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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO DANTE BRUNO D’AQUINO RAZÕES POLÍTICO CRIMINAIS DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA E SUA RESISTÊNCIA EM FACE DO DIREITO POSITIVO BRASIEIRO CURITIBA 2009

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    CENTRO UNIVERSITRIO CURITIBA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO

    DANTE BRUNO DAQUINO

    RAZES POLTICO CRIMINAIS DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA E SUA RESISTNCIA EM FACE DO DIREIT O POSITIVO

    BRASIEIRO

    CURITIBA 2009

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    DANTE BRUNO DAQUINO

    RAZES POLTICO CRIMINAIS DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA E SUA RESISTNCIA EM FACE DO DIREIT O POSITIVO

    BRASIEIRO

    Dissertao apresentada ao Curso de

    Mestrado em Direito Empresarial e

    Cidadania do Centro Universitrio

    Curitiba, como requisito parcial para a

    obteno do Ttulo de Mestre em Direito.

    Orientador: Prof o. Dr. Fbio Andr

    Guaragni

    Prof o. Dr. Paulo Csar Busato

    Prof. Dr. Luiz Antnio Cmara

    CURITIBA 2009

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    DANTE BRUNO DAQUINO

    RAZES POLTICO CRIMINAIS DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA E SUA RESISTNCIA EM FACE DO DIREIT O POSITIVO

    BRASIEIRO

    Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Direito pelo Centro Universitrio Curitib a. Banca Examinadora constituda pelos seguintes profe ssores: Presidente: _________________ __________________ Prof o. Dr. Fabio Andr Guaragni ___________________________________ 1 MEMBRO DA BANCA Prof o Dr. Luiz Antnio Cmara ___________________________________ 2 MEMBRO DA BANCA (MEMBRO EXTERNO) Prof o Dr. Paulo Csar Busato

    Curitiba, de de 2 009.

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    SUMRIO

    INTRODUO...................................................................................................... 9 CAPTULO I ATIVIDADE EMPRESARIAL E O MEIO AMBIENTE .................. 15 1. O PARADIGMA FILOSFICO ILUMINISTA COM O DISCURSO TERICO DA REVOLUO INDUSTRIAL.................... .................................... 15 2. O MOVIMENTO INDUSTRIAL, A FBRICA DA MO DE OBRA NO SCULO XVIII............................................................................................... 20 2.1. A PESSOA JURDICA COMO INSTRUMENTO DE PRODUO E ACMULO DE RIQUEZA.................................................................................... 25 2.1.1. A Formao do Consumismo e seus Reflexos Scio Ambientais..............31 CAPTULO 2- O RECONHECIMENTO DO MEIO AMBIENTE COMO BEM JURDICO PENAL................................. .......................................................37 1. A EVOLUO HISTRICA DO BEM JURDICO NA DOGMTIC A PENAL.............................................. ......................................................................37 2. EVOLUO DO BEM JURDICO AMBIENTAL NO DIREITO BRASILEIRO......................................... .................................................................47 2.1.O BEM JURDICO AMBIENTAL E A CONSTITUIO DE 1988.....................48 3. DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE SADIO...... ..........................53

    4. MEIO AMBIENTE COMO PRINCPIO DA ORDEM ECONOMICA. ..................54 4.1. Uma Anlise Evolutiva dos Direitos Fundamentais e a Categorizao Do bem Jurdico Ambiental Terceira Gerao de Direitos...................................57 4.1.1. A Primeira Gerao dos Direitos..................................................................58 4.1.2. A Segunda Gerao de Direitos...................................................................60 4.1.3. A Terceira Gerao de Direitos....................................................................63 4.1.4. O Direito ao Meio Ambiente como Direito da Terceira Gerao: Princpio da Solidariedade......................................................................................66 4.1.5. O Bem Jurdico e sua Concreo O Caminho para a Tutela de Interesses Difusos.............................................................................................67 4.1.6. O Meio Ambiente como Bem Jurdico de Interesse Supra Industrial...........71 4.1.7. Observaes Crticas...................................................................................75 CAPTULO 3- A RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURDICA.. .....................80 1. A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA COMO OBTENO A LESO AO MEIO AMBIENTE.................. ....................................80 1.1. A RESPONSABILIDADE PENAL DA EMPRESA NO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO.....................................................................................81 1.1.1. A Revoluo Industrial como Marca Inicial da Degradao Ambiental em Larga Escala e a Tutela Jurdica do Meio Ambiente Ante a Tomada de Consciencia Ecolgica dos Estados Nao.......................................................81 1.1.2. O Mandado Criminalizador da Constituio.................................................85

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    1.1.3. A Anlise da Necessidade de Proteger o Meio Ambiente Atravs da Responsabilidade Penal da Empresa: Justificativas e Consideraes.............95 1.1.4. Razes Poltico Criminais para a Proteo do Meio Ambiente Atravs Da Responsabilidade Penal da Pessoa Jurdica....................................................95 2. A PROTEO DO MEIO AMBIENTE ATRAVS DO DIREITO ADMINISTRATIVO E DO DIREITO CIVIL ESTRUTURA ADMINIS TRATIVA DO DIREITO AMBIENTAL NO BRASIL........................ ............................................101 2.1. O PROCESSO ADMINISTRATIVO COMO INSTRUMENTO DE TUTELA DO MEIO AMBIENTE............................................................................104 2.1.2. A Ao Civil Pblica como Instrumento de Proteo do Meio Ambiente......................................................................................................106 3. A INSUFICIENCIA DOS INSTRUMENTOS EXTRAPENAIS DE PROTEO DO MEIO AMBIENTE................................... ........................................................111 3.1. Apontamentos Finais....................................................................................114

    CONCLUSO.......................................... .............................................................116 BIBLIOGRAFIA....................................... .............................................................118

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    Tema: RAZES POLTICO CRIMINAIS DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA E SUA RESISTNCIA EM FACE DO DIREITO POSITIVO BRASIEIRO.

    DAquino, Bruno Dante. Unicuritiba. Prof. Dr. Fbio Andr Guaragni. Curitiba.

    2009.

    Resumo

    O presente trabalho investigativo tem por finalidade analisar a responsabilidade penal da pessoa jurdica diante de um novo cenrio social: o definhamento do planeta e de suas reservas naturais. Inmeras iniciativas, tanto governamentais, quanto no governamentais, procuram refrear o desgaste irreversvel do planeta e de todas as suas riquezas naturais, de modo a evitar que a base de sustentao do homem sobre a terra, como solos, guas, ar, condies climticas, etc, se esvaia para sempre. A responsabilidade penal da pessoa jurdica apenas uma dessas iniciativas. O trabalho se desenvolver apresentando a alterao do conceito produtivo ocorreu com a chegada da revoluo industrial, entre os sculos XVII e XVIII. o momento em que a pessoa jurdica j est consolidada como uma forma jurdica de atuao no mundo prtico. Surge, ento, a partir da, a necessidade de se compreender o meio ambiente como bem jurdico, de suma importncia, pois de sua preservao a humanidade depende diretamente. A dissertao passar, ento, a analisar as condutas que, de forma mais significativa, potencialmente lesionam o meio ambiente. E, evidentemente, a atividade empresarial est no centro desse contexto.

    Palavras-chave

    Desenvolvimento industrial. Ps-modernidade. Desgaste das reservas naturais. Desenvolvimento. Proteo do meio ambiente. Formas de proteo ambiental. Poltica criminal. Responsabilidade penal da pessoa jurdica. Constituio. Adequao. Necessidade.

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    Tema: RAZES POLTICO CRIMINAIS DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURDICA E SUA RESISTNCIA EM FACE DO DIREITO POSITIVO BRASIEIRO.

    DAquino, Bruno Dante. Unicuritiba. Prof. Dr. Fbio Andr Guaragni.

    Curitiba. 2009.

    Abstract

    The following essay intends to analyze the corporation criminal responsibility due to the new social developments involving the planets and its natural resource destruction. Many initiatives have been taken, by the government and non-government institutions, in order to break the planets wastage and then avoid the complete destruction of our natural resources, such as the water, the soil, the air and the climate condicions. The corporation criminal responsibility is one of these initiatives. The essay will develop itself introducing the change in the producing concept that was brought by the Industrial Revolution in the XVII e XVIII centuries. Since then, appears the urge to understand the environment as a legal object, which assures the life on earth. The dissertation will, then, describe the conducts that injure, the most, the environment. In the centre of this context is the corporation.

    Keywords

    Industrial development. Wastage of natural resources. Development,

    Environment protection. Ways to protect the environment. Criminal policy. Corporation criminal responsability. Constituicion. Adjust. Urge.

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    INTRODUO

    Toda atividade humana depende do meio ambiente. Quando se aborda

    produo de bens, pode-se afirmar que todas as formas de produo de bens

    exploram o meio ambiente de forma direta ou indireta. A explorao do meio

    ambiente est presente desde o mais rudimentar sistema de subsistncia

    mesopotmico, at a chegada das grandes indstrias da energia nuclear, do

    sculo XX. A diferena desses dois extremos est, unicamente, na forma de

    explorao do meio ambiente: se sustentvel ou no. Contudo, apesar de a

    explorao das riquezas naturais da terra sempre ter acompanhado o homem, foi

    a partir do desenvolvimento industrial que comearam a aparecer os primeiros

    impactos ambientais da explorao desmedida e falta de cuidados com os

    resduos da produo.

    O Movimento industrial, que surgiu inicialmente na Inglaterra do sc. XVIII,

    e, aps, espalhou-se por toda Europa continental, gerou profundas alteraes no

    processo de produo de bens e riquezas. Ao longo desse movimento, que ficou

    conhecido como revoluo industrial, o modo de produo manufatureiro foi

    substitudo pela automao e pela gerao de produtos em alta escala (produo

    em srie). A relao capital/trabalho alterou-se significativamente, passando a

    haver a maior explorao possvel da mo de obra, gerando uma acelerada

    explorao do meio ambiente. Sem dvida, o racionalismo cientfico produziu o

    domnio da tcnica e da cincia, de modo a permitir ao homem a explorao do

    meio ambiente de forma indita na histria da humanidade, alterando-se,

    inclusive, o modelo de produo.

    Com o novo paradigma de produo em srie, e com a superao definitiva

    do modelo manufatureiro, a atividade empresarial logrou uma produo

    infinitamente maior, podendo, ento, iniciar o expansionismo. Expansionismo este

    que no era apenas uma possibilidade, mas uma necessidade para a grande

    oferta de bens que a industrializao, calcada na explorao do meio ambiente,

    produziu. As grandes negociaes comerciais entre naes distintas, teve, como

    conseqncia lateral, a hegemonizao do consumo e a uniformizao dos

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    hbitos cotidianos, como a vestimenta e a alimentao. a indstria gerando o

    fenmeno da cultura de massa.

