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PROSA Editora Literária Prosa, N.º 9 César e a Vestal Capítulo V (86-82 a.C.) Maria Galito 2017

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PROSA

Editora Literária

Prosa, N.º 9

César e a Vestal

Capítulo V

(86-82 a.C.)

Maria Galito

2017

César e a Vestal 115 Maria Galito

Capítulo V

668-672 AUC

Consegue-se mais com mel do que com fel.

Em testamento, o meu pai estipulara que se fizesse uma oferenda a Vesta. Marco atrasou-se no cumprimento da promessa do paterfamílias mas, num dia de lua, apareceu à porta do nosso santuário, a puxar um asno pelo cabresto.

O jumento é o animal sagrado de Vesta, certo? – Perguntou o meu irmão. Fonteia ficou visivelmente atrapalhada:

Sim, mas…

Porque não trouxeste um cabrito? – Queixou-se a sumo-sacerdotisa, espantada com o presente, sem saber o que fazer com ele. – Queres que sacrifique uma besta desse tamanho? – Perguntou ela. No altar, o animal costumava ser morto e esquartejado, para servir de alimento.

A carne dele come-se? – Fonteia parecia confusa. Metela estava desagradada com o cheiro e abanava a mão direita junto ao rosto.

Nós não queremos matá-lo e não temos condições para cuidar dele. – Asseverou, mantendo a pose de sumo-sacerdotisa. – Portanto, agradecemos o donativo, mas não podemos aceitá-lo.

Devolvemos a oferenda, lamento. – Avisou Fonteia, apoiando a chefe. Observei-as com espanto, pois eu não queria recusar o legado. Resolvi intervir:

Talvez o jumento possa participar nos rituais da Vestália, ou ir connosco à Porta Capena buscar água. – Foram as minhas sugestões. – Ele dorme bem no lucus, onde tem pasto para comer.

Não, nem pensar. – Recusou Metela. – Os asnos fartam-se de zurrar!

O objetivo não é esse? – Estranhou o meu irmão.

De acordo com a lenda, Vesta fora cobiçada por Priapo, o deus da fertilidade masculina, simbolicamente representado por um homem com falo gigante. Um dia ele tentou agarrá-la. Mas um jumento salvou-a do perigo, quando começou a zurrar. Ela conseguiu fugir e proteger a sua castidade. Desde então, a deusa tinha três símbolos sagrados: o templo redondo, o fogo e o jumento.

É um encargo oneroso que não podemos assumir. – Informou Metela.

Ninguém tem tempo de se ocupar dele. – Asseverou Fonteia. Falaram antes de ouvir o que eu tinha para dizer. Disponibilizei-me para ajudar.

Eu posso cuidar dele. – Admiti, concentrada nas suas orelhas peludas.

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Marco aproveitou para se livrar da responsabilidade:

Fiz o que me competia, ao satisfazer a última vontade de meu pai. – Declarou. – O jumento está entregue. Façam com ele o que quiserem. O meu irmão foi-se embora todo lampeiro.

E agora? – Balbuciou Fonteia, após um hiato de perplexidade.

Metela tentou puxar o asno para dentro do santuário. Quanto mais força ela empregava, mais ele resistia à ideia de lhe obedecer. Fonteia começou a empurrá-lo pela retaguarda e foi couceada, pelo que se agarrou à perna enquanto o insultava. Elas já fumegavam de irritação, ameaçando levá-lo à faca pela impertinência, quando agarrei nas rédeas e pedi:

Ele deve ter uns seis meses, coitadinho, deve estar assustado…

Acariciei o cocuruto do animal, pois dava vontade de lhe fazer festinhas. Abracei-o pelo cachaço e dei-lhe mimo. Ele era felpudo! Tinha cabeça grande e patas curtas, olhos expressivos e orelhas de abanico.

Gostou de ti, está visto. – Troçou Metela, com cara divertida. Até que o jumento começou a esfregar o focinho no chão.

Penso que ele tem fome e aqui não há comida. – Constatei.

Peguei nas rédeas e ele simplesmente veio atrás de mim, a remexer as patinhas brancas. Apanhei umas ervas com a mão, aproximei-as do seu focinho de grandes beiços e ele banqueteou-se que foi uma maravilha!

Não podemos ficar com ele, Metela. – Reclamou Fonteia.

Porque não? – Contra-argumentei. – É tão fofo! Não faz mal a ninguém.

Ele deu-me um coice! Amanhã devo acordar com uma nódoa negra na perna. – Contrariou Fonteia. Metela cruzou os braços, pois hesitava em aceitar a incumbência:

Tens a certeza que te responsabilizas por ele, Emília?

Sim, prometo. – Garanti imediatamente. – Até pensei em chamar-lhe Pales.

Pales? Metela parecia surpreendida. Eu não percebi porquê, pois disse:

É a divindade romana dos pastores, do gado doméstico, da vida nos montes do Lácio, cujo festival se celebra no mês consagrado a Vénus, com rapazes e raparigas a saltarem fogueiras de lenha, espinhos e restolho. – Expliquei. A chefe arqueou a sobrancelha à teoria que ela, obviamente, conhecia. Fingi-me desentendida e atalhei. – Pales o orelhudo. O que vos parece? É bonito, não é?

Passei a mão pelo dorso do jumento que ruminava as ervas e apreciava festinhas no dorso, enquanto remexia as orelhas em direções opostas e abanava a cauda peluda de contente.

Oh, valha-me Vesta! Espero não me arrepender! – Exclamou Metela, sorrindo.

Os dias seguintes foram uma festa! Numa cidade em paz armada, havia poucos momentos de diversão. Mas, no santuário, nós arranjámos um entretém de quatro patas! Metela e

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Fonteia recusavam qualquer contacto com a nossa mascote, ainda que o espreitassem de vez em quando. Popília e Fábia enchiam-lhe os alforges de mola salsa nos dias em que cozinhavam no forno de lenha. Perpena ajudou-me na construção de um abrigo para a chuva com recurso a lenha.

Uns meses depois, Pales tinha (mais ou menos) uma cabana para pernoitar e estreou-a refastelando-se ao comprido na palha. Ele tinha direito a manjedoura e tudo!

Muito gosta ele de estar deitado. – Criticou Popília.

Santa vida! – Comentou Perpena.

Pales não faz mais nada se não comer e dormir! – Troçou Metela.

Lembro-me de uma tarde em particular. Popília puxava Pales para fora da cabana, em direção à rua. Mas não estava a ser bem-sucedida no intento. Ela perdia a paciência rapidamente e empregava força. Expliquei-lhe que devia agir de mansinho. Sob pressão, o animal teimava em ficar onde estava, pois tinha todo o tempo do mundo.

Não sei porque se espantam. Toda a gente sabe que os jumentos são teimosos e preguiçosos! – Comentou Fábia. De imediato, recebeu um zurro de protesto!

Ele não faz nada do que eu lhe digo. – Queixou-se Popília. – Emília ajuda-me! O orelhudo ruminou com determinação, incólume à ansiedade dela.

Deixa que eu faço. – Pedi-lhe, pegando nas rédeas.

As reações de Pales eram pragmáticas. Ele estava sossegado a um canto e não queria sair da sua zona de conforto. O que era normal! Fui buscar palha fresca, para ver se ele lhe seguia o cheiro. As suas orelhas dançaram na minha direção, mas ele não se mexeu.

Foi então que eu lhe trouxe três apetitosas cenouras. Aproximei-as do seu focinho. Pales quis comê-las. Eu não deixei. Ele remexeu as patas de irritação. Voltei a aliciá-lo com as cenouras. Ele deu alguns passos na direção certa. Mas Popília bracejou, sem paciência, revoltando-se contra os nossos pequenos progressos.

Vem de uma vez, jumento de um raio! – Gritou-lhe.

O animal empacou. Todo o meu esforço fora em vão? Suspirei com a teimosia dos dois. Resolvi ir-me embora com as cenouras debaixo do braço. Pales não dececionou e veio atrás de mim, arrastando Popília à sua frente. Em pouco tempo, estávamos os três junto da chefe e do pontífice máximo, como se nada tivesse acontecido.

Nós esperávamos por vocês o dia todo. Não precisavam ter vindo tão depressa. – Ironizou Cévola, com cara de poucos amigos.

Foi assim tão difícil convencê-lo a trazer a mola salsa? – Perguntou Metela, enquanto eu retirava, dos alforges, o que era tão necessário aos rituais religiosos.

Foi limpinho! – Mentiu Popília, de nariz empinado e mãos atrás das costas.

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Pales remexeu as orelhas de indignação e mostrou-lhe o traseiro, cuja cauda ele enroscou no ar em sinal de protesto. Depois foi ajudar-me a distribuir a mola salsa que eu pude, assim, continuar a retirar dos seus alforges e distribuir pelos recipientes indicados.

Emília domou a fera! – Exclamou Cévola.

Pois, estou a ver que sim. – Observou Metela. Popília rebolou os olhos.

Como está das suas feridas? – Perguntou Fonteia ao pontífice máximo.

Melhor. Eu sou resistente. – Respondeu ele, agarrando-se ao ventre.

As mazelas, causadas por Fímbria, cicatrizavam satisfatoriamente. Cévola mantinha-se atento a potenciais inimigos e firme na resolução de liderar a religião romana à sua maneira.

Cina dominou Roma entre 668 e 670 AUC. Foi eleito cônsul três vezes seguidas. Passou de radical a moderado, quando começou a defender a população da crise económica. Apelou aos aliados, mas também aos senadores que fugiram da cidade antes da invasão mariana ou durante a purga. Enviou embaixadores temporários a Sila. Este não se mostrou interessado em negociar. Cina também esbarrou com a força dos exilados que apelavam ao espírito de vingança do comandante contra os marianos.

Cina nomeou Valério como governador da Ásia. Fímbria armou-se como legado e revoltou-se contra o cônsul antes de chegarem à Anatólia. O homem que apunhalou Cévola desafiou a autoridade do seu comandante e foi expulso do exército. Mas Fímbria amotinou os legionários contra Valério e este morreu assassinado.

