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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo XVI (65-64 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo XVI

(65-64 a.C.)

Maria Galito

2017

César e a Vestal 357 Maria Galito

Capítulo XVI

689-690 AUC

Tudo tem princípio, meio e fim.

O senado reuniu-se para dar as boas-vindas aos novos cônsules e o tio de César assumiu funções num mês chuvoso de Jano. Os deuses lançaram enxurradas de água benta, logo nos primeiros dias do ano, para apaziguar o ímpeto dos homens e para Catilina não ambicionar o poder a qualquer custo! A tensão mantinha-se no ar. O abutre continuava a rondar, a manipular o sistema, mas as suas ações estavam mais ou menos neutralizadas. Públio e Autrónio enfiavam-se em casa, pois já não tinham lugar na Cúria Hostília. Mânio estava a salvo e, assim que escampou, partiu para as suas propriedades em Fórmia, a galope de cavalo. Eu sentia-me descansada com os meus sobrinhos Lépido e Paulo e, no geral, a situação parecia normalizada.

Metelo Pio agendou uma assembleia do colégio dos pontífices, logo para o início do ano. Cheguei cedo à Cúria Régia, com os muitos rolos de papiro que o pontífice máximo me incutira de levar e, entretinha-me a organizá-los, quando ouvi alguém chegar.

Virei-me e reconheci César. Ele não estava bem-disposto! Observava-me da porta, com postura férrea. Era a primeira vez que estávamos sozinhos, desde que eu lhe entregara o raminho de oliveira, portanto, preparei-me para o pior quando ele avançou na minha direção.

Portanto, foste cantar a Saturnália para as portas do Senado. Ele queria uma reação minha? Resolvi ser simpática.

Ainda bem que gostaste. – Saudei, fingindo conferir-lhe pouca importância.

Eu não disse isso. – Irritou-se, com olhos ferrados no alvo. – Como é que os senadores conseguem discursar e passar projetos de lei, com a população aos berros à porta da Cúria Hostília, podes explicar-me? As pernas quase me falharam. Mas não verguei e disse-lhe:

A República deve organizar-se com as vestais e o povo por perto. Ele entrou no meu espaço de conforto, com a sua presença física:

O que foste fazer todos aqueles dias à Cúria Hostília, Emília? – Exigiu ele saber, soletrando cada palavra, com voz de mil matizes.

Fica a três passos de onde eu moro. Tu vives em Subura, o que lá foste tu fazer? – Desconversei. César parecia um vulcão prestes a entrar em ebulição:

Emília, não brinques comigo! Porque distribuíste ramos de oliveira? Responde! – Era uma ordem.

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Foi uma oferta de paz para incentivar os senadores a darem-se bem. – Admiti, pois era verdade. Mas também o enfrentei. – Sou a vestal máxima de Roma. Enquanto eu ocupar o cargo, ninguém morre nem mata ninguém, que eu não deixo! – Declarei solenemente. – Sempre que há banhos de sangue na cidade, uma sacerdotisa perde a vida e eu não quero morrer, César.

Fez-se silêncio. Ele parecia incomodado com as minhas palavras. Quiçá pensasse que eu inventaria desculpas para o meu procedimento. Mas eu trocava-lhe sempre as voltas e ele precisava de tempo para refletir, para pensar no que fazer a seguir.

Nunca deixarei que mal nenhum te aconteça, Emília. – Disse-me.

Baixei os olhos. Agora era ele que me atacava pelo franco. César deu mais um passo na minha direção e ficou com o rosto a dois dedos do meu. Tê-lo assim tão perto era avassalador! Mas fui buscar forças para me reerguer a cabeça e agradecer.

Obrigada, César. Ele aproveitou para mudar de tom e marcar território.

Eu não te quero junto ao Senado, percebeste? É o lugar mais inseguro de Roma. Portanto, não te aproximes! – A voz era de comando. Engoli em seco, tão direita como uma estátua de mármore.

Está bem. – Retorqui. Que remédio! Ele digeriu a minha resposta. Respirou para cima de mim e apostou noutra via:

Mamerco convidou-me a viver no Palatino… supostamente, porque tu o aconselhaste nesse sentido. É verdade? Estremeci. Ele estava à espera de que tipo de resposta? Ousei falar o que pensava.

A tia Júlia queixava-se de ter sido expulsa do Palatino e tu nunca gostaste de Subura. Sim, fiz a proposta. Pensei estar a contribuir para a tua felicidade.

Porque te metes na minha vida? – Exigiu saber. O meu coração abriu-se e falou demais:

Se não te faço feliz, talvez Pompeia faça. Casaste com ela, não foi? Ele reagiu como se tivesse levado uma bofetada! Remexeu as asas de águia:

Pompeia e eu temos um casamento político. Nem nos damos bem!

Lamento. Ele aproximou-se novamente de mim:

Quem disse que tu não me fazes feliz?

Tu. – Rosnei. Virei-lhe as costas e fingi não dar relevância ao facto. – Isso agora não importa. Sou sumo-sacerdotisa e tu deves-me respeito.

Ele não falou mais comigo.

No fórum, circulavam sempre notícias sobre César, por ser edil curul e investir em obras públicas. O seu sorriso estava estampado nas principais ruas da cidade e, em carisma, exultava em todas as direções!

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Mânio regressara a Roma durante algum tempo, para testemunhar em tribunal. Fui informada sobre o assunto por Perpena, que assistira às suas respostas, em julgamento. Mas não o vi. Ele não me procurou, nem para me agradecer o sacrifício que eu fizera por ele, durante a Saturnália anterior. Ele era orgulhoso, inflexível, não queria ceder, nem perdoar. Os seus ciúmes de César eram impressionantes! Ele nem conseguia residir em casa do irmão, para não correr o risco de esbarrar com o rival. Enfim, pensava eu. Em alternativa, ele evita-me por já não gostar de mim. O que era mais certo.

O tempo estava frio! O inverno desmotivava os cidadãos, até de se divertirem e não havia jogos, nem festas pela cidade. Nada que atrapalhasse o sobrinho do cônsul sénior!

Emília lembras-te de haver troféus de Mário no fórum? – Perguntou-me Licínia, ao entrar no templo de Vesta, vindo apressadamente da rua. Bocejei em resposta, pois estava cheia de sono.

Sim, claro. As armas e estandartes das vitórias sobre o rei Jugurta, os teutões e os cimbros. Foram destruídos por ordem de Sila durante o período da ditadura.

César mandou fazer cópias dos artefactos.

Ah sim? Como sabes? – Estranhei.

Porque ele colocou-os nos sítios originais, durante a noite.

A sério?

Acredita em mim. Vem ver!

César foi muito aplaudido por ter enfrentado os políticos corruptos e quizilentos do Senado e ter exposto os troféus do herói sete vezes cônsul. Houve relatos de veteranos do exército mariano a chorar de emoção perante os estandartes dos teutões e dos cimbros, contra os quais haviam lutado. Alguns até fizeram excursões a Roma, para ver os espólios.

Mas as filas de gente… são enormes! – Exclamei surpreendida, ao dar com a via-sacra a abarrotar de peregrinos.

Os optimates criticaram o sobrinho do falecido Mário. Consideraram, a sua atitude, uma afronta! Catulo berrou uma manhã inteira contra ele no Senado, chegando a declarar que

César, primeiro escavou as defesas da República, agora desfere nela um assalto direto! O sobrinho de Mário respondeu, com elegância, aos ataques do colega. Explicou que tentara agradar aos muitos admiradores do seu tio. Jurou não querer usurpar o poder. Mas Catulo, que era igualmente pontífice, não se calava de furioso com a impertinência do popular e arrastou a sua frustração para o colégio dos pontífices.

Isto é um ultraje, um insulto, uma ofensa! – Foi a poesia com que Catulo nos presenteou, logo à entrada da Cúria Régia.

O pontífice máximo gaguejava terrivelmente contra Mamerco, a perguntar onde é que eu estava, que não aparecia! Ele mal se organizava sem mim. Enfim, era perfeitamente capaz de se desenrascar em qualquer situação. Não precisava dos meus serviços. Mas estava a ficar velho e sem paciência para políticos e sacerdotes. Havia nele resistência às funções que exercia e sentia-se mais seguro quando eu estava por perto.

César e a Vestal 360 Maria Galito

Emília! Vem cá, depressa. – Exclamou Metelo Pio, sem gaguejar, com toda a voz que tinha, suspendendo assim os trabalhos, sem salamaleques.

A assembleia concentrou as suas atenções em mim e eu fixei os olhos no pontífice máximo. O homem estava tão aliviado por me ver, que nem sei o que parecia! Mandou calar Catulo. Este ficou sem pio e sentou-se.

Lamento pontífice máximo. – Desculpei-me pelo atraso. – Estive no templo até agora, pois houve uma emergência a resolver…

O fo-fogo apagou-se?