    Com o desenvolvimento do fenmeno da globalizao, na passagem do

    sc. XX para o sc. XXI, e com o incremento da chamada sociedade de risco

    global, conceito utilizado pelo socilogo germnico Ulrich Beck1 para denotar

    esse movimento global de integrao econmica, social, cultural e poltica,

    percebeu-se que a atividade empresria atravs de pessoas jurdicas passou a ter

    grande importncia nas novas configuraes sociais, demandando, inclusive, para

    alguns doutrinadores como Klaus Tiedemann 2, uma releitura do antigo brocardo

    societas delinquere non potest.

    Com o fenmeno da globalizao aliado rede nica de comunicao

    eletrnica mundial, a atividade empresarial recebeu forte impulso em sua forma de

    produo e organizao das sedes e filiais corporativas. Passou, deste modo, a

    ter reflexos determinantes na vida social e coletiva, por estar diretamente ligada

    explorao de riquezas do meio ambiente, gerao de empregos, circulao de

    valores e desenvolvimento social.

    O incremento na produo industrial decorrente da atividade empresria

    ocasionou um forte desgaste das reservas de matria prima no meio ambiente,

    alm de produzirem grandes impactos ambientais, com a produo de lixos

    txicos, alterao do clima, produo de chuvas cidas, poluio dos oceanos e

    aquecimento global.

    Ambientalistas de todo o mundo passaram, a partir da dcada de 70, a

    reforar a necessidade de se conter o desenvolvimento social fundado na

    explorao no sustentvel do meio ambiente. A partir da, a atividade empresria

    tem sido objeto de considervel regulamentao, que se percebe com o

    expressivo incremento das normas administrativas e estruturao de um sistema

    1 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global . Espanha, Madrid: Siglo XXI de Espana Editores S/A, 2002, p. 4. 2 TIEDEMANN, Klaus: La Armonizacin del derecho penal em los estados miembros de la unin europea. Trad. de Manuel Cncio Meli. Universidad Externado de Colmbia. Colmbia, Bogot:1998, p. 18. Nesse texto, Klaus TIEDEMANN refora a idia de responsabilizao criminal da pessoa jurdica, j trabalhada em suas outras obras.

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    burocrtico para permitir o incio de atividades que explorem o meio ambiente.

    Com efeito, a regulamentao estatal da atividade empresria no se limitou a

    disciplinar a explorao do meio ambiente por pessoas jurdicas.

    Concomitantemente, o Estado brasileiro realizou, no mbito criminal, a

    responsabilidade penal da pessoa jurdica por delitos ambientais, consoante se

    extrai do artigo 225 3, da Constituio da Repblica.

    Este processo de criminalizao das pessoas jurdicas, por um lado,

    concorre para a inflao do direito penal e coloca em risco o princpio da menor

    incidncia, ou da interveno mnima do direito penal. Por outro vrtice, realiza a

    proteo mais severa do meio ambiente, cuja necessidade de proteo

    absolutamente premente para o futuro das geraes. O surgimento de um direito

    penal que pretende tutelar bens jurdicos supra-individuais deu origem a um

    fenmeno a que Jesus-Mara Silva Sanchez, criticamente, tem denominado de a

    expanso do direito penal ou direito penal de segunda velocidade3, que se

    legitima a partir de um discurso de proteo de bens jurdicos supra-individuais,

    como o meio ambiente, as relaes de consumo, a ordem econmica, o sistema

    financeiro, a ordem tributria, entre outros.

    Entretanto, a legitimao desse direito penal esbarra na concepo

    constitucional do Estado Democrtico, visto que esta orienta a incidncia mnima

    do direito penal, cuja atuao deve realizar-se somente quando nenhum outro

    ramo do direito puder proteger o bem jurdico visado, como ultima ratio. Trata-se

    do princpio da interveno mnima, bem sintetizado por Francisco Muoz Conde e

    Mercedez Garcia Arn:

    O poder punitivo do Estado deve estar guiado e limitado pelo princpio da interveno mnima. Com isto quero dizer que o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurdicos mais importantes (a respeito ver Munoz Conde, Introduccin, pp. 59 y ss.). As perturbaes mais leves ao ordenamento jurdico so objeto de outros ramos do Direito. Da h tambm de ser dito que o

    3 SANCHEZ, Jess-Maria Silva. A expanso do direito penal: aspectos da poltica criminal nas sociedades ps-industriais. Trad. Luis Otvio de Oliveira Rocha. So Paulo: RT, 2002, p. 144.

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    Direito Penal tem carter perante os demais ramos do ordenamento jurdico.4

    Dentro desse contexto de reflexo sobre o papel do direito penal na

    proteo do meio ambiente, est a necessria avaliao sobre a possibilidade de

    se superar alguns alicerces do direito penal, como o brocardo societas delinquere

    non potest (sociedades, pessoas jurdicas, entes jurdicos fictos, no praticam

    crimes).

    Outro aspecto importante no desenvolvimento da pesquisa, ser a

    avaliao sobre o bem jurdico a ser protegido pelo direito penal. Sabe-se que,

    tradicionalmente, cabe ao tipo penal realizar a descrio da conduta proibida pelo

    ordenamento jurdico, prevendo, em tese, a quem pratique esse comportamento

    vedado, uma sano penal, conseqncia estatal prevista para o autor do fato.

    Nesta quadra, sem adentrar ao discurso deslegitimador da criminologia crtica, os

    tipos penais so necessrios ante a misso que atribuda ao direito penal de

    realizar a proteo dos bens jurdicos mais relevantes sociedade. Neste sentido,

    assevera Hans Heinrich Jescheck, juntamente com Weigand, o ponto de partida e

    a idia reitora da formao do tipo o bem jurdico. Os bens jurdicos so o

    interesse da comunidade cuja proteo garantida pelo direito penal. 5

    Outrossim, afora as teorias abolicionistas, que, definitivamente, no sero

    objeto da pesquisa ora proposta, considera-se que o direito penal tem a misso de

    realizar a proteo de determinados bens jurdicos, valendo-se, nesse mister, dos

    tipos penais. Da a conhecida definio realizada por Zaffaroni e Pierangeli no

    4 CONDE, F. Muoz. ARN, M. Garca. Derecho Penal Parte General. 6 Edicin, revisada y puesta al da. Valencia, 2004. Tirant lo blanch. P. 72. El poder punitivo del Estado debe estar regido y limitado por el prinicipio de intervencin mnima. Con esto quiero decir que el Derecho Penal slo debe intervenir en los casos de ataques muy graves a los bienes jurdicos ms importantes (vase al respecto MUOZ CONDE, Introduccin, pp. 59 y ss.). Las perturbaciones ms eleves del orden jurdico son objeto de otras ramas del Derecho. De ah que se diga tambin que el Derecho penal tiene carcter frente a las dems ramas del Ordenamiento jurdico. 5 JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de derecho penal . Traduccin Miguel Olmedo Cardenete. 5.ed. Granada: Ed. Comares, 2002, p.274. el punto de partida y la idea rectora de la formacin del tipo es el bien jurdico. Los bienes jurdicos son intereses de la comunidad cuya proteccin garantiza el derecho penal.

  • 13

    sentido que o tipo penal um instrumento legal, logicamente necessrio e de

    natureza predominantemente descritiva, que tem por funo a individualizao de

    condutas humanas penalmente relevantes.6

    Chega-se idia de que o tipo penal realiza uma funo dentro da estrutura

    analtica do delito. Essa funo a de selecionar e individualizar condutas que so

    relevantes para o direito penal por representarem violaes aos bens jurdicos por

    ele tutelados. Essa noo de que os tipos penais realizam um papel dentro da

    estrutura dogmtica, consistente na seleo e individualizao de

    comportamentos, que levou Winfried Hassemer a afirmar que: a tarefa

    especfica da etapa do tipo indicar o relevo (Relief) da proteo de bens

    jurdicos, que constitui a especificidade de toda cultura jurdico-penal. 7

    Oportuno ressaltar, nessa quadra, que, em homenagem ao princpio da

    interveno mnima, a proteo do direito penal somente deve recair, devido a sua

    gravssima conseqncia que o cerceamento da liberdade, sobre aqueles bens

    jurdicos mais importantes e que no podem ser eficazmente protegidos pelos

    demais ramos do direito (direito civil, administrativo, comercial, etc.).

    Nesse sentido, esclarecedoras so as palavras de Claus Roxin, quando

    propugna o carter subsidirio do direito penal na sua tarefa de proteo de bens

    jurdicos. Narra o mencionado autor que:

    O direito penal s deve ser includo como a ltima entre todas as medidas protetoras que existem, dizer que somente se pode fazer intervir quando falhem outros meios de soluo social do problema como a ao civil, as regulamentaes de polcia ou jurdicos tcnicas, as sanes, etc. Por isso se denomina a pena como a ltima razo da poltica social e se define sua misso como proteo subsidiria de bens jurdicos. 8

    6 ZAFFARONI, Eugnio Ral. PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de direito penal brasileiro . Parte Geral. 5.ed. So Paulo: RT, 2005, p.421. 7 HASSEMER, Winfried. Introduo aos fundamentos do direito penal . Traduo de Pablo Rodrigo Aflen da Silva. 2. ed. Porto Alegre: Srgio Fabris Editor, 2005, p. 282. 8 ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte general. Fundamentos. La Estrutura de la teoria del delito. Tomo I. Trad. por Diego Manuel Luzn Pea. 2. ed. Madrid (Espanha): CIVITAS, 2003, p.65. el derecho penal slo es incluso la ltima de

  • 14

    O meio ambiente, como bem jurdico, sem dvida, apresenta relevncia e

    dignidade penal, mas preciso trabalhar, tambm, com o conceito de bem jurdico

    por acumulao, quando a conduta for praticada pelo mesmo autor. Alguns

    doutrinadores tem sustentado a idia de que o direito penal ambiental, assim

    como o direito penal econmico, busca tutelar um bem jurdico por acumulao ou

    por aglutinao, em que o que se quer desestimular a reiterao de

    comportamentos que, somados, iro afetar de modo significativo a vida coletiva.