Quando as legiões entraram na cidade de Troia, Fímbria massacrou os seus habitantes. Sila, quando soube disso, vingou a cidade mítica de Eneias. Fímbria perdeu a batalha e preferiu suicidar-se a admitir a derrota. Foi esta a história que Metela nos contou:

Por isso é que Cévola está hoje tão bem disposto.

É boa notícia que Fímbria tenha morrido. – Admitiu Popília.

Menos um canalha em Roma. – Comentou Metela. – Agora faltam os outros…

Cina e Carbão foram cônsules durante dois anos consecutivos. Trabalharam em conjunto pela governabilidade de Roma. Tentaram assegurar a estabilidade e o diálogo com os parceiros sociais, sem se opor frontalmente aos optimates. Não promulgaram mais leis agrárias. Não acabaram com a mos maiorum e mantiveram o sistema de organização das assembleias.

Os censores da época eram Filipe e o avô de Perpena. Após uma consulta dos registos, concluíram que os eleitores aumentaram em número. O que era previsível. Após a guerra contra os italianos, o Senado concedera cidadania romana a muitos que antes não a possuíam. Este estudo também contrariava a propaganda dos optimates exilados, segundo a qual a invasão mariana fora responsável por uma razia na cidade. É verdade que morreram alguns nomes sonantes, mas a grande maioria das pessoas continuava viva.

A memória do povo é curta! – Protestou Cévola, num dia que voltava do Senado.

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Os coelhos começavam a sair das tocas. As nuvens ainda choravam lágrimas de dor, mas o fogo da lenha apagava-se para esquecer os enterros dos últimos meses de Mário. Os romanos queriam viver em paz e esforçavam-se por recuperar o sossego.

Roma tentava regressar ao normal. Os mercados estabilizavam, após anos de ciclo económico negativo, com as reformas cambiais de Gratidiano e o poder de compra do cidadão comum aumentou. Não admira que o povo libasse em seu nome, colocando bonequinhos de pano ou de espigas, feitos à sua imagem, nos altares dos cruzamentos.

Gratidiano ganhou protagonismo numa cidade que prestava culto a Mário. Ele era seu sobrinho e um grande populista, na retórica e no estilo. Tinha currículo de pretor e tribuno da plebe.

Enquanto Gratidiano se ocupava da economia da cidade, Mariozinho defendia-a pelas armas. Ele era responsável pela paz urbana. Embora aplicasse a justiça de forma arbitrária ou conforme os seus interesses, impedia o caos. A população agradecia-lhe por isso.

Mário é filho de Marte!

Gratidiano é filho de Mercúrio!

César é filho de Vénus! – Bradava-se no fórum.

César fora eleito flâmine de Júpiter pela Assembleia do Povo, dominada por membros da fação mariana. Mas ainda não fora ungido pelo pontífice máximo. Portanto, não podia assumir o cargo com toda a legitimidade.

A situação era insustentável porque resultante da luta partidária, o que apenas tendia a perpetuar-se. Cévola empurrava o caso com a barriga. Ele não chegara a desafiar Mário e não conseguia impedir César de atender às reuniões do Senado, mas proibia a sua presença nas assembleias do colégio dos pontífices.

Cévola fazia jogo duplo. Ele era agente de Sila e insistia no cumprimento rigoroso das regras protocolares – que recusavam o filho de uma plebeia no sacerdócio de Júpiter.

Para Sila, um mariano não podia ser consagrado a Jove. Ditava esta máxima diretamente da Ásia, por mensagens escritas dirigidas a Cévola e não admitia que o sobrinho do seu arqui-inimigo mandasse na cidade a partir do Capitólio!

Cina começava a duvidar daquela solução, proposta pelo falecido Mário. O objetivo era proteger a filha, não era expô-la ao perigo! Ao mesmo tempo, tentava não contrariar Sila e Cévola, pois ainda acreditava na possibilidade de um armistício. Portanto, César não era totalmente apoiado pelo sogro, naquela matéria.

Mariozinho tinha temperamento colérico e arrogante. Porque não apoiava ele mais o primo? Porque não pressionava mais o sogro?

Eu tenho uma teoria. – Disse-me Perpena. – Mariozinho não quer partilhar a sua popularidade com César. Já lhe basta a concorrência de Gratidiano!

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Resumindo, César fora apoiado por Mário. Mas quando o tio morreu, o jovem tornou-se vítima de pressões que lhe bloqueavam o progresso na política ou na religião (neste caso estavam relacionadas); não só de Sila e Cévola, como da própria família. Mariozinho e Gratidiano rivalizavam com ele em popularidade.

César não se deixou abater e resolveu pedir apoio à população. Se Cévola o renegava por Aurélia ser uma plebeia, o povo haveria de louvá-lo! Ele era um deles e estava a ser injustiçado! Pouco importava que fosse um patrício que não podia candidatar-se a tribuno da plebe. Ele subiu à tribuna e teceu os seus argumentos a uma assistência que o considerava carismático:

Isto é antidemocrático! Eu fui eleito para o cargo de flâmine de Jove. A República e o povo romanos escolheram-me! – Queixou-se César no fórum, naquele dia em que o ouvi, na companhia de Metela e do pontífice máximo.

Porque é que ele não se cala? – Rosnou Cévola.

Ele está a mentir? – Perguntei-lhes. Ambos suspiraram de impaciência, por razões diferentes.

Posso estar enganada, mas César desestabilizaria menos o sistema se tivesse sido inserido nele. – Comentou Metela. – Reparem como ele se debate? Ainda é jovem mas tem um poder de argumentação brutal e o povo adora-o!

É por estas e por outras que eu sou favorável à nomeação de pontífices e sou contra a sua eleição. – Disse Cévola, cruzando os braços. César mantinha-se incólume às críticas:

Porque me mantenho neste limbo? A minha mãe é plebeia? Qual é o problema? Eu descendo de Eneias, filho de Vénus! Não preciso de mais credenciais do que estas para assumir o cargo para o qual fui eleito.

Ah isso é que precisas! Não estás acima dos outros homens. – Ralhou Cévola.

Há regras obsoletas no sistema. – Enalteceu César. – Roma deve abraçar a mudança e adaptar-se aos novos tempos, que se desejam prósperos para todos. – E recebeu uma oração por isso.

No nosso colégio havia pontífices favoráveis a César. O sumo-sacerdote desprezava as investidas. Não podia impedir que os colegas lhe dirigissem a palavra mas, se pudesse, evitava-os. Por muito que parecesse uma ilha rodeada de água por todos os lados, Cévola não fazia intenções de vergar na sua posição baseada em normas centenárias. Isso ficou bem claro numa interação civilizada que teve com Cota, à qual eu assisti atrás a porta:

Já percebi o que me queres e a minha resposta é não! – Exclamou Cévola.

Tenta ser razoável. – Pediu-lhe Cota.

O tio de César tinha, recentemente, regressado a Roma. Famoso pela sua retórica, bradava aos céus, no que parecia ser um discurso helenístico, longo e com recurso a muitas figuras de estilo. O pontífice máximo cortou-lhe logo a palavra:

Tu és perito na arte de brigar, mas estás a perder tempo comigo!

Mas porquê? – Insistiu Cota.

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Não me venhas com retorica dos gregos, não tenho paciência! Estou farto do pirralho do teu sobrinho!

César não é um garoto. É um homem casado. É oficialmente um paterfamílias.

Pouco me importa! – Gritou-lhe Cévola. Cota foi para casa. Mas, pela via-sacra, o povo acompanhava o seu sobrinho:

Lá vai o mariano! – Vozearam os transeuntes.

Roma é um lodaçal de estacas atoladas de orgulho. – Dizia César, ao passar.

O não ungido deambulava pelo fórum sem descanso. Subia e descia a rampa do Capitólio, enquanto Cévola recusava a sua presença na Cúria Régia.

Porque é que ele não vai para casa? – Estranhou Popília, ao espreitá-lo.

Se eu residisse em Subura, também não queria ir. – Retorquiu Perpena, coçando as tranças.

César nunca andava sozinho. Rodeava-se de pessoas de todas as idades. Enfiava o barrete rubro do flâmine de Jove, vestia túnica com franjas e fazia conferências como os antigos gregos, Platão e Aristóteles, davam aulas peripatéticas na Academia.

César é uma força magnética e cativante. – Ouvi dizer a Albinovano.

O povo diz que César é generoso. – Avisou Perpena.

O sobrinho de Cota era uma fonte inesgotável de água em terra seca, com voz de palestra, à sombra de oliveiras de gente! Ele conquistava a população com simpatia, tratando a todos com esmero e atenção. Era indulgente com amigos e concidadãos. Não parecia sentir ódios tão fortes aos quais não pudesse renunciar e iluminava as ruas com personalidade única e carismática.

Mas o pontífice máximo não se cansava de o rejeitar no colégio dos pontífices e César deixou de fazer a barba – se é que tinha alguma! Começou a arrastar-se perdido pelas veredas, com cara de carneiro mal morto e anho para o sacrifício. Gerava compaixão.

Eu comecei a ter pena dele.

Uns dias depois, César passava na via-sacra já cansado de tanto palrar e de ziguezaguear pelas pedras da calçada, quando eu lhe perguntei:

Porque te sujeitas a esta humilhação?

Eu estava sozinha com Pales na esquina da via-sacra. O animal zurrou, quando César se aproximou e colocou-se à nossa frente, com o objetivo de separar a vestal de Priapo.

As sacerdotisas eram tradicionalmente reservadas. Pouco ou nada interagiam com o cidadão comum. Mas César comportava-se como flâmine de Júpiter e, numa situação normal, ele seria meu colega de colégio. Talvez houvesse margem de manobra para uma conversa civilizada entre os dois. Num sistema desgovernado em que poucos obedeciam às regras, eu tinha de ser perfeita no cumprimento das minhas?

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Desde quando é que a vestal Emília se preocupa com a pouca sorte de um pobre desgraçado que deambula pela cidade? – Perguntou, afastando o jumento para a direita.

