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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo X (77-76 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo X

(77-76 a.C.)

Maria Galito

2017

César e a Vestal 237 Maria Galito

Capítulo X

677-678 AUC

César era homem para suportar a dor com paciência.

César apostou em carreira de advogado como rampa de lançamento para a política.

Nesta fase colocou-se sob a influência de Cícero, que entretanto regressara à cidade e era seis anos mais velho. Eles tinham vindo juntos da Grécia.

O filho de Aurélia servira na Cilícia, enquanto contubernale de Isáurico, após deixar o exército de Minúcio. Quando o pontífice terminou o seu mandato, trouxe César consigo. Passaram os dois por Esmirna, onde visitaram Rutílio, que os recebeu que foi uma maravilha! Nesta casa estava Cícero, de visita, que aproveitou a boleia e se meteu a caminho de Roma, deixando o filósofo para trás, entregue aos cozinhados gregos.

Um mês depois, César, Cícero e Isáurico entravam nas muralhas sérvias, desarmados, como se fossem grandes amigos. Nada mais falso! Isáurico confessou a Cota, na primeira assembleia em que participou, que nunca na vida passara tão mal, como naquela viagem a aturar dois perus. Eu estava atenta e escutei a história toda.

Não há homens mais díspares do que César e Cícero. – Concluiu Cota.

Pois eu penso-os parecidos, porque são os dois insuportáveis! – Opinou Isáurico.

As suas diferenças eram irreconciliáveis? Fui assistir a discursos públicos dos referidos advogados e comparei os seus estilos. Eu diria que César era uma águia e Cícero um grão-de-bico. O primeiro era pobre, o segundo era rico. O de Subura tinha sangue quente, o de Arpino era frio. O patrício já era senador por ser herói de guerra (a coroa cívica garantia-lhe lugar no Senado antes dos trinta anos). O plebeu tinha créditos nos tribunais, mas ainda aguardava pela idade mínima para entrar no hemiciclo.

César era um mariano alvo das proscrições de Sila, filiado no partido popular, de família consular e casado com uma patrícia, que residia numa ínsula insalubre, juntamente com o resto da família. Cícero era um optimate que ganhara fama durante a ditadura de Sila; era um homem novo, que morava só com a esposa (embora fosse visitado pelo irmão) que era plebeia e abastada. Cinila era reservada e obediente ao esposo. Terência mandava no marido e ocupava-se das finanças domésticas, enquanto Cícero compunha discursos e defendia os seus casos em tribunal.

Em confronto direto, César e Cícero pareciam duas gralhas a gesticular. Longe um do outro eram fortes, carismáticos e obstinados. No geral, eram teimosos, orgulhosos e cardinais. César fazia naturalmente, o que o outro apenas conseguia com estudo e muito

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esforço. Cícero era um intelectual. O filho de Aurélia fazia de tudo, de bom a excelente! Não admira que o homem de Arpino invejasse o colega mais novo e troçasse dele amiúde, aproveitando o facto de dominar a mordacidade, mais até do que o cinismo ou o sarcasmo, uma arte em que César não dava troco.

Cícero era exímio orador, cuja aura alimentava na barra do tribunal mas, no quotidiano, parecia outro homem! Ou assim pensava Cota. Cícero era um ator e, nessa medida, usava máscara. De carater fechado e soturno, enfiava-se dias inteiros no tablino a ditar discursos a um servo copista que inventou código para registar depressa as ideias do advogado.

César tinha perfil público igual ao privado. Não era transparente, era ardiloso, mas frequentava regularmente festas e encontros sociais de vários tipos, alimentava amizades em todas as camadas sociais e não parava sossegado dentro de casa!

César era bonito, Cícero nem por isso, mas ambos eram vaidosos e ambiciosos. Possuíam personalidades fortes e eram tremendamente inteligentes. O de Arpino almejava o reconhecimento dos seus pares. O de Subura abria os braços ao povo e, se no Senado, o ambiente lhe era hostil, não se acobardava – desse por onde desse, marrava a direito. Cícero encolhia-se, mas insistia na sua até obter o que queria.

Pois olha, eu não os suporto! Nem a um, nem a outro. – Resumiu Isáurico. Cota podia ter defendido o sobrinho. Nessa tarde não conseguiu:

Ah! Que dor de cabeça que eles me dão. – Queixou-se. – Eles embirram um com o outro que é uma coisa doida!

César precisava dar nas vistas. Disponibilizara-se a acusar Dolabela por extorsão e abuso de poder. Em compensação, Cota assumira a defesa do ex-cônsul, para ver se o homem era ilibado e não se virava contra César. Mas, sendo assim, onde estava a justiça? A prioridade de Cota era salvar o sobrinho e estava disposto a tudo para o proteger.

César, porém, levou a tarefa a peito. Escutou as queixas dos ilustres da Macedónia e, mesmo admitindo que tinha costas quentes e apoio familiar, ousou chamar os bois pelos nomes em tribunal. Dolabela não gostou nada da brincadeira.

Falaste com Dolabela ontem? Ele foi ilibado, deve estar satisfeito. – Observou Isáurico que, por ser mais velho, já limitava as saídas e repousava mais em casa. Eu ouvi-lhes a conversa na Cúria Régia.

Ameaçador, queres tu dizer. O mariano pode estar em perigo. – Sussurrou Mamerco. Mas eu ouviu-o bem.

Podia ser exagero, mas eu não estava segura disso. No dia seguinte, fui com Popília e Perpena assistir ao julgamento de Híbrida. O filho de Aurélia era advogado de acusação, devia lá estar! Eu não sabia abordar o tema com ele, por ser delicado e sensível. A minha prioridade era transmitir-lhe a mensagem, nem que fosse por descargo de consciência.

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Na assistência estava o meu sobrinho Lépido, entusiasmado com os discursos e sentado ao lado do novo gramático, um homem alto com cabelo cor-de-abóbora que não me era estranho. Puxei pela memória e perdi as dúvidas.

Era Gnifo! O liberto do falecido António Orador e ex-professor de César. O gaulês tinha sardas no rosto e olhos azuis, quase cinzentos. Estava vestido e penteado como um romano, mas parecia ter o dobro do corpo de um homem normal. Parecia mais gladiador do que docente. Bem-educado, possuía cultura geral acima da média e foi, num latim correto, que me cumprimentou. Fiquei impressionada com o seu porte. Saudei-o, mas foi ao meu sobrinho que perguntei:

Desde quando é que Gnifo é teu professor?

