou os seus olhos em mim, com rosto sério.

O que foi? – Perguntei-lhe. O que ele confessou em seguida surpreendeu-me:

Eu gosto de ti, sabias? Hesitei na resposta. Que queria ele que eu dissesse?

Ah sim? Baixei os olhos e encolhi os ombros, sem saber se ele gozava comigo.

Quando formos crescidos, casamos. Queres? O seu corpo parecia ansioso, mas a sua voz era firme.

Tu queres casar comigo? – Quis eu confirmar.

Sim, quero. Diz-me: Ubi tu Gaius, ibi ego Gaia.

Nós não estamos ainda no dia do matrimónio. – Adverti, sem perceber a pressa.

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Garante-me que vais ser Caia onde eu serei Caio. – Rogou, pegando nas minhas mãos. As suas estavam trémulas e frias, mas em contacto com as minhas ficaram quentes e seguras.

Não sei se posso. – Hesitei. Naquela idade, o matrimónio era uma abstração. Mas até eu sabia que a família de ambos devia estar presente, como testemunha.

Vem comigo, vamos ouvir os noivos. – Pediu-me ele.

Regressámos à festa e aguardámos pela cerimónia religiosa. Os convidados rodeavam agora os noivos que, muito sérios e compenetrados, se comprometiam a uma vida em comum, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte os separasse.

Entrego-te a mão da minha filha em casamento. – Disse o meu pai, a dada altura.

Prometo ser um bom marido para a sua filha. – Garantiu o noivo, um ex-cônsul e, portanto, quase trinta anos mais velho do que a minha irmã. A liturgia era uma declaração pública dos votos de fidelidade.

Para onde tu fores, eu também irei. – Prometeu a minha irmã ao seu marido.

O espetáculo comoveu-me. Os noivos pareciam contentes e os convidados também. Duas pessoas selavam os seus destinos com a bênção da família, dos amigos e dos deuses, num culto que desembocava numa festa. Todos se abraçavam e apoiavam o novo casal. Era bonito de ver. Por isso, também desejei uma cerimónia daquelas para mim. César piscou-me o olho.

Então, já queres casar comigo? – Murmurou-me ao ouvido. Aquiesci e disse-lhe que sim.

Onde fores Caio, eu serei Caia. – Prometi-lhe e ele beijou-me a testa.

A minha irmã Prima estava casada. Despediu-se uns dias depois da família, a caminho da Sardenha, uma ilha onde o esposo tinha propriedades cheias de escravos. Não chorou nos ombros da mãe, como fingira lágrimas durante a boda, para cumprir com a tradição. Manteve postura rigidamente patrícia. Acenou ao afastar-se, na companhia do marido. Marco e o meu pai fizeram-lhe companhia até Óstia, para uma derradeira despedida com malas e bagagens; e de cujo porto navegou para o seu destino. Nunca mais a vi.

A Mater ficou desolada e enfiou-se no cubículo onde dormia, recusando-se a sair, para ninguém assistir ao seu pranto. Estava cheia de saudades da filha e lidava mal com a separação. Eu primeiro carpi nos ombros da Ana mas, a minha mãe abriu-me os braços pouco depois e, na companhia da minha irmã Secunda, reconfortámo-nos umas às outras, partilhando memórias de família.

Um mês depois recebemos uma mensagem escrita de Prima. A minha irmã confirmava que estava bem, e que chegara sã e salva à Sardenha. Eram boas notícias! A Mater arrebitou logo! Levantou-se, arranjou o cabelo num penteado requintado e saiu de casa, pois já tinha novidades para partilhar com as amigas!

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Tanto que nos reunimos junto ao Tibre, à sombra das copas das árvores que nos protegiam do calor. A brisa era fresca e o Pater parecia satisfeito, a conversar com o filho sobre a campanha eleitoral. Sexto, o tio de César, candidatava-se a pretor nesse ano.

Apuleia estava grávida. A Mater não queria que ela abortasse outra vez e controlava-lhe os movimentos. Evitava que ela se mexesse. O que estava a desorientar a nora, que só não gritava e puxava pelos cabelos porque não podia!

