césar e a vestal · o peso das rochas, com acesso a pequenas quantidades de pão, leite, água e...

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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo II (94-92 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo II

(94-92 a.C.)

Maria Galito

2017

César e a Vestal 38 Maria Galito

Capítulo II

660-662 AUC

Eu podia ser enterrada viva se fugisse com César.

O que era uma vestal? Mulher imaculada pela lei, sagrada pela religião e decente pelo medo da punição – ou assim me foi explicado no dia da captura pelo chefe da religião.

Competia-me ser virgem para não conspurcar os rituais do Estado. Se falhasse no exercício das funções, enquanto figura sacrossanta, podia ser arrastada por carrascos até ao campus sceleratus, perto da Porta Colina, onde seria enfiada dentro de um buraco sob o peso das rochas, com acesso a pequenas quantidades de pão, leite, água e óleo, até expirar e virar cinzas de solidão em pó.

Enquanto os deuses aceitarem as preces das vestais, Roma está a salvo! – Louvou um coro de vozes com braços esticados ao céu.

Tomo-te Amata para seres sacerdotisa de Vesta e realizares os rituais sagrados,

pois é lei fazê-lo em benefício do povo romano e nos termos das funções que te

assistem. – Foi a prece do pontífice máximo.

Que o fogo de Vesta nos proteja. – Oraram as sacerdotisas, em uníssono.

Emília proclamo-te vestal e, de hoje em diante, és venerável e santa. – Oficializou Aenobarbo. Depois baixou-se, com olhar cheio de rugas e dedo indicador em riste, e disse. – Agora porta-te bem ou condenamos-te à morte!

Eu era pequenina. Fiquei aterrada de medo! O líder da religião era barba de bronze, língua

de ferro e coração de chumbo. Não era homem com o qual eu pudesse arriscar palavra em falso, pois, não sendo paterfamílias, podia bater-me se eu não cumprisse com o protocolo ou ousasse desafiar a sua autoridade.

Quando o ritual terminou, Aenobarbo despediu-se com os outros pontífices e afastou-se em direção à Domus Publica. Eu fiquei entregue à sumo-sacerdotisa e fui arrastada para o Atrium Vestae. Aquelas mãos frias não alumiaram o meu caminho de sombras!

Seguidamente, fui empurrada para dentro de cubículo minúsculo com leito estreito. Na mesinha de cabeceira uma candeia acesa. Quando a porta se fechou atrás de mim, fez-se silêncio. Eu estava sozinha onde não conhecia ninguém. Sentei-me na cama dura e chorei.

O tempo passou. Mas do pesadelo eu não me livrava!

Todos os dias acordava no mesmo buraco escuro e desesperava, porque a paciência não era traço pueril, nem ambição de futuro, mas virtude dos adultos que a dominam; e eu era

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criança de sonhos desfeitos, encafuada entre paredes alvoreadas que me bloqueavam o pensamento. Não sabia o que fazer.

Em tenra idade ainda se constrói a personalidade e a falta de traquejo não sabe lidar com tabus. Não relativiza a dor. É impossível deixar de sofrer face a desafios sobre os quais não há controlo. Em especial se o ambiente é sombrio e cheira a velas!

Se encarei a experiência como uma oportunidade que a deusa me dava para ganhar

prestígio na cidade das sete colinas? Não. Pensei ter sido abandonada à sorte! Carpi longamente as minhas mágoas como um bebé acabado de nascer.

Acorda, Emília! Daqui a pouco nasce o sol e ainda não rezaste à deusa! – Repreendia-me a chefe das vestais, se eu me atrasava pela manhã.

Queixei-me do destino e pensei que a minha vida tinha acabado.

Tudo corria mal! As minhas colegas não eram amorosas como a Ana, não me abraçavam como Marco, não me davam conselhos como o meu pai, nem tinham ideais como Apuleia. Fingiam que não me viam como Secunda e coscuvilhavam três vezes mais do que a minha mãe. Transmitiam-me dogmas indiscritíveis e impediam-me de fazer perguntas, como se eu, ao indagar sobre determinado assunto, estivesse a colocar em causa todo o sistema! Não havia liberdade para pensar! Eu não percebia o que estava a fazer e era-me difícil cumprir ordens! Castigavam-me até antes de desobedecer, como se antecipassem a minha insurreição e tanta austeridade revoltava-me! Sentia-me acossada ao menor passo em falso. Eu só queria fugir!

Tentei escapar. Mas ao colocar um pé fora do santuário, fui barrada à saída. Recordo as bofetadas da sumo-sacerdotisa e as suas infinitas repreensões, os gritos nos meus ouvidos e os carolos na cabeça. Convenci-me que era impossível escapar, como um elefante em cativeiro de patas soltas, derrotado na intenção de debandar, após anos amarrado a uma árvore que não conseguia derrubar.

É que eu andava permanentemente sob escolta! Naquelas condições não podia engendrar plano de contingência para contornar a vigilância das colegas. Mas o problema nem era esse! Se saísse à rua, não podia regressar ao Palatino. A minha irmã Prima também não me esconderia na Sardenha, nem eu tinha meios para lá chegar! Para onde iria eu? Para lado nenhum. Portanto, restava-me ficar naquela prisão e aprender a governar-me. Como?

A chefe das vestais era uma disciplinadora. Ensinava teoria, orações e leis. Falava de cátedra, surda às minhas dúvidas e estranhava quando eu não lhe obedecia cegamente.

Emília, já te disse dez vezes que não. Porque insistes? És uma rebelde! – Berrava-me a chefe das vestais, ao menor sinal de contrariedade.

Às vezes eu cedia à sua vontade. No geral, era incapaz de fazê-lo. A minha resistência era passiva, mas destabilizava regime demasiado rígido para admitir pé fora dos eixos!

Fazia-me confusão imitar as colegas sem saber porque devia virar à esquerda, se tinha de ir pela direita ou encurtar caminho. Porque me estavam proibidos certos manuscritos?

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Porque não podia ler enquanto velava pelo fogo sagrado? Porque não podia cantar se o dia estava tão florido e os rouxinóis piavam nos beirais?

Tantas perguntas! Sossega. – Pedia a chefe.

Nunca calei as dúvidas, ao contrário das minhas colegas. Tanto que algumas ignoravam o valor intrínseco daquilo que faziam e limitavam-se a imitar as mais velhas, claudicando à primeira falha de memória. Eu integrava-me no grupo mas, se alguém esquecesse os preceitos, não me perdia no protocolo e agia individualmente, fiel à lógica que lhe estava associada. Portanto, a vestal máxima foi-se apercebendo das vantagens de responder às minhas questões e, quando estava bem-disposta, tentava ser simpática. Não foi fácil convencê-la a dar-me atenção, mas água mole em pedra dura, tanto bate até que fura.

Porque não há estátuas de Vesta?

A deusa é demasiado pura para ser retratada em imagem. – Explicou a chefe.

Os outros deuses são impuros?

Que disparate! – Horrorizou-se ela. – Vesta é imaculada por ser casta.

A mãe de Rómulo era vestal mas não era virgem. – Recordei.

Mau! Já estou irritada contigo, Emília. – Reclamou a líder do templo, de rosto amarantino e a gesticular qual ave a levantar voo.

Seguiram-se alguns diálogos surdos de orelhas puxadas. Até eu concluir que Vesta era provavelmente a deusa mais antiga do panteão romano. Júpiter tinha iconografia por ser de importação grega (Zeus). Vesta mantinha a sua representação original, por os deuses primitivos (latinos) não serem retratados em estátua.

O fogo é sagrado, porquê? – Tentei descobrir.

A deusa é inocente e o fogo purga. – Foi a explicação que me deu.

Eu diria que queima! A sumo-sacerdotisa defendeu a sua cartilha:

Em Roma põe-se a mão no fogo pelos cidadãos honestos e de boa índole. Eu não era mentirosa e tinha-me queimado na mesma. Não fiquei convencida!

Pela lógica, incineram-se os cadáveres, para os purificar. É isso?

Exato. – Respondeu a chefe.

Portanto, havia um certo tipo de coerência que justificava os procedimentos. Eu só tinha de compreender os conceitos básicos e seguir o encadeamento.

Porque é que a chama sagrada não pode apagar-se? – Indaguei. A vestal máxima não hesitou na resposta, pois sabia-a de cor:

O fogo representa a vida! Tal como o coração tem de bater no peito para a pessoa não morrer, o lume de Vesta mantém-se acesso para a cidade não ser destruída, sucumbir à peste ou à invasão. Nunca tinha pensado dessa maneira. Até era poético!

O templo precisa de seis sacerdotisas para vigiar uma só lareira? – Estranhei. Uma ou duas pessoas eram mais do que suficientes para assegurar o trabalho!

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Assim podemos revezar-nos. – Foi a sua explicação. Nós, de facto, trabalhávamos por turnos.

Mas no tempo de Reia Sílvia, ela era a única vestal. – Contrapus.

Já ninguém aguenta uma vida inteira a olhar para a fogueira, não é?

A chefe tinha alguma razão e encolhi os ombros à resposta, aceitando-a enquanto não encontrasse melhor explicação. Com o tempo fui reunindo mais informação. Portanto, em Alba Longa só havia uma vestal e no reinado de Rómulo também. Numa Pompílio duplicaria os postos de vigia. Durante o período da Monarquia, o número de sacerdotisas aumentaria para seis.

No início da República vestais habitavam talvez a Regia (a morada dos reis) que, com o advento da República, se transformou na residência oficial do pontífice máximo e do rex

sacrorum (rei das coisas sagradas). A Domus Publica fazia parte do espaço consagrado à deusa, que incluía o templo redondo e o bosque sagrado. Mas, no meu tempo, o templo já não se escondia numa mata espessa. O lucus limitava-se a espaço amuralhado rodeado de casas e era uma espécie de cemitério arborizado junto à encosta do Palatino, onde crescia a árvore cabeluda!

