capÍtulo 1 - mÚsica e comunicaÇÃo
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CAPÍTULO 1 – COMUNICAÇÃO E MÚSICA
Este primeiro capítulo procura demonstrar as amarras que nos permitem pensar
a música como uma linguagem comunicacional, através do relacionamento entre as
duas teorias. Em um momento inicial, o primeiro e o segundo qaurto do capítulo, são
apresentadas as principais noções teóricas, tanto da comunicação quanto da
música, para estabelecermos nosso modo de observar esses dois fenômenos.
Depois, em um segundo momento, a terceira parte do capítulo é destinada a
evidenciar algumas concepções acerca da percepção sonora e musical. E por último
fazemos as amarras dos pontos de intersecção entre as teorias, fazendo um
paralelo entre suas noções e buscando o lugar onde a música se faça
comunicacional e a comunicação possa ser musicada.
1.1. A Comunicação
Para falar proveitosamente de comunicação é preciso estabelecer que tipo de
fenômeno este termo está designando (PERUZZOLO, 2006, p. 17), isso porque
comunicação vai muito além de um termo lingüístico
é uma categoria conceitual pela qual podemos trabalhar certos fenômenos (aí vem a questão crucial!) gerais ou especiais, precisos ou difusos, pertinentes ao universo ou aos seres vivos ou a parte deles ou a um tipo de ação, com muitos significados ou mesmo com expressão nenhuma (PERUZZOLO, 2006, p. 18).
É por isso que, ao iniciarmos uma discussão onde a comunicação vai figurar como
um dos atores principais, nós temos a necessidade de especificar qual a base
teórica que estamos utilizando para observar o processo comunicacional.
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Inicio dizendo que assumo a opção, neste trabalho, de utilizar um conceito
comunicacional que estabeleça seus limites mínimos, as condições primordiais para
definir comunicação. Isso porque, acredito que esta observação mínima facilite a
compreensão de critérios práticos que demonstrem a partir de qual momento
estamos falando em um processo comunicacional ou em que momento estamos
diante de outro tipo de relação.
Na medida em que esta pesquisa associa conceitos nascidos relativamente
distantes, e por isso, não necessariamente concebidos para dialogar, como a teoria
comunicacional e a teoria musical, essa marcação mais concisa facilita a relação
mais precisa entre eles.
1.1.1. Conceito de Comunicação
Podemos pensar a comunicação como “primordialmente uma relação”
(PERUZZOLO, 2004, p. 21), um ato que precisa acontecer no tempo e no espaço,
uma ação. Essa ação de relação também precisa acontecer entre dois sujeitos: um
que procura alguém, o emissor, e outro que é procurado, o receptor. O sujeito
emissor provoca o ato comunicacional quando produz e envia uma mensagem
destinada a um sujeito receptor. Já este outro, pratica o ato comunicacional quando
se assume na posição de receber e ler1 esta mensagem produzida pelo emissor
(PERUZZOLO, 2006 b) 2.
Acho importante ressaltar que o termo “sujeito” aqui é entendido
principalmente no seu sentido gramatical: sujeito, aquele que pratica a ação
(PERUZZOLO, 2006 b). Então, quando nos referimos à comunicação como uma
relação entre dois sujeitos, estamos enfatizando a atividade dos dois personagens
comunicacionais: o emissor e o receptor. Isso revela que, primeiro, o personagem
comunicacional receptor não é passivo, ele também é sujeito, pratica uma ação
ativamente, aceita-se na posição de receptor; segundo, sem a existência dos dois
sujeitos (um que pratica a ação de emissão e o outro que pratica a ação de
recepção) não vai existir processo comunicacional.
1 O termo “ler” empregado aqui como ação de decodificar “textos” que não só verbais - também pictóricos, visuais, sonoros, gestuais - concebidos em outras formas de linguagem. 2 PERUZZOLO, Adair Caetano: 2006. Anotações da disciplina de Semiótica, ministradas no 1° semestre de 2006, Curso de Comunicação Social, UFSM.
