casos clínicos em psiquiatria sumário

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UMA PUBLICAÇÃO DO Departamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina - UFMG e Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas - UFMG Editor Geral Maurício Viotti Daker Comissão Editorial Alfred Kraus Antônio Márcio Ribeiro Teixeira Betty Liseta de Castro Pires Carlos Roberto Hojaij Carol Sonenreich Cassio Machado de Campos Bottino Erikson Felipe Furtado Irismar Reis de Oliveira Delcir Antônio da Costa Eduardo Antônio de Queiroz Eduardo Iacoponi Flávio Kapczinski Francisco Baptista Assumpção Jr. Francisco Lotufo Neto Helio Elkis Henrique Schützer Del Nero Jarbas Moacir Portela Jerson Laks Jorge Paprocki José Alberto Del Porto José Raimundo da Silva Lippi Luis Guilherme Streb Michael Schmidt-Degenhard Marco Antônio Marcolin Maria Elizabeth Uchôa Demichelli Mário Rodrigues Louzã Neto Miguel Chalub Miguel Roberto Jorge Osvaldo Pereira de Almeida Paulo Dalgalarrondo Paulo Mattos Pedro Gabriel Delgado Pedro Prado Lima Ricardo Alberto Moreno Roberto Piedade Ronaldo Simões Coelho Sérgio Paulo Rigonatti Sylvio de Magalhães Velloso Talvane Martins de Moraes Diretor Executivo Geraldo Brasileiro Filho Editora Cooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda (Coopmed) Capa, projeto gráfico, composição eletrônica e produção Folium Comunicação Ltda Periodicidade: semestral Tiragem: 5.000 exemplares Assinatura e Publicidade Coopmed 0800 315936 Correspondência e artigos Coopmed Casos Clínicos em Psiquiatria Av. Alfredo Balena, 190 30130-100 - Belo Horizonte - MG - Brasil Fone: (31) 273-1955 Fax: (31) 226-7955 E-mail: [email protected] Home page: http://www.medicina.ufmg.br/ccp Capa: Hexenkopf (Cabeça de Bruxa), de August Natterer (1868- 1933). Coleção Prinzhorn, nº 184 recto; Clínica Psiquiátrica da Universidade de Heidelberg, Alemanha. Em montagem com texto manuscrito de Emil Kraepelin. Reprodução autorizada. Casos clínicos em Psiquiatria Sumário Editorial ..................................................................................................2 Auto-relato Revelações..................................................................................................3 Originais Psicopatologia nos quadros demenciais ...................................................12 Adriana Brazão, Marcelo Feijó de Mello Musicoterapia e psiquiatria: um estudo de caso ......................................16 Bianca Bruno Barbara, Clara Duarte, Heloísa Cardoso de Mello, Nelson Goldenstein Um caso de psicose de início tardio: considerações diagnósticas...........21 Antônio Lúcio Teixeira Júnior, Henrique Alvarenga-Silva, Adriana Camello Teixeira Huguet, Maria Goretti Pena Lamounier Síndrome de Ekbom em idosa .................................................................24 Rodrigo Nicolato, Flávia Fernandes Dias, Cíntia Fuzikawa, João Luís Pinto Coelho, Antônio Carlos Oliveira Corrêa Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com clozapina ............................................................................................27 Érico de Castro Costa, Gislene Valadares Miranda, Ana Luiza Corrêa da Costa, Maurício Viotti Daker Tratamento com alopurinol em paciente hiperuricêmico com mania refratária: relato de caso e hipótese purinérgica ...........................33 Rodrigo Machado Vieira, Diogo Rizzato Lara, Diogo Souza, Flávio Kapczinski “Noglima”: TOC resistente com resposta a adição de risperidona ................................................................................................36 Rodrigo Barreto Huguet, Gustavo Fernando Julião de Souza Munchausen's syndrome: a case beginning in early childhood and that changed from acute abdominal to neurological type ...............40 Winfred Barnett Considering the sleep apnea hipopnea RERA syndrome in the differential diagnose of psychiatric disorders. .........................................43 Dirceu de Campos Valladares Neto Caso Literário Literatura e loucura - um conto de Guimarães Rosa ..............................46 Ronaldo Simões Coelho Patografia Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva....................................47 Andrés Heerlein Caso Histórico Irmã Germana ...........................................................................................54 Clóvis de Faria Alvim Homenagem Demência precoce na sexta edição de Kraepelin em 1899 .....................59 Maurício Viotti Daker Normas de Publicação ................................................................68 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):1-68

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Page 1: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

UMA PUBLICAÇÃO DO Departamento dePsiquiatria e Neurologia da Faculdade deMedicina - UFMG e Residência de Psiquiatria doHospital das Clínicas - UFMG

Editor GeralMaurício Viotti Daker

Comissão EditorialAlfred Kraus • Antônio Márcio Ribeiro Teixeira • BettyLiseta de Castro Pires • Carlos Roberto Hojaij • CarolSonenreich • Cassio Machado de Campos Bottino •

Erikson Felipe Furtado • Irismar Reis de Oliveira • DelcirAntônio da Costa • Eduardo Antônio de Queiroz •

Eduardo Iacoponi • Flávio Kapczinski • FranciscoBaptista Assumpção Jr. • Francisco Lotufo Neto • HelioElkis • Henrique Schützer Del Nero • Jarbas MoacirPortela • Jerson Laks • Jorge Paprocki • José Alberto DelPorto • José Raimundo da Silva Lippi • Luis GuilhermeStreb • Michael Schmidt-Degenhard • Marco AntônioMarcolin • Maria Elizabeth Uchôa Demichelli • MárioRodrigues Louzã Neto • Miguel Chalub • MiguelRoberto Jorge • Osvaldo Pereira de Almeida • PauloDalgalarrondo • Paulo Mattos • Pedro Gabriel Delgado •

Pedro Prado Lima • Ricardo Alberto Moreno • RobertoPiedade • Ronaldo Simões Coelho • Sérgio PauloRigonatti • Sylvio de Magalhães Velloso • TalvaneMartins de Moraes

Diretor ExecutivoGeraldo Brasileiro Filho

EditoraCooperativa Editora e de Cultura Médica Ltda (Coopmed)

Capa, projeto gráfico, composição eletrônica e produçãoFolium Comunicação Ltda

Periodicidade: semestral

Tiragem: 5.000 exemplares

Assinatura e PublicidadeCoopmed 0800 315936

Correspondência e artigosCoopmedCasos Clínicos em PsiquiatriaAv. Alfredo Balena, 19030130-100 - Belo Horizonte - MG - BrasilFone: (31) 273-1955 Fax: (31) 226-7955

E-mail: [email protected]

Home page: http://www.medicina.ufmg.br/ccp

Capa:Hexenkopf (Cabeça de Bruxa), de August Natterer (1868-1933). Coleção Prinzhorn, nº 184 recto; ClínicaPsiquiátrica da Universidade de Heidelberg, Alemanha.Em montagem com texto manuscrito de Emil Kraepelin.Reprodução autorizada.

Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

Editorial..................................................................................................2

Auto-relatoRevelações..................................................................................................3

OriginaisPsicopatologia nos quadros demenciais...................................................12Adriana Brazão, Marcelo Feijó de Mello

Musicoterapia e psiquiatria: um estudo de caso......................................16Bianca Bruno Barbara, Clara Duarte, Heloísa Cardoso de Mello, Nelson Goldenstein

Um caso de psicose de início tardio: considerações diagnósticas...........21Antônio Lúcio Teixeira Júnior, Henrique Alvarenga-Silva, Adriana Camello Teixeira Huguet, Maria Goretti Pena Lamounier

Síndrome de Ekbom em idosa .................................................................24Rodrigo Nicolato, Flávia Fernandes Dias, Cíntia Fuzikawa, João Luís Pinto Coelho, Antônio Carlos Oliveira Corrêa

Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamentocom clozapina............................................................................................27Érico de Castro Costa, Gislene Valadares Miranda, Ana Luiza Corrêa da Costa, Maurício Viotti Daker

Tratamento com alopurinol em paciente hiperuricêmico commania refratária: relato de caso e hipótese purinérgica...........................33Rodrigo Machado Vieira, Diogo Rizzato Lara, Diogo Souza, Flávio Kapczinski

“Noglima”: TOC resistente com resposta a adição de risperidona ................................................................................................36Rodrigo Barreto Huguet, Gustavo Fernando Julião de Souza

Munchausen's syndrome: a case beginning in early childhood and that changed from acute abdominal to neurological type ...............40Winfred Barnett

Considering the sleep apnea hipopnea RERA syndrome in the differential diagnose of psychiatric disorders. .........................................43Dirceu de Campos Valladares Neto

Caso LiterárioLiteratura e loucura - um conto de Guimarães Rosa ..............................46Ronaldo Simões Coelho

PatografiaErnest Hemingway: una patografia retrospectiva....................................47Andrés Heerlein

Caso HistóricoIrmã Germana ...........................................................................................54Clóvis de Faria Alvim

HomenagemDemência precoce na sexta edição de Kraepelin em 1899 .....................59Maurício Viotti Daker

Normas de Publicação ................................................................68

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):1-68

Page 2: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

Casos Clínicos em Psiquiatria surge em época de franca valo-rização científica da psiquiatria. Valem as hipóteses ou conclusões ad-vindas de análises estatísticas de dados mensuráveis, originados denúmero de probandos que permita resultados significativos. Os méto-dos para tanto se sofisticam e reproduzem, muitas vezes se tornam oobjeto da própria pesquisa. Cremos que este seja, de fato, o caminho ase trilhar para desvendar a passos seguros o obscuro universo psico-patológico. Para o pesquisador, um belo e desafiador caminho, contro-lar as múltiplas variáveis com métodos cada vez mais sofisticados. Aoclínico, porém, resta a insossa impressão de massificado cientismo.Não sem razão, pois pouco do publicado se traduz em aplicabilidadeclínica. Muitos dos resultados são apenas hipóteses a se verificar.Quase todos os trabalhos implicam em reducionismo e são como quein vitro, pois os critérios de seleção artificializam os probandos. Osresultados servem como orientação ante a viva realidade clínica, cer-tamente em mãos de clínico experiente, mas não se propõem a definira conduta clínica.

Pensamos que haveria espaço para uma revista especializada emcasos clínicos, onde os conhecimentos pudessem ser canalizados paraa atividade fim do psiquiatra e experiências clínicas pudessem ser tro-cadas. Cremos que Casos Clínicos em Psiquiatria possa trazercontribuições importantes, em que pesem as revistas já existentes. Es-tas também costumam contemplar casos clínicos, mas em segundoplano e com normas editoriais mais limitantes.

Essas idéias foram colocadas ao longo dos últimos três anos parailustres colegas, em especial os que nos honraram com palestras noprograma “Sábados de Formação Continuada” da Residência de Psi-quiatria do Hospital das Clínicas - UFMG e do Departamento de Psi-quiatria e Neurologia da Faculdade de Medicina - UFMG. Para mi-nha surpresa e satisfação, houve ótima aceitação e disposição para co-laborar e compor a Comissão Editorial. E parece que não se tratava deentusiasmo inicial, ou de embevecimento ante o feijão tropeiro, tutu efrango ao molho pardo, pois, ao recolocar o assunto, um ou dois anosdepois, reacendia-se o entusiasmo original. Noutras oportunidadesindagavam se a revista já fora publicada, mais recentemente me co-bravam a respeito!

Reunimos força, coragem, desprendimento e determinação. O re-sultado, este ensaio, parece-nos promissor. Esperamos ter aberto umleque de possibilidades de interesse de ampla parcela de psiquiatras,residentes, profissionais de saúde mental, graduandos e, não menosrelevante, de portadores de doença mental. Mantemo-nos, como sem-pre, abertos a sugestões e críticas, lembrando que se trata de trabalhoem andamento. Desculpamo-nos pelos possíveis desencontros vir-tuais (e-mails) que possam ter influído na composição inicial da Co-missão Editorial ou noutras partes da revista. Agradecemos as ines-timáveis palavras de incentivo, o apoio da Comissão de ResidênciaMédica e da Associação dos Médicos Residentes do Hospital dasClínicas - UFMG, o de várias residências em psiquiatria de MinasGerais e de outros estados, assim como o apoio da Associação Minei-ra de Psiquiatria (federada da Associação Brasileira de Psiquiatria),da Associação Brasileira de Psiquiatria Biológica, da Associação Na-cional de Neuropsiquiatria Geriátrica e da Associação Nacional Pró-Saúde Mental - Projeto Fênix. Agradecemos muito à Wyeth por aca-tar o projeto de forma resoluta logo nestes primeiros momentos difí-ceis e decisivos.

Lançando mão de meu atual status editorial, gostaria de encerrarelevando três dos membros da Comissão Editorial à condição de nos-sos patronos: os caros mestres Carol Sonenreich, Jorge Paprocki e Mi-guel Chalub.

Maurício Viotti Daker

Clinical Cases in Psychiatry appears in a time of wide scientificvalorization of Psychiatry. Valuable are hypothesis and conclusionsbased on statistic analysis of measurable data originated from a numberof probands that allows significant results. The methods for such taskget sophisticated and multiple, becoming many times the object ofresearch itself. We indeed believe this is the way to be followed in orderto unveil the obscure psycopathologic universe through safe steps. Forthe researcher a nice and challenging way: to control the several vari-ables with methods each time more sophisticated. To the clinician is leftbut a dull impression of a wearisome scientism. Not without reason,because little of what is published has clinical applicability. Many of theresults are only hypothesis to be checked. Almost all works imply reduc-tions and may be compared to in vitro, due to the selection criteria thatcause the probands to be artificial. The results are useful as orientationin the lively clinical reality, certainly in the hand of an experiencedphysician, but do not aim to determine the clinical conduct.

We consider the possibility of an open field for a specialized jour-nal on clinical cases, in which the knowledge could be focused for thetarget activity of the Psychiatrist and clinical experiences could beexchanged. We believe that Clinical Cases in Psychiatry may bringimportant contributions, in what concerns the existing journals. Theseusually contemplate clinical cases, but in a second level and with morelimiting editorial rules.

These ideas were exchanged with eminent colleagues through outthe past three years, mainly by the ones who honored us with confer-ences in the program “Saturday of Continued Studies” of thePsychiatric Residency of the Hospital das Clínicas and of theDepartamento de Psiquiatria e Neurologia of the Medical School of theUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG. For my surprise andsatisfaction, there has been great acceptance and disposition to collab-orate and to compose the Editorial Board. And it seems it was not onlyan initial enthusiasm, or rapture in front of the appetizing cooking ofMinas Gerais, because when the subject was brought up a year or twolater, raised again the original enthusiasm. In other times I was ques-tioned whether Clinical Cases was already published, and more recently demanded on this issue!

We gathered strength, courage, determination and unselfishness.The result, this essay, seems to us promissory. We hope to have open arange of possibilities of interest for a great number of Psychiatrists,Residents, professionals of the mental health area, under-graduates,and, not less relevant, for the mentally disordered. We keep, as usual,open to suggestions and criticizing, reminding that this work is underprocess. We apologize for the eventual virtual failures (e-mails) thatmay have influenced in the initial composition of the Editorial Boardor in other parts of the material. We wish to thank the inestimablewords of incentive, the support of the Medical Residency Commissionand the Association of Resident Doctors of the Hospital das Clínicas ofthe Universidade Federal de Minas Gerais, and of various Residencieson Psychiatry of Minas Gerais and other States, and also the supportof the Associação de Psiquiatria de Minas Gerais (member of theAssociação Brasileira de Psiquiatria), the Associação Brasileira dePsiquiatria Biológica, the Associação Nacional de NeuropsiquiatriaGeriátrica and the Associação Nacional Pró-Saúde Mental - ProjetoFênix. We also wish to express our deep thankfulness to Wyeth for thestraight acceptance of the project in these first difficult and decisivemoments.

Finally, considering my present editorial status, I would like toexpress our willing to nominate three of the members of the EditorialCommittee as our Patrons: Carol Sonenreich, Jorge Paprocki andMiguel Chalub.

Maurício Viotti Daker

Editorial

Page 3: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

Paulo B. Linhares (nome fictício)

Discussão: Helio Elkis *

Resumo

Relato de caso pelo próprio portador de transtorno mental. Trata-se de paciente do sexo masculino, ex-seminarista e de nível escolaruniversitário. Apresentou sintomatologia psicótica repleta de revela-ções mediúnicas, chegando a ser aposentado por invalidez. Relataem detalhes seus primeiros sintomas e situações deles decorrentes,assim como sua via crucis por atendimentos psiquiátricos. Posterior-mente cancelou sua aposentadoria e vem trabalhando e vivendonormalmente. Não considera sua sintomatologia fruto de doença.

Palavras-chave: Transtorno Psicótico; Esquizofrenia Paranóide;Parafrenia; Transtorno Delirante

A finalidade desse imenso trabalho é contar-lhe o que aconte-ceu comigo e as minhas experiências com relação a “mediunida-de”. Mediunidade é uma conquista nossa e é o dom de servirmosde intermediários entre os dois planos da criação divina: o planovisível, o nosso, no qual vivemos hoje, com o plano invisível, quetambém será nosso no futuro, mas com o qual já sintonizamoshoje. Aquele que estuda e compreende a profundidade dessa sin-tonização irá entender também o que é o “inconsciente”.

A mediunidade, que é mesmo “profetismo bíblico”, é, em ge-ral, considerada como uma doença para a psiquiatria, principal-mente no início do afloramento dela e também a psicologia a con-sidera uma doença.

Nós fomos criados simples e ignorantes, mas perfeitos, poistudo o que Deus-Pai-Mãe criou é perfeito, e por nossos esforçosvamos evoluindo e nos tornando “sábios e santos”. Essa conquis-ta da sabedoria é executada através das vidas sucessivas ou dasencarnações em corpos de carne. Nós, atualmente, somos um so-matório de muitos “eus”, pois tudo o que fomos e aprendemosem nossas vidas passadas faz parte do nosso inconsciente indivi-dual. Quando o nosso “inconsciente” vem a tona, temos que se-parar e entender o que é do “inconsciente individual” e o que édo “inconsciente coletivo”. Essa separação e esse entendimentosão frutos de muito estudo e é o encontro com a verdade, que li-berta (Jo 8,32).

Em 1962, estudava interno em um seminário e tinha passadopara o 1º ano do curso clássico (1º ano do 2º grau, hoje) e podiafreqüentar uma sala onde tínhamos permissão de fumar, ler jor-nais e algumas outras regalias. Por isso comprei três maços de ci-garros e quando ia fumar o terceiro cigarro, veio um pensamentoa minha mente como uma voz, bem no fundo do meu ser e bemnítida mesmo, e dizia-me o seguinte: “O seu pai trabalha na roça eaté sob um sol quente para pagar os seus estudos e você ainda vaiqueimar o dinheiro dele”.

Essa voz, que falou no fundo da minha mente e que sabiatudo sobre mim, ajudou-me a não adquirir o vício do cigarro, masnão me obrigou a nada. Tomei livremente a decisão de não fumar,pois julguei que realmente não estava agindo corretamente comrelação a gastar o dinheiro do meu pai. Resultado: não fumei oterceiro cigarro e doei para os colegas todos os cigarros já com-prados e nunca mais fumei.

Cada pessoa tem a sua história, tem a sua hora certa e a horacerta só o Pai sabe (Mt 24,36). Nos dias 7 a 10 de janeiro de 1980vivi momentos interessantes e fantásticos, pois vinha a minhamente revelações para mim sobre a minha pessoa e minha vida.Enquanto não escrevia a idéia num bloco de papel, não conseguiaacalmar e trabalhar. Era o início das minhas experiências místicasou mediúnicas, assunto este sobre o qual nada conhecia. Foi tam-bém o início do meu autoconhecimento como um “ser cósmico”ou um “Eu Sou”. Foi o meu nascimento do alto (Jo 3,7).

Tinha aprendido no seminário que espiritismo era algo con-trário ao BEM. Mas em 10/01/1980 veio a público a minha me-diunidade e, após dar muitos escândalos no meu trabalho e emoutros lugares, não dormi nada na noite de 10 para 11/01/1980.Entre os escândalos que dei, cito alguns.

Após escrever sobre a última revelação, que foi sobre a reen-carnação com base na Bíblia, escrevi a seguinte frase: “Vai e fala,senão você morre!”. Saí como um “louco” da minha sala e fui fa-lando para a secretária: “MF, a Boa Nova chegou”. Como a minhavoz estava alterada, a secretária assustou e teve medo de mim.Após um rápido diálogo comigo, ela desceu as escadas e faloucom os outros colegas de serviço: “O PBL ficou doido!”. Assustan-do assim a todos, mas não dei tempo de ninguém pensar e racio-cinar em nada, pois desci imediatamente as escadas, tremendocomo uma vara verde. Quando fui visto pelos outros colegas, to-dos espantaram e virou uma confusão tremenda. Pedi a um cor-retor de valores para me levar ao Provincialado dos Franciscanosem Carlos Prates, pois queria falar com os freis, já que pensavaque iria morrer imediatamente e tinha que passar para a frente anotícia da “Boa Nova”. Tentaram me convencer a não ir, mas não

Auto-relatoREVELAÇÕESREVELATIONS

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):3-11 3

* Professor Associado Doutor do Departamento de Psiquiatria daFaculdade de Medicina da USP; Coordenador da Residência emPsiquiatria do Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP;Coordenador do Projesq- Projeto Esquizofrenia do Ipq- FMUSP

Endereço para correspondência:Instituto de Psiquiatria- HC-FMUSPRua Ovídio Pires de Campos s/n - sala 403905403-010 - São Paulo- SPE-mail: [email protected]

Page 4: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

Revelações

aceitava mesmo. Tentaram me dar água com açúcar, o que rejei-tei até com indelicadeza, dizendo: “Isso não é para mim, é para osfracos!”.

Tentei conversar sobre “Deus” e sobre a “Bíblia”, mas dessesassuntos ninguém sabia nada. Falei em voz alta para todos ouvi-rem: “Essa vai ser uma grande empresa, pois é a primeira vez queisso ocorre dentro de uma empresa”. Como vi e entendi que nin-guém compreendia nada, então tentei fazer um milagre para pro-var o que sentia e falava. Falei assim: “Vocês não acreditam no queestou falando? Então para provar tudo, vou fazer um milagre aquiagora!”. Imediatamente peguei uma tabuleta com o nome de umcorretor de valores e disse, em alto e bom som, para todos ouvi-rem: “Vou fazer isso aqui virar um pássaro!”. Joguei-a para cima efiquei esperando a transformação, mas ela caiu no chão conformea lei da gravidade, apenas descolando o nome do corretor de va-lores da madeira. Aí, já com um pouco de tranqüilidade, disse:“Graças a Deus! Agora sei que não vou morrer. Tenho o tempo todopara conversarmos, se quiserem podemos ir para a sala de reunião”.Foi um alívio geral: como jogar água num fogo de palha.

Fomos para a sala de reunião, umas oito pessoas. Ali ficamosconversando até às 16:00 horas, quando senti uma ânsia de vômi-tos. Fui ao banheiro, mas não cheguei a vomitar e voltei para a salade reunião. Com relação as outras pessoas, apenas duas ficaram otempo todo, as outras foram fazendo rodízio. Toda hora que che-gava um novo colega na sala, abraçava-o com muita emoção e, emalguns casos, até lágrimas saíam dos meus olhos. Sentia-me comum conhecimento imenso e com poderes totais. Era como se tudodependesse de mim e me sentia o dono da situação. Por isso falei,mais ou menos, assim: “Não posso mais trabalhar com planejamen-to, pois agora sei tudo e até o futuro”. Ali pelas 16:30 horas, chega-ram na empresa onde trabalhava o frei TAZ e um outro frei: foium alívio geral. Quando ficamos os três sozinhos dentro de umasala, fui logo dizendo: “Frei, encontrei o ‘Reino de Deus’!”. Vi esenti o espanto deles. O frei TAZ apenas perguntou, demonstran-do muita apreensão e um grande susto: “O que?!”. Repeti o co-mentário. Ele falou-me que não tinha tempo de conversar comigonaquela hora. Saímos da sala e do lado de fora haviam muitos co-legas querendo entender melhor o que acontecia. Quando o freiTAZ perguntou-me em que hora poderia ir ao Provinciliado Fran-ciscano no dia seguinte para conversar com ele, respondi de pron-to: “Frei, para falar do ‘Reino de Deus’ qualquer hora é hora. Até ameia-noite, se o senhor marcar, estarei lá”.

Ficou marcado que estaria lá às 16:00 horas do dia11/01/1980. As minhas respostas e observações assustavam cadavez mais todo mundo. Às 18:00 horas, um dos diretores da em-presa me falou assim: “PBL, não foi possível ouvi-lo durante o tra-balho e quero ouvi-lo um pouco agora. Você, então, aceita que eu oleve à sua casa e assim poderei ouvi-lo melhor. O assessor leva o seucarro”. Concordei imediatamente e fomos. Ninguém queria queeu dirigisse o meu carro, mas nada desconfiei. Chegando em meular, a minha esposa não estava e fui logo mostrando a Bíblia paraeles, comentando o trecho sobre o divórcio e casamento (videMateus 19,1-12). Após um rápido diálogo, pedi licença aos doisamigos, pois tinha que ir buscar a EML, minha primeira esposa.Eles não queriam que eu dirigisse, mas nada puderam fazer e ape-nas me seguiram por alguns quarteirões, depois comentaram o se-guinte: “Nós não estamos entendendo nada. O PBL está dirigindo

bem. Então vamos embora deixando esse negócio para lá” (isso oassessor comentou comigo depois). Chegando na casa onde esta-va a EML, fui logo dizendo: “Agora não haverá mais pobre na ter-ra. A riqueza será dividida e todos terão meios para terem uma vidadigna dos filhos e filhas de Deus”. Sei que ia assustando cada vezmais as pessoas. Era como se eu fosse um teleguiado, pois sabia oque fazia, mas não podia parar de agir e fazer escândalos.

No dia 11/01/1980 iniciou a minha luta contra os psiquiatras,pois estive no consultório de um deles, que deu o seguinte diag-nóstico para mim: “Cansaço e esgotamento mental = estafa”. Re-ceitou-me um descanso de 15 dias na Clínica Pinel (Pinel é umaclínica de “doentes mentais”, que fica na Pampulha em Belo Ho-rizonte). Ele mesmo assinou a guia ou o pedido de internação. Fa-lei para o médico assim, após ter recebido o pedido para a inter-nação: “Vamos para lá, doutor, que lá é muito bom mesmo (eu re-feria ao Reino de Deus ou ao céu)”. Este psiquiatra disse para aEML que eu estava muito perigoso. É interessante observar queeu mesmo dirigia o carro em todos esses trajetos.

Às 16:00 horas fui conversar com o frei TAZ, que foi meu pro-fessor e conselheiro espiritual no Seminário. Ele falou-me assim:“Você precisa é de psiquiatra e não de padre”.

Foi uma grande decepção para mim e ainda é. Quando saí dasala com o frei TAZ, o meu irmão padre, o frei DBL, estava con-versando com a EML e falou-me que também queria conversarcomigo. Voltei para a sala com ele. Foi logo perguntando-me oque estava acontecendo e, com muita coragem e confiança, expli-quei: “Frei DBL, é bom demais. Não existe mais ódio em mim.Ódio é apenas uma palavra histórica. Estou pleno de amor e enten-dendo tudo. Só posso falar sobre o que já escrevi”.

Senti que não fui compreendido e ele me disse que iria dor-mir em minha casa. Não concordei com ele, dizendo assim: “Hojenão quero que você vá dormir lá”. Concordou comigo, mas quan-do saímos da sala o frei TAZ disse: “Frei DBL, você hoje vai dor-mir na casa do seu irmão, não vai?”. De imediato, respondi: “Hojenão! Já combinei isso com o DBL”. Tudo o que falava assustava aosoutros. A EML interrompeu-me e disse:

- “O que é isso, PBL! Ele é seu irmão”.- “Bom, se essa é a sua vontade, então concordo”.Eu e ela voltamos para a nossa casa. Ali pelas 19:00 horas,

chegou em casa um outro dos meus irmãos, o JBL, e eu não que-ria que ele dormisse em meu lar. Tentei de todas as maneiras man-dá-lo para um hotel. Isso escandalizou muito os meus familiares.

Houve acontecimentos, nesse e noutros momentos, que fica-ram completamente apagados da minha memória. É como se nãotivessem acontecido para mim.

Quando o frei DBL chegou em minha casa, ali pelas 21:00 ho-ras, levou-me para o quarto para conversar. Fui logo dizendo paraele: “Frei, é revelação atrás de revelação. É muita coisa boa mesmo.Não posso mudar nada de momento, nem sei se posso acabar deconstruir a minha casa, na rua Ramos de Freitas. Sobre isso voupensar depois”.

Não me lembro como fui deitar, mas acordei de noite e saí doquarto gritando: “A última revelação: a minha mãe está aqui!”.

Coloquei todos em pavorosa confusão. Fui ajoelhar ao ladoda cama duma senhora, que estava dormindo também, naquelanoite, no meu lar. Dizia para essa senhora que ela era a minha

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Page 5: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

mãe. Era na casa dessa senhora que a EML estava no dia anterior(10/01/1980).

No dia 12/01/1980, um sábado, fui levado de ambulância àclínica Pinel e lá cheguei como um louco para “quase” todos. Fi-quei completamente inconsciente desde que a ambulância parou,até que fui colocado entre os “enfermos” internados na Pinel.

Foi uma total decepção. Como não vi como lá entrei, primei-ro tentei reconhecer o local, mas não foi possível. Depois faleiem voz alta, quase gritando, palavras sobre o sítio onde passei aminha infância, pois o meu objetivo era encontrar com os meusparentes, que tinham desaparecido: “Agropel!” (nome de fanta-sia de empresa agropecuária da família). Quem compreendesseas palavras ditas por mim iria me compreender e me levar aosmeus parentes.

Tudo era desconhecido e uma grande incógnita para mim. Aípensei que iria enfrentar o “nada absoluto” e me preparei para oencontro, ajoelhando e colocando a cabeça no chão entre as mi-nhas mãos. Esperei um pouco e nada aconteceu. Não houve o en-contro com o “nada absoluto”.

Levantei-me e comecei a perguntar a “torto e a direito” comotinha chegado e queria saber que lugar era aquele. Ninguém tevea caridade de me responder. Como não era entendido e não en-tendia ninguém, comecei a falar sobre “DEUS e o reino deDeus”: esta era e é a minha loucura, que é viver e falar do infini-to amor de Deus. Nesta altura vários enfermos se aproximaramde mim para me ouvir. Senti que ninguém estava entendendonada. Tentei dialogar com o grupo e não houve jeito. Quando fizuma pergunta para conseguir parâmetros de comparação com oReino de Deus, que foi assim: “O que é a melhor coisa da vida?”Um enfermo, que estava sentado num canto e bem fora do gru-po, respondeu a minha pergunta em forma de baixaria. Aí faleipara ele assim: “Não é isso não, irmão!” Recebi dele a seguinte res-posta e ainda girando o dedo indicador da mão direita em tornodo ouvido: “Você endoidou de vez, moço!” Mas esse diálogo fezcom que o “inconsciente coletivo dele” entrasse em sintonia como meu “inconsciente coletivo” e passei a pensar coisas estranhasao meu hábito com relação a sexo.

Como não houve diálogo com os novos amigos, cheguei apensar que tinha feito uma viagem em um disco voador e estavaem outro mundo. Por isso comecei a me preocupar como volta-ria para a terra se realmente estivesse em outro planeta.

Depois de cansar de falar, entrei por um corredor e não fui se-guido por ninguém (devo ter entrado em área proibida). Andeium pouco e quando passava em frente a uma porta, que tinha aparte de cima aberta, uma moça, que era uma recém-formada empsiquiatria e que dava plantão lá, chamou-me pelo meu nome elogo fui falando, bem aliviado: “A você estou compreendendo, masaí fora não compreendi ninguém”.

Ela chamou-me para conversar, convidando-me para entrar esentar numa cadeira em frente à mesa dela. Logo perguntei a ela:

- “Onde estou?”- “Você está na Pampulha em Belo Horizonte”.Ouvindo essa resposta senti um grande alívio, mas queria con-

firmação. Imediatamente perguntei:- “Onde estão os meus parentes?”- “Estão lá fora, à sua espera”. Respondeu ela.- “Leve-me lá”. Pedi em seguida, pois estava ainda em dúvida.

- “Não pode”.Esta resposta aumentou a minha dúvida e comecei a descon-

fiar que estava sendo ludibriado e enganado.- “Então traz um deles aqui”. Voltei a pedir, quase suplicando.- “Não pode”. Voltou a responder a psiquiatra. Nesta altura

conclui que estava sendo realmente ludibriado, enganado e nãoacreditei em nada mais. Logo vi três homens (enfermeiros) prepa-rando uns remédios e aí perguntei:

- “O que eles estão fazendo?”- “Preparando remédio para você”. Respondeu a psiquiatra.- “Só tomo remédio se eu ver os meus parentes”. Respondi, pois

não acreditava em nada mais.Quando os três enfermeiros tentaram aproximar de mim, le-

vantei e encostei na parede, para me defender do ataque dos três.Eles não se aproximaram mais e após terem voltado para o fundoda sala a doutora me convidou novamente para sentar na cadeira,o que fiz. Fiquei de espreita com relação aos três homens. Faleipara ela que parecia com a minha filha CL e conversamos maisum pouco. Após três tentativas, dei uma bobeada e os três meagarraram a força e no braço mesmo. Um agarrou-me pelos pés,outro pela barriga e o terceiro estrangulou-me pelo pescoço, dan-do-me uma gravata por trás, segurando o meu braço esquerdo eforçando-o para cima nas minhas costas. Comecei a me defender,mas mesmo assim pensei racionalmente: “Bom, eles são três e euum só, por mais que lute irão me vencer de todo jeito, então a úni-ca saída é ficar passivo”. Agi, imediatamente, como pensei. Masum dos “homens-fera” me deu uma gravata tão apertada e forteque me enforcava e quando senti que estava morrendo por enfor-camento, levei a mão esquerda, que não estava mais presa, à mãodo “estrangulador” e puxei um pouco o braço dele e assim puderespirar bem aliviado. Logo que fui colocado no chão, disse paraos três homens e a psiquiatra: “Vocês fizeram uma covardia comi-go e não podiam ter agido assim”.

Aí a psiquiatra deu-me permissão para ir aonde estavam osmeus parentes: a EML, o frei DBL e o JBL. Mas nesta altura mi-nhas pernas já não obedeciam a nenhum comando de minhamente. Então a doutora pegou num dos meus braços, um dos en-fermeiros pegou no outro e conduziram-me até onde estavam aminha primeira esposa e os dois irmãos. Quando vi os três apa-guei completamente e só acordei no quarto da minha casa (sabiaque tinha falado algo com eles e não recordava nada).

Os acontecimentos na Clínica Pinel poderiam ter sido com-pletamente diferentes se o meu desejo de ver os meus parentesfosse aceito, pois o que queria era realmente saber onde estava.Como só recebi respostas negativas, não acreditei em nada queme foi dito antes e depois. Tinha sentimentos de dono da situa-ção, que tudo girava em torno de mim, que os meus desejos ti-nham que ser realizados e compreendidos. Por causa dos “nãos”recebidos como respostas senti-me como uma “fera enjaulada eferida com vara curta”. Estava sozinho, tinha que sair daquele la-birinto e só podia contar comigo mesmo.

Logo que reconheci o meu quarto, fiquei tranqüilo e calmo, aíouvi uma voz falando-me assim: “Olha, tem padre no meio, quenão está entendendo nada. Então faz um escândalo aqui agora, dizque você pecou contra Deus e quer confessar”. Acabei de ouvir opedido e agi imediatamente. Resultado: tomei mais remédio edormi por mais algumas horas.

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Revelações

Daí para frente a minha via crucis aos consultórios dos psi-quiatras e psicólogos foi intensa, até o dia 10/02/1986, quandoconsegui o cancelamento da minha aposentadoria por invalidez,junto ao INSS.

Fora colocado de férias pela empresa onde trabalhava, uma fi-nanceira e, como fiquei muito bom, voltei ao trabalho no térmi-no das férias, mas entrei de licença para assuntos particulares domeu cargo de professor na Faculdade de Ciências Econômicas daUFMG, onde lecionava desde 1972.

Logo que voltei ao trabalho completamente bom muita genteficou espantada e queria saber o que tinha se passado comigo,pois no dia 10/01/80, de 14:15 até às 18:00 horas, dei muito es-cândalo no meu trabalho, falando muito e até milagre tentei fazerpara provar o que dizia sobre Igreja, Bíblia, Religião e Deus. Porcausa da reação dos amigos, procurei um psiquiatra da Unimed.Fiz isso porque os meus ex-professores e ex-orientadores, os freisfranciscanos, principalmente o frei TAZ, não me compreenderame nem puderam me auxiliar ou orientar em nada.

O psiquiatra, que procurei no final de fevereiro de 1980, foi oDr. XLV. Logo que lhe expus o quadro, deu-me o seguinte diag-nóstico: “Eu estava doente, muito perigoso, precisava tomar remé-dios e fazer análise”. Não aceitei sua orientação e ainda disse a ele:“Como posso estar doente, se estou trabalhando bem, comendobem, dormindo bem e vivendo imensamente bem com minha famí-lia e com todos. Até parece que fiquei livre duma cadeia invisível eestou livre na rua”.

Por causa desta última idéia minha é que ele continuou afir-mando que eu estava doente, desequilibrado e necessitava de re-médios e análise. Ele só tentou me convencer que estava doente,o diálogo foi muito longo e maçante para mim. Esse estudioso dasmentes também não entendeu nada da minha mente.

Como ele não me convenceu, disse-me assim: “Sou um profis-sional e como você não aceita fazer tratamento, preciso conversarcom um parente seu para expor o meu diagnóstico”.

Numa tarde de março de 1980, o Dr. XLV me telefonou con-vidando para ir ao consultório dele em companhia do frei DBL.Após muita conversa e já cansado de defender tanto a minha nor-malidade como a minha saúde, então apelei para tirar do psiquia-tra o apoio do meu irmão, dizendo: “Só aceito que estou doente setudo o que me ensinaram sobre Deus e religião for mentira. Se tudoo que me ensinaram sobre a bondade de Deus, o Evangelho de Je-sus e a Igreja for mentira, então aceito que estou doente e precisotratar, pois fui enganado e ludibriado durante toda a minha vida; jáque vocês julgam que estou doente”.

Enquanto falava, lágrimas rolaram dos meus olhos e esta mi-nha observação derrotou o meu irmão DBL, que apoiava o psi-quiatra e passou para o meu lado. Após sair do consultório, leveio frei DBL ao Provincialado dos Franciscanos.

Disse a ele que não podia ter mais filhos. Essa foi a razão por-que na noite de 11 para 12 de janeiro de 1980 não queria que nin-guém dormisse em meu lar. Pois um “espírito muito forte e pode-roso” iria reencarnar como meu filho, esperava apenas o meu“nascimento do alto” (Jo 3,3 ou 7). Como não foi possível, entãopassei a participar de um plano muito evoluído e tinha que mepreparar muito bem para cumprir a minha missão nesta encarna-ção. Agia sobre a influência do “inconsciente coletivo”.

No final de março de 80 voltei a sintonizar com um amigo de-sencarnado e perdi novamente o sono durante a noite. Esse ami-go desencarnado, um espírito, é um dos meus grandes protetoresou auxiliares hoje e o nome dele é padre Luís, que em vida foi omeu pároco.

Como não dormia à noite, a EML telefonou para o Dr. XLV,que orientou-a para dar-me uma grande dose de “haldol”, que elamesma julgou ser uma dose cavalar e por isso não me deu, voltan-do a ligar para o doutor, que também achou demasiada a dose de“haldol” e a reduziu bem mesmo. No domingo cedo a EML to-mou providências. Levaram, lá em casa, o Dr. CMX, um psiquia-tra que me deu quatro “haldol” de 5 mg e quatro “akinetons”,pois, enquanto não apaguei na frente dele, ele não parou de medar remédios. Logo que meu primo HLP e a esposa chegaram emminha casa e ouvi falar que estavam com um psiquiatra, bati a por-ta na cara deles e ainda falei: “Psiquiatra não entra em minha casa”.

Eles espantaram com a minha reação e disseram: “O que éisto, PBL. É apenas um amigo”.

Então eu mesmo abri a porta e respondi com muito mais cal-ma: “Amigo! Pode entrar!”.

Mas quem lá entrou não foi um amigo, mas um digno repre-sentante da psiquiatria materialista e influenciado por alguns es-píritos, que não queriam o meu “desenvolvimento mediúnico, omeu autoconhecimento e o meu equilíbrio, após o meu nascimen-to do alto”.

Hoje sou um médium desenvolvido e católico, que desmasca-ra qualquer espírito com pseudo-iluminação ou falsa-evolução.Como é o caso de muitos monstros sagrados, que dão muitasmensagens hoje em dia, que passaram a me obsediar e por issotive que afastar de muitos “centros espíritas”. Sendo um bom mé-dium torna-se fácil para os espíritos darem mensagens lindas. Oprincipal responsável pela “obra” é o médium e não os espíritos,pois quanto mais evoluído é um “espírito”, mais ele respeita a li-berdade plena do “médium ou do profeta”, que é quem corre to-dos os riscos e leva todas as conseqüências negativas ou positivas.

A dose de “haldol” (4) e “akineton” (4) do Dr. CMX me co-locou grogue por vários dias, pois não dou notícias certas de nadaque aconteceu depois. Estive no consultório do Dr. XLV, levadopelo meu primo HLP e esposa, juntamente com minha primeiraesposa, que desencarnou em 28/01/1984. Lembro-me vagamentedos diálogos naquelas consultas, nem mesmo sei como eu conse-guia dirigir o carro.

Falhei vários dias no trabalho, mas não fiquei sabendo quan-tos. Depois comecei a trabalhar só na parte da tarde.

Comecei a fazer tratamento com o Dr. XLV, que me receitoulitium e neozine. Só suportei este tratamento desumano por uns15 dias, pois o litium foi terrível para mim. Basta dizer que quan-do ia ler algo as letras “criavam asas” e rapidamente transforma-vam-se em um borrão preto em toda a página. Novamente, esseestudioso das mentes não me entendeu. Fiquei desesperado ecom auxílio de um amigo procurei outro psiquiatra no final deabril de 1980.