O dormitório (Atrium Vestae) era um edifício relativamente pequeno, de piso térreo com oito divisões: seis quartos paralelos, fauces e um arquivo. No Penus Vestae empilhavam-se testamentos, tratados e outros documentos oficiais que os cidadãos nos pediam para guardar; para além de uma cópia das XII Tábuas e alguns volumes com leis testamentárias.

Havia também uma cozinha exterior com forno de lenha, virado para o templo. Portanto, as vestais cozinhavam – ao contrário do que se supunha – não só a sua própria comida, como mola salsa à base de espelta e sal, em teoria associada à Vestália mas, por nós, amassada ao longo do ano, por ser cada vez mais solicitada nas cerimónias e sacrifícios.

O templo possuía um corredor redondo de vinte colunas coríntias, que circundavam a parede que, por sua vez, protegia o fogo do vento. No teto havia uma abertura da qual saía o fumo branco da deusa. Havia ainda alguns degraus que as matronas romanas subiam quando nos visitavam, no mês de Juno, pelas festas em honra da deusa Vesta.

O Atrium Vestae e o templo redondo estavam rodeados por um muro alto com portão aberto para uma rua lateral, a fazer esquina com a via-sacra. Eu virava à direita quando tinha de assistir às assembleias do colégio de pontífices, na Cúria Régia. Nestas reuniões de alto gabarito, os intervenientes pavoneavam-se como galos, para falar o que mal se entendia e gerava sempre polémica, em assoberbado debate de ideias.

Deixem-me falar! Não me interrompam. – Repetia regularmente o pontífice máximo nas nossas sessões.

A minha mãe ensinara-me a evitar dois tópicos de conversação: religião e política. Os pontífices era só do que falavam! Não admira que as suas discussões fossem mais perigosas que as dos senadores na Cúria Hostília!

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Caros colegas temos de concordar nos tópicos da agenda de hoje: regular o calendário, registar ocorrências religiosas e opinar sobre elas. – Assim começava Aenobarbo as reuniões, pois os temas eram quase sempre os mesmos.

O colégio de pontífices tinha membros masculinos e femininos. No ano em que eu entrei para o sacerdócio havia seis vestais: Metela, Fonteia, Popília, Perpena, a chefe e eu. Entre os homens destaco cinco, Aenobarbo, Mérula, Vopisco, Druso e Cévola.

Aenobarbo raramente se entendia com Mérula. Descontando o Rex Sacrorum, que teria

as atribuições religiosas do antigo rei se o seu cargo não fosse quase exclusivamente

honorífico numa República, o pontífice máximo e o flâmine de Júpiter eram os dois

homens mais importantes a prestar culto em Roma. Portanto, não era bom sinal quando as suas personalidades eram irreconciliáveis!

No templo de Rómulo havia uma vestal e três flâmines: Dialis (de Júpiter), Martialis (de Marte) e Quirinus (Povo Romano), correspondentes à tríade do Capitólio. – Explicou-me Mérula, com a sua voz suave mas firme. – Durante a República esse número aumentou. Neste momento há nove flâmines e seis vestais.

Porquê tantos? – Quis eu saber. Esta foi a resposta que ele me deu:

Os deuses são exigentes e não se poupam nos meios para os satisfazer.

Mérula era um patrício, filho de patrícios e a sua mulher tinha igual perfil. Os dois viviam no Capitólio, junto ao templo de Jove. Tinham casado sob os preceitos mais antigos, até que a morte os separasse. O regime de confarreatio não admitia o divórcio.

Se um de nós morre, o outro tem de abandonar o posto. – Especificou ele.

Espero que isso nunca aconteça. São um casal tão simpático! Gosto muito da flamínica e de Mérula também. – Fui sincera, pois era exatamente o que pensava.

Obrigado, Emília. – Sorriu-me. – Dás jus ao nome. És definitivamente uma lépida.

Vopisco era um patrício conservador de poucas falas. Nos tempos livres escrevia peças de teatro sobre temas gregos. No geral, era tímido e intelectual. Tinha pouco jeito para as armas. Era estrábico e o gémeo sobrevivente de uma ninhada de dois bebés. O irmão mais velho chamava-se Lúcio e gerara celeuma no fórum por se ter candidatado a pretor sem antes ter sido questor ou edil, o que era considerado irregular.

Vopisco é um questor eleito pelos optimates, é isso? – Admiti, pela conversa. Eu queria conhecê-lo e fizera questão de sentar-me a seu lado.

Sim, Emília. Inquietam-me os ventos progressistas. – Respondeu preocupado.

Porquê? – Tentei perceber.

Mário convenceu Júlio a alterar o nosso sistema de governo e colocou-nos a todos uns contra os outros! Éramos uma família unida, mas agora damo-nos a coices! – Queixou-se, mas sem querer aprofundar o assunto. Nem prestei atenção ao conteúdo político, a minha preocupação era outra:

Vopisco tem visto a César? Ele está bem?

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Quem, o miúdo? É o único da família que se aproveita. – Mas mais não disse.

À esquerda de Vopisco sentava-se Druso, um plebeu nobre, moreno e de estatura média-baixa. Era um homem muito interessante, na postura e nos princípios. A sua personalidade era voluntariosa e cativante. Aprendera oratória com o pai, um dos grandes tribunos da plebe da sua época. Em carácter era dominante sobre Mamerco, o irmão que vivia à sombra das diferenças políticas que os separavam.

Porque é Druso popular e Mamerco optimate? – Perguntei, no dia em que me sentei à sua direita. Ele tinha rosto agradável. Quando sorria, as bochechas faziam covinhas.

Eu defendo a ideologia política do nosso pai. Mamerco herdou a mentalidade do pai adotivo. – Foi a resposta que me deu.

Qual dos dois tem razão?

Eu, claro. – Replicou, deixando-se rir. – O teu pai concorda comigo.

Marco também, eu sei. Dão-se todos bem? Era esse o meu cuidado, pois defendia a harmonia.

Porque perguntas? – Estranhou ele.

Vopisco disse-me que há brigas na sua família por razões políticas. – Suspirei, antes de expor o meu ponto de vista. – Não é salutar! As pessoas deviam colaborar entre si, em espcial quando partilham laços de sangue.

As coisas não são assim tão simples, Emília. – Advertiu Druso.

Porquê?

Nem sempre é possível conciliar vontades, sobretudo quando estas são incompatíveis. – Argumentou Druso. – Votar em partidos diferentes é apenas o reflexo do que nos separa, quando propomos soluções alternativas para a vida em sociedade. Refleti sobre o que ele me disse. Seria Druso incapaz de dialogar se necessário?

Quem hoje não negoceia, amanhã pode ser obrigado a comprometer-se à força.

Para isso servem os advogados e os diplomatas, para estabelecer acordos! – Exclamou, sorrindo. – Eu sou um bom orador, acredito no poder das palavras para mudar mentalidades e, no futuro, talvez possamos viver num mundo mais livre e democrático!

Druso não tinha os pés assentes na terra! Cévola, pelo contrário, era um pragmático. Após dois anos na província da Ásia, regressara com Rutílio a Roma e frequentava novamente as assembleias da Cúria Régia. Era um patrício da idade de Aenobarbo, de rosto sério e oval. Tinha nariz comprido e arrebitado, olhos pequenos e a boca também. Votava no partido optimate. Mas não era austero como o pontífice máximo, que era um popular.

Porque é que Aenobarbo está sempre tão zangado? – Sussurrei a Cévola. Ele já tinha reparado que eu fazia perguntas e não se negou a responder:

O meu pai foi pontífice máximo e, na maior parte do tempo, também andava irritado. É um cargo de grande responsabilidade, que exige muito do homem que o ocupa. – Disse-me. A sua opinião tinha peso.

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Cévola tinha consideração pelo sacerdócio e pelas pessoas com quem trabalhava, pelo que era muito simpático para mim e dava-me aulas de Direito sempre que podia. Portanto, eu sentava-me muitas vezes a seu lado nos bancos da Cúria Régia.

As leis existem para serem cumpridas. – Declarou Cévola certa tarde.

E se forem injustas? – Perguntei-lhe. Cévola respondeu com bonomia:

As leis passam pelo crivo do Senado, ao qual pertencem os mais sábios e seniores da cidade que podem alterá-las ou propor outras quando necessário. As normas centenárias mantém-se atuais por serem fundamentais à organização do Estado. Druso aproveitou para meter-se na conversa e advertiu-me para o seguinte:

Atenção, existe diferença entre legitimidade e legalidade!

Como assim? – Perguntei, enquanto Cévola endurecia a expressão facial.

Quando as leis dos homens são iníquas, podem-se invocar as leis dos deuses. – Defendeu Druso, incólume à censura. – Também se deve apelar à consciência! Aenobarbo aproximou-se antes que estas palavras me entusiasmassem:

Mas paga-se caro pela irreverência! – Exclamou o chefe, com cabelos de bronze. – Sófocles escreveu a tragédia de Antígona que se atreveu a desobedecer à autoridade para dar funeral ao irmão, admitindo que assim cumpria a lei divina, mesmo quando o falecido era traidor que lutara contra a cidade em que nascera. Resultado? Ela foi condenada à morte e deixada a mirrar dentro de um buraco. Antígona não aguardou pelas Parcas e enforcou-se. Engoli em seco, perante olhar gelado do pontífice máximo.

Não assuste a menina. – Pediu Druso.

E tu cala-te, que estás a interromper a sessão! – Repreendeu Aenobarbo, antes de nos perguntar: – Ou será pedir muito que prestem atenção ao que eu estou a dizer? Cévola e Druso resolveram acatar. A sumo-sacerdotisa virou-se para mim e disse:

Shhhh! – Com o dedo firmemente à frente da boca, para me silenciar.