Eu brincava com a Ana, que me fazia companhia. Só que o instinto paternal do meu irmão estava apurado, por isso, colocou-me ao colo e fez-me cócegas, despertando o meu sorriso lépido. Marco beliscava-me as bochechas com carinho e fazia caretas. Ele era muito engraçado e fazia-me rir.

Esta menina é bonita que se farta! – Exclamou, a dada altura. A minha irmã Secunda discordou dele:

Lindas são as filhas de Aurélia! Quando crescerem vão arranjar bons maridos.

É incrível como falta solidariedade feminina às mulheres! – Queixou-se Apuleia.

A nossa mãe trincava uma coxa de frango, incólume a tudo o resto. Parecia imperturbável. Inclinei a cabeça sobre os caracóis do meu irmão. Marco aproximou-se dos nossos pais e questionou com toda a frontalidade:

A menina passa demasiado tempo com o filho do Júlio, ou é minha impressão?

Porque perguntas? – Estranhou o paterfamílias.

São criancinhas, Marco. Não faz mal. – Foi o parecer da Mater.

Os miúdos brincam sozinhos? – Perguntou o nosso pai, virando-se para a mulher.

Não, claro que não. Aurélia e eu estamos sempre muito atentas aos jogos dos mais pequenos. – Foi a resposta que obteve. O que não correspondia à verdade.

Se a mãe o diz… Apuleia tinha-me dado a entender o contrário, por isso perguntei.

Quem sabe sou eu. – Garantiu a Mater e acrescentou. – Aurélia disse-me que o filho anda mais moderado desde que frequenta a nossa casa. Antes fazia todo o tipo de tropelias e nem a forte disciplina de Júlio o controlava. Agora obedece aos pais e brinca calmamente com as irmãs. – Disse ela ao marido, com base na sua interpretação da realidade. – A nossa filha também deixou de fazer travessuras. Agora andam os quatro mais sossegados, é positivo, não concordas?

Sendo assim, nada a acrescentar. – Concluiu o Pater e serviu de veredito final.

Marco suspirou. Fiz beicinho. Ele piscou-me o olho. Foi então que o nosso pai avisou que César passaria a ter aulas com um professor particular:

António Orador deu alforria a um gaulês que parece ser bom professor. Júlio quer ser o primeiro a contratá-lo. Andam em negociações. Um tal de Gnifo…

Ouvi falar dele. Apresentou-se no mercado como gramático. Mas César tem seis anos, precisa de um literador. – Estranhou Marco.

Pelo contrário! O rapaz está muito avançado para a idade… aos seis anos já sabe ler e escrever em grego e latim. Também faz contas simples. Exercita a memória

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ao declamar versos da Ilíada de Homero e conhece as leis das XII Tábuas, graças a Cota e a Rutílio.

Ele é assim tão inteligente? – Admirou-se Marco, que era, de toda a família, o que menos conhecia a queda de César para as letras.

Aurélia diz que o filho é um génio. – Avisou a minha mãe.

Também não é preciso exagerar! – Pediu o Pater. – Seja como for, o miúdo é frágil de corpo e Mário quer enviá-lo para o Campo de Marte, para ganhar pernas firmes e braços fortes, para saber usar a espada e aprender a nadar. Júlio aceitou o conselho do cunhado. César será separado das irmãs e deixará de brincar com a nossa menina na próxima Primavera.

Ótimo! – Rematou Marco, mais aliviado.

A conversa terminou e eu fui colocada no chão. O mano foi ter com Apuleia e eu corri para junto dos cavalos, bonitos e elegantes, com pernas altas e crinas soltas ao vento! Cheiravam mal e relinchavam, mas deixavam que eu lhes fizesse carícias no focinho. Não me passou pela cabeça que dessem coices! Só não levei com as suas patas no corpo, por mero acaso!

Podias ter morrido! Não te aproximes tanto dos animais, queridinha. – Pediu-me Marco, aflito, agarrado às rédeas dos cavalos; enquanto a minha mãe e Apuleia se asseguravam que eu tinha sobrevivido para o susto!

Eu estou bem. – Assegurei, pegando nas mãos da Ana, que me sacudia a roupa.

Só voltei a encontrar-me com César depois das eleições, no dia em que os homens saíram à rua para comemorar a vitória eleitoral de Sexto. As mulheres ficaram na casa de mármore cor-de-rosa a conversar e as crianças também. O meu amigo estava em pulgas!