Não, claro que não. – Respondi imediatamente.

Então na-aão interessa. A-ajuda-me aqui. – Atalhou, apontando para um papiro.

Sentei-me ao lado de Metelo Pio. Tentei ser discreta. Mas César estava na reunião e observava cada gesto meu. O que é que ele queria? Devia estar furioso comigo. O melhor era não ligar-lhe.

A agenda de trabalhos foi retomada, com rigor militar. A partir do momento em que o pontífice máximo sabia o que devia dizer e fazer, era caminho andado para agilizar os trabalhos e terminar a reunião em três tempos.

Chegaste atrasada, porquê? – Perguntou-me César, antes de sair. – Estás bem?

Sim, ando só nas minhas pesquisas. Não estou doente. – Apressei-me a explicar.

Está bem. Até á próxima. – Despediu-se, alisando, para a testa, os cabelos que quase não tinha!

Eu chegara atrasada à assembleia de tanto vasculhar no pó dos arquivos das vestais. Eu queria conhecer as histórias de todas as mulheres que me haviam precedido naquele templo. Eu preenchia os meus tempos livres a descobrir as suas histórias!

O que encontrou, vestal máxima? – Indagou Licínia, quando espreitou o Penus.

Muita coisa! Já mudaste o madeiro no fogo sagrado?

A lenha ainda aguenta…

Não sejas preguiçosa, rapariga. Vai cuidar do lume e depois, se quiseres, podes vir ter comigo e eu conto-te as novidades.

Ao que parece, tinha havido incompatibilidade de critérios na aplicação dos castigos, ao longo dos séculos. Por exemplo, a vestal Postúmia fora criticada por ser vaidosa, falar livremente e vestir com primor. Porém, fora absolvida das mesmas acusações pelas quais, cinquenta anos depois, Minúcia fora condenada. Postúmia fora admoestada num ano em que o irmão perdera uma guerra que colocara em risco os romanos. Minúcia morrera por ter sido a primeira vestal plebeia.

Nos registos, encontrei duas vestais Cláudias que chamaram a minha atenção! A primeira desafiara o poder tribunício para salvar o pai.

O que aconteceu? – Perguntou Licínia, sentada ao lado de Arruntia. Elas tinham olhos esbugalhados de curiosidade:

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Cláudia saltou para a carruagem do pai que desfilava em triunfo.

Porquê? – Insistiu em saber Licínia.

Para o tribuno da plebe não apear o veterano de guerra, nem acabar com o cortejo.

Porque haveria ele de fazer tal coisa? – Estranhou Licínia.

Diz aqui que o pai de Cláudia insistira em celebrar o triunfo sem autorização do senado. Portanto, o tribuno da plebe tentou impedi-lo de cometer uma ilegalidade.

Então foram todos hereges. – Cerrou Arruntia. Ela falava pouco, mas dizia muito.

O auxílio prestado pela vestal, ao pai, foi alvo de críticas. Mas ela não morreu por isso, felizmente. – Conclui, desenrolando mais o papiro, para ler a coluna de texto seguinte.

E esta é quem? – Quis saber Licínia, apontando com o dedo.

A outra Cláudia era mais antiga. Vivera nos tempos da segunda guerra púnica! Era a quinta filha de um pai virtuoso. Ficou conhecida em Roma como matrona optimus vir. Após cumprir trinta anos do sacerdócio, casou, constituiu família e morreu com fama de castissima femina. Mas, enquanto sacerdotisa, passara por dificuldades!

Em tribunal, Cláudia V foi acusada de ser vaidosa. – Constatei. O que era ridículo! – Ela provou a sua inocência através de um prodígio. Ao que parece, as suas preces ajudaram a desatravancar uma embarcação.

Como é que ela desencalhou um barco? – Espantou-se Licínia.

Ninguém conseguiu descobrir. Por isso é que foi considerado um milagre! Desenrolei mais o papiro, com Licínia a espreitar a nova coluna de texto:

Está aqui uma vestal… com o teu nome, Emília.

Pois está. – Reconheci.

De facto, uma homónima minha deixara apagar o fogo sagrado e, por isso, disseram que ela era impura. Sobreviveu às acusações, porque lançou o véu sobre os madeiros. O que reacendeu o lume, para júbilo da cidade!

Túcia também foi constituída arguida. Para provar a sua inocência, foi buscar água ao Tibre, com um objeto perfurado. Este não verteu pelo caminho! O facto foi considerado um prodígio. Foi exatamente isso que eu expliquei às minhas alunas:

O povo absolveu Túcia, admitindo que só uma mulher casta e sob a proteção de Vesta seria capaz de transportar água numa peneira!

Mas isso é fácil de fazer? – Estranhou Licínia, para minha surpresa.

Como? – Indaguei, levada pela curiosidade.

Com um fundo falso. Aparentemente, é uma peneira, mas tem uma base da cor da madeira, que não se vê à distância e que pouca água deixa passar. – Comentou, até ver uma ruga no meu rosto. – Foi um segredo que a minha avó me contou. – Riu-se.

As vestais Opímia e Florónia foram acusadas de poluir os rituais religiosos. Foram torturadas durante o processo de inquérito. Os seus amantes foram flagelados pelo pontífice máximo. Uma delas suicidou-se. A segunda foi enterrada viva.

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A lista de transgressoras não terminava aqui. Para obter mais informação, foi necessário consultar outro rolo de papiro, enrolado em três voltas de corda e, portanto, difícil de abrir. Mas, portanto, outras sacerdotisas de Vesta foram acusadas de realizar rituais conspurcados e estas foram as seguintes:

Pinária foi castigada porque o rei Tarquínio Prisco queria dar uma lição de moral à família dela. – Conclui, depois de ler os documentos.

E Ópia? – Espreitou Licínia, com olhos em bico.

Ópia foi sacrificada depois dos romanos terem perdido a guerra contra os Volscos.

Que má sorte foi a de Orbínia? – Foi a curiosidade de Licínia.

A peste alastrava em Roma. Muitas mulheres e crianças sucumbiam à morte e a cidade pensava-se castigada pelos deuses. Para purificar o pomério, os pontífices sacrificaram Orbínia. Sextília era sua contemporânea e foi condenada à morte, pelo mesmo. Caparrónia, nem aguardou pelo veredito final do colégio de pontífices e enforcou-se. – Resumi e elas olharam para mim com preocupação.

Alguma delas foi castigada por ter perdido a virgindade? – Perguntou Arruntia.

Não creio. – Respondi.

Os paterfamílias hesitavam em entregar as filhas a Vesta porque o sacrifício das

sacerdotisas servia para expurgar a cidade e elas não eram condenadas à morte

apenas quando perdiam a virgindade ou cometiam ilegalidades. Todos os males da sociedade podiam ser-lhes imputados, mesmo que nada fizessem para o justificar. O cargo até podia ser prestigiante e a mulher beneficiava de privilégios especiais, mas o fator risco era altíssimo!

Eu era a vestal máxima de Roma. Enquanto líder, era a mais indefesa das sacerdotisas, porque tinha os pés sobre uma corda que espreitava o abismo e da qual podia cair a qualquer momento! A minha vulnerabilidade era grande e a sensação claustrofóbica!

Mas eu orava, para não ter medo e a deusa, de vez em quando, deixava-me sorrir. Por exemplo, o meu aniversário desse ano foi uma festa! A cidade estava embelezada como há muito não se via. Os quatro edis competiam entre si e Roma beneficiava com isso, pois tinha dois plebeus e dois patrícios a tratar dela e a dar-lhe música!

Que o próximo ano seja próspero!

Pediam os crentes, ao passar pelo santuário de Vesta, com as cores do futuro. É que o calendário político começava no mês de Jano, mas era preciso esperar que Marte abrisse alas à Primavera e às marchas militares!

Viva Ana Perena! Que morra um novo ciclo e nasça outro, mais feliz. – Louvavam os transeuntes, na via-sacra.

Como era uma cerimónia ao ar livre, as pessoas merendavam junto ao Tibre – em especial os casais formados, um mês antes, nas festas da Lupercalia! Organizavam procissões e as vestais oravam ao longo do percurso, em altares pré-definidos, que representavam as tribos de Roma.

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Eu acenava à multidão e sorria. Perpena também. Popília e Arruntia pareciam desconfortáveis naquele registo. Licínia e Fábia nem se atreviam a aparecer nos cortejos, com medo dos apupos da multidão – por terem sido acusadas, anos antes, de má conduta!

Na Liberália libava-se com vinho. – Gritava-se nas ruas de Roma.

O povo celebrava aqueles dias de festa em banquetes públicos, nas tabernas e junto ao Tibre. Eu não podia beber. Mas Lépido servia, à família, o licor dos deuses que fluía mansamente das ânforas de Circeo. Foi o que ele me explicou, quando me veio cumprimentar, na companhia do irmão, da cunhada e do sobrinho, mas também de Mamerco e de Cornélia.