    Entretanto, como bem ressaltado por Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa

    Andrade, desde as primeiras tentativas de conceitualizar o bem jurdico

    aglutinador, dessa pluralidade e disperso de normas, tm-se multiplicado os

    critrios e acentuado a amplitude das divergncias.9

    Portanto, como a atividade empresria e o direito penal ambiental esto

    intimamente ligados, evidencia-se a pertinncia do tema com a linha de pesquisa

    relativa atividade empresarial, cidadania, incluso e sustentabilidade. Todos

    esses conceitos passam, necessariamente, pela alterao do conceito de

    explorao e proteo do meio ambiente. Deste modo, nada mais relevante e

    oportuno do que investigar, ainda que sob a tica da poltica criminal diretiva do

    Estado, se h ou no a necessidade de se reexaminar as formas de proteo do

    meio ambiente e se necessrio estender essa tutela penal para a

    responsabilidade penal da pessoa jurdica.

    entre todas las medidas protectoras que hay que considerar, es decir que slo se le puede hacer intervenir cuando fallen otros medios de solucin social del problema como la accin civil, las regulaciones de polica o jurdico-tecnicas, las sanciones no penales, etc. Por ello se denomina a la pena como la ultima ratio de la poltica social y se define su misin como proteccin subsidiaria de bienes jurdicos. 9 DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa. Problemtica geral das infraes contra a ordem econmica. In: Temas de direito penal econmico. Organizador: Roberto Podval. So Paulo: RT, 2000, p.67.

  • 15

    CAPTULO 1

    A ATIVIDADE EMPRESARIAL E O MEIO AMBIENTE

    1. O PARADIGMA FILOSFICO ILUMINISTA COMO DISCURSO TERICO DA

    REVOLUO INDUSTRIAL

    A temtica ambiental aparece no cenrio mundial como um dos assuntos

    que mais gera interesse; este fato pode ser explicado pela complexa equao que

    envolve: o desenvolvimento industrial e econmico e o equilbrio com a

    manuteno do meio ambiente preservado. A administrao inteligente dos

    recursos naturais o grande desafio do modelo capitalista, posto que disso

    depender a sobrevivncia e a permanncia do homem sobre a terra; ou seja, a

    reinterpretao do conceito de progresso, contemplando maior qualidade e

    sustentabilidade do meio explorado, no apenas a quantidade do crescimento

    algo que determinar a vida ou a morte das pessoas.

    Para melhor compreender este cenrio, imprescindvel uma breve incurso

    sobre o momento histrico que ocasionou uma verdadeira alterao no modelo de

    produo de bens de consumo e, conseqentemente, passou a gerar os mais

    profundos impactos no meio ambiente, desde que o homem o explora, que

    exatamente o contexto da revoluo industrial.

    No se olvida que, efetivamente, o homem explora o meio ambiente, e o

    desgasta, desde que existe sobre a terra, pois o simples respirar transforma o

    oxignio em gs carbnico, a ser expelido para a atmosfera. Narra-se, na histria,

    que a filosofia escolstica de Santo Agostinho j denunciava os abusos da

    explorao ambiental que ocorria sobre o solo e sobre os animais. No sculo XVII,

    o maior escritor da lngua portuguesa, Padre Antonio Vieira, tambm j apontava

    em seus Sermes que a utilizao irrefreada do solo para a agricultura, poderia

    comprometer a pluralidade das espcies vegetais, denotando uma viso

    precursora sobre o problema da monocultura.

  • 16

    Entretanto, inegvel que a forma mais impactante de explorao do meio

    ambiente passou a ocorrer aps o sculo das luzes e todo desenvolvimento

    tecnolgico, fsico, qumico e industrial que ele proporcionou. A revoluo

    industrial, que teve o seu incio na Inglaterra, foi o produto mais elaborado do

    paradigma filosfico iluminista.

    Logicamente, iluminismo um conceito que sintetiza diversas correntes

    filosficas que podem ser compreendidas como anti-absolutistas, ou pensamentos

    que se insurgiram contra o antigo regime (absolutismo). Pode-se falar ainda em

    uma pluralidade de feies iluministas, diferenciando especificidades temporais,

    regionais e de matiz religiosa, como nos casos de Iluminismo tardio (do sculo

    XIX) Iluminismo escocs e Iluminismo catlico.

    evidente que as correntes filosficas (renascentistas, iluministas,

    antropocentrismo, teocentrismo, humanismo, positivismo, entre outros) no

    possuem uma data certa de incio nem, tampouco, um dia determinado em que se

    encerram. Contudo, possvel afirmar que o iluminismo teve as suas primeiras

    expresses consolidadas no sculo XVII, quando fsicos, como Galileu Galilei e

    Johannes Kepler publicaram seus estudos cientficos. Nesses estudos, ambos os

    fsicos contestaram, com o mtodo da experimentao cientfica, os dogmas

    impostos pela igreja catlica e buscaram afastar toda a atmosfera de bruxaria e

    magia que a idade mdia impunha sobre os fenmenos naturais, como a prpria

    gravidade e posio dos planetas.

    O pensamento cientfico marca, nesse perodo, uma revoluo da filosofia

    que gravitava sobre o teocentrismo, e, doravante, passar a ser desenvolvida sob

    a tica do potencial humano, fomentando uma revalorizao do ser humano e de

    sua racionalidade, culminando com o movimento antropocentrista. Esse maior

    senso crtico que permitiu ao homem observar detidamente os eventos naturais,

    ao invs de deix-los sempre interpretao da Igreja.

    Ainda no final do sculo XVII, surge a imprensa e desenvolve um papel

    fundamental para ampliar a divulgao dos trabalhos cientficos e suas

    descobertas, bem como diminuir os erros na reproduo das obras e nas

    tradues que, por vezes, erram carregadas de equvocos hermenuticos. Ocorre,

  • 17

    ento, nesse final de sculo XVII, uma verdadeira revoluo cientfica, que coloca

    em cheque as crendices medievais e as interpretaes dogmticas da Igreja.

    Grandes fsicos, matemticos, astrnomos, mdicos desenvolvem estudos

    que demonstram a capacidade que o homem possui de melhorar, atravs do

    pensamento racional, sua existncia sobre a terra. Nesse contexto, surgem

    importantes nomes como Isaac Newton que publica, em 1687, a obra Princpios

    Matemticos da Filosofia Natural, o famoso livro conhecido apenas como

    Principia, em que o autor narra e descreve o funcionamento das leis

    gravitacionais e do movimento dos corpos.

    Tambm podem ser citados Galileu Galilei, e, claro, o pensamento

    racionalista de Ren Descartes, que foi o grande filsofo a demonstrar como a

    linguagem matemtica poderia ser utilizada para interpretar a natureza. Teve

    inmeras obras de cunho antropocentrista, mas destaca-se o seu Discurso sobre

    o Mtodo onde prope que a linguagem matematica a base para todas as

    cincias do conhecimento humano, inclusive para a filosofia. Nessa obra,

    Descartes faz a afirmao que coroa a sua crena no potencial humano e destoa

    de qualquer inclinao hermenutica da igreja penso logo existo.

    Essa assertiva "Cogito, ergo sum" aparece no trabalho escrito por

    Descartes, Discours de la Mthode10 (1637), escrito originariamente em francs e

    traduzido para latim anos mais tarde. O trecho original era "Puisque je doute, je

    pense; puisque je pense, j'existe" e, em outro momento, "je pense, donc je suis".

    Sntese do pensamento cartesiano, essa afirmao, o coroamento do

    pensamento matemtico-centfico e extremanmente antropocntrico de Ren

    Descartes.

    O pesamento iluminista, com o mtodo da experincia e a crena no

    antropocentrismo teve, ainda, vrios outros colaboradores, tais como Francis

    Bacon, Nicolau Coprnico, etc. Todos esses pensadores tinham em comum a

    crena de que a verdade cientfica a nica que no comporta contra-

    10 Descartes, Ren. Discurso sobre o mtodo . Athena Editora. *devido traduo ser muito antiga foi impossvel identificar os demais elementos como ano, tradutor e cidade.

  • 18

    argumentos, pois estaria abarcada pela mxima de que foi cientificamente

    comprovada.

    Importante observar ainda que o pensamento iluminista foi o grande motivo

    da ascenso do mtodo cientfico, ocasionando, inclusive a chamada revoluo

    cientfica que ocorreu no bojo do perodo iluminista. Essa alterao de paradigma

    ocorreu com a focalizao dos interesses em tudo o que era cientificamente

    comprovvel, em detrimento da antiga viso medieval, que deixava as explicaes

    fenomenais s crenas populares e mticas.

    O conceito de verdade passou a estar intimamente ligado possibilidade

    de comprovao cientfica. S considerado verdade, no perodo iluminista,

    aquilo que puder ser comprovado atravs do mtodo da experimentao; isto ,

    aquilo que puder ser cientificamente comprovado.

    Nesse contexto em que o pensamento cientfico o centro dos interesses

    por parte dos filsofos, fsicos, astrnomos e matemticos, o desenvolvimento de

    instrumentos de produo que ocasionaram verdadeiros processos civilizatrios,

    que podem, segundo Darci Ribeiro, ser sintetizados em revoluo agrcola;

    revoluo urbana, revoluo metalrgica, revoluo pastoril, revoluo mercantil,

    revoluo industrial e, por fim, revoluo termonuclear. 11

    A revoluo industrial, promovida por meio da completa reconfigurao e

    adoo de tcnicas e aparatos para os meios de produo e explorao do meio

    ambiente, alterou por completo a configurao da sociendade. Segundo nota Darci

    RIBEIRO, as alteraes da revoluo industrial na sociedade:

    s seria comparvel revoluo agrcola, que desde 10 mil anos passados vinha remodelando os povos. Afetaria tambm todas as sociedades, acrescentando s que lograram industrializar-se um poderio antes inimaginvel e submetendo as demais a formas de dominao cada vez mais sutis e imperativas. Remodelaria internamente cada sociendade, tanto as diretamente industrializadas, quanto as modernizadas reflexamente, alterando sua extratificao social e, com ela, as estruturas de poder e redefinindo

    11 RIBEIRO, Darci. O processo civilizatrio;etapas da evoluo sociocultural .11.ed. Companhia das Letras. So Paulo, 1997,p. 63.

  • 19

    profundamente sua viso do mundo e seus corpos de valores.