Reparei que César já não tinha borbulhas! O seu rosto agradável sorria-me. Os olhos governavam-lhe o semblante e enchiam as ruas! O seu corpo alto era magro e os seus braços tinham veias azuis. Ele nascera muito louro, mas o seu cabelo escurecia e caía-lhe pelos ombros, como o dos antigos sacerdotes de Jove.

Cévola não quer ungir-te e não vai muar de ideias. Porque insistes? – Indaguei.

Porque ele está a ser injusto comigo. – Declarou, penetrando-me com o olhar.

Dei um passo atrás. Pales agitou as suas grandes orelhas. Coloquei um braço em torno do seu cachaço e enrosquei-me, como se tentasse proteger-me do canto de sereia de César, tal como Ulisses ao prender-se ao mastro do seu barco.

És bom orador. Já deu para perceber que os romanos te seguem, para onde quer que vás, mas… tem cuidado. Há muitos assassinatos nas ruas. – Adverti, com boas intenções. – Não sei se consegues ganhar esta batalha… Ele contrariou a minha disposição:

Eu não sou homem para desistir daquilo que quero. A sua presença mexeu com o meu corpo. Intimidada, acabei com a conversa:

Eu só… queria desejar-te feliz aniversário. – Pigarreei.

Lembraste-te! – Exclamou César, todo contente.

Claro que sim. Eu sei quando fazes anos. – Defendi-me.

Obrigado, Emília.

Pois… boa sorte. Tenho de ir. – Despedi-me.

Puxei pelas rédeas de Pales e entrei no santuário. César ainda me seguiu, mas foi barrado pelos lictores. Eu atravessei o espaço compreendido entre o templo e a cozinha do átrio das vestais com a rapidez de uma estrela cadente. Caminhei até à cabana, onde dei palha ao jumento que, satisfeito pelo trabalho bem feito, se banqueteou com o repasto.

Foi então que respirei fundo. Sentada numa pedra, à sombra da árvore cabeluda, retirei o véu, para limpar o suor que me corria da testa, com o coração a bater freneticamente no peito como um tambor.

Nessa noite não dormi. Estava um calor insuportável e eu não parava de pensar em César! Orei com especial afinco para o esquecer.

Acordei bem cedo para orar à deusa. Esfreguei o rosto em água fria. Lavei os cabelos com óleos perfumados e sequei-os ao sol. Vesti uma túnica lavada e pedi a Perpena que me penteasse, pois eu, sozinha, não conseguia fazer as seis tranças do sacerdócio. Só depois entrei no templo redondo.

Vestal máxima, nós pedimos autorização para subir ao Capitólio. – Pediu Popília.

Levam mola salsa suficiente? – Perguntou Metela, conforme lhe competia.

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Sim, não se preocupe. – Garantiu Fábia, levantando o véu que envolvia a oferenda.

Querem levar Pales, para vos ajudar a carregar as coisas? – Quis saber a chefe.

Nem pensar! O animal só obedece à Emília. – Queixou-se Popília.

Emília vai com vocês, se quiserem. – Propôs Fonteia.

Só se for sem o jumento! – Foi a condição imposta por Fábia. – Eu não quero ficar a cheirar mal no dia dos jogos apolinários.

Está bem. Vão as três. Mas não se demorem. – Pediu Metela, virando-se para a fogueira onde pôs mais lenha. Não sei como ela aguentava o calor naquele dia tão quente!

Saímos do templo redondo de Vesta. Popília pediu a um lictor que nos acompanhasse ao Capitólio e atravessámos o fórum, a conversar animadamente. Subimos pela calçada ao som dos elogios de Popília e Fábia aos jogos apolinários e à cidade especialmente embelezada naquela altura do ano, a três dias dos idos do quinto mês1.

As celebrações de Apolo tinham tradição em Roma, pelo menos, desde as guerras púnicas. Eram realizadas a meio do verão. Mas não envolviam jogos de gladiadores. Não havia predisposição para chorar os mortos num dia que se queria de festa!

O povo participava em atividades ao ar livre (enfim, à sombra!). Assistia a peças de teatro e a concertos musicais, onde havia sempre flautas e tambores a tocar músicas joviais para as pessoas dançarem.

Quando eu era pequena, os meus pais levavam-me a ver as corridas de cavalos no Circo Máximo. – Contou Fábia, a nosso lado. – O meu pai fazia apostas a prata e ficava sentado sempre em terceira fila. Nós as duas, como éramos mulheres, sentávamo-nos tão longe da pista, que pouco víamos além de sombras a circular.

Agora és vestal. Tens direito a um lugar melhor. Se quiseres, logo vou contigo. A proposta de Popília agradou a Fábia:

Que bom! Terência deve lá estar com a minha mãe e eu quero comentar as roupas e conhecer as últimas coscuvilhices da elite.

Vão sentar-se muito longe umas das outras. – Avisou Popília.

Não faz mal. Conversamos no intervalo das corridas. Vai ser muito divertido, vais ver! – Entusiasmou-se Fábia, esfregando as mãos. Mas perderia o sorriso quando a colega lhe recordou as regras:

Nós não podemos interagir com a tua mãe e irmã, Fábia. Já te expliquei. Enquanto vestais, a nossa família agora é Roma!

Seguimos pelo carreiro das formigas até ao templo de Júpiter. Quando chegámos, César já discursava e o povo aplaudia. Eu ainda fingi apreciar a paisagem do miradouro, mas Fábia aproximou-se do pregador, para o ouvir. Popília cruzou os braços ao pé da colega. Mordi os lábios e fui ter com elas, encostando-me a uma oliveira sagrada.

César sentia-se triunfante enquanto anfitrião do Capitólio. O seu traje com franjas não era o último grito da moda e o chapéu com abas escondia-lhe metade do rosto, mas parecia

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feliz, com sorriso encantador. Ele adorava ser o centro das atenções. A turba retribuía-lhe o entusiasmo, pois todo o motivo era de festa e boa razão para não trabalhar!

O palratório ainda durou. Por vezes, César recorria a metáforas de duplo sentido. Invocava citações de grandes mestres. Ele fazia uso do humor para despertar interesse e as pessoas aplaudiam-no mais num dia do que Mérula fora louvado toda a vida! De facto, o anterior flâmine de Júpiter nunca despertara a atenção naqueles andrajos. O filho de Aurélia, pelo contrário, até debaixo de uma laena com duas camadas de tecido e um apex de couro afunilado em bico, preso no queixo, era atraente como Apolo, o deus do sol!

César é bonito. – Sussurrou-nos Fábia, que tinha olhos para ver.

É teimoso e impertinente, queres tu dizer. – Corrigiu Popília.

Que injusto. – Queixou-se Fábia e virou-se para mim. – Que pensas tu, Emília?

Que podem ouvir-nos. O risco é grande.

Sim, está bem. – Retorquiu Fábia.

Ela teve medo das repercussões das suas palavras, acatou o meu conselho e calou-se. Aproveitei a oportunidade de propor:

É melhor avisarmos César que estamos aqui e que trouxemos a mola salsa. Aquiesceram com a cabeça. Popília, a mais velha das três, assumiu a liderança:

Venham comigo. Há muito que César se apercebera da nossa presença!

Obrigado por terem subido ao Capitólio, vestais de Roma. Usarei a mola salsa no sacrifício do anho, pelos idos. – Agradeceu de forma coletiva e protocolar. – O povo escolheu-me flâmine de Júpiter e, em agradecimento pela confiança depositada em mim, convido-vos a visitar a casa do nosso deus.

Fábia adorou a ideia. Popília hesitou. As ideias circulavam na minha cabeça à velocidade de cavalos na arena. Sentia-me estranha, como se não tivesse controlo sobre as minhas emoções. Espreitei outra vez aquele traje solto, sem nós, que estendia o convite a toda a população:

As portas estão abertas! Venham todos! – Pediu. – Eu gostava muito que orassem comigo, pois ontem celebrei o meu aniversário, hoje é dia de Apolo e falta pouco para os idos de Júpiter.

César abriu os braços e foi aclamado por isso! Depois baixou-os, levou a mola salsa para dentro do templo e os romanos, como anhos, seguiram o seu pastor.

Vamos? – Pediu-nos Fábia.

Sim, porque não? – Aceitou Popília, subindo os primeiros degraus.

Eu visitara o templo em criança e várias vezes enquanto sacerdotisa. O edifício era secular, limitado em tamanho e certamente antigo.

Estava eu concentrada nestas observações, quando César apareceu de mãos vazias, à porta do templo de Júpiter, para saudar o povo à entrada.

César e a Vestal 125 Maria Galito

Gostaram da pregação? – Perguntou ele, com o sol a raiar do seu rosto.

Eu gostei muito. – Enalteceu Fábia.

César disse coisas interessantes. – Admitiu Popília.

Foi um sermão aos peixes! – Exclamei, quando a língua falou depressa.

As minhas colegas perderam as cores. César surpreendeu-se com a crítica. A maioria das pessoas lisonjeava-o!

Ora essa! Não cheguei a perceber se era um elogio. – Queixou-se ele.

As pessoas à nossa volta gabam-te o esforço e aplaudem-te. É o que interessa. – Enalteceu Fábia, para salvar o filho de Aurélia das minhas censuras.

Sendo assim, bem-vindas ao templo de Júpiter. – Saudou ele.

Elas agradeceram e entraram no templo com toda a cerimónia. Eu arrastei os pés pelo caminho, guiada pelo nervosismo. Passei por baixo do acrotério, onde se destacava uma quadriga pintada em terracota do tempo de Tarquínio o soberbo e entrei no espaço sagrado pela sua portada de madeira com bicos de ferro. Tossi com o cheiro a incenso, que era particularmente intenso.

Há um busto de Apolo à direita, ao lado da estátua de Minerva, onde poderão fazer as vossas preces e deixar as vossas oferendas. – Avisou César à turba.

Suspirei longamente. Popília e Fábia seguiram a corrente humana. Eu fiquei para trás porque, sem estar à espera, César beliscou-me.