A vestal máxima tinha mau feitio. Impunha a sua vontade de ferro e espírito de liderança. Dava-me aulas sobre rituais e hierarquia institucional. Foi ela quem primeiro me explicou que havia quatro grandes colégios religiosos.

O mais importante é o nosso: o dos pontífices. É o único misto, pois tem tanto sacerdotes como sacerdotisas. – Notificou, numa manhã junto ao fogo. – O pontífice máximo é o líder da religião romana e, nessa medida, o grande responsável pelo bom funcionamento do sistema que presta cultos na cidade.

Há dois colégios maiores. Qual é o outro? – Perguntei, movida pela curiosidade.

O grupo dos áugures e dos arúspices identifica e interpreta sinais divinos. Os seus membros subdividem-se entre os que se especializam na observação do voo das aves e no estudo das entranhas dos animais sacrificados.

Os dois colégios menores, quais são?

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Os epulões gerem os convites feitos aos deuses e supervisionam falhas de protocolo religioso nos festivais, jogos e banquetes públicos. Os decênviros dos

factos fecundos guardam textos sagrados, mormente os livros sibilinos. Aquela era a teoria, mas eu preocupava-me com a prática:

Porque é que há tantos colégios? – Indaguei.

No tempo de Rómulo havia famílias que se dedicavam a cultos específicos, mas alimentavam rivalidades que punham em risco a relação dos deuses com a cidade. Foi então que o Estado institucionalizou os rituais, para que todos os romanos (e não apenas alguns) pudessem candidatar-se aos cargos. – Explicou-me ela.

Democratizou-se o sistema e distribuiu-se o bem pelas aldeias, é isso?

Enfim, as rivalidades subsistem, sob outros moldes. – Advertiu a chefe. – É por isso que não há um colégio, mas quatro!

Metela era a número dois. Servia de porta-voz das vestais junto das matronas da cidade. De forte personalidade, insistia em fazer-se ouvir. Era uma plebeia nobre dos Cecílios, de quem Mário fora cliente em Arpino. A sua irmã mais nova era considerada uma das mulheres mais virtuosas da cidade e estava casada com Cláudio, um conservador até à raiz dos cabelos!

Fonteia era a técnica de serviço. Reservada, possuía olhos grandes e corpo franzino. Era a vestal que mais tempo passava dentro do templo. Tinha a seu cargo os objetos sagrados. Uma responsabilidade brutal se levarmos em consideração que o Paládio era de madeira. Mas não foi a estátua de Minerva que chamou a minha atenção, foi o ícone a seu lado e que era um falo gigante!

Porque prestamos culto a Priapo? – Inquiri. Fonteia corou até à raiz dos cabelos e agarrou-se às tranças, até compor os nervos:

Este é o fascinus populi romani. – Avisou, falando devagar como quem mastiga.

O pénis do povo? – Surpreendi-me.

É a virilidade dos romanos. – Corrigiu-me encabulada. – É contra o mau-olhado.

Continuo sem entender o que faz aqui dentro do templo. – Teimei.

Não é para perceber. Há coisas que não se perguntam! Se não quiseres, não olhes. – Foi a sua proposta e ajoelhou-se a rezar, de costas voltadas para o dito-cujo!

Popília e Perpena possuíam menos anos de sacerdócio do que as três veteranas. Popília

pertencia a família influente em Roma e era parente da esposa do avô paterno de César. Perpena era neta de um amigo consular de Mário e entrara para o sacerdócio após a lapidação de Saturnino.

Nós as três, talvez por sermos as mais novas, passávamos muito tempo a fazer mola salsa! Com elas também aprendi a fazer as seis tranças do sacerdócio (e do casamento) que faziam sentir-me uma sempre noiva!

Quando eu era noviça, mal tinha cabelo para agarrar, pois tinha-o sacrificado a Vesta! As mechas de Perpena não eram suficientemente compridas, pelo que tinham de ser divididas

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em seis partes, três de cada lado, para formar tranças simples, apanhadas em mão aberta, na zona da nuca. Popília prendia o cabelo em mão fechada.

Não me arrepeles a cabeça! – Reclamava Perpena, quando eu lhe fazia o penteado.

Vá despachem-se, que se faz tarde. – Avisava a chefe, enquanto supervisionava a obra de arte.

A sumo-sacerdotisa não usava peruca, mas dava ares disso, pois nunca mudava de penteado! O seu perfil público assim o exigia. Ela passava longas horas na rua, em representação do templo, embora Metela tentasse substituí-la tantas vezes quantas podia!

Fonteia usava tranças cruzadas, enroladas em torno da cabeça, no sentido ascendente, apanhadas com gancho de ferro; que era uma espécie de penteado invertido. No original, os rolos eram alinhados como seis cordas para lá da testa.

Sigam a tradição! Deve estar tudo perfeito para a Vestália deste ano! – Exigia a sumo-sacerdotisa.

A minha prova de fogo foi celebrada logo no mês de Juno, dois meses após a minha entrada no sacerdócio. Excecionalmente nesses dias, as matronas da cidade podiam visitar o templo de Vesta. Mas faziam-no descalças, pois o ritual remontava aos primórdios de Roma, quando o fórum ainda era um pântano e só o deixou de ser quando o rei Tarquínio Prisco mandou construir a Cloaca Máxima – o esgoto subterrâneo que continuava a drenar as terras ensopadas junto ao Tibre.

Vamos abrir o santuário às matronas. – Ordenou a chefe, quando chegou a hora.

Eu estava desejando ver a minha mãe, Secunda e Apuleia. Também me saiu a fava do bolo quando Marco espreitou da esquina, como pai carinhoso a supervisionar a filha de quem tinha saudades! Não pude correr para os seus braços, mas acenei-lhe em bicos de pés, do portão do santuário. Marco esqueceu-se das regras e aproximou-se, mais sabendo que não podia entrar no espaço sagrado da deusa. Ninguém conseguiu impedi-lo de me cumprimentar e ele deu-me uma beijoca na testa para escândalo da sumo-sacerdotisa.

O que pensa que está a fazer, Marco! – Reclamou ela, benzendo-se.

Esteja sossegada que eu estou a falar com a minha irmã. – Impôs-se ele.

Vou fazer queixa de si ao pontífice máximo! – Sarapantou-se a minha chefe.

Não se preocupe eu já falei com Aenobarbo. – Garantiu Marco, mas era mentira. Depois mirou-me nos olhos e perguntou. – Estás a gostar de ser vestal, queridinha?

Não. – Respondi resolutamente, pois era a verdade. Marco ficou azul e abriu braços com mãos de dedos espetados:

Não?! Tens de dizer-me que sim, se não fico preocupado. Baixei os olhos, sem responder. A minha chefe meteu-se à frente e disse:

Não ligue! Emília está a ajustar-se à vida no templo. Um dia habitua-se. Marco hesitou na forma de proceder.

Oh, deixa a miúda em paz e vai para casa! – Exclamou Apuleia para o marido. – Não lhe cries problemas, que é pior para ela.

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Ela tentava ser solidária comigo, embora a sua atitude me tenha desgostado.

Está certo, eu vou. – Aquiesceu Marco. Porém, disse-me. – Se precisares de alguma coisa, chama-me que eu venho a correr! Tu agora és uma sacerdotisa. Mas o mano nunca vai abandonar-te, queridinha. – Avisou. Eu queria voltar com o meu irmão para casa, tanto que tive imensa de chorar ao vê-lo afastar-se.

Vem para dentro. – Pediu a minha irmã. – As tuas colegas estão a olhar.

Tentei conter-me. Caminhei ao lado da Mater, com Apuleia e Secunda no encalço, de cabelos soltos sobre as costas, como era da praxe. Assim entrámos no templo redondo. Não as deixei desamparadas nas orações à deusa. Fiz-lhes muitas perguntas, para saber da minha família e sorri às novidades que partilhavam comigo. Elas comentaram o meu cabelo cortado e eu tive de aguentar a troça da minha irmã.

Estávamos nisto, quando apareceram Júlia e Márcia Rex. Vinham impecáveis em trajes luxuosos. A sua presença era majestosa, no fórum mais até do que no Palatino! Tal irritou a sumo-sacerdotisa, que antipatizava com mulheres patrícias. Metela abespinhou-se por serem esposa e sogra de Mário e, por causa disso, recusou-se a cumprimentá-las. Ao que parece, a competição entre Cecílios e os seus clientes de Arpino estendia-se ao recinto sagrado. Perpena fez as honras da casa e evitou o pior.

O drama intensificou-se com a chegada de Drusa. A chefe das vestais virou-lhe as costas. Metela impediu Fonteia de saudar a recém-chegada. Popília recusou-se a cumprimentar mulher adúltera e ainda não oficialmente casada pela segunda vez, pois o atual marido complicava-lhe a vida. Até Perpena foi insensível ao facto de a irmã de Mamerco e de Druso estar grávida.

Ela fica à porta do templo? – Apiedei-me.

Todas as mulheres deviam ter acesso ao recinto sagrado da deusa, durante a Vestália. Por isso, dei a mão a Drusa, para a convidar a entrar, seguindo as regras que as colegas me haviam ensinado. Ela, visivelmente emocionada pelo meu gesto, disse-me o que eu nunca esqueci:

A minha Gens descende dos etruscos que acreditavam na igualdade entre homens e mulheres e que não renegavam a liberdade de escolha às suas matronas.

Desejei-lhe um bom parto. Eu pensava estar a fazer o que me incumbia. Porém, a minha mãe advertiu que eu podia estar metida em sarilhos. Ela tinha razão. As minhas colegas haviam considerado o meu ato desafiador e a sumo-sacerdotisa estava furiosa.

Vem comigo, imediatamente! – Puxou-me.