Ao que parece, César cumprimentara Mamerco no Senado, uns dias antes. Ele terá perguntado pelos meus sobrinhos, sobre que idade tinham e que educação recebiam. Terá dissertado sobre a utilidade de ocupar as mentes de Lépido e Paulo, para não se concentrarem na perda do pai. A ideia dele era apostar mais na instrução dos garotos e disponibilizou-se a encontrar-lhes um bom gramático. Procurou tanto que recomendou Gnifo, o seu antigo gramático. Mas o que andava César a magicar?

Mamerco disse que Mânio não podia ficar eternamente lá em casa, coitado, que tinha de ir à sua vida e Gnifo ficou em seu lugar. – Explicou Lépido, na sua inocência. O gaulês aquiesceu com sorriso cheio de dentes. Fiquei parva! César tivera uma crise de ciúmes, ou qual era o seu problema?!

Mânio foi-se embora, assim, sem avisar? – Perguntei, desiludida. Habituara-me a conversar com ele e custava-me aquela separação abrupta.

O meu irmão Paulo não queria que ele partisse e fez uma birra terrível, pois tinha-se afeiçoado a ele. Mas eu não me importei. Gnifo é divertido, diz piadas, não é? – Perguntou-lhe.– Gnifo diz que César é melhor influência para nós do que Mânio e vem comigo ao fórum sempre que há julgamentos, para ouvirmos os discursos dos advogados. Paulo só veio uma vez e cansou-se. Eu quero vir sempre e ele traz-me. – Lépido, entusiasmado, nem se aguentava quieto, aos pulos no assento.

O seu sobrinho tem muito jeito para a oratória. – Acrescentou Gnifo, com sardas de agente secreto.

Pois, calculo… – Observei. Ele arqueou a sobrancelha, sentando-se direito!

Quando fora a última vez que eu visitara os meus sobrinhos? Há três dias. Por Mercúrio, muito acontece num curto espaço de tempo! Senti-me ultrapassada pelos acontecimentos.

Sentei-me no lugar privilegiado das vestais, ao lado de Popília e de Perpena. Não muito longe estava Varrão, um colega nosso, pontífice, que presidia ao tribunal, enquanto pretor. Ele entrara no colégio por designação de Sila. Era irmão mais novo de Luculo, o legado de Minúcio que tentara provocar a queda de César na Ásia e parecia continuar a fazê-lo em Roma, através de tentáculos do polvo.

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O arguido era conhecido por Híbrida, homem besta, pela fama das torturas e abusos praticados, diretamente, ou às suas ordens, na Macedónia. Era filho do falecido António Orador e cunhado da filha do falecido Lúcio, pelo que ainda era parente afastado de César. Votava nos optimates afetados pelas proscrições marianas. Sentava-se de queixo erguido, ao desafio. Gordo como um galo capado e inchado como um enchido de porco fumado, inspirava medo e repulsa entre as hostes.

Ainda mal me tinha sentado e já eu corava com os insultos do advogado de defesa contra o colega de acusação. O nível de violência verbal era assustador! Dava a sensação que o principal objetivo do orador era atacar César, mais do que defender o seu cliente. Sei que fiquei com calores!

O povo não ouvia tudo o que o advogado de defesa de Híbrida dizia, pois manifestava-se de forma irregular. Mas assim que César se levantou para discursar, a multidão uniu-se em onda e projetou-se para a frente com redobrada atenção. Foi um fenómeno visual extraordinário!

O interesse por César era assolapado! Mas não era de estranhar, pelo menos para mim, que o recordava flâmine, a deambular pelo fórum, sempre rodeado de gente. Anos antes, ele dissertava como filósofo. Agora falava como advogado!

O defensor de Hibrida insultara César de toda a maneira e feitio. Foi tão grosseiro que, se o colega reagisse mal, ninguém o condenaria. Mas o sobrinho de Cota era magnânimo e superior à verborreia de terceiros! Ergueu-se, caminhou pelo estrado até junto ao público, abriu os braços com as palmas das mãos para cima e fez ar cómico. A sua naturalidade era tanta que o povo desancou à gargalhada. O tribunal veio abaixo com a chocalhada. A multidão ria a bandeiras despregadas. O advogado de Híbrida, sentindo-se enxovalhado, ficou escarlate e ainda César não tinha dito uma palavra!

O filho de Aurélia esperou que o povo se divertisse. Aproveitou o estrelato para projetar a voz que chegou nítida aos meus ouvidos. Evitou os retoques de oratória que ninguém entendia. Defendeu a sua causa. Percebia-se tudo o que ele dizia. Ignorou o colega advogado, como se fosse tão insignificante, que não valesse a pena perder tempo com ele.

César reportou-se aos factos. A acreditar na acusação, Hibrida era um monstro, cujas atrocidades eram de uma violência atroz! O sobrinho de Cota agia como se o outro já tivesse sido condenado. Mas tal não estava garantido.

César falava bem. Mas era orador tão atraente, que podia estar a dissertar sobre lutas de cães que eu teria gostado na mesma. Que homem tão lindo, por Jove! Ele agradeceu, deu o discurso por terminado e recebeu uma ovação! O advogado de defesa rebolou os olhos, agastado.

Varrão avisou que a audiência continuaria dois dias depois para ouvir as testemunhas e a sessão acabou. Os intervenientes começaram a dispersar, cada qual para seu lado. Eu recordo as palavras de Cícero sobre o colega quando, ainda sentado a assistir, comentou para um senador de toga, sentado a seu lado:

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A dicção de César é elegante, brilhante e magnificente, com um ar de nobreza

nativa.

Concordo, Cícero. Mas ele é tão arrogante! – Disse-lhe o amigo

Entre os oradores que apenas se consagram a essa arte, preferes outro a César?

Quem tem mais fluência ou eloquência no pensamento, mais refinamento e

elegância em tudo quanto diz?

Tu és muito melhor do que ele. – Assegurou o amigo, como era de prever. Cícero ficou encantado com a resposta, claro!

Os dois levantaram-se e cumprimentaram-me. Deram-me os pêsames pelo meu irmão. Cícero fez questão de recordar o seu amigo Regilo antes de partir e foram-se embora. Eu fui atacada por Lépido, que me saltou para cima, aos pulos de contente.