    Outro dado absolutamente importante que a revoluo industrial promove e

    que pode ser mais um demonstrativo de que esse perodo marca, defitivamente o

    momento em que o meio ambiente experimenta, pela primeira vez, os grandes

    impactos de sua explorao irrefreada, a exploso demogrfica. Segundo dados

    colhidos dos estudos de Darci Ribeiro, com a revoluo industrial, s a Europa

    passaria de 160 para 400 milhes de habitantes no curso do sculo XVIII; a

    populao mundial cresce de 600 milhes em 1750, para 2,4 bilhes, em 1950, e

    caminha para os 6 bilhes previstos para o ano 2000.12

    Em concluso, pode-se constatar que a Revoluo Industrial, com seus

    inventos mecnicos obtidos a apartir da supervalorizao do pensamento

    racionalista, permitiu multiplicar fantasticamente a produtividade do trabalho

    humano, fortalecendo o incipiente modelo capitalista de acumulao de bens e

    riquezas e obteno de lucro sobre a mo de obra. Impunha-se, tambm, com a

    revoluo, uma economia industrial, essencialmente urbanizada, que relegou a

    produo agrcola para um segundo plano, gerando um novo empresariado, que

    promove a captao de artesos desempregados e desalojados do campo,

    alocando-os em fbricas com operadores de engenho mecnicos, movidos por

    novos conversores de energia13

    12 RIBEIRO, Darci.Op Cit. p. 190. 13 RIBEIRO, Darci.Op Cit. p. 193.

  • 20

    2. O MOVIMENTO INDUSTRIAL, A FBRICA E A MO DE OBR A NO SCULO XVIII

    Antes do pensamento iluminista, durante a Idade Mdia, as pessoas no

    dispunham de meios de produo mecanizados, e o trabalho era

    predominantemente artesanal. A revoluo industrial marca, enfaticamente, a

    transio do modelo de produo manufatureiro para o modelo fabril. Conforme

    acima mencionado, essa estrutura fabril mecanizada, com a utilizao de energia

    eltrica, mquinas a vapor, de modo a promover uma verdadeira exploso na

    quantidade de bens produzidos, teve forte influncia do pensamento iluminista e

    do racionalismo da escola cientfica.

    Todo o processo de mecanizao e explorao do meio ambiente com a

    escalada da produo em srie gera, posteriormente, vrias crticas. Uma das

    mais influentes, apega-se, justamente, no modelo de produo em que o trabalho

    humano maximamente utilizado para o acmulo de capital nas mos do

    industrial. A propsito, Karl Marx menciona que a mquina, que o ponto de

    partida da Revoluo Industrial, substitui o trabalhador que empunha uma nica

    ferramenta por um mecanismo que funciona com uma srie de ferramentas

    semelhantes e impelido por uma nica fora motriz seja qual for a forma dessa

    fora14.

    A transio da manufatura indstria foi um processo gradativo onde cada

    meio de produo criado contribuiu para que novos meios fossem desenvolvidos

    e, num desenvolvimento em srie de meios de produo, a alterao da cidade e

    do meio social para ambientes influenciados pela industria e pela fbrica. Alm

    disso, outro fator relevante nesse contexto de formao industrial das cidades est

    14 MARX, Karl. O Capital. Vol.I. p. 308. In: DOBB, Maurice. A evoluo do Capitalismo . Rio de Janeiro: JC, 1987. p 261.

  • 21

    na alterao microfsica do modo de produzir e da maneira em que o homem

    passou a colaborar na confeco do bem de consumo. A partir do momento em

    que os trabalhadores deixaram de produzir seus objetos de maneira artesanal, e

    comearam a subdividir o trabalho em etapas com a colaborao de vrios

    trabalhadores na esteira de produo, organizaram-se em uma linha de

    montagem, surgindo a chamada produo em srie, no sculo XX.

    Nesse modelo, o indivduo deixa de perceber a integralidade do bem que

    est produzindo. No lugar da viso do todo, o trabalhador passa a exercer,

    repetidamente, na linha de montagem, apenas uma mecnica tarefa repetitiva.

    Pregar, serrar, colar, apertar, passam a ser os trabalhos mais realizados e

    repetidos dentro de um ambiente fabril pelo trabalhador. A jornada de trabalho

    tambm ampliada de forma a elevar a explorao do trabalhador pelo industrial.

    As conseqncias dessa forma de trabalho so plrimas: a forma de

    produo passa a ser alienante; o trabalhador perde a autonomia de sua

    atividade, uma vez que colabora em apenas uma etapa; aumenta a dependncia

    do trabalhador ao seu empregador; as famlias dos trabalhadores passam a residir

    no entorno das fbricas, dentre outras conseqncias.

    Dentre essas caractersticas, chama ateno a dependncia gerada entre o

    trabalhador e o industrial, que, alm de se concretizar atravs da dependncia

    econmica, uma conseqncia lgica do modo de produo, pois no sabendo

    todo o processo da fabricao de determinado objeto, no pode o trabalhador

    realizar essa atividade isoladamente, mantendo o industrial uma espcie de

    controle pelo saber. Essa superioridade atravs do conhecimento, passa a sujeitar

    o trabalhador s condies impostas pelo industrial, dono da fbrica, originando

    uma espcie de dominao pelo saber e formao de uma disciplina prpria da

    fbrica.

    Tal situao de dominao pelo conhecimento e gerao de uma espcie

    de sociedade disciplinar fabril, foi bem destacada em Vigiar e Punir, por Michel

    Focault. Nessa obra, o autor trata do tema da Sociedade Disciplinar, implantada

    a partir dos sculos XVII e XVIII, consistindo, sinteticamente, num sistema de

    controle social atravs da conjugao de vrias tcnicas de classificao, de

    seleo, de vigilncia, de controle, que se ramificam pela sociedade a partir da

  • 22

    estrutura hierrquica que se origina na fbrica. Nas palavras do autor, essa

    sujeio entre o industrial, em posio hierrquica superior em relao ao

    trabalhador, fornecedor da mo de obra, opera-se atravs do poder produz o

    saber que legitima e reproduz o poder.15

    Oportuno referir que ganha muita importncia, nesse perodo de

    desenvolvimento industrial e fabril, a idia e o desenvolvimento dos mecanismos

    de disciplina social, como, alis, ressaltado por Michel Foucault em Vigiar e Punir:

    A disciplina a prpria (micro)fsica do poder,instituda para controle e sujeio do corpo, com o objetivo de tornar o indivduo dcil e til: uma poltica de coero para domnio do corpo alheio, ensinado a fazer o que queremos e a operar como queremos. O objetivo de produzir corpos dceis e teis obtido por uma dissociao entre corpo individual, como capacidade produtiva, e vontade pessoal, como poder do sujeito sobre a energia do corpo.16

    A criminologia crtica constata, ainda, que a fbrica e o desenvolvimento

    industrial tiveram significativo papel na imposio da disciplina social e na

    docilizao do homem para format-lo maior explorao do capitalismo. No

    contexto da revoluo industrial, o inchao das cidades foi uma caracterstica

    marcante. Isso ocorreu, dentre outros fatores, por conta da procura de

    oportunidades e de emprego, supostamente existentes por conta da formao e

    instalao das fbricas e indstrias.Interessante constatar na obra de Dario

    Melossi e Mssimo Pavarini, que:

    Uma excepcional acelerao do ritmo do desenvolvimento econmico, o fenmeno da revoluo industrial, rompe com todos os tradicionais equilbrios precedentes. Uma repentina inclinao da curva do crescimento demogrfico, juntamente com a introduo das mquinas e a passagem do sistema manufatureiro para o sistema da fbrica propriamente dito, servem para assinalar, contemporaneamente, a idade de ouro do jovem capitalismo, acompanhado pelo perodo mais escuro da histria do proletariado. A incrvel acelerao da

    15 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir . Ed. Vozes, Petrpolis, 1977, p.28. 16 FOUCAULT, Michel. op.cit. p.125.

  • 23

    penetrao do capital no campo e, concomitantemente, a expulso da classe camponesa, em especial atravs da Bill for inclosures of commons, as leis para o cercamento das terras comunais, contribuiu para levar ao mercado de trabalho uma oferta de mo-de-obra sem precedentes.17

    O crescimento populacional aliado oferta de emprego nas regies

    urbanas, que agora se acercavam de fbricas, fez crescer o interesse de famlias

    economicamente desfavorecidas por essas reas. O xodo rural e a busca do

    emprego nas cidades gerou um grande volume de pessoas desocupadas. Na

    viso do empresrio, uma grande massa, que poderia ser utilizada na produo

    industrial, desde que estivesse preparada e docilizada para isso, estava se

    perdendo. Surgiram, da, as chamadas casas de correo ou casas de trabalho,

    onde o trabalho e a disciplina em conjunto com o isolamento, poderiam render-lhe

    uma opo de vida.

    As condies de vida e trabalho nas casas eram tais que ningum, a no ser premido por uma extrema necessidade, aceitaria internar-se nela. Numa casa desse tipo ningum entra voluntariamente; o trabalho, o isolamento e a disciplina atemorizaro o indolente e o malvado, e nada, seno uma extrema necessidade induzir algum a aceitar aqueles confortos que devero ser obtidos ao preo da renncia a prpria liberdade de contratar-se por si mesmo, e do sacrifcio da gratificao e das prticas habituais.18

    Como se v, a soluo dada pela burguesia industrial para a comunidade

    que se apinhava nos centros urbanos procura de trabalho foi a criao de casas

    de trabalho ou casas de correo. Em uma ou outra, a finalidade, ainda no

    declarada, mas latente, era a de preparar a mo de obra para servir fbrica e

    produo, evitando-se o acmulo da pobreza e de populao desocupada. Assim,

    ao sair das casas de correo, o indivduo ingressa na fbrica com uma certa

    adequao ao modelo produtivo da indstria e terminava por enxergar nessa

    17 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e Fbrica. as origens do sistema penitencirio . Sculo XVI a XIX. Trad. Srgio Lamaro. Rio de Janeiro, Instituto carioca de criminologia. Ed. Revan. 2006. p. 66. 18 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Op Cit. p.67.

  • 24

    ocupao uma condio de manter a prpria vida. Nesse aspecto, a casa de

    correo exercia uma espcie de funo muito proveitosa para o industrial, pois

    ela provia a fbrica com mo de obra treinada, docilizada e de custo baixssimo.

    Como bem observado por Melossi e Pavarini o objetivo da casa de trabalho era,

    uma vez mais, forar o pobre a se oferecer a qualquer um que se dispusesse a

    dar-lhe trabalho, nas condies que fossem.19

    Importante observar que os regulamentos internos das casas de trabalho

    so muito semelhantes aos de uma priso, pois alm de impor um modo

    padronizado de vida, tambm fora uma srie de limitaes liberdade pessoal,

    que tipicamente uma regra do crcere. Ademais, os trabalhos desenvolvidos

    dentro das casas de correo so, em sua maioria, inteis, do ponto de vista

    produtivo e utilitarista, pois servem mais imposio de disciplina e domesticao

    do que produo propriamente industrial.