Nunca mais vinhas! – Suspirou, despejando os seus berlindes de casca de noz, na minha mão. – Vem brincar, tenho muito para te contar!

César passou a tarde a falar do tio Sexto, elogiando-o por ter chegado a pretor. Ouvi tudo o que ele disse e reguei-lhe o pezinho, pois ele precisava de alguém que lhe prestasse atenção absoluta!

As irmãs não lhe ligavam muito. Era compreensível. Ele podia ser obsessivo de tão entusiasta na matéria e tinha opinião formada sobre todos os temas. Sobre o que não sabia, inventava! Mas eu não me cansava de o escutar. Gostava a sua companhia e de partilhar da sua alegria. Tanto que ele parecia feliz a meu lado.

César nem sempre estava contente; em especial se levava chapadas, açoites e pontapés do pai Júlio. Às vezes aparecia-me de olho negro ou braços escoriados, os quais tentava ocultar; e eu, discretamente, chamava pela minha ama para lhe curarmos as feridas.

Se ele vinha triste de Subura, eu abraçava-o e orava a Cardea, a deusa protetora das crianças, para o livrar dos espíritos malignos. Pois César também ficava absorto, como se estivesse na lua. Perdia a noção de onde estava e até tombava. Se eu lhe perguntava o que

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tinha, ele respondia sentir umas coisas esquisitas. Sei que a mãe lhe dava ovos e mel de abelhas e ele arrebitava. Como eu também adorava mel, besuntávamo-nos os dois a rir.

Nos dias em que ele vinha frustrado e irritado, as irmãs respondiam-lhe à letra e a emenda era pior do que o soneto! O facto de Júlio não lhe perdoar a mínima falta, aumentava no filho uma terrível sensação de frustração, fracasso e rebeldia. A educação fria e distante de Aurélia controlava-lhe os ânimos, mas não o fazia feliz. Eu sabia que o melhor era aguardar pelo fim da tempestade. César precisava libertar energias, gritar e espernear; e de andar de um lado para o outro, de gesticular perante audiência atenta e pestanejante. Ele acalmava-se sozinho. Depois sentava-se e encostava o seu rosto ao meu. Eu juntava as mãos ao seu peito, a escutar-lhe o coração. Ele sorria e o meu dia era perfeito!

Júlia gostava que as crianças fossem visitá-la. Mariozinho fazia-lhe pouca companhia e ela sentia-se sozinha dentro daquela domus enorme! Vinha receber-nos à porta, de braços no ar e sorriso grande. Presenteava-nos com liberdade, tranquilidade e ternura. Dedicava-se aos lavores e espreitava-nos quando brincávamos a seus pés. No resto do tempo, deixava-nos circular à vontade. Fazia carícias nos nossos cabelos e era querida connosco.

Também associo a casa de mármore cor-de-rosa à comida. Os meus pais eram conservadores e insistiam em manter-se fiéis a cardápio tipicamente romano, com pouca carne, pois esta pagava-se cara! Quando se matava o porco, pelas festas da Saturnália, as escravas faziam enchidos que nós consumíamos ao longo do ano; e um caldo de sangue muito apreciado pelos meus pais, que eu só comi uma vez e não gostei.

O Pater considerava o peixe do rio sujo e preferia mandar vir barbatanas do mar, mas regava a comida com garum. Usava posca como tempero, embora fosse mais uma bebida servida nas tabernas e no exército; e Mário emborcava daquilo aos goles! De manhã comiam-se papas de cereais. No princípio da tarde serviam-se caldos de verduras ou com caracóis, ovos cozidos, pão com azeite ou queijo de cabra e fruta da época. Tudo muito simples.

Pelo contrário, na casa de mármore cor-de-rosa tinha sempre cheiro intenso! Recordo as travessas de camarões, daqueles grandes! Muita caça, lebres, coelhos e todo o tipo de aves. Às refeições, os escravos traziam leitões e cabritos inteiros, assados em grandes espetadas, regados a temperos exóticos; ou petiscos como perninhas de rã fritas, febras grelhadas de javali ou borrego cozido polvilhado a pétalas tostadas. Os cozinheiros usavam muito alho e açafrão, alcachofras, cominho, damascos e lentilhas, castanhas cozidas e tâmaras de África.