César é o máximo, não é? – Perguntou o meu sobrinho.

Popília, que estava a meu lado, mostrou desagrado com aquele destempero e ficou a resmungar aos ouvidos de Perpena. Lépido arrastou-me por entre as pessoas e puxou-me até aos degraus da barra do tribunal. Aguardou em pulgas que César descesse os degraus, sem me largar da mão. Assim que o advogado se aproximou, fez um sorriso de orelha a orelha e repetiu exatamente as mesmas observações que me fizera.

De repente fez-se silêncio. Senti-me pressionada a dizer algo agradável. Gabei o discurso de César. Em resposta, ele piscou-me o olho. O meu coração pulou que foi um disparate! Não me derreti, porque ficava muito mal fazê-lo! Agarrei-me às traças e ao traje de vestal e suspirei. Levei as mãos ao rosto, de tão quente. Reparei que estava aflita. Eu tremia. Tentei a custo acalmar-me. Depois lembrei-me que estava ali com uma finalidade:

César ouvi dizer que Dolabela te ameaça. Aviso-te para teres cuidado contigo e com a tua família. – Sussurrei-lhe.

Onde ouviste isso? – Perguntou-me, no mesmo tom baixo.

No colégio de pontífices. – Confessei. Mas depois arrependi-me. Falara demais? Fiquei atrapalhada. Resolvi partir o quanto antes. – Bom, tenho de ir. Lépido, vai direto para casa. Então, adeus!

Popília aguardava-me com cara de poucos amigos e repreendeu-me durante todo o caminho. Perpena, que agora era minha amiga, corrigiu a colega a meu favor. No que me concerne, só pensava em César, pelo que tinha ouvidos moucos para o que quer que fosse!

Uns dias depois, Mamerco mandou-me chamar. Ele tratava das heranças dos meus sobrinhos e colocou-me ao corrente das novidades:

Lépido ainda é menor de idade mas é o herdeiro do patriarcado e, claro, ficou com a casa do Palatino. Paulo vestiu primeiro a toga viril e já herdou do pai adotivo uma villa rusticae em Caieta, que é perto de Fórmia, portanto, resolveu casar.

Paulo tem quinze anos! – Exclamei, surpreendida.

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Ele é tradicionalista. Por razões ideológicas, prefere ir puro para o casamento. Influências de Catão e do falecido pai adotivo. Sendo assim, faz sentido que Paulo case cedo. – Admitiu Mamerco, um conservador. Cocei as tranças do sacerdócio e pensei antes de falar:

Paulo vai viver para Caieta? – Indaguei, pois a ideia não me agradava.

Não. Lépido convidou o irmão a ficar com ele no Palatino.

Agradeci-lhe a informação. Mamerco foi-se embora e eu ocupei-me dos meus sobrinhos. Dediquei o resto da tarde a ouvi-los e a colocar-me a par das novidades. Perguntei como corriam as aulas e se continuavam a gostar do novo professor. Eles disseram-me que sim. Quando perguntei a Lépido se não se importava que o irmão contraísse matrimónio e continuasse a residir no Palatino, o jovem foi célere e convicto na resposta:

Concordo que Paulo arranje mulher, pois eu não o aturo sozinho. – Avisou, sem papas na língua. – Quanto a mim, não quero casar e ter filhos tão cedo. Eu prefiro entrar na política primeiro, assentar quando tiver carreira estabelecida no fórum e muitas moedas na sacola.

Não comentei a sua afirmação. Despedi-me deles com um aceno. Ao chegar ao templo de Vesta, ajoelhei-me perante o fogo sagrado. Admiti que os meus sobrinhos já não precisassem tanto da minha ajuda e que a vida simplesmente seguiria o seu curso normal.

Visitei a Ana, para a livrar do obséquio. Agora que o meu irmão falecera, já não fazia sentido exigir contrapartidas. Ela, todavia, mostrou interesse em manter o contacto comigo.

Também mandei parar as obras na Basílica Emília, financiadas por Marco e sob minha supervisão, desde que ele partira para a Gália Transalpina. Acompanhei os derradeiros trabalhos, em articulação com o empreiteiro. Fiscalizei a estrutura, confirmei os orçamentos e paguei as dívidas. Avaliei o cumprimento das regras e dei gratificação aos mais competentes. Levei a documentação da obra para a casa paterna. Só depois tive uma conversa com Amílcar.

Vamos lá a saber, onde está Híspalis? – Perguntei-lhe diretamente.

A sua cunhada vendeu-a. – Avisou-me, com o coração partido.

Mas porquê? – Admirei-me, pois a bética até parecia risonha e simpática.

Híspalis sabia demais sobre o que acontecia cá em casa e tentou proteger os meninos. – Explicou-me o mordomo, como quem delata uma injustiça.

Ah, estou a perceber…

Entrei no tablino do meu pai e abri o armário onde se acumulavam todos os documentos redigidos nos últimos trinta anos. Procurei nos manuscritos referências a Híspalis. Vasculhei entre as pilhas de letras e contas, mas nada encontrei. Até que resolvi sentar-me na cátedra do meu pai. Desenrolei os rolos de papiro que rebolavam sobre a mesa. Encontrei finalmente a informação que procurava. A bética fora vendida a um bordel! Tomei nota da morada e resolvi tomar conta da ocorrência. Fui ter com Amílcar e

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expliquei-lhe que estava interessada em readquirir a escrava. Ele deveria deslocar-se ao endereço que lhe dei para discutir preços.

A questão foi acordada mas não resolvida nesse dia. O proprietário do bordel não queria livrar-se da bética, por ser a sua melhor funcionária. O mordomo parecia resolvido a explicar-me a complexidade do problema.

Falei com ela. Está muito maltratada. Tem sido obrigada a trabalhar sob coação permanente. – Esclareceu Amílcar, não poupando palavras.

Ou seja, leva pancada todos os dias. – Rematei enojada com a conversa.

Basicamente. – Disse no seu latim arrastado.

Há quanto tempo trabalha ela nesse lupanar? – Perguntei, pois ainda não me tinha inteirado completamente da situação.