Eu queria ficar com a minha família, mas segui a chefe, para não criar mais problemas. Desci com ela os degraus do templo. Acompanhei-a até junto do forno de lenha e fui encostada a uma mesa onde havia restos da mola salsa sobre tabuleiros de madeira.

Estás absolutamente proibida de voltar a contrariar-me, ouviste? – Perguntou ela, já em privado, agarrando-me pelo braço com força.

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Mas que fiz eu? – Refutei, confusa.

Há mulheres como Drusa que, pelo seu comportamento desviante, não deviam colocar os pés no santuário! Ela não devia ter vindo. Mas há pessoas que não se enxergam! – Argumentou. – Se tu não a tivesses cumprimentado, ela teria ido embora sem entrar no templo.

Cumpri as regras que me ensinou. – Advoguei. Ela nem ouvia o que eu dizia!

Por outro lado, não podes falar com a tua mãe, irmã ou cunhada como se ainda fossem da tua família, porque já não são. Tu agora és uma vestal! – Berrou. Ela queria que renegasse ao meu sangue. Recusei-me a fazê-lo.

Não preciso deixar de ser uma Emília para ser uma boa sacerdotisa. O carinho que nutro pelos meus parentes não é incompatível com a ideia de velar pelo fogo de Vesta. – Afirmei, apesar de ainda ser uma criança e de estar a enfrentar uma mulher adulta.

Se continuares a manifestar predileção pela tua Gens, ninguém vai acreditar que és suficientemente imparcial, nem pedir-te para guardares testamentos.

Eu sou justa. – Afirmei em minha defesa.

Os outros precisam de provas da tua independência e que não contribuis para a discórdia na cidade. – Gritou-me. Resisti ao conselho, pois era combativa e acreditava na minha verdade:

Há muitas maneiras de comprovar a fidelidade à causa pública, sem virar as costas à família. – Insisti com coração valente.

Ela agarrou na espátula de madeira do forno e começou a bater-me. Ainda tentei evitar a brutalidade, mas ela era mais forte e mais alta do que eu. Suportei a dor até que ela se cansou. Mordi as lágrimas, enquanto ela me atava os pulsos com uma corda presa em aldraba alta da parede, para eu ficar de braços esticados.

Agora ficas aqui de castigo. – Vociferou, com dedos férreos.

Foi-se embora. Abandonou-me na cozinha, sem rasgo de remorsos. Nem dá para explicar o que senti. Foi horrível! Sobretudo doloroso, mas também aflitivo.

Assim fiquei até que a noite cobriu Roma com o seu manto negro e as matronas partiram – incluindo as da minha família, das quais não pude despedir-me. Junto ao forno cheirava a comida, mas eu tinha a barriga vazia. Quando eu já desesperava de fome e de frio, com braços dormentes, pernas bambas e corpo combalido, apareceu Metela.

Fonteia e a chefe ficaram a vigiar o fogo sagrado. – Avisou-me, como se eu estivesse interessada no assunto! – Perpena e Popília já dormem no átrio das vestais. Vim espreitar-te, para saber se estás bem.

Dói-me tudo. – Confessei. Observou-me com piedade e resolveu soltar-me das amarras.

Ainda és uma criança, não podes ficar aqui a noite toda. – Começou por justificar-se, embora tivesse uma agenda a cumprir. – Aprendeste a lição?

César e a Vestal 49 Maria Galito

Hoje fui repreendida por cumprir as regras que me ensinaram. Não entendo. – Admiti, evitando tocar nas feridas.

Há normas que se interpretam mediante as circunstâncias. – Avisou-me. Mas ela parecia comprometida com a resposta. Insisti no questionário:

Como distingo os preceitos a executar com rigor, dos que adapto às situações? Metela tentou ser compreensiva com a noviça:

Seguindo o exemplo das vestais que são mais velhas e experientes do que tu. Aproveitei para contrariar-lhe o raciocínio:

Compete-me imitar a chefe? Nunca farei a ninguém o que a vestal máxima me fez hoje. – Garanti, reclamando contra a injustiça.

Metela ficou impressionada com a minha resposta. Amparou-me no caminho até à porta do átrio das vestais. Benzeu-se no altar, à entrada do dormitório e foi buscar unguento para tratar as minhas feridas. Claudiquei até ao meu cubículo e deitei-me sobre leito tão austero como a nossa vida ali dentro, pois nem escravas tínhamos – que a intenção era levarmos a vida pura dos nossos antepassados!

Popília e Perpena espreitaram-me. Pareciam divertir-se com o meu sofrimento. Metela mandou-as embora, cada qual para o seu quarto.

Estás melhor? – Perguntou, depois de curar-me.

Sim, obrigada. – Respondi, embora as dores não tivessem diminuído. Ela apercebeu-se do meu desconforto e tentou apelar ao bom senso:

Escuta, Emília… eu sei que é difícil compreender… Fonteia, a chefe e eu sofremos muito ao entrar no sacerdócio. Mas depois passa! Aprendemos as regras e adaptamo-nos a esta vida.

Respirei fundo. O corpo estava ferido e as mazelas puniam-me, mas, em espírito, continuava livre. Eu precisava compreender a razão de todo aquele rebuliço!

Posso fazer-te uma pergunta?

Qual? – Hesitou Metela.

Porque voltaste as costas à mulher de Mário? – Tentei descobrir. Eu sabia que ela não gostava do líder dos populares, mas não sabia exatamente porquê.

Foi assim, naquele contexto alumiado pela luz da lamparina, que Metela me contou a sua versão de uma história complicada. Prontifiquei-me a escutá-la.

Metela era parente dos falecidos Dalmático e Numídico. Eles tinham sido os grandes rivais de Mário, conheciam-no desde miúdos e tinham apoiado a sua entrada no exército; numa época em que os sem terras não podiam alistar-se e em que um legionário tinha de apresentar-se ao serviço já equipado com cavalo e lança. Ter-se-ão despedido do amigo, a pensar que era para sempre. Admitiam reencontrá-lo no futuro, talvez com calígulas de centurião. Mas Mário subiu mais alto, ao impressionar o seu comandante militar. Este, depois de muito o premiar e promover, incentivou-o a fazer carreira política em Roma. Foi então que a raposa de Arpino bateu à porta de Numídico, a pedir referências e contactos. Este já era aclamado orador e detentor de vasta cultura. Ficou contente de rever

César e a Vestal 50 Maria Galito

o amigo, apresentou-o às pessoas certas e fez campanha política a seu favor. Mário foi eleito tribuno militar. Até aqui, favas contadas!

As divergências começaram quando o tio de César decidiu defender leis que prejudicavam os Cecílios. Numídico ter-lhe-á pedido explicações e ficou chocado com a resposta. Mário avisou-o que amigos, amigos, negócios à parte. No Senado, sob pressão de Dalmático, ameaçou-o com a prisão. Este, sentindo-se traído, nunca mais lhe perdoou a audácia e passou a conspirar contra ele.

Mário perdeu as eleições para edil, embora chegasse a pretor, pela porta do cavalo. Tornou-se governador da Hispânia Ulterior onde venceu muitas batalhas. Quatro anos depois, para espanto dos Cecílios, casou com uma Júlia.

Foi então que Numídico se candidatou a cônsul. Ele fora acusado de extorsão na Sicília, enquanto pro-pretor e, embora ilibado em tribunal, perdera a sua base de apoio. Por isso, resolveu dar uma segunda oportunidade a Mário, que o suplantava em popularidade. Pediu-lhe apoio político. Recordou-lhe que o socorrera no início de carreira. O tio de César admitiu pagar a dívida de gratidão e conseguiu que ele fosse eleito. Na qualidade de procônsul, Numídico foi combater o rei Jugurta, levando Rutílio e Mário como legados. Sila foi com eles.

Numídico e Mário entreajudaram-se na guerra. Mas, a dada altura, brigaram forte e feio por questões ideológicas. O primeiro era contra o recrutamento de legionários pobres, admitindo que o Estado não tinha como pagar-lhes, sob o risco de entrar em falência e que estes perderiam a fidelidade a Roma caso se tornassem clientes de comandante que lhes prometesse mundos e fundos. Mas o marido de Júlia defendia que Roma se tornara grande demais para tão pequeno exército e que era absolutamente necessário alistar legionários onde os havia, ou seja, na classe dos capite censi, oferecendo-lhes, em troca, um emprego para a vida.

Rutílio ainda tentou apaziguá-los, mas em vão. Numídico acusou Mário de querer roubar-lhe o lugar. O marido de Júlia queixou-se de abuso de autoridade, por estar a ser impedido de se candidatar às eleições. Mário partiu para Roma à revelia do seu chefe e foi eleito cônsul. Mais do que isso, conseguiu que o Senado lhe entregasse o governo da província de África e substituiu Numídico na liderança do exército. Este foi obrigado a regressar a casa de rabo ripado. É verdade que celebrou um triunfo e recebeu o cognome pelo qual ficou conhecido, mas nada parecia compensar a sensação de derrota que sentia por ter sido novamente traído pelo homem em que confiara; que o humilhara sob a acusação de arrastar uma guerra fácil de ganhar e que o tempo comprovou ser uma calúnia.

Numídico tornou-se censor e tentou expulsar Saturnino do Senado por imoralidade, pois o pai de Apuleia apoiava a carreira política de um falso (?) filho de Tibério Graco. Mas o sogro do meu irmão manteve-se no hemiciclo e, mais tarde, vingou-se de Numídico ao aprovar uma lei agrária com cláusula que obrigava os senadores a aprová-la em cinco dias sob pena de expulsão da Cúria Hostília. A princípio, Mário garantiu não aprovar a lei, mas voltou atrás com a palavra. Numídico, fiel aos seus princípios, não a homologou e partiu mansamente para o exílio, para evitar derramamentos de sangue.