Enfim, as crianças eram magras e comiam caldos de verduras. Não tinham acesso aos banquetes que Júlia organizava para os gordos convidados do marido, que incluíam iguarias sofisticadas como pés de camelo, cristas de galo, rouxinóis no forno, fígados de ganso, pavões recheados e faisões com ervilhas. Mário preferia refeições salgadas. Júlia gostava de doces. Recordo os seus apetitosos biscoitos de mel com sementes de sésamo. Mariozinho comia de tudo às quantidades. Para mim era fome que dava em fartura!

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Tenho um peão! As minhas irmãs receberam brinquedos novos. Queres brincar? – Perguntou César, quando me viu fazer caretas à comida.

Sentei-me à direita de Juliana e à esquerda de Julinha. Elas penteavam bonecas loiras de olhos grandes, que se pareciam com elas. Uma era talhada em madeira e penteada com dentes de marfim. Duas eram de terracota e três de pano. Eu só tinha uma de trapo feita pela minha mãe e não me identificava com ela, pois não possuía cabelos morenos como os meus.

No geral, eu tinha poucos brinquedos. Mas Júlia enchia os sobrinhos de presentes, talvez para compensar o facto de não ter filhos. César gostava de jogar aos berlindes comigo. Juliana e Julinha, porém, faziam birra se eu prestasse mais atenção ao irmão do que a elas. Um dia brigaram comigo. Até que Juliana, sem me avisar, atirou uma figura de terracota para as minhas mãos. O objeto ainda fez ricochete no meu braço, mas caiu ao chão e espatifou-se.

A filha de Aurélia fez queixa de mim. Disse que tinha ficado muito triste com a perda da boneca e que não me perdoaria a desfeita. A sua reação confundiu-me. Ainda tentei apelar à sua compreensão. Mas César aconselhou-me a não ligar às ameaças da irmã e começou a encavalitar pedaços de terracota em cima uns dos outros, como se estivesse a construir um templo, ou a afastar o curso do rio.

Um dia vou construir estradas e pontes. – Propôs.

Como o meu bisavô que foi cônsul e pontífice máximo? – Ocorreu-me perguntar, pois era a referência que tinha em casa.

Se puder, eu vou ser isso tudo e mais ainda! – Disse-me, acrescentando o que me surpreendeu. – Gostava que tivesses orgulho em mim quando fossemos grandes.

Quando o inverno terminou, abriu alas ao meu aniversário, o dia do ano que eu mais gostava! Primeiro, porque a família me acordava com cânticos e me dava presentes, regados a mimo. Depois, porque era uma época de três dias de festas na cidade, com procissões religiosas e espetáculos de muitas cores.

Nos idos de Marte, as atividades seculares estavam proibidas e os tribunais fechados. Era dia feriado! Conduzia-se o anho em procissão pela via-sacra até ao Arx onde o animal era sacrificado e o povo rejubilava de braços abertos, na esperança que o futuro trouxesse melhores dias. De facto, no mês do deus da guerra, prestava-se culto a Ana Perena, ao correr do tempo, cujas orações abriam alas ao novo ano religioso, que se almejava próspero e feliz. Expectantes, os romanos merendavam no bosque junto ao Tibre, na via Flamínia, dedicado à deusa que fugiu para o Lácio após a morte de Dido, a rainha de Cartago e se metamorfoseou em ninfa para casar com Numício, deus do rio; e atiravam ao ar grãos de sementes e enfeites de alegria. Para mim, tudo aquilo era uma festa!

Após os idos havia a procissão dos Argei. No mês de Marte celebrava-se o final do ano religioso e a Liberália abria portas a uma nova geração de adultos. No mês de Maia, nos dias em torno da Lemúria, havia um cortejo parecido, mas mais lúgubre, cuja praxe era atirar ao rio efígies de espigas e flores recolhidas nos altares.

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Nesse ano, eu lancei a minha boneca ao Tibre. Porque o fiz? Não sei. Entusiasmei-me com a ideia. Foi o meu ritual de iniciação? Eu não me identificava com a boneca, por não ser morena como eu. Talvez ambicionasse que o tempo passasse mais depressa, para ser crescida e casar com César. Mas a minha irmã Secunda repreendeu-me por o ter feito e, com insensibilidade gritante, gerou em mim dúvidas que surtiram efeito:

Atiraste a boneca ao Tibre? Agora vais casar com o deus rio como Ana Perena.