O povo adora-a! Muitos parabéns, a tia está um espetáculo! – Exclamou Lépido, o primeiro a saudar-me com um sorriso de orelha a orelha. Paulo corrigiu-o imediatamente:

Uma cerimónia religiosa não é teatro e a tia não é uma atriz. Vê se tens juízo! O irmão mais novo não lhe fez caso e perguntou-me diretamente:

Para o ano já não é vestal. Vai passar o seu aniversário em nossa casa? Lépido tinha boas intenções. Mas o irmão conhecia melhor as regras do sistema:

A tia é uma vestal, não pode ir viver para a nossa casa no Palatino.

Claro que pode, a casa é minha. – Atirou-lhe Lépido convictamente.

Calma, sobrinhos. – Pedi-lhes. Depois perguntei, casualmente por Mânio.

O meu irmão mantém-se em Fórmia. Não sei o que ele tem! Quase nunca aparece. Escreve-me pouco. – Queixou-se Mamerco.

Envia-lhe mensagem, homem! Diz-lhe que venha visitar-nos.

Está bem, Cornélia. Eu vou fazer isso! – Concordou Mamerco, que lhe fazia as vontades todas.

Depois das festividades, voltei à vida normal de sacerdotisa. Portanto, levei Pales à Porta Capena, como era costume, com duas vasilhas de barro, uma em cada alforge, para irmos buscar água à fonte. Ao passar pelos bairros, as janelas acenavam-me ao passar. Havia quem corresse em minha direção, só para agradecer a ajuda recebida. A todos eu sorria, inclusive às crianças que me rodeavam, pelo caminho até ao destino.

Foi então que reparei em César. Estava junto à muralha. O que estava ele ali a fazer? Respirei fundo. Decidi não me deixar afetar pela sua presença. Peguei na bilha vazia e aproximei-me da fonte. Ele aproximou-se de mim, com uma mão atrás das costas. O que escondia ele? Aguardei, curiosa, pela revelação do mistério.

Feliz aniversário boneca. – Disse, entregando-me uma efígie caseira de cabelos escuros, corpo de madeira e túnica de trapos entrelaçados, muito bem costurados com um lacinho púrpura. – Foi a minha filha que fez e envia-te um beijinho.

Apanhou-me de surpresa! Eu tinha lançado a minha boneca ao Tibre, antes de ingressar no templo de Vesta. Ele agora dava-me uma nova. Ao contrário da primeira, costurada pela minha mãe e com cabelos louros, esta tinha cabelos morenos, como os meus e tinha sido feita por Cesariana, a filha adorada de César, que tinha doze anos. Era uma oferta

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bonita e profundamente enternecedora. Fiquei tão comovida com o gesto, que as lágrimas me espreitaram pelos olhos pestanudos.

A tua filha foi uma querida ao dar-me a boneca. – Agradeci.

César limpou-me as lágrimas com o dedo. Tentei recuperar da atrapalhação. Esperou que eu olhasse para ele, para me retribuir a gentileza:

Não te quero a chorar, mas a sorrir, Emília. – Pediu. Depois afastou-se.

Enquanto edil, César era curador da via Ápia, a mais antiga e movimentada das nossas estradas. Todos os caminhos levavam a Roma. Assim cantava o povo! Mas a calçada que descia em direção a sul era a mais apreciada e toda a gente andava nela! Ligava Roma a Cápua e os meus sobrinhos percorriam-na sempre que se dirigiam às suas propriedades em Caieta e Circeo. Mas os buracos do pavimento engoliam as rodas das carroças, um sarilho que entupia o trânsito!

A via Ápia precisava de manutenção permanente e tinha curador próprio, eleito todos os anos. Quando César foi incumbido dessa missão, não se atrapalhou como a maioria. Não sucumbiu ao cansaço, no primeiro mês em funções! Considerou o desafio estimulante! Portanto, dava gosto vê-lo a despachar trabalho! E ele lidava ao mesmo tempo com engenheiros, empreiteiros, pedreiros e trolhas, estucadores, escultores, pintores e carpinteiros. Negociava com diferentes prestadores de serviços. Batia à porta de lojas e ofícios. Mandava limpar os túmulos. Não se esquecia de nada!

Enquanto responsável por uma artéria pulmonar de Roma, ele estava constantemente a abrir os cordões à bolsa. O ouro fluía-lhe das mãos como água! O dinheiro que recebia dos clientes não dava conta do recado. As dívidas a Crasso e a outros prestamistas avultavam-se (também por causa dos juros em atraso!). Portanto, ele andava sempre falido! As pessoas nem suspeitavam que ele tinha graves problemas financeiros, porque César era superior às coisas mundanas e era um mão largas! Ele fingia ter o que não tinha.

Ainda fiquei a assistir àquele espetáculo, mas regressei ao fórum, levando comigo a minha boneca de cabelos morenos. Assim que cheguei, fui avisada da morte de Apuleia. A mãe de Paulo e de Lépido sucumbira a doença prolongada, na vila rústica em que vivia, fora de Roma.

Subi imediatamente ao Palatino para acompanhar os meus sobrinhos naquele momento de dor. Os cavalos estavam a ser aparelhados e Paulo despedia-se da sua pequena família, quando o mais novo me viu e abraçou.

Recordo quando éramos crianças e vivíamos todos juntos, com a mãe, o pai, Cipião e Regilo. – Confessou Lépido, tristonho.

Quando é o funeral? – Perguntei, passando a mão pelos seus cabelos.

Daqui a dois dias. Levamos um dia de viagem. Dá tempo. – Assegurou Lépido. Eu não podia ir com eles, pois não era costume as vestais saírem de Roma.

Está bem. Façam boa viagem. – Desejei-lhes, de mão dada ao filho de Paulo.

Cuidado com as tocais e os ladrões. – Pediu a mulher de Paulo.

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Nós regressamos sãos e salvos, não se preocupem. – Assegurou Lépido.

Os meus sobrinhos cumpriram a promessa, mas chegaram mais tarde do que seria de prever. Cerca de um mês depois, pois fizeram questão de tratar da casa da mãe e resolver as pendências burocráticas associadas ao testamento e às heranças.

Os dias passaram e desfilaram no calendário, até ao mês de Juno. Entrei para a cozinha, com Perpena e Popília, para confecionar mola salsa para os sacrifícios, enquanto Licínia e Fábia se encarregavam do fogo sagrado. Arruntia preferia varrer e limpar o santuário.

Nesse ano, Aurélia visitou o nosso santuário durante a Vestália. Trouxe com ela as três netas, filhas de Julinha. Orou à deusa, com os cabelos grisalhos caídos pelas costas, como era costume. Também esteve a falar comigo, enquanto as meninas se sentavam nos degraus do templo, a rir e a olhar para os pés, que estavam sujos, pois era tradição as mulheres entrarem descalças em espaço sagrado.

A meio da conversa, relembrámos a última ceia em honra de Bona Dea. Mas não abordámos apenas a confusão que nela se gerou. Eu pedi informações sobre o que acontecera às vestais Emiliana, Liciniana e Marciana. Após demoradas negociações e de eu prometer segredo, isto foi o que Aurélia me disse em confidência:

Sou da idade do seu falecido irmão, portanto, eu tinha sete anos quando se realizaram os julgamentos. A primeira condenação ocorreu um dia antes da Saturnália e as outras duas antes da Vestália seguinte.

Chegou a conhecê-las?

Sim, pois a minha mãe e futura sogra eram vizinhas. Marciana frequentava a nossa casa. Mas eu, na época, era muito nova. Só mais tarde, quando casei, é que soube da história em pormenor.

As vestais eram culpadas ou inocentes? No fundo era o que me interessava saber. Aurélia garantiu-me:

As famílias fizeram de tudo para as salvar. Tenho a certeza absoluta disso.

Então porque foram condenadas? – Insisti em saber. A mãe de César surpreendeu-me com verdades que eu, até então, desconhecia:

Comprovou-se que elas não eram virgens, porque as três estavam grávidas. A barriga de Emiliana cresceu primeiro e foi condenada por isso. As outras duas pensavam que escapavam e foram absolvidas em primeira instância, mas os ventres dilataram e foram novamente a julgamento, poucos meses depois.

Essa informação não está na documentação oficial.

É natural. – Declarou Aurélia, para meu espanto. – As famílias, não conseguindo salvar as vestais, tentaram resgatar os bebés. Suprimiu-se muita informação, que não veio a público, nem foi registada, para proteger as crianças de futuras represálias. Como sabe, melhor do que eu, eles lidavam com tabus religiosos!

Portanto, nasceram três bebés. – Concluí.

Não sei se as três crianças sobreviveram. – Fez questão de frisar. – Só posso falar de Márcio, que foi adotado pelo irmão de Marciana.

César e a Vestal 366 Maria Galito

Márcio foi adotado pelo tio.