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Ainda temos dentro do conceito mínimo de comunicação a mensagem. Ela é
o meio material por onde os dois sujeitos entram em relação, é na sua produção e
no seu envio que o emissor faz seus investimentos comunicacionais (PERUZZOLO,
2004, p. 21). Quando decide iniciar uma relação de comunicação com outro sujeito o
emissor vai primeiro relacionar-se com a mensagem que se torna então
um conjunto de elementos representantes do emissor, seja porque ele os organizou de uma forma intencional, seja porque ele os escolheu assim como são, para que cheguem e despertem o interesse e significados no receptor (PERUZZOLO, 2004, p. 23) .
Para isso, o emissor faz algumas suposições a respeito do receptor e organiza a
mensagem de acordo com elas, montando suas estratégias (PERUZZOLO, 2004, p.
23).
É também na recepção e decodificação da mensagem que o receptor faz
seus investimentos e que colhe significados e sentidos. Mas, além disso, olhando
para a mensagem, o receptor pode fazer certas conjeturas a respeito do emissor –
observando os modos e as estratégias que este empregou na sua produção – e a
respeito das suposições que o emissor fez dele, receptor. (PERUZZOLO, 2004, p.
23).
Uma outra característica fundamental à mensagem é a necessidade que esta
tem de ser produzida dentro de códigos comuns aos dois sujeitos (PERUZZOLO,
2004, p. 20), afim de que o segundo possa compreender a mensagem codificada
pelo primeiro. É necessário que o emissor e o receptor compartilhem um mesmo
código para que um possa fazer circular no outro, através dos sinais da mensagem,
os mesmos sentidos.
Uma relação conceitual importante para este momento é a existente entre
código e linguagem. Na verdade, as linguagens assumem o papel de código dentro
da comunicação, já que regulamentam a construção das mensagens através de
sinais e significados comuns ao emissor e ao receptor, deslanchando assim um
processo comunicacional. Portanto quando nos referimos aos processos de
comunicação, podemos tomar linguagem como sinônimo de código.
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1.1.2. Modelo Comunicacional
Dentro desta concepção estrutura-se o modelo comunicacional composto de
uma Fonte (F), um Destino (D) e a Mensagem (M), que está entre um e outro,
fazendo a relação:
F —— M —— D
Figura 1. Modelo comunicacional
Podemos ver no modelo comunicacional, de um lado, a fonte, sujeito que
procura o outro concebendo a mensagem, fazendo suposições a cerca de seu
destinatário, escolhe e organiza os elementos e estratégias que a tornarão inteligível
e atrativa. Do outro lado do modelo encontramos o interlocutor, o sujeito procurado,
que acolhe a mensagem e a decodifica, além de poder deduzir, atrevés dela,
informações sobre o emissor e sobre a idéia que o emissor tem do destinatário de
sua mensagem.
Entre os comunicantes está a mensagem. Ela é o meio material com o qual
os dois sujeitos se relacionam, e que, atrevés de si, os coloca em relação. O
processo comunicacional efetua-se ao nível das subjetividades dos sujeitos. O
intuito ultimo do emissor é fazer despertar na mente do receptor um determinado
encadeamento de idéias que ele (emissor) tem em sua mente. Como as duas
mentes não podem relacionar-se diretamente, os sujeitos são obrigados a sugerir
essas idéias através de conjuntos de sinais no mundo material (PERUZZOLO, 2006
b). A mensagem, portanto, é o conjunto de sinais, que quando construída dentro de
um código comum aos dois sujeitos, permite ao emissor despertar no receptor a
cadeia de idéias que tem “presa” em sua subjetividade.
Apesar de ser rápido, este panorama do processo de comunicação permite-
nos compreender sua estrutura primordial e seu modo de ocorrência, base para logo
adiante inserir a música neste contexto como um dos tantos meios da comunicação
efetivar-se.