Fiquei apreensiva. Ainda estava nervosa, quando entrei na casa de mármore cor-de-rosa, levada pela mão dos meus pais. Recebi os parabéns pelo aniversário e uma prenda, que não recordo qual foi. Mariozinho não estava em casa. Secunda ficara com os cunhados no lar patriarcal, pois como era noiva não casada, resguardava-se à noite.

Serviu-se a ceia. As crianças sentaram-se e começaram a atirar bolinhas de pão umas às outras. Até Aurélia puxar pelas orelhas da Juliana – a que estava ao alcance da sua mão – o que nos serviu de exemplo para parar de fazer travessuras. Enfim, mais ou menos! César piscou-me o olho e eu sorri-lhe, antes de sorvermos o caldo de legumes por estar quente e de ele arrotar no fim, como devia.

A refeição nunca era dada por terminada quando havia visitas. Os adultos permaneciam recostados a discutir temas cansativos. Nós, as crianças, fomos brincar. As irmãs de César foram entreter-se com as bonecas.

Eu e César aproximámo-nos do altar doméstico, que se aninhava no átrio. Honrámos os Manes, os Lares e os Penates, perante a velinha acesa à deusa Vesta. Orámos aos espíritos que guardavam a casa, as almas dos entes queridos já falecidos e os génios da despensa, que velavam pelo bem-estar e pela prosperidade familiar. Vesta era a deusa protetora da cidade de Roma.

Atirei a minha boneca ao rio. – Avisei num suspiro, baixando os olhos.

E então? – Perguntou ele, a meu lado.

A minha irmã disse-me que por causa disso vou casar com um deus!

Tu vais ficar comigo. Para casares com um deus, eu terei de ser deificado.

Não troces. Não tem graça. Fiquei com medo que algo corresse mal… Ele mantinha-se calmo.

Já sei o que vamos fazer. – Avisou, antes de se ajoelhar perante o altar. Pediu-me que fizesse o mesmo. Pegou-me pelas mãos e propôs que trocássemos os votos de casamento junto ao fogo doméstico.

Outra vez? – Perguntei. – Já o fizemos no matrimónio da minha irmã mais velha.

Hoje é a sério, perante os deuses! – Animou-me. Suspirei, de olhar fixo no fogo de Vesta.

Está bem. Onde tu fores Caio, eu serei Caia. – Prometi. Ele entrelaçou as suas mãos nas minhas e garantiu-me aquilo em que acreditei.

Emília, estamos unidos para sempre Agora és minha e eu sou teu. – E selou o acordo unindo os seus lábios aos meus.

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Pestanejei, sorrindo. Éramos crianças. Nem que quiséssemos, saberíamos o que mais dizer ou fazer. Para nós, casar era aquilo. Mas Juliana apanhou-nos em flagrante e desfez-se num prolongado oh! Ela parecia em estado de choque. Mas foi Julinha, que chegou depois, quem desatou a correr em direção ao triclínio.

César ficou muito sério e foi atrás das irmãs. Eu segui a comitiva, como se estivéssemos todos numa brincadeira. Nunca pensei que elas nos denunciassem aos adultos! Mas assim que pus um pé no triclínio, pressenti a tempestade se avizinhava. Os adultos pareciam nuvens escuras carregadas de raios e eu virei-me para o meu pai, à procura de alento. Eu não aguardava pela bofetada que ele me deu. Doeu a gritos que calei! O meu pai nunca me tinha batido, muito menos em público! Levei as mãos ao rosto para aliviar a dor, contendo a respiração. Os seniores pareciam atrapalhados, rubros de vergonha ou de raiva!

Estou tão surpreendido como tu. – Defendeu Júlio, ao dirigir-se ao meu pai.

Mentira! – Atirou-lhe o Pater, num tom que impunha respeito. – Queres fazer-me passar por idiota? Julgas que não percebi o vosso jogo insidioso?! Júlio encarou-o com ar ameaçador:

Como te atreves a insinuar que eu tenho alguma coisa a ver com isto? – Gritou furioso. Com voz de comando virou-se para a esposa e perguntou – Aurélia, tu sabias?