César e a Vestal 51 Maria Galito

Metelo Pio, filho de Numídico, lutou pela honra do pai e, um ano depois da morte de Saturnino, conseguiu convencer o Senado a ressarcir o exilado. Numídico regressou a casa, recuperou a cidadania romana e reintegrou as fileiras da Cúria Hostília. O velho guerreiro parecia vingado, mas morreu pouco depois, seguido de Dalmático. Os irmãos teriam sido envenenados? Por quem? Metela não tinha dúvidas, o autor dos crimes fora Mário.

Por tudo isto não cumprimentei Júlia à entrada do templo de Vesta. – Concluiu Metela, muito séria.

Seria possível? A crónica, contada assim, não era abonatória para o tio de César. Podia ele ter traído os amigos daquela maneira tão vil? Não acreditei muito, pois frequentara a casa do comandante, ouvira as suas histórias e comera torradas com o seu sobrinho. A ser verdade, era difícil de engolir!

Metela, obrigada por me ter contado a história e por me ter ajudado. – Agradeci.

Ela despediu-se e foi-se deitar. Quando fiquei sozinha, estiquei pernas e braços na cama. Mal conseguia respirar com dores, mas não podia claudicar! Fixei-me no teto onde brilhavam os olhos de César. Recordei as tareias que ele levava do pai. Admiti que se o meu amigo era capaz de sobreviver à injustiça, então, eu também conseguia! Eu estava determinada a ser valente.

Mas os meses custavam a passar e as lições de moral eram muitas. Eu mantinha-me fiel ao meu código de valores mas, com o tempo, fui assimilando hábitos de vestal. Comecei a ser a primeira a orar à deusa, levantando-me pela aurora. Já cumpria os rituais com bonomia e aguentava estoicamente os desafios diários com menos revolta. A insurreição foi dando lugar ao comodismo.

Ser vestal tem as suas vantagens. – Alertou Metela. Eu não conseguia imaginar qual! – Não é cargo necessariamente vitalício.

Ah não? – Perguntei, vendo luz ao fundo do túnel.

Ao que parece, uma vestal tinha de ser virgem, mas não era obrigada a ser sacerdotisa toda a vida! Assumia funções durante um período mínimo estipulado por lei, após o qual podia regressar à vida civil e até casar – embora numa idade em que provavelmente já não conseguia engravidar.

De acordo com as normas, assina-se contrato por trinta anos para aprendizagem (primeira década), realização (segunda década) e ensino (terceira década). Depois, pode-se abdicar. – Explicou, para me dar alento.

Eu posso ser despedida? – Perguntei, atrapalhando a minha interlocutora.

Claro que não! – Asseverou com perplexidade. Após o espanto inicial, deu-me um conselho. – Emília, se a deusa te recebeu ao seu serviço devias orgulhar-te disso e desempenhar a tua função o melhor possível.

Mas trinta anos é muito tempo! Não sei se aguento. – Queixei-me. Metela mirou-me fixamente, depois cruzou os braços e rematou:

César e a Vestal 52 Maria Galito

Antes disso, só sais daqui… morta.

No caso de óbito natural, eu tinha direito a funeral de Estado e as minhas cinzas seriam guardadas no cemitério do lucus, portanto, dentro do pomério. Se caísse em desgraça, o meu nome (o da Gens) seria amaldiçoado e o cadáver ficaria enterrado no tal buraco do campus sceleratus!

Eu não quero morrer. – Declarei convictamente. Metela suspirou de olhar vago.

Toda a gente morre, Emília. Essa é a única certeza que temos ao nascer. – Foi a sua perspetiva fatalista. Mas eu era uma miúda cheia de esperança!

Afinal, podem acusar-me como e do quê? – Insisti em saber.

Na esfera pública, se um cidadão tirar a virgindade a uma vestal é flagelado pelo pontífice máximo, em público, até à morte. A sacerdotisa é julgada no quaestio, um tribunal especial e acusada de incestum.

Incesto? – Surpreendi-me. – Ora essa, porquê? Metela explicou a lição que lhe haviam ensinado, da melhor maneira que sabia:

A título privado, incestuosas são as uniões entre pais e filhos, entre irmãos, e entre tios e sobrinhas. O incesto religioso é diferente, reporta-se à relação entre uma vestal e o seu amante, percebes?

Não. – Conclui. Metela ficou atrapalhada.

Foi assim que aprendi. – Confessou, antes de aconselhar prudência. – A acusação é séria e a sentença já foi aplicada no passado. Portanto, não cometas nenhuma loucura! Se prevaricares, vira-se a cidade contra ti.

Está bem. Mas uma vestal não pode contrair matrimónio, porquê? – Insisti.

Uma mulher casada não tem tempo para estar sentada no templo a velar pelo fogo sagrado. Tem de cuidar da casa, do marido e dos filhos, dos sogros, dos pais e de toda a família! – Asseverou Metela.

Estou a perceber…

Em compensação, a virgindade feminina é valiosa aos olhos dos deuses. Cada uma de nós tem direito a 85 talentos por trabalhar para o Estado. – Declarou. Ela parecia entusiasmada com a perspetiva. Eu nem por isso.

O que faço eu com 85 talentos? Sinceramente, preferia casar e ter filhos.

Eu não estava habituada a lidar com dinheiro, nem sabia em que usá-lo. Se podia comprar tecidos importados? Sandálias ricamente decoradas? Joias? Pelo menos enquanto fosse uma vestal, eu não podia ser vaidosa. Metela tentou animar-me:

É uma quantia elevada, Emília! – Avisou-me. – Corresponde a 510 000 denários, ou seja, a dois milhões e quarenta mil sestércios! É uma pequena fortuna! A maioria dos paterfamílias da classe equestre não ganha tanto! Com este dinheiro consegues adquirir uma vila rústica perto de Roma e viver lá confortavelmente a tua velhice.

César e a Vestal 53 Maria Galito

A minha velhice… – Suspirei. Metela parecia surpreendida com o meu desapego por bens materiais:

Os teus 85 talentos em ouro já foram depositados no Tesouro. O Estado garante que o dinheiro existe e que está bem guardado até terminares o teu mandato. Podes aplicá-lo, se desejares, mas cuidado para não o perderes! – Alertou. – Entretanto, recebes um pecúlio anual que garante as tuas despesas correntes. Vale a pena, asseguro-te. Falo por experiência, pois já tenho alguns anos disto.

As regalias atribuídas às vestais prestigiavam o cargo. Incentivavam as famílias romanas a disponibilizarem as filhas para o templo. A sacerdotisa, em si, ficava garantida do ponto de vista financeiro e, se fosse discreta, não tivesse parecer sobre temas fraturantes ou não se importasse de abdicar da maternidade, até nem fazia mau negócio!

Fiquei mais esclarecida. – Rematei. – Obrigada pela informação.

Estamos as seis no mesmo barco, Emília. – Disse-me Metela. Levantou-se e foi tratar dos seus afazeres.

Era preferível que as sacerdotisas colaborassem entre si. Mas a vida no santuário não era perfeita e as colegas alimentavam rivalidades desnecessárias. Metela dava-se mal com a chefe. Fonteia engolia o orgulho ferido e nunca se sabia bem o que conjeturava! Popília e Perpena andavam sempre a chatear-me. A chefe das vestais, por seu lado, era uma tirana que me repreendia por cantar, rir e dançar.

Eu não podia fazer barulho em espaço sagrado. Tinha de pedir autorização para

tudo, qual desprovida de cabeça para pensar, garganta para falar e pés para andar. A desobediência era severamente corrigida. A vestal máxima vergastava-me por faltas maiores; e castigava-me com carolos, palmadas e reguadas por faltas menores. Se eu abria a boca na Cúria Régia, o pontífice máximo exigia que eu colocasse o braço no ar antes de intervir, mas nunca me passava a palavra. E eu levitava. Imaginava-me a voar pelo fumo branco de Vesta, que subia até ao céu pela claraboia, qual passarinho! Sempre que eu orava, aliviava a dor. Mas andava triste, por perceber que deixava arrastar as manhãs até à noite, sem encontrar uma solução para a minha vida!

Tem paciência, Emília. – Aconselhou-me Fonteia, entretida a tricotar a lã.

Devo esperar que o tempo passe devagar, devagarinho, parado? – Rebelei-me.

A princípio tudo parece difícil e a meta distante. Um dia deixa de ser… Suspirei longamente e resolvi tomar a iniciativa:

Vou fazer um risquinho por dia na parede.

Eu espreitava a rua do templo redondo à procura de César, mas não o via. Nem o medo de morrer o apagava do meu coração, onde ele tinha residência permanente. Recordava o seu carisma, os olhos penetrantes e sonhava com ele a socorrer-me dos castigos da sumo-sacerdotisa. Se em criança enfrentara Júlio a favor de César, eu agora precisava de um herói que me protegesse da sumo-sacerdotisa no átrio das vestais e, na Cúria Régia, de um Aenobarbo irritado.

Vigilasne rex? Vigila! – Exclamei em oração. – Mas mando o rei vigiar, o quê?

César e a Vestal 54 Maria Galito

Não mandas bugiar ninguém! – Exclamou, incomodado com a impertinência. Porque gritava ele? Tentei fazer-me entender, pois Aenobarbo não me ouvia:

Não entendo porque repetimos esta frase ritual se já não vivemos em monarquia.

O ritual é anual, já não há monarcas e quem dá ordens sou eu, entendido? – Berrou. A pergunta era retórica.

Está bem. Então, quer que faça o quê? – Indaguei. Se o pontífice máximo queria um favor, bastava pedir educadamente e eu, em princípio, não tinha problema em fazer-lhe a vontade.

És uma vestal. Comporta-te como tal. É pedir muito? – Ironizou. Pelos vistos, sim.