    Talvez da que a captao do empregado pelo industrial sempre estivesse

    revestida de uma relao de dependncia, no s financeira e econmica, mas de

    sujeio. O empregador, dono da fbrica, buscava nas casas de trabalho o mais

    disciplinado e comportado dos internos, pois este lhe prestaria o melhor trabalho

    ao menor custo. E esta regra de captao de mo de obra, ainda que no

    declarada, sempre vigorou com toda cogncia, pois decorre da lgica capitalista

    que, poca, encontrava seu momento de glria e de pujana, ainda que s

    custas do momento mais obscuro da histria do proletariado. Maurice Dobb, por

    exemplo, no considera que as relaes de dependncia estejam baseadas

    apenas no modo de produo. Para o autor:

    As relaes de dependncia econmica entre os produtores individuais ou entre produtor e mercador no eram diretamente impostas pelas necessidades do prprio ato de produo, mas por circunstncias externas a ele: eram relaes de compra e venda do produto acabado ou semi-acabado, ou ento as relaes de dvida relativas ao fornecimento da matrias-primas ou ferramentas da profisso.20

    19 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Op Cit. p.77. 20 DOBB, Maurice. A evoluo do Capitalismo. Rio de Janeiro: JC, 1987. p 262.

  • 25

    Como bem observado por Gerge Rusche e Otto Kirchheimer :

    A capacidade de trabalho dos internos era utilizada de duas maneiras: as prprias entidades administravam as instituies ou reclusos eram entregues a um empregador privado. Ocasionalmente, toda a instituio era entregue a um contratante.21

    Nota-se, portanto, que a urbanizao promovida pela revoluo industrial trouxe,

    no seu bojo, conseqncias importantssimas para a nova configurao social. As

    mais conhecidas so, sem dvida, aquelas relacionados formao de uma

    massa proletariada e pobre, a ser dirigida e domesticada (para utilizar a expresso

    de Pavarini para servir fbrica e indstria. Nesse aspecto, precisas as palavras

    de Paulo Csar Busato, para quem:

    Parece que o processo das Revolues Burguesa e Industrial promoveu uma passagem da sociedade do domnio do prncipe para o domnio do capital, com a preservao de uma imensa massa de subjugados sociais. As barreiras jurdicas de proteo do homem contra o Estado parecem ter sido estabelecidas, tanto no mbito do civil law quanto do common law, com o evidente propsito de estabelecer e perpetuar no poder determinado grupo social.22

    Obviamente, concomitante a este cenrio de desenvolvimento urbano, o

    pauperismo e a criminalidade tambm ascendem em progresso geomtrica,

    dando legitimidade social s casas de correo e, de certa forma, realando, no

    inconsciente coletivo, a importncia de se ter uma vida disciplinada e regrada

    como forma de se manter afastado dessa marginalidade.

    21 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER Otto. Punio e estrutura social . Trad. Gislene Neder. Freitas bastos Editora, 1999, p. 62. 22 BUSATO, Paulo Csar. O direito penal e os paradigmas da revoluo tecnolgica. Disponvel em: http://www2.mp.ma.gov.br/ampem/O_Direito_penal_e_os_paradigmas_da_revolu__o_t_cnol_gica.pdf. Acessado em 20-12-2009.

  • 26

    2.1. A PESSOA JURDICA COMO INSTRUMENTO DE PRODUO E ACMULO DE RIQUEZA

    A idia de sociedade como unio de indivduos objetivando uma finalidade

    especfica a ser atingida em conjunto, remonta aos primrdios da existncia do

    homem sobre a terra, quando o instinto associativo proporcionava os primeiros

    ncleos familiares. Esses grupos familiares formaram-se para, associados, melhor

    administrar a sobrevivncia, a manuteno e a conservao dos alimentos, bem

    como realizar a diviso de tarefas, tpica na sociedade familiar de subsistncia.

    Entretanto, num perodo muito posterior, com o surgir das propriedades

    privadas, individuais e com o desenvolvimento das cidades e do comrcio, que

    surgem as primeiras corporaes de ofcio, j na alta idade mdia europia.

    Formavam, essas agremiaes, verdadeiras representaes de interesses

    burgueses, com finalidades lucrativas. Como observado por Alfredo de Assis

    Gonalves Neto:

    Essas sociedades de fins interesseiros (econmicos), segundo doutrina dominante, surgiram a partir da necessidade de os herdeiros prosseguirem no desenvolvimento das atividades exercidas pelo pater familiae. Formaram-se, inicialmente, com os membros de uma mesma famlia, que a geriram em comum, sentados mesma mesa e comendo do mesmo po (cum panis); posteriormente essas sociedades acolheram terceiros, estranhos aos membros da famlia, surgindo, a, a necessidade de unir por contrato aqueles a quem os laos de sangue j no uniam mais.23

    Como essas associaes passaram a representar os interesses das

    pessoas envolvidas e, de certa forma, da classe social burguesa, os contratos

    sociais passaram a ser registrados nas corporaes de ofcio para tornarem a

    existncia da sociedade de conhecimento pblico. Ocorre que o registro dessas

    agremiaes tinha que levar o nome de algum, que representasse a sociedade.

    23 GONALVES NETO, Alfredo de Assis. Lies de direito societrio . 2. ed. Ed. Juarez de Oliveira. So Paulo: 2004, p. 04.

  • 27

    Da comeam a surgir as pessoas jurdicas ditas em nome coletivo, para

    distinguir a pessoas fsicas integrantes da aglomerao, dos negcios por ela

    celebrados.

    Dessa forma, constata-se que a pessoa jurdica surge para suprir a prpria

    deficincia humana, pois, freqentemente, o homem, isoladamente, no logra

    reunir a fora necessria para uma empresa de maior vulto, de grande iniciativa ou

    representao. Com efeito, procura, ento, atravs da unio com outros homens,

    seus pares, constituir um organismo mais representativo, capaz de alcanar a

    finalidade inicialmente almejada. Na maior parte dos casos, essa reunio de

    pessoas tem finalidade lucrativa, financeira, mas nem sempre. Pode haver a

    reunio de pessoas, sob a pessoa jurdica, para cultuar determinada santidade,

    por exemplo, ou buscar uma finalidade que no seja material, mas filantrpica.

    Obviamente, a formao desses organismos representativos, seu contexto

    histrico e sua complexidade jurdica, chamou ateno dos juristas, que passaram

    a estud-los e a buscar compreender sua natureza jurdica. Surgem, ento, as

    classificaes acerca da pessoa jurdica. Merecem destaque, dentre as inmeras

    teorias surgidas, as seguintes:

    a) Teoria da fico legal;

    b) Teoria da realidade objetiva ou organicista;

    c) Teoria da realidade tcnica;

    d) Teoria institucionalista;

    Para a teoria da fico legal, a personalidade jurdica do ente coletivo no

    passa de uma fico legal, uma criao legislativa que no existe no mundo

    emprico. O principal defensor dessa teoria foi Friedrich Carl von Savigny, para

    quem a existncia da pessoa jurdica ocorre apenas na esfera do dever-ser, no

    ocorrendo na realidade ftica. Menciona Silvio Rodrigues, que a teoria da fico

    legal, que desfrutou largo fastgio no sculo XIX, e encontra seu principal defensor

  • 28

    em Savigny, sustentava que a personalidade jurdica decorria de uma fico da

    lei.24

    Noutro vrtice, encontramos a chamada teoria da realidade objetiva.

    Contraposta teoria de Savigny, essa corrente propugna que a pessoa jurdica,

    em verdade, existe objetivamente e de modo independente de seus integrantes,

    pois, a sua totalidade se apresenta sociedade de modo que lhe perceptvel

    uma vida prpria e uma personalidade que a distingue e a distancia do carter

    individualizado de quem a integra.

    Tambm de origem germnica, essa teoria foi desenvolvida, segundo

    noticia Vicente Ro, por Otto Girke, para quem a vontade, pblica ou privada,

    capaz de dar vida a um organismo que passa a ter existncia prpria, distinta da

    de seus membros, capaz de tornar-se sujeito de direito, real e verdadeiro.25 A

    concepo central dessa teoria, a de que a pessoa jurdica tem uma existncia

    prpria, que vai alm do individualismo de seus scios, que se projeta socialmente

    com uma caracterstica real e existente, que lhe confere uma autonomia.

    H, ainda, a teoria da pessoa jurdica como realidade tcnica. Para essa

    corrente, a pessoa jurdica surge de uma necessidade humana de maior

    representatividade. Diante dessa necessidade, o homem, ento, para poder

    alcanar os seus objetivos, une-se aos demais que possuem propsitos

    semelhantes. Ou seja, a pessoa jurdica existe, unicamente, para satisfazer uma

    necessidade humana e o homem a criou, juridicamente, para poder implementar

    seus objetivos (realidade tcnica).

    Segundo notcia de Vicente Ro, os principais representantes dessa

    corrente foram Planiol, Ripert e Savatier, para quem a pessoa jurdica

    tecnicamente til aos homens, no seu interesse, criar seres nos quais faro

    repousar direitos que, a final se destinam a beneficiar os prprios homens.26

    Portanto, essa concepo da formao da pessoa jurdica parte, nitidamente, de

    24 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Parte geral, vol. I, p. 87, 32 ed. Ed. Saraiva. So Paulo, 2003, p.87. 25 RO, Vicente. O direito e a vida dos direitos . Vol. 1. 3.ed. Ed. Max Limonad. So Paulo: 1981, p. 88. 26 RO, Vicente. O direito e a vida dos direitos . Vol. 1. 3.ed. Ed. Max Limonad. So Paulo: 1981, p. 89.

  • 29

    um paradigma pragmtico, segundo o qual a pessoa jurdica s existe para

    permitir ao homem lograr seus objetivos. Para isso, tecnicamente a pessoa

    jurdica precisa de estrutura, organizao e legitimidade formal, o que motiva,

    ento, o seu reconhecimento pelo homem no mundo jurdico.

    Por fim, merece destaque tambm a chamada teoria institucionalista, cuja

    autoria atribuda a Hauriou. Segundo essa concepo, a pessoa jurdica uma

    instituio preexistente ao seu reconhecimento e formalizao jurdica. Nessa

    concepo, a pessoa jurdica, composta da unio de pessoas com o mesmo

    propsito, estrutura-se de maneira hierrquica e orgnica, de modo que, quando

    essa organizao atinge o amadurecimento de suas articulaes, e passa a atuar

    de maneira autnoma, torna-se, automaticamente uma pessoa jurdica. Conforme

    comentrio de Silvio Rodrigues a instituio tem uma vida interior representada

    pela atividade de seus membros, que se reflete numa posio hierrquica

    estabelecida entre os rgos diretores e os demais componentes, fazendo, assim,

    com que aparea uma estrutura orgnica.27

    Em concluso, pode-se, verificar que, funcionando como centro de todo o

    processo produtivo que se desenvolveu durante o sculo XVII e XVIII, a pessoa

    jurdica representa o smbolo da ascenso da burguesia classe dominante, pois

    o meio atravs do qual passou a ocorrer a reunio de scios capitalistas,

    geralmente integrantes da burguesia mercantil, trabalhando sob o paradigma de

    obteno de lucro como finalidade precpua.