Não. – Recebeu como resposta.

Houve conluio, sim, que eu já percebi tudo! – Concluiu o meu pai, sem certezas do que afirmava. Mas acrescentou algo importante. – Se pensam que eu casaria a minha filha com um Júlio estão muito enganados.

Ora essa, porquê? Sou patrício como tu! – Defendeu-se o interlocutor.

Tu conheces tão bem quanto eu aquela praga. – Mas não a explicou em voz alta. A frase do meu pai surpreendeu-me, pois eu nunca ouvira falar em tal coisa!

Essa praga tem séculos! Não me digas que és supersticioso? – Júlio não se ria. Enfim, amigos, amigos, negócios à parte. Assim pensou o Pater que se explicou:

Se os Emílios ousarem ter filhos com os Júlios podem ser expulsos do Palatino, sabes disso. Não fui que inventei a história, toda a gente a conhece!

Isso é um disparate com pernas! – Gritou Júlio, a perder as estribeiras. O Pater cresceu em altura e espetou os seus olhos no outro:

Talvez. Mas pensas que eu sou estúpido e desconheço os graves problemas que tu tens?! – Rosnou.

De repente, Júlio agarrou o meu pai pela garganta, com mão de ferro. A irmã soltou um grito abafado, não sei se assustada pela violência ou revoltada com as palavras proferidas. As sobrinhas começaram a berrar, até serem silenciadas por Aurélia. A minha mãe deu um passo em direção à porta. Mário estava habituado à guerra e manteve a fibra:

Larguem-se, já! – Ordenou com voz tonitruante, antes que a situação piorasse. Tremi. Os beligerantes ficaram estanques. O Pater muito direito e digno, perante um Júlio de narinas dilatadas que o esganava. Foi então que o comandante deu um

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passo em direção aos dois e regougou. – Não me obriguem a dar segunda ordem na minha própria casa.

Gelei. O homem que fora seis vezes cônsul estava habituado a ser obedecido. Era baixo em estatura, mas o seu carisma convenceu o cunhado a contrariar os instintos e a tirar a mão da garganta do meu pai, quando já ninguém o esperava possível.

Júlio, leva Aurélia e os teus filhos para casa! Falamos depois. – Exigiu Mário.

O cunhado acatou a ordem. Reuniu a família como se fosse uma legião e arrastou um César desvairado, de braços estendidos na minha direção e que gritava Emília dos confins de uma garganta engasgada pelo medo da tareia que sofreria ao chegar a casa.

Júlia tentou apelar à diplomacia, enquanto Mário aguentava o barco. Mas o meu pai já caminhava para o átrio, levando-me pela mão, com a Mater atrás de si. O comandante resolveu intervir com palavras de bom senso:

Calma, homem! Eu percebo que esteja incomodado com a situação. Estamos todos. Mas não houve premeditação parental e nada de irreparável aconteceu. Os miúdos ainda são de ninhada, não há razão para perdermos a cabeça. O meu pai agarrou-me a mão com mais força, mas tentou controlar-se na resposta:

Tenho de pensar sobre o que aconteceu, para saber o que fazer. – Declarou, antes de pedir apoio a Mário. – Peço-lhe que não conte o que aqui se passou. A ninguém! Mário respirou com força e rematou dizendo:

Com certeza. – Prometeu. – Também não se preocupe com César. Dou-lhe a minha palavra de honra em como ele não volta a aproximar-se da sua filha.

Obrigado, Mário. – Agradeceu o Pater com um político no Senado perante o seu líder partidário. – Se não se importa, nós vamos andando. Faz-se tarde e são horas de regressar com a minha família a casa. O comandante tinha uma presença impressionante, mas soube ser razoável:

Muito bem. Estamos conversados. Boa noite. – Despediu-se com porte militar.

Júlia acenou-nos, pois a minha mãe já se afastava e não houve mais cumprimentos. Caminhámos a pé até casa, na companhia dos escravos, pois vivíamos logo ao lado e chegámos ao lar patriarcal, sem trocar uma palavra.

Entrei no vestíbulo a levitar de perplexidade, ainda sem derramar uma lágrima. Eu estava em estado de choque. O meu amigo tomara consciência imediata da nossa separação, mas eu entrei em negação, admitindo a hipótese otimista que tudo se haveria de resolver pelo melhor.