Que raio! – Protestei. – Pensas que ainda somos miúdos? Temos dezoito anos!

Sim, eu sei. Fi-los ontem e mereço um presente, não te parece? Esbugalhei os olhos de pasmo.

Estás a recebê-lo sempre que, nestes tempos conturbados, alguém sai de casa para te ouvir. Ou, como hoje, aceita o teu convite para entrar no templo de Júpiter. – Fiz questão de frisar. – O povo desta cidade tem estado a teu lado desde que te candidataste a flâmine. Um fenómeno incrível que é, certamente, uma dádiva. Ele respirou fundo.

Tens razão. Enquanto o povo me apoiar, Cévola não tem poder sobre mim. Nem sei porque mudei de assunto, mas ouvi-me questionar sobre a mulher dele:

Onde está Cinila?

Com a minha mãe. Ela tem menos seis anos do que eu e é tímida. Teme grandes agitações e prefere a companhia de um pergaminho ou dedica-se aos lavores.

Compreendo. – Respondi simplesmente.

O meu casamento com Cinila foi político. Sabes disso, verdade?

Eu não tenho nada a ver com isso, César. Eu sou uma vestal. Deixa-me!

Fui gelada na resposta. César baixou os olhos e afastou-se para meter conversa com os cidadãos que deambulavam pelo chão sagrado, com os olhos pregados na decoração e que enchiam rapidamente um espaço escuro, a cheirar a incenso.

César e a Vestal 126 Maria Galito

Fiquei entregue aos meus pensamentos. Ao fundo, havia três portas, uma fechada, uma semiaberta e uma aberta. Em cada cellae havia uma estátua, a maior das quais era a de Júpiter, sentado no seu trono, com o trovão, o relâmpago e a águia nas mãos.

O templo estava apinhado de gente! Portanto, ninguém deu por mim, quando fui sugada para dentro de um pequeno espaço, cuja porta César fechou quando eu entrei.

Retraí-me. Levei as mãos ao rosto escarlate, enquanto ele retirava o barrete, desapertando os atilhos agarrados ao pescoço. O seu apex caiu ao chão. Foi então que ele me encostou à parede. Juntou o seu corpo ao meu, com olhos de águia. Senti o seu hálito fresco de respiração ofegante.

És a minha Caia, lembras-te? Tu prometeste!

César, o que estás tu a fazer? Por Vesta! – Exclamei preocupada. – E se alguém nos vê aqui dentro?

César beijou-me. Senti o sangue a galopar pelas veias quando ele me osculou e penetrou a língua na minha boca como se quisesse possuí-la! O momento foi longo, abrasivo e sem fôlego. Rebentámos em vulcão após anos a reprimir sentimentos de perda e de desilusão.

Enquanto sacerdotisa, assustei-me. Empurrei César, para tão longe quanto podia! O que, num cubículo apertado, era pouco significativo. Eu tremia tanto que mal me mantinha em pé. As pernas vacilavam. Fechei os olhos. Eu não sabia no que pensar. Até duvidei que o beijo fosse real. Eu podia tê-lo sonhado. Não seria impossível. Costumava imaginar com intensidade e o cérebro já me pregara partidas!

Mas César agarrou-me novamente. Acordei para a realidade e para aquele homem adulto, corajoso e determinado. Teria ele consciência das consequências dos seus atos?

Eu sou uma vestal!

Eu sou flâmine de Júpiter.

Não podemos estar juntos, será a destruição da cidade!

Roma já se arruinou sozinha sem a nossa ajuda, Emília.

Arfei com o coração a trote. Fixei-me no anzol que eram os seus olhos de noite estrelada. César colou-se a mim como a resina das árvores. O cheiro do seu corpo arrepiava-me e eu mal conseguia respirar! Ele afagou-me o rosto, apalpando os meus cabelos presos em tranças. Sussurrou-me ao ouvido tudo o que eu queria ouvir e beijou-me outra vez.

Isto é uma loucura, César. Podemos morrer! – Eu estava em pânico.

Nestes dezoito anos já corri risco de vida muitas vezes. Ele não estava a queixar-se. Apenas constatava um facto.

Não tens medo?

É melhor sofrer o pior agora do que viver no eterno medo dele2.

Sofreste assim tanto com as invasões? – Inquiri, medindo as palavras.

Mais do que possas imaginar, Emília. – Declarou evasivamente, com voz de gruta. O meu coração ficou apertado, ao vê-lo padecer daquela maneira.

César e a Vestal 127 Maria Galito

Lamento, César. Os deuses nem sempre são bons para os mortais.

Ele pousou a testa na minha, como fazia quando éramos pequenos. Sossegou a alma, enquanto respirava mais calmamente e entrelaçou as suas mãos nas minhas.

Júpiter ouviu as minhas preces. – Confessou ele.

O que lhe pediste, César?

Que te trouxesse para os meus braços.

Naquele dia de Vénus nós estávamos sozinhos num cubículo, mas apenas uma porta nos apartava da multidão ruidosa. A situação proporcionava uma sensação de intimidade, ao mesmo tempo perigosa e excitante! Mas a ideia não era morrermos. Por isso, assim que conseguimos despedir-nos, tirámos a tranca da porta e saímos separadamente do buraco em que nos havíamos enfiado.

O povo de Roma ainda prestava culto aos deuses. Entrei na confusão e procurei pelas minhas colegas. Quando avistei Popília e Fábia, elas confundiram o meu rubor com o facto de estar muito calor ali dentro, pois estavam afogueadas, com suor em bica pela testa e queriam muito ir-se embora.

Não suporto o tempo quente! – Reclamou Popília.

Mais-valia que Júpiter nos enviasse chuva. – Queixou-se Fábia.

Eu orei no mesmo sentido! – Exclamou Popília, descendo os degraus do templo em direção à vereda que nos levaria de regresso ao fórum. Fábia seguiu-a a passo rápido. Eu fui atrás delas.

O crepúsculo enroscava-se com nuvens. Júpiter escutara as preces de Popília e talvez enviasse chuva. Estava ar de trovoada! Entrámos no santuário de Vesta e elas foram ter com a chefe. No que me concerne, evitei o templo, pois sentia-me culpada. O encontro com César fora abrasivo e, de alguma forma, os limites haviam sido ultrapassados.

Eu perdera o controlo à situação!

Lembrei-me de Pales e entrei no lucus a contar os passos. Quando me aproximei, ele ficou triste e baixou as orelhas. Reparei que o seu estômago estava tão vazio quanto o meu e ele não queria jejuar. Enchi-lhe a manjedoura de alimento e o bebedouro de água fresca. Só depois me despedi com um aceno e caminhei em direção ao átrio das vestais, onde me fechei no cubículo, a rezar.

Sei que pousei a lamparina de azeite junto à cama e coloquei a vida nas mãos do destino. Talvez a deusa pudesse compreender a minha situação se eu a explicasse e orasse para compensar as minhas faltas.

Agarrei-me às tranças do sacerdócio. Foi então que retumbou a trovoada. Olhei para o teto. O céu ribombou novamente, agora com mais força. A luz da lamparina dançou.

Por momentos fez-se silêncio. Até tonitruar violentamente. Levantei-me, ao som de gritos. Abri a porta do cubículo e caminhei em direção à rua. Metela, Fonteia e Popília

César e a Vestal 128 Maria Galito

estavam de costas para o átrio das vestais e, as suas cabeças, tapavam o horizonte à minha frente. Mas o céu parecia rubro e castanho, como se tivesse sido pintado por um artista.

Olhei em direção ao Capitólio. Mirei além dos telhados e dei de caras com o templo de Júpiter, a arder. As chamas erguiam-se altas, à esquerda. Retive a respiração.

Jove enviou um raio contra o templo! – Desassossegou-se Metela.

É um sinal dos deuses. Roma vai ser castigada. – Anunciou Fonteia.

670 AUC3 vai ser, para sempre, um ano azarado! – Avisou Fábia.

Dezenas de pessoas tentaram apagar as labaredas mas foi a chuva, enviada por Júpiter, que apagou as chamas. Foram enviados especialistas para avaliar os estragos. O edifício fora destruído apenas parcialmente, mas o povo estava vergado à superstição e ao medo.

No colégio dos pontífices o entusiasmo não era maior. Em assembleia se soube que os livros sibilinos eram agora um monte de cinzas. Uma tragédia! O nosso pontífice máximo estava pior do que estragado.

Portanto, a situação é a seguinte: o templo precisa de obras e precisamos procurar textos que substituam os manuscritos queimados. – Resumiu Cévola aos colegas.

Substituir como? – Perguntou Cota.

Com cópias dos livros sibilinos. – Respondeu Cévola.

Eu julgava que os textos romanos eram únicos. – Estranhou o tio de César.

Pelos vistos não são. Os quindecênviros dos factos sagrados comunicaram-me que devemos entrar em contacto com alguns templos, sobretudo da Grécia e da Anatólia, para saber se podem ajudar-nos nesta matéria. – Explicou Cévola.

Não acredito nisso. – Queixou-se Albinovano. – É o fim do mundo! Cévola pigarreou, mantendo a pose:

Vou convocar uma assembleia que envolva todos os nossos quatro colégios.

Roma vai ser destruída em breve. – Suspirou Albinovano.

Cala-te homem! Não sejas derrotista. – Criticou Cota.

Caros colegas. Precisamos de um plano conjunto para fazer face à conjuntura adversa. Tem de ser, não há outro remédio! – Concluiu Cévola de rosto sério.

A partir desse dia, César tornou-se num agitador do fórum. A sua mensagem? Que o deus dos trovões castigava Roma, por o pontífice máximo se negar a ungi-lo como flâmine de Júpiter. Cévola repreendeu-o pelo excesso de linguagem. Mas o jovem foi pregar para o alto da montanha. O seu corpo jovem e magricela adicionava fervor ao desequilíbrio da cidade; o qual também era religioso, desde que o fogo consumira o templo. A tensão era palpável, crescia e podia explodir a qualquer momento.

O povo tem poder e direitos a reivindicar em Roma. – Repetia César.