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1.2. A Música
Segundo Exupério de La Compôte (1977, p. 230) “não existe linguagem mais
antiga e mais espontânea do que a música”, apesar de que “como arte entre as
artes, foi uma das que mais tarde se caracterizou”. A música se desenvolveu
juntamente com o homem (LA COMPÔTE, 1977, p. 230) e evoluiu, de maneira
técnica e como forma de expressão, gradativamente, sempre acompanhando as
formas do homem perceber o universo e a si mesmo. Foi assim desde a Pré-
história, como foi assim durante a Antiguidade, durante a Idade Média, o
Renascimento, o Barroco, o Classicismo, o Romantismo, até a Modernidade e a
Contemporaneidade.
Em todo esse processo a música desenvolveu uma complexa teoria, tanto do
ponto de vista de regras de composição e notação, como em sua compreensão
como fenômeno social e cultural. E na verdade, desenvolveu-se através de mais de
uma fórmula, visto que é comum sua diferenciação em várias características. Um
exemplo muito comum dessas diferenças é a distinção entre a quantidade existente
de notas musicais: ocidentalmente concebemos a música formada por doze notas
que se sucedem progressivamente e recomeçam de oitava em oitava. “A este
problema os hindus dão resposta que não são as nossas, as quais não são as dos
chineses nem dos polinésios, e assim por diante” (BARRAUD, 1975, p. 15). É
importante que se diga então que este trabalho também se atém ao panorama
ocidental de compreensão musical.
Acho importante dizer que estas exposições que veremos adiante implicam
em um panorama inicial dos fatores relevantes para a discussão posterior dos
aspectos musicais, de modo algum encerrando a sua descrição e compreensão.
Com isso quero dizer também que existe uma complexidade cumulativa no
aprofundamento destes conceitos e das práticas musicais que eles resultam,
permitindo aos músicos debruçarem-se por muito tempo sobre o seu estudo e sobre
o seu exercício. Por isso, irei pincelar apenas os quadros necessários para a
argumentação que utilizarei no decorrer do trabalho.
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1.2.1. Conceitos de música, som, nota e frase
De que modo podemos caracterizar o conjunto complexo e diverso que é a
música, para podermos teorizá-la e associá-la, posteriormente, à comunicação?
“Música é a linguagem dos sons, isto é, a arte de expressar e transmitir os
sentimentos da alma por meio de sons dispostos em séries e combinações de
acordo com determinadas regras” (LA COMPÔTE, 1977, p. 16). Nesta definição da
música de La Compôte podemos destacar dois conceitos que vão nos elucidar
algumas noções que precisam surgir em nossa mente quando falamos em música:
os sons e as regras. Começaremos pelos sons que são a matéria fundamental da
música.
Por volta do século XVIII a definição de som causava debates acalorados
entre os pensadores, nos salões europeus (STEVENS & WARSHOFSKY, 1974, p.
9). Para os físicos, que naquela época estavam interessados em medir todo o
mundo a sua volta, o som consistia
em certos fenômenos físicos que podem produzir-se quer esteja alguém perto para ouvi-los, quer não. O som é um movimento organizado de moléculas que tem origem em um corpo que vibra em algum meio – água, ar, pedra, etc. (STEVENS & WARSHOFSKY, 1974, p. 9).
Já para os filósofos, “que estavam pondo em dúvida toda a natureza, à procura de
um mundo ‘real’”, o som era “uma sensação, conhecida apenas pela mente do
ouvinte – uma experiência sensorial que podemos relacionar com nossas vidas
materiais e emotivas” (STEVENS & WARSHOFSKY, 1974, p. 9).
Hoje já é consenso que o debate dos pensadores do século XVIII é na
verdade um par causa e efeito, a vibração física de um corpo material e uma
sensação fisiológica em um cérebro animal (STEVENS & WARSHOFSKY, 1974, p.
9 e 10). E que esse par tem de ser observado nos estudos que trabalham a audição,
inclusive nos estudos da música.
Podemos também entender através de uma simplificação, útil para este
momento, como prefere Imogen Holst em seu livro ABC da Música: “som é tudo que
ouvimos” (HOLST, 1998, p. 3). Com o advento da gravação dos sons e sua
manipulação, principalmente as facilidades da edição digital, é possível utilizarmos
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praticamente qualquer som na composição de peças musicais. É possível retirar um
determinado som (até mesmo um ruído) de seu contexto original e posicioná-lo em
um novo conjunto sonoro transformando-o em um elemento musical.