O meu pai mandou chamar o filho. Marco veio imediatamente, ao ser avisado, por um escravo, que podia haver problemas. Apuleia e Secunda surgiram logo depois, mas não se atreveram a fazer perguntas e mantiveram-se sossegadas e enroladas em capas de lã, por causa do frio. Seguimos todos, em silêncio, para o triclínio, para evitar discutir o tema na presença do pessoal doméstico. Permaneci de pé, enquanto o paterfamílias fazia um resumo e todos me olharam com reprovação.

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Ele beijou-te? – Quis saber a minha mãe. Eu não estava habituada a mentir, por isso, disse a verdade:

Sim.

César fez-te mais alguma coisa? – Insistiu ela em saber.

Não. Respiram todos fundo, mais aliviados.

Muito bem. Podes ir dormir. – Despediu-se a Mater secamente. O ambiente era pesado e eu não hesitei em partir. Mas ainda ouvi estas palavras:

Eu avisei-vos, mas os pais não quiseram ouvir-me! – Exclamou Marco, revoltado.

Nunca pensei… – Reconheceu a Mater. Marco fez questão de defender-me:

A nossa menina é inocente, acredita na boa natureza das pessoas.

Eu sei que a culpa é do miúdo, que se pensa muito esperto! Ou talvez dos seus progenitores. Pelo menos um deles está por detrás desta jogada e talvez não seja Júlio. Ele pareceu-me genuinamente surpreendido com a revelação. – Observou o paterfamílias.

Eu estava genuinamente convencida que César gostava de mim e que a ideia fora ditada pelo seu coração. No caso de a família ter arquitetado um plano, a iniciativa teria sido da tia Júlia ou de Márcia Rex – se a avó tentasse evitar que o rapaz prodígio enfrentasse as dificuldades do pai e da tia por terem casado com plebeus. Duvido que os progenitores soubessem de alguma coisa.

Podem circular rumores sobre isto na cidade. O que fazemos? – Era a preocupação principal da minha mãe, que não queria acreditar na traição da amiga.

Mário prometeu não contar e eu acredito nele. Também não é do interesse de Júlio que tal aconteça. – Foi o parecer do marido, antes de acrescentar. – Oh Vénus! Menina bonita dá trabalho a qualquer pai…

O serão ainda estava para durar. A Mater sentiu necessidade de descarregar a frustração num bode expiatório e mandou chicotear a minha ama, que não tinha culpa no sucedido. Apercebendo-me das implicações dos meus atos na Ana, tentei protegê-la. O chicote fazia doer horrores e eu não podia suportar que lhe aplicassem tão doloroso castigo.

A Mater não pode fazer mal à Ana. Pare! – Pedi, desesperada.

O sangue varria-lhe as costas a compasso de gritos, dilacerantes aos meus ouvidos e o espetáculo, sob as miradas abafadas do pessoal doméstico, só terminou quando a Ana desfaleceu. Assustada, entrei em pânico, num pranto que nunca mais acabava. Foi o meu irmão quem me acudiu. Apuleia foi deitar-me e tentou adormecer-me, sem sucesso.

Nos dias seguintes fiquei mais sozinha. Os meus pais obrigaram Marco a não me apaparicar com tanto mimo, para ver se eu aprendia a lição. Afastaram-me da Ana e de Apuleia. Só Secunda podia visitar-me e a minha irmã evitava fazê-lo. Resultado, passei muitas noites sem dormir! Estava inquieta. Apavorava-me a ideia de não voltar a ver

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César, pois imaginava a coça que ele podia ter apanhado às mãos do pai ao chegar a casa e tinha medo que ele tivesse tão ferido como a Ana.

O tempo passava e o meu castigo não terminava! Até que, um dia, o galo cantou. Mamerco, irmão de Drusa e adotado pelos Emílios Lépidos, surgiu à nossa porta. Entrei no esconderijo secreto, com ouvidos para o tablino e tentei perceber o que se passava.

Dizes que abriu uma vaga para o cargo de vestal? – Quis confirmar o meu pai.