A sua cunhada vendeu Híspalis mal pôs os pés nesta casa. – Confirmou ele. Fiz uma pausa, longa e digerida. A minha decisão devia ser responsável:

Amílcar faremos o seguinte. Vá ao bordel e fale com o seu proprietário. Diga-lhe que, ou ele vende Híspalis, ou será visitado por fiscais do Estado, que certamente lhe vão fechar o estabelecimento. O dono deve operar na clandestinidade, pelo que vai ceder. Depois leve a bética ao médico. Se ela tiver alguma doença, que se trate. Se não, envie-a para uma das propriedades de Lépido. O cartaginês olhou-me com admiração:

Brilhante ideia! Pode contar comigo. Amanhã dou um susto no proxeneta e salvo Híspalis daquele lugar imundo. – Afiançou o mordomo e eu acreditei nele.

A sua resposta deu-me alento. O meu objetivo era precisamente fazer justiça. Híspalis tentara salvar Paulo e Lépido das influências dúbias de Apuleia e, portanto, merecia que eu lutasse por ela.

Posto isto, empenhei-me na inauguração da Basílica Emília. O luto fora longo e agora importava celebrar a memória de Marco, ao mesmo tempo que abria o futuro aos meus sobrinhos. Enviei convites a uma extensa lista de senadores e cavaleiros. Eurísaces foi o meu arauto e espalhou a notícia nas encruzilhadas, nos espaços de convívio social e pelas ruas de Roma. Também lhe encomendei os comes e os bebes. O pistor já geria equipa de trabalhadores de várias especialidades.

A nossa vestal é muito estimada na cidade. Deve ter enchente no dia da inauguração. – Declarou Eurísaces.

Então é melhor mandar fazer um bolo grande! – Brinquei, percebendo o seu olho para o negócio. Ele corou.

Em que mesas colocamos o pão de mel, as broas, os salgados e as demais iguarias que devem estar à disposição dos convidados? – Questionou a mulher dele.

Desta vez vamos fazer diferente. Se ficar tudo exposto não haverá qualquer controlo sobre a comida; poderá faltar ou ser roubada ou danificada. Proponho que, tudo o que seja pequeno, seja distribuído aos convidados em pequenas travessas.

Como assim? – Estranhou Eurísaces.

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Vão passando e oferecendo. É mais elegante e inovador. – Foi a minha proposta.

Também é mais complicado do ponto de vista logístico. – Insistiu ele.

Pago-lhe bem para que faça como lhe digo, Eurísaces, não reclame! – Exclamei. A mulher dele foi mais esperta, abriu os braços e exclamou:

A vestal Emília é que manda!

No final, estava tudo acertado. O casal apareceu no meu novo tablino, no segundo andar da Basílica Emília, com o plano de ação e os orçamentos acordados, com base no número de funcionários necessários.

Ótimo. – Declarei, rodeada de pergaminhos por todos os lados. A minha secretária em nada se parecia ao ambiente de trabalho impecavelmente organizado de Mamerco. Mas era o que se arranjava.

Foi também nesse tablino que recebi a Joaquim, o marido da Ana. Quando as lojas da Basílica Emília foram reabertas, ele pediu-me para ocupar um dos espaços renovados. Aquela parecia-lhe uma boa localização para o seu negócio.

Na época não me pareceu uma ideia brilhante. Primeiro, porque a Basílica ficava numa das pontas do fórum, demasiado perto da Domus Publica e do templo de Vesta, o que implicava colocar lojas de cambistas em espaço sagrado. Segundo, porque ele sugeria pagar-me apenas metade do valor estipulado para uma renda normal no fórum, em troca de um valor variável.

Ou seja, eu recebo uma percentagem do negócio. Se correr mal, eu perco. Se prosperar, eu ganho proporcionalmente. – Resumi após escutar a sua proposta.

Vai correr bem. Confie em mim, vestal Emília. – Pediu o Joaquim.

Vivíamos num período de crise económica, portanto, a sua ideia era arriscada. Ele não tinha conseguido convencer nenhum proprietário a deixá-lo pagar arrendamento variável, ao invés de fixo. Hesitei em aceitar. Para me convencer, Joaquim mostrou-me o meu extrato bancário. Um papiro com contas que nunca mais acabavam, mas cujo final me surpreendeu.

Eu tenho 200 talentos?! – Perguntei, surpreendida. Para mim, era uma fortuna! Joaquim explicou a questão do seu ponto de vista:

A vestal Emília colocou-me como gestor do seu capital e eu percebo de finanças.

Como é que eu passei de 85 para 200 talentos… a gastar dinheiro? Eu devia ter menos do que quando comecei, e não mais. Eu estava confusa. Ele sorriu com sagacidade:

As suas despesas foram realizadas com o seu pecúlio. A vestal Emília nunca mexeu no seu capital de base e eu tenho feito a gestão das aplicações financeiras. Eu sou excelente no que faço, garanto-lhe. Se eu era mulher rica, era também alvo fácil de pessoas mal-intencionadas.

Acredito. Mas ninguém pode saber disto. Prometa-me! – Ordenei a Joaquim. Não era preciso exigir. Ele assegurou-o de boa vontade.

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Eu e a Ana não contamos a ninguém. É segredo. Juro pelo nosso Deus. O casal era muito religioso e tinha palavra. Respirei fundo, mais aliviada.

Está bem. Podem ocupar a loja aqui na Basílica Emília.

Um mês depois, veio ter comigo outro cambista. Expliquei-lhe que tipo de rendas estava a praticar. Ele pensou e aceitou a proposta. Contactaram-me outros agentes económicos relacionados com a banca e a troca de moeda. De repente, a Basílica Emília tinha uma fachada de lojas financeiras. A rivalidade entre eles não lhes destruiu o negócio, pelo contrário, intensificou-o, porque eles tornaram-se mais competitivos.

Dessa época em diante, a alta finança ficou associada à Basílica Emília. Ao fim de uns anos, não havia romano, pequeno ou grande, que não fosse cliente naquelas lojas! Resultado, era uma galinha de ovos de ouro – para eles, para mim e para Roma!

Num dia de sol, a cidade em peso compareceu para a cerimónia de inauguração da Basílica Emília. A mensagem passara de boca-em-boca. A multidão acotovelava-se para assistir aos discursos e dedicatórias, mas sobretudo para participar nas atividades lúdicas que despertavam a atenção do povo e que haviam sido planeadas por mim. Havia muita cor, música, dançarinos e cantores que atuavam na rua. As obras de remodelação foram elogiadas e eu garanti que o empreiteiro e a mulher recebiam os devidos louvores.