Na Alegoria da Caverna, Sócrates virava costas às ilusões e subia pela encosta até ao jardim da sabedoria. Depois regressara pelo caminho das sombras para ensinar os alunos a identificar a luz da verdade. César não era filósofo, ainda subia a ladeira, não

César e a Vestal 129 Maria Galito

questionava opiniões, discursava nos seus verdes anos e, perante povo que se consumia em ardume religioso, transmitia a sua mensagem sem medir as palavras.

Estamos lixados! – Protestava o pontífice máximo.

Não sei qual dos dois é mais teimoso: se César, se Cévola. – Sussurrou-me Metela.

Face às expetativas falhadas de paz, entre romanos, o filho de Aurélia propunha uma solução de consenso que fosse justa para todos; uma que incluía ungi-lo como flâmine de Júpiter, claro!

A guerra civil ainda não terminou. Se Sila não for travado, de nada terá adiantado o sacrifício de Mário. – César assim o explicava. – Garanto-vos que ele marchará outra vez sobre Roma. Precisamos estar preparados. Não sejam cegos! Não se deixem subjugar!

O chapéu rubro e a roupa de franjas conferiam excentricidade a jovem que reclamava, como seu, o cargo de flâmine de Júpiter. Havia quem apreciasse a sua eloquência. Os inimigos consideravam os seus alvitres infames e preferiam que ele silenciasse as suas dúvidas existenciais.

Não percebo metade das coisas que ele diz. – Concluiu Metela, enquanto observava o fogo sagrado na minha companhia. – Mas se César continuar a desafiar Sila, a sua cabeça vai rolar.

Após o incêndio no templo de Júpiter, Cina terá desistido de negociar com Sila, que se aproximava ameaçadoramente de Itália. Saiu de Roma, fez tudo o que pôde para recrutar homens para o exército e seguiu viagem, para dar batalha ao comandante dos optimates.

Tenho novidades. – Avisou Cévola, no colégio de pontífices. – Cina morreu.

O sogro de César fora assassinado pelos seus legionários, em 670 AUC, após um motim, quando tentava embarcar mais homens para a Tessália.

A morte violenta de um cônsul abalava a cidade. A queda de homem tão poderoso como Cina que, em si, concentrava tanto poder, também por falta de alternativas viáveis, só poderia desequilibrar a balança de poderes entre os romanos.

Mário foi sete vezes cônsul. Cina foi quatro vezes cônsul. Quem é o próximo? – Perguntou Cota.

O meu genro quer candidatar-se às eleições com Carbão. – Alertou Cévola com cara lívida de nojo. – Só me resta vomitar…

O enteado de Júlia surgiu como alternativa política, por causa do nome que carregava. No geral, ele era abrutado. Impunha-se em corpo. Tinha fama de rufia. Embebedava-se em orgias com mulheres, tanto as que lhe caiam na ratoeira, como as que o procuravam por interesse! Fazia gala de andar com uma rameira conhecida na cidade, que chegara a ser acusada de desfalque e que lhe consumia recursos em abundância – talvez uma espia de Sila. Mas Mariozinho preferia convencer-se que era um garanhão.

César e a Vestal 130 Maria Galito

Apuleia visitou-me. Assegurou que o marido e os filhos estavam bem e sentou-se a meu lado, durante a tarde. Contou-me a conversa que escutara em casa de Aurélia, entre Júlia e o seu enteado, sobre os riscos de uma candidatura ao consulado.

De facto, Mariozinho não tinha experiência de edil, nem de pretor. Ele recebera educação esmerada, mas perdia-se na glória herdada, ainda não conquistada. Vivia na ilusão de ser um grande comandante militar como o pai e, como era ambicioso, queria sentar-se na cadeira curul do poder.

No tempo de Sila cometeram-se todo o tipo de atropelos à tradição. – Explicou a minha cunhada. – O filho de Mário admite que o precedente lhe abriu as portas… para fazer o que é necessário.

Esse tipo de raciocínio assusta-me! – Protestei.

Mas espera! Deixa-me contar-te como foi a conversa entre Júlia e o enteado:

Sila permitiu que os amigos passassem à frente das regras, não foi? Se ele pode, eu também posso. Agora que ninguém se queixe! Terá dito Mariozinho.

Não tens traquejo suficiente para assumires o cargo. – Avisou a madrasta.

Como te atreves! Pões em causa a minha competência?

Ouve-me! O cursus honorum tem várias etapas…

Não tenho idade, nem estatuto, para me candidatar a menos do que cônsul.

Até podes vencer as eleições, graças à fama do teu falecido pai. Mas, se tal acontecer, Sila abater-te-á para afirmar o seu poder.

Sila é uma besta-quadrada e ele quer matar-me! Não consigo livrar-me do seu ódio, independentemente de me candidatar às eleições ou não. Sou filho do seu maior inimigo. Para onde quer que eu vá, faça o que fizer, a minha cabeça estará sempre a prémio! Portanto, mais vale enfrentar Sila, à frente de um exército, do que voltar a fugir como um cão para uma província qualquer. Eu não posso envergonhar o meu nome e estou disposto a lutar!

Faz o que entenderes. – Suspirou Júlia. – Depois não digas que não te avisei.

Preocupe-se com César, que ele precisa de si. Eu não. – Atirou-lhe o ingrato.

O enteado de Júlia tem mau-feitio. – Resumi.

Também tem razão. – Admitiu Apuleia. Fiquei preocupada com o seu radicalismo.

Mariozinho e César eram muito diferentes. Tive a oportunidade de os comparar num dia de Mercúrio em que houve comício no fórum. O mais velho era parecido ao pai em corpo, mas não tinha a sua mente arguta, nem as suas qualificações. O filho de Aurélia, de tão frágil, parecia cair para o lado com um empurrão, mas era empático, elevava-se em espírito de iniciativa e autoestima.

Vénus e Marte estão por Roma! – Bradavam uns, nos muros do santuário de Vesta.

César e Mário vão dar-nos um banquete! – Avisavam outros, ao passar pela rua.

Durante a campanha eleitora, Mariozinho organizou um festim de acesso livre. Observei ao longe os trabalhos. Sei que foi distribuída uma dezena de mesas compridas de madeira e bancos corridos no espaço entre dois templos, no fórum.

César e a Vestal 131 Maria Galito

Vi chegar César e Mariozinho em comitiva e ouvi parcialmente os seus discursos. Depois entrei no átrio das vestais. Mas o barulho era muito e vim espreitar à rua o que se passava. Dei de caras com o meu irmão que, à distância de cinquenta passos, discutia o tema com uns colegas do partido. Chamei por Marco e ele acudiu-me com o cabelo desalinhado.

Que algazarra é esta? – Perguntei-lhe.

O meu irmão contou-me que as pessoas, a princípio, portaram-se bem. Entusiasmadas com as elocuções, pareciam animadas. Mas, quando a comida apareceu, os convidados atacaram as travessas com sofreguidão.

O povo anda com fome. – Entristeci-me.

Marco garantiu-me que foi erro de logística. Ao que parece, os escravos vieram em grupo. Ao servirem as febras grelhadas de forma lenta e assimétrica, a ocidente do fórum, deixaram a ala oriental a salivar. Os tempos não eram de abundância e a organização tinha matado poucos porcos. Os indivíduos que aguardavam pela sua vez concluíram que a carne não chegava para todos, levantaram-se dos seus lugares e foram reclamar os seus direitos, atirando-se aos alimentos. A confusão instalou-se! Pelo que percebi, houve murros e pontapés a dar com um pau.

Mas eles ainda andam à pancada? – Perguntei, perplexa.

Não te preocupes, queridinha. Plutão não recebe visitas hoje. – Garantiu Marco.

César subiu ao palanque, por sua conta e risco. Discursou sobre os mortos na guerra civil. Ergueu um belo monumento de oratória que emocionou os veteranos de Mário. Estes, por respeito aos falecidos, acalmaram-se.

Enquanto os equestres se entretinham a escutar César, Mariozinho mandou vir pão e vinho para entreter o pessoal, enquanto os escravos sacrificavam animais e os espetos voltavam a encher-se de carne. De barriga cheia, os cavaleiros perderam a vontade de lutar. No final sobrou comida.

Vês? Os encrenqueiros já cantam e dançam! Pelo menos os que ainda não adormeceram ou vomitaram as entranhas. – Comentou o meu irmão, de mãos enterradas na cintura e olhar fixo no fórum.

Esta gente não tem maneiras, é tudo uma cambada de animais! – Criticou Fábia.

Não devias criticar quem tem fome quando tens a barriga cheia. – Alertei.

Uns dias depois, as autoridades organizaram os romanos em filas, no Campo de Marte, para as eleições. A confusão não foi muita, mas houve uns feridos. Carbão venceu o escrutínio e Mariozinho ficou em segundo lugar na contagem dos votos.

O seu genro vai ser cônsul júnior para o ano. – Constatei.

Estou radiante. – Ironizou Cévola.

É desta que vai ungir o filho de Aurélia como flâmine de Júpiter? – Perguntei.

Não.

César está novamente a discursar no fórum. Não se fala noutra coisa…

César e a Vestal 132 Maria Galito

Já rebentei as orelhas com tanta bazófia! – Queixou-se o pontífice máximo. – Mas será que ele não se cansa de pregar aos sapos do charco? Esta juventude…

Meses depois, Mariozinho assumiu funções de cônsul júnior. No geral, era marioneta nas mãos de Carbão, o homem que efetivamente governava e detinha poder na República. Também por isso, visitou o sogro na Domus Publica. Revoltou-se contra o seu suposto abuso de poder. Acusou-o de bloquear a governação, com excesso de zelo. Imputou-lhe as culpas do estado de sítio, em que a cidade se encontrava, por usar a religião na luta entre optimates e populares.

O pontífice máximo, fazendo jus aos seus galões, mandou o genro colher amoras! Só não lhe deu um pontapé, porque eu estava sentada à sua espera, à porta do tablino e ele não queria, apesar de tudo, exceder-se nos cumprimentos.