    Desta forma, quando, posteriormente, a criminologia crtica passou a

    analisar as reais intenes do agrupamento de capitalistas sob a forma de pessoa

    jurdica, com os vrios discursos sobre a sua natureza jurdica, mas sempre com a

    inexorvel inteno de estarem reunidos para obteno de lucro e explorao de

    mo de obra, houve a formao de uma corrente crtica, que visualiza, na pessoa

    27 RODRIGUES, Silvio. Direito civil . Parte geral, vol. I, p. 87, 32 ed. Ed. Saraiva. So Paulo, 2003, p.89.

  • 30

    jurdica, um mecanismo de proteo dos scios contra os abusos do ente

    coletivo.28

    Em um primeiro plano, os abusos ocorriam em relao explorao da

    mo de obra, com imposio de regimes de trabalho extenuantes e a mxima

    explorao do homem servil. Esse aspecto da explorao da pessoa jurdica est

    bem captado pela obra de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, punio e estrutura

    social.

    A problemtica atual est na utilizao da pessoa jurdica como forma de

    proteo dos scios para a prtica de explorao indevida do meio ambiente, j

    que a explorao industrial sempre a maior forma de desgaste causado s

    reservas naturais.

    E esse complexo problema tem incio a partir de uma segunda fase da

    revoluo industrial, em que se desenvolveram outros tipos de indstrias. O ponto

    central passa a ser a indstria pesada, a produo de ao, ferro, a indstria

    qumica e o transporte tambm tiveram grandes avanos. O desenvolvimento do

    transporte ocorreu como uma revoluo parte, as ferrovias representaram

    grande investimento por parte dos pases em fase de industrializao. O barco a

    vapor e a navegao martima ganharam grande destaque. O desenvolvimento

    dos meios de transporte foi fundamental para o desenvolvimento e crescimento

    das indstrias. Com a criao das locomotivas a vapor a circulao e dos navios,

    aumentou significativamente a facilidade de venda das mercadorias.

    Com essa viabilidade do transporte as indstrias comeam a realizar

    produo em srie. Com isso foi necessrio mais mo-de-obra e mais matria

    prima, necessitando-se, por conseguinte da criao de indstrias pesadas, que

    trabalhariam na extrao de materiais da natureza como o ao e o ferro.

    Os grandes empresrios estavam estabelecendo as formas mais viveis de

    adquirir lucro, buscavam sempre produzir mais com menos gastos. No entanto,

    para que isso fosse possvel uma das medidas que tomaram foi aumentar seus

    28 Nesse sentido: MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Crcere e Fbrica . As origens do sistema penitencirio. Sculo XVI a XIX. Trad. Srgio Lamaro. Rio de Janeiro, Instituto carioca de criminologia. Ed. Revan. 2006.

  • 31

    lucros atravs de seus operrios. Muitos operrios chegaram a ter jornadas de

    trabalho de 15 horas dirias, sem quaisquer direitos, sendo comum trabalharem

    todos da famlia com essa jornada excessiva, inclusive crianas.

    Revoltados com as condies de trabalho desumanas, unidas ao fato de

    que as empresas eram locais insalubres, os trabalhadores comearam a se

    revoltar. As primeiras manifestaes dessa revolta ensejaram a unio dos

    operrios, que em seguida criaram meios de se manifestar de forma organizada,

    surgindo os sindicatos.

    Essa pequena contextualizao serve apenas para ilustrar que a pessoa

    jurdica prestou-se, tambm, finalidade de afastar o scio da responsabilidade

    em relao ao seu empregado e s condutas que seriam tomadas, agora, em

    nome do ente coletivo, blindando, de certa forma, a conduta pessoal de seus

    dirigentes.

    2.1.1. A Formao do Consumismo e seus Reflexos Sc io-Ambientais

    Sem dvida, a indstria e a empresa so responsveis pela

    possibilidade do consumo. De certa forma, o consumo um fenmeno industrial e

    empresarial. E sempre que h produo de bens de consumo, h alterao do

    meio ambiente, pois o objeto do consumo fabricado a partir da explorao do

    meio ambiente. Isso se aplica a, praticamente, todos os bens de consumo

    existentes. Desde roupas, que dependem das plantaes e da realizao da

    monocultura sobre o solo, at a construo de casas e moradias, pois essas

    dependem da retirada de matrias-prima como areia, cimento, tijolos, diretamente

    do meio ambiente.

    Entretanto, o consumo deixou de ser apenas do objeto consumido, para

    se tornar quase uma enfermidade social. Fenmeno complexo e que tem sua

    maior expanso na ps-modernidade, o consumo do smbolo, do status, no lugar

    do objeto em si, acarreta uma alterao nos padres do mercado e da produo

    fabril, modificando, por conseguinte, o meio produtivo e o impacto no ambiente.

  • 32

    Embora o termo ps-modernidade tenha sido utilizado de forma

    lacnica, ora para significar um momento posterior modernidade (post),

    que seria o momento atual; ora para referir-se modernidade como falecida

    e superada (de post-mortem), o primeiro filsofo a utilizar a expresso ps-

    modernidade, foi o francs Jean-Franois Lytoard , com a publicao de sua obra

    intitulada "A Condio Ps-Moderna" (1979).29 Em seu texto, Lyotard formula,

    com muita propriedade, os problemas que o conhecimento cientfico experimenta

    na sociedade atual. Dentre os seus principais problemas, est, justamente, a crise

    relativa a sua legitimidade de dizer o que a verdade. No texto, verifica-se que a

    origem das discusses est alocada, exatamente, na crise cultural e de

    desencanto experimentada pela sociedade aps a segunda guerra mundial.

    A decepo da sociedade e a desiluso instalam-se na cultura ocidental

    e comprometem conceitos at ento enunciados como seguros pelo pensamento

    moderno e racionalista, como o conceito de tica, verdade, progresso.

    Obviamente, essa desiluso que acompanha a sociedade ps-guerra tem sua

    razo de ser e reflete-se nos mais diversos ramos da produo humana, tais com

    a literatura, a arte e a filosofia.

    Os objetivos da modernidade, a que Habermas chamou de projeto da

    modernidade,30 no foram concretizados conforme prometido. Sob uma tica,

    correto constatar que o domnio da cincia e da tcnica transformou, de fato, a

    realidade social. Sobretudo aps a industrializao, fenmeno que alterou

    radicalmente o modo de produo, que deixou de ser manufatureira para alcanar

    a escala de produo em srie e massa, como ocorreu, por exemplo, com a

    substituio dos teares manuais para os teares mecnicos, nas indstrias

    inglesas do sculo XIX.

    Nada obstante, apesar de haver significativa alterao no modo de vida

    dos cidados, o projeto iluminista prometia mais. As descobertas do homem

    29 LYOTARD, Jean-Franois. O ps-moderno . RJ. Olympio Editora. 1986. 30 HABERMAS, Jrgen. Modernidade: um projeto inacabado. Companhia das letras. Brasiliense, SP 1992, p.229.

  • 33

    moderno31, a aplicao irrefreada da cincia e da tecnologia projetavam a

    formao de uma sociedade estvel, com igualdade de condies, sem excluso

    social e sem misria. O domnio cientfico e as transformaes imediatas pelas

    descobertas mais teis (como a energia eltrica que transformou sobremaneira a

    vida cotidiana) acenavam para um homem racional-moderno que lograria, em

    breve, submeter a natureza sua tcnica, de modo a afastar a sociedade,

    inclusive, dos infortnios provocados pela natureza at ento indomada (doenas,

    terremotos, enchentes, entre outros).

    Esses propsitos da modernidade, encampados pela razo iluminista,

    conferiram uma hipercrena nos conhecimentos cientficos, de modo que o nico

    conceito de verdade passou a ser aquele cientificamente comprovvel. A cincia

    domina a eletricidade, constri ferrovias, transporta os bens atravs de mquinas

    a vapor e coze em teares mecnicos. A cincia, para o homem moderno,

    dominar a natureza. A cincia a chave do conhecimento. O conhecimento

    cientfico a nica fonte da verdade, ou, pelo menos, a nica fonte segura, pois

    apresenta leis universais, como a gravidade, que pode ser comprovada em

    qualquer lugar do planeta.

    Contudo, o sonho da modernidade de construir a sociedade estvel,

    sem misria, como igualdade de oportunidade, segura, distante das intempries

    da natureza hostil, no tardou em frustrar os seus expectadores onricos. E os

    custos dessa frustrao so chagas profundas, at hoje no cicatrizadas, que

    explicam boa parte das incertezas sociais e culturais hodiernas. A segunda guerra

    mundial demonstrou ao planeta que a mesma forma de conhecimento que domina

    a eletricidade para armazenar os alimentos e promover a iluminao, tambm

    produz o artefato atmico lanado sobre Hiroshima. A mesma tecnologia que isola

    a penicilina para curar a tuberculose, desenvolve-se nos pores de Auschwitz,

    submetendo as cobaias humanas condies impensveis, mas legitimados

    pelo desenvolvimento da pesquisa.

    31 Dentre outras: domnio da energia eltrica, da iluminao, o armazenamento refrigerado de alimentos, construo de ferrovias, mquinas vapor para transporte, sistema de produo industrial em srie, xodo para os centros urbanos em busca de emprego e melhores condies, avanos na tecnologia biomdica, cura de inmeras enfermidades, isolamento da penicilina, etc.

  • 34

    Diante destas constataes, Srgio Paulo Rouanet no ensaio sobre As

    origens do Iluminismo, precisamente observa que:

    aps da experincia de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz, depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaado pela aniquilao atmica, pela ressurreio dos velhos fanatismos polticos e religiosos e pela degradao dos ecossistemas, o homem contemporneo est cansado da modernidade. Todos esses males so atribudos ao mundo moderno. Essa atitude de rejeio se traduz na convico de que estamos transitando para um novo paradigma. O desejo de ruptura leva convico de que essa ruptura j ocorreu, ou est em vias de ocorrer (...). O ps-moderno muito mais a fadiga crepuscular de uma poca que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de jbilo de amanhs que despontam. conscincia ps-moderna no corresponde uma realidade ps-moderna. Nesse sentido, ela um simples mal-estar da modernidade, um sonho da modernidade. literalmente, falsa conscincia, porque conscincia de uma ruptura que no houve, ao mesmo tempo, tambm conscincia verdadeira, porque alude, de algum modo, s deformaes da modernidade. 32

    Assim, aps a realidade traumtica da segunda guerra, a cincia

    passou a ser objeto de profundas interrogaes e desconfiana. o incio da

    desiluso e do desencanto tardio. A tecnologia no to benigna quanto se

    pensava. O saldo de duas guerras mundiais, desestruturao total das formas de

    Estado, produo de armas capazes de extinguir a raa humana, corrida

    armamentista, comeam a desvelar a face obscura do emprego da tcnica e da

    proposta iluminista de uma modernidade racional cientfica. A explorao

    irracional do petrleo como combustvel bsico, aliados especulao financeira

    do produto e corrida para sua explorao, colocaram o planeta em uma crise

    ambiental, provocada pelo homem racional cientfico, sem precedentes na histria

    da humanidade.