Para mim, o mais importante era reabilitar a memória do meu irmão e apresentar os filhos à sociedade como beneméritos, para lhes elevar o bom nome. De facto, eu não estive sozinha a receber cumprimentos e a fazer as honras à casa. Fiz questão que Paulo e Lépido me fizessem companhia naquele momento. Assim eles podiam estabelecer contactos e trocar conhecimentos.

Naquele dia foi inaugurado um novo busto de Concórdia, colocado dentro da Basílica Emília. Espantei-me ao constatar que fora feito à minha imagem. Devo ter enrubescido, pois o calor subiu-me às bochechas.

De quem foi a ideia? – Perguntei baixinho aos meus sobrinhos.

Foi um presente de Mânio, tia. – Avisou-me Paulo.

É a estátua de Emília Concórdia, a melhor vestal de Roma! – Exclamou Lépido. Aquela foi a única frase que a assistência ouviu e aplaudiu.

Tenho de agradecer a Mânio. – Atrapalhei-me, estranhando a oferta.

Ele disse que não era preciso, pois nós tínhamos de arranjar um modelo para o busto e, entre os três, decidimos pelo rosto da tia. – Explicou Paulo que adorava o irmão de Mamerco, que lhe servia de exemplo; tal como o irmão preferia César como modelo de referência.

O que interessa é que a tia está fantástica! – Sorriu Lépido, com os dentes todos. Fiquei encabulada com tanto encómio:

São uns queridos, obrigada.

Não foi Mânio, foi César, quem me apareceu naquele dia, vestido de toga e com o cabelo coroado pela vitória de Mitilene.

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Olá Emília, como estás? – Saudou-me. Ele era verdadeiramente bonito. Mas estávamos separados. Convenci-me que ele só tinha comparecido à inauguração da Basílica Emília por ser um evento público. Não estava ali por mim, mas por ele, para se dar a conhecer, cumprimentar este e aquele, e ouvir bisbilhotices.

Gosto em vê-lo, senador. Bem-vindo. – Saudei com indiferença.

César reagiu desconfortavelmente. Enrolou os lábios para os humedecer. Tentei abstrair-me e comecei a coçar o braço com as unhas. Ele observou-me e pareceu ficar mais calmo. Despedi-me cordialmente e transferi a minha atenção para outros convidados. Ele ficou pasmo comigo e foi-se embora. De resto, a inauguração foi um sucesso!

Eu deslocava-me à Basílica Emília com alguma frequência. Ficava perto do santuário de Vesta e a Ana fazia-me companhia nas rondas, para eu não andar sozinha. À porta do meu tablino mantinha-se um lictor, sempre de plantão. O projeto privado rendia. As lojas estavam muito ativas. Os romanos haviam-se reabituado a frequentar o espaço. Havia sempre pessoas a entrar e a sair para tratar de negócios.

Num dia de lua, a Ana veio avisar-me que ela e o marido tinham um compromisso importante, pelo que regressavam a casa mais cedo. Despedi-me deles com um sorriso.

Pouco tempo depois, alguém bateu à porta do tablino. Pensei que a Ana se esquecera de alguma coisa. Mas quem espreitou à porta foi César. Eu quase tive um ataque de coração! Só depois do choque inicial me apercebi que o lictor não estava com vontade de o deixar entrar. Levantei-me e fui à porta para o receber:

Senador, a que devo a visita? – Perguntei, ao mesmo tempo confusa e nervosa.

Ele respondeu casualmente à pergunta, como se fosse normal subir do rés-do-chão ao segundo andar de uma Basílica, que não teria razão nenhuma para visitar, apenas para bater à última das portas ao fundo de um corredor comprido.

A reunião do Senado acabou mais cedo. Eu caminhava a pé para casa quando passei por aqui. Resolvi dar uma volta pelas arcadas e fui entrando. No dia da inauguração não tive tempo para tomar muita atenção ao edifício. Hoje percebi que as lojas estão todas arrendadas e cheias de clientes. Os vários pisos estão apinhados de obras de arte que não estavam cá antes. Estive a observar a contento. Acusam-me de ser um amante do luxo e da sumptuosidade. Mas eu tenho olhos para ver, não?! Prefiro a qualidade à quantidade e faço questão de elogiar a decoração dos interiores da Basílica, pois é de um bom gosto impressionante. Mas o que é que ele queria? Atirar conversa ao ar?

Obrigada, senador. – Agradeci, encabulada por fixar os seus olhos nos meus. Ficámos em silêncio. O lictor parecia apreensivo. César prosseguiu, incólume:

Aprecio especialmente embutidos e peças de mosaico. Os da entrada da Basílica são extraordinários! Eu próprio coleciono alguns, mas também estátuas e vasos cinzelados e quadros de mestres antigos. Nunca se sabe quanto poderão valer um dia no futuro, não é verdade? – Perguntou, de olhos faiscantes. César queria que eu o deixasse entrar no tablino.

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Se me negasse a fazê-lo, ele continuaria a falar até se cansar? Resolvi testá-lo.

Sim, é verdade. O meu irmão guardava em casa muitas peças de arte, a maior parte das quais eu trouxe para aqui, para as expor ao público. – Declarei com amargo de boca. Não estava confortável com a situação. Mas depois acrescentei. – Foi um legado cultural que Marco quis deixar ao povo de Roma.

Fez muito bem. – Rematou César, fazendo pouco caso do ar preocupado do lictor, que franzia as sobrancelhas.

Ele aguentou firme, sem dar mostras de querer partir. Estranhei o seu comportamento. Não era suposto estarmos afastados? Ele não se despedira de mim? O que estava ele a fazer ali, se não para me atormentar o juízo?

Bom, obrigada pela visita. – Declarei, coçando a nuca. Se as indiretas não haviam funcionado, César estava capaz de tudo:

Se não estiver ocupada, já agora aproveito e conversamos um bocadinho.

Esbugalhei os olhos. Ele fingiu-se desentendido. Abri as palmas das mãos. Ele fez um gesto dúbio. Cocei a cabeça e encolhi os ombros, deixando-o passar. Depois, virei-me para o lictor, com uma explicação:

Ele era amigo do meu irmão. Só quer falar de estátuas, não se demora. Eu já o despacho! Aguarde um pouco por mim e depois leva-me ao átrio das vestais, está bem? Obrigada.