Ao que Roma chegou! – Exclamou Cévola, depois do jovem partir a bufar raiva.

Ele tem poder, cuidado…

O líder da religião romana sou eu! Quem manda aqui não é ele!

O seu genro vai-se embora? – Perguntei, pois ouvira algo nesse sentido.

Deixa-o partir! Julga que liderar uma quadrilha em Roma é igual a fazer guerra a Sila. Está enganado! Pensa que é filho de Marte mas é um bêbado desgraçado! – E entreteve-se a insultá-lo até se cansar.

Mandou-me chamar? – Perguntei após a serenata. – Precisa de alguma coisa?

Sim, sim…

Cévola deu-me indicações e eu fui-me embora. O vaticínio de Cévola comprovou-se. Mariozinho não se aguentou nas pernas! Pouco depois foi derrotado na batalha de Sacriporto. Fugiu para Preneste. As autoridades locais recusaram-lhe guarida, mas ele insistiu em entrar na cidade, para comer e dormir.

O legado de Sila, na região, aproveitou para montar cerco a Mariozinho e este viu-se preso dentro de muralhas, o que era humilhante e só atrapalhava a causa dos populares!

A cidade não ficou entregue ao cônsul sénior. Carbão partiu em direção a Preneste e tentou salvar Mariozinho. Não conseguiu. Fugiu a custo de uma batalha perdida e reuniu novamente o exército, assim que possível. Sofreu várias deserções, por não estar a obter grandes vitórias. Foi atacado por Metelo Pio, o primo de Metela; por Pompeu, que parecia ter-se aliado a Sila; e por Crasso, sobrevivente da invasão mariana. Portanto, os populares estavam a perder a guerra e a ficar desesperados! Foi o que me contou Albinovano.

Vou agora com Cévola para o Senado. O melhor é ires para o templo. – Avisou-me, quando eu regressava de um ritual.

Está bem, até amanhã. – Acenei-lhe da via-sacra e entrei no santuário de Vesta.

Perpena estava à minha espera e deu-me indicações que Metela e Fonteia precisavam descansar da vigília. Concordei em mudarmos de turno.

César e a Vestal 133 Maria Galito

Subi os degraus do templo, enquanto as veteranas os desciam em direção ao átrio das vestais. Sentei-me ao lado de Perpena junto ao fogo sagrado e encostei-me à parede, a dormitar.

Até que Pales começou a zurrar desalmadamente. Popília gritou-me da cozinha, onde amassava mola salsa com Fábia, que me competia calar o jumento. Perpena queixou-se de dor de cabeça e tapou os ouvidos.

Segui em direção à cabana. Pales estava realmente agitado! Dei-lhe de beber e de comer, de forma apressada, pois tinha de regressar o quanto antes ao templo. Mas ele não parecia ter fome e não me deixava ir embora. Agitava as orelhas peludas e só queria estar ao pé de mim. Até enfiou o focinho debaixo do meu braço!

Fofo, o que se passa? – Perguntei, afagando o seu cocuruto peludo.

Só então despertei para a algazarra que ecoava para lá dos muros do santuário. Eu já me tinha apercebido do barulho na retaguarda, mas o fórum sempre foi ruidoso e, no templo, nós pouco ligávamos aos pregões! Mas entre as árvores era suposto haver silêncio. Nessa tarde, porém, havia som de espadas e berros de homens que pareciam assustados. A confusão já parecia alastrar-se à via-sacra.

O que estará a acontecer? – Perguntei ao céu. O jumento cravou os dentes na minha estola e eu tive dificuldade em soltar-me. Eu podia ter-me irritado, mas conclui que o bichinho estava assustado. – Não tens medo mas tens cagufo, não é? Está bem, Pales. Eu fico contigo mais um pouco. Mas estou no meu turno. Devo regressar para junto de Perpena. Ela não pode ficar sozinha a vigiar o fogo.

Fiquei com Pales até ele se acalmar e a correria no fórum terminar. Havia menos barulho quando passei pela cozinha. Mas cheirava a esturro. Popília e Fábia haviam abandonado a mola salsa no forno. Entrei para salvar a massa. Afastei o fumo com as mãos e tirei a espátula do lume. Expus a pasta de espelta e sal ao ar livre. Sacudi as mãos pelo trabalho bem feito e limpei-me ao regaço.

O fumo desapareceu e eu regressei ao pátio. Só depois me apercebi que as colegas estavam de costas para mim, ao lado umas das outras, a cochichar. Fui ter com elas.

Deixaram queimar a mola salsa. – Queixei-me a Popília e a Fábia.

Elas olharam-me com rosto sério e contorcido, o que não era normal! Hesitavam em pronunciar-se sobre, o que quer que fosse, que as atormentava. Depois Fonteia virou-se, deu por mim e levou as mãos à cabeça com horror:

Ainda bem que apareceste, Emília! Aconteceu uma desgraça…

Cévola foi esfaqueado. – Avisou Fábia, soltando a língua.

O quê? – Eu não podia estar mais surpreendida.

O pontífice máximo foi atacado em pleno dia! – Exclamou Popília, perplexa.

Houve derramamento de sangue no Senado e ele fugiu para aqui. – Disse Fábia.

César e a Vestal 134 Maria Galito

Afastei Popília e Fábia para observar melhor o recinto. Metela estava mesmo em frente, junto ao portão do santuário, de braços cruzados. Com ar de enterro, prestava declarações aos lictores que espreitavam do lado de fora do recinto sagrado.

À minha esquerda, reparei num rasto rubro que pingava dos degraus do templo de Vesta. Cévola fora ferido em chão sagrado e o seu corpo arrastado, sabe-se lá para onde! Perpena orava a uma coluna, onde se concentrava uma poça de sangue, com rosto enconchado nas mãos. Fui ter com ela, para não a deixar desamparada naquele pranto e abracei-a.

Um homem perseguiu Cévola até ao templo, enterrou-lhe a espada no corpo, fê-lo tombar nas escadas e levou-o de rojo com ele! Foi horrível, Emília! – Testemunhou Perpena, enquanto soluçava no meu regaço, a tremer.

O líder da religião romana era o único homem que podia entrar no templo de Vesta, mas apenas em duas situações específicas: em caso de incêndio, para salvar o Paládio; ou para pedir santuário a fugir à morte, pois herdara as graças protocolares dos antigos reis.

Cévola morreu? – Perguntei a Perpena.

Não creio que tenha sobrevivido ao ataque. É impossível…

Eu gostava de Cévola. Desde o princípio me tratara com benevolência. Contava-me histórias. Ensinava-me leis e costumes. Era bom para mim. Sempre me informou sobre o que se passava na cidade, sem me descriminar por o meu irmão não ser optimate como ele. Ele tinha princípios morais elevados. Talvez por isso, sofrera dois atentados, numa cidade virada ao contrário.

Sem tempo para desesperar, respirei fundo. Tentei ser prática, quando mais ninguém conseguia sê-lo. Olhei para dentro do templo e perguntei:

Calma, Perpena. O fogo mantém-se aceso?

Até me esqueci de pôr lenha! – Desassossegou-se, chorando mais ainda. Assumi a liderança da situação:

Deixa estar que eu resolvo. Senta-te aqui e respira fundo.

O fogo de Vesta foi reanimado, com recurso a lenha da árvore cabeluda. Depois, as vestais foram convocadas para uma reunião extraordinária na Cúria Régia, excecionalmente presidida por Cota. Foi ele quem resumiu, aos colegas, as informações disponíveis.

Ao que parece, Cévola fora convocado para reunião extraordinária no Senado presidida por um pretor amigo de Mariozinho. Sem cônsules na cidade, Damasipo era a autoridade máxima em Roma e aplicou a justiça conforme as instruções insensatas que recebera do cônsul júnior: elimina todo o apoio que Sila possa ter em Roma!

O nosso chefe tinha consciência que os populares estavam em apuros, sem vitórias a alentar os seus objetivos, ao mesmo tempo que Sila se aproximava, proveniente de leste! Mas nem Cévola acreditou que podia ser atacado no Senado, para onde caminhou como anho para o sacrifício.

César e a Vestal 135 Maria Galito

O irmão do falecido Aenobarbo foi a primeira vítima do dia. Golpeado na Cúria Hostília, teve morte imediata. Cévola conseguiu fugir do Senado e desatou a correr pelo fórum. Em desespero de causa, entrou no santuário de Vesta, talvez por considerar a Domus Publica mais insegura. Mas, quem o perseguia, não se deixou intimidar pelo protocolo e cometeu quatro heresias seguidas: entrou onde não podia, matou um homem, que era o líder da religião romana e atirou-lhe o corpo ao Tibre. Pior era impossível!

Resumindo, o líder da nossa religião foi assassinado, enrolado às colunas do templo de Vesta e o seu cadáver atirado ao Tibre. – Rematou Cota.

Não há cenário mais ímpio. – Reclamou Metela.

O nosso futuro só pode ser agoirento. – Rematou Fonteia.

A reunião foi dada como terminada. Os pontífices levantaram-se dos seus lugares e começaram a sair da Cúria Régia! César manteve-se ao lado de Cota, que lhe dera autorização para assistir à assembleia do colégio dos pontífices, pela primeira vez. Mas, quando eu passei, sussurrou-me ao ouvido:

Preciso falar contigo, Emília. – Pediu-me.

Não posso. Não há condições, sinto-me péssima e é arriscado! – Retorqui.

Após o nosso último encontro, o templo de Jove incendiara-se. Cina e Cévola tinham sido assassinados. Não era preciso ser áugure para concluir que os indícios eram funestos!

Preciso de ti, Caia. – Sussurrou-me ao ouvido.

Suspirei nervosamente e deixei-me ficar. Metela, Fonteia e Perpena acompanharam Cota até ao tablino do falecido pontífice máximo, para discutirem trâmites administrativos. Albinovano foi ter com eles.