    32 ROUANET, Srgio Paulo. As origens do iluminismo . p.105.

  • 35

    Ademais, como bem colocado por Giddens33, h imensa dvida sobre

    os benefcios do emprego da cincia, uma vez que a humanidade est cada vez

    mais dependente dessa mesma tecnologia, como ocorre com a utilizao de

    automveis, transportes terrestres e areos, e computadores sem os quais,

    tornou-se impossvel viver.

    Dessa forma, na medida em que as expectativas frustraram-se em

    nosso projeto de modernidade, a sociedade perdeu seu referencial de verdade,

    consolidando-se um imenso bloco de relativismo e incerteza. A perda dos

    horizontes, sensao de caos, incerteza e relatividade de todos os conceitos

    revelam a face, at ento oculta, da modernidade racional.

    Esta enorme decepo tambm possui conseqncias necessrias e

    nsitas. A desconfiana e a descrena. A desconfiana colocada sobre qualquer

    proposta de explicao racional ou que pretenda impor um padro de como agir.

    A descrena, segundo BAUMAN, representa a condio ps-moderna que nos faz

    encarar o demnio da improcedncia da certeza, a conscincia ps-moderna a

    certeza da incerteza. Nas palavras de Bauman:

    a condio humana a de uma vida em risco, uma vida em que provavelmente nenhum passo ser inequivocamente um passo no rumo certo, de modo que a incerteza sobre a correo ou propriedade de nossos empreendimentos jamais eliminada, mesmo em retrospecto.34

    Deste modo, na exata medida em que as expectativas criadas pelo

    projeto iluminista de modernidade foram frustradas, surgiram correntezas de

    desiluso, relativismo e niilismo, fludas na conscincia coletiva, lquidas na

    sociedade, mas inegveis e irresistveis (no sentido de que no se pode opor

    resistncia). O desencanto e a desiluso representam bem a sociedade hodierna,

    que perdeu horizontes e referencias e que a tudo relativiza. A sociedade, ento,

    perde a confiana na objetividade da razo.

    33 GIDDENS A. As conseqncias da modernidade . Livro traduzido e publicado pela Unesp. 1991. 34 BAUMAN, Zygmunt. Em busca da poltica. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, p.70.

  • 36

    Essa colocao de dvida sobre o conhecimento cientfico e racional,

    inevitavelmente, culmina por produzir uma coletiva sensao de liberdade e

    permissividade. A ansiedade ps-moderna pela total liberdade reflete a profunda

    ausncia de um caminho seguro, de uma resposta inquestionvel sobre o que a

    verdade, sobre como a sociedade deve progredir, sobre qual o papel do

    conhecimento cientfico e se ele , de fato uma forma de conhecimento ou apenas

    mais uma sofisticada verso dos fatos, tal qual a religio e a mitologia.

    Noutro aspecto, ao mesmo tempo em que se agiganta a sensao de

    liberdade e permissividade (se Deus est morto, tudo permitido, como afirmou

    Dostoievski), as infinitas possibilidades de escolha de conduta de vida colocam o

    homem-indivduo diante da difcil necessidade de escolha do caminho. A cincia

    j no pode mais trazer conforto em nossas vidas no sentido de que a iremos

    ordenar e bem construir. Entretanto, o poder tudo to assustador ao homem

    quanto o no poder nada. o mal-estar da ps-modernidade de Bauman.

    Muito reveladora, por outro lado, a constatao de Giddens, para

    quem no h nada de misterioso no surgimento do fundamentalismo no mundo

    moderno tardio.35 O fundamentalismo a substituio da necessidade de

    escolha, que, como afirmado, uma experincia extremamente angustiante e de

    dvida. O fundamentalismo livra o homem da aterradora necessidade de escolha

    individual de como viver, como decidir.

    Outro reflexo da ausncia de uma resposta segura para como viver

    encontra-se no consumo. A mercadoria no mais adquirida para satisfao de

    uma necessidade individual, mas sim, pelo signo e pelo estilo de vida que

    representa. No h mais a produo de mercadorias para satisfao de uma

    demanda, mas, sim, a produo de consumidores, pela mdia, que projetem no

    bem material todo seu sonho de esttica, estilo de vida, classe social, e busca

    imaginria do prazer ligado a todas essas esferas. O consumo, ento, passou a

    ser a o meio atravs do qual se opera a colonizao da classe mais favorecida

    sobre a menos favorecida. O bem material representa a esttica, o estilo de vida e

    35 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade ps-tradicional . In: BECK, GIDDENS & LASK. Modernizao reflexiva. SP. Unesp. p.109.

  • 37

    o prazer da outra classe. a formao da sociedade de consumo irracional, mas

    instintivamente hedonista.

    Todo esse contexto de sociedade consumerista, sem referencial e

    fragmentria, onde o tempo passou a ter como critrio a imediatidade, e no o

    seu decurso, obviamente, gerou um modelo de sociedade que, aliada ao sistema

    capitalista, inflacionou os meio de produo de bens de consumo e os reflexos no

    meio ambiente so inegveis. E, com os impactos e alteraes do meio ambiente,

    surgiram, a partir da dcada de 70, movimentos e correntes de proteo ao meio

    ambiente, como o famoso grupo Greenpeace, que, dentre outras doutrinas,

    apregoa o uso racional da energia nuclear e dos alimentos transgnicos.

    Mas esses movimentos, para alm de se ocuparem com a preservao

    ambiental e constatarem o desgaste da superfcie terrestre, simbolizam, de certa

    forma, uma posio que o meio ambiente logrou alcanar somente aps muito ser

    agredido a de bem jurdico e sujeito de proteo legislativa. Movimentos de

    proteo ambiental surgem ao redor do planeta principalmente aps a segunda

    guerra mundial e os acidentes nucleares como o de Chernobil, que ocorreu em

    1986, na Ucrnia.

  • 38

    CAPTULO 2

    O RECONHECIMENTO DO MEIO AMBIENTE COMO BEM JURDICO PENAL

    1. A EVOLUO HISTRICA DO BEM JURDICO NA DOGMTIC A PENAL

    O meio ambiente, como bem jurdico, demorou a ser sacralizado nos

    textos constitucionais. Essa evoluo se deve, inclusive, propria evoluo

    histrica do conceito e da importncia do conceito de bem jurdico para a

    dogmtica penal. Cumpre, dessa forma, traar ainda que de forma parcial, o

    panorama da evoluo do conceito de bem jurdico para o direito penal, a partir do

    momento em que o meio ambiente passou a manifestar importncia social de

    tutela jurdica mais severa, ante o sensvel desgaste que suportou.

    A partir do sculo XX, sob influncia da filosofia neokantiana no Direito

    Penal, em contraposio pretenso cientificista-positivista do Direito Penal,36 o

    bem jurdico passou a ser tido como um valor cultural, relativo a um campo

    valorativo. Essa viso tem como um dos seus maiores expoentes Richard Honig,

    para quem os bens jurdicos so capazes de resumir compreensivamente o

    contedo dos tipos legais e exprimir o sentido e o fim dos preceitos penais

    singulares.37 Como conseqncia desse pensamento, a desmaterializao do

    bem jurdico acabou por vincul-lo idia de ratio legis da norma jurdica,

    confundindo o bem jurdico com o fim da norma incriminadora,38 com o valor

    objetivo da norma jurdica, transformando-o em mero mtodo interpretativo,

    perdendo sua funo crtica e restritiva do poder de punir. aqui, o bem jurdico,

    um mero exerccio retrico ou marco de referncia classificatrio.

    36 FERNANDES, Gonzalo D. Bien jurdico y sistema del delito .

    Montevideo/Buenos Aires : BdeF, 2004. p. 12 e ss. 37 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de.Temas Bsicos da doutrina penal . Coimbra :

    Coimbra, 2001. p.33; p. 44 e 45. 38 LUISI, Luiz. Direito Penal. Bens constitucionais e criminalizao .Disponvel na Internet

  • 39

    Na Escola de Kiel, no perodo do regime nazista do terceiro Reich, o bem

    jurdico foi negado, j que o crime significava uma contrariedade pessoal a um

    dever e uma hostilidade espiritual do autor contra a comunidade; o bem jurdico

    era considerado como o veneno da ideologia liberal.39 O critrio material do

    injusto correspondia idia de so sentimento do povo.

    Para Hans Welzel, idealizador do finalismo, o bem jurdico todo estado

    social desejvel que o direito quer resguardar de leses.40 E embora este

    conceito seja vago, sua viso de bem jurdico pretende ser aproximada ao objeto

    material garantindo-lhe um substrato concreto. Prova isso, a afirmao de Hans

    Welzel de que, por vezes, o bem jurdico coincide com o objeto material, como no

    exemplo do crime de homicdio, em que tanto a vida ser objeto material, quanto

    bem jurdico.41

    Para Hans-Heinrich Jescheck, o bem jurdico pode ser percebido em duas

    acepes distintas. Uma individual; outra coletiva, difusa. Segundo o autor:

    Existem bens jurdicos da pessoa individual (bens jurdicos individuais, como a vida a liberdade e a propriedade) entre os que formam um subgrupo de bens jurdicos personalssimos (como a integridade corporal e a honra), e bens jurdicos da coletividade (bens jurdicos universais, como por exemplo a proteo dos segredos de Estado, a segurana do trafego virio e a autenticidade da moeda).42

    A dogmtica funcionalista, por seu turno, tambm interpreta o bem

    jurdico. Entretanto, como no h uma unicidade de funcionalismo, mas, ao revs,

    h uma pluralidade de vises funcionalistas, pode-se dividir a viso funcionalista

    em trs grandes grupos: estrutural, que se situa numa esteira giratria, entre as

    39 ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e acordo em direito penal . Coimbra : Coimbra, 1991. p. 69, nota n. 86. (Referindo-se diretamente Dahm e Schaffstein). 40 WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman . 4 Ed. Editorial Jurdica del Chile : Santiago, 1993.p. 5. todo estado social deseable que el Derecho quiere resguardar de lesiones 41 Idem. 42 JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal : Parte General. 4. ed. Granada: Editorial Comares, 1993. p. 234. Hay bienes jurdicos de la persona individual (bienes jurdicos individuales) (v.g. la vida, la libertad y la propiedad), entre los que forman un subgrupo los bienes jurdicos personalssimos (v.g. la integridad corporal y el honor), y bienes jurdicos de la colectividad (bienes jurdicos universales) (v.g. la protecin de los secretos de Estado, la seguridad del trfico viario y la autenticidad del dinero)

  • 40

    exigncias de uma realidade social de um lado, e as idias funcionais, de outro43;

    funcional prprio de Gnther Jakobs e funcional imprprio, de Claus Roxin.44

    Importante mencionar que para todos estes posicionamentos (estrutural,

    funcional prprio e funcional imprprio), o que posto em questo, em maior ou

    menor grau, no trato da noo de bem jurdico, a estabilidade da norma penal

    como instrumento adequado manuteno do sistema social. Ou seja, a norma

    penal e o sistema jurdico estvel, ocupam o centro gravitacional do interesse

    juridicamente tutelado (a norma e a estabilidade jurdica so o prprio bem jurdico

    a ser protegido).