Era por essas e por outras que eu, no colégio de pontífices, me sentia pato bravo, ou azeite a boiar em água. Mas agarrei-me aos rolos de papiro carregados de letras, na tentativa desesperada de escapar ao que me limitava e oprimia.

Aprendi a ler, a escrever e a contar rapidamente. As aulas eram de primeira qualidade e rigorosas na assimilação de conteúdos. Aprofundei religião e direito, a partir de textos de complexidade crescente. Mas a minha dedicação aos estudos não me livrava de agruras e acredito que despertasse o pior que havia em Popília e Perpena! Elas não queriam que eu soubesse mais do que elas, nem fosse menos punida por isso.

Lá está ela a armar-se em esperta! – Arguia Popília, a mais dengosa.

Piores eram os dias em que a chefe das vestais nos fazia exames orais. Um drama! Popília considerava-se a mais inteligente e era a preferida da chefe. Mas não me acompanhava o raciocínio. Ficava colérica em consequência! Alta, carrancuda e com complexo de superioridade, pensava ter sempre razão. Os seus olhos grandes pareciam amistosos, mas ela era capaz de espetar unhas em carne! O seu comportamento era dominante sobre Perpena. Esta não lhe fazia sombra. Era teimosa, mimada e volúvel. Possuía má memória e ficava nervosa sob pressão, pelo que errava nos testes. Preocupava-se exclusivamente com questões religiosas.

Popília e Perpena sentiam-se ameaçadas por mim. Gostavam de vingar-se quando algo não lhes corria de feição. Uma vez esconderam picos e estevas dentro da minha cama. Quando me deitei fiquei com as costas rasgadas e pegajosas. No outro dia de manhã, quando me viram, riram-se do meu sofrimento. Reclamei do que me tinha acontecido, mas percebi que era contraproducente fazê-lo, pois não apelava aos seus bons sentimentos e só me fazia alvo de repetidos ataques de malvadez. Passei a não me queixar, para não dar parte de fraca e a ler mais, para entreter a mente.

Eu tinha acesso aos volumes das estantes da Biblioteca da Cúria Régia e analisava todo o tipo de leis. No âmbito da religião, debruçava-me sobre regulamentos, decretos pontifícios, atas diárias e apreendia depressa as matérias. Era a minha sorte!

Cévola elogiava o meu progresso nos estudos e disponibilizou-se a dar-me aulas sobre as XII Tábuas que o rei Numa Pompílio redigiu após um passeio pelos sete montados. O pontífice era um homem de letras que publicara dezenas dos seus discursos, gabados pela sua oratória! Era um virtuoso que criticava a atualidade política. Também dava lições de

César e a Vestal 55 Maria Galito

geografia. Tecia comentários sobre aves, árvores, flores e invocava tradições antigas que sabia explicar ao pormenor.

Nos meus primeiros anos de colégio, Cévola contou-me as lendas gregas de Hércules, Aquiles e Ulisses. Aconselhou-me a ler a Ilíada e a Odisseia de Homero, tarefa que considerei desafiante! Não era fácil dominar os sofisticados poemas épicos. Porém, o pontífice ajudou-me a simplificar a mensagem; a interpretar as motivações de Hércules, as dores de Aquiles e as aventuras de Ulisses. Agradeci-lhe por isso.

Cévola fazia regular referência ao teatro grego de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes. Como a minha vida era trágica o suficiente, preferia as comédias de Aristófanes. Em latim eu adorava as farsas de Terêncio e de Plauto. Cévola apreciava os meus comentários às peças e ficava encantado com os meus olhos pestanudos.

Dou-te cem sestércios por cada sonho, Emília. – Disse-me um dia.

Eu tenho muitos sonhos, Cévola.

Então farei de ti uma mulher rica. – Galhofou, em resposta. Eu gostava dele porque me tratava bem. A minha chefe era de outra argamassa!

Emília está a incomodar-te, Cévola? – Perguntou ela. O pontífice falou em minha defesa:

Pelo contrário. É uma aluna inteligente a quem dá gosto ensinar.

Ah sim? Vamos ver se ela aprendeu a lição. – Exigiu a minha chefe. – Agora quem faz as perguntas sou eu. Emília, atenção! – Exclamou. Eu empurrei a barriga para dentro e os ombros para trás, e respondi às questões, como se a minha vida dependesse disso.

Cévola ficou impressionado com a cena a que assistiu e, antes de partir, pediu à colega para ser menos rude comigo. Eu sorri-lhe em agradecimento e ele nunca mais deixou de se ocupar de mim.

A sumo-sacerdotisa levou-me de volta ao santuário e eu segui-a até ao Penus Vestae que possuía estantes cheias de rolos de papiros. Havia pilhas de pergaminhos e cestos com tábulas de cera espalhados pelo chão a respirar pó. Mas a chefe não queria limpar o espaço com medo de estragar os documentos.

Não faças essa cara, Emília. O que digo é para teu bem. Estou a ser pedagógica. – Afirmava a chefe. Como a palavra era etimologicamente grega, não creio que ela tenha assimilado o seu significado. – Emília, onde está o testamento do cônsul? Precisa ser guardado já!

Como a chefe era desorganizada, atirava tudo para cima de mim e eu mais parecia um cogumelo inchado! Solicitava a minha assistência nos arquivos, pois não era fácil lidar com testamentos e tratados. Eu era a mais novinha, mas Metela e Fonteia, embora veteranas, tinham pouca paciência para burocracia e delegavam, em Popília e Perpena, as tarefas que não queriam executar. Mas elas levavam o dobro do tempo a redigir o que eu despachava depressa. Portanto, eu ficava encarregue do trabalho de sapa que mais ninguém queria fazer, mas com o qual aprendia bastante.

César e a Vestal 56 Maria Galito

Repete, repete. – Ordenava a chefe, gesticulando como se quisesse matar um mosquito em movimento.

Ela ensinava-me retórica capaz de adormecer um advogado! Quando terminava a aula, dava-me descanso. Mas, no dia seguinte, chamava-me a depor. Depois agarrava-me pelas orelhas e os meus pés remavam em água imaginária, ansiosos por chão firme. Tanto que eu imaginava as suas tranças qual cobras de Medusa com línguas venenosas e sibilantes, assim que me viam.

Ah, obrigada. Então é tudo, podes ir comer. – Admitia, após trabalho interrupto.

A chefe apanhara susto comigo! Após impor-me jejum intercalado, eu lançara-me à mola

salsa – às escondidas, claro! – para aliviar a fome. Ela apanhou-me com a boca cheia de miolos e deu-me tantos carolos com os nódulos dos dedos que eu fiquei roxa!

Emília, a mola salsa é para os sacrifícios. Não se come! – Vociferou, resoluta.

Mas eu tenho fome…

O jejum é uma prática de autocontrolo. Está associado à observação religiosa. É saudável. Assim prestamos melhor culto a Vesta. – Argumentou ela, firmemente.

Se eu não comer, desmaio. – Declarei, já tonta. Tombei! A chefe das vestais assustou-se e acudiu-me:

Está bem, vamos comer. – E assim se resolveu a coisa.

O seu comportamento não era equilibrado. Mas ela gostava de ser respeitada e impunha a sua vontade em aulas peripatéticas, ao estilo do pontífice máximo, enquanto se entretinha a debitar informação que, se eu não pedisse, ela não explicava.

Nós velamos pela veracidade, legalidade e incorruptibilidade dos testamentos e… Tive de interromper-lhe o raciocínio, se não ela falava sozinha.

As vestais podem redigir testamento? Respirou fundo e olhou para mim com cara de górgona.

Podem e devem. Caso contrário, os seus bens revertem a favor do Estado.

Já fez o seu?

Não. – Respondeu secamente.

Porquê? Para meu espanto, ela não engoliu a verdade:

Porque não tenho a quem legar o que é meu.

Oh! Devia ser por isso que ela era tão má!

Emília vai chamar as tuas colegas. – Solicitou. Acatei a ordem. Popília e Perpena vieram e colocaram-se em sentido.

Hoje tenho trabalho para vocês. Vão servir de testemunhas. – Avisou a chefe.

É tarefa de responsabilidade. – Admiti, olhando para elas.

Exato! Porque é tão importante a palavra de uma pessoa? Foi Popília quem respondeu à sumo-sacerdotisa:

A palavra tem força de lei na presença de testemunhas.

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Honrado é aquele que tem palavra. – Citou a chefe. – O que significa isto, Emília?

Probo é aquele que faz o que diz e diz o que faz. A vestal máxima confirmou que eu acertara a resposta. Depois perguntou-nos:

Vocês não dizem mentiras, pois não?

Popília apressou-se a negá-lo e declarou sob juramento que não o fazia. Perpena cruzou os dedos atrás das costas antes de asseverar inocência. Eu engoli em seco.

Testemunha que recuse prestar declarações sobre o que viu e ouviu é declarada infame e ninguém pode servir de seu atestador no futuro. O falso testemunho é punível com a morte e o mentiroso é atirado do alto da rocha Tarpeia. – Avisou Popília, para virar o vento a seu favor.

Muito bem. – Aplaudiu a nossa chefe. – Hoje podem cumprir essa nobre tarefa. Suspeitei da fartura! Refleti antes de me pronunciar a propósito:

A chefe quer que testemunhemos o quê? – Insisti em saber. – Eu não vi, nem ouvi nada de extraordinário. Há dias que não saio do santuário, nem para assistir a uma cerimónia religiosa. Nada tenho para dizer e não cometo perjúrio. – Avisei. A vestal máxima podia ter-me castigado pela impertinência. Limitou-se a dizer:

Quem vai comigo é Popília.

Eu não vou, porquê? – Queixou-se Perpena.

Porque tu não estudas! – Ralhou a mestre.

Eu leio e memorizo tudo. Juro! – Defendeu-se Perpena. Mas falhou assim que prestou prova.