Mas de modo geral, os sons produzidos por instrumentos musicais são
vibrações regulares que geram uma altura3 definida, enquanto que sons como
ruídos são irregulares e de altura indefinida (HOLST, 1998, p. 4). O número de
vibrações regulares por segundo deste som é chamado de freqüência, ou como
preferem os físicos Hertz (Hz).
Para trabalhar com os sons a música desenvolveu a categoria de nota
musical que seguem algumas conceituações e formas de notação que veremos
agora.
Um som vibrando a determinada freqüência, com um nível claro e sustentado,
por exemplo, 440 Hz (440 vibrações por segundo), é uma nota musical (HOLST,
1998, p. 4), no caso, uma nota que se convencionou chamar de Lá. Quando essa
vibração é mais intensa, por exemplo 494 Hz, estamos falando de uma nota mais
aguda á primeira, ainda no nosso caso, uma nota acima da que estávamos (depois
do Lá) vem o Si. Todas as notas da escala dos sons musicais são definidas por sua
freqüência.
Quando a freqüência de uma determinada nota é o dobro de outra, estamos
diante da mesma nota, mas “uma oitava acima” (STEVENS & WARSHOFSKY,
1974, p. 81), quer dizer, podemos achar uma mesma nota vibrando a várias
freqüências: o nosso Lá 440 Hz, também é Lá, só que mais agudo, vibrando à 880
Hz (o dobro de 440), ou então é Lá, mais grave, vibrando à 220 Hz (a metade de
440) . Desse modo, se tomarmos as freqüências de qualquer nota como base e
dobrarmos seu valor sucessivamente, estaremos encontrando a mesma nota cada
vez mais aguda até o limite de 20.000 Hz, a maior vibração que o ouvido humano
detecta como som. Se formos dividindo seu valor pela metade, também a
encontraremos cada vez mais grave, até o limite de 16 Hz, menor vibração
detectada pelo nosso ouvido (STEVENS & WARSHOFSKY, 1974, p. 81).
3 O conceito de altura, em música, não se refere à noção de “em cima ou em baixo” nem “forte ou fraco” (este chamado dinâmica), mas sim a noção de “som agudo ou grave”.
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As notas musicais são representadas graficamente por pontos colocados
sobre ou entre cinco linhas e quatro espaços, chamadas de pauta. Também podem
ser adicionadas linhas e espaços complementares, caso seja necessário.
Figura 2. A Pauta
Os pontos representam a altura das notas, mais agudas quanto mais acima da
pauta estiverem, mais graves quanto mais abaixo estiverem.
Figura 3. Notas na Pauta.
As notas também têm em sua forma a representação de sua duração temporal, que
vai de uma nota de 8 tempos até uma nota de 1/164 de tempo:
Figura 4. Nome, símbolos e valores das notas.
Na pauta cada nota têm um lugar pré-estabelecido que é indicado por um
sinal chamado clave. Existem três claves diferentes, a mais comum e conhecida é a
clave de sol que é colocada na segunda linha da pauta (contando de baixo para
cima) e indica que nesta linha fica a nota Sol:
4 Existe também notação para notas de 1/32 de tempo, mas elas quase não são usadas, nem facilmente encontradas.
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Sol
↓
Figura 5. A clave de Sol e a nota que ela indica.
Assim, a partir da nota que é referenciada pela clave, nos espaços e sobre as linhas
são adicionadas as outras notas sequencialmente, acima e abaixo da primeira:
Dó Ré Mi Fá Sol Lá Si Dó
↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓ ↓
Figura 6. A colocação das outras notas a partir da clave de Sol.
Tanto abaixo como acima dos dois Dó que aparecem em nosso exemplo, as notas
reiniciam a escala. Do Dó mais grave para baixo continuam o Si, Lá, Sol, Fá, Mi, Ré,
Dó, e assim sucessivamente. No Dó superior também continuam Ré, Mi, Fá, Sol,
Lá, Si, Dó, sucessivamente.