Exato. O irmão da minha sogra assumira funções consulares, quatro anos antes do primeiro julgamento. Cumpriu o mandato e, quando lhe atribuíram o governo de uma província, levou o filho com ele. O rapaz até era corajoso, mas inexperiente, pois tinha vestido a toga viril três anos antes e morreu em batalha, para grande desgosto do pai. O procônsul não chorou no funeral do filho e celebrou triunfo pelas vitórias militares. Mas ficou sem Norte! Portanto, quando a irmã engravidou e foi condenada à morte, ele prometeu-lhe cuidar do bebé e adotá-lo como filho.

O que é feito de Márcio?

Entretanto, ele cresceu e foi cônsul há três anos. Ah, esse Márcio! Portanto, era um caso de sucesso.

Aurélia confirma esta informação, porque Marciana era sobrinha da sua sogra e prima direita do seu marido e, portanto, a história era segredo de família.

Sim! Júlio teve um grande desgosto quando Marciana morreu. Não sei mais sobre as vestais. Mas tenho a certeza de uma coisa. Se Emiliana, Luciniana e Marciana não tivessem saído fora dos eixos, não tinham passado pelo vexame público, não tinham sido condenadas à morte e as famílias não tinham sofrido monumentalmente. Porque foi tudo uma grande violência para as pessoas envolvidas, percebe? Enrubesci.

Claro, claro….

Ouça, Emília! Conheço-a desde que nasceu e a sua mãe era muito minha amiga. Por isso, dou-lhe um conselho. Pense bem sobre o que quer da sua vida e assuma os direitos e as obrigações que lhe são inerentes. A Emília não é obrigada a morrer neste santuário. Se não quiser continuar a ser vestal, para o ano abdique do sacerdócio, pois está quase a acabar o mandato de trinta anos que o Estado lhe exige. Mas, se decidir manter-se em funções, pois as regalias de que usufrui são muitas e o futuro fora do templo é incerto, cumpra o seu papel até ao fim, de acordo com a lei.

Engoli em seco. A mãe de César seguia a cartilha da falecida Júlia e elas as duas não brincavam em serviço! Agradeci a advertência. Aurélia despediu-se cordialmente, levando consigo as netas. No rescaldo desta conversa, tive pesadelos toda a noite!

Eu sempre sonhara com o fim do meu sacerdócio e, após mil agruras, o período mínimo legal terminava em breve. Mas agora a indecisão assolava-me. Eu hesitava em tirar o véu de vestal máxima.

Eu tinha medo de regressar à vida civil, pois, era trocar o certo pelo duvidoso. Tal como Aurélia referira, fora do templo, o meu futuro era incerto. No santuário, eu era a vestal máxima e, do ponto de vista religioso, a mulher mais poderosa da cidade. É certo que corria risco de vida se continuasse a residir no santuário, pois eu não tinha qualquer controlo sobre a rivalidade entre César e Mânio. Eles podiam delatar-me num acesso de ciúmes e, mesmo que não o fizessem, outra pessoa podia lançar suspeitas para a fogueira. Aurélia sabia ou suspeitava da verdade, tal como Júlia quando era viva. Catão era uma

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pedra nas minhas sandálias, pois estava de regresso ao pomério e o seu perfecionismo podia ser-me fatal (quase o fora da primeira vez!). Se as muralhas sérvias fossem invadidas novamente (por Catilina, por exemplo!), houvesse uma peste ou um cataclisma qualquer, eu dificilmente escaparia ao desafio, enquanto líder do templo de Vesta. Ora não fazia sentido, para mim, morrer na praia, se pudesse salvar-me assumindo outras escolhas.

O que fazer? Tentei avaliar a situação com calma. Enquanto sumo-sacerdotisa, eu era prestigiada. Não vivia confortavelmente, mas também já não sentia necessidade de dormir numa cama fofa. Não precisava acordar tarde, até gostava de levantar-me pela alvorada para rezar! Residia no fórum magno, entre o Capitólio e o Palatino, no centro de Roma. Portanto, já me habituara à disciplina e estava bem localizada!

Era mestre nos meus ofícios. Já dominava os rituais e conhecia todas as orações de cor. Ajudava o pontífice máximo nas cerimónias mais complexas. A Vestália já não me provocava crises de ansiedade e, sob a minha batuta, não gerava tensão entre as matronas que nos visitavam. A ceia de Bona Dea, que atrapalhava tanto as minhas colegas, não era um bicho-de-sete cabeças para mim. O povo respeitava-me e talvez gostasse de mim. As iniciativas solidárias, que eu protagonizava, eram úteis. Porque haveria eu de sair do templo?

Em jovem, eu ambicionara casar e ter filhos com César. Porém, ele contraíra matrimónio com Pompeia e tinha uma filha da falecida Cinila. Para ficar comigo, ele teria de divorciar-se. Tal hipótese era pouco provável. Mamerco tinha-me dito que o enlace político ainda era estrategicamente relevante para a família, mesmo admitindo que o casal não era perfeito. César era um alvo permanente, por ser sobrinho do falecido Mário. A sua promiscuidade era famosa. Ele era obcecado com a ideia de um dia chegar a cônsul. Ele não tinha tempo para se dedicar a mim e eu não tinha lugar na sua vida, nas atuais circunstâncias.

Mânio queria constituir família, era solteiro e ainda não tinha filhos, portanto, o nosso casamento seria uma tela vazia que poderíamos pincelar à nossa maneira, da raiz até às folhas! Ele não tinha grandes inimigos. Uma relação com ele, à partida, seria mais tranquila do que com César. Mas ele era muito orgulhoso e ciumento. A sua personalidade era, de alguma forma, misteriosa e impenetrável. Ele também se refugiava em Fórmia e admitia passar a velhice na tranquilidade rural, ao contrário de César que era cosmopolita e aventureiro. Portanto, eles representavam duas opções de vida muito diferentes.

Eu não sabia se eles queriam/podiam casar comigo. Mas, se não fosse para constitui família, que vantagens teria eu em sair do templo? Poucas. As ex-vestais não podiam regressar às origens, embora algumas o tentassem fazer e a população encarava-as com suspeita.

A vestal máxima vai abdicar para o ano? – Perguntou-me Fábia, que se candidatava ao meu lugar, apesar de ser muito mais jovem que Perpena e Popília.

Não sei ainda. – Respondi-lhe, no final da Vestália. Sinceramente, eu hesitava em decidir. O que queria eu? Deveria deliberar com a cabeça ou com o coração?

César e a Vestal 368 Maria Galito

Nesta fase, Roma fervilhava de emoção. Verdadeiras multidões deambulavam pelas artérias da cidade para assistir às lutas de gladiadores, às lutas de cães e de galos, às peças de teatro e aos concertos tão apreciados pelos romanos!

César até fez um comício no fórum, que foi muito aplaudido. Mandou decorar a parte exterior das fachadas e contratou uma equipa de varredores para limpar os espaços públicos. No Capitólio, ordenou à construção de pórticos provisórios para as suas obras de arte que, segundo dizia, eram apenas uma amostra da sua coleção.

Ele andava frenético, dividindo-se em atividades e em aparições públicas. Desde o mês de Vénus que subia ao palanque para discursar. Os Ludi Megalenses tinham inaugurado um bem-sucedido período de quinze dias de jogos!

A Consuália era uma festa que atraia os provincianos a Roma. Fora pela primeira vez organizada por Rómulo, o nosso fundador, para aliciar os vizinhos a conviverem com os romanos. Razão pela qual os agricultores da região acudiam em massa! Com o passar dos anos, transformara-se num grande culto a Diana. Sobretudo desde o fim da guerra contra Espártaco, havia grandes romarias à deusa virgem e ao seu templo no Aventino! Muitos dos que a oravam eram pobres, desfavorecidos, marginalizados ou escravos de Roma.

Pelo sétimo mês, as comemorações de César continuavam intensas. Orquestrou-se outra quinzena de jogos, caçadas, passatempos, divertimentos e recreações ao vivo! Assim César entretinha o povo. Neste período, eu era o pão e ele o circo!

Foi num destes dias solarengos que reencontrei César junto à Porta Capena. Quem o visse assim, com vontade de trabalhar, rodeado de gente que nele confiava o seu sustento, não percebia porque ele tinha tantos inimigos!

Acenou-me bem-disposto. Os seus cabelos espreitavam por debaixo de um lenço de linho transpirado, que o protegia do sol! De resto, estava cheio de pó. Saudei-o mantendo a prudência e o recato. Reparei depois que a minha bilha, junto à fonte, transbordava de água e me molhava as vestes. Devo ter corado, embaraçada!

O lictor olhava a cena de soslaio. Respirei fundo e tentei transportar o cântaro, cheio de água, para o dorso de Pales. Eu mal me aguentava com tanto barro. Foi então que César deu um salto, do outro lado do muro, para o lado de cá. Aproximou-se e rapidamente agarrou na bilha, para me salvar do embaraço!