Devias ter ficado calada. Eu não gosto de ser contrariada. – Irritou-se a chefe.

A vestal máxima foi buscar a régua e deu-me ordens para corrigir Perpena. Fiquei chocada com a proposta e recusei-me a fazê-lo, por uma questão de decência:

A minha função é estudar, não é castigar a colega quando ela não sabe a lição.

Emília aplica o castigo! – Insistiu a mestre, com voz de trovão.

Nunca agredi ninguém. – Confessei, sem intenções de alterar o paradigma. A mestre fechou o rosto à simpatia:

Ou dás as reguadas a Perpena, ou Perpena dá-te as reguadas a ti. Escolhe!

Tremi! A minha colega detestava-me e podia cascar-me com força! Fiquei muda de espanto e hesitei. Foi então que Perpena agarrou na régua e bateu-me com ela. Encolhi as mãos de dor. A sumo-sacerdotisa foi-se embora e Popília foi atrás dela a rir. Fiquei fixa ao chão, ao lado de Perpena, que aproveitou para me atacar com palavras:

A nossa chefe é plebeia. Tu és patrícia. Mas ela é tua superiora hierárquica, deves obedecer-lhe. – Alegou, para minha surpresa. Do que estava ela a falar?!

Eu tentei salvar-te! Porque te viras contra mim? – Estranhei, atordoada.

Os patrícios não são mais do que os plebeus. Não penses que és mais do que eu!

Eu nunca disse que era. – Defendi-me, levando as mãos ao peito.

Ouve-me, Emília. As leis de Roma ditam que ninguém está acima da lei.

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Eu sei. Aqui somos todas iguais, Perpena.

Não te armes em esperta, porque não me intimidas! – Exclamou, em bicos de pés. A sua injustiça para comigo era gritante.

Tu corres à frente de um leão que não te persegue, Perpena!

Não percebi. O que queres dizer com isso? Ela não compreendera a minha metáfora e eu abanei a cabeça à sua estupidez:

Perpena, esta guerra que tu e Popília me fazem, acaba hoje. Vocês as duas já ultrapassaram as marcas. – Declarei, determinada. – Somos vestais, devemos ser amigas e parar com estas tricas de plebeus e patrícios que não fazem sentido lá fora, muito menos aqui dentro. Só depois dei de caras com Metela. Ela tinha acabado de chegar.

Preciso que me substituas no templo, Perpena. – Ordenou.

Sim, vou já! – Admitiu a jovem, que evitava contrariar a mais velha. Perpena foi-se embora e Metela sentou-se a meu lado.

Conta-me tudo, desde o princípio. – Pediu-me. Assim fiz. Depois perguntei-lhe:

Como podem as vestais proteger a cidade, se nem a paz sabem fomentar? Ela respirou fundo antes de se pronunciar a propósito.

Tens razão, Emília. Vou falar seriamente com as outras colegas e acabar com este tipo de tensão no nosso santuário. É inaceitável!

Ela podia ter agido como Fonteia, que se fingia cega e encolhia os ombros aos excessos das colegas. Ao ser simpática para mim, Metela mostrou ter boa vontade em ajudar-me e, desse dia em diante, as altercações diminuíram bastante.

Com o tempo chegou a minha terceira Vestália. Eu já era suficientemente experiente para saber que havia regras a cumprir, por isso, quando a minha mãe e a irmã Secunda entraram no templo redondo, nesse mês de Juno, soube como comportar-me. Cumprimentei-as à porta. Mas, sob observação da vestal máxima, fui discreta nas minhas manifestações de afeto. Deixei que prestassem culto à deusa e só falei com elas depois. Mas não deixei que se fossem embora sem me informarem sobre a saúde do meu pai, a carreira de Marco e as peripécias dos três filhos de Apuleia. Perguntei-lhes por Prima que vivia na Sardenha com o marido, ainda sem descendência e por quem eu me inquietava, pois sabia que a minha irmã mais velha abortara uma vez e perdera um filho depois de ele nascer. Mas depois a Mater disse-me:

Temos novidades. Secunda vai finalmente casar!

O noivo regressara a Roma da sua longa missão no estrangeiro e a boda estava para breve! Eu podia assistir à festa, pois a minha presença era desejada e fora garantida por Mário, que era áugure e metera cunha junto do pontífice máximo, que também fora encarregue de presidir à cerimónia. O meu pai gostava de casar as filhas à moda antiga, embora fosse moda caída em desuso, pois já pouco se fazia!

Fiquei vibrante de entusiasmo, pela hipótese de sair do santuário e por partilhar a alegria da minha irmã, no dia mais importante da sua vida. Sorri-lhe. Secunda baixou os olhos.

César e a Vestal 59 Maria Galito

Ela estava nervosa com o casamento, por causa da noite de núpcias. Pediu-me que orasse por ela, o que prometi fazer com todo o gosto.

A minha mãe fez-me sinal e eu virei o rosto para a porta. Drusa subia os degraus de acesso ao templo. Vinha de mão dada com as filhas do primeiro marido e apresentou-se no santuário com nariz empinado e novamente grávida. Não aceitava ser discriminada, como no ano anterior e estava preparada para desafiar toda a gente, se necessário! Desta vez, porém, foi saudada por Fonteia. Metela e a sumo-sacerdotisa não ofereceram resistência.

Drusa casou com Saloniano há dois meses. – Explicou a Mater.

Portanto, ela passou oficialmente da categoria de amante a esposa. – Conclui.

Sim, ela agora é legítima e já todas a saúdam novamente. – Admitiu a minha irmã, que acrescentou informação pertinente. – O segundo marido dela foi eleito pretor e assumiu o cargo no início deste ano.

Então Drusa está no seu pãozinho pingado! – Sorri, feliz por ela.

A situação regularizara-se, portanto. As matronas da cidade pareciam dispostas a esquecer o adultério, o que garantia um futuro às filhas de Drusa. O tecido social romano podia rasgar, mas também sabia remendar-se.

A Mater e Secunda despediram-se de mim, sabendo que a separação seria breve!

No dia do casamento da minha irmã, o pontífice máximo integrou-me, não numa procissão, mas na comitiva de convidados para a boda. Seguimos pela vereda em direção ao Palatino, a conversar animadamente, enquanto o sol descia no horizonte.

Eu mal dormira nessa noite, de tão entusiasmada com a ideia de visitar a casa patriarcal! Sentia-me contente por regressar ao local de origem e saudei os rouxinóis que cantavam à porta dos Emílios Lépidos. Passei as mãos pelas paredes da minha infância e entrei no vestíbulo, onde saudei Amílcar, que me retribuiu o cumprimento com um sorriso ternurento. Avancei para o átrio onde a família da noiva nos aguardava e ouvi a voz bonita do meu pai:

Sejam bem-vindos. – Saudou-nos o dono da casa. Era um homem muito elegante, na sua toga bem traçada e os olhos esverdeados iluminavam o espaço.

Os anfitriões mantiveram as formalidades com o pontífice máximo e a sua comitiva. Mas Marco não quis saber disso para nada e, assim que me viu, abriu os braços, aproximou-se e levantou-me no ar. Rodopiei de felicidade! Aninhei-me num colo onde já não cabia e agarrei-me ao pescoço do meu irmão, rejubilando de alegria!

Marco, se eu soubesse que te portavas mal, não tínhamos vindo! – Reclamou Aenobarbo contra a falha de protocolo.

Não se zangue, mestre! Eu hoje faço-lhe as vontades todas. – Garantiu Marco, colocando-me no chão.

César e a Vestal 60 Maria Galito

Aenobarbo fora professor de leis do meu irmão e ele recordava esses tempos. Por seu lado, o mais jovem conseguia, com recurso ao seu carima, converter a barba de bronze num ser humano.

Tem juízo! – Exclamou o pontífice máximo.

Não se preocupe. – Assegurou Marco. – Em nossa casa, o pontífice máximo e a sua comitiva hoje vão ser tratados com todos os não me toques a que têm direito. – Sorriu. Mas depois virou-se para mim e perguntou. – Estás bem, queridinha?

Ela está ótima. – Respondeu Aenobarbo, em minha substituição.

Como eu não queria mentir, enfiei os lábios para dentro e baixei os olhos sem responder. O mano não podia adivinhar o que se passava comigo, por isso, tirou as ilações que pôde:

Sentes-te sozinha? Queres que Apuleia ou a Mater te visitem mais vezes?

Nem pensar! Emília agora é uma vestal e precisa estar sossegada a velar pelo fogo sagrado, sabes disso! – Corrigiu Aenobarbo, afastando-o de mim com a mão. – E tu, o que andas a fazer? – Perguntou-lhe o líder religioso, querendo mudar de assunto. – Tens uma carreira militar pela frente. Faz-te à vida, homem!

O meu irmão soltou uma gargalhada e começou a falar com ele sobre Mário e as ideias que tinham para o partido popular. Não admira que o comandante fosse figura de destaque entre os convidados. Aquelas portentosas sobrancelhas não passavam despercebidas e eu aproximei-me dele, para o saudar.

Onde está César? – Perguntei a Júlia, logo que surgiu oportunidade. Sob observação cerrada dos meus pais, a matrona não se alongou nas explicações:

Ele não veio à festa. – Respondeu carinhosamente.

O coração caiu-me aos pés. Ele não tinha vindo! Que desilusão! Entre os convidados, só dei de caras com Júlio e o irmão Sexto, que teciam considerações sobre atualidade política com Mário. Aurélia ficara em casa e as filhas também. Tive vontade de chorar. Fiquei tão triste que Júlia me sussurrou:

O meu sobrinho gostava de ter vindo e pediu-me para perguntar se estavas bem. Aquela simples frase animou-me. Afinal, César queria ver-me!