A nota é a célula fundadora da música, tanto que a maioria das composições
produzidas ocidentalmente baseia-se na manipulação do conjunto de sete notas
(Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si), mais cinco notas extras que são usadas quando
necessário (HOLST, 1998, p. 5) e que são alterações (# e ) das outras sete.
Essa forma de organização, chamada afinação temperada, foi introduzida
durante a vida de J. S. Bach e organiza-se de forma que os doze intervalos das
escalas (as 7 notas básicas mais as 5 extras) tenham entre si iguais distâncias de
semitons (ISAACS & MARTINS, 1985, p. 381). De modo geral o intervalo existente
entre as oitavas (um Dó e o próximo Dó, por exemplo) é um fenômeno percebido
universalmente. Mas a forma de subdivisão interna entre as notas que se repetem é
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uma prática que tem diferentes soluções em diferentes culturas. Para a tradição
ocidental a divisão é feita por sete notas como já vimos de modo que a repetição da
primeira torna se a oitava nota, por isso que chamamos esse intervalo de oitava. Em
outras culturas essa subdivisão é feita de maneira diferente.
As sete notas ocidentais têm entre elas intervalos naturais irregulares. Estes
intervalos são classificados como tons (quando são inteiros) e semitons (metade de
um tom) (HOLST, 1998, p. 7). Os intervalos são os seguintes:
1 tom 1 tom ½ tom 1 tom 1 tom 1 tom ½ tom
┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬
Dó - Ré - Mi - Fá - Sol - Lá - Si - Dó
Figura 7. Os intervalos naturais
Essa idéia da representação dos sons musicais e dos seus tempos de
duração é a base da notação musical. Obviamente ela se torna muito mais
complexa com a introdução das noções de ritmo e andamento e com o acréscimo de
outros conceitos e sinais que auxiliam o desenvolvimento das infinitas possibilidades
de se fazer música.
Com a noção de nota, podemos passar para um outro conceito importante
dentro da música, a noção de frase. As frases são encadeamentos de notas muito
simples e curtas (HOLST, 1998, p. 15), de tamanho indefinido, que se sucedendo
vão criar a melodia musical. A melodia, por sua vez,
“é uma sucessão ascendente ou descendente de sons musicais cuja força vital lhe provém não apenas de uma regular combinação de valores, mas muito especialmente da acentuação que o ritmo lhe determina” (BORBA & GARCIA, 1958, p. 207).
Assim como as frases, na literatura, são formadas pelas palavras e vão criar os
textos, as frases musicais também são pequenos agrupamentos de notas que
formarão a música.
Em muitas músicas, é na repetição e na transformações das frases que se
desenvolvem as linhas melódicas. Compondo uma frase, com determinado desenho
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melódico, e a repetindo e transformando que muitos compositores criam suas
músicas.
Como um exemplo bem claro e fácil das frases musicais e de sua repetição e
transformação durante uma música, vamos pegar uma peça bem conhecida,
“Parabéns a você”:
Figura 8. “Parabéns a você” dividido por suas frases.
A música foi dividida de modo que cada linha contenha uma frase musical. Se
notarmos os valores de tempo das notas, percebemos que as quatro frases
obedecem a um padrão. Primeiro duas notas colcheias (meio tempo, e que aqui
estão com suas hastes ligadas), seguidas de três semínimas (um tempo) e por fim,
na primeira frase, uma mínima (dois tempos) que se transforma nas três outras
frases em duas semínimas.
As frases também têm um padrão melódico que é inicialmente apresentado e
depois transforma-se na medida em que as frases vão se sucedendo. A primeira
frase começa com dois Sol, depois vem Lá – Sol – Dó e Si. A segunda frase inicia
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igual à primeira, Sol – Sol – Lá – Sol, só desta vez sucedidos por Ré – Dó – Do. A
terceira frase só apresenta, igual à frase inicial, os dois Sol de início e a quarta e
última frase já não contém nenhuma semelhança melódica com a primeira, apenas
apresenta o mesmo padrão rítmico.