O Dr. LXVI me fez exames de reações psicomotoras e me jul-gou até com boas reações físicas. Disse-me que não precisava da-queles remédios do Dr. XLV, mas de outros mais fracos. Nesta al-tura comecei a analisar que cada psiquiatra agia de uma forma ereceitava remédios diferentes, então eles realmente não sabiam o

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que se passava comigo e assim deveria ser com todos. Passei aconfiar mais ainda no meu conhecimento bíblico e na Bíblia Sa-grada, pois nela existem passagens onde se ouvem vozes e são vis-tos espíritos.

O Dr. LXVI receitou-me haldol, akineton e neozine. Em maiode 1980, falei para o Dr. LXVI que não conseguia trabalhar to-mando aquelas drogas, pois não conseguia raciocinar e nem pen-sar. Se fosse necessário tomá-las, então era para ele conseguir umalicença no INSS para mim. Ele não quis, dizendo-me que não de-via ou podia (?) me arrumar licença e que então era para que euficasse sem remédios, mas logo que a “crise” (hoje a chamo de fe-nômeno mediúnico ou místico) iniciasse era para que eu tomasseuma dose de “haldol”, pois não iria agüentar o desenrolar da cri-se. Logo que terminou o efeito do remédio e comecei a sentir apresença dos “invisíveis ou espíritos”, tive um acesso muito fortede vômitos, mas nada vomitei e não aceitei tomar remédios.

Em junho de 1980, voltei ao consultório do Dr. LXVI, quetentou forçar-me a aceitar a tomar remédios e, perante a minhanegativa, disse-me mais ou menos assim: “Se você fosse um auxi-liar de pedreiro, mandava uma radiopatrulha prendê-lo e interná-lo no ‘Galba Veloso’ (outro hospital para doentes mentais) paravocê tomar remédio”. O que respondi imediatamente: “A minhasorte é que não sou, não é doutor? Também tenho curso superior,posso lhe pagar esta consulta e também o senhor precisa dela parao seu sustento”.

É lógico que não gostou da minha resposta e disse para aEML que não iria tratar mais de mim porque eu era teimoso e ca-beçudo demais.

No último trimestre de 1980 freqüentei a clínica A. Santa dofrei NK e lá me orientaram a parar de tomar remédio. Nessa clí-nica tomei soro, fiz sessões de regressão de vida até ao útero e derelaxamento. Numa dessas sessões vi mentalmente pela primeirae única vez o “Velho Jó”, o espírito, que hoje é o meu mentorprincipal.

Pelo meu conhecimento atual, sei que a pessoa que dirigia a“sessão de relaxamento” não agiu corretamente. Ela mesma fezcom que o “Velho Jó” saísse da minha tela mental, pois não o co-nhecia, mas como houve o aparecimento dele era necessário des-cobrir a causa ou razão daquela visão. A imagem do “Velho Jó”continua nítida em minha mente.

Levou um bom tempo para a limpeza química do meu físico.No início de 1981, após o término dos efeitos dos remédios, vol-tei a sentir os efeitos da mediunidade. Tive que retornar ao Dr.LXVI, pois o meu orientador da clínica A. Santa, o psicólogo ir-mão MPN estava de férias e os meus familiares não aceitavam queeu ficasse sem remédios. Nesta consulta com o Dr. LXVI conver-samos sobre “ETs” e discos voadores: “OVNIS”. Ele fez-me mui-tas perguntas, às quais ia respondendo. Disse-me também que otratamento na clínica A. Santa era puro charlatanismo. Fiz o pa-gamento à secretária, mas esqueci de assinar o cheque. O Dr.LXVI repetiu os mesmos remédios receitados em abril/1980. Naconsulta seguinte, após a orientação sobre os remédios, apresen-tou-me o cheque sem assinatura e falou-me, mais ou menos assim:“Assine aqui para mim. Você estava tão ruim na vez passada quenem assinou o cheque”. Respondi imediatamente, sem pensar:“Pois é, doutor, e quem recebeu o cheque estava pior do que eu, poisrecebeu um papel sem nenhum valor”.

Em março/81, através de uma velha e muito amiga, a mesmaque chamei de mãe na noite de 11 para 12 de janeiro de 1980, fo-mos avisados que, no bairro Jardim América, um médium aten-dia e curava muitos doentes, inclusive de câncer, e como a EMLtinha câncer, o que ficamos sabendo em novembro de 1980, pe-diu-me para levá-la lá. Foi assim que tomei conhecimento práticoda vida evangélica e caridosa dos espíritas. O atendimento era fei-to aos domingos à tarde e de 14 em 14 dias. Na primeira vez nãoaceitei fazer uma consulta para mim, mas na segunda vez consul-tei também. Logo que entrei na sala do médium e expus o queacontecia comigo, o médium mediunizado respondeu-me: “Vocênão tem doença nenhuma, o problema é que os amigos invisíveis es-tão querendo manter contato. Você conhece alguma coisa?”

Perante minha ignorância completa do assunto aconselhou-me a ler as obras do André Luiz, psicografadas por Chico Xavier.Também foi marcada uma reunião de captação para mim, após 28dias. Religiosamente compareci no dia marcado com antecedên-cia e nada foi feito. Quando cobrei a razão de não ter sido aten-dido, indicaram-me um outro médium para conversar. Este eraum advogado, que recebia um caboclo e deu-me a seguinte expli-cação, após um bom diálogo: “Nós não fizemos a reunião de cap-tação com você porque estamos com medo. Os que estão com vocêsão espíritos de extremos: são muito bons ou muito maus. Por issoaconselho-o a ler as obras da codificação do espiritismo, escritas porAllan Kardec”.

Não é necessário dizer que as li e reli todas, ainda continuolendo e estudando-as.

Uma conversa premonitória com colegas da empresa (sobremedida que evitaria sua falência, o que se concretizou posterior-mente), também em início de 81, causou-me muita emoção e,logo que cheguei em casa, senti uma forte manifestação mediúni-ca. Quando cheguei na janela da sala vi um carro parado em fren-te, na rua Ramos de Freitas. Ouvi o passageiro falar com o moto-rista assim: “Toca, que nós não podemos entrar nessa casa, é luz de-mais”. O carro foi embora, como também o provável auxílio.

Em setembro de 1981 tirei férias e senti uma razoável melho-ra. Viajei sozinho para visitar o papai e outros familiares. Em Di-vinópolis, fiquei sabendo do lado espiritual de tudo aquilo queaconteceu comigo. Participei também de uma reunião mediúnica,na linha de umbanda, na casa do meu irmão, com um médiumque esteve em minha casa no final de março de 1980. Tive ótimamelhora durante as férias. Alguns dias depois fiquei sabendo quemeus familiares davam-me remédio sem o meu conhecimento e,como viajei sozinho, esta atitude desleal não pôde continuar. Comisso, o meu físico começou a ficar livre da contaminação e da pri-são química. Aqui estava a explicação da minha melhora.

Procurei então o psiquiatra espírita e médium Dr. MMM.Pois raciocinei assim: “Já que estou pagando a um psiquiatra, émelhor que vá a um psiquiatra espírita, pois assim posso apren-der mais sobre mediunidade e espiritismo kardecista”. O Dr.MMM me falou algo, que muito me decepcionou: “Como vocêveio aqui, é porque a ‘espiritualidade’ julga que você precisa de re-médios e por isso vou ter que receitar para você. Aqui sou psiquia-tra e não médium”.

Por orientação médica do Dr. MMM tomei “stelazine”, “to-franil”, “semap”, “haldol” e “akineton”. Aceitei ficar com o Dr.MMM até julho de 1983, pois este psiquiatra também era mé-

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Revelações

dium e, para mim, um grande conhecedor do assunto e podia meajudar muito. Como me enganei... e muito mesmo.

Mostrei para o Dr. MMM os meus primeiros escritos psico-grafados. Logo que os leu, disse-me: “Esse espírito é um engana-dor e depois que ele conquistar a sua confiança irá pedir para vocêagir errado. Ele não sabe nada”.

Com essa observação dele, notei claramente que também noplano invisível existe muita discórdia, confusão, inveja e despeito.

Em fins de abril de 1982 o meu chefe no trabalho falou emuma reunião que iria me despedir do serviço, pois não conseguiatrabalhar e a empresa não era de assistência social. Conversei como chefe e pedi a ele uns dias de prazo, pois iria tentar uma licen-ça médica junto ao INSS, já que não conseguia mesmo cumprir asminhas responsabilidades no trabalho, devido aos efeitos colate-rais dos remédios. No dia 25/05/1982 entrei de licença no INSS.

Em maio/82 fiz uma “sessão de sacudimento” com um mé-dium, que trabalha com a linha de candomblé. O preto-velho Be-nedito (um espírito) me aconselhou a continuar freqüentandoreuniões no Centro Oriente e como me orientou a reduzir as do-ses dos remédios, tomei a decisão de parar de tomar stelazine etofranil em junho de 1982. Pois vi e compreendi que também a“espiritualidade” não tinha a mesma orientação com relação aosremédios. Tenho também comigo uma receita mediúnica, do iní-cio de 1982, do espírito Joseph Gleber, por intermédio do mé-dium Dr. MMM, onde foi orientado para que eu continuasse to-mando remédio.

Logo que o efeito dos remédios terminou, voltei a sentir a li-gação mental com a espiritualidade. Em agosto/82, dentro daIgreja de Santa Tereza, na hora da missa, aconteceu um belo efantástico fenômeno mediúnico ou místico comigo e não existempalavras para descrever o que senti. Passei por experiências in-descritíveis. Vivi emoções tão intensas que escandalizariam qual-quer profeta bíblico. Uma voz me contou uma vida passada domeu espírito no início da Era Cristã. Essa revelação ou autoco-nhecimento me deu confiança plena e certeza que tinha uma mis-são importante a cumprir aqui na terra. Perdi completamente avontade de morrer, passando a ter uma imensa vontade de viver.

Em junho/83 estava tomando semap, receitado no início de1983, um comprimido por semana, e novamente parei de tomarremédio “no peito”, contra a orientação do psiquiatra-médium.Em julho/83 voltei a sentir a presença dos invisíveis, uns eramamigos e bons, outros inimigos ou despeitados. Durante uma mis-sa, na Igreja de Santa Luzia na Cidade Nova, sintonizou comigouma entidade com péssima vibração. Quando conversava com elaa minha boca ficava toda torta e, após dois dias, a EML viu o fe-nômeno e tive que voltar ao consultório do Dr. MMM, pois meusfamiliares não aceitavam que eu ficasse sem remédios.

Primeiro falei em particular com o Dr. MMM e disse para elemais ou menos assim: “Doutor, o senhor também é médium, sabemuito bem que existem espíritos em todos os lugares e também quesentimos a presença deles onde quer que estivermos, por isso, paraque eu consiga o meu equilíbrio, não posso tomar droga alguma.Quero o seu auxílio para ajudar os meus familiares a me entende-rem e a aceitarem que eu fique sem tomar remédios”.

Enquanto estava sozinho com o Dr. MMM ele nada falou co-migo e confiei nele, mas ele me traiu. Para mim, ele agiu com mui-ta desonestidade, muita falsidade e até com antiética médica, pois

apenas a EML entrou na sala, disse, dirigindo-se a ela: “O PBL pa-rou de tomar semap, agora terá que tomar remédio mais forte: hal-dol”. E virando-se para mim, perguntou-me: “Você toma?”.

Raciocinei rápido, tomei a decisão de nunca mais voltar ali eque não podia dizer ao doutor psiquiatra o que ele precisava ou-vir, pois assim pareceria mesmo “louco” para minha primeira es-posa. Minha primeira vontade era sair do consultório e ofenderao Dr. MMM com palavras, chamando-o de incompetente e quenem de amigo poderia chamá-lo. Mas reprimi o primeiro ímpetoe respondi para ele de pronto: “Tomo sim, doutor, pois Jesus disseque o que faz mal ao homem é o que sai da boca e não o que entrapela boca”.

Ele olhou para mim com os olhos arregalados e depois fezuma receita, que nunca foi usada, pois quando estava na rua, fa-lei: “Nunca mais voltarei aqui no consultório do Dr. MMM, poisperdi toda a confiança nele”.

Quando comentei com outro psiquiatra os fenômenos acon-tecidos em agosto de 1982, dentro da Igreja de Santa Tereza,oportunidade em que fiquei sabendo de uma vida passada domeu espírito, houve esse diálogo:

- “Quem você foi?”- “Bom, doutor, isso é uma coisa muito íntima. Não dá para fi-

car contando assim”. Tentei sair da armadilha, pois cai numa ara-puca.

- “Aqui é como um confessionário. O que você contar aqui, ficaaqui mesmo”.

Comentou o psiquiatra, fechando o cerco em cima de mim.Mesmo assim não contei o nome, mas disse apenas o grupo, aoqual pertenci num longínquo passado. Imediatamente senti a pre-sença de um amigo invisível, que fez efeitos físicos perto do meucotovelo direito, pois os meus cabelos num círculo com raio de 3cm ficaram eriçados. Mostrando o braço para o psiquiatra, disse:

- “É isso que falo com o senhor, doutor, veja aqui no meu braço!”- “O que é isso?” Perguntou espantado o Dr.- “Isso aqui, é porque tem um amigo invisível aqui, que não vejo

e nem o senhor, mas para ele dizer que está aqui faz isso comigo. Elequer saber quem fui há 2.000 anos atrás, pois disse para o senhorapenas o grupo e ocultei o nome”. Falei apontando com o dedopara o meu lado direito.

- “Porque isso acontece com você e não comigo?” Perguntou opsiquiatra.

- “O senhor, doutor, é que deveria me explicar e não eu. O se-nhor é que é o psiquiatra”.

- “Você daria um analista muito bom mesmo”. Arrematou opsiquiatra.

- “Realmente, neste campo, quero ajudar sim, doutor. Mas temuma condição, pois vou ajudar de graça, já que para o meu sustentovou usar do meu conhecimento de matemática”.

- “Aí você tira o meu ganha-pão!” Disse-me ele.- “Isso já não é problema meu, mas seu. Se o senhor quer real-

mente ajudar, então estuda muito mesmo, pois existe muita gentenecessitada, que não vai aceitar de graça”.

Freqüentei também reuniões no Centro Espírita Irmão Ma-teus, de março de 1984 a junho de 1988. Tive que parar porqueo dirigente da reunião não me compreendeu e nem aceitou a paz,o amor e o sentimento de unificação do “Velho Jó”. O mesmoaconteceu no Centro Espírita Bezerra de Menezes, em que estive

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de 1996 a 1998, onde também não foram compreendidas asorientações de PAZ PLENA e liberdade total do “Velho Jó”.

Em maio de 1994 aconteceu um fato mundial: a morte do ído-lo Airton Senna, que causou muita emoção no mundo inteiro eprincipalmente no Brasil. Vivi um fenômeno paranormal muitointenso mesmo e com a participação de outros, mas todos pude-ram extravasar suas emoções, menos eu, pois fiquei como o úni-co culpado por tudo que aconteceu no meu trabalho. Disseramque tentei dar dois socos num colega, que tentei agarrar outrapessoa pelos pés ao subir uma escada. Disseram ter visto isso, masfoi um fenômeno paranormal por parte deles, pois nada daquilotinha acontecido no plano físico, só tiveram ilusões. Ainda recebium castigo para ficar alguns dias em casa e meus familiares foramobrigados a me dar algumas doses de remédio sem o meu conhe-cimento. Tudo isso por ordem de pessoas que não queriam a vi-tória plena do bem, nem a PLENA PAZ na terra e a divulgaçãoda verdade, que liberta.

Bom, o que quero mostrar com esse trabalho e essas revela-ções é que mediunidade nunca se trata com remédios, que só po-dem ser usados como um paliativo por pouco tempo, mas princi-palmente com amor, compreensão, conhecimento, muita carida-de, muito estudo teórico e prático.

Que a luz, o amor, a sabedoria e a compreensão do mestre Je-sus possam envolver a todos os seres humanos na terra. Com essesentimento geral torna-se possível a construção do “Reino deDeus na terra”, como pedimos na oração do “Pai-Nosso”, ensina-da por Jesus de Nazaré.

Informações Complementares

Maurício Viotti Daker *

Idade: 54. Naturalidade: região das Vertentes, interior de Mi-nas Gerais. Residência: Belo Horizonte. Cor: branco. Estado ci-vil: casado, sendo que já foi viúvo. Profissão: ciências contábeis eadministração de empresas. Nível de educação: superior. Reli-gião: católica (seminarista por nove anos); hoje estuda outras re-ligiões, conhece o espiritismo, mas não se considera espírita.

Início do quadro mental em janeiro de 1980, com uma inter-nação psiquiátrica de curta duração, conforme descrito no auto-relato. Possui documentos médicos com os seguintes diagnósti-cos: 296.3 (13/5/82) e 295.6 (16/5/82 e 24/11/82).

Possui três filhos do primeiro casamento e dois do segundo.Relacionamento familiar muito bom.

Principal entretenimento: estudar religião. Teria relaciona-mento social adequado, amigos.

Trabalhou de 1969 a 1978 e de 1986 até hoje numa mesma fir-ma. Entre 1978 e 82 numa financeira, retirando-se com a licençamédica. De 1972 a 80 foi professor auxiliar na Faculdade deCiências Econômicas da UFMG.

Sempre foi auto-suficiente financeiramente, mesmo quandoafastado pelo INSS (embora com mais dificuldades).

Relato de primos, filhos de pais consangüíneos, com históriade internação psiquiátrica.

Atualmente, relata que não mais se sente “teleguiado” e semcontrole, pois entende os fenômenos que vivencia, discute e osexplica, é mais consciente. “Desenvolvi uma visão diferente combase na prática”, ou seja, com base nos fenômenos que lhe ocor-rem e que não dependem dele. Por exemplo, teria “interpreta-ções” adequadas para acontecimentos como a quebra de umaponta de lápis, ou para a mudança repentina de sua letra enquan-to escreve. Para suas interpretações e explicações, utiliza-se de es-tudos religiosos/mediunidade, metafísica, parapsicologia/para-normalidade, física, matemática e uma numerologia própria. Re-lata apresentar alterações motoras e dores, além de alucinaçõesauditivas e cenestésicas/táteis. As “vozes” agora seriam mais su-tis, “tenho uma defesa muito forte, entendo melhor”. Há muitonão estaria apresentando alucinações visuais, mas ainda poderá“ver tudo,” pois “o futuro pertence a Deus”. Lembra que visõesou ouvir vozes são fenômenos freqüentemente descritos na Bí-blia. Por vezes, escreve para autoridades eclesiásticas em busca dediálogo na compreensão de suas vivências.

Discussão do caso

Este é sem dúvida um caso extraordinário na medida em quese trata de um auto-relato de caso, algo muito raro em nossosdias. A comparação com o célebre caso Schreber é inevitável, tal-vez a mais famosa e detalhada auto-descrição de um quadro deli-rante até hoje escrita.1 Daniel Paul Schreber era um juiz da cortede apelação da Saxônia que foi internado algumas vezes em hos-pitais psiquiátricos entre 1884 e 1902. Em 1900, começou a escre-ver suas “Memórias de um Doente dos Nervos”, terminadas em1902 e publicadas no ano seguinte. As “Memórias” de Schreberforam objeto de análise de vários autores: Baumeyer, Niederland2

e, sobretudo, Freud.3 Foi diagnosticado por seu médico Fleshig epor Freud (que não o conheceu, somente analisou sua autobio-grafia) como portador de dementia paranoides, antigo termo krae-pelineano que corresponde ao que hoje denominamos esquizofre-nia paranóide. No entanto, o início tardio do quadro psicótico, aestrutura delirante complexa e o fato de não ter evoluído de for-ma deteriorante, são argumentos que permitem afirmar que oquadro clínico de Schreber esteve mais próximo de uma parafre-nia, termo hoje englobado dentro dos transtornos delirantes. Narealidade Kraepelin considerava a esquizofrenia e a parafreniacomo processos que não produziam uma demência completa (de-menz em alemão) mas sim uma espécie de “enfraquecimentomental” (verblödung).4

A idade de início é ainda uma das variáveis mais estudadas naesquizofrenia. Já está bem estabelecido que seu pico de incidên-cia nos homens é de 15 a 25 anos e nas mulheres 25 a 35 anos.5Embora se saiba que a esquizofrenia pode ter seu início fora dasfaixas etárias antes mencionadas, no caso em questão, o pacientePBL apresentou as primeiras manifestações psicóticas aos 34anos, isto é, fora da faixa esperada de idade de início da esquizo-frenia. Por outro lado esquizofrenia não significa necessariamen-te evolução deteriorante e a história de PBL fornece-nos evidên-cias contrárias a esta hipótese: voltou a trabalhar em 1986, seisanos após sua internação psiquiátrica, manteve um segundo casa-

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* Prof. Adjunto Doutor do Departmento de Psiquiatria e Neurologia daFaculdade de Medicina da UFMG.

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Revelações

mento, amigos, algo difícil de ocorrer em pacientes deterioradoscognitivamente.

Um início precoce é um fator de mal prognóstico em váriasdoenças mentais. No caso da esquizofrenia a idade de início pre-coce demonstrou ser um fator preditivo para o desenvolvimentode resistência ao tratamento neuroléptico.6 No caso de PBL po-der-se-ia contra-argumentar que se trata de uma “esquizofreniade bom prognóstico”, na medida em que o paciente apresenta al-guns dos fatores preditivos associados a uma evolução mais favo-rável (menos deteriorante): ser casado, ausência de história psi-quiátrica prévia, ausência de alterações prévias de personalidade,bom relacionamento social, antecedentes de bom desempenhoescolar e no trabalho, idade de início tardio.5

O relato de PBL apresenta trechos que sugerem um quadrode excitação (p.ex. “Sentia-me com um poder imenso e com co-nhecimentos totais”; “Sei que ia assustando cada vez mais as pes-soas. Era como se fosse um teleguiado, pois sabia o que fazia, masnão podia parar de agir e fazer escândalos”). Por outro lado, o pa-ciente recebeu o diagnóstico de 296.3 (depressão). Estaríamos narealidade diante de um transtorno bipolar com sintomas psicóti-cos? O pouco que sabemos de sua evolução não aponta para taldireção e, na descrição de sua situação atual, há a informação dapresença de um quadro delirante alucinatório persistente, sem re-missões, o que não seria esperado nos transtornos bipolares.

Penso que numa discussão de caso devemos adotar sempre aestratégia do Advogado do Diabo: procurar refutar a hipótese dodiagnóstico principal até o limite máximo, para que as evidênciasa seu favor tenham peso maior que o das evidências contrárias.Assim temos evidências neste caso de que se trata de um transtor-no delirante, e não de uma esquizofrenia, com relativa conserva-ção da personalidade. No entanto, há algumas evidências de sin-tomas maniformes e um diagnóstico anterior de depressão. O pa-ciente poderia ter recebido tratamento correspondente (antide-pressivos, estabilizadores do humor), mas só há a descrição deuso de antipsicóticos (Haldol®, Neozine®, Semap®‚) que, diga-sede passagem, quando interrompidos, levaram a um retorno dasintomatologia (“ ...em junho/83 parei de tomar remédio ‘no pei-to’.... em julho/83 voltei a sentir a presença dos invisíveis…”).

No caso dos transtornos delirantes a ocorrência concomitantede sintomas do humor não é novidade. Por exemplo, comentandoa história dos transtornos delirantes, Kendler chama atenção queEsquirol denominava “monomanias” quadros delirantes associa-dos a humor elevado e aumento das capacidades física e mental.7Mesmo o caso Schreber já foi interpretado como um transtornodo humor8 uma vez que o próprio Freud descreveu sintomas de-pressivos nas manifestações iniciais do caso.3 A própria CID-10admite que nos transtornos delirantes persistentes “sintomas de-pressivos ou mesmo um episódio depressivo bem marcado (F32.)podem estar presentes de forma intermitente...” (p. 96).9

No entanto, uma questão maior na discussão deste caso: a es-trutura do delírio do paciente PBL. Como já fora observado porvários autores, apesar de comprometidos, os pacientes delirantesapresentam-se relativamente preservados em outras áreas, o quetambém se evidencia no paciente objeto de nossa discussão. Paraexplicar tal fenômeno Esquirol cunhou o termo delírio parcialpara estes casos.7 Do ponto de vista da evolução, autores que ti-veram a oportunidade de dar seguimento aos pacientes descritos

por Kraepelin puderam observar que os que apresentavam a cha-mada paranóia, um transtorno delirante puro sem alucinações, ti-veram melhor prognóstico que os parafrênicos, que tendiam parauma evolução deteriorante em muitos dos casos.4

A estrutura delirante de PBL, descrita através do seu relato,não parece sistematizada, mas isto pode estar limitado pelos do-tes literários do paciente, que variam da mesma forma que o daspessoas sãs. A maioria de seus delírios são de caráter místico-reli-gioso, eivados por idéias de grandeza. Seu linguajar é facilmenteencontrado em pessoas que professam a religião espírita e quenada têm de delirante.

Há, portanto, uma grande influência cultural no delírio destepaciente e aqui surge uma questão, se quisermos classificá-lo deacordo com a nosologia ou a nosografia atuais: para CID-10, nostranstornos delirantes persistentes (F22) os delírios devem ser“claramente pessoais e não subculturais” (p. 96).9 Entendemosque o verdadeiro quadro delirante se caracteriza pela presença deum construto pessoal tão idiossincrático que não permite sercompartilhado com os outros. Para se ter uma idéia de um delí-rio cuja construção é pessoal citamos o que Schreber escreveu aum determinado ponto de sua obra:

“A capacidade de interferir deste modo sobre os nervosde uma pessoa é, antes de mais nada, própria dos raios divinos...Só posso encontrar a explicação para isso no fato de que o profes-sor Fleschig de algum modo se permitiu fazer uso dos raios divi-nos; mais tarde além do professor Fleschig, raios divinos tambémse puseram em contato com meus nervos... Assim, relativamentecedo, esta interferência teve lugar na forma de uma coação a pen-sar...” (pp. 68-69)2

O delírio de PBL está longe de ser algo tão elaborado, cons-truído à partir de uma teoria pessoal, como fizera Schreber. Poroutro lado surge também uma contradição se quisermos classifi-car este paciente dentro dos critérios dos “transtornos delirantes”da DSM IV, pois nestes casos os delírios devem ser “não bizarros”como ocorre na esquizofrenia. A idéia de “bizarria” na DSM IVé derivada do conceito de plausibilidade: assim é considerado bi-zarro um delírio onde uma pessoa afirma que “...uma pessoa re-moveu meus órgão internos e colocou os órgãos de outra pessoasem deixar qualquer cicatriz” e como não bizarros aquelas situa-ções plausíveis de ocorrência na vida real, tais como “ser seguido,envenenado, infectado, amado à distância, enganado pela esposaou amante” (pp. 296-297).10

Por estes critérios os delírios de Schreber são francamente bi-zarros e os de PBL nem tanto: um dos médiums que o atendeuchegou a afirmar que ele não tinha doença alguma, fornecendouma explicação apropriada dentro de uma certa cultura, compar-tilhando de suas idéias.

Summary

Presentation of a case by the own patient, a man that once was se-minarian and that has a high educational level. He presented psycho-tic symptomatology full of mediumistic revelations and was retiredfor some years. He describes in details his first symptoms and itsconsequences, as well as his via crucis through psychiatric treatments.Today he works and lives normally. He does not consider his sympto-matology as originated from disease.

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Key-words: Psychotic Disorder; Paranoid Schizophrenia; Paraphrenia; Delusional Disorder

Referências Bibliográficas

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10. American Psychiatric Association. Diagnostic and StatisticManual of Mental Disorders. 4th Ed. Washington DC: Ame-rican Psychiatric Association, 1994.

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OriginaisPSICOPATOLOGIA NOS QUADROS DEMENCIAIS PSYCHOPATHOLOGY IN CASES OF DEMENTIA

Adriana Brazão Pileggi *Marcelo Feijó de Mello **

Resumo

Os conceitos diagnósticos atuais são categoriais, as entidades clíni-cas são discretas, baseando-se na soma de sintomas. Um diagnósti-co é dado se o indivíduo preenche determinado número de sinto-mas preestabelecidos. Ao aumentar a concordância do diagnóstico,compromete-se sua validade. Relatamos um caso complexo, ondevários fatores clínicos estão presentes. A sintomatologia apresenta-da pela paciente tem, dessa forma, peculiaridades que tornam árduaa tarefa do diagnóstico categorial. Os autores questionam a utilida-de dos conceitos diagnósticos vigentes em orientar a terapêutica ea pesquisa em neurociências e mostram possíveis opções para o ra-ciocínio clínico.

Palavras-chave: Psicopatologia; Demência; Depressão; Catatonia;Antipsicóticos; Antidepressivos

A riqueza da clínica psiquiátrica deriva da complexidade dopsiquismo humano. Este como resultado da interação entre cor-po, cérebro e ambiente. Os estudos de neurociência vêm mos-trando as relações entre cultura (ambiente) e funcionamento ce-rebral; como exemplo podemos citar a ação da psicoterapia nofuncionamento cerebral através de estudos de ressonância mag-nética funcional. Assim é o paciente psiquiátrico, que apresentaseus sintomas marcados por características de sua maneira de ser,sua cultura, sua educação; ainda possíveis agressões que o seu cé-rebro possa sofrer durante a vida através de drogas psicoativas,doenças sistêmicas e, ainda mais, pelas vivências. Não são inco-muns os pacientes que se apresentam com histórias das mais com-plexas e longas. A tarefa do psiquiatra é a de caracterizar os sin-tomas em patológicos ou não. Em caso afirmativo, deve estrutu-rar um diagnóstico que possa levar ao tratamento e à melhora dopaciente.

Os diagnósticos psiquiátricos atuais1,2 são categoriais, ou seja,indicam entidades clínicas discretas, com base na soma de crité-rios. Essa formulação pode ser problemática em casos com sinto-matologia complexa e multiplicidade de fatores etiológicos.

Relatamos um caso clínico cujo espectro sintomático varia dadepressão à demência, passando por aspectos diversos como mal-formação vascular cerebral e uso crônico de benzodiazepínicos.

Neste exemplo, verificamos a importância da elaboração de umdiagnóstico que avalie os sintomas na base do contexto em queele se dá, procurando conhecer o significado do mesmo e a par-tir disso elaborar o tratamento.

Caso Clínico

Identificação

Paciente do sexo feminino, branca, 75 anos, viúva, natural eprocedente de São Paulo, católica, sempre trabalhou em casa.

Queixa e duração

Alterações de comportamento há um ano e meio.

História da Moléstia Atual

Segundo relato da filha, há um ano e meio passou a ficar de-sanimada, pouco ativa, deixou de participar da rotina da casacomo antes fazia. Não tinha vontade de cozinhar, precisava serlembrada para se alimentar e tomar banho. Passava a maior par-te do tempo muda, sentada, rezando. Fazia preces para os santos,e também para o marido e pais já falecidos. Começou a apresen-tar comportamento estranho, perguntando muitas vezes a mesmacoisa, preocupando-se com um pequeno hematoma que lhe apa-receu no braço. Foi levada pelos familiares ao hospital, sendo me-dicada com haloperidol e encaminhada para tratamento ambula-torial. Iniciou acompanhamento com neurologista, usando regu-larmente haloperidol. Como permanecia hipocinética e pouco co-municativa, passou a ser medicada com nortriptilina 25 mg aodia. Mostrou alguma melhora, já não apresentava quadros ondeparecia ausente, porém permanecia apática, calada, rezando amaior parte do tempo.

Há três meses o quadro se modificou. Passou a ouvir vozes detenores, que costumava escutar quando criança, logo após ouvir omarido falecido e Jesus. Pensava na necessidade de redimir-se depecados cometidos ao longo de sua vida realizando tarefas paraDeus; dizia também que iria mudar-se para uma casa logo ao ladoonde estava e que lá conviveria com todos os seus parentes faleci-dos. Foi encaminhada então ao psiquiatra e iniciou tratamentocom tioridazina, que fez uso durante 15 dias, sem melhora.

Uma semana depois desenvolveu quadro catatoniforme, sen-do levada ao hospital e medicada com haloperidol injetável, com

* Residente do segundo ano da Residência de Psiquiatria doHospital do Servidor Público Estadual “FMO” ** Psiquiatra do Hospital do Servidor Público Estadual “FMO”

Endereço para correspondência:Adriana Brazão PileggiAv Ibirapuera 98104029-000 - São Paulo - SP

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remissão deste por poucos dias, logo retornando ao estado cata-toniforme. Foi então medicada com venlafaxina 187,5 mg ao dia,que levou novamente à remissão.

A venlafaxina continuou a ser administrada, porém a pacien-te respondeu com piora do quadro delirante e grande exaltaçãopsíquica. Optou-se por trocar a medicação e iniciou-se uso de tioridazina 300 mg ao dia. A sedação impediu a manutenção des-se tratamento e obteu-se estabilização do quadro com risperido-na 6 mg ao dia. Inicialmente, houve progressiva diminuição do in-vestimento afetivo no delírio, assim como diminuição da intensi-dade do volume das alucinações auditivas.

Antecedentes Pessoais

Evolução normal sem problemas de desenvolvimento, escola-ridade ou profissão até o casamento. Casou-se aos 23 anos e tevedois filhos. No puerpério de seu primeiro parto apresentou alte-ração do comportamento, porém não foi avaliada por médico es-pecialista.

Há 23 anos procurou psiquiatra, pois vivia conflito conjugal eapresentava comportamento de autoflagelação. Iniciou nessaépoca uso rotineiro de benzodiazepínicos.

Fez tratamento neurológico, em uso de anticonvulsivantespor “crises de ausência”. Nessa época fez EEG, que acusou focoirritativo em região temporal direita, e arteriografia, que mostroumalformação vascular cerebral.

Há 20 anos foi mastectomizada por neoplasia de mama, fezseguimento com quimioterapia e teve alta. É hipertensa e usa diu-réticos com regularidade.

Reside com a filha. O marido faleceu há nove anos. É definidapela família como perfeccionista e negativa, apesar de ser muitoamável com os familiares. Nunca foram observadas mudanças cí-clicas em seu humor, tampouco quadro semelhante ao atual.

Exame do Estado Mental

No momento do exame encontrava-se em boas condições dehigiene e alinho. Consciente, orientada auto e alopsiquicamente.Atenção voluntária prejudicada. Memória discretamente prejudi-cada (a paciente, inclusive, queixava-se de “falhas de memória”),pareciam ocorrer lacunas mnêmicas. O pensamento tinha o cur-so levemente lentificado, com conteúdo delirante. Alucinaçõesauditivas. No início apresentava idéias de culpa e de punição. Po-rém, ao longo do tempo essas idéias passaram a ser de grandeza;acreditava ser a eleita de Deus.

O discurso muitas vezes era incoerente, respondia a qualquerpergunta com qualquer resposta, não se importando com o quehavia dito pouco tempo atrás. Esse padrão de resposta pareciapreencher as lacunas mnêmicas. O humor não se fixava em nen-hum dos pólos, mostrava-se apática. O pragmatismo estava pre-judicado.

Hipóteses Diagnósticas

Os principais diagnósticos diferenciais aventados foram: de-mência, depressão ou melancolia delirante.

Tomando como base a soma de sintomas, poderíamos fazer o diagnóstico a partir dos critérios definidos pela CID-10(Tabelas 1 e 2).1

Evolução

No decorrer de um ano de seguimento notamos importantedeterioração das funções cognitivas. Durante esse período teveque ser reinternada por quadro de delirium associado a infecçãourinária.

Atualmente, é incapaz de manter atividades primárias, comohigienizar-se e não apresenta mais idéias delirantes. Permanece,porém, com alucinações auditivas representadas por sua própriavoz que “repete” os movimentos que faz.

Discussão

Como podemos observar, a mesma paciente preenche crité-rios para os dois diagnósticos, a alteração do humor poderia serdevido a um quadro associado ou parte do quadro demencial.3Poderíamos admitir que se trata de comorbidade, mas será queisso realmente acontece com a paciente? A depressão em pacien-tes demenciados teria a mesma fisiopatogenia que a que acometeindivíduos não demenciados? Existem estudos com resultadoscontroversos quanto à possibilidade da depressão ser um pródro-mo da demência ou coexistir com as fases iniciais do processo de-mencial. Existem autores que observam a concomitância da de-pressão com a demência, sendo que esse subgrupo de pacientesconstituiria um subtipo de doença. Por exemplo: o desenvolvi-mento da depressão na demência estaria associado com a degene-ração do locus ceruleos e substância negra.4

No que a comorbidade pode nos ajudar na clínica? Devemossomar as estratégias terapêuticas de cada doença, não consideran-

Tabela 2 - Critérios para episódio depressivo grave com sintomaspsicóticos.

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- Presença de demência definida como declínio tanto damemória quanto do pensamento, o que é suficiente paracomprometer atividades pessoais da vida diária...

- Início insidioso com deterioração lenta...- Ausência de início súbito ou de sinais neurológicos focais...

Pode-se ainda incluir no diagnóstico um subtipo: outros sin-tomas, predominantemente delirantes.

Tabela 1 - Critérios para a demência de Alzheimer

- Humor deprimido, perda de interesse e prazer, fatigabili-dade aumentada.

- Concentração e atenção reduzidas.- Idéias de culpa e inutilidade.- Sono perturbado.- Apetite diminuído.- Delírio inicialmente congruente com o humor.

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Psicopatologia nos quadros demenciais

do que possam estar acontecendo mecanismos muito diversos doque quando estes quadros ocorrem isoladamente?

Existe uma valorização da perda mnêmica para o diagnósticode demência, mas, afinal, o que é memória?

Atualmente, a memória tem sido estudada como módulos lo-calizados em diferentes regiões do cérebro, que são capazes de re-ter e processar informações. As sinapses seriam responsáveis pe-las ligações entre os neurônios e, portanto, pela passagem e arma-zenamento das informações. Divide-se a memória em declarativaou explícita e não declarativa ou implícita. Esta ainda subdivide-se em não-associativa (habitualização, desabitualização e sensibi-lização) e associativa, baseado nos estudos de Pavlov.5 Essa visãode memória tem como base a observação de que lesões seletivasno cérebro podem resultar em um prejuízo severo em uma formade memória sem afetar outras capacidades de aprendizado.6 Nãodeve-se ignorar os estudos realizados com base nessa premissa.Porém, a “localização”da memória talvez seja uma forma didáti-ca de estudar o assunto e não obrigatoriamente retrato da realida-de neurofisiológica. Dentro das divisões propostas, fala-se de 5sistemas de memória, dentre eles memória episódica e semânti-ca.7 Exemplificando, lembrar-se de uma visita específica a Paris éresponsabilidade da memória episódica e saber que Paris é a ca-pital francesa é tarefa da memória semântica.7 Aqui pode-se cons-tatar que a visão localizacionista não traduz a realidade, pois paraa experiência fazer sentido para o indivíduo é necessário que osistema esteja funcionando em um continuum, onde o resultadonão é simplesmente a soma das realizações dos diferentes “tipos”de memória. Em nível da sinapse, chama-se de memória o cami-nho que se estabelece entre os neurônios ao longo do tempo eatravés das experiências.8 A lembrança seria criada pela inclusãoda vivência no sistema de memória. Não regiões específicas, masprocessos específicos: ativação de uma rede neuronal e mentalque permita resolver certos problemas. Assim, a memória é co-nhecida como uma qualidade da vivência. Seria uma “subjetiva-ção” do processo, no sentido de implicar não somente o efeito doestímulo imediato, mas também o Eu.8

Pensamos em demência como a incapacidade de organizar,estabelecer ligações identificadoras e julgar dados. “A demênciaprejudica o processo de informações. Zonas de esclerose, placassenis e alterações neurofibrilares alteram a atividade dos sistemasque permitem tomar conhecimento das situações e operar comelas... O demenciado não tem mais a consciência de seu próprioEu, que identificava os estímulos, lhes dava sentido, determinavarespostas. As modificações histológicas e bioquímicas que afetamo cérebro fazem com que o doente não tenha mais sua própriacontinuidade...”.8 Haase et al9 analisam a questão do diagnósticoclínico, relacionando-o aos achados neurobiológicos na doençade Alzheimer e concluem, após ampla exposição de experimen-tos que “o processo patológico vai gradualmente, por meio de múl-tiplas desconexões anatômicas e funcionais, desintegrando o subs-trato neurobiológico da atividade cognitiva e em última análise, daprópria individualidade”.

A paciente foi então diagnosticada como portadora de quadrodemencial, por apresentar perdas progressivas e incapacidade deestruturar, organizar tanto estímulos internos como externos. Emconseqüência disso, perde a capacidade de comunicar-se com ooutro. Neste campo surge o delírio.

O delírio como perda da lógica. A lógica como instrumentode comunicação de difícil aquisição (ao redor dos 10 aos 12 anosde idade, Piaget10). Instrumento de difícil aquisição que permiteo entendimento entre pessoas.11 A lógica estrutura o modo de co-municação e é desenvolvida pela interação. Ela é adotada porqueseu uso permite a comunicação, o entendimento e a realização deobjetivos. O pensamento lógico abrange o indivíduo, os objetos eas pessoas com quem se relaciona. O colapso da lógica pode ocor-rer em conseqüência de experiências fracassadas que não justifi-cam o uso desse instrumento novo e frágil de comunicação.11 Nocaso de nossa paciente, as informações lacunares, incompletas,mal estruturadas, devido as alterações biológicas e psicológicascausadas pela demência, levam a perda da lógica e a liberação deidéias delirantes. A perda da lógica poderia ocorrer quando a ca-pacidade de comunicação passa a não ser tão eficiente, seguindoa experiências fracassadas para obtenção das necessidades do in-divíduo, a lógica é então abandonada.

A boa resposta ao neuroléptico, dentro deste ponto de vista,seria atribuída ao fato de que este atua inibindo a neurotransmis-são, ainda que seletivamente, e isso talvez seja benéfico no senti-do de apaziguar possíveis áreas hiperativas, incapazes pelas pró-prias alterações neurobiológicas causadas pela doença de organi-zarem o fluxo de seus estímulos. O uso de antidepressivos estimu-laria a atividade neurofisiológica, dificultando ainda mais a orga-nização cerebral.

Repensamos os conceitos para poder entender melhor estapaciente. Por vezes, deparamo-nos na clínica com dificuldadesem adequar um diagnóstico para um paciente. Nessas situações aindicação terapêutica também é dificultada pela falta de referen-cial mais seguro. O diagnóstico de depressão não nos ajudou,uma vez que o uso de antidepressivos levou a piora do quadro.Poderia-se argumentar que os quadros depressivos com sintomaspsicóticos respondem mal a essas medicações quando utilizadasisoladamente. O diagnóstico de comorbidade também não foiutilizado, pois somaria os diagnósticos e os tratamentos, sem, po-rém, levar ao entendimento do caso e servir para a indicação te-rapêutica.