Estou cheia de saudades dele. – Confessei, sem pensar no que dizia. – No templo a vida é dura! Lá não dá para brincar, nem cantar, nem rir… Júlia centrou as suas atenções nas minhas seis tranças cobertas pelo véu de linho.

Vais habituar-te, Emília. – Aconselhou e, talvez por a minha mãe estar vigilante, acrescentou. – Os teus pais têm muito orgulho em ti por assumires funções no santuário de Vesta e nós também. A dona da casa aproximou-se e, levada pelo instinto, perguntou:

Estão a falar de quê? – Quis ela saber, sentando-se entre mim e Júlia.

Não respondi à pergunta da minha mãe, mas dei-lhe espaço no canapé, para ela ficar confortável. A mulher de Mário foi diplomática e soube desenvencilhar-nos da situação.

César e a Vestal 61 Maria Galito

Pedi licença para ir à bacia sanitária. Conhecia o caminho, fui sozinha. No regresso não tornei logo à festa. Segui em direção à cozinha, à procura da Ana.

A minha antiga ama, ao ver-me, abraçou-me comovida. Há muito tempo que estávamos separadas e eu fiquei contente pelo reencontro. Contei-lhe a minha experiência enquanto sacerdotisa e ela admitiu que o meu estado de ansiedade tinha justificação. Pediu-me para ser resiliente. Com paciência, tudo se resolvia, admitiu. Mas foi Amílcar quem alegrou o meu dia, quando veio falar connosco. A meio da conversa perguntei-lhes sobre César.

O menino esteve cá esta manhã. – Avisou-me o cartaginês. A Ana censurou-o com o olhar. Mas eu pedi-lhe pormenores sobre o que sabia:

Conta-me tudo, Amílcar.

O seu pai mandou-o embora. – Confessou ele.

Porquê? O que queria César? – Tentei descobrir, com o coração aos pulos. O cartaginês foi perentório na sua explicação:

Assistir ao casamento. Pelo que percebi, ele queria ver a menina. – Amílcar era um sentimental e fez um gesto à Ana para o deixar falar. – César está aqui perto, na companhia do seu tutor, um gaulês chamado Gnifo.

Ana, porque não me disseste? – Estranhei.

Porque tem de se desimaginar do rapaz. – Aconselhou ela, preocupada comigo. Não escutei o que ela me disse.

Se ele quer vir, que venha. Vai buscá-lo, Amílcar. – Pedi, empolgada.

Podemos combinar uma forma de ele entrar aqui pela cozinha. – Admitiu ele. A Ana tentou impedir o cartaginês de fazer uma loucura.

Não pode ser, menina. Tente perceber, é perigoso! – Rogou ela.

Mas… – Balbuciei.

Nós juramos não contar a ninguém o que nos mandou fazer. Infelizmente, não podemos obedecer-lhe. Era a nossa morte e a sua também. – Explicou a Ana. A sua advertência era ajuizada mas não me demoveu. Eu estava fora de mim!

Ana, eu preciso vê-lo, saber se está bem. Amílcar adorava-me e foi mais valente:

Está bem, eu vou buscá-lo. Sei onde ele está. – Assegurou.

Amílcar, não… pode ser a nossa desgraça! – Assustou-se a Ana.

Não é nada. Sei como fazer. Confiem em mim! – Exclamou e partiu. A Ana não entrou em pânico, mas quase!

Vamos fazer as coisas com calma. Ninguém pode desconfiar. – Alertou ela. – Regresse à festa e aja normalmente. Se Amílcar trouxer o menino, eu chamo-a outra vez à cozinha, pode ser?

Eu tremia como varas verdes. Mas acatei o conselho, tentei respirar e regressei à boda. Sentei-me num banquinho, a fingir a descontração que não sentia. Quando Mamerco passou por mim, cumprimentou-me. O meu pai convidara-o para o casamento, pois tinha grande consideração por ele, por ser um diplomata.

César e a Vestal 62 Maria Galito

Ando apreensivo, Emília. A discórdia entre romanos e italianos foi levada ao extremo e vai descambar em mortos e feridos. – Confessou, depois de muito falar.

Os homens de Roma vão ser recrutados para a guerra? – Espantei-me.

Provavelmente.– Admitiu ele. – É melhor começarmos a pensar nessa hipótese.

Fiquei preocupada com tal perspetiva e tentei informar-me mais sobre o assunto. Mas Mamerco, de olhos presos nos convidados, despediu-se de mim e foi falar com o irmão, que se inseria no círculo de amigos de Marco, ao qual também pertencia Cota. Concentrei-me nos meus pensamentos.

Foi então que a Ana me fez sinal. Ela estava encostada à parede e parecia apreensiva. Levantei-me sorrateiramente. Seguia-a em direção à cozinha, com o coração aos pulos. Eu estava tão nervosa, que nem sentia os pés no chão. Mais ansiosa fiquei quando, de repente, fui puxada para dentro da despensa. Quase morri de susto! Mas aqueles olhos eram inconfundíveis. De tão pardos brilhavam no escuro. Eram uma noite estrelada!

César! – Exclamei.

Ele tremia tanto quanto eu. Pegou nas minhas mãos com medo que eu fugisse ou me esfumasse qual miragem! Nem uma palavra trocámos em primeira instância, tais as saudades que sentíamos um do outro.

Estávamos numa despensa. Cheirava a enchidos, a queijos e a vinho em espaço confinado. Deixámo-nos rir. O humor era a nossa arma contra as dificuldades. Depois ficou sério, engasgado com as questões que queria colocar-me e que dispararam em catadupa:

Vim tantas vezes bater à porta desta casa para falar contigo, antes de tu seres ungida. Porque recusaste receber-me?

Como assim? – Admirei-me, confusa. – Não me avisaram de tais visitas. Ele não parecia convencido. Sentia-se ferido. Julgava que eu lhe virara as costas.

Porque quiseste ser vestal, Emília?! – Inquiriu, abafando o grito de revolta.

Eu não queria. – Asseverei. A minha resposta desesperou-o!

Podias ter recusado o sacerdócio.

Que dizes? Levaram-me para o templo e deixaram-me lá, até hoje. – Ripostei, sem vacilar. – Tentei fugir e não consegui. Desde então, a minha vida tem sido um Tártaro! Não tenho liberdade. Não posso sair do santuário! Sou obrigada a seguir mil regras obsoletas e a ler textos bafientos, sem trégua! Hoje foi a primeira vez que subi ao Palatino desde que coloquei o véu. Nunca fui a Subura. Estás a ser injusto comigo! Ele não ficou intimidado com a minha bravata. Pelo contrário, adorou-a!

Tu não querias ser sacerdotisa? Garantiram-me que sim. – Advertiu.

Claro que não. Tens de acreditar em mim! – Roguei, pois era verdade. – Prometi ser Caia onde tu fosses Caio, lembras-te? Levou as mãos ao rosto, mas não conseguiu mascarar as emoções:

César e a Vestal 63 Maria Galito

Eu sei perfeitamente que trocámos votos perante os deuses domésticos! Julgava é que tu te tinhas esquecido. – Queixou-se. Ainda parecia incrédulo. – Mas então… preferias ter ficado comigo?

Acenei com a cabeça, emocionada. César ficou tão contente, que o seu sorriso iluminou a despensa. Sem mais hesitações abraçou-me e eu pude ouvir o seu coração bater, como há muito não escutava. Sei que suspirou longamente e olhou para mim.

E agora? – Perguntei.

Não sei. – Reconheceu. César olhou à sua volta, hesitante.

O cargo de vestal não é vitalício, mas eu sou obrigada a desempenhar funções por trinta anos… ainda faltam vinte e oito. – Rematei.

Podemos fugir, mas… para onde? Ninguém nos acolhe, nem no Palatino, nem em Subura. – Inquietou-se. – Deixa-me pensar! – Pediu. Mas que podia ele fazer? Colocou as mãos no meu rosto e fez a sua proposta mais ousada. – Talvez, talvez… eu possa tornar-me pontífice! Assim eu assistia às tuas assembleias e podíamos ver-nos regularmente. – Admitiu, delirando a galope desenfreado.

Tínhamos nove anos! Partilhar espaço na Cúria Régia, equivalia a visitar a casa de mármore cor-de-rosa, onde a nossa amizade era alimentada a brincadeiras. Portanto, a ideia de César até nem era má, o problema é que era inexequível naquele momento.

Os lugares estão todos preenchidos. – Avisei.

Então não sei! – Exclamou, esbracejando. Quase derrubou tudo à sua volta.

Foi então que a Ana espreitou pela cortina e me trouxe de volta à realidade. Avisou-me que os meus pais e o pontífice máximo andavam à minha procura e que eu devia regressar rapidamente para junto deles.

A morte espreitava-nos sobre o ombro. Não era apenas eu que sofria a ameaça da foice. Se fossemos apanhados, ele também seria executado. Uma perspetiva agoniante para dois petizes com a vida toda pela frente.

Tenho de ir, César. Chamam por mim.

Tínhamos de abdicar um do outro. Só nos restava a despedida e César colou o seu rosto ao meu. Senti o cheiro a torradas barradas com manteiga das Gálias. Portanto, Amílcar trouxera-o da casa de mármore cor-de-rosa. Júlia podia ter-me contado que o sobrinho estava lá! Oh, mas que importava? Separar-me dele era excruciante! Aqueles derradeiros instantes foram terríveis.

Vamos reencontrar-nos um dia. Prometo. – Foi a última coisa que ele me disse.

Não sei explicar o que senti, mas afastei-me da despensa e corri em direção à cerimónia religiosa, enquanto César voava no sentido oposto, saindo pela porta das traseiras. A Ana e Amílcar não contaram nada a ninguém e eu regressei atempadamente à boda da minha irmã, sem levantar suspeitas. O assunto foi encerrado. Mas podia eu virar costas a César?