Fechei atrás de mim a porta, toda ela cheia de embutidos, uma autêntica obra de arte! Mas não a cerrei para o lictor a apreciar. O objetivo era ter alguma privacidade, para mandar o visitante dar uma curva! Sentei-me na cátedra, de frente para César, que se entretinha a falar da Basílica e do clima, das nuvens, do vento e do sol. Tive de interrompê-lo, para lhe sussurrar palavras de ordem (falei baixo, pois o lictor poderia estar a escutar atrás da porta!).

Tu não tinhas dito que não podíamos voltar a ver-nos?

Mudei de ideias. – Comentou, com ar maroto. Mas ele era uma criança?

O que estás aqui a fazer, César? – Perguntei, de olhos em riste.

Vim ver-te. – Respondeu, recorrendo a evidências. Suspirou, sentou-se e cruzou as pernas. Remexeu-se antes de cruzar os braços, como se assim expressasse o que lhe custava admitir. Depois disse-me. – Eu estava com saudades tuas.

A sério? Ah! Mas que pena! – Ironizei. – Como está Cinila? E a tua filha?

O rosto de César iluminou-se como se o sol tivesse irrompido pela janela. A princípio, pensei que a causa do regozijo fosse Cinila. Eu estava pronta para lhe gritar aos ouvidos, quando percebi que ele elogiava a filha:

Sou um pai babado! Cesariana é uma preciosidade. Um encanto de menina. Quando chego a casa, basta pô-la ao colo para esquecer as rivalidades no Senado e nos tribunais. Se ela continuar a puxar-me o cabelo vou acabar careca. Mas tem

César e a Vestal 248 Maria Galito

os dedos tão pequenos, que é de espantar! O seu sorriso? Perfeito! Pensando bem, vai ser bonita como o pai. – E riu-se. Ele parecia feliz.

Mesmo admitindo que eu tinha direitos territoriais sobre César, por ter sido a primeira a trocar votos matrimoniais com ele no altar doméstico de Júlia e de me rebelar contra a ideia de Cinila partilhar a vida com ele, fui obrigada a reconhecer e afirmar:

Fico contente por ti. Sempre soube que serias um bom pai.

Sem o desejar, a minha voz transbordara tristeza. Ao aperceber-me disso, tentei disfarçar. Mas baixei os olhos e suspirei, levando uma eternidade a exalar.

Gosto muito da minha filha, Emília. – Comentou César, como se não percebesse porque eu estava desgostosa. – Não podes ter ciúmes da minha Cesariana.

Claro que não, que disparate! Eu vi-a no fórum. É muito linda. Estou genuinamente contente que sejas um bom pai.

Então porque fazes essa cara? – Interrompeu-me, em jeito acusatório.

Porque eu teria gostado que os teus filhos fossem meus! Foi a frase que me ocorreu. Comecei a coçar o braço onde rasguei um laivo de sangue. Detestei-me por isso.

Não tenho outra. – Resmunguei com ironia. Depois tentei arranjar uma desculpa.

Quando dantes me sorrias parecias mais bonita. – Resmungou. Não consegui arranjar serenidade suficiente para me sentar a ouvi-lo.

César vai para casa. Eu tive um dia extenuante. As vestes de sacerdotisa pesam-me. Estou cansada. – Pedi, pois desejava fugir à pressão.

Eu vou. – Respondeu ao desafio, de sobrancelhas enrugadas. Mas não se mexeu.

Passei a mão pelas tranças de cabelo. De repente, lembrei-me que não estava de véu. Eu tinha a cabeça descoberta. Senti-me despida, apesar de estar trajada a rigor.

O nervosismo começou a devorar-me pernas, braços e pescoço. Por um lado, não queria que ele fosse embora aborrecido comigo. Por outro, rebelava-me contra a sua opinião. Senti-me vulnerável, carente de afeto.

César não se levantava. Eu sentia-me fisgada como um peixe pelo anzol. No tablino ouvia-se o respirar forte dos dois e o embaraço era corpóreo. Para piorar a situação, comecei a ficar excitada, como se o meu sangue corresse para ele em desespero de causa!

Aflita, levantei-me e virei-lhe as costas, para ver se o convencia a partir. César levantou-se, caminhou para a luz e colocou uma mão no parapeito da janela. Depois começou a falar de caça. Que tinha combinado ir com o tio Cota ao campo, mas que ainda não cumprira com o prometido por causa do trabalho, mas que assim que pudesse, faria tocaia ao raiar da aurora e umas belas espetadas assadas em fogueira ateada a céu aberto.

Quando eu era miúdo gostava de ir à caça com o meu tio. Nunca mais fui. Na vida um homem anda sempre tão ocupado, para quê? Os prazeres da vida são simples. – Rematou, com voz de mil matizes.

César e a Vestal 249 Maria Galito

Foi a história que me contou. César não dava ponto sem nó, portanto, tentava passar mensagem. Fingi não ter percebido e resolvi encaminhá-lo à porta. Ele passou a mão pela minha cintura, avançou sobre mim e respirou as minhas tranças. Fechei as pálpebras para aproveitar o momento. Eu não sabia se queria que ele se fosse embora. Mas não podia retê-lo no meu tablino. Ele precisava ir-se embora e o quanto antes.

Posso visitar-te de vez em quando? – Perguntou.

É melhor não. – Respondi, enchendo-me de coragem. Não havia condições para ficarmos juntos, nem mesmo para partilhar espaço como amigos e ele partiu.

Passei uns dias horríveis por causa daquele encontro. Sei que chorei desalmadamente nas minhas almofadas. Acordava com as órbitas polposas. O que me obrigava a inventar desculpas para ostentar tão má cara. Mamerco admitiu que a minha tristeza fosse coisa de mulher emocionada pelo casamento do sobrinho que se aproximava.

Compreendo-te Emília. Paulo ainda agora era uma criança e já está tão crescido! Eu era como ele quando era mais novo. – Comentou no seu porte direto. Estava inchado com a perspetiva de organizar um matrimónio com base nos ideais conservadores de que era apologista.

O casamento está marcado para quando? – Perguntei, pois interessava-me saber.

O noivado é hoje. O casamento é daqui a dois meses. – Informou-me, mantendo o rosto sério e compenetrado. – A ceia é na casa do noivo. A minha mulher já para lá foi esta manhã. Ela é despachada, tem muitos contactos e gosta dessas coisas de noivados, festas, comida e roupa. Vai ajudar-te nos preparativos.

Vai liderar o processo, queres tu dizer. – Advertiu-o com argúcia.