Nossa opção, na clínica, é procurar realizar diagnóstico etio-patogênico e fazer as indicações terapêuticas a partir deste. Odiagnóstico por soma de sintomas, apesar de ser um avanço,principalmente em termos de confiabilidade, cria uma lacunaquando da indicação terapêutica de casos complicados e multis-sintomáticos.

Summary

The current diagnostic concepts are categorical; the clinical entitiesare discrete, basing on the sum of symptoms. A diagnosis is given ifthe individual fills out certain number of symptoms. As the diagnos-tic reliability increases, the validity decreases.These categories inclu-de under the same name heterogeneous pictures, not taking privatesubjects.The authors describe a complex case, that presents severalclinical factors, what turns arduous the task of categorical diagnosis.Through this case report the authors question the usefulness of thecurrent diagnostic concepts in guiding the therapeutics and the re-search in neuroscience and they show possible options for the clini-cal reasoning.

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Key-words: Psychopathology; Dementia; Depression; Catatonia;Antipsychotics; Antidepressants

Referências Bibliográficas

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MUSICOTERAPIA E PSIQUIATRIA: UM ESTUDO DE CASOMUSIC-THERAPY AND PSYCHIATRY: A CASE STUDY

Bianca Bruno Barbara *Clara Duarte *Heloísa Cardoso de Mello *Nelson Goldenstein **

Resumo

O tema do presente trabalho se refere ao uso da musicoterapiacomo instrumento acessório no manejo clínico de pacientes psicó-ticos graves. São relatadas reflexões desenvolvidas a partir do pro-cesso musicoterápico de um paciente esquizofrênico durante o anode 1997 no Hospital-Dia do Instituto de psiquiatria da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro/ IPUB-UFRJ. Os autores procuram conci-liar criticamente dados quantitativos com estudo psicopatógico qua-litativo. Elaboram gráfico que mostra o perfil de expressividade dopaciente no processo musicoterápico, sendo que os diferentes níveisde expressão parecem contextualizar a vida de relações. A musico-terapia pode contribuir interdisciplinarmente para a melhora da qua-lidade de vida desses pacientes.

Palavras-chave: Musicoterapia; Psicose; Esquizofrenia

O presente trabalho pretende formular considerações a pro-pósito do recurso da música como ferramenta clínica para os qua-dros psicóticos graves. Para tanto, desenvolvemos reflexões sobrea passagem de um jovem esquizofrênico pelas atividades de mu-sicoterapia do Hospital-Dia do Instituto de Psiquiatria da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ), durante o anode 1997.

Partimos do pressuposto de que a psicose é, apenas, o fenô-meno universal do adoecer psíquico e que todas as manifestaçõesparticularmente associadas aos mecanismos primários de cisão serevelam fenômenos específicos dos transtornos esquizofrênicos.Dessa forma, parece-nos plausível verificá-los nos mais diversoscampos das atividades, como nas construções verbais, nos deta-lhes do comportamento de uma maneira geral e, supostamente,nas representações psíquicas do próprio corpo. Enfocando essapreocupação psicopatológica, propusemo-nos investigar a possi-bilidade de aliar o movimento da dança com a música, buscandoresponder que tipo de benefício terapêutico poderia ser alcança-do. Não seremos ingênuos em afirmar que nossos esforços eram,

desde o início, isentos de intenções. Em realidade, pretendemosencontrar instrumentos capazes de promover maior organizaçãodas funções psíquicas e, ao dirigir nossas reflexões para a práticaclínica, avaliar em que medida a musicoterapia (no caso, aliada aomovimento e a dança) pode funcionar como elemento reorgani-zador para esse tipo de paciente.

Sob o ponto de vista metodológico, aplicamos a musicoterapiainterativa,1 algumas técnicas de improvisação musical livre, impro-visação musical eventualmente orientada e recriação musical.2

Essas atividades foram desenvolvidas com um grupo de pa-cientes adultos que frequentava o Hospital-Dia durante o citadoano, composto, em média, de seis pacientes atendidos semanal-mente em atividades com duração de uma hora. As sessões acon-teciam em ampla sala aparelhada com diversos instrumentos mu-sicais, onde os pacientes eram atendidos por três pessoas: duascoordenadoras e uma observadora, esta última com a tarefa deelaborar os relatórios das atividades.

Caso Clínico

Apresentaremos o paciente, aqui denominado Carlos, brasi-leiro, natural do Rio de Janeiro, nascido em janeiro de 1962, ca-tólico, solteiro, branco, grau de instrução primário, inativo, resi-dindo com os pais e sendo o terceiro de uma prole de três.

O fato de sua mãe ser pianista profissional pareceu-nos, desdeo princípio dos atendimentos, expressar uma relação peculiar en-tre ambos dentro da trama familiar. Segundo ela, Carlos “semprese mostrou ingênuo, tendo características femininas desde criança”(sic). A nós, o que mais chamou a atenção foi o comportamentomarcadamente pueril e meigamente delicado, muito embora as-pectos femininos também pudessem ser evidenciados. Em nossosesporádicos e fugazes contatos com a mãe, pudemos perceberuma evidente preocupação em protegê-lo, como alguém extrema-mente frágil e indefeso. Impressão, aliás, corroborada pela equipe.Algumas vezes supomos que, de certa forma, acusava o maridopelo problema do filho. “Ele nunca aceitou seu gosto pela música edança”, disse-nos certo dia. Dessa forma, foi matriculado pela mãe,aos 16 anos, no curso de ballet clássico do Teatro Municipal doRio de Janeiro e atuou profissionalmente, como bailarino, até os21 anos, quando, segundo informações colhidas, adoeceu.

Nosso primeiro contato com sua história clínica se deu a par-tir do prontuário da instituição, muito embora já estivéssemos

* Musicoterapeuta** Psiquiatra. Cordenador do Hospital Dia do Instituto dePsiquiatria da UFRJ

Endereço para correspondência:Nelson GoldensteinHospital-Dia / IPUB - UFRJAv. Venceslau Braz - 71 FundosBotafogo - Rio de JaneiroE- mail: [email protected]

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mantendo atividades musicoterápicas há semanas. Em realidade,até o momento da procura do prontuário, encontrávamos dificul-dade em imaginar a história daquela pessoa, quem seria ele, umavez que seu estado psíquico mal permitia que pudéssemos enten-der o que falava. Inicialmente, eram raras as aproximações de for-ma espontânea e, quando o fazia, mostrava-se tímido, ambivalen-te e fragilmente assustado. Quando falava, fazia-o baixo e incom-preensivelmente. Quando, já com um pouco mais de intimidade,pedíamos que repetisse alguma frase, sorria, aparentemente en-vergonhado, e novamente voltava a murmurar frases sem sentido,palavras com significação inusual acompanhadas de mímicas eentonações incoerentes entre si. Surpreendia como, apesar de nosparecer desconexa, a tonalidade de suas comunicações denotavaperfeita harmonia consigo mesmo. Parecia não perceber que nin-guém compreendia o que falava.

A primeira internação data de 1990, no próprio IPUB. Verifi-camos que, na ocasião, o boletim de entrada apontou para o diag-nóstico de esquizofrenia simples. Uma segunda internação, em1993, indicou o mesmo diagnóstico. Em 1997, na terceira, encon-trou-se a categoria hebefrenia. Seria esta uma evolução da primei-ra, ou nomes diferentes para uma mesma condição clínica?

Muito embora a história pessoal não seja o objeto do presen-te estudo, queremos apontar para algumas questões paralelas. Abusca de prontuários levanta, sempre, algumas reflexões. Nessasocasiões, é comum deparar-nos com dificuldades de aproxima-ção, não raro intransponíveis. Em sua grande maioria, os regis-tros contêm apenas aquilo que justifica a intervenção daqueleque está relatando os dados em questão. Tal critério de elabora-ção, inevitavelmente comprometido, revela diversas dificulda-des, uma delas relacionada à impossibilidade de abordagem decertos problemas que extrapolam a visão clínica daquele que ela-borou o registro em estudo. A conclusão possível é que o pron-tuário serve como documento, apenas da forma peculiar pelaqual o profissional foi capaz de entender o objeto de seu traba-lho, na ocasião das anotações. Sabidamente, a bagagem teóricado entrevistador, seus conceitos e preconceitos, característicasde personalidade e até sua própria história de vida pessoal, sãoelementos determinantes na construção do material clínico des-crito em prontuário. Se considerarmos como válido o pressupos-to de que, em nome de uma pretensa exatidão empírica, a clíni-ca descritiva quase não reconhece os aspectos subjetivos relacio-nados ao jogo dinâmico das manifestações esquizofrênicas, mes-mo independente de especulações etiopatogênicas, não encon-tramos dificuldades para evidenciar sua ausência na maioria dosregistros de prontuários. A definição que cada profissional pos-sui a respeito do que é sintoma, por exemplo, mostra-se capaz deinfluenciar a avaliação das manifestações sintomáticas e, ao serreconhecido sob diferentes configurações, cada sintoma podepassar a compor igualmente outros complexos sintomáticos.Dessa forma, a investigação de prontuários nos revela o princi-pal problema levantado por aqueles que não reconhecem a im-portância das evidências de sofrimento ou prazer, nem sempreverbalizadas, porém invariavelmente disfarçadas (estudos esta-tíscos demonstram altíssima incidência de suicídio, tentativas desuicídio e comportamentos auto-agressivos entre pacientes es-quizofrênicos).3 Somos, nesses casos, incapazes de reconhecer a

condição humana desses pacientes, muito embora seja esta acondição que os fazem buscar nossos serviços.

Carlos chegou ao setor de musicoterapia encaminhado poruma psicóloga. Quando verificada sua história pessoal e constata-da sua experiência como bailarino, a coordenadora de musicote-rapia o encaminhou ao grupo aqui referido.

Sem precisar de maiores detalhes sobre os dados pessoais dopaciente para o presente estudo, detivemo-nos neste tópico ape-nas a pretexto de apresentar, en passant, algumas de nossas refle-xões a propósito das anotações de prontuário.

Preocupados, entretanto, em estudar as observações clínicasobtidas, plenas de aspectos subjetivos e pouco consistentes doponto de vista quantitativo, procuramos transformar estas obser-vações em dados mensuráveis, referidos pela literatura como“empiricamente” palpáveis.

Para avaliar a atuação de Carlos no decorrer das sessões foielaborado um gráfico que pudesse mostrar o perfil de seu proces-so musicoterápico, no que diz respeito a expressividade. Comisso, confeccionamos um critério classificatório dimensional, ca-paz de descriminar quatro níveis/dimensões diferentes do mesmoproblema.

Algumas palavras preliminares, entretanto, para que possa-mos justificar semelhante escolha de avaliação. Em primeiro lu-gar, a conjugação de esforços em construir uma teoria “consisten-te”, baseada em dados empíricos, efetuada pela psiquiatria mun-dial ao longo dos últimos 20 anos, tem privilegiado estudos quan-titativos em detrimento dos estudos qualitativos. Se, por um lado,reconhecemos nesse esforço a preocupação de se evitar excessosespeculativos, por outro, verifica-se hoje uma verdadeira escassezde trabalhos clínicos voltados para o estudo psicopatológico. As-sim, buscar uma conciliação entre a firmeza da experiência vividacom o alcance das suposições imaginadas tem marcado nossaspreocupações clínicas. Em segundo lugar, dimensionar diferentesníveis de expressão parece-nos o mesmo que contextualizar avida de relações, problema de primeira grandeza no universo dasmanifestações esquizofrênicas.

O gráfico (Figura 1) determina diferentes níveis de funciona-mento a cada sessão. Para sua compreensão, é preciso esclarecercomo se define cada nível.

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N�meros de sess�es

N�mero das Sess�es x Expressividade

N�veisdeexpressividade

Figura 1 - Gráfico com os níveis de expressividade do paciente aolongo das sessões

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Por expressividade entendemos energia de expressão.*Definimos o nível 1 de expressividade como: ausência comple-

ta de iniciativa e expressão. Essa é a fase em que o paciente pare-ce indiferente, apático ou superficial; demonstra rigidez nos mo-vimentos; não toca e não canta.

O nível 2 se caracteriza pela pouca expressividade sonoro/mu-sical e corporal, comprometimento parcial do pragmatismo, lingua-gem verbal incoerente e empobrecida. Neste nível, o paciente esco-lhe um instrumento apenas quando solicitado e toca sem interes-se, com pouco investimento no que produz. Faz comentários con-sigo mesmo, sem sintonia com o ambiente, utiliza-se de neologis-mos e apresenta verbigeração. Apresenta dificuldade de verbali-zar sentimentos e sensações, movimenta-se timidamente.

No nível 3 há aumento na expressão sonoro/musical e corporal,com coerência e adequação da expressão verbal. Aqui, já estabelece“diálogos rítmicos” com os outros pacientes ou com as musicote-rapeutas. Descobre novos instrumentos e novas possibilidades detocá-los, parece experimentar sensações provenientes dessa des-coberta. Sugere frases para as improvisações musicais e explora oambiente, aumentando a movimentação do corpo no espaço.

O nível 4 corresponde a uma autonomia no “fazer musical”,aumento do repertório de movimentos corporais e ao uso da lingua-gem verbal mais clara e adequada. O paciente canta versos, impro-visando e recriando,** demonstra a graciosidade natural dos mo-vimentos com maior espontaneidade e utiliza melhor a fala parafazer comentários sobre si mesmo e sobre os outros.

O Processo Musicoterápico

Na primeira sessão que Carlos participou, a coordenadora dogrupo solicitou que cada participante desenhasse seus corposnuma folha de papel em branco, ouvindo ao fundo uma improvi-sação melódica em dó maior feita no piano. Tal proposta preten-deu caracterizar a expressão da imagem corporal, em desenho, decada paciente. Carlos desenhou dois pés em posição de balé clás-sico (Figura 2).

Ao final de cada desenho, a coordenadora sugeriu que cadapaciente escolhesse um instrumento musical que pudesse expres-sar pela forma, ou pelo som que produzia, o mesmo que fora de-senhado há pouco. Num determinado momento, Carlos escolheuum pequeno tambor e tocou.

Nas considerações sobre o que é terapêutico, supomos que odesenho da imagem corporal, bem como o ritmo produzido atra-vés do instrumento escolhido, tenham ligação com sua históriapessoal. Afinal, os pés são partes fundamentais no corpo de umbailarino e todo início de espetáculo é indicado por três sinais so-noros. Especulações dessa ordem podem ser reforçadas quandoreconhecemos que um de nossos comportamentos primitivosmais freqüentes é tornar o desconhecido conhecido. Quando assim o fazemos, dominamos o que não faz sentido e é desconhe-cido, questão nuclear nos processos de cisão dos processos psíquicos.***

A hipótese foi reforçada através de seu comentário seguinte:“É o início de tudo... o som da criação é... o som do meu corpo... odia... de hoje... não será... como ontem”.

Voltando à descrição dos diferentes níveis de nossa Figura 1,podemos perceber que, ainda no início de seu processo musico-terápico, Carlos parte do nível 2. Mesmo com dificuldade de ex-pressão musical, verbal e corporal, não observamos ausênciacompleta de iniciativa e expressão.

Nas duas sessões que se seguiram, Carlos começou a demons-trar aumento de sua expressão (primeira linha ascendente no grá-fico). Em um exercício corporal, onde os pés eram utilizados paraproduzir ritmos, ele utiliza o afoxé sob os pés, com movimentosdeslizantes e comenta: “Senti calor... está bom.........anti-depressi-vo......... o barulho do afoxé...... ficou alegre”.

Na quarta sessão, ele atinge o nível 3. O aumento de sua pro-dução sonoro/musical fica claro quando, ao chegar na sala daMusicoterapia, tira os sapatos sem qualquer solicitação da coor-denadora, dirige-se ao armário de instrumentos e pega o afoxépara, em seguida, colocá-los sob seus pés (repetindo os movimen-tos da sessão anterior), enquanto toca o tamborim. Sua movimen-tação corporal também é mais ampla, visto que dirige-se ao espe-lho e, olhando para sua própria imagem refletida, abre os braçosde maneira coreográfica.

Para facilitarmos a expressão de Carlos, valorizávamos toda equalquer manifestação sonora trazida por ele, demonstrando nos-sa aceitação através de espelhamentos rítmicos e musicando suasfrases, que eram também cantadas pelo grupo.

A sexta sessão tornou-se significativa porque foi a primeiravez que Carlos cantou uma melodia composta de vários versoscom pronúncia clara, coordenada, respeitando o ritmo e o senti-

* De acordo com definição encontrada no Dicionário Brasileiro de LínguaPortuguesa - Mirador.** Improvisação e recriação musical são técnicas musicoterápicas. Na primeira,o paciente toca e canta livremente, criando ele próprio o ritmo, a melodia e/oua letra (no caso das canções). A recriação musical é a utilização de composiçõesjá existentes com significados particulares para cada um que canta ou toca. É,entretanto, uma criação de outra pessoa.*** Nossa prática clínica indica que o medo de enlouquecer é, em realidade, o medo de perder a coerência e organização dos pensamentos, ainda que delirantes.**** Aberastury refere-se particularmente ao tambor. A enciclopédia francesaPleiade de Musique aponta a “sonaille” (espécie de afoxé primitivo) como oprimeiro instrumento que o homem criou. Trata-se de sementes amarradascom cipós aos tornozelos.

Musicoterapia e psiquiatria: um estudo de caso

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Figura 3 - Som de tambor tocado por Carlos

Figura 2 - O “corpo” de Carlos

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do das palavras. Está assim, caracterizada sua chegada ao nível 4de nosso gráfico. Cantando, dirigiu-se a uma paciente do grupo,como se agradecesse os comentários feitos sobre sua melhora:

“...é impossível não crer em ti,é impossível não te encontraré impossível não fazer de ti meu ideal...”

Nas três sessões seguintes, Carlos se manteve no nível 4, de-monstrando integração com o grupo, verificada no comentário fi-nal da oitava sessão quando, dirigindo-se a um paciente, disse:

“É sublime saber que você me viu...”

Nessa mesma fase, tocou o bloco sonoro muito mais livremen-te, ampliando sua movimentação de braço e tronco, diretamenteligada a maneira como produz sons nesse instrumento.

Com a entrada de uma nova paciente no grupo, na 10ª sessão,Carlos intimidou-se. Parecia sentir-se ameaçado pelo jeito contro-lador e dominador dessa paciente. Nesse sentido, um episódiobem expressivo, foi quando ela quis determinar como ele deveriatocar o metalofone. Nesta ocasião, chegou a retirar esse instru-mento de suas mãos, apesar de nossas intervenções. Além disso,Carlos passou a ser, constantemente, criticado por ela. Certa vez,levantou-se a hipótese de que o comportamento dessa pacientepoderia estar remetendo-o à mesma situação de reprovação e nãoaceitação já vivida com seu pai.

Durante algumas sessões seguintes se manteve calado e pou-co participativo (retorno ao nível 2 do gráfico). Esse período de“recolhimento” de sua expressividade, e conseqüente quebra desua crescente evolução, foi o que motivou nosso estudo. Mais queisso, foi fator de inquietação, levando-nos a refletir sobre possí-veis intervenções para evitar a estagnação do processo grupal.

Quando, na 17ª sessão, voltou a estabelecer diálogos rítmicoscom a coordenadora, demonstrou que sua participação no grupoestava novamente no sentido crescente, de acordo com o gráfico.

Consideramos que ele voltou a atingir o nível 4 (19ª sessão)quando dançou livremente em meio ao grupo, foi até a janela e ausou como barra, apoiando-se para exercícios de aquecimentopara as pernas. Acreditamos que, nesse momento, sua vivência nobalé apareceu claramente e de forma prazerosa. Voltando ao gru-po, sugeriu músicas, disse que queria tocar ao piano. Embora te-nha se aproximado, não chegou a tocar. Rodou, bateu palmas,deu piruetas e assobiou à vontade.

Até a última sessão considerada para o presente estudo(14/10/97), Carlos permaneceu se expressando ativamente pormeio de recriações, improvisações e movimentações corporais li-vres. Nesse período usou termos como “descobrir a vida”, mar-cando ativamente sua presença, fosse alongando o corpo, fosse le-vantando a cabeça e, ainda, movimentando-se com maior natura-lidade pela sala. Nesse mesmo dia foi ao piano e, espontaneamen-te, dividiu com a coordenadora do grupo e mais um paciente o mibemol 4. “Toquei a minha nota...”, disse. Nesse momento, não nosinteressava avaliar se o paciente estava apresentando ou não sin-tomas produtivos. Nosso objetivo era verificar de que forma suavida de relações melhorava, qualitativamente.

Consideramos, de alguma forma sintomático, que ao cantar-mos sobre o pai, em improvisação iniciada por outro paciente,Carlos tenha tocado o atabaque com força. Especulamos umapossível reação agressiva ao tema proposto em canto.

Através dos instrumentos musicais, pudemos sugerir uma lei-tura musicoterápica.

Os dois primeiros instrumentos escolhidos por Carlos, tam-bor e afoxé, são os dois primeiros instrumentos criados pelo ho-mem.****

Carlos passa então para um instrumento melódico rudimen-tar, o bloco sonoro – feito de cabaças e, posteriormente, para uminstrumento de metal (metalofone), introduzindo o cromatismo.

Numa sessão fecha o metalofone, dedilha sobre o estojo,como se antecipasse sua ida ao piano.

No momento em que se dirige ao piano e toca o mi bemol 4,a coordenadora faz um acompanhamento compatível (I,V,I - mibemol maior). Outro paciente vai também para o piano e toca nasteclas brancas. A coordenadora faz em dó maior - I, VI, II, V, I.Carlos sai do piano e começa a cantar o trecho da Figura 4.

Isso, provavelmente, mostra-nos sua inserção na harmonia.Referindo-se ao que a coordenadora havia feito no piano, pára ediz: “eu cantei aquilo”. Embora o paciente se mostrasse tantas ve-zes distante do contexto do grupo, esse evento ressaltou atençãoe interesse para uma nova situação que parecia prazerosa.

Os instrumentos postos nessa seqüência (tambor - afoxé - blo-co sonoro - metalofone - piano) indicam a passagem de instrumen-tos rítmicos para harmônicos, atravessando os melódicos. Essemovimento de trocas sugere, igualmente, um aspecto evolutivo.Do ponto de vista musicoterápico, consideramos que os instru-mentos rítmicos (com os quais iniciou as atividades) são mais pri-mitivos e seus estímulos sonoros não exigem processamento emnível cortical. Instrumentos melódicos pressupõem relação inter-valar entre sons, exigindo possibilidades mais amplas de escuta eprodução de sons em diferentes alturas. No final dessa hipotéticaescala progressiva estaria o piano, instrumento harmônico, capazde ampliar as possibilidades de sons simultâneos, exigindo maiorintegração cognitiva. Podemos dizer que houve, portanto, umaevolução gradativa em sua produção sonora, quando analisamosos elementos constitutivos da música: ritmo, melodia e harmonia.

Conclusão

No processo musicoterápico de Carlos observamos uma níti-da melhora em sua vida de relações, aqui revelada através do grá-fico evolutivo.

Nossas observações clínicas indicam que as melhoras obtidasatravés das atividades de musicoterapia ocorrem, particularmen-

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Figura 4 - Carlos canta

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Musicoterapia e psiquiatria: um estudo de caso

te, a partir da expansão das funções afetivas. Pensando nos dis-túrbios do afeto específicos dos transtornos esquizofrênicos,acreditamos que a musicoterapia facilite o resgate de trocas afeti-vas, tão prejudicadas nestas condições clínicas. Podemos obser-var, nos relatos das histórias clínicas dos pacientes, que essa trocadeixa de acontecer quando predominam os mecanismos de cisão.Inúmeras explicações são especuladas, dentre elas, a desconfian-ça e o medo em compartilhar um mundo que não mais reconhe-ce como sendo seu. O fazer musical compartilhado parece, nessesentido, funcionar como suporte para a formação de vínculos ecomo veículo para a energia de expressão tratada aqui.

“Partimos do princípio de que não há dúvida de que o pro-fissional de musicoterapia deve estar, além de capacitado,disponível para ir ‘musicalmente’ ao encontro do paciente eaceitar o fazer musical como discurso. Não só escutá-lo, mastocar com ele. Tornar-se cúmplice na experiência musical.Provocar e facilitar momentos de encontros onde a sensaçãode estar compartilhando os sons se apresenta... Através detécnicas específicas, o musicoterapeuta estimula expressõesnão-verbais dos pacientes com sons, músicas, gestos e dan-ças. A produção que se segue cria o campo de relações. Se acomunicação verbal nem sempre é estabelecida adequada-mente, trabalha-se, em musicoterapia, a expressão sono-ro/musical do paciente. Esta expressão sonora, seja por meioda voz, do corpo ou de instrumentos musicais, constituirá arelação terapêutica.”4

São várias as intervenções clínicas em psiquiatria. Todas têmem comum a preocupação com a reestruturação psíquica possíveldo indivíduo e com a qualidade de sua relação com o mundo.Acreditamos que a musicoterapia possa atuar interdisciplinar-mente para a melhora da qualidade de vida dessas pessoas.

“Somos, à vezes, desafiados por um som, impulsionados porum ritmo ou atraídos por uma melodia. Somos puxados pela

música para fora de nós mesmos e levados a interagir com ooutro, pelo prazer que nos causa fazer música ou partilharesta experiência.”1

Summary

The theme of the present paper refers to the use of the music-ther-apy as an accessory tool in the clinical care of severe psychoticpatients. The reflexions reported here were developed in 1997 during the music-therapeutic process of a schicophrenic patient atRio de Janeiro Federal University’s day hospital.The authors attemptto conciliate critically quantitative data with qualitative psyhopatho-logic study.They elaborate a graphic that shows the profile of expres-siveness of the patient in the music-therapeutic process, whereby dif-ferent levels of expression seem to correlate with socialization. Music-therapy can contribute in an interdisciplinary wayto the quality of life of this patients.

Key-words: Musical-Therapy; Psychosis; Schizophrenia

Referências Bibliográficas

1. Barcellos LR. Cadernos de Musicoterapia nº 2. Rio de Janei-ro: Enelivros, 1992.

2. Bruscia K. Cases Studies in Music Therapy. Phoenix-Ville:Barcelona Publishers, 1991.

3. Alec Roy MB. Psvchiatric emergencies. In: ComprehensiveTextbook of Psychiatry/ VI.

4. Kaplan Benjamin & Sadock editors. 6ª Ed. Vol 2. Baltimore,Philadelphia, Hong Kong, London, Munich, Sydney, Tokyo:Williams & Wilkins; 1995:1739-1734.

5. Bárbara BB, Cardoso de Mello HB, Gleizer GE, GoldensteinN. Considerações a propósito da comunicação psicótica: ouso da musicoterapia. II Encontro Latino-Americano de Mu-sicoterapia, 1998.

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UM CASO DE PSICOSE DE INÍCIO TARDIO: CONSIDERAÇÕES DIAGNÓSTICAS A CASE OF LATE-ONSET PSYCHOSIS: DIAGNOSTIC CONSIDERATIONS

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Antônio Lúcio Teixeira Júnior *Henrique Alvarenga-Silva *Adriana Camello Teixeira Huguet **Maria Goretti Pena Lamounier ***

Resumo

Os autores apresentam caso de psicose em uma senhora de 61 anossem déficits cognitivos. A paciente foi levada ao hospital psiquiátricodevido a agressividade com vizinhos, após vários anos sintomática esem tratamento. Descrita por seus cuidadores como uma pessoa tí-mida e sistemática, que nunca tivera relacionamentos íntimos ou na-morados.Aos 49 anos, a partir da morte de sua mãe, tornou-se mui-to isolada, evitando contato com outras pessoas e morando sozinha.Abandonou o emprego, passando a alimentar-se precariamente.Quatro anos mais tarde começou a apresentar, de maneira evidente,sintomas delirantes persecutórios e alucinações auditivas. Permane-ceu nesse quadro cerca de 10 anos até ser levada ao hospital. Na in-ternação é medicada com haloperidol 2,5 mg/dia, evoluindo com me-lhora dos sintomas psicóticos e da agressividade. São discutidas asatuais classificações diagnósticas de psicoses de início tardio.

Palavras-chave: Esquizofrenia de Início Tardio; Parafrenia Tar-dia; Psicose Tardia.

As psicoses de início tardio foram consideradas por Kraepe-lin como uma das áreas mais obscuras da psiquiatria.1 O diagnós-tico diferencial é geralmente difícil, pois inclui vários transtornosclínico-neurológicos e psiquiátricos.

Com o crescente envelhecimento da população e, portanto,com o aumento da incidência de casos de psicoses iniciadas emidades avançadas, torna-se ainda mais importante a capacidadede reconhecer e tratar adequadamente essas condições.

Psicose é um problema relativamente comum no idoso, aco-metendo cerca de 4% dessa população na comunidade.2 A com-binação de uma série de fatores contribui para a maior incidênciade sintomas psicóticos: o envelhecimento cerebral, déficits senso-riais (auditivo e visual) e cognitivos, doenças clínicas e isolamen-to social.3 Em geral, a agressividade e a agitação são as principaiscausas de encaminhamento de um paciente psicótico idoso aopsiquiatra.3

Freqüentemente, sintomas psicóticos não são notados em ido-sos, seja devido à presença de múltiplos problemas médicos, uso

de múltiplas medicações, ou mesmo por desinformação dos cui-dadores.3

Apresentamos a seguir um caso de esquizofrenia de iníciotardio.

Caso Clínico

Uma senhora solteira de 61 anos de idade foi trazida por vizi-nhos e policiais ao Hospital Psiquiátrico Galba Velloso, em agos-to de 1998, com a história de que se encontrava agressiva com osvizinhos, acreditando terem-lhe enfeitiçado. Freqüentemente, jo-gava pedra nos vizinhos, chegando, irritada, a bater a própria ca-beça contra o muro. Os vizinhos informaram que a paciente co-meçou a se comportar de modo diferente há cerca de 12 anos,após o falecimento da mãe. A partir dessa época, passou a morarsozinha e a evitar contato com outras pessoas. Cerca de quatroanos depois, então com 53 anos, abandonou o emprego numa fá-brica de macarrão. Passou a ficar o dia todo em casa, não permi-tindo a entrada de qualquer pessoa. Jejuava freqüentemente, con-sumindo principalmente chás de ervas do próprio quintal. Diziaque não podia sair de casa porque falavam mal dela no rádio, natelevisão e na rua. Passou a acreditar que uma de suas vizinhas fa-zia feitiços contra ela, tornando-se agressiva com a mesma.

Durante todos esses 12 anos de evolução dos sintomas a pa-ciente não procurou nenhum serviço médico ou psiquiátrico.Não havia também história de tratamentos médicos ou psiquiátri-cos anteriores. A paciente não era etilista, nem tabagista e nãoapresentava qualquer doença clínica geral.

Até os 15 anos de idade a paciente residiu na zona rural de ci-dade do interior mineiro com a mãe e os avós maternos. Não co-nheceu o pai. Trabalhou como empregada doméstica para umamesma família na área urbana de seu município natal dos 15 aos26 anos, quando, então, mudou-se para Belo Horizonte. Nestacapital continuou exercendo a profissão de doméstica por váriosanos. Posteriormente, empregou-se numa fábrica de macarrão,onde permaneceu cerca de 10 anos. Após abandonar esse empre-go, passou a depender financeiramente dos vizinhos.

Os informantes relatavam que a paciente fora sempre umapessoa sistemática, muito tímida com homens e que nunca tiveraum relacionamento íntimo ou namorado.

Sua mãe falecera por acidente vascular cerebral. Não há infor-mações sobre transtornos psiquiátricos ou neurológicos em suafamília.

* Residente do segundo ano da Residência de Psiquiatria doHospital das Clínicas da UFMG.** Residente do primeiro ano da Residênciade Psiquiatria doHospital das Clínicas da UFMG.*** Preceptora da Residência em Psiquiatria do Hospital dasClínicas da UFMG.

Endereço para correspondência:Hospital das Clínicas - UFMGAvenida Professor Alfredo Balena 11030130-100 - Belo Horizonte - MG

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Um caso de psicose de inÍcio tardio: considerações diagnósticas

À entrevista no hospital, queixava-se de que todos seus ossosestavam doendo e “enjoados”, explicando que as dores eram “in-flamações crônicas dos ossos por machucado no serviço”. Diziater abandonado o emprego na fábrica por causa dessas dores, ini-ciadas há 12 anos, e justificava: “não queria ganhar dinheiro da fir-ma sem trabalhar. Não queria aposentar por invalidez. Aí os vizi-nhos começaram a falar que eu não queria trabalhar para ficar co-mendo à toa em casa”. A paciente queixava-se dos vizinhos, espe-cialmente de uma mais próxima, e do médico que fizera a períciana época, que lhe teria negado a aposentadoria por invalidez. Di-zia: “O médico fez ruindade comigo, jogou espírito ruim em mim,espírito de bicheira”. Queixava-se também da sensação contínuade que os “espíritos cutucavam e mexiam o miolo da cabeça”,comparando a sensação com a de uma unha sendo cravada den-tro de sua cabeça. Também acreditava que os “espíritos” ouviamtudo o que falava através de um “aparelho”.

Apresentava-se ao exame inicial com a higiene preservada e oscabelos alinhados. Encontrava-se lúcida, orientada no tempo, noespaço e autopsiquicamente, normotenaz e normovigil, com com-portamento tranquilo e colaborativo. A memória estava preserva-da. Apresentava alteração da consciência do eu em oposição aomundo externo, caracterizada por irradiação ou difusão do pen-samento; alucinações auditivas e, possivelmente, cenestésicas, as-sociadas às sensações somáticas descritas. O pensamento apre-sentava-se com curso normal, idéias delirantes de cunho persecu-tório e somático. O discurso estava organizado, sem alterações delinguagem, com tom vocal monótono. O humor aparentava estarlevemente deprimido, além de hipobúlica e com baixa expressivi-dade afetiva. Nível de inteligência normal.

Os exames clínico e neurológico não apresentavam alterações.Exames laboratoriais mostraram-se normais (hemograma, urinarotina, VDRL, parasitológico de fezes, provas de função renal,hepática e tireoidiana, dosagem de ácido fólico e vitamina B12).Submeteu-se a tomografia computadorizada de crânio que evi-denciou hipotrofia cortical difusa compatível com a idade.

Durante a internação, em uso de 2,5 mg de haloperidol, foicapaz de cuidar de si própria, não ocorerram episódios de agita-ção ou agressividade e era colaborativa com a equipe médica.Permanecia a maior parte do tempo no leito, relacionando-semuito pouco com outras pacientes. Evoluiu com atenuação dasidéias delirantes persecutórias, porém manteve as queixas de “do-res nos ossos” e um discurso repetitivo a esse respeito.

A paciente recebeu alta hospitalar após dois meses de interna-ção, em uso somente de 2,5 mg de haloperidol por dia. Vem fa-zendo controle ambulatorial regularmente. Mantém as queixas de“dores nos ossos”, mas não aceita o encaminhamento a outras es-pecialidades médicas. Mostra-se mais sociável, sem causar trans-tornos em seu bairro, aceitando a tutela de uma vizinha.

Discussão

Em síntese, trata-se de quadro psiquiátrico iniciado em idadeacima dos 45 anos de idade, marcado por sintomas psicóticos, so-bretudo ideação paranóide, e isolamento social. A apresentaçãonão é típica em virtude da ausência de transtornos psiquiátricosanteriores, uso de substâncias ou de doenças clínicas gerais.

O diagnóstico diferencial de psicose de início tardio inclui vá-rias condições: (a) transtorno psicótico devido a condição médi-ca geral (incluindo afecções neurológicas), (b) transtorno psicóti-co associado ao abuso/dependência de substâncias, (c) delirium,(d) processos demenciais diversos (Alzheimer, vasculares, ou-tros), (e) transtornos do humor, (f) transtorno delirante crônico,(g) transtorno psicótico agudo e transitório ou esquizofreniformee (h) esquizofrenia.3,4

No caso apresentado, conforme exames laboratoriais, históriae exame clínicos, descarta-se a possibilidade dos sintomas psicó-ticos serem decorrentes de doenças clínicas gerais, abuso de subs-tâncias e/ou delirium. A alteração encontrada na tomografia com-putadorizada é compatível com a idade.

A ausência de comprometimento cognitivo e de outras altera-ções neurológicas não favorecem a hipótese de demência. Contu-do, a possibilidade de uma forma ainda precoce de demência nãopode ser inteiramente excluída.4,5

A paciente não apresentou em nenhum momento alteração ouflutuação do humor, sendo sua afetividade caracterizada comoplana. Também não foram identificados pensamentos de desvalia,de morte ou ideação suicida. Por outro lado, alguns sintomas po-deriam, se valorizados isoladamente, ser considerados depressi-vos: as preocupações somáticas, a culpabilidade pela incapacida-de de trabalho, o isolamento social e a hipobulia. Quanto às preo-cupações somáticas, estas se aproximam de um delírio somático,relacionando-se com o início da manifestação clínica dos sinto-mas psiquiátricos. Crespo-Facorro et al5 relataram quadro similarde psicose tardia associada a preocupações somáticas persisten-tes, considerando-as também de caráter delirante.

No transtorno delirante crônico usualmente não ocorrem alu-cinações proeminentes ou delírios bizarros. Portanto, esse diag-nóstico é também pouco provável.

A manutenção dos sintomas psicóticos por longo períodoafasta o transtorno psicótico agudo e transitório.

A evolução da paciente, marcada por profunda ruptura emsua biografia, com progressiva e persistente modificação da per-sonalidade, comprometimento da volição e da afetividade, isola-mento social, alucinações, delírios bizarros, incluindo sintomasde primeira ordem de Kurt Schneider, tornam a hipótese diag-nóstica de esquizofrenia a mais indicada.

Embora a esquizofrenia acometa principalmente indivíduosna segunda ou terceira décadas de vida, apresentação após os 45 anos não é rara. Acredita-se que 10% dos casos de primeiroepisódio de esquizofrenia se manifestam após essa idade.3

Manfred Bleuler foi quem primeiro cunhou o termo “esqui-zofrenia de início tardio”, referindo-se a quadros iniciados apósos 40 anos de idade.1 Para M. Bleuler, a esquizofrenia de iníciotardio estaria associada a maior preservação do pensamento for-mal e do afeto, o que aproximou conceitualmente esse grupo da“parafrenia” de Kraepelin.5 A superposição dos termos gerougrande confusão na literatura sobre psicose tardia. Mais recente-mente, autores britânicos que trabalham com o conceito de “pa-rafrenia tardia” vêm tentando desfazer os equívocos. Na concep-ção destes, o termo “parafrenia tardia” corresponderia a uma sín-drome psicótica iniciada após os 60 anos de idade e relacionada afatores neurodegenerativos, sem vínculo necessário com a esqui-zofrenia.6

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Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):21-23 23

A esquizofrenia de início tardio e a iniciada na segunda outerceira décadas de vida se assemelham, sobretudo em relação aocurso crônico da doença. Por outro lado, alguns estudos apontamvárias diferenças.5,7,8 A esquizofrenia de início tardio afeta prin-cipalmente mulheres com traços de personalidade pré-mórbidaesquizóide ou paranóide, com déficits auditivo ou visual, carac-terísticas consideradas fatores de risco para o desenvolvimentodo transtorno. A prevalência de esquizofrenia nas famílias dessespacientes é menor que naquelas de pacientes com esquizofreniade início precoce. Os sintomas paranóides, principalmente delí-rio persecutório, preponderam na esquizofrenia de início tardio,sendo os sintomas negativos menos graves que na de início pre-coce. Ainda, pacientes com esquizofrenia tardia tendem a respon-der a doses menores de antipsicóticos. O caso relatado contém as-pectos característicos da esquizofrenia de início tardio: pacientedo sexo feminino acometida em idade avançada, com déficit au-ditivo e traços pré-mórbidos de personalidade esquizóide, apre-sentando quadro delirante persecutório responsivo a baixa dosede antipsicótico.

Essas diferenças levantam a questão se a “esquizofrenia deinício tardio” seria uma apresentação retardada da esquizofreniaou uma entidade distinta desta. Os atuais sistemas de classifica-ção em psiquiatria CID-109 e DSM-IV10 não estabelecem limitesetários para o diagnóstico da esquizofrenia, nem especificam asubcategoria “início tardio”.

Não sendo a esquizofrenia de início tardio considerada enti-dade distinta, quais os fatores protegeriam esses indivíduos até amanifestação da doença? Qual o motivo do maior comprometi-mento de mulheres? A resposta a essas e a outras questões depen-dem, em parte, da melhor compreensão da fisiopatologia da es-quizofrenia, tornando bastante controverso o assunto.11

Summary

The authors present a case of psychosis in a 61-year-old woman wi-thout cognitive impairment. The patient was taken to a psychiatrichospital because of aggressive behavior against her neighbours. Shewas defined by her caregivers as a shy and systematic person. Shenever had close relationships or boyfriends. Although her symptomsappeared at the age of 49 after her mother death, she had neverbeen treated. After leaving her job, she started eating poorly andbecame isolated avoiding contacts with other people. Four years

later, she developed evident persecutory delusions and auditory hal-lucinations. For 10 years she remained in this situation until she wastaken to the hospital. During the hospitalization she was medicatedwith haloperidol 2.5 mg per day and her psychotic and aggressivebehavior improved.The authors discuss the current classification oflate onset psychosis.

Key-words: Late-onset Schizophrenia, Late Paraphrenia, LatePsychosis

Referências Bibliográficas

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SÍNDROME DE EKBOM EM IDOSAEKBOM’S SYNDROME IN AN AGED WOMAN

Rodrigo Nicolato *Flávia Fernandes Dias **Cíntia Fuzikawa **João Luís Pinto Coelho **Antônio Carlos Oliveira Corrêa ***

Resumo

Casos de síndrome de Ekbom ou delírio de infestação parasitáriasão raros, com prevalência desconhecida. Geralmente, são acometi-das mulheres idosas socialmente isoladas. A síndrome se caracterizapor forte convicção de infestação e gera muito desconforto, levan-do, inclusive, a estratégias perigosas para erradicação dos parasitas,como o uso de pesticidas. Pode constituir-se numa das possíveisapresentações do transtorno delirante somático, ou ser secundária aoutros transtornos psiquiátricos, particularmente quadros orgânicose depressivos. Abuso de substâncias, doenças neurológicas, infeccio-sas (aids e sífilis) e endócrinas (diabetes e hipertireoidismo) podemlevar a esse delírio de infestação. O presente trabalho tem como ob-jetivo descrever o caso de uma senhora de 70 anos de idade comquadro de hipertireoidismo que precedia em dois anos a instalaçãoda síndrome de Ekbom.