Sim. Quem me contou foi o meu irmão Druso, que é pontífice. O meu pai aproveitou para mostrar disponibilidade para resolver a questão:

Tenho três filhas, uma casada e outra noiva. Admito entregar a mais nova ao culto de Vesta. Tem a idade certa. Acredito que o pontífice máximo seja favorável à ideia, pois é um popular como eu. Mas o teu irmão é pontífice, podes dar-lhe uma palavrinha a meu favor? – Perguntou o Pater.

Sim, claro. – Foi a resposta de Mamerco, habituado a servir de intermediário.

Que fique bem claro, não quero passar pelo vexame de candidatar a minha filha e de ela não ser escolhida. – Avisou o Pater, com orgulho patrício. – A miúda não vai pôr-se em nenhuma fila!

Claro que não! Talvez Aenobarbo se disponibilize a vir cá a casa para conhecer a menina, sem teres de a levar ao fórum para ser avaliada. – Ponderou o convidado.

Isso seria o indicado. – Reconhecer o interlocutor, com firmeza.

Alerto para as regras: a candidata a vestal deve ser filha de pais vivos, saudável e fisicamente perfeita, sem problemas nos olhos, na língua ou nos ouvidos; não pode ter marcas na pele e deve ser virtuosa acima de qualquer suspeita. O meu pai atalhou firmemente:

A minha filha cumpre todos os requisitos. Mamerco apressou-se a ser diplomático:

Nos dias que correm, os paterfamílias usam as filhas para estabelecer alianças políticas e negociar casamentos proveitosos. Alguns senadores até se fazem de mortos quando abre vaga no templo. Os que têm muitas filhas e não conseguem arranjar dotes para todas é que se disponibilizam. Não será o teu caso, claro.

Pois não. – Afiançou o meu pai.

A mortalidade infantil é elevada entre os patrícios e nem sempre há garotas para oferecer a Vesta, pelo que, segundo me disse Druso, as candidatas até agora têm sido plebeias.

A minha menina é patrícia.

É uma vantagem sobre a concorrência. – Admitiu Mamerco. – Quando uma Emília está disponível, passa à frente das outras. Eu até diria que seria uma honra para todos nós que a tua filha seguisse vida religiosa.

Foi o que eu pensei. Gosto de saber que partilhas a minha opinião. – Rematou o Pater, fingindo não ter percebido a indireta. – Se o teu irmão me ajudar, será recompensado com o meu apoio político quando a oportunidade surgir.

Ele vai gostar de saber. Sendo assim, vou andando. – Despediu-se o convidado.

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Mamerco prontificou-se a tomar as diligências necessárias e partiu. Eu enrolei-me mais sobre as pernas, aninhada no meu canto. Portanto, o Pater queria que eu entrasse para a vida religiosa. A ideia não me assustou porque ignorava as exigências do cargo.

Três dias depois, fui vestida e penteada com esmero para ser apresentada ao pontífice máximo. Ele veio visitar-nos bem cedo, quase de madrugada, depois da primeira oração do dia. Avancei para Aenobarbo como se flutuasse numa nuvem.

Sei que o homem era uma imensa barba de bronze, alta e macilenta. Não recordo as perguntas que me fez. Mas respondi-lhe com voz ternurenta de menina bem comportada.

Então, temos negócio fechado? – Quis o meu pai confirmar. Aenobarbo apertou a mão Pater, selando o acordo.

Claro que sim. A cerimónia será um mero proforma. – Garantiu o sumo-sacerdote.

Muito bem. Ficamos combinados. Acompanho-o à porta.

O Pater conseguira o que queria. Ao entregar-me a Vesta, pensava estar a remediar a situação. Não sei se alguma vez se arrependeu da decisão que tomou. Mas foi assim que a minha infância terminou. Eu não queria ser sacerdotisa, teria preferido casar e ter filhos. Mas que podia eu fazer?

NOTAS FINAIS

1 Casa. 2 15 Março 100 a.C. 3 Jogos em honra do deus Apolo, entre 6/13 Julho. 4 12 Julho 100 a.C. 5 Rómulo, o herói fundador de Roma, edificou a cidade a partir do Palatino (uma das sete colinas). 6 Raposa de Arpino: alcunha de Caio Mário, sete vezes cônsul romano. 7 Primeiro homem do Senado. O primeiro da lista de senadores. Cargo de prestígio. 8 Esverdeados.