A Cúria Régia parecia grande para nós os dois. Ao contrário do cubículo apertado, mas quente, que havíamos partilhado no templo de Jove, o espaço dos antigos reis, adaptado à República, era gelado, marmóreo e cerimonioso. Não nos aninhava em intimidade. Dava-nos uma sensação estranha de distanciamento, como se tudo tivesse mudado desde o nosso último encontro, que parecia ter ocorrido séculos antes!

Tu tiveste alguma coisa a ver com a morte de Cévola? – Perguntei de rompão.

Claro que não. – Respondeu ele, sem hesitar, de olhos firmes nos meus. Se fosse mentira, a sua resposta seria outra, talvez.

Eras a pessoa que mais beneficiava com a sua morte. – Não calei.

Não sejas ingénua, Emília. Cévola não deixava nenhum popular governar Roma, empatando leis a procedimentos com suposta oposição dos deuses. – Advertiu.

Que interesse teria ele em prejudicar a cidade? – Estranhei.

Para ganhar tempo até Sila regressar à frente do seu exército proconsular. A sua opinião corroborava com outras que eu tinha ouvido, no mesmo sentido.

Está bem. Vou acreditar em ti. – Declarei, após concluir sobre a sua inocência.

Obrigado, Emília. – Agradeceu, com olhos de estrelas.

César e a Vestal 136 Maria Galito

Pegou-me pelas duas mãos. Comecei a tremer. Ele sentou-me num banquinho. Como se fosse a coisa mais normal do mundo, pegou-me nos pés e começou a massajá-los. Eu não tinha imaginado o nosso reencontro assim!

Enrubesci durante o processo. Ainda me lembro do calor que senti, de tão encabulada. Até que ele subiu as suas mãos pelas minhas pernas, lentamente, por dentro da minha túnica. Inquieta e nervosa, levantei-me.

Beijou-me. Passou a mão pelo meu véu, que foi retirando devagarinho. Ele teria preferido soltar-me os cabelos mas não conseguiu, pois estes estavam presos em tranças finas e não havia meio de os libertar. Desistiu da intenção e piscou-me o olho. Deixei que me tocasse. Enrosquei-me nele, com a cabeça encostada ao seu coração, que pulsava.

Adoro-te, sabias? – Disse-me ele.

Ronronei-lhe com olhos pestanudos. Desejava esquecer que os deuses castigavam os humanos que os desafiavam. No fundo, eu queria despedir-me dos trajes de vestal. Não queria morrer. Mas não me importava de fugir com César para nunca mais regressar! Será que ele estava disposto a partir e a levar-me com ele?

És feliz enquanto flâmine de Júpiter? – Perguntei-lhe. O que eu queria saber é se ele estava disposto a fugir comigo.

Sim, porquê? – Indagou. Mas desconfiou logo que eu pensava mais do que dizia. Contornei a verdadeira questão, com esperança de lá chegar mais tarde.

Alexandre Magno queria ser Aquiles e este admirava Hércules. – Sondei com eloquência. – E tu, quem queres ser? Apanhei-o desprevenido! Ele ficou suspenso na pergunta.

Se eu fosse um Eneias, fundaria uma nova Roma! – Enfim exclamou.

Eu conhecia a lenda. Eneias era pastor das montanhas do Ida. Diziam-no filho de Vénus e de Anquises, de uma deusa e de um mortal descendente dos dárdanos. Quando atingiu a idade adulta, foi para Troia. Mostrou a sua coragem durante dez anos de conflito com os aqueus. Revelou ser tão valente quanto os filhos de Príamo. Até havia uma profecia, segundo a qual, Eneias seria um grande rei. Ele duvidou da previsão quando as muralhas caíram nas mãos dos gregos. Mas conseguiu sobreviver e refugiou-se nas montanhas com o pai, o filho e a esposa. Creúsa, filha dos reis de Troia, morreu antes de chegar ao destino.

Eneias conseguiu reunir uma armada e iniciou as suas incursões pelo mare nostrum, na companhia do pai, do filho e de uns quantos troianos. No périplo das suas viagens passou pela Trácia, Macedónia, Samotrácia, Creta, Delos, Citera, Lacónia e Arcádia, Lêucade e Zacinto; pelas costas do Epiro e aportou em Butroto, antes de chegar a Drépano na Itália onde o pai Anquises morreu. Regressando ao mar, uma tempestade afastou-o até Cartago, onde se encantou pela rainha Dido. Depois regressou ao mar e partiu para a costa italiana, aportando na foz do rio Tibre onde montou acampamento. Solicitou apoio militar ao rei Evandro e tornou-se herói em terras estrangeiras. Antes de morrer, fundou Alba Longa.

Leva-me àquela montanha!

César e a Vestal 137 Maria Galito

E assim a minha boca abriu-se à poesia.

Nasceste no Palatino e eu fui expulso do Capitólio. Queres ir onde, Emília?

Visitar Ilo, a terra de Eneias. – Foi a minha proposta. Ele abanou a cabeça. – Porque não? Ele viajou pelo mar, viveu muitas aventuras. Eu jamais saí desta cidade. Há tanto que nunca vi, que gostaria de conhecer.

A ideia é boa, mas inexequível. Troia está, por estes dias, tão destruída pela guerra quanto um dia foi pelos gregos. – Avisou-me. A novidade não me apanhou desprevenida. Eu já ouvira falar nas investidas de Fímbria numa cidade que também fora palco do seu confronto com Sila. – Estás mais segura em Roma. – Assegurou, envolvendo-me mais no seu abraço. Respirei fundo, como uma menina cheia de sonhos encerrada numa redoma.

Podíamos viajar os dois, construir família noutro lugar. Fiz a minha declaração de intenções! Mas as ilusões afundaram-se no charco.

Onde? Em terras bárbaras?

Mas César… ainda agora falavas em fundar uma nova Roma, em ser Eneias. Eu posso ir contigo, se quiseres.

Se abandonares o templo de Vesta, perseguem-te como se fosses um coelho e esfolam-te em três tempos. – Avisou.

Não propriamente. Enfiam-me num buraco e dão-te chibatadas. – Corrigi. A conversa começava a tornar-se ridícula. Eu tive plena consciência da situação.

Calma, Emília. Temos de ser práticos. – Pediu-me ele. A sério não se brincava!

Enquanto vestal, eu não posso casar e ter filhos. Isto não é vida para mim, César!

Não serás sacerdotisa a vida toda! Um dia terás liberdade para fazer tudo o que quiseres. – Alertou convictamente. – Entretanto, tens mais poder em Roma do que a minha mãe e irmãs. Nem Cinila, enquanto flamínica de Júpiter, recebe reconhecimento tão grande como vocês, as vestais. O teu cargo é importante e confere-te prestígio acima das outras mulheres.

Sim, tens razão. – Reconheci, pois era verdade.

Não estejas triste, Emília. Sabes que preferia estar contigo. Mas não posso.

Eu sei, já percebi…

Tenta compreender. Aqui somos patrícios. Fora destas muralhas, não temos estatuto nem futuro. – Tentou explicar. – Não faço intenções de começar do nada! Não ambiciono criar uma colónia perdida algures, facilmente arrasável pelo exército romano. Eu quero vingar na minha terra e tu devias ter igual ambição.

E assim me calou os planos de fuga ou os sonhos de vida a dois! No seu discurso não havia projeto conjunto. César era sedutor, carismático, sussurrava-me palavras bonitas ao ouvido, mas, entre carinhos e mimos, ele tinha projeto político do qual não abdicava.

Sila vem a caminho para ceifar os populares. Se ele vencer, tu morres. – Adverti.

Ele quer destruir os marianos e eu sou um deles. Eu sei.

Sila e os seus aliados querem entregar a República aos optimates…

César e a Vestal 138 Maria Galito

… os quais lutam contra os abusos do sistema, supostamente, corrompido por homens novos! Mas eu sou um patrício como Sila. Ele não vai mandar-me assassinar. – Declarou convictamente, depois de interromper o meu raciocínio.

Compraste guerra que não é tua? Acorda, César! Sila tudo fará para impugnar o futuro do sobrinho de Mário e genro de Cina. Foge!

Nem pensar! Sou César. Sila que venha, não tenho medo. – Determinou, de nariz empinado, com insensatez delirante!

Tu não és homem de armas! Qual é o teu plano? Barricar-te num templo semidestruído à espera que, por milagre, Júpiter envie raios e coriscos que te salvem de um exército de optimates?

Talvez. Fiquei perplexa com a sua resposta.

Estás armado em mártir? – Enfrentei-o, sem vacilar.

Júpiter vela por mim… e por ti. Contrariei a sua versão e avisei:

Tu não nasceste nos idos, nem foste ungido e eu não sou uma vestal que mereça a sua proteção. Jove mandou raios e coriscos, contra o templo, para castigar-nos! César pegou nas minhas mãos e explicou:

Foi fogo posto, Emília. Alguém ateou as chamas e eu acredito que foi um optimate para agitar o povo contra mim, ou contra os membros do meu partido.

A sério? – Engoli em seco.

Não precisas preocupar-te com Jove. O deus do Capitólio está a nosso favor. – Garantiu. Mas repetir uma mentira não a torna verdadeira. Vacilei, sem saber o que pensar.

Acreditas que os deuses estão do nosso lado? Ele apercebia-se da minha inquietude e afagava-me, com carinho.

Nada de mal te vai acontecer, minha linda. – Pediu gentilmente.

César beijou-me, como se aquele debate de ideias o tivesse excitado. Quanto mais difícil o desafio, mais combativo ele se tornava. Os metais estavam-lhe proibidos, mas ele tinha personalidade férrea!

Despedi-me de César e fui ter com as minhas colegas. Fonteia e Perpena já tinham regressado ao santuário de Vesta, mas Metela ainda conversava com Cota e Albinovano à porta da Domus Publica.

O que se passa? Porque estão com essa cara? – Perguntei, a nenhum em particular.

Metela pediu para deixar o sacerdócio. – Avisou Cota. A sumo-sacerdotisa transmitiu as razões para a sua decisão:

Já completei trinta anos de serviço. Posso sair quando quiser. Senti uma tristeza enorme, por eu não poder fazer o mesmo.