Palavras-chave: Síndrome de Ekbom; Delírio de Infestação; Psi-quiatria Geriátrica; Hipertiroidismo

Thibierge, descreve em 1894, o quadro de delírio de infesta-ção parasitária, chamando-o de “acarofobia”.1 Posteriormente,em 1938, Ekbom descreve sete mulheres idosas ou de meia-idadeque possuíam uma convicção delirante e persistente de terem apele parasitada por vermes, caracterizando o quadro da síndromede Ekbom.2 Essa síndrome recebe vários nomes: delírio dermato-zóico, delírio de dermatozôos de Ekbom, delírio de zoopatia ex-terna, alucinações cutâneas e visuais da psicose alucinatória crô-nica, hipocondria circunscrita, delírio cenestésico, obsessão aluci-natória zoopática, alucinose tátil crônica, delírio de infestação,delírio de parasitose, psicose hipocondríaca monossintomática,delírio de infestação parasitária.2

Além de serem do sexo feminino e com idade mais avançada,os pacientes típicos são isolados socialmente. Descrevem sinto-mas cutâneos como a primeira evidência de infestação. Geral-mente, fazem uso de várias substâncias químicas para erradicar a

infestação, como lesivos pesticidas. Consultam vários médicos(sobretudo dermatologistas) para identificar os parasitas.1 Mes-mo com evidências de que não existem vermes, os pacientes con-tinuam peregrinando em busca de cura e, com a crença inabalá-vel de estarem infestados, freqüentemente recusam avaliação psi-quiátrica, quando chegam a ser encaminhados.

Há muita discussão sobre a sintomatologia, à luz da psicopa-tologia fenomenológica. Muitas vezes, o delírio de infestação sesobrepõe a doenças dermatológicas (com pruridos) e a pareste-sias, sendo que o quadro pode ser resultante de interpretaçõesdelirantes de sensações físicas reais, ilusões ou alucinações táteise cenestésicas.5 Conrad opina que não existem vivências deliran-tes primárias verdadeiras nesta síndrome, ocorrendo vivênciasdeliróides compreensíveis derivadas das alucinações táteis.3 ParaHuber, o delírio de infestação é um verdadeiro delírio. Conside-ra a alucinação elemento secundário ante uma vivência deliranteprimária, apesar do paciente poder apresentar dúvidas quanto àconvicção da infestação, o que é contrário à noção clássica de de-lírio primário.3 Essas opiniões divergentes espelham interminá-veis disputas no campo da abordagem fenomenológica dos delí-rios e alucinações.

A prevalência da síndrome de Ekbom é desconhecida. Sabe-se, porém, que atinge a faixa etária acima de 60 anos, aquela commaior possibilidade de apresentar transtornos psiquiátricos se-cundários a condições médicas gerais. Logo, uma avaliação clíni-ca, laboratorial e de neuroimagem é imprescindível.

No tratamento podem ser empregados antipsicóticos, associa-ção de antidepressivos e antipsicóticos, e antidepressivos. O an-tipsicótico pimozida, um antagonista opiáceo e dopaminérgicoseletivo, apresentaria resultados mais promissores, talvez relacio-nados ao antagonismo opiáceo e conseqüente diminuição dassensações pruriginosas dos pacientes.1 Entretanto, pode levar adiscinesia tardia e a arritmias cardíacas, dentre outras condições.O isolamento social também deve ser combatido através de abor-dagem psicossocial.4,5

Caso Clínico

Trata-se de paciente de 70 anos, semi-analfabeta. Reside sozi-nha. Sem história pregressa de transtornos psiquiátricos.

A paciente, na companhia da filha, mostra encaminhamentode um clínico geral. Relata que há dois anos começou a observarproliferação de pequenos vermes oriundos de seu próprio courocabeludo. Isso provocou a raspagem do cabelo em mais de uma

* Ex-residente da Residência de Psiquiatria do Hospital dasClínicas da UFMG, mestrando em farmacologia no Instituto deCiências Biológicas da UFMG.** Ex-residente da Residência de Psiquiatria do Hosital dasClínicas da UFMG.*** Preceptor da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicasda UFMG.

Endereço para correspondência:Ambulatório de Psiquiatria GeriátricaHospital das Clínicas da UFMGAv. Professor Alfredo Balena 11030130-100 - Belo Horizonte - MG

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ocasião, além de inúmeras consultas dermatológicas e uso de vá-rios medicamentos tópicos, sem qualquer melhora. Tal infestaçãoprejudicava o sono, já que à noite procurava matar os vermes,provocando diversas escoriações. A filha informa que o pescoçoda mãe começou a avolumar-se dois anos antes do quadro psi-quiátrico se instalar. Relata, ainda, história de promiscuidade dapaciente.

Entrou no consultório sem exibir alterações de marcha, ema-grecida, com boas condições de higiene, vestida de forma inade-quada para a situação, com boné, mini-blusa e saia curta. Seu ros-to bastante envelhecido contrasta com certa jovialidade transmi-tida ao entrevistador. É educada e cooperativa, mas exibe postu-ra de intimidade além do habitual. Muda constantemente sua po-sição na cadeira e gesticula bastante. Informa com precisão sobreo local, sobre seu nome, seus dados pessoais, o dia da semana, ahora, o ano e dá registros aproximados sobre o mês e dia do mês.Apresenta atenção reduzida ao que lhe é perguntado, respondede maneira evasiva e se apressa em retornar ao tema da infesta-ção, este irredutível e acompanhado de ansiedade. É indiscreta aocomentar as práticas sexuais com o último companheiro e as alte-rações ginecológicas delas decorrentes, que parecem relacionar-secom o tema de infestação. Diz que os vermes transitam entre ânuse vagina, indo posteriormente para o couro cabeludo. Apesar dosprotestos da filha, mostra um pequeno recipiente de vidro trans-parente com fios de cabelo submersos em água e afirma que con-tém os vermes de sua cabeça. Relata que tem visto uma senhorajunto a sua cama fazendo-lhe mal, sobretudo à noite, e que é umespírito a mando dos feitiços da vizinha, tirando suas forças.

Súmula: sem alteração de campo e nível de consciência.Orientada para espaço e pessoa, parcialmente orientada no tem-po. Sem alterações quantitativas e qualitativas de memória. Hu-mor ligeiramente elevado, afeto síntone. Normovigil, hipotenaz.Pensamento delirante com conteúdo restrito ao tema persecutó-rio e sobretudo somático. Alucinações visuais, cenestésicas e tá-teis. Inquietação psicomotora.

Ao exame físico observavam-se bócio de tireóide e bulhas car-díacas arrítmicas. Solicitadas interconsultas com a dermatologia,a neurologia e a endocrinologia. Pedidos exames laboratoriais eimaginológicos. Na dermatologia constatou-se apenas escoriaçõese rarefação no couro cabeludo. Mini-mental: 16 pontos. Tomo-grafia computadorizada do encéfalo e EEG foram inespecíficos.O VDRL e anti-HIV foram negativos, mas o FTA-ABS positivo,fazendo com que a neurologia investigasse o líquor, que se apre-sentou normal, descartando neurossífilis e outras doenças neuro-lógicas. O TSH apresentou resultado inferior a 0,002 (ultra-sen-sível), o T4 livre apresentava-se no limite superior. O eletrocar-diograma evidenciava taquicardia. A cintilografia, feita posterior-mente, foi compatível com bócio nodular tóxico. Diagnosticou-sehipertiroidismo por doença de Plummer.

Discussão

O presente relato de caso, apesar de limitado pelo não pros-seguimento terapêutico (baixa aderência da paciente), sugere as-pectos relevantes e comuns da síndrome de Ekbom, como a faixaetária, o sexo e o isolamento social, além da sintomatologia pecu-liar. Havia ainda hipertiroidismo associado, que teria precedidoem dois anos a instalação do quadro psiquiátrico. A ideação per-

secutória e a alucinação visual que se manifestavam à noite, e queremitiram, poderiam sugerir delirium causado por hipertiroidis-mo ou por conseqüência deste, como arritmia. A inquietação psi-comotora e o humor elevado seriam conseqüência do hipertiroi-dismo, que pode até originar quadros de mania.

A classificação apropriada do delírio de infestação é alvo dediscussões. Freinhar divide-o em três categorias1: (a) transtornodelirante somático; (b) como sintoma de outros transtornos psi-quiátricos (esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão com sin-tomas psicóticos, transtorno esquizoafetivo e transtorno obsessi-vo-compulsivo); (c) secundário a doenças clínicas (Tabela 1).

Parecem-nos mais indicados, aqui, um dos diagnósticos referentes às categorias (a) e (c): transtorno delirante persis-tente (F22/CID-10) ou transtorno delirante tipo somático(297.1/DSM-IV) e transtorno delirante (esquizofreniforme) orgâ-nico (F06.2/CID-10) ou transtorno psicótico devido a hiperti-reoidismo, com delírios (293.81/DSM-IV). Resta o dilema: serásíndrome de Ekbom associada ou secundária a hipertireoidismo?

Summary

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Abuso de substâncias• Álcool• Anfetamina• Cocaína• Metilfenidato

Doenças Neurológicas• Demência• Doença cerebrovascular• Doença de Huntington• Doença de Parkinson • Tumor SNC

Doenças Infecciosas• Aids• Sífilis• Tuberculose

Doenças Endocrinológicas• Diabetes• Hipertireoidismo

Deficiências de Vitaminas• Deficiência de B12• Pelagra

Neoplasias• Linfoma• Leucemia linfocítica crônica

Doenças Cardiovasculares• Arritmias• Insuficiência cardíaca congestiva

MedicamentosCorticosteróidesOutras Hepatopatias

• Nefropatias

Adaptado de Driscoll et al,19931

Tabela 1 - Condições físicas associadas à síndrome de Ekbom

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Síndrome de ekbom em idosa

Cases of Ekbom’s syndrome or delusions of infestation are rare andtheir exact prevalence is unknown. Patients are usually socially isola-ted elderly women, who present a strong conviction of having beeninfested by parasites, leading to great discomfort.They may even re-sort to dangerous measures such as the use of pesticides, in an at-tempt to eradicate the parasites. This syndrome may be a form ofpresentation of delusional disorder (somatic type) or may be secon-dary to other psychiatric disorders, especially depression and orga-nic mental disorders. Possible causes are substance abuse, infections(AIDS, syphilis), neurologic and endocrinologic diseases (diabetes,hyperthyroidism).This article describes the case of a 70-year old wo-man who presented Ekbom’s syndrome 2 years after developinghyperthyroidism.

Key-words: Ekbom’s Syndrome; Delusion of Infestation; Geria-tric Psychiatry; Hyperthyroidism

Referências Bibliográficas

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26 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):24-26

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Érico de Castro Costa *Gislene Valadares Miranda **Ana Luiza Corrêa da Costa ***Maurício Viotti Daker ****

Resumo

Os autores relatam caso de paciente portador de transtorno afeti-vo bipolar resistente, acompanhado há cinco anos no laboratório doServiço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas - UFMG.Após descri-ção detalhada do caso e constatação da falência das terapêuticas psi-cofarmacológicas usuais, devido a ineficácia (lítio) ou intolerância(carbamazepina, oxcarbazepina), além da utilização de polifarmaco-terapia com riscos de interações indesejáveis, é apresentada revisãobibliográfica de tratamento com Clozapina e optamos peloemprego, bem sucedido, da clozapina do transtorno afetivo bipolarresistente.

Palavras-chave: Transtorno de Humor Bipolar; Clozapina

Caso Clínico

AB, 51 anos, masculino, ex-comerciante, atualmente aposen-tado, casado, três filhas, católico, natural e residente em BeloHorizonte. Nível de escolaridade: 4ª série primária.

Primeiro atendimento no serviço em 23/11/1994. Apresenta-va-se com humor deprimido, hipobúlico e com alterações do pen-samento (idéias suicidas e de ruínas). Não havia qualquer altera-ção da sensopercepção e do nível de consciência.

Na anamnese da história pregressa, esposa relata que pacien-te já fez uso pesado de álcool até 1983. Em 1986, paciente apre-sentou alterações de comportamento que foram relacionadas como plano econômico do cruzado. O paciente não se cansava de fa-lar “a situação está difícil”, “o dinheiro não dá para nada”. Com issoproibiu que se ligasse a televisão e/ou se acendesse a luz da casa,a fim de poupar energia. Além disso, arrendou sua loja em conhe-cido mercado desta capital.

A esposa relata que dois anos mais tarde (1988) o paciente fi-cou agitado e com episódios de agressividade. Andava durantetoda a madrugada com saco de sementes nas costas e dizia que

iria plantar. Dormia pouco, falava muito. O conteúdo da fala gi-rava em torno de dinheiro e os negócios que realizaria, que lherenderiam muitos “milhões de dólares”. O paciente foi atendidopor psiquiatra e não aceitou a medicação, havendo necessidadede misturar haloperidol 50 gotas na alimentação, com remissãodo quadro. Fez uso contínuo do haloperidol até as mudanças decomportamento que se iniciaram três semanas antes do atendi-mento de 23/11/1994.

Foi indicada internação, sendo prescritos haloperidol 5 mgVO à noite, imipramina 25 mg à noite e uma ampola de halope-ridol mais uma ampola de prometazina em caso de agitação. So-licitadas provas de função tireoidiana, TGO, TGP, bilirrubinas eavaliação pela clínica médica. O caso foi discutido no dia24/11/1994 pela preceptoria, que sugeriu a introdução lenta declonazepam e a troca do haloperidol pela clorpromazina. Comisso, a nova prescrição do paciente passou a ser: clonazepam 3,5 mg/dia, clorpromazina 200 mg/dia e imipramina 50 mg/dia,além de biperideno 2 mg/dia. O paciente apresentou vários epi-sódios de insônia e agitação psicomotora diurna, o que levou aoincremento das doses de clorpromazina até 400 mg/dia, clonaze-pam até 6 mg/dia e imipramina 125 mg/dia.

No dia 12/12/1994 (22º dia de internação), foi iniciado carbo-nato de lítio 600 mg/dia após a normalidade dos resultados dasprovas tireoidianas. Após 29 dias de internação, em 22/12/1994,o paciente recebeu alta com melhora do quadro de agitação e emuso de: imipramina 125 mg/dia, clonazepam 4 mg/dia, clorpro-mazina 100 mg/dia e carbonato de lítio 900 mg/dia.

Continuou acompanhado no ambulatório, em uso de carbona-to de lítio 1.200 mg/dia, clonazepam 5 mg/dia, imipramina 50 mg/dia e clorpromazina 200 mg/dia. Mantinha-se com a litemiaem torno de 0,9 mEq/l a 1,0 mEq/l e sem alterações do humor.

Nos controles ambulatoriais mensais da psiquiatria foi obser-vado hipotireoidismo subclínico, sendo indagado se decorrentedo lítio, já que as provas tireoidianas pré-tratamento com lítio não apresentavam alterações (T3 = 105, T4 = 7,2, TSH = 3,9). Ao longo do ano de 1995 o paciente se manteve es-tabilizado em uso da medicação já citada e com a litemia sempreem torno de 1,0 mEq/l.

Em 06/11/1995, a esposa comparece sozinha ao atendimentorelatando alterações de comportamento do paciente: heteroagres-sividade, irritação, agitação, exaltação do humor e insônia. Foi re-tirado o antidepressivo (imipramina). Aumenta-se a clorpromazi-

* Residente do terceiro ano da Residência de Psiquiatria doHospital das Clínicas - UFMG. Doutorando na Universidade deBonn, Alemanha.** Preceptora da Residência de Psiquiatria do Hospital das Clínicas- UFMG.*** Residente de Psiquiatria do Instituto Raul Soares, FundaçãoHospitalar do Estado de Minas Gerais.

**** Coordenador da Residência de Psiquiatria do Hospital dasClínicas - UFMG. Professor Adjunto Doutor e Chefe doDepartamento de Psiquiatria e Neurologia da Faculdade deMedicina da UFMG.

Endereço para correspondência:Residência de Psiquiatria - Hospital das ClínicasAv. Prof. Alfredo Balena 110.

TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR RESISTENTE E REVISÃO DE SEUTRATAMENTO COM CLOZAPINARESISTANT BIPOLAR DISORDER AND A REVIEW OF ITS TREATMENT WITH CLOZAPINE

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32 27

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Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com clozapina

na para uma dose de 500 mg/dia, mantêm-se demais medicações,pede-se litemia de urgência. Nova consulta em 17/11/1995, man-tendo o mesmo quadro relatado pela esposa na consulta anterior.Retirada clorpromazina e introduzidos haloperidol 15 mg/dia ebiperideno 4 mg/dia. Em 20/11/1995 o paciente se apresenta in-quieto, humor lábil, heteroagressividade, ausência de idéias deli-rantes. Litemia 1,0 mEq/l. Reduzido haloperidol para 7,5 mg/diae introduzida a prometazina 50 mg/dia. Mantém-se inquieto, hu-mor lábil, relatando tristeza e ansiedade. Caso discutido com apreceptoria, que sugeriu a internação.

Em uso à internação de carbonato de lítio 1.200 mg/dia e clo-nazepam 4 mg/dia. Retirado haloperidol devido à inquietação mo-tora desenvolvida pelo paciente. Reintroduzida clorpromazina100 mg/dia e mantida prometazina 50 mg/dia. Em 25/11/1995 éintroduzida a carbamazepina 200 mg/dia no esquema terapêuticodo paciente, que já utilizava carbonato de lítio 1.200 mg/dia, clor-promazina 200 mg/dia e clonazepam 2 mg/dia. Paciente manten-do quadro de agitação, labilidade do humor e insônia. AplicadoMini-Mental em 27/11/1995 com um score igual a 26 pontos.Carbamazepina elevada para 400 mg/dia. Introduzido estazo-lam 2 mg/dia. Em 01/12/1995 mostra-se calmo, cooperativo, dor-mindo bem, mantendo humor lábil. Aumentada carbamazepinapara 600 mg/dia. Alta hospitalar em 11/12/1995 após 19 dias deinternação. Encontrava-se calmo, cooperativo, queixando-se desonolência diurna e com sono noturno adequado. Medicação nomomento da alta: carbonato de lítio 600 mg/dia, carbamazepina1.200 mg/dia, clonazepam 1 mg/dia, clorpromazina 50 mg/dia,estazolam 2 mg/dia.

Dois dias após a alta o paciente é atendido no ambulatório,apresentando-se disfórico, humor lábil, choro fácil e agitação psi-comotora. Presença de prurido cutâneo importante com escoria-ções nos membros superiores devido a atrito. Foi suspensa a car-bamazepina. Elevado carbonato de lítio para 1.200 mg/dia, man-tido clonazepam 1 mg/dia, elevada clorpromazina para 100 mg/dia. Retorna cinco dias após mantendo o quadro de agita-ção psicomotora, humor lábil, prurido mesmo após a interrupçãoda carbamazepina. Suspensa clorpromazina e reiniciada prometa-zina 50 mg/dia, trocado clonazepam por lorazepam na dose de 3 mg/dia, mantido estazolam 2 mg/dia. Em 28/12/1995 retorna aoambulatório com o mesmo quadro de agitação psicomotora, lo-gorréico, humor lábil, taquipsíquico. Caso discutido com o pre-ceptor que sugeriu o aumento do lorazepam para 6 mg/dia, man-tendo o carbonato de lítio 1.200 mg/dia e prometazina 50 mg/dia. Persistiu muito agitado, sendo inclusive atendido emserviço de urgência psiquiátrica. O preceptor sugeriu a introduçãode tioridazina na dose de 200 mg/dia, redução do carbonato de lí-tio para 900 mg/dia e manutenção do estazolam 2 mg/dia, loraze-pam 6 mg/dia e prometazina 50 mg/dia. Foi solicitada tomografiacomputadorizada de crânio, sem alterações. Houve melhora doquadro com a introdução da tioridazina. Melhora da labilidadeemocional, porém paciente continua agitado. A tioridazina foi ele-vada para 300 mg/dia, o carbonato de lítio reduzido para 600 mg/dia, mantidos lorazepam 6 mg/dia, prometazina 50 mg/dia e estazolam 2 mg/dia. Em 16/01/1996 persiste a agita-ção, apesar da melhora parcial com tioridazina. Esta foi aumenta-da para 400 mg/dia. Lorazepam aumentado para 8 mg/dia, man-

tido estazolam 2 mg/dia e reduzido carbonato de lítio para 300 mg/dia.

Paciente novamente internado em 25/01/1996 com quadro deagitação psicomotora, insônia, humor irritável, ausência de crítica,mesmo com uso da medicação: carbonato de lítio 300 mg/dia, lo-razepam 8 mg/dia, prometazina 50 mg/dia, estazolam 2 mg/dia etioridazina 400 mg/dia. Neste dia, o médico-assistente suspende ouso de tioridazina e introduz clonazepam 6 mg/dia, eleva estazo-lam para 4 mg/dia, eleva prometazina 75 mg/dia e suspende o car-bonato de lítio. Também foram administrados uma ampola de ha-loperidol e uma ampola de prometazina IM. Após supervisão, omédico residente introduz em 26/01/1996 oxcarbazepina 600 mg/dia, mantendo clonazepam 6 mg/dia, prometazina 75 mg/dia e estazolam 4 mg/dia. Em 30/01/1996 o paciente apre-senta melhora parcial da agitação, da insônia, da labilidade do hu-mor e da crítica. Aumento da dose de oxcarbazepina para 1.200 mg/dia. Melhora do quadro, embora persista queixa de in-sônia. Mantém-se estabilizado, sem alterações do humor, sem agitação. Em uso de oxcarbazepina 900 mg/dia, clonazepam 4 mg/dia e prometazina 75 mg/dia. Alta hospitalar em 08/03/1996,após 44 dias de internação, com remissão total do quadro.

Retorna ao ambulatório mantendo quadro psiquiátrico comevolução satisfatória (boa readaptação e estabilidade de humor,bom padrão de sono e interesse em atividades diversas). Porém,apresentou quadro dermatológico compatível com rash cutâneo(lesões eritematosas em placa e em pápulas, pruriginosas, na re-gião da face, dorso, peito e braços) com disseminação progressi-va. Foram aumentados prometazina para 125 mg/dia e clonaze-pam 6 mg/dia. Suspensa a oxcarbazepina. Evoluiu com insônia,logorréia, falando alto. Presença de alterações de pensamento.Idéias de grandeza e com conteúdo inapropriado relacionado aosexo. Indicada reinternação.

Aumentado clonazepam para 10 mg/dia. Mantida prometazi-na em 125 mg/dia. Discutida em supervisão a reintrodução docarbonato de lítio. Realizada interconsulta dermatológica, sendoestabelecida hipótese diagnóstica de farmacodermia por oxcarba-zepina, com prescrição de hidrocortisona tópica. Manteve-se agi-tado à internação, logorréico, sem crítica, insone, coprolálico, emque pese a medicação. Prescrito sulpiride 200 mg/dia por suges-tão da preceptoria. Persistiu agitado, insone e com humor lábil.Aumento de sulpiride para 250 mg/dia. Reduzido clonazepampara 6 mg/dia e prometazina para 100 mg/dia. Suspenso o sulpiride 17 dias após seu início, devido ao relato de inquietaçãoapós a elevação progressiva dessa droga, que chegou a dose de300 mg/dia. Prescrito estazolam 4 mg/dia.

Prescrito verapamil 120 mg, em 09/04/1996. No dia seguinteà suspensão do sulpiride. Manteve-se insone, agitado, logorréico.Mantido o uso de clonazepam 4 mg/dia, a prometazina fora sus-pensa quatro dias antes. Aumento da dose de verapamil para 160 mg/dia e, a seguir, para 200 mg. Alta hospitalar em15/05/1996, após 57 dias de internação, em uso de verapamil 200 mg/dia, clonazepam 4 mg/dia, estazolam 4 mg/dia e prome-tazina 50 mg/dia.

Nos 15 dias seguintes a alta hospitalar, o paciente voltou aapresentar quadro maniforme. Problemas com vizinhos por ligaro rádio em alto volume, retorno da agitação psicomotora e insô-nia. O caso foi discutido com a preceptoria e se optou pela reti-

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rada do verapamil. Paciente mantendo ciclagens rápidas do hu-mor. Introduzida levomepromazina 30 mg/dia, mantidos clonaze-pam 4 mg/dia, prometazina 50 mg/dia e estazolam 4 mg/dia. Em04/06/1996 apresenta melhrora da exaltação do humor, manten-do-se estável e em uso de levomepromazina 50 mg/dia e demaismedicações acima. Persiste bem em 29/06/1996. Em 29/07/1996não compareceu ao atendimento.

Retorna em 23/09/196 com labilidade do humor e agitaçãopsicomotora durante alguns dias, segundo o relato da esposa. Au-mentado clonazepam para 6 mg/dia, levomepromazina para 150 mg/dia, prometazina para 75 mg/dia, além de usar estazolam2 mg/dia. Em 31/10/1996 a esposa relata episódios de agitação,havendo necessidade de incremento da dose de levomepromazi-na. O médico, porém, faz a seguinte anotação no prontuário“opto por não modificar dose atual das medicações em função dadificuldade do manejo do quadro”. Persistem eventuais agitações,mas sem maiores intercorrências. Observa-se que o paciente estámuito sedado.

Em 27/02/1997 a acompanhante relata que o paciente voltoua ficar insone e as agitações psicomotoras mais frequentes. Au-mentado o clonazepam para 8 mg/dia e a levomepromazina para200 mg/dia. Mantidos estazolam 4 mg/dia e prometazina 75 mg/dia. Introduzido ácido valpróico 1.500 mg/dia. Em06/03/1997 se apresenta sedado, com a voz arrastada e bradipsi-quisimo. Iniciada a retirada de prometazina e levomepromazina.Em 03/04/1997 hipotímico, hipobúlico, chorando muito. Conti-nua queixando-se da insônia, relata dormir mais ou menos três aquatro horas/noite. Suspensas prometazina e levomepromazina.Introduzida clorimipramina 75 mg/dia. Mantido ácido valpróico1.500 mg/dia. Apresenta-se eutímico em 07/08/1997, em uso de: clonazepam 6 mg/dia, estazolam 4 mg/dia, clorimipramina75 mg/dia, ácido valpróico 1.500 mg/dia. Dosagem plasmáticade ácido valpróico 75 mg/ml.

Em 09/10/1997 atendido fora da data programada a pedidoda esposa, apresentando-se agitado, agressivo, logorréico, taquip-síquico e insone. Introduzidas risperidona 1,5 mg/dia e clorpro-mazina 200 mg/dia. Mantidos ácido valpróico 1.500 mg/dia e clo-nazepam 6 mg/dia. Suspensa a clorimipramina. Eutímico em20/11/1997, dosagem de ácido valpróico 67,5 mg/ml.

Em 18/12/97 hipotímico, hipobúlico, chorando e com idéiasde suicídio. Reintroduzida clorimipramina 75 mg/dia. Em uso,ainda, de risperidona 2 mg/dia, clorpromazina 100 mg/dia, clo-nazepam 6 mg/dia e ácido valpróico 1.500 mg/dia.

Em 14/05/1998 persistem flutuações do humor. Após revisãona literatura e discussão com a preceptoria, optou-se pela introdu-ção de clozapina, já que o paciente ainda não se mantinha estabi-lizado, em que pesem todas as medidas terapêuticas psicofarmaco-lógicas anteriores. Enquanto se aguardava liberação da medicaçãopela Secretaria de Saúde, o paciente mantinha flutuações do hu-mor. Introduzida a clozapina 25 mg/dia em 14/12/1998. Iniciadaretirada das demais medicações. Em 21/12/1998 retorna em usode clozapina 100 mg/dia e ácido valpróico 1.000 mg/dia. Retira-dos risperidona, clomipramina, clonazepam, clorpromazina.Queixas de sialorréia. Em 04/01/1999 em uso de clozapina 200 mg/dia e ácido valpróico 500 mg/dia. Em 11/01/1999 se apre-senta eutímico em uso de clozapina 300 mg/dia e ácido valpróico250 mg/dia. Permanece eutímico em 25/01/1999 com clozapina

300 mg/dia, retirado ácido valpróico. Hemogramas semanais semalterações. Sialorréia.

Em 19/03/1999, quinze semanas após a introdução da cloza-pina, não apresenta qualquer alteração do humor, embora sequeixe de sialorréia e tenha havido ganho de peso de seis quilos.Paciente sendo ainda acompanhado semanalmente.

Para um apanhado geral das diversas prescrições, ver aTabela 1.

Hipótese diagnóstica: Transtorno afetivo bipolar, atualmenteem remissão. F-31.7 (CID 10)

Discussão

A experiência clínica acumulada nas últimas três décadas in-dica que 20% a 40% dos pacientes com quadros agudos dotranstorno afetivo bipolar não respondem ao lítio e que 72% a82% dos pacientes com o subtipo de ciclagem rápida também sãoresistentes.1,2 Com isso é necessário manter o uso do neurolépti-co como tratamento de manutenção para um melhor controle dossintomas psicopatológicos, mesmo com o risco desses pacientesdesenvolverem discinesia tardia.3

Vários trabalhos demonstram que quanto mais grave for oquadro afetivo bipolar, menor é a resposta terapêutica ao lítio e aoutros moduladores do humor - carbamazepina, ácido valpróico- usados rotineiramente.4,5 Dados epidemiológicos demonstramque pacientes portadores de transtorno afetivo bipolar sem trata-mento adequado perdem em média nove anos de vida, 12 anos deboa qualidade de vida e 14 anos de função social efetiva.6 Comisso, vários pesquisadores iniciaram estudos na tentativa de en-contrar novas substâncias com ação terapêutica no transtornoafetivo bipolar.

Conforme referido anteriormente, muitos pacientes portado-res de distúrbio afetivo bipolar resistente são tratados com antipsicóticos típicos associados aos estabilizadores devido a bai-xa resposta destes últimos em monoterapia.7 Sernyak et al em1994, demonstraram que 95% dos pacientes internados que rece-beram medicação antipsicótica para o tratamento dos quadros demania, continuavam a receber altas doses (o equivalente a 643 mgde clorpromazina em média por dia), seis meses após a alta hos-pitalar.8

Com a demonstração da maior incidência de discinesia tardianos pacientes com transtornos afetivos3 do que nos pacientes por-tadores de esquizofrenia9 e/ou síndromes mentais orgânicas,10 osantipsicóticos atípicos tornaram-se uma opção muito boa para otratamento dos transtornos afetivos bipolares resistentes em asso-ciação aos moduladores do humor. Trabalhos com clozapina de-monstraram sua eficiência não somente para a esquizofrenia, mastambém para pacientes portadores dos distúrbios esquizoafetivo ebipolar resistente aos tratamentos usuais.11-17

Em 1990, Hippius publicou a experiência européia com a clo-zapina.17 Essa revisão focalizava os pacientes tratados no Hospi-tal Psiquiátrico da Universidade de Munique no período com-preendido entre 1978 e 1989 e comparava esses resultados comos de outros estudos europeus com relação aos benefícios e riscosdo uso da clozapina. O grupo constava de 503 pacientes, sendo368 esquizofrênicos e 135 com outros diagnósticos. Dentre o gru-po de 135 pacientes, encontravam-se 29 pacientes com depressão

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Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com clozapina

endógena, 18 pacientes com mania, 15 pacientes com psicose or-gânica, 51 pacientes com discinesia tardia, 18 pacientes com ou-tros transtornos do movimento e quatro pacientes com outrosdiagnósticos. Antes do tratamento com clozapina, os pacientes já

tinham sido tratados com até oito antipsicóticos diferentes duran-te algum tempo; 36% dos pacientes iniciaram o uso de clozapinadevido à ineficácia farmacológica dos outros tratamentos e 64%devido aos efeitos colaterais tradicionais com essa classe de medi-

Data A/ I/ Ia

23.11.94 I24.11.94 I12.12.94 I22.12.94 IaAno 95 A06.11.95 A17.11.95 A20.11.95 I21.11.95 I25.11.95 I27.11.95 I01.12.95 I11.12.95 I14.12.95 A19.12.95 A28.12.95 A02.01.96 A09.01.96 A16.01.96 A25.01.96 I26.01.96 I30.01.96 I08.03.96 Ia13.03.96 A/I20.03.96 I22.03.96 I02.04.96 I05.04.96 I08.04.96 I09.04.96 I27.04.96 I30.04.96 I10.05.96 I15.05.96 Ia25.05.96 A04.06.96 A23.09.96 A31.10.96 A16.01.97 A27.01.97 A06.03.97 A03.04.97 A07.08.97 A09.10.97 A08.12.97 A14.12.96 A21.12.96 A04.01.99 A11.01.99 A25.01.99 A

H

5

157,5

[5]

I

2550125125150150

Cn

3,5645555422211

666461010666443

4446668886664

Cp

200400100200500

10020020020050100

B

2

44

CL

60090012001200120012001200120012001200600120012001200900600300

P

505050

50505050

75 [25]

75757512512512510075

5050507575757550

Cb

2004006001200

E

22222

222444

444442444244

2

L

366688

444

T

200300400

O

6001200900

S

200250300

V

120160120200200

D

4040

Lp

3050150150150200100

AV

15001500150015001500150010001000500250

Ci

75757575

R

1,52

Cz

2550100200300

A = atendimento ambulatorial; I =Internação; Ia = Alta da internação; H = haloperidol; I = imipramina; Cn = clonazepan; Cp = clorpromazina; B = biperideno; CL = carbonato de lítio;P = prometazina; Cb = carbamazepina; E = estazolan; L = lorazepam; T = tioridazina; O = oxcarbazepina; S = sulpiride; V = verapamil; Lp = levomepromazina; AV = ácido valpróico; R = risperidona; Ci = clorimipramina; Cz = clozapina; [ ] = intramuscular (demais medicações via oral).

Tabela 1 - Medicações e doses em miligramas nos diversos atendimentos

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camentos. Os resultados demonstraram que 65% dos pacientesesquizofrênicos melhoraram, com 90% de melhora dos sintomaspositivos e 43% de melhora dos sintomas negativos. Dentro des-se subgrupo, o subtipo esquizoafetivo foi o que apresentou osmelhores índices de melhora. Já no subgrupo de pacientes comoutros transtornos, o que inclui os pacientes maníacos, houveuma melhora em torno de 70% dos casos.

Em dezembro de 1991, uma carta para a revista Journal of Cli-nical Psychopharmacology relatava a utilidade da clozapina nos ca-sos de transtorno afetivo bipolar do tipo ciclador rápido, refratá-rios ao lítio e com boa resposta inicial aos anticonvulsivantes emmonoterapia ou associados aos antipsicóticos clássicos, mas cujaeficácia piorava ao longo do tempo.21

Também em 1991, McElroy et al.11 publicaram os resultadosde estudo com 85 pacientes em uso de clozapina. Nesse grupo ha-via 39 pacientes com diagnóstico de esquizofrenia, 20 pacientesesquizoafetivos do tipo bipolar, cinco pacientes esquizoafetivosdo tipo depressivo, 14 pacientes com transtorno bipolar com sin-tomas psicóticos e sete pacientes com outros transtornos. 41%dos pacientes receberam clozapina como monoterapia, 59% emassociação com antipsicóticos clássicos, antidepressivos, benzo-diazepínicos, lítio e anticonvulsivantes. Epidemiologicamente,90% dos pacientes esquizofrênicos eram resistentes aos trata-mentos padrões e 10% eram intolerantes aos efeitos colaterais,76% dos esquizoafetivos eram resistentes e 24% intolerantes e nogrupo de pacientes com transtorno afetivo bipolar 86% eram re-sistentes e 14% intolerantes. Quanto à eficácia, observou-se que85% dos pacientes esquizofrênicos apresentaram alguma melho-ra, mas somente 10% apresentaram melhora acentuada. Já nosgrupos de esquizoafetivos e portadores de transtorno afetivo bi-polar, 95% e 93% apresentaram alguma melhora e 35% e 43%melhora acentuada, respectivamente.

Em 1992, Suppes e McElroy19 demonstraram que 12 dos 14pacientes com transtorno afetivo bipolar resistente no trabalhocitado anteriormente11 apresentavam o diagnóstico de mania dis-fórica, que pela CID-10 corresponde aos quadros de transtornoafetivo bipolar misto. Todos os pacientes apresentaram melhorada sintomatologia nas primeiras semanas, com redução no núme-ro de rehospitalizações, com melhora das funções psicosociaiscomo retorno à escola e/ou manutenção do emprego. Do pontode vista farmacológico, eram pacientes de difícil manejo, e em usode polifarmacoterapia.

Kimmel et al. publicaram em 1994,20 que a eficácia da cloza-pina não era restrita somente aos pacientes resistentes aos trata-mentos de esquizofrenia. Com isso, apresentaram um artigo coma revisão dos trabalhos restrospectivos e prospectivos desenvolvi-dos com a clozapina no tratamento dos transtornos do humor.

Em 1995, Zarate et al.14 demonstraram que a clozapina emmonoterapia é modulador do humor com redução do número deepisódios e rehospitalizações em pacientes com transtorno afeti-vo bipolar resistente.

Zarate et al.13 também publicaram, em 1995, estudo no qualrevisam todas as publicações referentes ao tratamento com cloza-pina do transtorno afetivo bipolar resistente e do transtorno es-quizoafetivo. Foram encontrados um total de 30 trabalhos na lite-ratura: dois estudos duplo-cego, oito ensaios clínicos abertos, 10estudos retrospectivos CID-10, 10 relatos de casos. Dos 30 artigos

em que a clozapina foi usada no tratamento do transtorno afetivobipolar e do transtorno esquizoafetivo, somente 10 apresentaraminformações suficientes da eficácia da clozapina e da proporçãode pacientes que responderam à terapêutica. Nos 10 estudos ana-lisados, foram tratados com clozapina 315 pacientes portadoresde transtornos psicóticos e/ou transtornos do humor. Destes pa-cientes, 94 eram portadores do transtorno afetivo bipolar e 221eram portadores do transtorno esquizoafetivo em fase maníaca oucom predominância de sintomatologia esquizofreniforme. Umterço dos pacientes não respondeu adequadamente, ou não tole-rou tratamentos prévios com lítio, carbamazepina, ácido valprói-co, antipsicóticos clássicos ou outras drogas. setenta e um porcento dos 94 pacientes bipolares e 69,6% dos 221 pacientes es-quizoafetivos responderam com sucesso à terapia com clozapina,como monoterapia ou associada, por um período entre 49 dias aquatro anos. Pacientes esquizofrênicos de sete estudos foram usa-dos como grupo de comparação. Pacientes maníacos ou com pre-dominância de sintomatologia esquizofreniforme do transtornoesquizoafetivo ou bipolar apresentaram melhor resposta à cloza-pina do que os pacientes esquizofrênicos (71,2% de 315 pacien-tes e 61,3% de 692 pacientes, respectivamente). Apesar de váriosestudos apresentarem deficiências metodológicas (retrospectivos,não-cegos, critérios diagnósticos e critérios de seleção não especí-ficos e por não serem projetados para avaliação específica dostranstornos do humor), a combinação de resultados sugere que asfases maníacas do transtorno bipolar respondem bem à clozapina.Esses achados são relevantes já que a grande maioria dos pacien-tes era considerada refratária aos tratamentos.

Devido a provável associação vantajosa entre clozapina e an-ticonvulsivantes em transtornos bipolares, revimos o risco de cri-se convulsiva com a clozapina e seu manejo. Esse risco é dose de-pendente, sendo maior do que com os outros antipsicóticos quegiram em torno de 1%.21 Haller et al, em 1990,21 demonstraramque a prevalência das crises convulsivas com o uso de clozapina é1% a 2% com doses menores que 300 mg/dia, 3% a 4% com doses entre 300 e 599 mg/dia e 5% com doses entre 600 e 900 mg/dia. Devido ao alto risco de crises convulsivas com dosesacima de 600 mg/dia, Kando et al22 sugerem a terapia anticonvul-siva profilática. O ácido valpróico é o anticonvulsivante mais in-dicado por interferir menos na farmacocinética da clozapina. Ouso concomitante dos dois fármacos aumenta o nível plasmáticoda clozapina em apenas 6%.23

Conclusão

Os resultados do tratamento com clozapina nos transtornosafetivos bipolares resistentes, como nos subtipos de ciclagem rá-pida, quadros mistos e transtorno esquizoafetivo são animado-res.11,13,14,17,21-23 Nesse grupo de pacientes em que a polifarma-coterapia é constante, o tratamento com clozapina em monotera-pia, como antipsicótico e estabilizador do humor, parece ser umaalternativa efetiva.14

O uso de clozapina nesses casos pode levar a melhora expres-siva dos sintomas psiquiátricos e das funções sociais.19 Mas sãonecessárias mais pesquisas comparativas para se confirmar essaimpressão, já que no trabalho conduzido por Zarate et al13 só fo-ram encontrados dois trabalhos duplo-cegos na literatura atual.

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Transtorno afetivo bipolar resistente e revisão de seu tratamento com clozapina

Summary

The authors report a case of resistant bipolar disorder followed inthe last five years at the Psychiatric Service of the Hospital dasClínicas - UFMG. Many treatments were indicated, such as lithium,carbamazepine, oxacarbamazepine, valproate, verapamil, benzodi-azepines, traditional antipsychotics and polipharmacotherapy.The useof clozapine, which was succesful, was chosen due to many data inthe literature showing it as an alteranative treatment for bipolar dis-order.

Key-words: Bipolar Disorder; Clozapine

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Trabalho apresentado como poster e premiado entre os cincomelhores no IX Congresso Mineiro de Psiquiatria e II JornadaSudeste de Psiquiatria, junho de 1999, Associação Médica deMinas Gerais, Belo Horizonte.

32 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):27-32

Page 33: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

Rodrigo Machado Vieira *Diogo Rizzato Lara **Diogo Souza ***Flávio Kapczinski ****

Resumo

O tratamento farmacológico do transtorno de humor bipolar temavançado significativamente com o surgimento de novas medicaçõescom efeito estabilizador do humor. Casos refratários aos tratamen-tos disponíveis ainda representam um desafio à psicofarmacologiaatual. Os autores descrevem um caso com uso de alopurinol, umagente hipouricêmico e com efeito anticonvulsivante, em homemcom 43 anos. Este apresentava o primeiro episódio maníaco e mos-trava-se refratário aos tratamentos convencionais administrados.Estava em uso de carbonato de lítio 900 mg/dia, ácido valpróico1.750 mg/dia, haloperidol 10 mg/dia e risperidona 4 mg/dia. O pa-ciente foi avaliado de duas semanas antes do uso de alopurinol atéduas semanas após. O uso de alopurinol trouxe rápida diminuição dainsônia e levou ao desaparecimento dos sintomas maníacos. Ne-nhum efeito colateral adicional foi identificado. Relatam a melhorados sintomas com uso de alopurinol na dose de 300 mg/dia, deacordo com diminuição dos valores na Escala de Young para Maniaem 68% após duas semanas de seu uso. Os autores concluem queo alopurinol possa ser eficaz em episódios maníacos refratários, ne-cessitando outros estudos para reavaliar esta questão. Além disso,abordam uma possível hipótese purinérgica para essa patologia apartir da descrição deste caso.