Não me meto nisso. Vocês que se entendam. Falei com Fonteia e tens autorização para subir ao Palatino.

Encolhi os ombros. Passei pela cabana para dar de comer a Pales. Levei-lhe cenouras grandes e suculentas. Ele revirou as orelhas peludas de contente. Afaguei-lhe o focinho. Ele revirou o cachaço para receber mais festinhas. Coloquei-lhe a sela, montei-o e não foi preciso motivá-lo a sair. O portão estava aberto e Pales foi a direito, que nem um fuso, a abanar a cauda!

Enfim chegámos à porta dos Emílios, na companhia do lictor, que ainda corria atrás de nós, afogueado. Enquanto os escravos se ocupavam de Pales e levavam o guarda para a cozinha para lhe dar de comer, Amílcar informou-me sobre as novidades. Paulo e Lépido ocupavam-se dos estudos com Gnifo mas Cornélia, na opinião do mordomo, virara a casa do avesso!

Respirei fundo para ganhar coragem. Segui a voz da mulher de Mamerco que ecoava pelas paredes de mármore. Encontrei-a no triclínio a gesticular para o pessoal doméstico. Ela estava de costas, mas os seus cabelos rubros tingidos não geravam dúvidas quanto à sua identidade. O rabo era enorme e redondo. Devia pesar arrobas! Mas era mulher sublime também por ser forte e grande – nos olhos, nas bochechas, no rosto, no corpo e nas expressões. Ela era monumental e ocupava espaço. Ninguém, com juízo, a enfrentava.

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Vestal Emília! Estava mesmo à sua espera. Preciso muito de si. – Foi o seu cumprimento. Deu-me um abraço de urso que fez estalar todos os ossos do meu esqueleto. – Qual prefere, esta ou esta? – Perguntou ao mostrar-me duas toalhas. Nunca vi conveniente em contrariar uma mulher com o dobro do meu tamanho.

A segunda hipótese. – Escolhi, ao depreender que era a sua favorita. Com um pouco de inteligência é possível estabelecer uma relação de confiança com alguém que, de outra forma, nos pode declarar guerra. Sei que Cornélia abriu a boca num sorriso de gestos largos:

Ah! Eu logo vi que tinha bom gosto! – E os seus cabelos reagiram em esplendor.

Deixei-a entregue aos seus afazeres, que incluíam tomar banho, perfumar-se, vestir-se, arranjar o cabelo e maquilhar-se. Eu fui afogar-me em papiros de contas e relatórios de atividades das propriedades enviados pelos caseiros.

Amílcar, supostamente mordomo mas, na prática, faz tudo lá de casa, sentou-se a meu lado a resolver os assuntos que Lépido, ainda menor de idade, não conseguia resolver.

Chegaram cinquenta ânforas de vinho de Circeo? – Perguntei, ao reparar na lista.

É verdade, vestal Emília. Uma delícia aquele lictor dos deuses.

Circeo fica onde? – Tentei saber.

Num promontório. – Resumiu Amílcar. Apercebendo-se que a informação era insuficiente, acrescentou. – O menino Lépido tem villa rusticae em Circeo. Paulo em Caieta. Mânio em Fórmia. Ficam relativamente perto umas das outras.

Ah, estou a ver… – Disse-lhe. Enfim, mais ou menos! Eu nunca tinha colocado um pé fora das muralhas e não era a melhor em geografia.

Até há pouco tempo, a propriedade dava prejuízo. As suas terras rochosas davam pouco rendimento, apenas algum vinho. Híspalis meteu toda a gente ao barulho e aumentou a produção. O vinho já era bom, agora está melhor. Chegaram algumas ânforas, no outro dia. Ouvi a história com agrado.

Híspalis está a desenrascar-se bem, portanto. Eu tinha bom pressentimento em relação a ela. É boa feitora. O meu sobrinho mais novo precisa de pessoas competentes à frente das propriedades. Mantenha-me a par da situação, Amílcar.

Prosseguimos com as contas. Eu estava preocupada com as dívidas contraídas quando Marco ainda era vivo. Tinham de ser saldadas o quanto antes.

Os meus sobrinhos vieram espreitar-nos ao tablino. Paulo ainda bateu à porta. Lépido avançou, por ali a dentro, sem cerimónias. Reparei que ele estava mais alto. A idade mudara-lhe a voz e moderara-lhe os gestos. Falava com outro traquejo. Parecia um jovem advogado, emotivo mas composto. A bem da verdade, estava a ficar bonito.

Paulo aproximou-se com parcimónia, mas não se livrou de levar beijinhos nas bochechas. Era um jovem calmo, mais baixo em estatura do que o irmão, mas responsável, sereno e de porte elegante.

César e a Vestal 251 Maria Galito

Amílcar deixou-nos a sós, com uma vénia e um sorriso. Foi então que abordei o tema que queria discutir com os meus sobrinhos, há já algum tempo:

A vossa mãe foi convidada para o casamento? – Perguntei, mais sabendo que não. Lépido hesitou numa resposta, mas Paulo foi perentório ao afirmar:

Eu não a quero cá. – Declarou, sem tréguas.

Mas é tua mãe, querido. – Recordei-lhe com carinho, passando-lhe a mão pelos cabelos. Ele sentou-se a meu lado, enrolando-se a mim como o irmão.

Era uma tristeza! Apuleia, à conta da ideologia, perdera o estatuto social, o marido e dois filhos, esbanjara o dote e não podia contactar Lépido e Paulo. Caíra na desgraça. Devia ser horrível para ela!

Mamerco chegou pouco depois. Ficou maravilhado com a mulher, que apareceu no átrio como se tivesse descido do Olimpo. Aguardei pelos convidados. As cortesias foram mantidas, confirmou-se o dote da rapariga e o matrimónio foi estipulado sob regras conservadoras.

Os jovens eram ambos patrícios. Paulo já vestia a toga viril e a rapariga era dois anos mais nova. Nesse serão estavam muito compenetrados e enrubescidos. Deixei escorrer uma lágrima, quando houve troca de presentes. Paulo colocou o anel de ouro no anelar da menina, da esquerda. No fundo, a cerimónia foi tudo aquilo que poderia ter sido o meu noivado com César.

O casamento de Paulo foi organizado sob orientações de Cornélia. Nesse dia, fui diretamente do templo para a casa dos Emílios Lépidos, quase tarde demais para assistir ao evento. Compromissos religiosos haviam-me impedido de chegar mais cedo.