Penso que devias protelar a tua decisão. – Foi o parecer técnico de Cota. – Neste momento estamos desfalcados no colégio de pontífices e as vestais precisam de orientação.

César e a Vestal 139 Maria Galito

Pertenço a uma família odiada pelos marianos e eu não quero morrer! – Declarou Metela. – Se Sila não vence esta guerra ou o governo dos populares se perpetua, a minha cabeça está a prémio! Cévola foi atirado ao Tibre! Eu não quero ser a próxima vítima deste governo de carrascos! Cota tentou ser razoável.

Tens medo. Eu compreendo. Mas nada garante que tenhas o mesmo destino trágico de Cévola…

Lamento, mas não vou pagar para ver. – Concluiu Metela.

Na falta do pontífice máximo, foi organizada uma assembleia para discutir o tema. A confusão podia ter-se instalado. Mas Metela tinha aliado de peso! Cota era bom orador e representou legalmente os seus interesses. O discurso inspirado não deu azo a rebate. A minha colega obteve o que queria e foi exonerada. O processo demorou cerca de um mês, ao todo. Mas, quando ela arrumou as trouxas, as despedidas foram rápidas.

Vou ter saudades vossas. – Confessou Metela, emocionada.

Não te esqueças de casar com um homem jeitoso. – Lembrou-lhe Fábia, que era só no que pensava; apesar de ser a mais nova das seis e ainda, para todos os efeitos, uma pirralha! Metela deixou-se rir.

Não sei. Já estou velha para casar. Mas quem sabe? – Ponderou, com olhos fixos nas paredes do átrio as vestais. – Residi aqui trinta anos.

Terminou uma fase da tua vida. Agora vais começar outra. – Reconheci.

Toma cuidado, Metela. – Pediu Fonteia, que era muito sua amiga.

Eu vou ter, prometo. – Sorriu, demonstrando dificuldade em fazer um corte limpo com o passado. – Desejo-vos a todas muita sorte. Depois vemo-nos nas festas da cidade, não é assim?

Metela fugia da própria sombra! Precisávamos de uma nova líder, mas foi questão protelada, por razões técnicas, na falta de pontífice máximo.

A pressa justificara-se? Fonteia contou-me o segredo que elas guardavam. Ao que parece, o fogo de Vesta extinguira-se na manhã da morte de Cévola, durante a supervisão de Metela, que se deixou dormir quando a colega saiu por um momento. Mas ninguém aceitaria as suas desculpas. Com medo de serem sacrificadas por populares, por serem optimates, resolveram entreajudar-se. Reacenderam o fogo sagrado, mas, com a pressa, não foram buscar lenha da árvore cabeluda, como era praxe. Agoniadas e nervosas, preferiram ser substituídas mais cedo, por mim e por Perpena. Estava o enredo explicado!

Será que Cévola morreu por culpa nossa? – Perguntou-me Fonteia, preocupada.

Damasipo é que cometeu o sacrilégio e atirou o cadáver ao Tibre! – Fiz questão de lembrar-lhe. – A deusa apenas avisou para o que estava prestes a acontecer.

Sim, tens razão. Mas não contes nada do que eu te disse, a ninguém!

Está bem, Fonteia. – Garanti.

César e a Vestal 140 Maria Galito

Cota ainda indicou o meu nome, mas eu sabia que Fonteia era mais velha e experiente, pelo que era injusto passar-lhe à frente. Perpena, por seu lado, teve medo de assumir a liderança, num período tão conturbado.

Fonteia era metódica e discreta. Não possuindo a personalidade transbordante de Metela, a sua chefia ganhava em rigor técnico. Ela orava com fervor e evitava sair à rua. Mas dava-nos alguma folga no protocolo.

O meu irmão está à porta do santuário. Posso ir falar-lhe? – Pedi a Fonteia.

Está bem. Mas não demores. – Recebi em resposta.

Apressei-me a descer os degraus do templo e a percorrer o caminho até Marco. Saudei-o com mil perguntas sobre a família. Ele disse-me que recebera más notícias da Sardenha. A nossa irmã mais velha escrevera palavras de condolências. Ao que parece, Secunda falecera com peste. Fiquei desolada. Marco tentou consolar-me.

Não quero perder-te também. – Pedi-lhe, com lágrimas gordas no rosto.

A situação está difícil. Há batalhas a ocorrer em diferentes palcos de guerra. Não sei como vai ser o nosso futuro…

Pedi-lhe para ser pragmático e tentar negociar uma forma de se salvar, a ele e ao que restava da nossa família. Para o conseguir, teria de ser diplomata como o nosso pai. Ele não me garantiu sucesso no empreendimento, mas prometeu esforçar-se ao máximo nesse sentido.

Abracei-o e ele despediu-se com nuvens sobre a sua cabeça. Só depois César passou pela via-sacra e foi visitar o tio. Discretamente, fez-me sinal para que o seguisse. A princípio hesitei. Até pensei em não me arriscar. Mas atravessei a rua e entrei na Cúria Régia, onde Cota e Albinovano rondavam César, para ouvir o seu testemunho:

Sila vai atacar! Já não restam dúvidas. – Avisou Cota.

Ele quer destruir todos os marianos. – Admitiu Albinovano.

A tua mãe entrou em contacto com Dalmática? – Perguntou-lhe o tio.

Sila enviou mensagem escrita, por correio a galope. Ele está confiante na vitória e exige que me separe de Cinila. – Confessou César, com rasgo na voz. – Ele é fuinha! Sabe perfeitamente que eu casei em regime de confarreatio. Eu não posso divorciar-me.

Não podes, nem deves. Cinila é uma miúda, ainda. Ela não sobreviveria sozinha. Depende de ti e da tua mãe, em tudo! – Preocupou-se Cota.

Se ela morre, tu perdes o estatuto de flâmine de Júpiter. – Recordou Albinovano.

Eu sou um homem honrado! – Exclamou o filho de Aurélia.

Como é evidente. Ninguém põe isso em questão, sobrinho. – Disse Cota.

Compete-me aguentar o barco. – Foi a bravata de César. – Fui eleito flâmine de Júpiter e não vou abdicar do lugar no Senado, do estatuto social, do património e de tudo o que tenho! Viver sem honra é pior do que a morte! – Clamou, erguendo-

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se em orgulho. – Sila quer-me proscrito. Compete-me enfrentá-lo até ao fim das minhas forças!

Se Sila vence esta guerra, tu não tens salvação. Nem tu, nem Gratidiano. – Alertou Albinovano.

Nada existe nada de tão difícil que não seja vencível4. – Insistiu César.

Tens razão. Toca a rebate! Vamos todos combater! – Rematou Albinovano, como epílogo de guerra.

Os pontífices trocaram olhares aguerridos. Albinovano despediu-se dos amigos, passou por mim e não me viu. Tio e sobrinho ainda trocaram algumas ideias:

Tu não podes tocar em ferro. – Lembrou-lhe Cota.

Teoricamente, não. Na prática, tudo farei para sobreviver. Sou sobrinho de Mário! A glória aguarda-me.

César… por Júpiter! Tu podias ter partido para Esmirna, para junto do tio Rutílio. Ainda és jovem. Sila é velho. Ganhavas tempo! – Queixou-se Cota, sem confiança no futuro. – A estratégia resultou comigo durante a guerra dos italianos.

Eu não quero fugir ao meu desígnio.

Bom, agora é tarde para fugir. Sila tem agentes em todas as estradas e, sem o seu aval, ninguém zarpa de Óstia!

Sou valente. Nada temo! – Afirmou César de nariz erguido. O tio avisou-o:

Pois devias. Se Roma cair sob o jugo dos optimates, Sila vai entrar a matar!

Eu sei.

Tu eras menor de idade durante a primeira invasão. Agora já não és! Desafiaste o homem durante quatro anos. És definitivamente um alvo! César desdenhou o perigo e mudou o bico ao prego:

Encontramo-nos mais logo na ínsula da minha mãe?

Para um derradeiro juramento dos marianos? – Observou Cota, de rosto sério.

A minha tia prometeu fazer discurso. – Informou César.

Onde tu fores Mário, eu serei Maria? Eu recordo a sua última elocução.

Na falta do marido, ela quer reunir as hostes populares em torno de uma causa.

Mulher de político é fogo e a tua tia tem lume nas ventas! – Reconheceu Cota.

Ao casar, a minha Júlia levou os votos a sério.

Toda a família aceitou a liderança de Mário. Mas já não sei se fizemos a melhor das escolhas, sobrinho.

Sertório acredita na vitória. – Contrapôs César, de mente arrojada.

Ele é bravo e um excelente líder de tropas. Mas está praticamente sozinho a lutar contra Sila! Carbão não se aguenta nas pernas! Dizem que Mariozinho morreu no cerco de Preneste. Sei lá…

Bom, depois falamos. – Atalhou César.

Está bem, Até logo. – Despediu-se Cota, desanimado e pessimista. Quando Cota se foi embora, eu saí da toca e avancei da escuridão para a luz.

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Ouviste tudo? – Perguntou-me César.

O teu tio pensa a causa perdida e Albinovano não tem mais fé na empreitada. – Conclui pragmaticamente.

Nunca se pode deixar de acreditar naquilo que se quer. – Rebateu. Ele era mais corajoso do que eu pensava. Ou era doido!

Eu acredito em ti. – Disse-lhe. César aproximou-se de mim e abraçou-me ternamente.

Adoro-te, Emília. Nunca o duvides. Deixei-me puxar para o seu ninho de águia.

Não morras, César. – Pedi-lhe encarecidamente. Ele passou as mãos pelas minhas tranças.

Lembraste dos nossos votos?

Onde tu fores Caio eu serei Caia. – Foi o beijo partilhado.

A nossa vida estava por um fio! Suspirei, de rosto enconchado no seu pescoço, enquanto ele apoiava a cabeça na minha. Num mundus virado ao contrário, haveria futuro para mim e para César?

NOTAS FINAIS:

1 13 Julho: dia principal dos jogos apolinários. 2 Fase atribuída a César. 3 83 a.C. 4 Fase atribuída a César.