Palavras-chave: Alopurinol; Transtorno Bipolar; Mania;Hiperuricemia; Estabilizadores de Humor; Antipsicóticos

O tratamento do transtorno de humor bipolar (THB) temavançado significativamente nas últimas décadas com a introdu-ção do lítio, neurolépticos, carbamazepina, ácido valpróico e ou-tros agentes. Entretanto, uma proporção de pacientes com THBnão respondem a esses fármacos. De acordo com Harrow et al,1pelo menos 30% dos pacientes em fase maníaca não respondemao uso do lítio, podendo apresentar melhora com o uso de car-bamazepina e ácido valpróico. Mesmo assim, 10% a 20% destes

pacientes ainda permanecem refratários aos tratamentos conven-cionais.

Várias outras medicações anticonvulsivantes têm sido usadascomo estabilizadores do humor. Medicações anticonvulsivantestêm recebido atenção da literatura psiquiátrica como tratamentoseficazes para transtorno bipolar, tanto em monoterapia ou comotratamento adjuntivo. Além da carbamazepina e do ácido valprói-co, medicações como gabapentina e lamotrigina surgem inseridasnesse perfil. Muitos desses psicofármacos, previamente à confir-mação de seu potencial terapêutico para uso como estabilizado-res do humor, demonstraram eficácia em epilepsias refratárias. Agabapentina inclui-se dentre os mais recentes,2 bem como a lamo-trigina.3

Alopurinol, fármaco com atividade adenosinérgica, inibe axantina-oxidase, enzima responsável pela produção de ácido úri-co, sendo utilizado como agente hipouricêmico. Tem também de-monstrado efeito anticonvulsivante em pacientes refratários aostratamentos convencionais.4,5 Apresentamos aqui o caso de umpaciente hiperuricêmico em primeiro episódio maníaco, com pre-dominância de sintomas eufóricos e insônia, que apresentou re-missão de sintomas maníacos com o uso de alopurinol, após inú-meras tentativas sem resposta de manejo farmacológico com esta-bilizadores do humor e antipsicóticos tradicionais.

Caso Clínico

Paciente PV, 43 anos, sexo masculino, foi hospitalizado emunidade de internação psiquiátrica, com história prévia de duasinternações devido a episódios depressivos maiores. Ao iniciaremos sintomas, não estava em uso de nenhuma medicação.

Sete dias antes desta hospitalização apresentava-se insone, eu-fórico, em agitação psicomotora, com fuga de idéias, taquilálico,fazendo gastos excessivos, com risos imotivados, agressivo verbal-mente quando contrariado, com delírios de grandeza (planejavareformar todo o fórum municipal), além de idéias valorizadas decunho paranóide. O diagnóstico foi firmado com aplicação docheck-list do CID-10. Naquela data iniciou o uso de carbonato delítio 900 mg/dia e haloperidol 10 mg/dia. Nenhum sintoma invo-luiu com esse tratamento, efetuando-se a hospitalização já previa-mente indicada. Foi associado o uso de ácido valpróico na doseinicial de 500 mg/dia, até a dose de 1.750 mg/dia durante o pe-ríodo de 12 dias, apresentando apenas leve melhora do quadro

TRATAMENTO COM ALOPURINOL EM PACIENTE HIPERURICÊMICO COMMANIA REFRATÁRIA: RELATO DE CASO E HIPÓTESE PURINÉRGICAALLOPURINOL TREATMENT FOR REFRACTORY MANIA IN HYPERURICEMIC PATIENT: ACASE REPORT AND PURINERGIC HYPOTHESIS

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):33-35 33

* Médico Psiquiatra. Mestrando em Bioquímica pela UFRGS.** Doutorando em Bioquímica pela UFRGS.*** Doutor. Professor do Instituto de Bioquímica da UFRGS.**** Doutor em Farmacologia pela Universidade de Londres.Professor Adjunto pelo Departamento de Psiquiatria da UFRGS.

Endereço para correspondência:Dr. Flávio Kapczinski e Dr. Rodrigo VieiraDepartamento de Psiquiatria UFRGS - Hospital de ClínicasRua Ramiro Barcelos 2350 - quarto andarPorto Alegre - RS

Page 34: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

Tratamento com alopurinol em paciente hiperuricêmico com mania refratária: relato de caso e hipótese purinérgica

paranóide. Apresentava então litemia de 0,8 mEq/l. Exames labo-ratoriais gerais foram normais, com exceção de elevação no ácidoúrico, 9,9 mg/dl.

Após três semanas de uso dessas medicações (lítio, haloperi-dol, ácido valpróico), ainda apresentava sintomas maníacos proe-minentes. Neste momento, foi aplicada a Escala de Young paraavaliar a gravidade dos sintomas maníacos, com valores possíveisentre 0 a 60. Apresentava resultado de 35, tendo sido concomi-tantemente associado o uso de risperidona às medicações em uso,até a dose de 4 mg/dia. Reavaliado novamente após duas sema-nas, nenhuma melhora foi identificada. Neste momento, apresen-tava ácido úrico de 9,8 mg/dl e litemia de 0,8 mEq/l, permane-cendo ainda com sintomas maníacos proeminentes (escala deYoung para mania - 34).

Foi associado alopurinol às medicações já em uso, devido aoquadro de hiperuricemia. Passados três dias do início de uso dealopurinol, paciente apresentou melhora no quadro de insônia.Com 10 dias de uso já apresentava remissão de sintomas comodelírios grandiosos, irritabilidade e agressividade verbal. Foi rea-plicada a escala de Young, apresentando decréscimo, com resul-tado de 11. Reavaliado laboratorialmente, paciente apresentavaácido úrico de 6,9 mg/dl. No período de sete dias, foi retirado ohaloperidol e risperidona, com manutenção da melhora clínicapreviamente apresentada, mantendo-se estável, com importantemelhora dos sintomas maníacos.

Nenhuma alteração foi identificada no exame neurológico. Opaciente apresentava história familiar negativa para transtornospsiquiátricos.

Discussão

Os autores relatam um caso no qual alopurinol foi usado comotratamento adjuntivo em paciente não-responsivo ao efeito anti-maníaco de medicações comumente utilizadas em transtorno dehumor bipolar (lítio, ácido valpróico, haloperidol e risperidona).A ordem de escolha das medicações baseou-se no tempo de usodas mesmas no meio psiquiátrico como estabilizadores do humor,de acordo com a literatura. O alopurinol, extensivamente usadocomo agente hipouricêmico, inibe a enzima xantina-oxidase, quecataliza a transformação de hipoxantina em ácido úrico. A escolhapelo uso posterior de alopurinol explica-se devido ao pacienteapresentar quadro hiperuricêmico e à descrição de seu efeito anti-convulsivante em epilepsias refratárias,4 mecanismo este propostocomo base terapêutica para transtorno de humor bipolar.

Os itens que mais melhoraram após a associação de alopuri-nol foram o sono, a fala (pressão na fala), o conteúdo do pensa-mento (delírios grandiosos e paranóides), a irritabilidade, a hiper-sexualidade e a hiperreligiosidade. É importante destacar que opadrão de sono foi um dos principais efeitos terapêuticos notadoscom o uso do alopurinol. Por fim, o presente caso levanta a ques-tão do papel farmacológico do alopurinol em transtorno de hu-mor bipolar. Questiona-se se este efeito prático é visto somenteem casos com hiperuricemia, já que em uso clínico esta medica-ção é utilizada apenas como agente hipouricemiante, ou se seuefeito anticonvulsivante por si só pode representar também umefeito estabilizador do humor como outros exemplos já conheci-dos (carbamazepina, ácido valpróico). No presente caso pode-se

levantar a hipótese que a hiperuricemia possa ser um fator rela-cionado a refratariedade à resposta antimaníaca por estabilizado-res de humor. A adenosina, via receptor A1, é considerada um an-ticonvulsivante endógeno, especialmente em adultos6 e tambémpode atuar como neuromodulador da liberação pré-sináptica deGABA no sistema nervoso central.7 O efeito anticonvulsivante daadenosina pode ser identificado em vários artigos. De acordocom Borowicz et al, a adenosina atua no efeito anticonvulsivanteda carbamazepina, potencializando-a via receptor A1.8 A relaçãoepilepsia, kindling (estímulo elétrico repetido em determinadaárea cerebral) e comportamento é vista por Kalynchuk et al, pro-pondo que kindling na amigdala está associado a exacerbação dealteração do padrão de emocionalidade no comportamento.9Agonista do receptor de adenosina A1 (cloroadenosina) apresen-ta não só efeito anticonvulsivante, bem como previne desenvolvimento de epilepsias estimuladas pelo processo de kindling. Este mesmo processo é atualmente aceito como baseetiológica mais provável dos episódios maníacos em transtornode humor bipolar. Com isto, os autores descrevem uma hipótesepurinérgica para o transtorno de humor bipolar, associando omecanismo de kindling, amplamente estudado, ao potencial tera-pêutico de fármacos com atividade adenosinérgica, como no casoo alopurinol, questionando a influência desta relação numa pos-sível etiologia para esta doença.10

Summary

The treatment of bipolar disorder has advanced with introduction ofnew medications with mood stabilizing effects. Refractory cases re-main an ongoing challenge to psychopharmacology.The authors des-cribe a case of a 43-years-old man, who used allopurinol adjunctively.He was taking lithium 900 mg/day, valproate 1,750 mg/day, haloperi-dol 10 mg/day and risperidone 4 mg/day. He presented his first ma-nic episode, and without remission of symptoms with the standardtreatments proposed.The patient was evaluated for two weeks be-fore and after using allopurinol. When the patient used allopurinol,insomnia and manic symptoms showed reduction. No adverse effectwas observed.The authors related better results with 300 mg/day ofallopurinol, according to reduction of symptoms in 68% at the YoungMania Scale after two weeks of use.The authors conclude that allo-purinol may be effective in refractory manic episodes. Controlledstudies are needed to clarify this point. The authors still propose apurinergic hypothesis to this case.

Key-words: Allopurinol; Bipolar Disorder; Mania; Hiperuricemia;Mood Stabilizers; Antipsychotics

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Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):33-35 35

Page 36: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

“NOGLIMA”: TOC RESISTENTE COM RESPOSTA A ADIÇÃO DE RISPERIDONARESISTANT OCD WITH RESPONSE TO ADDITION OF RISPERIDONE

Rodrigo Barreto Huguet *Gustavo Fernando Julião de Souza **

Resumo

Os autores apresentam o caso clínico de um paciente do sexo mas-culino de 18 anos de idade que há três anos vinha apresentandopensamentos intrusivos e recorrentes, alguns deles sob a forma davoz de sua mãe. Apesar de considerá-los irracionais, vinha apresen-tando sob sua influência compulsões mentais e motoras, evoluindocom déficits no contato interpessoal e familiar, na higiene, alimenta-ção e atividades produtivas. Movimentos estereotipados também es-tavam presentes.Aspectos comuns entre pacientes paranóicos e ob-sessivos são descritos e o transtorno obsessivo-compulsivo pode re-presentar um espectro que varia de acordo com o insight do pacien-te. Após várias tentativas terapêuticas houve melhora clínica impor-tante do paciente com o uso de clorimipramina, 225 mg/dia, e rispe-ridona, 4 mg/dia.Alguns estudos sugerem que a adição de risperido-na no tratamento pode ser útil em casos de transtorno obsessivo-compulsivo resistente.

Palavras-chave: Transtorno Obsessivo-Compulsivo; TranstornoObsessivo-Compulsivo Resistente; Transtorno Obsessivo-Com-pulsivo Psicótico

Caso Clínico

Paciente encaminhado ao serviço de Psiquiatria do Hospitaldas Clínicas da UFMG pelo Hospital-Dia do Hospital Psiquiátri-co Galba Velloso em 16/09/96.

Identificação

NVS é um jovem de 18 anos, leucoderma, solteiro, sem pro-fissão, estudou até a quinta série do primeiro grau e é natural dointerior de Minas Gerais, onde reside.

História da moléstia atual

O paciente afirma que na quinta série, quando estava com 15anos, “vinha em sua mente” durante as aulas a imagem de um co-lega agredindo-o. Nesse momento, sentia-se obrigado a apagar afrase que estivesse escrevendo e a se imaginar agredindo seu co-

lega. Em outras ocasiões, relata que surgiam em sua mente ima-gens de vizinhos agredindo sua mãe, tendo que se imaginar ba-tendo nos vizinhos. Nesse período, apresentou uma lesão nomembro superior direito, tendo sido diagnosticada leishmaniosee se submetido a tratamento específico. Relata que seu médico oinformou que poderia ficar com lesões permanentes no membrosuperior e, principalmente, no nariz. Diz que sua mãe discutiacom os outros sobre sua doença, mas não comentava sobre issocom ele, motivo pelo qual passou a ter medo de ser portador decâncer, tendo também “ouvido falar” sobre “amputação de bra-ço”. Desde então, começou a “imaginar” o braço amputado, ten-do que, para obter alívio, repetir o movimento que estivesse fa-zendo no momento de maneira invertida e imaginar o braço sa-dio. Passou a ter pensamentos onde se via morto num caixão.Nessas ocasiões, tinha que imaginar pelo menos duas pessoas nocaixão, usualmente seus irmãos, e se imaginar com o nariz sadio.Nos três anos subsequentes o paciente parou de freqüentar a es-cola. Fazia a matrícula e comparecia às aulas no início do ano,mas depois interrompia, pois dizia que não “aguentava prestaratenção em nada”.

Atualmente, o paciente encontra-se sem se alimentar adequa-damente, ingerindo apenas sopa. Constantemente, relata que “avoz da mãe vem à sua mente” do seguinte modo: “o N. está comcâncer no nariz”. Para obter alívio, precisa repetir o movimentoque estiver fazendo de maneira invertida, e repetir mentalmentea frase ao contrário: “riz-na no cer-cân com tá-es N o”. Segundo amãe e a irmã, o paciente faz gestos estranhos ao atravessar a ruae passa grande parte do tempo em frente ao espelho. N diz queprecisa ficar olhando-se no espelho para certificar-se de que seunariz está sadio.

Procurou atendimento médico em sua cidade natal, sendo-lheprescrito imipramina, 75 mg/d, e haloperidol, 5 mg/d. Apresen-tou distonia aguda, procurando atendimento no Hospital Psi-quiátrico Galba Velloso.

História pregressa

Nega tabagismo, uso de drogas, doenças, convulsões. Etilis-mo ocasional.

História pessoal

O paciente tem oito irmãos, sendo o mais novo. O mais velhotem 36 anos. Tem relacionamento distante com a maioria dos ir-

* Residente do segundo ano da Residência Médica de Psiquiatria doHospital das Clínicas da UFMG** Preceptor da Residência Médica em Psiquiatria do Hospital dasClínicas da UFMG

Endereço para correspondência:Residência de PsiquiatriaHospital das Clínicas - UFMGAv. Prof. Alfredo Balena, 110 - 7º Andar30130-100 - Belo Horizonte - MG

36 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39

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mãos, relacionando-se melhor apenas com uma irmã que resideem Belo Horizonte. Não conversa com seu pai, segundo ele, por-que este agride sua mãe. Até os 15 anos, havia repetido apenasuma vez o ano letivo, na terceira série. Nunca manteve relaçõessexuais, relatando apenas quatro envolvimentos amorosos fuga-zes com meninas.

História familiar

Prima com depressão.

Exame do estado mental

Paciente com boas condições de higiene, com um boné na cabeça, emagrecido, pálido, semblante inexpressivo.Cooperativo, relata seus sintomas com algum constrangimento,demonstrando estranheza em relação a eles, embora evidenciecerta indiferença afetiva. Relata pensamentos invasivos e recor-rentes, além de uma voz que “vem à sua mente”, que, apesar deser a voz de sua mãe, reconhece como “produto de sua mente”;considera os pensamentos como irracionais, porém, sob sua in-fluência, apresenta compulsões mentais e motoras.

Súmula psicopatológica

Paciente emagrecido, cooperativo, orientado no tempo e es-paço, consciência clara, normovigil, normotenaz, memória pre-servada, relato de pensamentos de cunho obsessivo, eutímico, crí-tica presente, inteligência compatível com seu grau de instrução.

Evolução do caso

Foi instituído tratamento com clorimipramina, até 225 mg/dia,sem melhora clínica, porém com uso irregular da medicação. Re-duzida a clorimipramina para 150 mg/d e instituído flufenazina,até 4 mg/dia. Evoluiu, inicialmente, com melhora das compulsõesmotoras e do convívio social, passando menos tempo em frenteao espelho. Relatou melhora na alimentação, apesar de não comercarne e nem arroz porque, quando o fazia, “vinha a voz à suamente”: “o N vai ter câncer no nariz”. Em cinco meses de trata-mento, apresentou piora clínica, relatando um novo sintoma:quando olhava para algo que tivesse ângulos, como a letra M, ti-nha que contar todos os ângulos do objeto “9 x 9 vezes”, o que lheconsumia bastante tempo. Efetuado aumento da clorimipraminapara 225 mg/dia, mantida a flufenazina a 4 mg/d. Paciente negamelhora clínica, usando regularmente a medicação, e relata novossintomas; ao ver um toco de cigarro no chão, precisa pisá-lo e ras-pá-lo para trás e para frente várias vezes; ao passar por uma por-ta, precisa retornar e passar novamente por 12 a 18 vezes, sempresob a influência da “voz”. Relata que, às vezes, não necessita fa-zer os atos que a “voz” lhe ordena, podendo “ficar devendo”.Outras vezes, a “voz” lhe diz: “você pode não passar pela porta12 a 18 vezes, mas não irá se masturbar”; ou “não irá ter relaçõessexuais este ano”. Retirados a flufenazina e anafranil, instituídohaloperidol e paroxetina, o qual foi suspenso em dois meses porbaixa tolerabilidade e dificuldades em comprar a medicação. Efe-

tuado aumento do haloperidol até 12,5 mg/dia, com melhora par-cial significativa da “voz” e dos atos compulsivos.

Relatando que o haldol lhe causava desânimo, paciente sus-pende a medicação. Retorna após dois meses com piora significa-tiva; não tem tomado banho ou escovado os dentes, estando commau cheiro, irritado, não conversa com os parentes, não se ali-menta de carne ou arroz. Tem “ouvido” constantemente a “voz”,sempre de sua mãe, dizendo : “você é canceroso”, ou “você vaiter câncer no nariz”, tendo que repeti-las de trás para frente porvárias vezes. Relata, ocasionalmente, movimentos circulares este-reotipados involuntários de seus braços, “causados por sua men-te”, os quais ele tem que repetir ao contrário. Não usa o banhei-ro de sua casa há três meses, pois quando o usa “vem a voz à suamente”, tendo usado o banheiro da casa da irmã. Instituído fluo-xetina, 20 mg/d, por um mês, sem melhora clínica. Suspensa afluoxetina, instituída clorimipramina, aumentada até 250 mg/dia,associada a trifluorperazina, aumentada até 12,5 mg/dia. Pacien-te evoluiu com melhora clínica importante, passando a tomar ba-nho e escovar os dentes diariamente, alimentar-se de carne e ar-roz, mais comunicativo e sociável, passando a exercer atividadeprodutiva, trabalhando na mercearia de um primo. N, porém,sempre mantinha os pensamentos intrusivos sob a forma da“voz” de sua mãe e as compulsões mentais.

Ocorreram pioras clínicas quando o paciente envolveu-se emcomplicações com a polícia após seu primo furtar um desodoran-te de um supermercado e terem-se envolvido em litígio com ofuncionário do caixa, foi quando o paciente, por “esquecimento”,reduziu a dose da trifluorperazina para 5 mg/dia. Nessa ocasião,desenvolveu um novo sintoma: sempre que ouvia a “voz”, o pa-ciente tinha que cuspir, não importando onde estivesse. Algumasvezes cuspia no chão de casa ou na própria roupa. Parou de esco-var os dentes; sempre que o fazia, “surgia na sua mente” a voz damãe dizendo: “o N está com caroço maligno debaixo do braço”(isso passou a ocorrer depois que o paciente teve uma linfadeno-megalia na axila direita). Tinha então que repetir a palavra “ma-ligno” ao contrário: “noglima”. Enquanto isso, não podia pararde escovar os dentes, o que lhe tomava cerca de 10 minutos de es-covação. Para evitar o trabalho, não os escovava. Quando, pas-sando por algum lugar, “ouvia a voz”, tinha que ficar desenhan-do “setas” com o pé no chão, em direção contrária ao lugar.

Como o uso da trifluorperazina, em doses de 12,5 mg/dia,não resultou em melhora da “voz” e das compulsões mentais,apesar de melhora comportamental, optou-se pela sua substituição por risperidona, 3 mg/dia, associada à clorimiprami-na, 225 mg/dia. Retornou em 35 dias com melhora significativado comportamento e cessaram as compulsões mentais; quando “ouvia a voz” não tinha mais que repetir compulsivamente pala-vras ao contrário, mas “somente” que andar para trás e cuspir nochão, o que, segundo o paciente, vinha atrapalhando sua locomo-ção (não observado ao exame).

Aumentada a risperidona para 4 mg/dia. Retornou após 35dias relatando redução das “vozes” e das compulsões mentais,sem transtornos da alimentação ou higiene. Porém, com uso ape-nas de clorimipramina nos últimos 15 dias. Recomendamos quereiniciasse a risperidona. Retornou dois meses após, em janeirode 1999. Por motivos financeiros havia interrompido a risperido-na um mês antes e vinha em uso irregular da clorimipramina. Re-

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39 37

Page 38: Casos clínicos em Psiquiatria Sumário

“Noglima”: TOC resistente com resposta a adição de risperidona

latava uma piora importante; tudo o que falava tinha que repetirmentalmente ao contrário; quando lia algo, tinha que ler de novoao contrário. Não obstante, negava pela primeira vez estar sendoimportunado pelas “vozes”.

Resultados de exames

Tomografia computadorizada de crânio, EEG, ECG, hemo-grama: sem alterações.

Hipótese diagnóstica

Transtorno obsessivo-compulsivo, forma mista com idéias ob-sessivas e atos compulsivos. CID-10: F42.2.

Discussão

Segundo Gebsattel, a lucidez com que o obsessivo-compulsi-vo conhece seu transtorno sem, no entanto, chegar a dominá-lo,torna patente o paradoxo de sua existência e aumenta a inquietu-de do interesse psiquiátrico. O doente obsessivo, segundo Jas-pers,1 é perseguido por idéias que lhe parecem não só estranhas,mas insensatas, e das quais, no entanto, não pode livrar-se, comose correspondessem à verdade. Estabelece forma especial de rela-ção mágica com o mundo, como se o que ele faz ou pensa pudes-se impedir ou provocar algum acontecimento. Elabora, então,seus pensamentos de modo a formar um sistema de significados,e seus atos, um sistema de cerimônias e ritos, apesar de que qual-quer ação que pratique lhe deixa dúvida, obrigando-o a recome-çar do princípio. A manie de précision e a folie de doute do anan-cástico levaria a um transtorno, segundo Gebsattel,2 na sua pró-pria estrutura de tempo, a uma inibição no “chegar a ser” do pa-ciente, impossibilitado de concretizar os projetos a que se propõe.

Von Gebsattel2 compara o mundo do anancástico com o doparanóico; ambos vivem em um mundo privado de inocuidade,no qual acontecimentos sem importância adquirem peculiaressignificados. Não existem casualidades sem importância, mas so-mente intenções. O doente obsessivo, porém, reconhece comoabsurdo esse mundo falso que determina sua conduta e, portan-to, experimenta seu comportamento como forçado e sem liberda-de. O paranóico, pelo contrário, se deixa levar naturalmente porseus conteúdos delirantes.

Por outro lado, Souza* propõe que uma visão antropológicapoderia permitir uma melhor compreensão do adoecer psíquicoe impedir seu distanciamento das formas legítimas de expressãosimbólica humana. Sabe-se que em alguns povos primitivos, o te-mor a uma “invocação dos mortos” levava-os a evitar toda e qual-quer menção ao nome do defunto, inclusive palavras ou sílabasonde houvesse alguma assonância com o nome do morto. Umacriança recém-nascida, um cadáver ou guerreiro que tivesse ma-tado inimigos tornavam-se objetos-tabu, não podendo ser vistosou tocados até que fossem concluídos os rituais de purificação,sob pena de que terríveis castigos sobrenaturais se abateriam so-

bre um ocasional infrator, ou mesmo sobre a tribo inteira. Dessemodo, o homem primitivo via-se diante de um mundo povoadode perigos e ameaças sobrenaturais que lhe exigiam uma imedia-ta e eficaz auto-proteção, a qual, por sua vez, consistia na realiza-ção incessante e ordenada de rituais mágicos minuciosos e com-plexos.

Insel e Akiskal3 sugerem que a tradição de se considerar a sín-drome obsessivo-compulsiva como “neurótica” tem levado a umasubvalorização de aspectos da síndrome que mais parecem psicó-ticos. Algumas das primeiras descrições estabelecem conexões in-trínsecas entre esses sintomas e estados psicóticos. Em 1660, Je-remy Taylor descreveu um paciente cujos pensamentos intrusivosego-distônicos sobre ter pecado “evoluíram” para uma crença de-lirante de que realmente havia pecado, e que a sua escrupulosida-de de consciência era uma punição. Westphal dizia que a obses-são, por seu conteúdo irracional, representava uma desordemfundamental do pensamento, e chamava a síndrome obsessiva-compulsiva de abortive insanity. Bleuler concordava com Wes-tphal que a síndrome obsessivo-compulsiva seria uma variante ouum pródromo da esquizofrenia. Superficialmente, ambas com-partilham alguns aspectos clínicos; ocorrem em idade precoce,são crônicas, não remitem e envolvem pensamentos intrusivos ecomportamento bizarro.3

Rosen,4 em um estudo de revisão de 848 pacientes esquizofrê-nicos, mostrou que 3,5% tinham sintomas obsessivos importan-tes. Estudos de follow-up de pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo mostraram que 20% desenvolveram sintomas psicó-ticos, apesar de ser extremamente raro o preenchimento de crité-rios diagnósticos para esquizofrenia. Insel e Akiskal3 relatam quea mudança de uma obsessão para um delírio ocorre quando a re-sistência interna contra as idéias obsessivas é abandonada e o in-sight é perdido. Isso poderia ocorrer de duas formas; uma formaafetiva, quando o medo de contaminação é substituído por umaculpa delirante de que o paciente contaminou ou pode contami-nar outras pessoas, e uma forma paranóide, quando dúvidas sobrehaver cometido algum ato repreensível são substituídas pelo delí-rio de que o paciente estaria sendo perseguido por realmente ha-ver cometido atos condenáveis. Em alguns pacientes os pensa-mentos repugnantes podem ter um caráter tão intrusivo que sãodescritos como vozes acusatórias internas, repetitivas e semelhan-tes ao pensamento obsessivo, podendo ser melhor descritas, se-gundo Insel e Akiskal,3 como “pseudo-alucinações”. Esses mes-mos autores esclarecem que, assim como ocorre nos transtornosde humor, sintomas psicóticos podem sobrevir durante um trans-torno obsessivo-compulsivo, não significando diagnóstico de es-quizofrenia, mas psicoses afetivas ou paranóides reativas e geral-mente transitórias. Além disso, o transtorno obsessivo-compulsi-vo representaria um espectro variando segundo o insight do pa-ciente. Aqueles casos mais severos, no fim do espectro, poderiamser melhor descritos como “psicose obsessivo-compulsiva”.3Lembramos que Hollander5 sustenta amplo “espectro obsessivo-compulsivo” que abrange vários outros transtornos, nos quaispensamentos obsessivos e rituais compulsivos se manifestam.

Cerca de 40% dos pacientes com transtorno obsessivo-com-pulsivo, são resistentes ao tratamento convencional com inibido-res de recaptação da serotonina. A terapia comportamental tempapel adjuvante importante no tratamento, principalmente em

38 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39

* Souza, GFJ. "Considerações Gerais Sobre as Neuroses: Uma VisãoFenomenológico-Dinâmica" (ensaio inédito) Belo Horizonte, 1988.

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pacientes com predomínio de rituais compulsivos. A psico-cirur-gia pode ser indicada em casos graves de TOC refratário, commelhora de até 25% a 30% dos pacientes.6

Em revisão da literatura (MEDLINE, últimos 10 anos), en-contramos cinco artigos nos quais a risperidona foi utilizada comoadjuvante aos inibidores da recaptação da serotonina em pacien-tes com TOC refratário (não fazem referência à presença ou nãode sintomas psicóticos).7-11 Em dois desses estudos,7,8 o númerode pacientes era muito pequeno (três e cinco pacientes com TOCrefratário), mas 100% tiveram melhora com a adição de risperido-na. Em um estudo de Saxena9 de 1996, 14 de 16 pacientes comTOC refratário (87%) tiveram melhora nos sintomas obsessivo-compulsivos após três semanas da adição de risperidona ao trata-mento, com dose média de 2,75 mg/dia. Ravizza10 publicou umtrabalho em que sete de 14 pacientes refratários tiveram melhoraclínica após a adição de risperidona a 150 mg de clomipramina.

Todos os artigos sugerem que a adição de risperidona podeser útil em pacientes com TOC refratário. Andrade12 argumentaque os mecanismos de ação dos ISRS e da risperidona se oporiamapenas aparentemente, no sentido de que os primeiros liberamserotonina e o último bloqueia os receptores serotoninérgicos.Conforme essa concepção, a risperidona deveria agravar os sinto-mas obsessivo-compulsivos. Não obstante, os ISRS levam a umadown regulation dos receptores serotoninérgicos, sendo que esteefeito poderia ser potencializado, agora sim, através do bloqueiopela risperidona. Situação semelhante ocorreria na transmissãodopaminérgica, nas quais esses medicamentos também atuam.Há, de fato, relatos de caso evidenciando piora dos sintomas ob-sessivos com o uso de antipsicóticos atípicos, porém isso pareceocorrer com muito mais freqüência na esquizofrenia com sinto-mas obsessivos do que em pacientes com TOC primário.13

Summary

N is an 18-year-old man who has presented invasive and recurrentthoughts for three years. In some of them his mother’s voiceappears. Although considering them irrational, he has under its in-fluence. Mental and motor compulsions, with decrease in interperso-nal contact, hygiene care and occupational functioning wereobserved. Stereotypic movements are also present. Common as-pects between paranoic and obsessive patients are described andthe obsessive-compulsive disorder may represent a spectrum thatvaries according to the patient's insight. After several therapeutic ef-forts there was a clinical improvement of the patient with clorimi-

pramine 225 mg a day and risperidone 4 mg a day. Some studies sug-gest that the addition of risperidone could be useful in patients withresistant obsessive-compulsive disorder.

Key-words: Obsessive-compulsive Disorder; Resistent Obsessivecompulsive Disorder; Psicotic Obsessive-compulsive Disorder

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Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):36-39 39

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40 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):40-42

Trabalho adaptado do original "Further notes on Munchausen’ssyndrome: a case report of a change from acute abdominal to neu-rological type", de Barnett W, Vieregge P e Jantschek G. Journal ofNeurology 1990; 237:486-488. Steinkopff Verlag/ Springer Verlag.Publicado com autorização.

* Oberarzt at the Psychiatrische Universitätsklinik Heidelberg

Endereço para correspondência:Psychiatrische UniversitätsklinikVoßstrasse 4D-60115 HeidelbergFederal Republic of Germany

MUNCHAUSEN'S SYNDROME: A CASE BEGINNING IN EARLY CHILDHOODAND THAT CHANGED FROM ACUTE ABDOMINAL TO NEUROLOGICAL TYPESÍNDROME DE MUNCHAUSEN: UM CASO COM INÍCIO NA INFÂNCIA E QUEMUDOU DO TIPO ABDOMINAL AGUDO PARA O NEUROLÓGICO

Winfred Barnett *

Summary

A rare case of Munchausen's syndrome beginning in early childhoodis described.The diagnosis of Munchausen's syndrome was made atthe age of 29 years, after the symptoms had changed from acuteabdominal to neurological complaints, with feigned loss of con-sciousness, first ascribed to an encephalitis. Insight into the psy-chopathology of this patient is given by his biography, by assessmentof a psychotherapist, who had treated him some years before, andby his observed profile in some psychological tests.

Key-words: Artefactual Disease - Factitious Disease - Self-inducedIllness - Munchausen's Syndrome

Since the description of Munchausen's syndrome in 1951,over 100 similar cases have been reported,1,2 The essential featureof this chronic disorder, now termed factitious disorder with pre-dominantly physical signs and symptoms,3 is the intentional pro-duction of physical symptoms of a dramatic and emergencynature, leading to multiple hospitalizations and invasive medicalprocedures without result. The diagnosis is frequently missed,because the patients often leave hospital after a short time againstmedical advice. In the original description, Asher4 distinguishedthree subtypes: the acute abdominal type; the haemorrhagic typewho typically bleed from lungs or stomach; and the neurologicaltype who present with paroxysmal headache, loss of conscious-ness, or peculiar fits. According to Poeck,5 the character of thesymptoms is usually constant. Because the patients are poorlymotivated to accept and follow through with psychiatric treat-ment, little is known about the psychogenesis of Munchausen'ssyndrome.

Case Report

A 29-year-old man suddenlly collapsed, crying: “Help, I can'tsee any longer!” In the hospital 20 km away the patient showedcontinuous psychomotor restlessness and did not react when spo-ken to. He was thought to be stuporous and was transferred to

the intensive care unit of the nearest university hospital. By ECGhe was judged to have an intracardiac thrombus so that left ven-tricular angiography and computed tomography (CT) were per-formed without finding any abnormality. In the cranial CT theradiologist could not “exclude brain oedema”. Subsequent rightvertebral artery angiography excluded basilar thrombosis. Finallyan iatrogenically haemorrhagic lumbar puncture showed97/mm_ cells with a slight increase in protein. All these proce-dures were carried out within 10th of admission, the patient having been sedated by a cumulative dose of 100 mg diazepamand 20 mg midazolam. EEG the following day showed movementartefacts and apart from some 8 Hz alpha waves there were manytheta waves, so that finally an encephalitis was suggested. Focalsymptoms never occurred, but the patient was somnolent.Routine laboratory analysis as well as serological and CSF searchfor infectious disease gave normal results. Another traumaticallyhaemorrhagic lumbar puncture showed 57/mm cells_ with nor-mal cell composition and protein and further EEG investigationsindicated a slow alpha rhythm in addition to signs of drowsiness.After six days the patient left the hospital at his own request.

During the following months he was sent by his general prac-titioner to our neurological outpatient service several times. Hecomplained about a “very bad headache”, which he assigned tothe previous lumbar punctures, although on the other hand hepretended not to remember these. Smiling strangely and know-ingly, he stated: “As if somebody knocks you on the head with asledgehammer, it starts in the neck and then moves to the forheadand across the whole back, as if you back was torn open withbarbs.” Neurological and CSF examination. EEG, and cranial CTwere repeatedly normal. Mental examination revealed demon-strative behaviour and a low degree of intelligence, but no evi-dence of psychotic symptoms.

Inquires now disclosed at least 36 hospitalizations in eightdepartments of five different hospitals. Medical documents ordischarge reports of 21 of them were received. His first admissionhad taken place at the age of four years with a suspected menin-gitis. However, two days later the child had been discharged freeof symptoms. The subsequent admissions had taken place onaverage every six months until the age of 26; all were due to acuteabdominal complaints, particularly gastric and umbilical colics.Haemorrhagic diarrhoea, reported every time, could never beconfirmed; despite frequent and repeated application of many

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diagnositc methods used in roentgenology, endoscopy, biopsyand laboratory chemistry an organic disease was never found. Oneach admission he was free of symptoms a few days later; in adult-hood he always left the hospital very soon, against medical advice.Since the age of 22, a severe abuse of analgesics was documented;on admissions at age 25 and 26 the patient presented with drug-induced ileus, which disappeared after he stopped the self-administration of drugs. Reasons for the repeated hospital treat-ments were the always very dramatic symptoms on admission, butalso frequent changes of physicians. Furthermore, their prelimi-nary diagnoses of chronic remitting diseases (colitis ulcerosa orCrohn's disease) were contributive, although the patient knewthey were false.

Detailed history of the admission due to suspected encephali-tis revealed the following. That evening he and his wife were tovisit some friends of hers whom the thought to be very disagree-able. When his wife phoned and asked him to meet her in the caras arranged, in order to pay the visit, he complained about diar-rhoea, but his wife did not believe him, whereupon he cried:“Help, I can't see any longer!” Reevaluation showed that pleocy-tosis and increased protein in the CSF were caused by haemor-rhagic lumbar puncture and that the EEG changes were due toclouded consciousness caused by sedatives. On the basis of theabove history, the diagnosis of Munchausen's syndrome wasmade.

Personal development

The patient's records indicated that he had grown up in asuperficially intact family and had attended a school for educa-tionally subnormal children. At age 12 he had told a psychologistthat he thought his parents rejected him. At that time, the umbilical colics were interpreted as symptoms of the search forcontact and as expression of feelings of displeasure. At age 15 he started work as an unskilled labourer, frequently changedjobs afterwards, and had several periods of unemployment. Atage 20 he married; in two medical reports his wife was describedas being dominant and bossy. From age 18 to 22 considerablealcohol abuse was documented. At age 21 he wrote to the head ofa psychosomatic clinic: “My parents constantly treat me as if I werea child and all important decisions are taken by them. If I try to getmy own way, my parents threaten to commit suicide... My convul-sions occur especially after arguments with my parents...Furthermore, I was an unwanted child and had to witness how mybrother was preferred...”

The patient stopped several outpatient psychotherapy coursessoon after starting them, only to be admitted to the hospital as anemergency shortly after. At age 26 hospital admissions ceased fora period of three years after he had taken a permanent position asan unskilled labourer. The head of the company had beenacquainted with the patient and his problems since early child-hood; the foreman was his father. His present family doctorjudged the patient to be “hardly capable of living on his own andneeding the supervision of parents and wife”. The last consultedpsychosomatic doctor characterized him as follows: “He showedaddictive behaviour with wishes for plenty of strong medicationthat were expressed as imperative requests for direct and immediate

help. If his wishes were not fulfilled, his helpless and demandingbehaviour turned immediatly into aggressive and de preciative acting out. In depth psychological terminology he can be describedas having a low selfesteem and is in constant danger of descompen-sating with paranoid cathexis of his own body. Motivation forlongterm psychotherapy was very poor, since his possibilities ofobtaining relief from inner tensions through acting out were toonumerous. Family therapy failed because it brought about shifts inthe marital and familial balance, whereupon the patient reactedwith a distinct deterioration of symptoms”.

Psychological testing

In the Hamburg-Wechsler-Intelligenztest für Erwachsene(Hamburg- Wechsler Inntelligence Test for Adults) our patientachieved a total IQ of 79 (verbral IQ 74, performance IQ 85).With respect to the test profile a subaverage intellectual capacitywith lack of educa-tion close to intellectual inadequacy wasobserved (verbal part), giving no indication of an acquired organ-ic impairment due to cerebral pathology (performance part).Considering the maximum stanine value of 1 on scale 9 (the so-called lie score) and the normal values on all other scales of theFreiburg Persönlichkeits-Inventar (Freiburg Personality Inventory)the only interpretation of these results is that the patient inten-tionally gave wrong answers. In the Minnesota MultiphasicPersonality Inventory (MMPI), however, he had normal values onthe validity scales, thus allowing evaluation. The T-scores of thescales “hypochondria” and “hysteria” were 75 and 71 respective-ly, the T-scores of all other scales lying between 45 and 60.

Discussion

Psychiatric patients not suffering from Munchausen's syn-drome but showing the same MMPI profile as our patient arewell known to present somatic complaints without organic rea-sons. They mostly receive a neurotic (hysterical, hypochondria-cal) diagnosis. Their underlying personality is described as“rather immature, egocentric and selfish. They are insecure andhave a strong need for attention, affection and sympathy. Theyare very dependent, but they are uncomfortable with the depen-dency and experience conflict because of it. They pre-sent them-selves as normal, responsible without fault... by making excessiveuse of denial, projection and ratio-nalization. They prefer medical explanations for their symptoms, and they lack insightinto psychological factors underlying their symptoms. Because oftheir unwillingness to acknowledge psychological factos, they aredifficult to motivate in traditional psychotherapy...”.6 Thisabstract description of a test profile corresponds nearly perfectlyto the earlier written self-portrait, biography and present way-oflife of our patient as well as with the judgements of consultedphysicians and our own assessment.

Remarkably, our patient started his career at the age of fouryears. Except for the very few cases with socalled Munchausen byproxy,7,8 which means that parents feign or cause illness in theirchildren in order to obtain medical attention for them, we havenot found a documented case beginning in early childhood.

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Whether our patient has begun as a Munchausen by proxy canneither be proven nor excluded. In eitheir case producing thesymptoms of severe illness has become a stable, lifelong persistingpattern of behaviour.

The problems of classifying such cases arises from the degreeof voluntary control of the behaviour the patient is assumed tohave. For an individual case, this can rarely be decided, becausethe sense of voluntary control is subjective and can only beinferred by the outside observer. In our case, there is evidence ofmuch voluntary control, as for example his wandering from doc-tor to doctor to prevent detection, or giving false diagnoses, orexaggerating and feigning the history of his symptoms. The actu-al change from acute abdominal to neurological type appearedwhen his wife had assumed his wellknown abdominal pain to befeigned. He was obviously mainly motivated by avoiding some-thing unpleasant and possibly by attracting attention and care.His behaviour in this situation was, however, certainly more com-plex than that of a pure malingerer. Unconscious mechanisms areundoubtedly involved, but they are not, by definition, conscious-ly produced. From this point of view it has been argued9 thateven in cases of Munchausen's syndrome, the patient may beunder the control of psychodynamic forces of which he is notfully conscious. It seems, indeed, that our patient has intentional-ly produced his symptoms, but with increasing pressure of the sit-uation interacting with diagnostic emergency measures, he wasno longer able to control his behaviour. From this point of view,it seems that physicians contributed to his actual psychodynamicsituation.

Resumo

Um caso raro da síndrome de Munchausen com início na infância édescrito. O diagnóstico da síndrome de Munchausen foi realizado na

idade de 29 anos, após os sintomas terem mudado de abdominaisagudos para neurológicos, com simulada perda de consciência inicial-mente atribuída a encefalite. Insight na psicopatologia deste pacienteé obtido através de sua biografia, de avaliação de um psicoterapêu-ta, que o tratou alguns anos antes, e de seu perfil observado em al-guns testes psicológicos.