Mamerco confirmou-me que a cerimónia seguira à risca os preceitos tradicionais. Sacrificara-se uma ovelha e sem manchas e as suas entranhas tinham sido analisadas ao pormenor, concluindo-se auspiciosas. O banquete oferecido aos convidados tivera mesas cheias de tudo o que era do bom e do melhor.

Eu só vi Paulo e a esposa trocaram votos matrimoniais perante dez testemunhas que gritaram Feliciter! A rapariga despediu-se dos pais, rodeada de flautistas e cinco portadores de archotes, com os cabelos enrolados em seis tranças tapadas com um flammeum, um véu flamejante da cor da abóbora para cobrir o rosto de virgem, uma coroa entrançada de verbena e manjerona. Vestia túnica sem debruns apertada por um cinto de lã de nó duplo, sobre pala cor de açafrão e colocara sandálias a condizer. Acompanhavam-na três raparigas, com a roca e o fuso, símbolos das virtudes domésticas. A mais velha, a pronuba, entrou com a noiva no quarto nupcial, para a ajudar a preparar-se para o marido, para lhe dar os últimos conselhos.

Lépido estava junto do irmão – com o paraninfo, o archote nupcial feito de espinheiros entrelaçados – e de Apuleia. Fiquei contente por saber que Paulo convidara a progenitora para a cerimónia e que nem Cornélia nem Mamerco tinham atacado a matrona com comentários depreciativos. Apuleia estava feliz pelo filho. Mãe é mãe!

César e a Vestal 252 Maria Galito

Os convidados dispersaram após trocarem os últimos cumprimentos. Tal como fizera no matrimónio de Mamerco, retirei o véu de vestal e entreguei-o à mulher de Paulo, como talismã de boa sorte para o casamento. Gesto que foi apreciado.

Despedi-me dos meus sobrinhos. Deixei Lépido entregue aos seus sonhos e Paulo à sua noite de núpcias.

Paulo e a mulher casaram como eu gostaria de me ter unido a César, segundo os rituais patrícios, na companhia da família mais chegada.

Alguns meses após a nossa separação, César apareceu de novo na Basílica Emília. Eu já tinha visto muita coisa assim, mas uma coisa assim eu nunca tinha visto!

Mas será possível? O que estás aqui a fazer? – Perguntei-lhe com mãos na cintura.

Precisamos falar, é importante.

Foi voz de homem que saiu da sua boca. Alguma coisa de grave acontecera. Disponibilizei-me ao diálogo. O lictor foi-se embora e desceu até ao rés-do-chão do edifício. Ao assegurar-me que ele partira, fechei a porta atrás de mim. César sentou-se, com cara de quem tinha sido atropelado por uma carroça!

O que se passa? – Questionei, ainda em pé.

Estou a ser ameaçado de morte. – Respondeu simplesmente. – Andam capangas a rondar o bairro de Subura. Tenho uma casa cheia de mulheres e elas estão em pânico. A minha mãe tratou de aumentar a segurança da ínsula, mas pagou com as suas poupanças, pois já se esgotaram as gratificações financeiras que recebi por ter levado dois casos a tribunal. Enfim, sinto-me responsável pela situação a que sujeitei a minha família. – Declarou sem parar para respirar.

Avisei-te há uns meses sobre as ameaças de Dolabela contra ti.

Sim, eu sei. Dolabela e Híbrida conspiram contra mim.

Ouvi dizer que o teu parente foi condenado, mas subornou os tribunos da plebe a seu favor. O processo em tribunal foi anulado e ele escapou à punição, não foi?

Híbrida está refastelado em casa, neste momento. – Ironizou César.

Para ele é mais importante tu seres mariano… do que seres da família?

É complicado, Emília, por causa das proscrições do meu tio.

Eu sei. As cabeças de Lúcio e Vopisco foram espetadas no fórum após a invasão de Mário. Era certo que haveria represálias, mais cedo ou mais tarde, mesmo que tu nada fizesses para o merecer! O que pensas fazer? A sua resposta foi simples e pragmática:

A minha família incorre em perigo enquanto eu estiver em Roma. A minha surpresa foi total. De repente, senti um aperto no peito.

Vais-te embora? Para onde?

Para Esmirna. Vou ter com Rutílio… outra vez. – Suspirou, fechando e abrindo os olhos com força. – Oficialmente vou ter aulas com Mólon, o melhor dos professores de retórica e filosofia da atualidade. Como sou advogado, ninguém

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vai estranhar a minha intenção de aperfeiçoar a técnica de falar em público. Até preferirão que eu vá e desapareça! – Acrescentou. – Sinto-me um falhado….

Mostrei-me carinhosa e compreensiva. Ele precisava de um reforço positivo. Coloquei as minhas mãos nas suas, enquanto ele respirava e refletia. Os seus dedos entrelaçaram-se nos meus. O sangue correu mais depressa pelas minhas veias. Ainda pensei em oferecer-lhe ouro, mas não quis humilhar-lhe o orgulho patrício. Eu podia observar os seus olhos a mexer, enquanto a cabeça borbulhava de atividade. A minha preocupação era só uma:

Quando regressas?

Não sei. Levei a mão à cabeça que subitamente doía. Suspirei, entristecida.

Vieste despedir-te de mim. Outra vez…

Sim, Emília. – Reconheceu. Suspirei, conformada.

Lutavas contra forças maiores do que tu. Deixa lá, o importante não é ganhares no princípio, é venceres no fim. – Aconselhei, cheia de afeto para lhe dar.

César agradeceu a resposta, puxou-me de encontro a si e eu fui. Abraçou-me pela cintura. Colei o rosto escarlate ao seu. Senti a passagem dos seus dedos pelas minhas costas. Transmiti-lhe alento e ele reabasteceu a sua força na minha energia.

Vou ter saudades tuas, meu bem. – Sussurrou-me nas tranças.

O beijo brotou naturalmente quando as nossas bocas se tocaram. As línguas entrelaçaram-se como ondas do mar. As nossas conchas uniram-se, até César pegar-me no rosto com as mãos. Bebeu a lágrima que corria pela minha bochecha. Aconchegámos as bochechas quentes como almofadas e tocámos os narizes para respirarmos a alma um do outro. Era a despedida.

Eu vou, mas volto. Confia em mim. – Disse-me e eu acreditei.