Não te preocupes, eu faço. – Sussurrou-me ao ouvido, levando o peso consigo. Descarregou-o nos alforges de Pales, que zurrou contra César. Este fez-lhe um gesto que o fez calar mudo. O jumento por momentos nem se mexeu.

César rondava-me cada vez mais! É certo que ele era pontífice e meu colega no colégio. Conhecíamo-nos há muitos anos. Era normal que nos saudássemos. Mas a língua das pessoas era comprida e podia falar de nós. Era preciso ter prudência.

Não podemos correr riscos. Se nos veem juntos, podem delatar-nos. É perigoso para os dois. – Avisei, em voz baixa, para ninguém ouvir. Ele olhou para mim intensamente e disse-me:

César e a Vestal 369 Maria Galito

Quem tem medo, não vive e leva existência sem sabor.

César despediu-se com um sorriso. Saiu pela Porta Capena, onde o ouvi dar ordens aos funcionários das obras e montou um cavalo que galopou pela estrada fora. Eu agarrei nas rédeas de Pales, fiz-lhe um afago no cocuruto e decidi regressar ao fórum, a pé pela calçada, enquanto me despedia das crianças que vinham atrás de mim a rir e a brincar.

Segui pela via-sacra até à Domus Publica, onde fiz uma visita a Metelo Pio. O comandante ficou satisfeito, quando me viu entrar no tablino. Ele começava a habituar-se às funções. Sentia-se mais confiante no cargo. Estava pronto para liderar a religião romana, sem a minha ajuda.

Gostaria de falar consigo, pontífice máximo. – Pedi-lhe. Eu tinha vindo discutir, com ele, o meu futuro.

O que se passa? – Perguntou, sem gaguejar, retirando os olhos dos papiros. Enchi o peito de ar.

Estou quase a terminar os meus trinta anos de serviço. – Declarei com voz clara. – Vim falar consigo, com a devida antecedência, para dar-lhe a oportunidade de preparar a minha substituição.

Metelo Pio colocou os cotovelos na mesa. Entrelaçou os dedos das mãos. Assumiu o silêncio contemplativo, que ninguém ousava interromper. Só depois exteriorizou a sua linha de pensamento:

Es-estava com es-esperança que a E-emília não abdicasse.

Ah sim?

Pense melhor. De-po-pois falamos. – Rematou e fez um gesto para que eu saísse.

Regressei ao santuário e assumi a vigília do templo durante duas noites seguidas, a orar, de joelhos pregados no chão, junto ao fogo sagrado. Depois fui dormir. Quando acordei, Licínia avisou-me das novidades:

A casa de César foi atacada durante a noite.

Porquê? – Estranhei, preocupada.

César tem muitos inimigos. Até os outros três edis o invejam. Não o suportam.

Roma tinha quatro edis, mas o povo aplaudia apenas o mais votado. Os outros três não acompanhavam o ritmo acelerado e altamente competitivo de César. Também era impossível! Ele dava tudo o que tinha (e não tinha, endividando-se!). Subia a fasquia a um nível que não estava ao alcance dos colegas.

Era uma questão de Estado! O orçamento público fora ultrapassado por injeções de dinheiros privados e os edis revoltavam-se contra a popularidade de César, que os empurrava para a obscuridade. A situação até podia ser anedótica se não fosse perigosa!

Ficou alguém ferido? – Perguntei a Licínia.

Houve mortos e escoriados entre os escravos. A família escapou ilesa.

A casa ficou destruída?

César e a Vestal 370 Maria Galito

Os delinquentes entraram pelas traseiras e partiram cozinhas e despensas. – Licínia parecia bem informada sobre o assunto, por isso acrescentou. – A ínsula tinha fama de fortaleza, por isso, não sei como entraram. – Estranhou. – Aurélia têm de reforçar a vigilância do edifício, ou arrisca-se a que, qualquer noite destas, os malfeitores lhes entram pela casa a dentro e matem César a dormir!

Coitados!

César é o último dos marianos. O que já gera controvérsia! Mas ao invés de ser discreto, ele espalha artefactos pela cidade a lembrar o tio. Os optimates não estão satisfeitos. – Advertiu e eu sabia que era verdade.

Aquela conversa despertou o meu instinto de proteção. Sentei-me num banquinho de madeira e redigi uma mensagem a Aurélia, a solidarizar-me com ela, disponibilizando-me para ajudar no que fosse necessário. O papiro foi levado pelo lictor e entregue em mãos, como era costume. No dia subsequente recebi uma resposta simpática da mãe de César, a pedir-me uma oração a Vesta em nome da família. Garantiu que a ínsula já estava em reconstrução e que tudo haveria de resolver-se. Ela era das fortes!

César ajudava a reerguer a casa da mãe, partes da cidade e a via Ápia! De facto, ele não diminuiu o ritmo das obras públicas! Não ficou em casa a lamber as feridas. Pelo contrário, o filho de Aurélia mostrou o peito às setas! Ao invés de fechar contas para balanço, deu início a novos empreendimentos.

Queremos mais anos de César edil! – Era o pregão repetido.

Havia excitação nas ruas! Os eventos culturais mesclavam-se e sucediam-se uns atrás dos outros. A oferta anunciada, pelos arautos, era diversificada.

Com César, os romanos não passavam quinze dias sem uma festa ou inauguração na cidade. Não admira, portanto, que os cidadãos se habituassem à boa vida. Eu escutava os seus cânticos, durante o tempo quente e depois, à medida que os dias se tornavam mais curtos e as noites mais longas.

César investiu em lutas de gladiadores. Era costume prestigiar os mortos com combates. Mas o Senado temeu que o edil trouxesse demasiados escravos armados, para dentro das muralhas sérvias, ao ponto de colocar em risco a ordem pública. Então, votou-se uma lei para limitar o número máximo de gladiadores em recinto público.

César resolveu compensar a questão com um torneio, a que chamou lusus troiae (sem o peso dos ludi victoriae sullae!) e o povo não falava noutra coisa!

Não foste assistir aos meus lusus, porquê? – Perguntou-me César, num dia de Vénus. Percebi que a minha ausência o desiludira.

Para evitar coscuvilhices, levei uma bilha vazia até à fonte, onde escorria água da Porta Capena. Sem pedir autorização, ele foi atrás de mim. Espreitei-lhe os braços e as pernas firmes. O seu sorriso era arrasador, atraía o sol à terra, mesmo quando só havia nuvens! Era difícil competir com ele quando estava em maré alta. Que homem bonito!

César e a Vestal 371 Maria Galito

Eu não gosto de ver lutas de gladiadores. Depois de uma tão longa guerra civil, a violência arrepia-me. – Expliquei-lhe.

Os lusus são jogos equestres. – Avisou César, que continuava sem perceber.

Eu assisti aos ludi victoriae sullae e às provas dos meus sobrinhos. Lembro-me de ficar preocupada com Paulo e Lépido. Desde então nunca mais coloquei os pés no Circo Romano. Tudo aquilo lembra-me uma fase da vida que quero muito esquecer.

Desculpei-me com a verdade, pois tinha dificuldade em mentir-lhe. César observou-me atentamente, de alto abaixo, como se eu fosse uma estátua exposta no fórum. Apreciou o viu. Depois mudou de assunto:

Gostaste das obras que mandei fazer? A sua mudança de atitude era bom sinal. Por isso, não contrariei a onda:

Referes-te às do templo de Castor? – Questionei com ar maroto.

César soltou uma gargalhada bem-disposta! O edifício, consagrado aos Dioscuros ou Gémeos Celestiais, tinha-se degradado e fora incendiado durante as invasões. Portanto, precisara de uma intervenção, custeada por fundos públicos. Mas foi ele quem pagou, do seu dinheiro (?), aos empreiteiros e, nessa medida, reclamava o produto final como seu.

Era o templo de Castor e de Pólux. Mas Bíbulo, o outro edil encarregado das obras, não fora tido nem achado durante o processo de reconstrução. Portanto, a população encurtava a referência, falava do Templo de Castor e aplaudia apenas a César!

Mas não só! O povo referia-se ao ano das obras públicas de César. Ou seja, esquecia-se frequentemente de Bíbulo e este irritava-se solenemente com a falta de reverência, berrando insultos contra o colega durante dias inteiros!

César e Bíbulo eram rivais. Altamente competitivos, não mediam a gastos para dar cabeçada um no outro! Bíbulo era um plebeu nobre de estatura média-baixa e rebiteso. Tivera azar de concorrer a cargos públicos no mesmo ano de César. Por mais que tentasse, não conseguia sair da sombra do pontífice, que era excelente no que fazia.