    A primeira concepo funcionalista, conhecida como estrutural, interpreta

    o bem jurdico tomando por base que a norma penal tem uma finalidade

    especfica, a de controle social, onde as perturbaes (input) do sistema geram a

    necessidade de uma interveno estatal (output).45 Segundo essa viso, o bem

    jurdico penalmente tutelado a estabilidade normativa, de modo que qualquer

    violao ou risco de violao a essa segurana, legitima a interveno do direito

    penal.

    No preciso ser muito ntimo da dogmtica funcionalista para verificar

    que essa concepo carrega uma forte tonalidade do neokantismo valorativo, pois

    se apega, quase exclusivamente, ao universo normativo, deixando ao largo a

    concepo ntica e pragmtica.

    Por outro lado, a concepo funcionalista prpria trabalha com o

    pressuposto de que, norma penal, s interessa assegurar que uma conduta no

    decepcione expectativas de seguridade e confiana nas relaes entre as

    pessoas. Gnther Jakobs, principal arquiteto dessa viso, pretende basear sua

    43 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 195; MUOZ CONDE, Francisco. ARN, Mercedes Garca. op. cit. p. 63 e ss: La funcin de motivacin que cumple la norma penal es primariamnte social, general , es decir, incide en la comunidad; auque en su ltima fase sea individual, es decir, incida sobre el individuo concreto. 44 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3. ed. Ed. Del Rey. Belo Horizonte: 2003, p. 195. 45 Idem.

  • 41

    teoria do delito na filosofia sistmica de Niklas Luhmann.46 O Autor no nega

    totalmente a importncia do bem jurdico e atenta para a insuficincia da funo

    jurdico-penal de sua proteo, pois a sociedade no nenhuma instncia para

    conservao de maximizao de bens, porm o identifica com a validade ftica

    das normas, das quais se possa esperar a proteo de bens, das funes e da

    paz jurdica.47

    A terceira concepo funcionalista, conhecida como funcionalismo

    imprprio, fundamenta o bem jurdico a partir de uma base poltico-criminal,

    alicerada nos preceitos constitucionais, sem deixar de identificar sua funo na

    manuteno do sistema normativo.

    Os bens jurdicos so circunstancias dadas ou finalidades que so teis para o individuo e seu livre desenvolvimento no marco de um sistema social global estruturado sobre a base dessa concepo dos fins para o funcionamento do prprio sistema.48

    Pode-se concluir que, entre a viso funcionalista e a orientao finalista

    welzeliana, esta ltima, embora com base ontologista, o que ao menos em tese

    garantiria uma viso aproximada e realista entre resultado jurdico e resultado

    fsico, apresenta uma noo de um bem jurdico com maior concreo. Tem sua

    tnica marcada pela excessiva abstrao do desvalor de ao na proteo e

    reforo dos valores tico-sociais. Ou seja, se por um lado temos um bem jurdico

    46 JAKOBS, Gnther. Derecho penal : parte general fundamentos y teora de la imputacin. Traduccin J. Cuello Contreras y J. L. S. Gonzlez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1995. p. 65. 47 TAVARES, Juarez. op. cit. p. 196; JAKOBS, Gnther. O que protege o Direito Penal : os bens jurdicos ou a vigncia da norma? In CALLEGARI, Andr Lus; GIACOMOLLI, Nereu Jos (Coords). Direito Penal e Funcionalismo. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005. p. 31-52. 48 ROXIN, Claus. Derecho penal : Parte General, Tomo I. Fudamentos. La Estructura de la Teoria del Delito. Traduccin de Diego-M. Luzn Pea; Miguel Daz y Garca Conlledo; y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2003. p 56. Trad: Los bienes jurdicos son circunstancias dadas o finalidades que son tiles para el individuo y su libre desarrollo en el marco de un sistema social global estructurado sobre la base de esa concepcin de los fines o para el funcionamiento del prprio sistema.

  • 42

    concreto, por outro temos um desvalor de ao que inutiliza seu potencial crtico

    por conta do elevado grau de abstrao.

    Ento que, para tomar em exemplo autores ps-finalistas, Hans-Heinrich

    Jescheck e Thomas Weigend afirmam que a proteo de bens jurdicos uma

    exigncia de um modelo liberal de Estado49 e discorrem ainda que no h

    confuso entre Direito e tica Individual. Ainda que se fale de vontade da ao, a

    prescrio normativa permanece sempre como um mandamento jurdico e, por

    isso, um injusto indiferente a critrios tico-individuais. Entretanto, a imposio

    jurdica de ateno ao bem comum pode ser considerada manifestao de uma

    tica Social, sendo esta uma valorao que se limita, porm, ao mbito da

    culpabilidade.50

    Porm, a noo de bem jurdico dos citados professores parte da idia de

    um valor abstrato, espiritual, da ordem social, protegido juridicamente, em cuja

    defesa est interessada a comunidade e cuja titularidade pode corresponder a um

    indivduo ou coletividade. Bens imateriais, relaes das pessoas com interesses

    reais, tais como a faculdade de disposio das coisas (propriedade).51 Ressaltam,

    porm, que delitos como escndalo pblico ( 183, StGB), maltrato a animais (

    17, TierSchG), afronta a convices religiosas ( 166, StGB), ofensas memria

    dos falecidos ( 189, StGB) ou as mentiras sobre Auschwiz ( 130, III, StGB),

    protegem bens jurdicos com slida raiz sobre as convices valorativas da

    sociedade e, portanto, tm fundamento em determinadas convices da moral

    social que, como tais, devem ser protegidas por meio de sano penal.

    Note-se que ao contrrio de Hans Welzel, os professores Hans-Heinrich

    Jescheck e Thomas Weigend tm a pretenso de extirpar do injusto as valoraes

    ticas e dar o sentido de desvalor de ao como ao perigosa. Porm, acabam

    por relativizar o conceito de bem jurdico, tornando-o demasiado abstrato.

    49 JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. op. cit. p. 9. 50 Idem. p. 261. 51 Idem. p. 275 e 277.

  • 43

    Observe-se tambm a viso aproximada52 a Hans Welzel como foi

    indicado supra no que toca o contedo do conhecimento da antijuridicidade

    exigido para a reprovao.

    Em qualquer caso, o objeto da conciencia da ilicitude no o conhecimento da proposio jurdica infringida, ou da punibilidade do crime (). Mas suficiente com que o autor saiba que seu comportamento contradiz as exigencias de ordem comunitria e que, por isso, est jurdicamente prohibido. Em outras palabras: suficiente com o conhecimento da antijuridicidade material, seja como conhecimento de leigo (). Por outro lado, a consciencia da contrariedade dos costumes no fundamenta o conhecimento do injusto (). Para o conhecimento do injusto basta a consciencia de estar atentando contra uma norma jurdica formalmente vlida pois neste caso o autor sabe de todos os modos que infringe o directo vigente por mais convencido que esteja da utilidade social de seu comportamento.53

    O que importa que nenhum espao haja no injusto para que sejam

    inseridas valoraes que no dizem respeito a um Direito Penal fundamentado na

    idia de bem jurdico. Nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias acusa a concepo

    de Direito Penal como proteo a valores tico-sociais de ser absolutamente

    inadequada estrutura e s exigncias das sociedades democrticas e

    secularizadas que tm como princpio o respeito ao pluralismo tico-social,

    52 Esta aproximao feita por CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal, parte geral . Curitiba : ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 302 (nota 83).

    53 JESCHECK, Hans-Heinrich. WEIGEND, Thomas. op. cit. p. 487 e 488. En qualquier caso, el objeto de la conciencia de la il icitud no es el conocimiento de la propocisin jurdica infringida o de la punibilidad del hecho [....]. Ms bien, es suficiente con que el autor sepa que su comportamiento contradice las exigencias del ordem comunitario y que, por ello, est jurdicamente prohibido. Con otras palabras: es suficiente con el conocimiento de la antijuridicidad material, si bien como conocimiento del lego [...]. Por otro lado, la conciencia de la contrariedad a las costumbres no fundamenta el conocimiento del injusto [...]. Para el conocimiento del injusto basta con la coniencia de estar atentando contra una norma jurdica formalmente vlida, pues en este caso el autor sabe de todos modos que infringe el Derecho vigente por muy convencido que est de la utilidad social de su comportamiento [...]

  • 44

    sobretudo s exigncias ticas.54 No funo do Direito Penal nem primria,

    nem secundria tutelar a virtude ou a moral: quer se trate da moral estadualmente

    imposta, da moral dominante, ou da moral especfica de um qualquer grupo

    social. 55

    E tambm Emilio Dolcini defende um Estado pluralista, laico e inspirado

    em valores de tolerncia, no qual todo o poder estatal emana do povo e que

    reconhece a dignidade do ser humano, onde o Direito Penal no pode perseguir

    fins transcendentes ou ticos, no pode tomar o ser humano como simples objeto

    de tratamento pelas suas tendncias anti-sociais, seno que deve reconhecer o

    Direito Penal como instrumento de proteo de bens jurdicos. 56

    Muito embora haja este amplo rechao da idia de Direito Penal como

    instrumento de proteo de valores tico-sociais, as orientaes funcionalistas se

    baseiam em uma estrutura de conceito de bem jurdico que abarca a proteo do

    chamado sistema social, seja com base na idia de danosidade social, seja

    como proteo de expectativas normativas, seja com vinculao Constituio

    como valor supremo do sistema jurdico, parte de um sistema social maior.

    Porm, qual seria o contedo deste chamado sistema social, suposto

    objeto de proteo do Direito Penal para a concepo funcionalista? Neste ponto,

    a crtica de Eugenio Ral Zaffaroni acena a necessidade de uma viso realista,

    que v na concepo de