Palavras-chave: Transtorno Factício; Doença Auto-induzida;Síndrome de Munchausen

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42 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):40-42

Munchausen's syndrome: a case beginning in early childhood and that changed from acute abdominal to neurological type

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CONSIDERING THE SLEEP APNEA HIPOPNEA RERA SYNDROME IN THE DIFFERENTIAL DIAGNOSE OF PSYCHIATRIC DISORDERSCONSIDERANDO A SÍNDROME DE APNÉIA HIPOPNÉIA ARER NODIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DE TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS

Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):43-45 43

Dirceu de Campos Valladares Neto*

Summary

It is not rare to see patients complaining to the psychiatrist ofdepression, insomnia, apathy, lack of motivation and hypersomniawho do not respond to antidepressants (AD). Obstructive sleepapnea hypopnea syndrome (OSAHS) with respiratory effort-relatedarousal (RERA) is frequently not considered in the differential diag-nosis or as a second diagnostic, which can lead to frustration to bothdoctors and patients. OSAHS is not a rare condition, affecting 4% to6% of the general population. In Brazil six to eight million people suf-fer from OSAHS, most of them not diagnosed or misdiagnosed andincorrectly treated. OSAHS is also associated with infarct of myocar-dial, strokes, hypertension, a seven fold risk in automobile accidentsand represents a social burden.The purpose of presenting this caseis to call attention for OSAHS in the psychiatric population due to atendency to obesity for using neuroleptics and AD, and due to thefrequent use of benzodizepines, which are prohibited to OSAHSpatients for relaxing the muscles during sleep and worsening thecondition. Herein we present a case history of an 56 years oldOSAHS patient who already had stroke, infarct of myocardial andsuffered somnolence during the day, lack of motivation, apathy,depression, initial insomnia and memory difficulties.

Key-words: OSAHS, Depression, RERA, Insomnia,Benzodiazepines, AD, Apnea, Anxiety, Dementia.

Case history

A 63-year-old retired lawyer presented at our sleep disordercenter complaining excessive daytime sleepiness that appeared tobe related to his very disturbed nighttime sleep. He weighed 74 kilos, which was a normal weight for his height and age but hewas a loud snorer and his wife noticed “apneic episodes” duringsleep. He already had a stroke five years ago which reduced the movements of his right arm. He also had a myocardial infarct three years ago. Lack of motivation, apathy, depressionand memory difficulties were also present. He fulfilled the diag-nostic criteria of major depression episode (DSM-IV) and was inuse of AD (maprotiline, 75 mg/day) and a hypnotic (flurazepan,30 mg/day).

He underwent all-night polysomnography, which showed atotal sleep time of only 204 minutes with a sleep efficiency of

56%. He also displayed breathing disturbances during sleep. Itwas scored 35 apneic/ hipopneic episodes per hour, his dessatu-ration oxigen level was at the range of 64% and 95%, with amean of 89 ± 6,7%. He presented more than 370 arousals duringthe night that were evident on the electroencephalogram duringsleep (Figure 1).

This findings led to a diagnosis of obstructive sleep hipopneaapnea syndrome. The patient started to use a CPAP (continuouspositive airway pressure device) during sleep time which drama-tically improved the quality of his nighttime sleep (Figure 2) anddiminished his tendency for daytime sleepiness. It also improvedhis mood, his level of energy and his blood pressure, decreasingits rates. He also noticed improvement of his memory skills.

Discussion

Sleep-related breathing disorders (SRBD)- breathing disor-ders that are induced or exacerbated during sleep - are very com-mon.1,2 There is a positive relation between SRBD and obesityand between SRBD and aging, although SRBD can occur in thosenot obese and in all ages.1 It occurs twice in man compared towoman but this gender difference tends to be reduced or evenmatched within elderly people. Mood swings, depression, apathy,anxiety, difficulty in beginning sleep, insomnia in general and irri-tability are commonly seen in such patients.2

Although many different respiratory disorders are affected bysleep, the three main syndromes associated with sleep areobstructive sleep apnea syndrome, central sleep apnea syndromeand the central alveolar hypoventilation syndrome.

The obstructive sleep apnea syndrome is characterized byupper airway obstruction that occurs during sleep, leading to achange in the arterial blood gases. Hypoxemia produces cardiaceffects and disrupts sleep, leading to the development of exces-sive sleepiness during the day. Insomnia at the beginning or during sleep can also be present, mainly in the aged (Table 1).3

Central sleep apnea syndrome is characterized by cessation ofbreathing that occurs without upper airway obstruction and leadsto blood gas changes that also can produce disrupted sleep anddaytime sleepiness. Patients with a pure preponderance of centralevents in the absence of Cheyne-Stokes breathing are sufficientlyrare, so that the existence of idiopathic central sleep apnea syn-drome as a separate clinical entity is open to question. In realitymost patients present with a combination of obstructive and cen-tral events with the former predominating.3

* Psychiatrist, sleep disorders clinican, member of the AmericanAcademy of Sleep Medicine.

Endereço para correspondência:Clínica do Sono Alameda do Ingá 78034000-000 - Nova Lima - MGE-mail: [email protected]

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Considering the sleep apnea hipopnea syndrome in the differential diagnose of psychiatric disorders: report of a case

Central alveolar hypoventilation syndrome is due to shallowbreathing that occurs during sleep, associated with blood gaschanges. Typically there is the development of daytime sleepinessbut sometimes a complaint of insomnia.

Our patient did not present a shallow breathing as in the centralalveolar hypoventilation syndrome, which occurs mostly in obesepatients. Central sleep apnea syndrome are seen mostly as a sec-ondary event of the obstructive sleep apnea hipopnea RERA syn-drome. In our patient case the criteria for obstructive apnea/hipop-nea/RERA syndrome was fulfilled: he snored during sleep, present-ed respiratory efforts associated with dessaturations of oxygen andalso presented episo des of cessation of breathing with duration ofmore than 10 seconds, which fulfills the criteria for apnea.

As our patient used the CPAP during sleep, there was a dra-matic improvement in the quality of his nighttime sleep, a decreaseof his tendency for daytime sleepiness, and an improvement of hismood. He described himself as more happier. His initial insomniaceased and we could take his hypnotic off. The temporal areas ofthe brain, responsible for the memory, are commonly affected dur-ing OSAHS, and, in general, improve with treatment.2

Since psychiatric patients are more prone to weight gain asthey use antidepressants and/or neuroleptics and have a seden-tary life, OSAHS is more frequent among them. The use of anxi-olitics/hypnotics can also trigger OSAHS since it relaxes the mus-cles and makes it difficult to the patient to awake from suchevent. Our patient used AD during a short period (<6 months),but the anxiolitics should be avoided for worsening the OSAHS.It is also important to recognize that OSAHS can have a clinicalpicture without excessive movement in bed, absence of snoringand headaches in the morning. A overnight monitoring is funda-mental to diagnose it properly. The polyssonogram is not onlyhelpful in the diagnose but also is useful to define the severity ofthe picture by taking into consideration the amount ofapnea/hipopnea/respiratory effort-related arousal events perhour and the oxyhemoglobin dessaturation levels (Figure 1).3 Forseverity criteria for OSAHS see Table 2.

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Severity of the OSAHS has two components: severity of daytime sleepinessand of overnight monitoring. A severity level should be specified for both com-ponents. The rating of severity for the syndrome should be based on the mostsevere component.

A. Sleepiness1. Mild: unwanted sleepiness or involuntary sleep episodes occur during activities that require little attention. Examples include sleepi-ness that is likely to occur while watching television, reading, or traveling as a passenger. Symptoms produce only minor impairment ofsocial or occupational function.2. Moderate: unwanted sleepiness or involuntary sleep episodes occurduring activities that require some attention. Examples include uncon-trollable sleepiness that is likely to occur while attending activities suchas concerts, meetings or presentations. Symptoms produce moderateimpairment of social or occupational function.3. Severe: unwanted sleepiness or involuntary sleep episodes occurduring activities that require more active attention. Examples includeuncontrollable sleepiness while eating, during conversation, walking,or driving. Symptoms produce marked impairment in social or occu-pational function.

B. Sleep Related Obstructive Breathing Events1. Mild: 5 to 15 events per hour2. Moderate: 15 to 30 events per hour3. Severe: greater than 30 events per hour

Table 2 - Severity criteria for OSAHS3

Figure 1 - Polysonography in a 320 second epoch during evaluation ofthe patient shoes a lot of awakenings correlating with respiratory dis-turbs and low oxygen levels

C3 = EEG; DE = right eye movement; Emg = electromiogram; EKG - electrocardiogram; Pna = nasal pressure; Air = mouthair; Efe = thoracic effort; 2le = legs movement; SaO = oxygen saturation

Figure 2 - Polysonography in a 320 second epoch while using theCPAP shows a harmonic respiratory pattern

The individual must fulfill criterion A or B, plus criterion C.A. Excessive daytime sleepiness that is not better explained by other fac-tors;B. Two or more of the following that are not better explained by other fac-tors:

• choking or gasping during sleep,• recurrent awakenings from sleep• unrefreshing sleep,• daytime fatigue,• impaired concentration; and/or

C. Overnight monitoring demonstrates five or more obstructed breathingevents per hour during sleep. These events may include any combination ofobstructive apneas/hypopneas or respiratory related arousals.

Table 1 - OSAHS Diagnostic Criteria3

C3 = EEG; DE = right eye movement; Emg = electromiogram; EKG - electrocardiogram; Pna = nasal pressure; Air = mouthair; Efe = thoracic effort; 2le = legs movement; SaO = oxygen saturation

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Most of the patients who had a stroke suffered a SRBD orOSAHS, which occurred in the second half of the night, whenREM sleep preponderates.1,4,5 The same is true for infarct ofmyocardial - patients with OSAHS have 500% more chance tohave myocardial infarct than people without it.1 Our patient is agood example of the complications a patient with OSAHS canhave since he already had a stroke and infarct of myocardial.

Treatment in the OSAHS varies depending upon the primarycause of the respiratory disturbance, but can range from behavioral techniques, weight loss, the use of mechanical devicesto free the upper airway obstruction up to surgery. Our patientwill be using the CPAP since he is doing well with it and his car-diologist wants him to avoid surgery.

Resumo

Não é raro ver pacientes queixando-se aos psiquiatras dedepressão, insônia, apatia, falta de motivação, hipersonia e que nãorespondem aos antidepressivos (AD). Muitas vezes a síndrome daapnéia hipopnéia obstrutiva do sono (SAHOS) com acordares rela-cionados a esforços respiratórios (ARER) não é considerada nodiagnóstico diferencial ou como um segundo diagnóstico, o quepode levar a frustração de ambos paciente e médico. SAHOS não écondição rara, afetando 4% a 6% da população geral. No Brasil seisa oito milhões de pessoas sofrem de SAHOS, a grande maioria nãodiagnosticada ou diagnosticada e tratada incorretamente. SAHOSestá também associada com infarto do miocárdio, acidente vascularcerebral, hipertensão, risco sete vezes maior de acidentes automo-bilísticos e representa um fardo social. O objetivo da apresentaçãodeste caso é o de chamar a atenção para a SAHOS na populaçãopsiquiátrica por sua tendência a obesidade pelo uso de neurolépti-cos e AD, e pelo uso freqüente de benzodiazepínicos, que são con-

tra-indicadas nos pacientes com SAHOS por relaxarem os múscu-los durante o sono e piorarem o quadro.Apresentamos aqui o casoclínico de paciente de 56 anos de idade com SAHOS, que já apre-sentou derrame, infarto do miocárdio e sofria de sonolência exces-siva durante o dia, falta de motivação, apatia, depressão, insônia ini-cial e dificuldades de memória.

Palavras-chave: Síndrome da Apnéia Hipopnéia Obstrutiva doSono; Acordares Relacionados a Esforços Respiratórios; Insônia;Benzodiazepínicos, Antidepressivos; Apnéia; Ansiedade;Demência.

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Ronaldo Simões Coelho *

Guimarães Rosa, no início de sua carreira médica, foi clinicarem Barbacena.

Lá, segundo tudo faz crer, ficou conhecendo os loucos e ohospício de tão triste fama. Deve ter sabido da história dos vagõesadaptados da Rede Mineira de Viação - antiga Estrada de FerroOeste de Minas - para coleta e transporte de loucos e leprosos,prática que durou muitos anos. Os loucos eram recolhidos no in-terior de Minas Gerais e entregues àquele hospício onde, cronifi-cados, passariam o resto de suas vidas miseráveis, passando a ter,depois de mortos e transformados em peças anatômicas, a utilida-de de abastecerem as salas de anatomia de várias escolas de me-dicina.

Em “Soroco, sua mãe, sua filha” o escritor Guimarães Rosadeixa o médico Guimarães Rosa falar.

O local onde se passa a história não precisa de nome. É umlugar como tantos outros encontrado em todas as partes de Mi-nas e do Brasil. Tal como as duas loucas, as demais pessoas pre-sentes, incluindo-se o agente da estação, são todos anônimos.Apenas Soroco tem nome, por ser aquele que vem, há anos, cui-dando das pobres doidas.

Ao descrever o vagão, Guimarães Rosa já o vê como o precur-sor do hospício: “parecia coisa de invento de muita distância, sempiedade nenhuma. Ia servir para levar duas mulheres, para longe,para sempre”.

Soroco está com sua melhor roupa, como se estivesse indopara uma cerimônia fúnebre, um enterro.

Antes do embarque a moça começa a cantar, logo seguida pelavelha. Cantiga sem sentido ou repetição daquilo que os negros es-cravos, por não terem voz, já faziam através da música?

Logo que as loucas são tragadas pela voracidade daquele va-gão-túmulo e o trem parte, Soroco volta para casa “como se esti-vesse indo para longe” e, de repente, começa a cantar a mesmamúsica, o mesmo canto de mãe e filha, agora na garganta do filhoe pai. Contagioso, o canto de palavras ininteligíveis leva todos acantar e a seguirem Soroco.

O conto termina, como na tragédia grega, com o coro. A lou-cura passa a ter o sentido que lhe é dado pela ideologia asilar ecustodial.

O contista Guimarães Rosa retrata, em poucas palavras, a vi-são social e científica da loucura em uma época na qual a exclu-são se transforma em único meio de atenção ao louco, confirman-do a afirmação de Basaglia de que “o doente mental é um proble-ma que nunca foi enfrentado, mas apenas negado”.

A literatura, mais uma vez, se adianta à ciência e mostra umarealidade que só muitos anos depois vai ser estudado pela análiseinstitucional.

Referência Bibliográfica1. Rosa JG. Soroco, sua mãe, sua filha. In: Rosa JG. Primeiras

Histórias. 2º vol. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,1994:397.

Caso LiterárioLITERATURA E LOUCURA - UM CONTO DE GUIMARÃES ROSALITERATURE AND MADNESS - A STORY OF GUIMARÃES ROSA

* Psiquiatra e escritor Endereço para correspondência:Centro de MemóriaFaculdade de Medicina da UFMGAv. Prof. Alfredo Balena, 19030130-100 - Belo Horizonte - MG

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PatografiaERNEST HEMINGWAY: UNA PATOGRAFIA RETROSPECTIVAERNEST HEMINGWAY: UMA PATOGRAFIA RETROSPECTIVA

Andrés Heerlein *

Resumen

El presente trabajo analiza los principales aspectos de la biografía, laobra y la personalidad del laureado escritor E. Hemingway y sus rela-ciones con su patología. Luego de una introducción biográfica sepasa revista a su patografía, incluyendo los aspectos relacionados consu trágico final. El diagnóstico se apoya en pilares clínicos y biográfi-cos ampliamente discutidos en la sección sobre el diagnóstico diferencial. Finalmente se discuten los aspectos mas centrales de lapatología de Hemingway y de la bipolaridad en general, poniendoénfasis en los aspectos relacionados con la identidad y la creatividadartística.

Unitermos: Patografia; Hemingway; Transtorno Bipolar;Depressão Psicótica; Conduta Hipernómica

Introducción

Junto con haber sido galardonado con el premio nobel de literatura, Ernest Hemingway es uno de los novelistas mas popu-lares y admirados de este siglo. Su vida y su obra han marcado ageneraciones completas, lo que es particularmente evidentedurante las fiestas de San Fermín en Pamplona, donde personal-mente hemos visto a centenas de jóvenes intentando rememorarsus pasos. Resulta notable la enorme admiración que despiertaeste autor sobre su público, no tanto por su obra sino principal-mente por su estilo de vida, aventurero, libre y creativo. Pero fre-cuentemente olvidamos o preferimos omitir los álgidos momen-tos de sus oscilaciones anímicas, de sus falencias afectivas, de susexcesos epicureános y de sus arranques nihilistas. Menos aún sehace mención a sus tendencias suicidas y al episodio afectivo-deli-rante final, que lo llevaron a repetir el triste desenlace de su padrey de otros familiares cercanos. El presente estudio patobiográficopretende analizar la patología mental de E. Hemingway desde laperspectiva biográfica, artística, clínica y de la personalidad. A suvez, intenta averiguar de que forma la biografía, la personalidad ylos trastornos mentales interactúan en el proceso de la creaciónartística.

Breve reseña biográfica

Ernest Hemingway nace el 21 Julio de 1899 en Oak Park,Illinois. Hijo del Dr. Clarence E. Hemingway y de Crase HallHemingway. Su padre, junto con ser médico general, es aficiona-

do al mundo salvaje, enseñándole durante su infancia y adoles-cencia la forma correcta de manejar los instrumentos de pesca ycaza y un profundo amor por la naturaleza. Crece en un ambientenormal del medio Oeste Americano, graduándose en 1917 en laEscuela Secundaria Oak Park.

Posteriormente comienza a trabajar como periodista para elperiódico Star, de Kansas City. En el último año de la primeraguerra mundial Hemingway se ofrece como conductor voluntariode ambulancias para la Cruz Roja de Italia, resultando grave-mente herido por el fuego de mortero, en julio de 1918. Luego derecuperarse de sus herida regresa a EEUU para trabajar, entre1920-1924, como periodista y corresponsal extranjero.

Durante este período Hemingway viaja, junto a otros intelec-tuales norteamericanos, a París, donde establece contacto, entreotros, con Ezra Pound, Fitzgerald y Gertrude Stein, quiénesejercen una importante influencia sobre el autor. Casado porprimera vez en 1921, se divorcia en 1927 para casarse el mismoaño con su segunda esposa, Pauline Pfeiffer. En 1922 se ofrecevoluntariamente como corresponsal en la guerra greco-turca. En1928 regresa a EEUU para establecer su hogar en Key West,desde donde comienza a practicar la pesca marítima en el Golfode México. En 1929, y pocos meses antes de la publicación de suprimera gran obra “Adios a las Armas”, Hemingway se entera delsuicidio de su padre, realizado por intermedio de un tiro deescopeta. En 1930 sufre un accidente automovilístico que le oca-siona nuevamente graves heridas traumátologicas.

En 1934 realiza su primer Safari a África donde consigue lainspiración para varias de su siguientes obras. En este mismo añovisita por primera vez España, país que va a considerar en ade-lante como su segunda patria.

En 1936 asiste voluntariamente a la guerra civil españolacomo corresponsal de una alianza de periódicos norteamericanos.Como simpatizante del sector republicano colabora ennumerosos acontecimientos culturales y bélicos de este período. En 1940 se vuelve a divorciar para casarse por tercera vez. En estemismo año publica su principal obra “Por quién doblan lasCampanas”, con un claro contenido autobiográfico. Durante lasegunda guerra mundial se alista voluntariamente como corre-sponsal de guerra en Europa, participando en la invasión aNormandía y volando por al Real Fuerza Aérea. En este períodohace su propia guerra privada, para llegar a la liberación de Parísen franca avanzada, incluso antes que la oficialidad.

En 1944 se vuelve a divorciar, casándose en el mismo año conMary Welsh, quien lo acompañará hasta su muerte.

En 1952 publica su última y tal vez más conocida obra, “ElViejo y el Mar”, que le va permitir acceder al Premio Nobel deLiteratura en 1954.

* Professor do Depto. De Psiquiatría y Salud Mental Norte,Facultad de Medicina, Universidad de Chile.

Endereço para correspondência:Depto. de Psiquiatría y Salud Mental Norte.Facultad de Medicina - Universidad de Chile. Santiago de ChileE-mail: [email protected]

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Este mismo año retorna a África donde, junto con participaren múltiples cacerías, sufre dos accidentes de aviación. Entre1954-1961 se traslada a su último hogar, en los alrededores de laciudad de Ketchum, Idaho, donde fallece a causa de las heridasde un intento de suicidio que se infringe el 2 de Julio de 1961.

Análisis Patográfico

El análisis psicopatográfico de Ernest Hemingway reviste ungran interés no solo por la categoría del autor, sino por la abun-dancia de elementos autobiográficos presentes en su obra, quepermiten una mejor aproximación a los aspectos esenciales de supatología. Basados en los principales aspectos de su biografía, supersonalidad, de su patología y de su obra, intentaremos hacercomprensible la evolución global del trastorno que subyace en suvida y que lo conduce finalmente a un acto suicida.

Personalidad Premórbida

Ya desde su infancia su personalidad se había caracterizadopor esporádicas tendencias rebeldes, que se habían concretadopor varios escapes de su casa durante los estudios secundarios,como así también por la negativa a asistir a la universidad. Elpadre de Hemingway vivía dominado por su esposa, una personacon fuertes inclinaciones religiosas. En algunas oportunidadesHemingway describe haber estado muy deprimido al ver a supadre agachar la cabeza en una discusión con su madre. Estamuestra de cobardía, segun Hemingway, culmina con el suicidiode su padre con la escopeta del abuelo. Dentro de las aventurasjuveniles del escritor se describe haber presenciado un lin-chamiento en el estado de Ohio, así como también haber com-partido una operación cesárea en un campamento de indígenas,sin anestesia y con una hoja de afeitar.

Durante la juventud realiza varios viajes fugaces relacionán-dose con diferentes personajes del bajo mundo. Durante esteperíodo su vida habría transcurrido en una actitud contemplati-va, sin involucrarse directamente en los acontecimientos.

La personalidad premorbida del Hemingway adulto se carac-teriza por las múltiples máscaras con las que este autor se pre-sentaba al mundo, como así también por la pericia con quemanipulaba la diversas facetas de su carácter. La vida deHemingway se caracteriza por una serie de vivencias muy aven-tureras románticas, apasionadas y cambiantes. Se intuye una con-tinua inquietud interna que no se resuelve sino hasta el desenlacefatal. Es aficionado a las corridas de toros, esquiador, cazador,pescador y boxeador profesional. Fácilmente se enlista como vol-untario en los mas variados conflictos bélicos, resultando heridode gravedad durante la primera guerra mundial. Su personalidades descrita, a veces, como arrogante, agresiva y jactanciosa, mien-tras que en otras oportunidades se le define como distante, intro-vertido y extremadamente desligado de todo compromiso afecti-vo. Según Baker,1 le interesaron poco las relaciones entre los sereshumanos, las que lo ligaban con un universo duro y sumamentehostil, en el cual la violencia, el sufrimiento y la muerte serían laregla general. Esta característica de permanente aislamiento afec-

tivo habría de modelar su arte en la misma forma como modelósu vida y su personalidad.

La historia de sus desafortunados matrimonios y de los brus-cos rompimientos con sus amistades así como también de sus fre-cuentes ataques sin previa provocación contra personas relativa-mente inofensivas proyectan la imagen de un hombre muy sensi-ble e impulsivo, dispuesto a agredir a un posible enemigo aúnantes de que nadie lo agrediera.

Tanto en sus obras como en su propia vida no se constata lapresencia de una verdadera amistad con reciprocidad. Tambiénen el plano sentimental, la personalidad del autor se caracterizapor mantener siempre una distancia con el objeto amado.Hemingway tenía varias ventajas en su relacionamiento social: eraatractivo, atlético y tenía gran facilidad para los idiomas. Su expe-riencia como periodista y su natural inclinación a buscar el porque de las cosas le daban la apariencia de ser un expertos en situa-ciones extravagantes.

En síntesis, los antecedentes aportados por sus biografías, porsus propios relatos y por su obra permiten concluir que la per-sonalidad de E. Hemingway es inestable, pleomórfica, con evi-dentes oscilaciones anímicas, con arranques de extroversión y deactitudes impulsivas, con un desapego a lo establecido o ruti-nario, con altos índices de neuroticismo, inquietud interna y deegocentrismo.

El funcionamiento cognitivo premórbido no parece revelarsignos de psicoticismo, sino mas bien una baja tolerancia a laambigüedad, una imaginación mas bien concreta y un clarofavoritismo por los contenidos emocionales. La desinhibición y laaudacia, junto a la clara necesidad de vivir situaciones heroicas olímites lo llevan a presentar un perfil muy carismático.Hemingway es un buscador de sensaciones o de situacionesnuevas, por excelencia. Sus múltiples lesiones y accidentes danclara prueba de ello. Su desenlace final, también.

Suicidio

Durante toda su vida, E. Hemingway privilegia vivir en formapeligrosa. Cuando se incorpora al ejército Italiano (Cruz Roja) ycae gravemente herido, siente por primera vez la presencia de lamuerte, permaneciendo durante largos meses con clara angustiade muerte.

Durante la década del 30 se dedica a realizar excursiones depesca entre Cuba y Key West, Safaris a África y finalmente aluchar por el bando republicano en la guerra civil española. Eneste período experimenta varios accidentes de gravedad, que loobligan a renovar sus lazos con las ideas de muerte o extinción.

El tema del suicidio, introducido por su padre durante losprimeros años de la década del 30, persiste como una corrientesubterránea a lo largo del resto de su vida y se deja visualizarambivalentemente en prácticamente en toda su obra.

Quizás sea justo asumir que la muerte de Hemingway fue sumanera de superar una posición que no podía ya conservar y quepara el, aquella fue la manera más inteligente de solucionar elconflicto. Luego de haber luchado día a día en contra de laeternidad, el suicidio pudo haber sido su forma de cumplir conlas reglas a propósito de la rendición incondicional de uno de loscontrincantes. En los últimos nueve años de vida y antes del sui-

Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva

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cidio se aprecia la imagen recurrente del hombre que mantiene laluz encendida de noche en un vano intento de escapar a los hor-rores de la nada. Los talentos de Hemingway se habían agotado.

También es posible suponer que su muerte haya sido el casti-go calculado de Hemingway a aquel aspecto de su personalidadque lo había abandonado en el momento preciso. Como su poderde creación fue su principal recurso en la lucha por alcanzar unpequeño trozo de inmortalidad, la muerte se había dirigido comopuntería infalible contra el culpable de la ofensa, es decir contrael poder mismo de creación.

No obstante, la actitud de H. frente al suicidio es ambiva-lente. En casi todas sus obras el suicidio aparece como un direc-to atentado contra las reglas del juego, rememorando la rabiacontra su padre.

Finalmente es posible suponer, de acuerdo con Rovit, que lamuerte hubiera sido el último acto del juego de Hemingway ensus continuos cambios de personalidad.2 Malabarista por exce-lencia, al verse en peligro ya que su mundo se desmoronaba,hecho añicos a sus pies, desnudo ya sin poder evitarlo, el últimoensayo de una nueva y definitiva máscara pondría un toque tri-unfal en su fantástica carrera. Desde esta perspectiva nos pareceposible suponer -prosigue Rovit- que si algún hombre podríaencontrar algún sentido al morir, ese hombre podría serHemingway.2

Obra y patología

Una de las característica más importante de la obra deHemingway y de su extraordinaria popularidad lo constituyen,sin duda, la personalidad carismática del autor y la enorme proximidad existente entre su vida y su producción literaria, laque forma una unidad indivisible basada en su vida pública y entodas sus aventuras y protagonismos.

En relación a los procesos anímicos de Hemingway, llama laatención las características estéticas y narrativas de su obra.Hemingway exhibe un deseo lírico de proyectar en el lector suvisión personal del mundo, sugiriendo que esta visión personalpuede llegar a reemplazar al mundo objetivo. Hemingway tiendea expresarse como si fuera la naturaleza misma la que hablara. Sila naturaleza y Hemingway se llegaran a identificarse del todo,uno u otro habría ganado una victoria. En esta expresión literariaqueda de manifiesto una actitud de grandeza continua frente almundo y a su existencia.

En Hemingway la verdad, la bondad y la belleza se basan enun suspenso continuo, en un hombre consciente de su propiasoledad y predispuesto a atacar tras sus múltiples máscaras.

Hemingway se diferenciaba, de acuerdo a muchos autores,por una deficiencia en la capacidad de amar, de involucrarse conlos otros. El no podía negar el placer esencial que experimentabacon la acción física, siempre individual, pero nunca logró com-plementarla con los otros. Entiende que toda relación amorosapuede exponer al hombre al influjo de la arrolladora personali-dad de su pareja, con lo que justifica la presencia de barreras,tanto en sus personajes como en su propia vida, con que todohombre debe proteger su propio yo. Así por ejemplo, los amantesen la obra de Hemingway, como Robert Jordán, Harris Morgan oFrederik Henri se conmueven sinceramente con el placer y laadmiración que les brindan sus compañeras respectivas, pero en

ningún caso parecen hallarse afectado en el circulo íntimo de susexperiencias más subjetivas.

Pero, de acuerdo con varios biógrafos, en Hemingway la inca-pacidad para amar se compensa con su incapacidad de odiar.Puede ser displicente, puede sentirse asqueado y ultrajado o tam-bién muy superior. Pero Ernest carece de un verdadero sentidode seguridad en el universo, faltándole también las bases de unasana autoestima, que son imprescindible para el surgimiento delodio.

Hemingway fue sin duda el más autobiográfico de losescritores de nuestro siglo, obsesivamente preocupado por simismo y sus propias experiencias. En su propia personalidadadopto tantas facetas como personajes presentan sus obras,sugiriendo que el verdadero Hemingway no se halla en la suma-toria de todas sus personificaciones sino en el centro oculto deellas. En su caso, la distinción entre la vida y la literatura fuediluyéndose y fusionándose en forma progresiva. Los rasgos deheroísmo así como la convicción de que el hombre debe liberaruna batalla solitaria contra las fuerzas elementales que oprimen ala humanidad puede percibirse no solo en su obra, sino tambiénen el recorrido de su biografía.

La proximidad que el sentía entre si mismo y el universobrinda un correlato objetivo de sus emociones a través de ten-siones de corte dialéctico. La acción y la reacción, la fuerza y laemoción, el desafío y la réplica son los antagonistas implacable-mente enfrentados en una continua batalla a lo largo de toda laobra de Hemingway. El campo de batalla, el encierro enPamplona o los llanos del Serengueti son los lugares de con-frontación y de resolución del espíritu de Hemingway, reflejandocon exactitud los ataques y contra ataques interiores, la ambiva-lencia, los actos de valentía y cobardía, las bajas y los dañosirreparables.

Dentro del análisis psicológico del Viejo y el Mar se lograapreciar la importancia de la naturaleza en la obra deHemingway. En dicha novela el mar ocupa un rol protagónico,adquiriendo un carácter omnipotente y universal, bondadoso ycastigador a la vez. Esta presencia, para algunos autores, repre-senta a la madre, dejando en evidencia una relación edipíca yambivalente a lo largo de toda su obra.

Cabe destacar que el traslado de las vivencias a la obra deHemingway no fue ni estrecho ni superficial. En la totalidad de laobra del autor existe el deseo de proyectar su propia situaciónhumana en símbolos precisos. Su obra, en cierto sentido, consti-tuye un ataque de rebeldía contra la vida. Y siendo demasiadoorgulloso para aceptar la inestabilidad de la derrota y la resi-gnación, Hemingway encuentra dentro de sí y comunica almundo una tenaz actitud de heroísmo, positiva, sin ilusiones yeminentemente humanista.

Anamnesis externa

Los amigos de Hemingway, como Castillo Pouche,3 lodescriben como un sujeto frágil que proyectaba una imagen defortaleza. “Ernesto siempre caía del lado del pesimismo y le dominaba una súbita desconfianza” describe Castillo Pouche.

“Todo lo que era proceso racional, elaboración de pen-samiento, le parecía fraude aunque surgiera en el brilante-

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mente lo aceptaba siempre con recelo. Su fuerte era la emo-ción, aunque sabiamente disimulaba. Reaccionaba contratodo lo que era sistemático, metódico, extirpador de la lib-ertad humana. Aunque le llamaran indeciso, el preferíacolocarse en un terreno emocional más bien vago, comofuera del tiempo y el espacio. Tan pronto se adscribía a unlema o cobraba entusiasmos por un hombre, brotaba en él elviento seco del escepticismo”.

En relación al suicidio, Castillo Pouche se pregunta:

“a quién mato Hemingway cuando se suicido? ¿al puritanorespetuoso y tímido que llevaba dentro o al salvaje desbor-dado, al escritor serio y honesto o al traficante de la épicasmás comerciales, al varón que no podía resistir el caudalcontenido de sus ternuras, o al canalla de descontento de suproclibidad hacia la perversión?”

Hemingway estaba determinado, predeterminado a darse supropia muerte, una muerte colérica y aireada. Desde el vientre desu madre, a la que no pudo querer, queriendo quererla, y costán-dole mucho el no poder conseguirlo, prosigue Castillo Pouche, yante la tumba de su padre, al que admiró desde el más laboriosodesprecio, Hemingway era un suicida nato y neto.3

En relación al tema de la muerte cabe destacar el discurso deDonne en Por quién doblan las Campanas:

“Ningún hombre es en sí equiparable a una isla; todo hom-bre es un pedazo de continente; una parte en tierra firme; siel mar llevará lejos un terrón, Europa perdería como si fueraun promontorio.....como si llevarán una casa solariega detus amigos a la tuya propia. La muerte de cualquier hombreme disminuye, por que soy una parte de la humanidad. Poreso no quieras saber nunca por quién doblan las campanas:están doblando por ti”.

De acuerdo con Baker,1 un tema dominante en la vida deHemingway se refiere a la lucha contra la cobardía. Hemingwayera un admirador del coraje y la audacia del hombre. Despreciabaprofundamente la cobardía, la que tal vez veía asociada a la figurapaterna. La subordinación de su padre frente a su madre y el sui-cidio pudieran haber sido interpretados como actos de cobardíadespreciable. Hemingway siempre, al hablar de su padre, hablabade una trampa, que por muy sutil que fuera resultaba ineludible.“El mismo había caído en dicha trampa, casi desde niño, en el mismoengaño abreviador”, concluye Baker.

Para Castillo Pouche, Hemigway habría vivido desde suprimera fiesta de San Fermínes continuamente enfiestado: “En suprimera oportunidad la fiesta habría seguido día y noche durante 7días. Y posteriormente continuó el beber hasta su último SanFermin, que fue en 1959. Para Hemingway la fiesta de Pamplonadura prácticamente toda la vida”.2

Antecedentes clínicos previos

Nacimiento: Nace en una clínica en 1899, al parecer sin compli-caciones. Embarazo de curso normal.

Desarrollo: Crecimiento y desarrollo normal, pubertad precoz.Leve desajuste conductual en la adolescencia.Condiciones familiares armónicas y estables, aunque con falencias, según Hemingway.

Infancia: Ordenada, con atisbos de rebeldía y de impulsividad. Crece en ambientes rurales; frecuente contacto con

violencia natural.

Familia: Padre con probable trastorno del ánimo, se suicida mediante un tiro de escopeta.Otros familiares con antecedentes de bipolaridad y/o de suicidio (Figura 1).

Mórbidos: Múltiples hospitalizaciones por lesiones de guerra o por múltiples accidentes, terrestres o en avión.

Hábitos: Consumo excesivo de alcohol desde temprana edad, en forma regular y con embriagueces no patológicas ocasionales.Consumo regular de tabaco. No hay antecedentes de consumo de otras substancias o medicamentos.

Cuadro Clínico

El análisis del cuadro clínico presentado por E. Hemingwayamerita una separación en dos períodos: la crisis de su último añode vida y el período anterior.

Cuadro psiquiátrico final

Luego de su última visita a Pamplona en 1959, Hemingwaycomienza a presentar un cuadro de ostracismo, retraimiento,nihilismo y desconfianza progresivos. Sus intentos de escribir sonabortados por crisis de cólera y de violencia. Escasamente aban-dona su casa en las afueras de Ketchum, mostrando franco desin-terés por su entorno y una actitud huraña. No hay datos sobre elconsumo de alcohol durante esta fase. Progresivamente aparecen

MadelaineMarcelline

Grace Hall

Pauline

2

Hadley

Margaux

John

1

Clarence (Ed)

Ursula

Ernest

Carol Leicester

Patrick Gregory

transtorno bipolar

suic�dio

psicosis post-traum�ticas

Figura 1 - Historia psiquiatrica familiar de E. Hemingway

Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva

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signos de desinterés vital, con frecuentes referencias en torno a lapropia muerte. Con el tiempo, comienza a configurarse un deliriode persecución, poco sistematizado, incluyendo a elementos delFBI, de la CIA o de Cuba. El delirio paranoídeo va, paulatina-mente, acompañandose de alucinaciones acústicas y, al parecer,visuales, donde habría visualizado a dichos agentes en las afuerasde su casa.

La gravedad del cuadro es confirmada por el médico decabecera, quién lo envía en 1960 a un tratamiento con hospital-ización. Antes de su internación realiza varios intentos frustrospor eliminarse.

Durante su hospitalización se constatan las alucinaciones y elcuadro paranoídeo, diagnosticándose una Depresión Psicótica,por lo que se le practica una serie de TEC. Una vez superado elcuadro psicótico, se le vuelve a enviar a su hogar. Aquí permanecepostrado y sin interés vital hasta Julio de 1961, donde, durante lanoche, se dispara un tiro de escopeta en el cráneo. Muere inmedi-atamente.

Junto a los síntomas antes mencionados, durante este períodohabría presentado anorexia, clara disminución de la libido,inhibición psicomotora, desánimo, pérdida del impulso, insom-nio mixto, de conciliación y del despertar, negativismo, desesper-anza, irritabilidad y angustia difusa. En ocasiones se habrían com-probado conductas fóbicas, en particular en relación a otras per-sonas y a los espacios abiertos.

Alteraciones psiquiátricas previas

Para la mayoría de los autores, no caben dudas de que E.Hemingway presentaba alteraciones conductuales y del estadodel ánimo mucho antes de su cuadro psiquiátrico final. Existenmúltiples descripciones que revelan francas oscilaciones del esta-do de ánimo desde su juventud, con una línea basal mas bienhipertímica. Hemingway esconde muy bien ciertos períodos enque sospechamos la presencia de fases depresivas, especialmenteen los últimos años de su vida. Por el contrario, el escritor poneespecial énfasis en subrayar los períodos de máxima expansiónanímica o de euforia, como lo son,por ejemplo, las fiestas de SanFermin, la llegada a París en 1945 o las aventuras africanas. Enforma continua observamos un estado de ánimo particularmenteinquieto, extrovertido, acelerado, irritable, expansivo, conta-giante, grandilocuente y desenfadado. Este estado, casi perma-nente hasta 1954, se alterna ocasionalmente con períodos deintroversión, retraimiento, nihilismo y mutismo.

Cabe tener en consideración que E. Hemingway ostentabacon ingerir grandes cantidades de alcohol, especialmente en losestados de exaltación anímica. Lamentamos no saber exacta-mente cual era su patrón regular de consumo, por lo que nopodemos excluir la presencia de una dependencia alcohólica aso-ciada a su cuadro clínico.

Hipótesis Diagnóstica Final

I: - Trastorno Bipolar, tipo II (Hipomanía crónica con Depresión Mayor Recurrente)- Consumo excesivo de substancias (alcohol y tabaco)

II: - Sin diagnóstico(Probable disfunción de la personalidad del Cluster 2)

Diagnóstico diferencial

Numerosos autores han puesto énfasis en los aspectos de lapersonalidad de E. Hemingway, para favorecer un diagnóstico deun Trastorno de la Personalidad de tipo Limítrofe. Sus conductasviolentas, los arranques impulsivos, la inestabilidad emocional yla incapacidad para establecer vínculos afectivos fundamentanesta postura. No obstante, al establecer el diagnóstico definitivo eintentando evitar las discusiones académicas entre los autoresmas “constitucionalistas” y los “psicodinamístas”, tenemos quetener en consideración cuatro elementos fundamentales.

En primer lugar están los antecedentes hereditarios de lafamilia Hemingway (Figura 1), que hasta el día de hoy no dejande sorprendernos por su exceciva carga hacia conductas suicidas,pero también, por la mayor concentración de casos con unaenfermedad del ánimo. A su vez, en muchos familiares deHemingway, como su padre, se observan claramente elementosde un trastorno del ánimo, pero no se encuentran signos claros deun trastorno de personalidad.

En segundo lugar, debemos tener en consideración las evi-dentes oscilaciones del estado del ánimo que exhibe E.Hemingway durante su vida, las que no parecen estar rela-cionadas con eventos vitales específicos. Sobre la base de unahipomanía persistente, claramente evidenciable en las fases deexpansión máxima, como lo son los San Fermines, el autor pre-sentaba períodos totalmente opuestos, con evidentes característi-cas depresivas. Esto queda demostrado no sólo por el análisisbiográfico, sino por las descripciones que hacen del famosoescritor sus amigos mas cercanos.

En tercer lugar, cabe considerar la personalidad premórbidade E. Hemingway, que si bien es impulsiva y muy compleja,nunca se desborda, aún bajo el influjo del alcohol. Durante todasu vida Hemingway mantuvo el control deseado sobre sus emo-ciones, calculando cada paso a dar. Siendo un individuoextremadamente libre y creativo, nunca abandonó los límites detodo indiviuo “respetable”, adaptándose bien a las contingenciasy mostrando una clara tolerancia a las frustraciones. La muerteaparece al final de su vida, no como un acto impulsivo, sino comoel desenlace ineludible de lo que había sido su vida, vale, decir, supropia novela. Este alto grado de control, el reconocimiento yrespeto de los límites y su evidente capacidad de construir unmito, aún a pesar de las oscilaciones anímicas, hacen poco probable la presencia de una personalidad muy desestructurada.

Creemos conveniente tener en consideración el cuadro clíni-co final, que se presenta claramente como una depresión psicóti-ca muy severa, que requirió TEC. Es en este momento donde elcuadro psicótico se expresa en toda su magnitud, revelando alu-cinaciones, delirios paranoídeos, fenómenos de despersonal-ización y desrealización. El ánimo es francamente depresivo yexiste una gran inhibición psicomotora. La rumiación con el temade la muerte sella sin lugar a dudas la presencia de un trastornodepresivo. Y este trastorno aparece dentro del marco de un suje-

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to con evidentes oscilaciones anímicas, por lo que no podemoseludir el diagnóstico de un trastorno bipolar, con hipomanías.