Era uma questão de mérito e de estilo! César caminhava no meio da multidão, sem medo. Cumprimentava pessoas de todas as idades no fórum, no Capitólio, nas ruas, nas tabernas, nos banquetes, nas festas e colaborava, em cada estância da Via Ápia, com obreiros, artífices, rendeiros e proprietários.

Bíbulo não fazia metade! Mas julgava que o povo lhe devia respeito, atendendo ao cargo e ao nome que tinha. Ele não percebia porque ninguém lhe ligava. Andava sempre pior do que estragado! Fazia birras para chamar a atenção. Tecia longas queixas, no senado e nas ceias, com os amigos, contra a sobranceria de César e a ignorância da turba! O cidadão comum troçava deste comportamento bizarro, semelhante aos das crianças mimadas e frustradas.

Mas agora a sério, o que pensas das obras? – Insistiu César. Ele parecia interessado na minha opinião.

César e a Vestal 372 Maria Galito

Não recordo a cidade, como ela era, quando éramos pequenos. – Comecei por explicar. – Mas a guerra civil destruiu parcialmente o pomério. Acontece que paredes sem teto albergam marginais. Há contrabando onde há falta de ordem. Em ruas sujas, propaga-se a peste. Portanto, quanto mais limpezas houver, melhor.

Foi precisamente nisso que eu pensei! – Exclamou com entusiasmo.

A urbe está bonita! As obras de arte, que expuseste no Capitólio, têm bom gosto. – Acrescentei. Eu estava verdadeiramente impressionada com o seu trabalho. Muitos o criticavam. Mas eu considerava isso injusto. Ele esforçava-se!

Eh lá, isso é um grande elogio! – Encantou-se. Ele estava a embevecer-se. Urgia baixar o tom.

És tão convencido... Foi então que ele apontou para o alforge de Pales e perguntou:

O que é aquilo que trazes ali? É a boneca que te dei pelo teu aniversário?

Enrubesci violentamente. Fiquei tão corada que levei as mãos ao rosto. De facto, a boneca fazia-me companhia desde o dia em que a recebera. Era um talismã. Uma relíquia! Eu podia guardá-la comigo. Enfim, guardada onde ninguém a visse!

Pois não é que César a tinha descoberto na cesta, debaixo do manto?! Que olhos de águia, os dele! Enfiou a mão no alforge e pegou na boneca. Mostrou-a à luz do dia e virou-se para mim com ar triunfal.

O meu coração batia tão depressa que eu nem soube justificar-me. Ele sorriu-me. Entregou-me a boneca e começou a andar de um lado para o outro, a falar das obras que supervisionava. César era um fenómeno da natureza! Apurado com a idade, o seu discurso elevava o espírito de quem o escutava.

Enquanto ele falava, as crianças foram abandonando os jogos pueris e pararam para ouvi-lo discorrer sobre caçadas, corridas de cavalos, lutas de gladiadores, teatro e música.

Eu não conseguia fazê-lo parar de falar, por isso, encolhi os braços e sentei-me. Os miúdos fizeram mais do mesmo, encavalitando-se na fonte. Alguns trabalhadores das obras espreitaram pela Porta Capena. Os transeuntes, que por ali passavam, foram ficando pregados às façanhas de César. Em pouco tempo, o largo encheu-se de gente! Todos queriam escutar as proezas do edil, reverenciando-o com atenção absoluta, como se tudo o que ele dissesse fosse incrivelmente importante! Como pano de fundo, só a água que jorrava da fonte e Pales a mastigar a relva.

Até que César resolveu interagir com o público! Os espetadores prenderam-se aos seus movimentos. Portanto, começaram a imitá-lo, como se fossem o seu reflexo. Se ele abria muito os olhos, as crianças também o faziam. Se erguia os braços, outros o copiavam. Se ele sorria, os outros riam-se à gargalhada! A onda de exaltação tornou-se numa animação total! Os miúdos de rua riam de contentes. As mulheres cochichavam. Os homens, encostados aos cajados, acenavam com a cabeça, concordando com o que ele dizia.

César e a Vestal 373 Maria Galito

O edil curul rematou a conversa. Despediu-se das histórias com uma vénia e a audiência deu-lhe uma grande ovação! Ouvi bater palmas que nunca mais acabavam! O pessoal estava mesmo contente.

César olhou para mim. Sorri-lhe, com a boneca sobre o colo. Ele piscou-me o olho.

Regressei ao fórum. Ao passar pela Domus Publica apercebi-me que Crassa estava à porta, na companhia de Licínia e de Crasso. Acudi ao chamado, quando pediram para me aproximar. Cumprimentei-os com alguma prudência, pois não sabia o que eles queriam e Crasso era demasiado famoso para passar despercebido.

O nosso censor colabora em iniciativas públicas de reconhecido mérito e mostrou interesse em contribuir para as missões solidárias do santuário de Vesta. O que te parece? – Perguntou-me Crassa.

Deveria eu rejeitar o seu tributo? Crasso era um orador prestigiado e apresentou-me o seu caso de forma convincente. O que ele não disse taxativamente era fácil de prever. Ele queria ser o campeão do povo e substituir Pompeu no coração dos romanos. Se era tão rico e queria partilhar parte dos seus meios com a população, eu não devia impedi-lo.

Toda a ajuda é bem-vinda, censor. – Disse-lhe.

A prioridade era dar de comer aos que passavam fome e distribuir roupa aos que tinham frio. A cavalo dado não se olha o dente!

Muito bem, vestal Emília. Aqui fica o meu contributo. – Declarou, entregando-me uma bolsa pesada de coro com moedas de ouro. Não era muito, nem era pouco.

Obrigada, censor.

Crasso afastou-se, com cara de quem fizera uma ação da qual se orgulhava. As mulheres, que me acompanhavam, olharam uma para a outra e depois para o que eu tinha em mãos.

Ele podia ter dado uma arca cheia de moedas de ouro, ao invés de uma bolsa. Mas o homem é tão sovina que esta oferta é mais do que a média, garanto-te! – Desculpou-se Licínia, que era sua prima e o conhecia muito bem. Encolhi os ombros.

Não se preocupem. Será bem empregue. – Fiz questão de frisar, antes de sugerir. – Se tiverem tempo, podemos contar as moedas, para termos uma ideia do valor em causa, sabermos o que podemos comprar e durante quantos dias.

Parece-me uma boa ideia. Entrem! – Convidou Crassa.

Sentámo-nos no tablino de Metelo Pio, que estava ausente àquela hora do dia. Fizemos uma lista de compras e selecionámos os fornecedores que podiam assegurar os nossos pedidos. Crassa mandou vir comida, pois todo aquele trabalho tinha-lhe dado fome e convidou-nos a partilhar a refeição. Portanto, Licínia e eu fomos ficando.

Crasso é abrutado na guerra mas, por estranho que pareça, é muito apegado à família. – Admitiu Licínia, que queria passar uma mensagem simpática do primo. Eu era diplomática, mas nem tanto:

César e a Vestal 374 Maria Galito

O que ele fez nas proscrições de Sila e na guerra contra Espártaco, não tem perdão. Elas engoliram em seco. A conversa podia ter ficado por ali. Não ficou.

Podes não acreditar, Emília, mas Crasso não é má pessoa.

Licínia, não insistas! A Emília não está interessada em ouvir falar do nosso primo. – Avisou-a Crassa, que era mais esperta.

Deixem-me falar! – Pediu a minha colega, comovida. – Eu fui levada a julgamento com ele e não quero que pensem que tivemos algo, um com o outro, porque não é isso! Mas Crasso é um homem sofrido. Ele teve início de vida muito difícil! Poucos teriam sobrevivido às rasteiras que os deuses lhe pregaram, desde que nasceu até agora! Quem imaginaria que ele, um dia, chegaria onde chegou? Mas, apesar de tudo, arranjou casa para toda a família. Com ele não moram apenas a mulher e os filhos, como é comum em Roma, mas todos os parentes, de sangue e de lei. Crasso protege os seus! Nós sabemos que podemos contar sempre com ele. Faz tudo para que não nos falte nada. Portanto, não é justo que as pessoas tirem ilações precipitadas sobre ele! Eu podia ter aceitado os seus argumentos. Mas era impossível engolir o passado.

Estamos todos dentro do mesmo barco, Licínia. Mas eu remo. Não tento afundar o casco, nem empurro pessoas borda fora. Crassa baixou os olhos e cruzou os braços. Licínia, mais jovem, resistiu:

Mas nem todos começamos em pé de igualdade. – Rebateu de forma emotiva. Crassa pigarreou e fez uma careta a Licínia, para que se calasse.

Não percebo o que queres dizer com isso. – Contestei, pois elas interagiam de forma estranha. – Crasso era filho de um plebeu nobre e rico. Não nasceu pobre, numa barraca junto ao rio.

Mas foi atirado ao Tibre. – Ripostou Licínia, levada pela emoção. Crassa levantou-se intempestuosamente e mandou a vestal embora:

Cala-te, Licínia! Vai para o santuário, já! – Lançando o braço em direção à porta. De repente, fez-se luz na minha cabeça.

Em que ano nasceu Crasso? – Perguntei-lhes. – Não me digam que foi quando as vestais Emiliana, Liciniana e Marciana foram condenadas à morte.

Crassa ficou atónica, pois nem sonhava que eu chegaria a essa conclusão sozinha. Mas Licínia estava desejando uma oportunidade para desembuchar a verdade, pois servia o seu argumento a favor do primo:

Sim! Liciniana estava grávida e a nossa família salvou o seu bebé. Quando os pontífices colocaram o menino num cesto e o empurraram ao rio, o pai de Crasso, que estava escondido nas moitas, foi logo a correr buscá-lo. Crassa amachucou o rosto com as mãos, tal o frenesim em que estava.

Calma. – Apelei, para que elas não entrassem em pânico. – Eu estou familiarizada com a história das vestais. O assunto começou a interessar-me quando Catão falou do tema no colégio dos pontífices. Desde então, consultei algumas pessoas. Tenho lido muito sobre o assunto. Portanto, eu já sabia que Liciniana tinha tido um filho.

Tu já sabias? – Espantou-se Crassa.

César e a Vestal 375 Maria Galito

Sim! Eu só não sabia quem era o bebé. Pelos vistos, é Crasso. – Mas procurei aliviar o ambiente, com paninhos quentes. – Tudo bem. Alguém tinha de ser.

Mas não vais contar a ninguém, certo? – Foi a preocupação de Crassa.

Claro que não. Nem tenho nada a ver com o assunto. – Afirmei com todas as letras. Licínia sentou-se a meu lado e pegou-me nas mãos:

Agora percebes porque ele se esforça tanto por deixar um legado em Roma? Ou porque vingou o homem que o salvou e que todos pensavam ser seu pai? Ele devia-lhe a vida. Era uma questão de honra!

Deixei essa questão de lado e concentrei as minhas atenções no quadro geral. Que informações dispunha eu, até ao momento? O santuário tinha sofrido uma crise em 640-641 AUC1 com três protagonistas: Luciniana, Emiliana e Marciana. As vestais engravidaram dos seus amantes e, quando foram descobertas pelos pontífices, de acordo com a lei, foram condenadas à morte. As respetivas famílias resgataram os bebés que, entretanto nasceram e foram lançados ao Tibre, cada qual dentro da sua cesta (como acontecera a Rómulo e Remo, após o parto de Reia Sílvia).

O veredito de Emiliana foi anunciado publicamente, um dia antes da Saturnália de 640 AUC. Ela deu à luz um menino e foi enterrada viva pouco depois. O filho sobreviveu e foi adotado pelo tio materno (o pai de Mamerco) com o nome de Mânio.

Liciniana era a mais velha das três. Morreu dez anos depois de ter ficado famosa, por dedicar um altar a Bona Dea no Aventino, sem pedir autorização prévia ao pontífice máximo. Antes de morrer teve um filho. Este foi resgatado por um primo paterno e viria a tornar-se no homem mais rico de Roma!

Marciana era sobrinha de Márcia Rex e, portanto, prima direita de Júlio. Também gerou uma criança, que foi igualmente recuperada do rio, pela família. O rapaz foi adotado pelo avô materno e chegou a cônsul.

Foram condenadas três vestais. Quantos homens morreram com elas? À partida, três. Eu sabia que tinham morrido dois equestres: Vetúrio e o pai de Hélvia. O irmão de Emiliana, que era triúnviro monetário, suicidara-se.

Que destino teve o irmão de Liciniana? – Perguntei.

Foi o primeiro a morrer. Confessou, em tribunal, ter sido amante de Emiliana e perdeu a vida em consequência disso, durante a Saturnália de 640 AUC. No mesmo dia, Vetúrio foi flagelado em público, pelo pontífice máximo, por ser considerado o mais culpado de todo o processo! – Respondeu Crassa. Eu continuava a ter dúvidas:

Os papiros dão a entender que Vetúrio era um equestre debochado. Mas a Gens Vetúria é patrícia. – Alertei.

Não te escapa nada! – Elogiou Crassa. – Os Vetúrios Barros são descendentes de um liberto, por isso são plebeus. Mas compreendo a tua dúvida. Os ramos patrícios não produzem cônsules há muito tempo. – Esclareceu Crassa, que era mais velha

César e a Vestal 376 Maria Galito

e dominava melhor a matéria, até por ser mulher de um líder da religião e ter acesso a documentação específica.

Fui informada que o irmão de Emiliana, o amante de Liciniana, se suicidou.

Sim, matou-se no dia em que soube que Liciniana estava grávida. Nem esperou pelo julgamento. – Confirmou Crassa. Mamerco dissera que o tio se suicidara de remorsos pelo que acontecera à irmã.

No rescaldo do segundo julgamento, o pontífice máximo flagelou em público o pai de Hélvia, é isso? – Tentei confirmar. Crassa aquiesceu:

Sim, morreu pelas duas. Os pontífices também fizeram acusações a António Orador. Ele tinha assumido funções de questor e estava a caminho da província da Ásia, quando foi chamado a depor, em Roma. Chegou a temer que o escravo, que o alumiava à noite, falasse além da conta, sob tortura, quando foi interrogado, mas o jovem aguentou-se. Depois o orador fez um discurso brilhante, na barra do tribunal e foi absolvido.

António Orador era amante de Liciniana? – Procurei esclarecer.

Não, de Marciana. – Notificou Crassa, para meu espanto.

Mas Marciana não era apaixonada pelo pai de Hélvia? – Estranhei.

Marciana só teve um amante e esse era Marco António, que era amigo da família.

O que fazia sentido, pois as Gens Antónia, Márcia e Júlia sempre foram aliadas. A sacerdotisa deve ter ficado fascinada com o advogado que, para todos os efeitos, tinha fama de eloquência e era considerado um dos jovens mais brilhantes da sua geração. Portanto, Márcio era filho de António Orador e da vestal Marciana. Não havia dúvidas!

A narrativa estava finalmente exposta! Ou melhor, restava responder a duas perguntas: Quem era o pai de Mânio? Quem era o pai de Crasso? Mas admitindo que as vestais Emiliana e Liciniana tinham tido vários amantes, não era possível ter a certeza.

Apesar de terem ficado conhecidas pela sua promiscuidade, que se saiba, Emiliana só teve dois amantes (o irmão de Liciniana e Vetúrio) e Liciniana outros dois (o irmão de Emiliana e o pai de Hélvia). Marciana fazia par com António Orador. – Admiti, pois esses eram os factos conhecidos. Licínia fez um aceno a Crassa. Esta rebolou os olhos até confessar:

Nessa equação falta o meu pai.

Licínio Orador? – Espantei-me.

Sim, foi ele quem defendeu Liciniana em tribunal. Dizem que ele era amante de Emiliana. Mas não sei se é verdade. – Confessou Crassa. A questão era delicada, resolvi não insistir.

Ah, estou a ver… Crassa, para compensar o desinteresse em coscuvilhar sobre o pai, disse-me:

Havia outro nome a circular no fórum.

Quem? – Perguntei, curiosa.

Júlio. – Revelou a mulher de Metelo Pio.

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O pai de César? – Surpreendi-me. Por esta eu não estava à espera!

Sim. – Afirmou Crassa. – A minha família chegou a pensar que ele fosse amante da prima, pois ele ficou desorientado durante os julgamentos. Ainda era muito jovem (teria entre dezoito e vinte anos) e ficou doente, pois o drama mexeu muito com ele. Mas quando se descobriu que a sobrinha de Márcia Rex fora fiel a António Orador, chegou-se à conclusão que ele se apaixonara por uma das outras duas. Não sei qual. Talvez por Liciniana, pois foi condenada na mesma altura de Marciana.

Sendo assim, Júlio tinha fama de amante de vestal. O que, de acordo com a tradição religiosa, fazia dele um maldito ou um herege. Da perspetiva do meu pai, portanto, um filho seu não seria boa escolha para marido da filha.

De facto, o meu paterfamílias recusara casar-me com César, por temer uma suposta praga, segundo a qual, os Emílios podiam ser expulsos do Palatino se ousassem ter filhos dos Júlios. Por isso foi acusado de ser supersticioso (pelo marido de Aurélia!). O que eu, na altura, considerei suspeito!

Por outro lado, Júlio era louro e tinha pele muito branca. Cornélia tinha-me avisado que Mânio nascera frágil, louro e de pele caiada, o que parecia corresponder mais ao perfil do pai de César, do que ao de qualquer outro potencial amante de Emiliana.