Finalmente cabe preguntarse si la patología de Hemingwayno corresponde simplemente a un problema de consumo excesi-vo o a una adiccion al alcohol. Porque no cabe duda laexageración en el consumo que el prominente autor solía experi-mentar. Pero las evidencias aquí demostradas no son compatiblescon este diagnóstico. Tanto los antecedentes hereditarios, la per-sonalidad previa como el cuadro clínico apuntan a un trastornoeminentemente endógeno, que si bien pudo haber estado influ-enciado por el uso de substancias, no logra explicarse cabalmentea través de el.

Discusión

Las relaciones entre la creatividad artística y la psicopatologíahan sido objeto de múltiples estudios y reflexiones fundamen-tadas. El caso de E. Hemingway resulta paradigmático paraquienes defienden la tesis de la creatividad asociada al sufrimien-to o a la desmesura biográfica. Su vida y su obra son una mallaentreverada e indivisible, donde nunca se sabe quien está al ser-vicio de quién. Como hemos observado, su propia muerte pareceuna trama irrenunciable de una novela vital.

El fenómeno Hemingway resulta aún mas interesante cuandoobservamos la cantidad de acólitos que el autor nos ha hereda-do.4 Su personalidad carismática y su espíritu aventurero ha des-pertado un interés inusual para una figura de las letras. El premionobel viene aquí no sólo a poner el broche de oro a una leyendaque se fue gestando en vida, sino a reafirmar la enorme atractivi-dad que algunos de sus pares ejercen sobre su entorno. Estehecho no debería sorprendernos.

Desde las descripciones originales de Falret sabemos que elTrastorno Bipolar puede contagiar frecuentemente al públicolego, en particular en la fase maniacal expansiva. Sabemos la irre-sistible fascinación que suelen ejercer algunos pacientes maníacoso hipomaníacos sobre sus pares, o sobre personas totalmente aje-nas a ellos. En el ejemplo de Hemingway vemos retratada una vezmas la admirable capacidad de contagio y de fascinación queejercen algunos pacientes bipolares sobre la población general,incluso en forma póstuma. A su vez, la alta contagiosidad de susconductas irreverentes, de sus desafíos, de sus extralimitaciones yde sus descarnadas aventuras hablan claramente en favor de lapresencia de un trastorno bipolar.

Pero tal vez lo mas interesante en el análisis de la patología deE. Hemingway lo constituya la posibilidad de estudiar eltrastorno bipolar y sus interacciones con la identidad personal.Como hemos señalado previamente,5 el análisis fenomenológicorevela que uno de los fundamentos comprensivos del trastornoBipolar lo constituye un grave problema en la consolidación de laidentidad. En nuestro trabajo sobre la personalidad y lostrastornos del ánimo escribíamos:

“Desde la perspectiva antropológico-fenomenológica,podemos ver la melancolía como la máxima negación delser, como la aproximación a la nada. El frágil modelo de serse fundamenta básicamente en el ser para-si del individuomelancolico. La carencia de vivencias y percepciones del

mundo emocional, la hipertrofia del rol laboral, la intoler-ancia al cambio, la falta de fantasías y la rigidez configuranuna identidad frágil y muy vulnerable. La nada parecieraestar acompañando contínuamente al melancólico en suafán de ordenar el mundo, de eludir el cambio y la experi-encia emocional. Al fracasar los mecanismos compensato-rios de esta frágil identidad, surge la melancolía.En el extremo opuesto de la melancolía, el paciente bipolarque atraviesa un estado maníaco pareciera experimentaruna consolidación de su proyecto de ser. La manía se carac-teriza por un aumento de las percepciones, por una clarahipertrofia de la conciencia de si mismo, por un grandespliegue energético en funcion del hacer y el tener, por unestado de euforia contínua y desmesurada y por la pérdidade las restricciones que normalmente limitan la conducta.La manía aparece como una consolidación completa del seren si, a través de la construccion ficticia de un ser para-si. Lamanía sugiere un estado de libertad plena, llevando inclusoal contagio masivo.A diferencia de la melancolía, que se aproxima a la nada, lamanía aparece y es vivenciada como una victoria contra lanada, contra el no ser. Una vez confrontada la ficción del sercon la realidad y la conciencia, la manía se desploma, apare-ciendo la amenaza del no ser, de la melancolía. El sujetohipomaníaco va a lograr mantener en forma contínua la fic-ción de su ser, esquivando así la realidad y la amenaza de lanada. Pero esta postura resulta particularmente difícil desustentar, llevando tarde o temprano a la descompensaciónmelancólica”.5

Nos hemos permitido incluir aquí esta referencia por la proximidad existente entre los conceptos teóricos aquí enuncia-dos y la vida, la obra y la personalidad de E. Hemingway. Comopodemos observar, E. Hemingway nos revela en toda su biografíauna continua lucha contra la melancolía, pero mejor aún, un con-stante afán por consolidar una identidad personal insuficiente.

Su gran versatilidad caracterológica, su identidad difusa, supersonalidad de contornos irregulares, nos revelaban un conflic-to claro en la demarcación del propio “yo”. Y al hablar aquí de“yo” no lo hacemos en el sentido de E. Erikson, sino mas bien enel opuesto, en el sentido de Krappman y de A. Kraus,6 quienessostienen que el conflicto central del trastorno bipolar es unproblema de identidad que se intenta resolver a través de unasobreidentificación con el rol laboral-vivencial. Kraus habla aquíde una “conducta hipernómica”, donde la debilidad de la propiaidentidad conduce a una excacerbación de la identidad de rol. Elmovimiento dialéctico entre la identidad y la no identidad esespecialmente claro en el caso de E. Hemingway. Porque el clarodéficit que el autor exhibe en la así denominada identidad - per-sonal, dadas sus falencias afectivas, es intentado vanamente decompensar a través de la hipertrofía de la identidad de “escritor-aventurero”. A su vez, la continua búsqueda de aventuras y peli-gros y su afán de desafiar los límites, constituyen otra forma desuplir el vacío existente en la esfera personal-afectiva. La propiasobreidentificación con el rol profesional conlleva un evidentedistanciamiento en las relaciones interpersonales, con la consigu-iente soledad resultante.

Ernest Hemingway: una patografia retrospectiva

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Coincidiendo con la mayoría de los pacientes bipolares,Hemingway revela durante toda su vida un grave conflicto deconsolidación de la identidad, intentando infructuosamente deresolver dicho conflicto a través de la vertiente creativa y de lasobreidentificación del rol. El desenlace final no es, entonces,otra cosa, sino el resultado negativo de este conflicto, donde final-mente, desprovisto de su rol y de la creatividad, el autor no puedeeludir la autodestrucción. No lo puede hacer, porque su “ser” yano existe, porque su identidad ya no alcanza para sobrevivir. Elvacío, la nada se apoderan de el, dejando claramente en evidenciasu incapacidad de existir en si.

Resulta notable comprobar en el caso de E. Hemingway deque forma se interrelacionan los procesos biográficos, los proce-sos de creatividad y los aspectos centrales de la Bipolaridad,cuales son, a nuestro juicio, los problemas de identidad. El casode Hemingway resulta paradigmático para reflejar la lucha de unindividuo maníaco-depresivo contra su propio destino, utilizandolas herramientas que le parecen mas apropiadas. A juzgar por losresultados de su creatividad, ósea de su obra, sin duda queHemingway habría vencido dicha lucha, pero si observamos eldesenlace final, ya no podemos asegurarlo. Porque si bien es cier-to que la esencia de la estructura bipolar puede favorecer el pro-ceso de creación artística, cabe preguntarse a que precio debenutrirse el arte. La vida de Hemingway es casi una continua tor-menta, donde la literatura parece brindar un breve remanso en eltrajín existencial. Sin embargo, al momento de terminar deescribir, los problemas iniciales retornan con la misma intensidadde antaño, dejando en claro que la compensación hipernómicanunca termina por resolver el conflicto.

Es justamente esta apreciación la que nos parece extremada-mente relevante para el adecuado tratamiento de nuestrospacientes bipolares. El caso de E. Hemingway nos permite visu-alizar claramente como los problemas de identidad constituyenun elemento central en dicha patología. El abordaje clínico queno tenga en consideración estos aspectos puede llegar a ocasion-ar mayor perjuicio que beneficios, en particular cuando se tratade un personaje que opte por la compensación creativa. Es por

ello que, junto con Kraus, queremos reforzar el concepto de efec-tuar en todo paciente bipolar, junto con la terapia farmacológica,una psicoterapia interpersonal que contemple los aspectos depersonalidad y de identidad antes mencionados. Sólo de estaforma, pensamos, es posible lograr un avance real y un crec-imiento subjetivo y objetivo de nuestros pacientes, acercándolosa una relación mas adecuada consigo mismos, con sus semejantesy con su existencia.

Summary

An extensive pathographical study of the life, work and illness of E.Hemingway is presented.The different aspects of his personality, thegenetic background, the tragic end and the clinical course of his dis-order and the probable diagnosis are discussed. Finally, the relation-ships that may exist between bipolarity, identity and the process ofartistic creation are discussed.

Key-words: Pathography; Hemingway; Bipolar Disorder;Psychotic Depression; Hypernomy

Referencias

1. Baker, C. Hemingway, el escritor como artista. Buenos Aires:Ediciones Corregidor, 1974.

2. Rovit E. Ernest Hemingway. Buenos Aires: General FabrilEditora SA, 1971.

3. Castillo-Pouche JL. Hemingway, entre la vida y la muerte.Barcelona: Ediciones Destino, 1968.

4. Hotchner, AE. Papá Hemingway. México, DF: OrganizaciónEditorial Novaro SA, 1966.

5. Heerlein A. Personalidad y Psicopatología. Santiago:Sociedad de Neurología, Psiquiatría y Neurocirugía, 1997.

6. Kraus, A. : Psychotherapy Based on Identity Problems ofDepressives. Am J Psychother 1995; 49:197-212.

7. Kazin, A. Hemingway and Fitzgerald. American Heritage,1984:49-64.

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Caso HistóricoIRMÃ GERMANANUN GERMANA

Artigo adaptado de: “Um precursor da psiquiatria mineira”, deClóvis de Faria Alvim. Revista da Universidade de Minas Gerais1962; 12:234-250.

* Ex-professor do Departamento de Psiquiatria e Neurologia daFaculdade de Medicina da UFMG (in memoriam)

Endereço para correspondência:Centro de MemóriaFaculdade de Medicina da UFMGAv. Prof. Alfredo Balena, 19030130-100 - Belo Horizonte - MG

Clóvis de Faria Alvim *

Nos começos do século XIX, estranhos episódios ocorridosna Serra da Piedade despertaram não só grande afluência de ro-meiros à ermida erguida no cimo daquela montanha como tam-bém a curiosidade de viajantes ilustres, entre os quais, Spix, Mar-tius e Saint-Hilaire,1 dando-nos este último circunstanciada notí-cia dos acontecimentos ali observados.

No alto do monte, com permissão das autoridades eclesiásti-cas, instalou-se uma jovem devota, mais tarde conhecida com onome de Irmã Germana, no abandonado claustro que o IrmãoBarcarena deixara vazio, desde que se fôra para a Eternidade. Porcompanhia tinha apenas a sua irmã, também devota, e a assistên-cia espiritual do vigário de Roças Novas, padre José Gonçalves.

No recolhimento daquele ermo entregavam-se ambas à vidacontemplativa, consumindo os seus dias no fervor das orações eas suas noites na quietude das vigílias e penitências.

Não tardou muito que a Irmã Germana, na exaltação mís-ticados seus 34 anos, mas de compleição somática delicada e frágil, su-cumbisse aos rigores do claustro, revelando estranhos sintomas fí-sicos, logo interpretados pelo povo como de origem sobrenatural.

Saint-Hilaire, que a viu em 1818, traçou uma descrição por-menorizada do seu estado: “Conheci na Serra da Piedade uma mu-lher de quem falavam muito nas comarcas de Sabará e Vila Rica. Airmã Germana, tal o seu nome, fôra atacada, 10 anos antes (escritoem 1818), de afecções histéricas, acompanhadas de convulsões vio-lentas. Fizeram-na exorcismar; empregaram-se remédios inteira-mente contrários ao seu estado e o mal agravou-se. Ao tempo da mi-nha viagem ela chegara, havia já muito tempo, ao ponto de não po-der mais deixar o leito, e a quantidade de alimentos que ela toma-va cada dia era pouco maior a que se dá a um recém-nascido.

Ela não comia carne e recusava igualmente as gorduras, não po-dendo mesmo tomar um caldo. Alguns doces, queijo, um pouco depão ou farinha, constituíam todo o seu alimento; freqüentementeela recusava alimentar-se e quase sempre era preciso obrigá-la a co-mer qualquer cousa.

Era voz geral que os costumes de Germana haviam sido semprepuros e sua conduta irrepreensível. Durante o curso da sua molés-tia, sua devoção crescia dia a dia; queria jejuar completamente àssextas e sábados; a principio sua mãe quis impedi-la, mas Germanadeclarou que durante esses dois dias era-lhe inteiramente impossí-vel tomar qualquer alimento e daí por diante ela passou-os semprena mais completa abstinência.

Para satisfazer a sua devoção pela Virgem ela se fêz transportarà serra da Piedade, cuja capela fôra erguida sob a invocação de N. S.da Piedade, e obteve permissão de morar nêsse asilo. Lá meditando

um dia sôbre os mistérios da paixão, ela entrou numa espécie de êx-tase; seus braços endureceram e estenderam-se em forma de cruz;seus pés cruzaram-se igualmente e ela se manteve nessa atitude du-rante 48 horas. À época de minha viagem havia quatro anos queêsse fenômeno se dera pela primeira vez e daí por diante êle se re-petira semanalmente. A irmã Germana tomava essa atitude extáti-ca na noite de quinta para sexta-feira, conservando-se assim até ànoite de sábado para domingo, sem fazer movimento, sem proferiruma palavra, sem tomar qualquer alimento.”

A notícia do estranho acontecimento divulgou-se rapidamen-te, apaixonando tôda a província. Logo acorreu à serra da Pieda-de “hum numero incrível de Romeiros de todos os lugares das Mi-nas, sendo tal esta afluência, que apesar da elevação, desabrigo e se-cura da montanha tem havido dias de mais de dous mil concurren-tes”, informa-nos o Dr. Antônio Gonçalves Gomide.2

O vigário de Roças Novas, padre José Gonçalves, diretor es-piritual da enfêrma, assustado com os fatos, não tardou em comu-nicá-los ao bispo de Mariana, exprimindo-lhe o desejo de que aGermana fôsse examinada por homens eminentes.

Dom Cipriano da Santíssima Trindade, que na apreciação deSaint-Hilaire era “um homem ajuizado e competente”, tentouinutilmente demovê-la do seu retiro, procurando interná-la no re-colhimento de Macaúbas, para evitar a grande celeuma que já sefazia em tôrno do pretenso milagre. Chegou a proibir a celebra-ção da Santa Missa na montanha, alegando que El-Rei não haviaconcedido permissão. Os devotos, entretanto, não se conforma-ram com a proibição. Solicitaram diretamente ao soberano a re-vogação da ordem, sendo prontamente atendidos. Germana, quejá se havia retirado da serra, foi novamente levada à sua cela pormãos devotas, fazendo recrudescer com a sua presença o fervordas romarias.

Por essa ocasião, dois cirurgiões afoitos, os Drs. Antônio Pe-dro de Souza e Manoel Quintão da Silva, firmaram um laudo mé-dico, datado da Serra da Piedade, em 2 de abril de 1814, atestan-do a origem sobrenatural do fenômeno.

“Essa declaração”, escreve Saint-Hilaire,3 ficou manuscrita, mascirculou de mão em mão, sendo dela tirado um grande número decópias.”

Depois de variadas considerações sôbre o estado físico daGermana, sua anorexia admirável e a sua postura da crucificação,concluíram os dois peritos: “Julgamos terminada a questão: nós se-ríamos mentirosos e temerários se ousássemos someter ao juizo me-dico um facto, que só nos enche de admiração e de respeito para como Ser Supremo na consideração da bondade infinita de Jesus Chris-to, nosso Amabilissimo Redemptor. Vinde, ó incrédulos, e vêde. Senos dizeis, que ha huma especie de melancolia que consiste em errode imaginação, e que os enfermos attacados deste mal se julgão

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transformados em animaes, ou em outras cousas como aquellas Mo-ças curadas pelo Pastor Melampus, as quaes se julgarão transforma-das em vaccas, e que tal fora a enfermidade de Nabuchodonozor.

Sim, he, he verdade que ha essa enfermidade e tambem rara,mas o que a padece não tem intervallo algum de melho-ramento, asua imaginação roda sempre no mesmo erro, até que se cure, porema consideração viva da paixão de Nosso Senhor Jesus Christo não fazenfermos, mas Santos.”

Contrariamente ao que pensavam os ilustres signatários dolaudo, a questão não terminou tão simplesmente, com a santifica-rão da Germana, promovida por leigos.

Logo após a divulgação do documento apareceu um opús-culo, que circulou amplamente, impugnando as conclusões dosperitos.

O seu autor preferiu acobertar-se no anonimato, não se jul-gando suficientemente garantido pelas autoridades, contra a san-dice do povo, que acorria em massa ao santuário.

Na introdução da “Impugnação analytica ao exame feito pelosclínicos Antonio Pedro de Souza e Manoel Quintão da Silva, emhuma rapariga que julgarão santa, na Capella de Nossa Senhora daPiedade da Serra”, e encaminhada ao “Ilmo. Sr. Dr. Manoel Viei-ra da Silva, Geral Inspector da Arte de Curar”, escreveu o articu-lista:4 “Permittame Vossa Senhoria comparecer anonimo, porque sepela Fé e Auctoridade da Approvação de Vossa Senhoria tenho acerteza do quanto reprova, os sectários do erro, não me penso livredas tene-brosas maquinações dos seus fautores, cujo resentimentocrescerá à proporção do triunfo da verdade.”

Não tardou muito, entretanto, que se descobrisse o autor daimpugnarão, que fêz imprimir o seu trabalho no Rio de Janeiro,em 1814, no auge da crise religiosa. Tratava-se de um médicomuito culto, o Dr. Antônio Gonçalves Gomide, natural de Minas,nascido em 1770 e falecido em 1835, e então “assistente na zonaconflagrada pela influência da santa.”

Homem de larga cultura e projeção política, o Dr. Gomide,formado pela Universidade de Edimburgo, foi eleito constituinteem 1823 e mais tarde, senador do Império, honrando sempre asua terra no desempenho das funções públicas.

Era “um clínico notável, latinista e moralista”, segundo ex-pressão de Homem de Mello (in Fávero, Flamínio, o. c.).

Na “bibliografia médico-legal brasileira”, escreve FlamínioFávero,5 organizada em 1921, pelo Professor Oscar Freire, eapresentada à Academia Nacional de Medicina, a “ImpugnaçãoAnalytica” do dr. Gomide figura como o primeiro documentomédico-legal aparecido no Brasil.

São raríssimos os exemplares desta publicação. O “ArquivoPúblico Mineiro” possui um, que fez reproduzir na sua “Revista”,precedido da seguinte nota explicativa: “Não ha em Minas quemnão tenha ouvido alludir a uma jovem devota que durante algumtempo habitou a serra da Piedade, attrahindo ali a attenção e vene-ração de innumeros romeiros e a curiosidade de alguns viajantesilustres, nacionais e extrangeiros. Os extasis da irmã Germana pas-saram em julgado na crença popular, e ainda hoje o seu nome é in-vocado como o de uma santa milagrosa. Em 1814, porem, na fla-grancia do fervor religioso do povo, a que se associavam homens dealguma cultura scientifica, appareceu, entre as opiniões discolas, umopusculo que se tornou celebre. Embora publicado anonymamente,não se tardou em divulgar a sua verdadeira origem. O sr. AntonioGonçalves Gomide (l770-1835), natural de Minas e então assisten-te na zona conflagrada pela influencia da santa, teve a coragem decontestar a crendice commum, e fez imprimir o seu trabalho em

1814, no qual Saint Hilaire achou “plenitude de sciencia e de logi-ca” (Voyage dans le district des diamants, pág. 144, 1º vol.).

A “Revista do Arquivo Público Mineiro” reproduziu na inte-gra no seu número referente ao ano de 1906, sob o título “UmOpúsculo Precioso”, a referida impugnação, à qual Saint-Hilaireachou “cheia de ciência e lógica, onde prova, com multidão de au-toridades, que os êxtases de Germana não eram senão o resultadode uma catalepsia.”

A impugnação é longa, escrita em tom polêmico, por vêzesirônico, e entremeada de citações estrangeiras. Nela denota o seuautor grande conhecimento de história e de medicina, além de fa-miliaridade com a literatura psiquiátrica de então e o domínio devárias línguas.

Aparecem freqüentemente no decorrer do seu trabalho refe-rências ou citações de nomes famosos que legaram à psiquiatriaalguma contribuição, entre os quais, Pinel, Cullen, Sauvages,Crichton, Chiarugi, Haslan, Tissot, etc.

Ao final do seu estudo vem uma pequena bibliografia deno-minada “catalogo dos Livros em que se encontrão casos circuns-tanciados de Catalepsia”, com a indicação dos autores, livros e re-vistas consultados.

O Dr. Gomide teve ainda o cuidado de escrever no rodapéuma pequena nota explicativa, esclarecendo a sua posição reli-gio-sa em face dos acontecimentos. Diz êle: “De nenhum modo, (comose manifesta no conteudo deste Opusculo) me propuz a impugnar apossibilidade de haver pessoas Devotas, Inspiradas e Santas; porem,Canonizar os Santos pertence exclusivamente à Igreja, e ao Phyloso-pho compete descobrir e promulgar a verdade natural.” A contesta-ção desagradou aos devotos e, o que é mais grave, incorreu na cen-sura do assistente eclesiástico, que lamentou não ter o seu autor sedado ao trabalho de ir examinar pessoalmente a enfêrma.

Parece-nos que o Dr. Gomide temeu subir a serra, tendo jáanteriormente expandido a sua opinião contrária à interpretaçãoreinante. Da mesma forma que compareceu anônimo com o seuopúsculo, omitiu, deliberadamente o exame, para não atrair sô-bre si a atenção dos devotos.

A omissão, contudo, não invalida absolutamente o documen-to. É perfeitamente dispensável o exame quando se trata de darparecer sôbre laudo médico já existente.

“O parecer”, escreve Hélio Gomes,6 “que importa na crítica se-rena e fundamentada de um documento médico-legal, vale pela au-toridade científica e moral de quem o subscreve. Não está obrigadoa compromisso legal o opinante. É documento exclusivamente par-ticular.”

E, ainda, Flamínio Fávero nos ensina:7 “Êsses pareceres cons-tam, comumente, de quatro partes: preâmbulo, exposição, discus-são e conclusões, faltando é claro, a parte de descrição propriamen-te dita, porquanto em geral, não há exames a serem feitos.”

Não obstante a doutrina consagrada pelos legistas, o Sr. Au-gusto de Lima Júnior8 glosou, de maneira contrária, o pre-tensocochilo do Dr. Gomide, escrevendo na edição dominical do “Es-tado de Minas”, do dia 10 de agosto de 1958: “Outro médico, oDr. Antônio Gonçalves Gomide, mais tarde constituinte, em 1823,e senador do Império, dispensando-se de ir até a serra examinar devisu o caso, publicou sôbre êle um folhêto, denominando de catalép-ticos os fenômenos manifestados pela irmã Germana. Atribuindo acausa a uma complicação histérica da rapariga, argumentava o Dr.Gomide, entre outras cousas, que ‘interrompido por mais ou menoso equilíbrio e correspondência simpática, entre o canal alimentar,órgãos sexuais, e sistema nervoso, se tinham originado aberrações

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do princípio vital, tanto mais terríveis quantas fôssem as perturba-ções do referido equilíbrio.’

Como se vê, continua o articulista, a explicação é ainda maisconfusa do que o próprio fenômeno. Mas não ficou nisso o doutoopositor dos que tinham examinado a Irmã Germana, e estendeu-seem argumentos de ordem fisiológica e nervosa, todos êles, afinal,que convencem pouco da naturalidade do fenômeno, assim como olaudo dos impugnados, não induziria, forçosamente, à origem so-brenatural dêles.

Se o laudo dos peritos é de argumentação fraca, a impugnaçãodo Dr. Gomide não passa de um inteligente jôgo de palavras, com-plicado com abundantes citações de casos de histeria e catalepsia,previamente qualificados como tais...

Permaneceu e permanece a dúvida em quem, de boa-fé, se pro-puser a julgar do fato pelos testemunhos que dêles nos ficaram, oque não impediu que a lembrança da singular penitente ficasse liga-da à serra da Piedade. Irmã Germana, transportada para o recolhi-mento de Macaúbas, por ordem do bispo de Mariana, ali terminouseus dias, sempre apresentando, até o instante final, os espantososfatos que a celebrizaram. Ninguém, ainda hoje, sobe as pedregosase férreas encostas da serra da Piedade, em visita à abandonada celaonde ela habitou e onde, tantas vêzes, teve seus êxtases, sem expe-rimentar uma intensa emoção, ao recordar-se da pobre menina, cujaexistência foi um martírio sôbre aquele píncaro famoso, onde Nos-sa Senhora apareceu à menina cega, curando-a. A velha capela deBarcarena lá está branqueando ao sol e aos luares, e de longe, bemde longe, se lhe avista o vulto no horizonte, lembrando uma dasmais belas tradições da nossa terra.”

Discordamos fundamentalmente da interpretação dada à“Impugnação” pelo Sr. Augusto de Lima Júnior, que parece maisinclinado a acreditar na origem sobrenatural dos fenômenosapresentados pela Germana.

A citação que faz o ilustre historiador mineiro, de um peque-no trecho da contestação, situado fora do seu contexto e da suaépoca, torna-se ininteligível.

O parecer do Dr. Gomide não deixa dúvida quanto à nature-za do mal. É uma peça minuciosa, exaustiva, amplamente docu-mentada. É algo de extraordinário que existisse em Minas naque-la época, em local tão deserto e desprovido de recursos, homemde tamanha cultura e despido de preconceitos, para afrontar co-rajosamente a crendice comum.

Pena é que não possamos transcrever todo o documento,dada a sua extensão, para o leitor julgar do seu mérito.

Vamos, contudo, extrair dêle algumas proposições de maiorrelêvo, para dar uma idéia, ainda que incompleta, da sua impor-tância.

Já na “Advertência”, que precede à impugnarão propriamen-te dita, o seu autor declara: “Contrariando as proposições do exa-me, que a proclamou Santa, vou demonstrar, que huma semiologiarasoavel nada mais acharia que doença,” Logo em seguida vemuma indagação de profundo sentido filosófico: “Talvez me arguãodizendo: que te importa a piedosa fraude, em que vivem satisfeitosos credulos? Privallos desta illusão não he tirar-lhes hum entreteni-mento que os consola?.”

A impugnarão propriamente dita começa da seguinte maneira:“Do estado pathologico da Doente são consequencia todos os

phenomenos, que se apresentão, e que podião ser, como infinitas ve-zes se tem observado, mais extraordinarios, sem que dessem ocasiãoà criminosa apoteose, com que se tem admirado os actuaes.

Todavia as differentes anomalias da acção nervosa sobre a con-tração muscular tem em todos os tempos cultos e lugares induzidopessoas ignorantes a acreditar na influencia humas vezes de Deos, eoutras do Diabo.

Os credulos Arabes se persuadirão, que os accidentes epilep-ti-cos de seu Propheta (doença que pelo mesmo principio teve o nomede morbus sacer) provinhão do Commercio com o Céo, e com oAnjo Gabriel. As prophetizas da Antiguidade Pagan nada mais erãodo que mulheres vaporosas, cujas contorsões convulsivas em partereaes, e em parte misturadas de exageração, e de impostura, o vulgoreputava por movimentos impetuosos da Divindade, que mal cabianos corpos que a continhão.

A persuasão da influencia do Demonio tem sido mais geral, eaté Hoffman, e outros Medicos respeitáveis escreverão sobre ella, ena verdade parece mais natural imputar males terríveis ao Espiritoperverso e maligno, do que a Deos infinitamente bom e sabio, inca-paz portanto de se regosijar com dores de suas creaturas favorecidas.

Houve tempo em que a Philosophia consistia em ver prodigiosna natureza; e o que seria ordinario nos olhos da razão se magnifi-cava pelo microscopio do fanatimo.”

Mais adiante, comentando a anorexia da paciente, que dificil-mente tomava alimentos e dêles se privava completamente às sex-tas e sábados, lembra o Dr. Gomide: “Pouco ou quasi nada, toma-do relativamente a cada hum pode vir a ser bastante para outro. Osufficiente de huma rapariga ha annos hysterica, com movimentosirritativos retrogados no canal alimentar, que vive como os animaesque invernão entorpecidos pelo frio, em huma inacção absoluta,sempre de cama, e no escuro, deve ser muito pouco ou quasi nadacomparativamente ao nosso necessário, e nada de todo nos acessosperiodicos.”

Depois desta explanação, que poderia ser subscrita pelos nu-trólogos modernos, o autor indaga com surprêsa: “Se a anorexiasantifica, qual é a vossa opinião sobre os que padecem a voracidadebulimica? E qual seria o alimento de uma estatua?”

O Dr. Gomide não se limitou ao diagnóstico do mal. Depoisde declarar textualmente: “Padece pois a vossa Santa huma Cata-lepsia convulsiva, especie quarta da mencionada taboa de Crich-ton”, considerou os variados aspetos semiológicos da enfermida-de. Procurou explicar de maneira engenhosa a periodicidade dascrises catalépticas, que atingiam o seu acme aproximadamente nomesmo dia e hora em que expirou Jesus Cristo.

“O Capitão João Gomes de Araujo tem huma tropa de bestascom que em todos os Sabbados exporta da roça mantimentos para avilla de Caethé. As bestas apparecem espontaneamente em todos osdias de manhã e de tarde para tomar a ração de milho no que sãoinfalíveis, e até importunas; porem, aos Sabbados não só não vempor si à casa, como se escondem e fogem, sendo preciso procurallase tanger para receber as cargas.

A dor do trabalho constantemente repetida no fim de cada seterevoluções diurnas, faz que as ideas, e movimentos irritativos se re-novem habitualmente no fim das referidas revoluções.”

O exemplo citado, lembrado também por Saint-Hilaire nassuas memórias, poderia ser considerado hoje à luz dos reflexoscondicionados.

Mais plausível seria entretanto explicar o condicionamentopsicológico das crises pela fôrça persuasiva do dia da semana emque sobrevinham, consagrado à morte do Salvador.

Depois de justificar longamente o seu diagnóstico, com exem-plos e citações tomados da História da Medicina, o autor do opús-

Irmã Germana

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culo voltou-se para a terapêutica, antecipando em muitos pontosos conhecimentos atuais, de maneira realmente surpreendente.

“Sim. Tudo manifesta e com a maior evidencia, que he Catalep-sia convulsiva, porem devieis passar avante, e tinheis ainda humaobrigação essencial, e a unica necessária para encher, que era traçaro plano de cura a miserável Doente, que abandonada à marcha domal, ha de ficar de todo louca, ou morrer apopletica em alguns dosaccessos.

Podieis aconselhar a eletricidade ou o Galvanismo, que nestasenfermidades se tem colhido soberanos effeitos, os oxidos e saes deferro, cobre, prata e zinco; o ether e o amoniaco; a hiperoxigenaçãodo ar inspirado com que Beddoes, Thorton e outros Pneumaticostem obtido a cura de taes affecções; a quina, a quassia, a angustura;a valeriana, a serpentaria, a arnica; a canela, o gengibre, o cardamo-mo; a datura-stramonium tão recommendada por Hufeland, o opio,e em alta dosis, às onze horas das noites de Quintas-feiras; a mir-rha, a assafetida, a canfora; o almiscar, o castóreo, o fosforo, &. &.A transfusão?

Na escolha, combinação, variedade de formulas, prescrição dedosis e intervalos, com que ordenasseis estes e outros remedios da-rieis provas de circunspecção e de talentos superiores na Arte de cu-rar, sendo mais interessante, e vantajoso à humanidade sofredora;que fosseis Práticos circunspectos e talentosos, do que transcenden-do os limites da vossa missão declamadores ineptos, e inuteis à hu-manidade em geral.”

Não passou despercebido ao Dr. Gomide a possibilidade defraude ou simulação, tantas vêzes repetida, monotonamente, emcasos idênticos, como lembra muito acertadamente o Prof. JeanLhermitte em seu livro “Místicos e Falsos Místicos”.4

O nosso precursor continua em tom polêmico: “Vós fazeis ul-trage à Religião, e à Igreja, quando, dando a questão por termina-da, resolveis, e decidis, tão prompta e cathegoricamente de negocio,que Ella examina, e analysa com a mais profunda excavação, e emque contrasta todas as provas, quilate por quilate, com hum criteriodivino. Os que duvidão da vossa Santa, porque lhe conhecem adoença, não são incredulos, são prudentes, e orthodoxos, como sãosuperticiosos e nescios, os que a querem por força canonizar.”

Insistindo ainda na possibilidade de simulação, prossegue o Dr.Gomide: “Não se duvida da realidade; mas era do vosso dever inda-gar previamente, e com a delicadeza, tino, e sagacidade, que o mes-mo Fodere insinua em toda a Medicina Legal, privativa-mente noTom. 1 Cap. 14; e no § 162, se a doença era ou não fingida, tantopelos innumeraveis exemplos de falsificações deste genero, comopela ponderavel these do Doutor Cullen, de que a Catalepsia é sem-pre simulada.

Porem vós não viestes observar huma Cataleptica; vinheis decasa prevenidos a ver huma Santa.”

Também não escapou ao ilustre médico a grande repercussãosocial do acontecimento, capaz de engendrar no espírito das mas-sas incultas manifestações coletivas anormais.

Antecipando-se ainda aqui ao seu tempo, advertiu o Dr. Go-mide às autoridades quanto aos riscos inerentes ao fanatismo,lembrando os melhores postulados da Psicologia Social: “A credu-lidade da multidão ignorante, chancelada pelo vosso galimacias,além de consagração de erro, damnifica directamente a sociedade,privando-a por calculo bem moderado, de hum milhão de serviçosna sofrega concurrencia de romeiros, que empregados em qualquertrabalho productivo, terião augmentado sensivelmente a riqueza daNação.”

Adiante, com algumas proposições candentes, no melhor es-tilo polemista da época, contínua o ilustre precursor da psiquia-tria brasileira: “A Serra da Piedade será huma Officina ou Semina-rio de Santos, e consta que dentre o grupo de beatas algumas se vãogradualmente elevando à mesma perfeição, a cujos mais rapidosprogressos obsta a promiscuidade dos sexos, que promovendo o pejodiverte a attenção do espetaculo imitavel aos nervos e musculos decada huma.”

Em seguida lembra o autor numerosos exemplos de contágiomental registrados na literatura médica de então. Chambom afir-mava que a “vista reiterada de simptomas nervosos, as faz com faci-lidade nascer entre mulheres delicadas.” Baglivio mencionava atransmissão da epilepsia a um espectador. Whytt viu muitas vêzesafecções histéricas adquiridas da mesma ma-neira. Preston des-creveu “a progressiva communicação de convulsões, que começa-rão em huma Rapariga assustada pela aplicação de hum rato vivosobre o rosto.”

Após esta enumeração de casos tomados da História da Me-dicina, escreve o Dr. Gomide, pateticamente: “Fazei que vossasmulheres, vossas irmans, e vossas filhas contemplem na Serra daPiedade o culto tributado à vossa Santa, cujos pés e mãos se beijão,cujas relíquias se guardão com veneração; que testemunhem compa-decidas e horrorizadas as espantosas convulsões; e tereis a vaidosasatisfação de ver algumas delas, a vosso modo, Santificadas.”

O opúsculo termina com uma breve exortação aos peritos,contendo ainda em apêndice, corno já foi mencionado, “Um Ca-talogo dos Livros em que se encontrão casos circunstanciados de Ca-talepsia.”

“Retirai-vos. Ide rectificar os vossos juizos estudando, nas Obrasque poderdes da lista junta, a Etiologia, Semiotica e Therapeuticada doença, que vista pela primeira vez na pretendida Santa vos fas-cinou com tanto assombro.”

Acreditamos suficientemente demonstrado que o Dr. Antô-rio Gonçalves Gomide, nascido em Minas, em 1770, possuía vas-tos conhecimentos de Patologia Mental, como era conhecida naépoca a nossa especialidade, podendo ser considerado, com justi-ça, o precursor da psiquiatria em nossa terra.

Foi contemporâneo de Pinel e de Benjamin Rush, o patriarcada psiquiatria americana. Precedeu de alguns anos o famoso Dr.José Martins da Cruz Jobim, que na cidade do Rio de Janeiro, em1830, bradou contra o modo desumano de tratamento dado aosalienados.

Para finalizar êste trabalho, algumas considerações mais sobreo estado mental da Germana, corretamente diagnosticado peloilustre clínico.

Saint-Hilaire, que a viu em transe, declara que a rapariga erade magreza e debilidade extrema, mas que a sua fisionomia eradoce e agradável. Perguntou-lhe o naturalista como se achava eela lhe respondeu, com voz quase sumida, que “estava do que me-recia.” Tentou o sábio experimentar nela a ação do “magnetismoanimal,” mas não obteve êxito. Entretanto, o seu confessor con-seguia influenciá-la de tal maneira que podia interromper os seusêxtases para fazê-la comungar.

Não escapou ao arguto observador francês a possibilidade deestar a devota rapariga “magnetizada” pelo seu diretor espiritual,apesar da sua total ignorância do fenômeno. Escreve ele:

“Se o que esse padre me relatou sobre sua ascendência sobreGermana não foi exagerado, os partidários do magnetismo animaldaí tirariam provavelmente grande partido em apoio da sua doutri-na. Afirmou-me, com efeito, que em meio ás mais terríveis convul-

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sões era bastante que ele tocasse na doente para torná-la calma.Quando Germana se achava em seus êxtases periódicos, seus mem-bros adquiriam tal rigidez que seria mais fácil quebrá-los que dobrá-los; mas se se pode acreditar no testemunho de seu confessor, porpouco que tocasse o braço ou a mão da doente ele lhes dava a posi-ção que quizesse. O que é certo é que tendo o confessor de Germa-na lhe ordenado que comungasse em um dos seus dias de êxtases,ela se levantara, num movimento convulso, do leito em que haviasido levada à igreja; ajoelhada, mas com os braços sempre cruzados,ela recebeu a santa hóstia, e, desde essa ocasião sempre repetiu a co-munhão no meio de seus extases. Aliás, o diretor de Germana fala-va sempre com muita simplicidade do seu dominio sobre a pretensasanta; ele o atribuia à docilidade da enferma e seu respeito pelo ca-rater sacerdotal, acrescentando que qualquer outro eclesiástico po-deria conseguir os mesmos resultados. Esse homem, dizia-me comaquela confiança que os magnetizadores exigem dos seus adeptos: aobediência dessa pobre moça é tal que, se eu lhe ordenar que passeuma semana inteira sem se alimentar, ela não hesitará em atender-me, e nada sofrerá; mas, acrescentava, receio ofender a Deus comuma experiência dessas.”

É curioso notar no trecho citado, a terminologia própria daépoca. Saint-Hilaire usou a expressão “magnetismo animal” paradesignar o fenômeno hipnótico. Mesmer estava vivo e Braid aindanão despontara. Somente em 1843 introduziu êste último, na lin-guagem médica, os têrmos hipnotismo, hipnótico e hipnotizar.7

“Voltando na sexta-feira ao alto da montanha - continua o na-turalista nas suas memórias - fui, pela segunda vez, ao quarto daGermana. Ela se achava sôbre o seu leito, deitada de costas, com acabeça envolta em um lenço. Seus braços estavam em cruz; um dê-les, detido pela parede, não tivera a liberdade de estender-se com-pletamente; o outro estendia-se para fora da cama e estava apoiadosôbre um tamborete. A doente tinha as mãos extremamente frias, opolegar e o indicador estavam esticados, os outros dedos fechados,os joelhos dobrados e os pés colocados um sôbre o outro. Nessa po-sição Germana conservava a mais perfeita imobilidade; seu pulsoera apenas perceptível e poder-se-ia acreditá-la morta se seu peito,devido à respiração, não agitasse ligeiramente a coberta.

Experimentei varias vezes dobrar seus braços, inutilmente; a ri-gidez dos musculos aumentava em consequência de meus esforços econvenci-me de que se insistisse poderia prejudicar a doente. Naverdade fechei suas mãos varias vezes, mas no momento em que lar-gava seus dedos eles retomavam a posição anterior. A irmã de Ger-mana, que ordinariamente cuidava dela, e que se achava presente naocasião de minha visita, disse-me que essa pobre moça não se apre-sentava sempre tão calma durante seus extases, como nesse dia; quena verdade seus pés e seus braços ficavam constantemente imóveis,mas que ela frequentemente gemia e suspirava, que sua cabeça seagitava sobre o travesseiro, e que movimentos convulsivos se mani-festavam principalmente aí pelas três horas, momento em que JesusCristo expirara.”

A descrição do sábio francês não deixa dúvidas quanto aotranse cataléptico de Germana, corretamente diagnosticado peloDr. Gomide, e que imitava, com a sua postura, a crucificação.Não faz, contudo, referência alguma à estigmatização, embora osseus pés estivessem como que encravados um sobre o outro. Éimportante notar que o transe apareceu depois de ter meditadoum dia a pobre moça sôbre os mistérios da Paixão.

Alguns teóricos do misticismo explicam a postura e as chagasdos grandes estigmatizados pela habitual concentração da aten-ção sôbre o crucifixo, que é contemplado diariamente, em parti-

cular estado de espírito. É a identificação com o Salvador, ou me-lhor, a Compaixão (compassio), que leva o místico a participar dosseus sofrimentos, reproduzindo na sua própria carne a atitude eas chagas do Cristo.

Este “complexo da crucificação”, diz Jean Lhermitte,9 pro-duz em indivíduos frágeis e dotados de uma sensibilidade exage-rada, uma influência muito particular. A propósito, lembra quepara Thurston a influência do estado somático é essencial.

“Os santos fisicamente vigorosos, escreve, não foram jamaisagraciados com estigmas, apesar da sua devoção à Paixão de NossoSenhor e o desejo de participar dos seus sofrimentos. Ao passo quenumerosas mulheres devotas, que jamais foram beatificadas, e cujahistória revela certas extra-vagâncias da sensibilidade, foram con-templadas com efusões sanguinolentas, das cinco chagas de JesusCristo.”