Será que o meu pai conhecia as origens de Mânio? Mamerco dera a entender que o silêncio ainda era regra de ouro (passados tantos anos!) e que tudo fora combinado em segredo. Mas duvido que a informação não tivesse circulado em família. Portanto, se o meu pai suspeitasse que Júlio, quando era novo, seduzira a vestal Emiliana e a engravidara, jamais deixaria que eu casasse com César. Ele podia estar filiado no partido popular mas, da perspetiva dos costumes, não era progressista. Era agarrado às tradições e à lei.

Era difícil imaginar Mânio e César como meios-irmãos! A hipótese não era de descorar. Mas eles tinham quase um quarto de século de diferença. Fisicamente, não tinham a mesma altura, nem os mesmos olhos. As suas personalidades eram distintas. Mânio tivera uma longa carreira militar. César era um herói de guerra, mas tinha mais currículo jurídico e religioso. Teriam sempre mães diferentes e, nessa medida, podiam herdar outro sangue. Mas a associação não era evidente. Pareciam conjeturas forçadas.

As revelações surpreenderam-te bastante, não foi Emília? – Perguntou-me Crassa, que não escutava os meus pensamentos, mas os interpretava através do olhar.

Sim, confesso que estou cansada. – Conclui, virando-me para Licínia. – O melhor é regressarmos ao santuário, pois são horas do render da guarda e das orações no templo. Eu hoje não faço vigília ao fogo sagrado. Vou-me deitar. Preciso dormir.

Os dias sucederam-se a passo rápido. Passou um mês e outro e, assim, o ano chegou ao fim. Sei que César terminou o seu mandato de edil, em glória! Aurélio despediu-se das suas funções de cônsul e inaugurou-se um novo ano civil.

César e a Vestal 378 Maria Galito

Nesta fase, eu orava muito a Vesta pelo meu povo! Não pedia por mim. Sabia que não merecia a misericórdia divida, culpada que era de transgredir as regras. Mas, pelo menos, tentava promover a paz e a concórdia entre romanos, com a melhor das intenções. Talvez um dia a deusa me perdoasse pelos erros que tinha cometido no passado (tal não era garantido!).

Já um novo ano tinha começado e um mês concluído e eu ainda não me sentia preparada para decidir sobre o meu futuro. Protelava a decisão. Hesitava em abdicar. Ao mesmo tempo queria muito abandonar as vestes de sacerdotisa. Mas um uniforme de trinta anos tinha-se colado à minha pele. Sem ele sentia-me despida.

É verdade que eu sempre quisera fugir pela porta do átrio das vestais, por não ter escolhido aquela vocação. Mas eu não sabia como iria readaptar-me ao mundo exterior. Que faria eu depois, com tanto tempo livre? Deixaria de ter os meus horários, as regras e os rituais aos quais estava acostumada. Sobreviveria eu fora do santuário? Arranjaria marido? Teria morte trágica como Metela? Teria a oportunidade de ser feliz? Ou será que já era? Devia eu deixar o sacerdócio ou manter-me em funções? Quem era eu, se não uma vestal? Será que, após três décadas de trabalho intenso eu poderia reinventar-me e ser outra coisa? Estava tão habituada a ser respeitada pelos cidadãos da República, que teria de reajustar-me a uma dinâmica nova para mim.

A partir do momento em que tivesse uma última conversa com Metelo Pio, não havia volta. Mas como eu não estava com a corda à garganta e a minha morte não estava anunciada, fui ficando.

Ao mesmo tempo, fui delegando as minhas funções, mais e mais. Fui-me despedindo de Eurísaces, dos voluntários que participavam nas missões solidárias, das crianças, dos adolescentes e de todas as pessoas que tinham colaborado comigo ao longo dos anos. Não disse adeus à Ana e ao Joaquim, mas Roma pressentia, no ar, que o vento era de mudança!

Vestal Emília, quando é que vem ter connosco outra vez? – Perguntavam as crianças junto à Porta Capena.

Fique mais tempo connosco, vestal máxima. – Rogavam outros, ao ver-me passar.

Obrigada por ter vindo, domina. Volte sempre! – Solicitavam pelo caminho.

Gostamos de a ter cá. Não fique muito tempo sem regressar. – Agradeciam os residentes de bairros afetados pela guerra, mas cujo nível de vida melhorara com as minhas missões solidárias.

Obrigada, meus queridos. Não se esqueçam de orar à deusa. – Pedia-lhes, com um aceno e entrava no átrio das vestais com o coração apertado.

Celebrei o meu aniversário no santuário e participei nas procissões, juntamente com os outros pontífices. Confecionei mola salsa com Popília e Fábia, na velha cozinha do átrio das vestais. Mas, de certa forma, eu enfrentava um momento de rutura. Portanto, uma deliberação era necessária e, perante a porta que se abria, eu não fui capaz de fechá-la. Eu tinha de sair da toca e ver a luz! Algo em mim sabia que a decisão estava tomada. E assim chegou o momento do não retorno.

César e a Vestal 379 Maria Galito

Cá estamos. – Declarou Metelo Pio, sem gaguejar. Estava sentado muito direito na cátedra de que tanto gostava. Admiti, portanto, que ele fosse direto ao assunto. Mas ele pediu um balanço sobre a minha experiência enquanto vestal.

Pensei antes de dissertar sobre três décadas no templo, cujos anos não passaram depressa! O princípio fora especialmente duro, longe da família. Vivera escondida nas sombras do átrio das vestais. Mas também me dedicara aos estudos para compreender as normas que me regiam. A minha vida melhorou quando comecei a intervir de forma concreta e regular nas atividades diárias, que eram da minha responsabilidade enquanto sacerdotisa. Foi nesse período que tomei a iniciativa de desenvolver missões solidárias pela cidade. Na última fase assumira o cargo de vestal máxima e tentei ser tudo aquilo que as minhas antecessoras não haviam sido para mim. Sob a minha liderança o fogo sagrado nunca se apagara! Recordei as conversas com as minhas colegas; as viagens que fiz montada em Pales até à Porta Capena, com água para purificar os rituais e os templos do fórum magno; e a mensagem de esperança disseminada pelos bairros, antes afligidos pela guerra, sobre a possibilidade de ultrapassar as dificuldades com a ajuda de todos, pois a força estava em nós e os romanos começavam a aperceber-se disso. Metelo Pio escutou o discurso até ao fim e sorriu com meiguice.

Então, em que ficamos? – Perguntou sem gaguejar. Uma decisão exigia-se. Tinha chegado o momento definitivo.

Pontífice máximo é minha vontade deixar o sacerdócio.

Está mesmo decidida? – Quis confirmar, também sem tartamelear. Revolvi as mãos no regaço e baixei os olhos, antes de os erguer.

Rogo a Vesta por forças para esta nova etapa, de cabeça erguida e coração valente.

Está bem. – Declarou, abanando a cabeça com tristeza. Parecia preocupado. – Mas tenha muito cuidado consigo, promete? – Pediu e eu aquiesci.

O pontífice máximo avisou-me que Fábia seria a próxima chefe das vestais. A cunhada de Cícero? Fiquei surpreendida com a notícia. Sempre pensei que fosse Popília, que era mais velha e ocupava o cargo há mais tempo. Perpena, apesar de ser de família popular e, portanto, do partido da oposição, com menos probabilidades de ser escolhida, também não ficaria encantada com a decisão de Metelo Pio.

Regressei ao santuário de Vesta. Faltava despedir-me de Pales o orelhudo. Tive pena de me separar do meu companheiro de aventuras e confesso que me comovi ao afagar-lhe o cocuruto uma última vez. Ele agitava a cauda mansamente, com olhos muito grandes, bem abertos. Não sei se percebeu que eu não regressaria mais, para o levar a passear por Roma até à Porta Capena, para ver as crianças. Mas a separação era inevitável. Tinha-me afeiçoado ao meu amigo. Mas recompensei-o com umas belas e gordas cenouras!

Enviei mensagem aos meus sobrinhos a avisar sobre a minha resolução. Lépido convidou-me imediatamente a ir morar com eles. Não era suposto uma sacerdotisa regressar à casa onde nascera. Mas os inquilinos já não eram os originais e, por isso, dei a volta ao texto e convenci-me que não faria mal reinterpretar os estatutos uma última vez.

César e a Vestal 380 Maria Galito

Suspirei longamente, sentada na cama dura do meu cubículo de sacerdotisa, onde uma pequena lamparina acesa me alumiava na despedida. Ao contrário de outras vestais, eu sobrevivera a trinta anos de serviço no templo, sem ser condenada à morte nem enfiada num buraco. Na verdade, eu estava prestes a sair da toca!

Tirar as vestes implicava abrir os braços à liberdade, com tudo o que isso implicava. Mas eu estava disposta a arriscar, a tirar o véu, a recuperar a minha família e a recomeçar de novo.

A porta estava enfim aberta, após trinta longos anos. Eu não entrara voluntariamente no templo, mas saía pelo meu próprio pé.

E dei um passo em frente!

NOTAS FINAIS:

1 114-113 a. C.