Jean Lhermitte não pode ser acusado de parcialidade; além deneuropsiquiatra famoso, é católico praticante, tendo publicado oseu livro com o “Nihil Obstat” e o “Imprimatur” das autoridadeseclesiásticas parisienses.

No desejo de esclarecer os acidentes da vida mística autên-tica,bem como das contrafações do misticismo, escreveu o ilustre pro-fessor uma pequena obra prima - “Místicos e Falsos Místicos” - naqual observa que no Oriente não se produzem estigmatizações, aocontrário do Ocidente, onde são relativamente freqüentes. É pos-sível, acrescenta, que esta particularidade esteja ligada à arte e àsdiversas maneiras de representação do Cristo.

“Não descobrimos na arte bizantina, escreve, a dor que se exalados nossos calvários, dos nossos crucifixos, ou das pinturas realistasdos norte-europeus. Não se experimenta em face do Crucificado acompaixão e o sofrimento compartido; o que domina é a grandeza,o esplendor, a majestade dAquêle que ressuscitou.”

Agradecimentos

CCP agradece ao Centro de Memória da Faculdade de Medi-cina da UFMG e ao Dr. Ciro Gomide pela prestimosa e valiosacontribuição.

Referências Bibliográficas

1. Saint-Hilaire H. Viagens pelo Distrito dos Diamantes e lito-ral do Brasil (tradução de Pena LA). São Paulo: CompanhiaEditora Nacional; 1941. Coleção Brasiliana, vol. 210, p. 100.

2. Gomide AG. Impugnação analytica ao exame feito pelos clí-nicos Antonio Pedro de Souza e Manoel Quintão da Silva,em huma rapariga que julgarão Santa, na Capella de NossaSenhora da Piedade da Serra (Rio de Janeiro, 1814). In: Umopusculo precioso; Revista do Archivo Publico Mineiro, Fas-cículos, I, II, III e IV,1906 Belo Horizonte. p. 759-774.

3. Fávero F. Medicina Legal. 3ª ed. São Paulo: Livraria MartinsEditora, 1945. Vol. 1, p. 14 e 44.

4. Gomes H. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Livraria FreitasBastos S.A., 1957. Vol. 1, p. 45 e 82.

5. Lima Jr A. Povoadores dos Arredores da Serra da Piedade.Estado de Minas 1958 10 de agosto.

6. Lliermitte J. Mystiques et Faux Mystiques. Paris: Bloud &Gay; 1952.

7. Zilboorg G, Henry GW. Historia de la Psicologia Medica.Buenos Aires: Libreria Hachette S.A.; 1945. p. 390.

Irmã Germana

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HomenagemDEMÊNCIA PRECOCE NA SEXTA EDIÇÃO DE KRAEPELIN EM 1899DEMENTIA PRAECOX IN KRAEPELIN’S SIXTH EDITION IN 1899

* Prof. Adjunto Doutor do Departmento de Psiquiatria eNeurologia da Faculdade de Medicina da UFMG.

Endereço para correspondência:Departamento de Psiquiatria e NeurologiaFaculdade de Medicina da UFMGAv. Prof. Alfredo Balena 19030130-100 - Belo Horizonte - MG

Maurício Viotti Daker *

Resumo

Em homenagem aos 100 anos da sexta edição do tratado de Krae-pelin, em que pela primeira vez foram delimitados em capítulospróprios a demência precoce e a psicose maníaco-depressiva, tra-duzimos para o português a descrição dos sintomas gerais da de-mência precoce. Segue anexo com os índices referentes às classifi-cações dos transtornos mentais contidos em várias edições de seutratado, que permitem vislumbrar o extraordinário avanço obtidoaté a sexta edição.

Palavras-chave: Emil Kraepelin; Dementia Praecox; História daPsiquiatria

Casos Clínicos em Psiquiatria homenageia os 100 anos da sex-ta edição do tratado de Kraepelin com a tradução dos sintomasgerais da demência precoce. Nessa edição foram delimitados pelaprimeira vez em contornos atuais e em capítulos próprios a de-mência precoce e a psicose maníaco-depressiva. No texto origi-nal, segue a presente descrição ao longo de outras 215 páginas, adescrição das formas hebefrênica, catatônica e paranóide, bemcomo considerações sobre as causas, o diagnóstico e diagnósticodiferencial, mais o tratamento da demência precoce.

O primeiro volume dessa “edição clássica” se intitula “Psi-quiatria Geral”, onde são abordadas as causas dos transtornosmentais, suas manifestações psicopatológicas, os cursos, a investi-gação diagnóstica e o tratamento. O segundo diz respeito à “Psi-quiatria Clínica”, com exposição dos diversos quadros clínicos: osrelacionados a infecções, os associados a esgotamento físico, a in-toxicações, os transtornos tireogênicos, a demência precoce, a de-mência paralítica, os transtornos oriundos de acometimentos ce-rebrais, os da idade avançada, o transtorno mental maníaco-de-pressivo, a paranóia, as neuroses, os estados psicopáticos e as ini-bições ou retardos do desenvolvimento psíquico. Como se podeobservar, trata-se de tratado com formato e temas atuais.

Anexo divulgamos os índices referentes às classificações daprimeira, terceira, quinta e sexta edições de Kraepelin, onde po-demos observar o extraordinário avanço obtido. Embora não tra-duzidos, acreditamos que o leitor poderá compreender grandeparte do texto, por se tratarem muitas vezes de expressões de ori-gem grega ou latina.

Capítulo V.A Dementia praecox.

Sob o nome de dementia praecox seja-nos permitido resumirprovisoriamente uma série de quadros de doenças cuja proprie-dade comum consiste no desfecho em um peculiar estado defici-tário. Parece, na verdade, que esse desfecho desfavorável não temque ocorrer sem exceção, mas ocorre com tal freqüência que, porenquanto, pretendemos insistir na denominação em uso. Talvezainda fossem mais adequadas outras denominações como a de-menza primitiva dos italianos ou a expressão preferida por Riegerde dementia simplex. Com base nos fatos clínicos e anatômicosaté agora conhecidos, não posso duvidar que lidamos aqui comlesões severas do córtex cerebral e, de regra, no máximo parcial-mente reversíveis. No entanto, se o processo de doença é sempreo mesmo, isso, por ora, tem que ser considerado ainda totalmen-te incerto.

Sob o ponto de vista clínico, se recomenda, talvez, para efei-to de clareza, manter-se separados três grupos principais da de-mentia praecox, que todavia estão sem dúvida ligados através defluidas transições uns com os outros. Pretendemos designar essasformas como hebefrênica, catatônica e paranóide. A primeira de-las corresponde à designada por mim anteriormente de dementiapraecox, a segunda à catatonia, enquanto que a terceira abrange adementia paranoides e, além disso, aqueles casos que correspon-deriam à paranóia, caso não levassem rapidamente a um acentua-do grau de fraqueza mental. Todo o domínio da dementia praecoxcorresponde, em essência, aos quadros de doença antes designa-dos Verblödungsprocesse*. Gostaria de sugerir essa mudança nadesignação, porque também a paralisia e a demência senil, assimcomo uma série de outros processos de doença podem da mesmaforma ser compreendidos com o nome de Verblödungsprocesse.

A variedade de estados de quadros clínicos que observamosno curso da dementia praecox é de tal magnitude que, freqüente-mente, numa observação superficial, a correspondência interna éapenas dificilmente reconhecida. Não obstante, defrontamo-nosreiteradamente com certos transtornos básicos em forma mais oumenos característica, de modo mais puro, na verdade, nos estadosfinais, nos quais as manifestações mais casuais e passageiras doprocesso de doença recuaram diante das duradouras e marcantesalterações da vida psíquica.

* Termo de difícil tradução: "processo de embrutecimento" ou de "imbecilização", ainda de"embotamento mental ou psíquico", sempre denotando um especial enfraquecimento psíquico.

Entidade disposta na 5ª edição do Tratado de Kraepelin dentre as "Doenças Metabólicas", em conjunto com a psicose mixedematosa, o cretinismo e a dementia paralytica, com

as subformas dementia praecox, catatonia e dementia paranoides.

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Demência precoce na sext edição de Kraepelin em 1899

60 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):59-67

A simples consideração das impressões externas não costumatransparecer na dementia praecox um acometimento por dano gra-ve. Os doentes percebem muito bem, em geral, o que ocorre emtorno deles, freqüentemente muito melhor do que se poderia es-perar ante seus comportamentos. É surpreendente que doentescom aparência de total embotamento tenham apreendido correta-mente todos os possíveis pormenores do seu ambiente; de repen-te conhecem os nomes de seus companheiros e observam mudan-ças no traje do médico. Em virtude disso, no mais das vezes aorientação também está intacta. Sabem, via de regra, onde se en-contram, reconhecem as pessoas, possuem clareza quanto à noçãode tempo. Apenas em estupor e em impetuosos estados ansiosospode a orientação encontrar-se de vez em quando mais fortemen-te perturbada, mas é francamente característico que os doentespermaneçam plenamente lúcidos apesar da mais forte inquietação.Por outro lado, todavia, a orientação é prejudicada não raramentepor delírios. Os doentes indicam falsamente locais e pessoas ou di-zem uma data errada, não devido a incapacidade de apreender ede refletir corretamente, senão porque suas idéias delirantes sãomais poderosas do que os pontos de referência fornecidos pelapercepção. Decerto, não é sempre possível ter clareza sobre essasituação, porque muitas vezes os doentes não prestam nenhumainformação ou o fazem de forma propositadamente falsa.

Os sentidos em nossos pacientes estão acometidos com muitafrequência por graves transtornos, surgindo falsas percepções. Es-pecialmente na evolução aguda ou subaguda da doença elas qua-se nunca faltam. Aqui e ali acompanham toda a evolução da doen-ça; usualmente diminuem gradualmente mais tarde, para entãonos estados finais se apresentarem somente de vez em quandocom alguma força. No mais das vezes são falseamentos auditivos,a seguir falseamentos visuais e das sensações, a percepção de cor-rentes elétricas, toques ou influências. No início da doença os fal-seamentos costumam possuir conteúdo desagradável e os doentesencontrar-se intensamente inquietos. Mais tarde, no mais das ve-zes, tornam-se impassíveis, se excluirmos os estados passageirosde agitação. Alguns doentes contemplam os falseamentos comoproduções artísticas, como um tipo de teatro que lhes é encenado,divertem-se também com isso. Mas outros não tomam qualquerconhecimento da situação e somente ante questionamento insis-tente prestam alguma informação esparsa sobre o conteúdo deseus falseamentos. No mais das vezes essa informação é totalmen-te insensata e incoerente. Assim ouvia um doente, no mais, plena-mente sereno e ordenado, frases duradouras como as seguintes,que mostram claramente a manifestação da rigidez da ideação:

“Pois nós mesmos podemos sempre esperar que devemos nosdeixar pagar outros pensamentos. Pois nós mesmos quere-mos querer sabê-lo, quem conosco deveria deixar a porca ca-beça atormentar loucamente até a morte. Não, nós mesmosnão somos mais tão tolos e não ligamos sempre para isso, sedevemos deixar diminuir a bebedeira. Porque nós fazemosloucamente mesmo e a nós mesmos devemos deixar enganarporca e tolamente.”

A consciência do doente está em muitos casos plena e dura-douramente clara. Apenas em estados de agitação e de estupor elachega, em parte, à turvação, muito embora esta seja, no mais das

vezes, menos acentuada do que parece à primeira vista. Gravestranstornos apresenta regularmente, pelo contrário, a atenção.Ainda que freqüentemente se pode fazer com que o doente pres-te atenção, persiste não raro grande distraimento, que torna im-possível uma duradoura insistência num mesmo objeto. Sobretu-do falta ao doente, quase sempre, o interesse, a tendência de diri-gir sua atenção aos fenômenos em seu meio a partir de impulsosinternos próprios. Muito embora percebam corretamente o quese passa em torno deles, não se atentam ao ocorrido, procuramnão apreendê-lo e compreendê-lo. Em estupor profundo ou emavançada imbecilidade pode ainda tornar-se totalmente impossí-vel estimular de qualquer modo a atenção do doente. Contraria-mente, vez por outra se observa durante o desaparecimento doestupor o surgimento de uma certa curiosidade nos doentes; elesobservam furtivos o que se passa no quarto, acompanham o mé-dico à distância, vêem através das portas abertas, mas se viramquando chamados ou olham no vazio quando se quer mostrar-lhes algo. Aparentemente, aqui a atenção que ressurge é mantidaoclusa através do negativismo.

A memória dos doentes está relativamente pouco perturbada.São capazes de informar corretamente, quando querem, sobreseus passados, sabem freqüentemente com precisão de dias háquanto tempo estão no sanatório. Preservam às vezes seus conhe-cimentos adquiridos na escola com surpreendente resistência, atéo período do mais profundo embotamento mental. Lembro-mede um parvo moço camponês que diante do mapa era capaz deapontar sem hesitação qualquer cidade; um outro impressionavapor seus conhecimentos históricos; ainda outros resolvem com fa-cilidade difíceis cálculos matemáticos. Também a capacidade defixar está geralmente bem preservada. No entanto, verifica-seapós severo estupor, não raramente, que os doentes não detêmpraticamente nenhuma ou apenas obscura lembrança dos fenô-menos durante longos períodos de tempo; mas, por outro lado,mesmo doentes totalmente alheios conseguem, no mais das vezesfacilmente, gravar números ou nomes que, então, dias e semanasdepois podem evocar corretamente. Decerto, respostas errôneassão freqüentemente fornecidas, antes de tudo devido ao negati-vismo, até que se torna claro, ante investigação mais profunda,que o doente tinha gravado muito bem a tarefa.

O pensamento dos doentes costuma estar sempre, mais cedoou mais tarde, sensivelmente acometido. Mesmo se deixarmos delado a confusão dos estados de agitação e o estupor, no qual nãopodemos acessar os processos internos, ocorre via de regra maise mais uma certa desagregação do pensamento, como descreve-mos antes pormenorizadamente. Em casos mais leves, esta semostra, talvez, apenas na maior distratibilidade e inconstância, norepentino passar de um objeto a outro, no entrelaçar de modos defala superficiais com pensamentos tangenciais; em transtornosmais graves, no entanto, desenvolve-se não raramente a confusãoda linguagem com sua plena perda de conexão e seus neologis-mos. Decerto deve aqui ser reconhecido que o pensamento pro-priamente está possivelmente muito menos perturbado do que asaparências indicam, já que em certas circunstâncias os doentesnão apenas apreendem bem, como também desenvolvem oapreendido e podem de certo modo comportar-se de forma orde-nada. De resto, nos pensamentos dos doentes quase sempre nosdeparamos com os sinais de estereotipia, de retenção de determi-

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nadas idéias que podem inclusive dominar o pensamento de talforma que durante semanas ou meses se manifestam sempre asmesmas escassas locuções. Freqüentemente, observamos tambéma tendência a rimas, a repetição sem sentido de sons, a forçadasbrincadeiras com palavras.

Muito prejudicada é, sem exceção, a capacidade de juízo dosdoentes. Embora de vez em quando se movimentem tão segurosem conhecida trilha, logo costumam fracassar assim que se tratade assimilar mentalmente novas experiências. Não mais com-preendem corretamente o que sucede em torno deles, não se dãoconta das circunstâncias, não meditam, não chegam à conclusãomais indicada e não fazem reparos a si mesmos. Por conseqüên-cia, possuem no mais das vezes uma idéia totalmente falsa de suassituações, de seus estados. Se também existe não raramente umacerta consciência da alteração doentia que os envolveu, falta-lhesusualmente a compreensão mais profunda para a gravidade dotranstorno e para as extensas consequências que o mesmo lhe tra-rá para todo o futuro.

Com extrema freqüência se desenvolvem nesse terreno idéiasdelirantes, passageiras ou duradouras. No primeiro momento dadoença elas costumam apresentar preponderantemente conteúdode tristeza, idéias hipocondríacas, de culpa e de perseguição.Mais tarde se associam freqüentemente idéias de grandeza, ou es-tas bem que se apresentam em primeiro plano. Todas essas idéiasdelirantes mostram muito prontamente, via de regra, um caráterabsurdo e excêntrico, aparentemente devido ao enfraquecimentomental que rapidamente se desenvolve. Elas também não sãoimutáveis, senão que seus conteúdos variam mais ou menos rapi-damente mediante o desaparecimento dos anteriores, novos ele-mentos se apresentam. Às vezes os doentes manifestam quase to-dos os dias novas particularidades delirantes, apesar de certa ca-racterística duradoura, e bem que se deixam ainda incitar, atravésde persuasão, a inventar quaisquer formações delirantes. Nagrande maioria dos casos a formação delirante, inicialmente mui-to exuberante, cessa gradual e totalmente. Quando muito, perma-necem ainda por algum tempo idéias delirantes isoladas, que nãomais são elaboradas, ou elas emergem de tempos em tempos, oufinalmente caem duradoura e plenamente no esquecimento. Ape-nas naquele grupo de observações que pretendemos resumircomo formas paranóides, as idéias delirantes se conservam pormais tempo, mas também aqui elas se tornam sempre mais desor-denadas e desconexas.

Ocorrem regularmente transtornos muito marcantes e pro-fundos na vida afetiva de nossos doentes. O início da doença éconstituído por alterações afetivas extremamente freqüentes detristeza e ansiedade, às vezes com intensa agitação. Algo mais ra-ros são estados de animado divertimento com constantes risosexuberantes. No entanto, muito mais importante do que esses es-tados passageiros é o embotamento afetivo, que se manifesta semexceção em maior ou menor grau e que representa uma das ca-racterísticas essenciais do processo de doença. Já a falta de inte-resse para com o meio, acima referida, poderia ser consideradacomo manifestação parcial deste transtorno geral, uma vez que osmotivos internos para a intensidade da atenção são fornecidosprecisamente pelas emoções. A peculiar indiferença dos doentesante suas relações outrora calorosas, a extinção da simpatia paracom parentes e amigos, da satisfação com atividades e trabalho,

com diversão e prazeres, é não raro o primeiro e mais marcantesinal do mal que irrompe. Os doentes, mesmo quando de certaforma os movimentos expressivos ainda são intensos, não sentemnenhuma alegria de fato e nenhuma tristeza mais, não nutrem de-sejos nem receios, senão que vivem apáticos ao longo do dia, oraembotados e ensimesmados, ora em hilaridade supérflua. Mesmoante mal-estar corporal parece, muitas vezes, terem-se tornado in-sensíveis, toleram posições desconfortáveis, agulhadas e feridassem se importarem muito com isso. Muitas vezes, no entanto, aalimentação é mantida por muito tempo como uma especial atra-ção. Observa-se os doentes receberem seus parentes sem cumpri-mentos ou outro sinal de estímulo agradável, mas revistam apres-sadamente suas bolsas e cestas a procura de alimentos, que costu-mam abocanhar prontamente até o último resto. Também nos es-tados finais da doença a total indiferença ante todos os fenôme-nos do meio é uma característica fundamental do quadro clínico.Aqui pode muito bem, sob certas circunstâncias, associar-se umacerta irritabilidade, que no mais das vezes se manifesta apenas es-poradicamente e mais raramente permanece duradoura.

Passo a passo com esse profundo transtorno da vida afetivacaminham as propagadas e variadas manifestações doentias nocampo do comportamento e ação, que mais conferem a todo oquadro clínico sua peculiar característica. O fundamento geralparece ser sobretudo uma redução da vontade, como se apresen-ta particularmente na abulia dos estados finais, mas que frequen-temente se manifesta com clareza já de início. Os doentes perdemcada impulso próprio para a ação e a atividade, sentam-se ociososa esmo, descuidam de suas obrigações, muito embora talvez ain-da estejam em condições de se ocuparem de estímulos externosde modo mais ordenado. Ao lado dessa incapacidade de ativida-de autônoma pode desenvolver-se duradoura ou passageiramenteum impulso mais ou menos intenso para o movimento, que sobcertas circunstâncias aumenta até o mais tempestuoso frenesi.Mas também aqui não lidamos, como abordado anteriormente,com um aumento da vontade, senão que apenas com uma excita-ção motora; os movimentos não visam a realização de determina-dos objetivos, senão que constituem a expressão desordenada detensão interna.

No entanto, associa-se a essa excitação, via de regra, tambémuma facilitada transformação de impulsos de movimento em ação.Observamos nossos doentes em repentinos acometimentos destro-çar vidros, colocar as pernas através da grade da janela, derrubarmesas e cadeiras, machucar-se, fazer sérias tentativas de suicídio.Todas essas ações absurdas costumam ser executadas repentina-mente como um raio e com grande violência, assim que emerge oimpulso para tanto. Faltam aos doentes nessas circunstâncias ra-zões compreensíveis para o movimento, agem impulsivamentesem dar conta da finalidade de seus atos, mesmo se, por vezes,procuram ainda justificá-los posteriormente através de reflexões.

Essa incapacidade de reprimir impulsos emergentes não se en-contra, porém, apenas na excitação, senão que freqüentementetambém no estupor da dementia praecox. Este é dominado, em ge-ral, pela manifestação do bloqueio da vontade; cada impulso é, deinício, apagado através de outro ainda mais forte em sentido con-trário. Desse modo surge o sintoma doentio do negativismo, queencontramos aqui com infindável frequência nas mais diversasformas. Aqui pertencem a inflexível oposição contra cada mudan-

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ça de postura, contra a ingestão de alimentos e a vestimenta, o fe-char dos olhos, o desviar a cabeça e o esgueirar-se ao ser-lhe diri-gida a palavra, a retenção de fezes, urina e saliva, o esconder-sesob a roupa de cama, o desdém ao leito, o mutismo, a procura derespostas disparatadas, a repentina interrupção de movimentos eações iniciados, a inacessibilidade ante todas as solicitações e in-tervenções. Esse negativismo, cuja expressão e intensidade na ver-dade muda com freqüência, mas que apenas raramente é influen-ciável de fora, pode também ser de todo interrompido repentinae bruscamente mediante impulsos internos, de modo que o até en-tão inerte doente logo pratica com a maior energia e rapidez algu-ma ação insensata qualquer, para, talvez da mesma forma repenti-na, submergir de retorno ao estado anterior.

Freqüentemente, todavia, os impulsos uma vez emergentesnão desaparecem de novo prontamente, senão que se repetemrenovados ao longo de períodos mais curtos ou longos. Dessemodo resultam todas aquelas variadas estereotipias do movimen-to e da ação, que de forma tão singular constituem nomeada-mente o quadro da catatonia, além da verbigeração e finalmentedos maneirismos, que pelo menos em sua maior parte nada maissão do que enrijecidas alterações doentias das correntes ações. Arespiração, a fala, a escrita, o parar e o andar, o vestir-se e despir-se, o dar as mãos e alimentar-se, os gestos não fluem do modousualmente desembaraçado, senão que vêm determinados,acompanhados, atravessados por toda sorte de impulsos acessó-rios, que apesar das mais variadas diversidades pessoais aindamostram certas formas sempre repetidas e, sobretudo, nos mes-mos doentes se mantêm freqüentemente ao longo de anos ou dé-cadas com grande resistência. Mais adiante teremos que descre-vê-las em detalhes.

Com a severa perturbação da vontade, com o declínio dospróprios impulsos e inibições, poderia finalmente encontrar-setambém próximamente relacionado o sintoma do automatismoao comando, muito freqüente na dementia praecox. Os doentes,particularmente em avançado embotamento mental, não são ape-nas no geral dóceis, de modo a formar a indispensável classe da-quela grande população que voluntariamente se submete à uni-forme rotina diária dos grandes sanatórios, senão que mostramtambém em pormenores freqüentes sinais de elevada sugestiona-bilidade. Em grande número observamos, temporariamente ouaté a morte, catalepsia, muito freqüentemente também ecolalia eecopraxia. É certo que a apresentação desses transtornos mudacom freqüência, mas poucos doentes com dementia praecox nãoapresentariam um ou outro desses sintomas em alguma época daevolução da doença.

A capacidade de trabalho dos doentes está, sem exceção, sen-sivelmente comprometida. Eles têm que ser motivados em tudo,param diante de cada pequena dificuldade, não são capazes de seadaptar a novas condições. Um de meus doentes, que sob orien-tação redigia cópias rápida e desembaraçadamente, tantas vezesquanto se quisesse, era incapaz de seguir os sinais de parênteses.Em que pese pormenorizada instrução prévia, reproduzia sempretudo impensadamente da mesma forma, como lhe vinha diante dapena. Outros se encontram em condições de repetir com grandeasseio trabalhos anteriormente exercitados, mas fracassam tãologo novas tarefas lhe são colocadas. Aqui chegamos então, fre-qüentemente, a desempenhos particularmente excêntricos, traba-

lhos manuais, desenhos, nos quais, ao lado de vestígios de habili-dade técnica, manifestam-se a perda do sentido de beleza e a ten-dência ao extravagante. Do mesmo modo, no desempenho musi-cal costuma tornar-se visível o declínio dos sentimentos artísticosfinos em suas apresentações ora sem expressão, ora distorcidas earbitrárias.

Além dos transtornos psíquicos, é de se mencionar uma sériede manifestações doentias corporais, cuja precisa relação com adoença de base, no entanto, ainda não é certa em todos os pon-tos. Antes de tudo, deve-se mencionar aqui os acessos que já fo-ram descritos por Kahlbaum e Jensen. São no mais das vezes des-falecimentos ou espasmos epileptiformes, que, ora isoladamente,ora mais amiúde, manifestam-se em nossos doentes. Mais rara-mente são espasmos em regiões musculares isoladas (face, braço),tetania ou mesmo acessos apopletiformes com paralisia mais du-radoura; inclusive, tais acometimentos também foram relatadosalgumas vezes na história pregressa. Eu mesmo vi uma vez um sé-rio colapso com espasmos na metade esquerda do corpo e na facedireita. Não de todo raro constitui um tal acesso o primeiro sinalda incipiente doença. Assim vi, dentre outros, um estudante demais idade, desde jovem especialmente talentoso, que repentina-mente foi acometido por coma, do qual ele apenas muito gradual-mente despertou novamente. Afora uma leve diferença pupilar,fenômeno facial e forte aumento dos reflexos, não havia nenhumvestígio de manifestação cerebral. No entanto, o paciente apre-sentou, quando o examinei poucas semanas depois, o marcantequadro do prematuro déficit mental, que até hoje persiste. Todosesses acessos são aproximadamente duas vezes mais frequentesem mulheres do que em homens. Segundo minha lista, estariampresentes em cerca de 18% dos casos. Além disso, numa grandesérie de doentes os espasmos ou desfalecimentos foram já na ju-ventude precedentes, restando a dúvida se podemos conferir umacorrelação entre eles e o transtorno mental. Finalmente, foramobservados freqüentemente espasmos e paralisias histeriformes,afonia, singultus, repentino enrijecer, contraturas locais e outrosacometimentos semelhantes. Várias vezes existiam peculiares eduradouros movimentos coréicos, que eu, de preferência, acredi-to poder designar com a expressão “ataxia atetóide”. Em dois ca-sos, durante um estado de apático aturdimento, chegou-se a pro-var transtornos claramente afásicos. Os doentes eram incapazesde reconhecer e denominar os objetos a eles apresentados, aindaque pudessem falar e visivelmente faziam o maior esforço paradar a informação solicitada. Repetidamente transmitiam, apóslonga hesitação, falsos nomes. O transtorno desapareceu nova-mente poucas horas depois.

Os reflexos tendinosos estão regularmente aumentados, mui-tas vezes até de forma muito considerável. Freqüentemente, seencontra também excitabilidade mecânica aumentada de múscu-los e nervos. As pupilas estão, muitas vezes, visivelmente dilata-das, especialmente nos estados de agitação; vez por outra se ob-serva clara mas variável diferença pupilar, assim como distúrbiosbulbares. Generalizados são, ainda, transtornos vasomotores, cia-nose, edemas circunscritos, dermatografia em todos os graus; emcasos isolados ocorre forte sudorese. A secreção salivar parece es-tar freqüentemente aumentada; pude assim colher 375 cm cúbi-cos de saliva de um doente em seis horas. A atividade cardíaca ésubmetida a grandes variações, ora lentificada, mais freqüente-

Demência precoce na sext edição de Kraepelin em 1899

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mente algo acelerada, muitas vezes também fraca e irregular. Atemperatura corporal está no mais das vezes baixa; uma vez a vibaixar até 33,8ºC. A menstruação costuma estar ausente ou setornar irregular.

Muito freqüentemente observo aumento difuso da tireóide, al-gumas vezes a diminuição de tais aumentos imediatamente antesda primeira apresentação da manifestação doentia, também repe-tidas e rápidas mudanças na extensão da glândula durante a evo-lução da doença. Em casos isolados havia exoftalmia e tremores.Finalmente nos deparamos, não raro, assim como em parentes dosdoentes, com espessamento mixedematoso da pele, em especial daface. Infelizmente, devido à freqüência de indícios de cretinismoentre nós, esses achados não devem ser, em princípio, mais valori-zados. Muito freqüentemente parece existirem estados anêmicos.Na urina encontrei uma vez açúcar; uma vez havia poliúria.

O sono dos doentes está freqüentemente perturbado durantetoda a evolução da doença, mesmo quando se encontram tranqui-los. A ingestão de alimentos varia de uma total recusa até a maisforte gula. O peso corporal costuma diminuir inicialmente, fre-qüentemente de forma muito considerável até o extremo emagre-cimento, mesmo apesar da mais rica alimentação. Mais tarde, aocontrário, observamos o peso aumentar, no mais das vezes rapi-damente e de modo totalmente fora do comum, de modo que odoente em pouco tempo assume a aparência de extremamentebem nutrido e saudável. Das curvas aqui reproduzidas, a primei-ra mostra o curso do peso corporal numa habitual evolução deum estupor catatônico com desenlace em imbecilização de graumédio. Apesar de que após o despertar do estupor se instalouuma leve excitação, o peso de fato aumentou muito. A curva IVadvém de doente que apesar da mais cuidadosa assistência e ricaalimentação evoluiu, sem qualquer doença orgânica, para o maiselevado grau de marasmo. A curva V representa finalmente,numa catatonia inicial, uma série de oscilações bastante regularesque coincidiam com as mudanças entre estupor e maior clareza.Mais tarde essa regularidade desapareceu e se atingiu duradouroembotamento mental.

As descrições clínicas do grande campo da dementia praecoxse defrontam com consideráveis dificuldades devido ao fato deque a delimitação dos diversos quadros de doença é apenas arti-ficialmente exequível. É verdade que existe toda uma série deconfigurações que se repetem mais freqüentemente, mas entreelas se colocam tão numerosas transições que, apesar de todos osesforços, hoje parece impossível alojar de modo inconteste cadacaso numa determinada forma. A seguinte tentativa de agrupa-mento (nas formas hebefrênica, catatônica e paranóide, nota dotradutor) não possui outro valor senão o de uma clara abrangên-cia. É possível, sim, que um conhecimento mais preciso da essên-cia da dementia praecox um dia nos colocará em mãos pontos devista para sua divisão clínica, que hoje nos é ainda totalmente des-conhecida.

Summary

As a reverential regard to the hundredth anniversary of the sixthedition of Kraepelin’s textbook, in which for the first time the demen-tia praecox and the manic-depressive illness were delimited in ownchapters, we have translated to Portuguese the description of thegeneral symptoms of dementia praecox. It follows annexed the tableof contents regarding the classifications of the mental disorders inseveral editions that allows us to see the extraordinary developmentobtained up to the sixth edition.

Key-words: Emil Kraepelin; Dementia Praecox; History ofPsychiatry

Curva IV - Catatonia com intensa excitação. Morte no mais elevadograu de marasmo sem doença orgânica. Temperatura subnormal; ricaalimentação.

90

80

70

60 +

Curva V - Catatonia. Alternância entre estupor e clareza.

145

140

130

Curva III - Catatonia. Estupor seguido de embotamento mental comleve excitabilidade.

140

130

120

110

100

90

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ANEXOPRIMEIRA EDIÇÃO

TERCEIRA EDIÇÃO

Demência precoce na sext edição de Kraepelin em 1899

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QUINTA EDIÇÃO

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SEXTA EDIÇÃO

Demência precoce na sext edição de Kraepelin em 1899

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68 Casos Clin Psiquiat 1999; 1(1):68-68

NORMAS DE PUBLICAÇÃO

1 - A Revista Casos Clínicos em Psiquiatria destina-se àpublicação de casos clínicos psiquiátricos em diversasmodalidades, bem como discussões e comentáriossobre os mesmos.

2 - A revista tem periodicidade semestral (junho edezembro) com a seguinte estrutura: Editorial, Auto-relato, Artigos Originais, Casos Literários, Patografia,Caso Histórico, Homenagem, Seguimento, CartasIndex e Normas de Publicação.

2.1 - Para efeito de categorização dos artigos, considera-se: a) Auto-relato: descrição pelo próprio portador de

transtorno mental de sua condição, envolvendosua vivência pessoal, a sintomatologia, as reper-cussões psicossociais, o tratamento ou outrasquestões que julgue pertinente, acompanhadaeventualmente de complementos por membrodo Corpo Editorial e sempre de discussão porespecialista em seu caso.

b) Trabalhos Originais: trabalhos que apresentam aexperiência psiquiátrica, ou de profissional quelide com portadores de transtorno mental, emfunção da discussão do raciocínio, lógica, ética,abordagem, tática, estratégia, modo, alerta deproblemas usuais ou não, que ressaltam suaimportância na atuação clínica ou psicossocial emostrem caminho, conduta e comportamentopara sua solução.

c) Caso Literário: trabalhos que se relacionem adescrições literárias envolvendo transtornosmentais ou traços de personalidade.

d) Patografia: casos clínicos focados na biografia dedeterminada personalidade de renome portadorade transtorno mental, com o objetivo de apresen-tar elementos psicopatológicos interessantes e osignificado destes para sua obra.

e) Caso Histórico: casos clínicos de valor históricosob aspecto descritivo, diagnóstico, terapêuticoou outros, acompanhados de comentários oudiscussão.

f) Homenagem: Divulgação de trabalho descritivo detranstorno mental, de autor a ser homenageadopor razão especial.

g) Seguimento: notas sobre a evolução de caso apre-sentado em edições anteriores.

h) Cartas: comentários por parte do leitor sobre oconteúdo dos artigos ou sobre a revista, compossibilidade de réplica pelo autor ou pelos edi-tores.

i) Index: compilação por diagnóstico da CID-10 e doDSM-IV dos casos das edições anteriores.

3 - Os trabalhos recebidos serão analisados pelo CorpoEditorial da Casos Clínicos em Psiquiatria, que sereserva o direito de recusar trabalhos ou fazer suges-tões quanto à estruturação e redação para tornar maisprática a publicação e manter certa uniformidade. Nocaso de artigos muito extensos, a Revista de CasosClínicos em Psiquiatria se reserva o direito de publi-cá-los em quantas edições julgar necessárias.

4 - Os trabalhos devem vir em duas vias, digitados emespaço duplo, impresso em papel padrão ISO A4 (210 x 297mm), com margens de 25mm, trazendo naúltima página o endereço e telefone do autor e a indi-cação da categoria do artigo, conforme item 2.1,acompanhado do disquete com o arquivo nospadrões Word 6.0 ou superior, fonte Arial ou TimesNew Roman tamanho 12.

5 - Para efeito de normalização, serão adotados osRequerimentos do Comitê Internacional de Editoresde Revistas Médicas (Estilo Vancouver) que sãoseguidos pelas mais conceituadas revistas científicasinternacionais. Estas normas poderão ser encontra-das na íntegra nas seguintes publicações:International Committé of Medical Journal. Editors,Uniforms requeriments for manuscripts submittedto biomedical journals. Can Med Assoc J 1995;152(9):1459-65 e em espanhol, no Bol Of SanitPanam 1989; 107 (5): 422-31 e, em português naRevista ABP-APAL 1998; 20(1): 31-38.

6 - Todo trabalho deverá ter a seguinte estrutura eordem:a) título (com tradução para o inglês);b) nome completo do autor (ou autores), acompa-

nhado(s) de seu(s) respectivos(s) título(s);c) citação da instituição onde foi realizado o

trabalho;d) resumo do trabalho em português, sem exceder

um limite de 150 palavras;e) Palavras-chave (três a dez), de acordo com a lista

Medical Subject Headings (MeSH) do IndexMedicus;

f) Texto: Introdução, Material ou Casuística eMétodo ou Descrição do Caso, Resultados, Dis-cussão e/ou Comentários (quando couber) eConclusões (quando couber);

g) Summary (resumo em língua inglesa), consistindona correta versão do resumo para aquela língua;

h) Key-words (palavras-chave em língua inglesa) deacordo com a lista Medical Subject Headings(MeSH) do Index Medicus;

i) Agradecimentos (opcional);j) Referências bibliográficas como especificado no

item 8;k) Endereço do autor para correspondências

7 - As ilustrações devem ser colocadas imediatamenteapós a referência a elas. Dentro de cada categoriadeverão ser numeradas seqüencialmente durante otexto. Exemplo: (Tabela 1, Figura 1). Cada ilustraçãodeve ter um título e a fonte de onde foi extraída.Cabeçalhos e legendas devem ser suficientementeclaros e compreensíveis sem necessidade de consultaao texto. As referências às ilustrações no texto deve-rão ser mencionadas entre parênteses, indicando acategoria e o número da tabela ou figura. Ex: (Tabela1). As fotografias deverão ser em preto e branco,apresentadas em envelope à parte, serem nítidas e debom contraste, feitas em papel brilhante e trazer noverso: nome do autor, título do artigo e número comque irão figurar no texto.

8 - As referências bibliográficas são numeradas consecu-tivamente, na ordem em que são mencionadas pelaprimeira vez no texto. São apresentadas de acordocom as normas do Comitê Internacional de Editoresde Revistas Médicas, citado no item 5. Os títulos dasrevistas são abreviados de acordo com o IndexMedicus, na publicação “List of Journals Indexed inIndex Medicus”, que se publica anualmente comoparte do número de janeiro, em separata. As referên-cias no texto devem ser citadas mediante número ará-bico sobrescrito e após a pontuação, quando for ocaso, correspondendo às referências no final do arti-go. Nas referências bibliográficas, citar como abaixo:

8.1 - PERIÓDICOSa) Artigo padrão de revista. Incluir o nome de todos os

autores, quando são seis ou menos. Se são sete oumais, anotar os três primeiros, seguidos de et al.You CH, Lee HY, Chey RY, Menguy R.Electrogastrografic study of patients with unex-plained nausea, bloating and vomiting.Gastroenteroly 1980; 79: 311-4.

b) Autor corporativo:

The Royal Marsden Hospital Bone-MarrowTransplantation Team. Failure os syngeneicbone-marrow graft without preconditioning inpost hepatitis marrow aplasia. Lancet 1977; 2:242-4.

c) Sem autoria (entrar pelo título):

Coffee drinking and cancer of the pancreas(Editorial). Br Med J 1981; 283: 628.

d) Suplemento de revista:

Mastri AR. Neuropathy of diabetic neurogenicbladder. Ann Intern Med 1980; 92 (2 pt 2): 316-8.Frumin AM, Nussabaum J, Esposito M.Functional asplenia: demonstration of esplenicactivity by bone marrow sean (resumem). Blood1979; 54 (suppl 1): 26.

e) Revistas paginadas por fascículos:

Seamenn WB. The case of the pancreatic pseu-docyst. Hosp Pract 1981; 16 (sep): 24-5.

8.2 - LIVROS E OUTRAS MONOGRAFIASa) Autor(es) - pessoa física:

Eisen HN. Immunology: an introduction tomolecular and cellular principles of the immuneresponse. 5th. New York: Harper and How;1974: 406.

b) Editor, compilador, coordenador como autor:

Dausset J, Colombanij D, eds. Histocompatibilitytesting 1972. Copenhague: Munksgaard; 1973:12-8.

8.2.1 - Capítulo de livro:

Weinstein L, Swartz MN. Pathogenic propertiesof invading microorganisms. In: Sodeman WAJr, Sodeman WA, eds. Pathologic physiology:mechanisms, of disease. Philadelphia: WBSaunders; 1974: 457-72.

8.2.2 - Trabalhos apresentados em congressos, seminários, reu-

niões, etc:

DuPont B. Bone marrow transplantation in seve-re combined immunodeficiency with and unrela-ted MLC complatible donor. In: Whithe HJ,Smith R, eds. Proceedings of the third annualmeeting of the International Society forExperimental Hematology, 1974: 44-6.

8.2.3 - Monografia que forma parte de uma série:

Hunninghake GW, Gadeck JE, Szapiel SV et al.The human alveolar macrophage. In: Harris CC,ed. Cultured human cells and tissues in biomedi-cal research. New York: Academic Press, 1980:54-6 (Stoner GD, ed. Methods and perspectivesin cell biology; vol. 1).

8.2.4 - Publicação de um organismo:

Ranofsky AL. Surgical operations in short-estayhospitals: United States - 1975. Hyattsville,Maryland: National Center for Helth Statistics.1978; Dhew publication num. (PHS) 78-1785(Vital and Health statistics; serie 13, nm. 34).

8.3 - TESESCaims RB. Infrared spectroscopic studies of solidoxigens (Tesis doctoral). Berkeley, California:University of California; 1965; 156pp.

8.4 - ARTIGO DE JORNAL (não científico)Shaffer RA. Advances in chemistry are starting tounlock musteiries of the brain: discoveries could helpcure alcoholism and isnomnia, explain mental illnes.How the messengers work. Wall Street Journal, 1977;ago. 12:1 (col. 1). 10 (cl. 1).

8.5 - ARTIGO DE REVISTA (não científica)Roueche B. Annals of Medicine: the Santa Clausculture. The New Yorker, 1971; sep. 4: 66-81.

9 - Agradecimentos devem constar de parágrafo à parte,colocado antes das referências bibliográficas, após askey-words.

10 - As medidas de comprimento, altura, peso e volumedevem ser expressas em unidades do sistema métri-co decimal (metro, quilo, litro) ou seus múltiplos esubmúltiplos. As temperaturas em graus Celsius. Osvalores de pressão arterial em milímetros de mercú-rio. Abreviaturas e símbolos devem obedecerpadrões internacionais. Ao empregar pela primeiravez uma abreviatura, esta deve ser precedida dotermo ou expressão completos, salvo se se tratar deuma unidade de medida comum.

11 - Os casos omissos serão resolvidos pela ComissãoEditorial.

12 - A publicação não se responsabiliza pelas opiniõesemitidas nos artigos.

13 - Os artigos devem ser enviados para:

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