Obviamente existem músicas feitas com frases que não se repetem, ou
músicas feitas com frases que não se transformam, mas todas estas possibilidades
é que conferem a infinidade de opções de criação da música, permitindo que surjam
as mais variadas formas de expressão musical, que se encontra presente em
qualquer civilização, por mais primitiva que seja (BARRAUD, 1975, p. 12).
1.2.2. Tônica e Escalas
Sempre que falamos de uma melodia, existe uma nota que é a mais
importante, chamada nota tônica (HOLST, 1998, p. 19). Esta nota exerce um poder
de atração nas outras notas, que nosso ouvido identifica facilmente, parece que a
melodia “pertence” à nota tônica (HOLST, 1998, p. 19). Ela é sempre identificável,
como o sujeito de uma oração. Quando falamos que é
a escolha das palavras e a ordem que seguem que dão ao sujeito sua importância e ao período seu sentido (...), a escolhas das notas e a ordem que seguem fazem com que a tônicas seja reconhecível e dão a melodia seu sentido musical (HOLST, 1998, p. 19).
É a partir da tônica que vamos estabelecer futuramente grande parte das relações
significativas melódicas musicais, ela é o ponto de apoio para observarmos toda a
música.
Toda nota pode vir a ser uma tônicas. É comum que exista uma tônica por
música5 e nem todas as notas associam-se a todas as tônicas. Na verdade cada
tônica têm um conjunto de notas que se relacionam com ela, as notas das escalas.
Escalas são séries de sons que formam uma oitava (HOLST, 1998, p. 6).
Estas séries de sons são estabelecidas por graus de tons e semitons que variam de
posição conforme a nota tônica que inicia a escala.
5 Também existem músicas sem tônica (músicas atonal), ou com várias tônicas (música politonal).
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Na verdade, cada nota tônica tem várias escalas que são empregadas para
escolher as nota das músicas. A escala mais básica é a chamada escala maior, que
tem o seguinte modelo (HOLST, 1998, p. 21):
1 tom 1 tom ½ tom 1 tom 1 tom 1 tom ½ tom
┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬
1° grau – 2°grau – 3° grau – 4° grau – 5° grau – 6° grau – 7°grau – 8°grau
Figura 9. Modelo da escala Maior
A escala usada normalmente como exemplo é a escala que tem como tônica
a nota Dó, isso porque iniciando de Dó não é preciso usar nenhuma nota alterada,
somente as sete principais, para completar a escala. Colocando as notas a partir de
Dó, nosso modelo fica assim:
1 tom 1 tom ½ tom 1 tom 1 tom 1 tom ½ tom
┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬
1° grau – 2°grau – 3° grau – 4° grau – 5° grau – 6° grau – 7°grau – 8°grau
Dó - Ré - Mi - Fá - Sol - Lá - Si - Dó
Figura 10. O modelo e a escala de Dó Maior.
Podemos notar que as ocorrências de semitons, quando a tônica é Dó, coincidem
com os graus que a escala maior exige.
Iniciando a escala por outra tônica, é necessário utilizar as notas extras, que
nada mais são do que as notas básicas acrescida de um semitom, simbolizado pelo
sustenido (#) ou diminuídas de um semitom, simbolizado pelo bemol ( ). Se
utilizarmos o modelo da escala maior, e como tônica a nota Sol, a escala fica assim:
1 tom 1 tom ½ tom 1 tom 1 tom 1 tom ½ tom
┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬
1° grau – 2°grau – 3° grau – 4° grau – 5° grau – 6° grau – 7°grau – 8°grau
Sol - Lá - Si - Dó - Ré - Mi - Fá # - Sol
Figura 11. O Modelo e a escala de Sol Maior.
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Isso porque entre Mi e Fá existe naturalmente um semitom. Para transformá-lo em
um tom é preciso acrescentar um sustenido. Já entre o Fá # e o Sol existe o
semitom que a escala exige. Desse modo, todas as notas podem figurar como
tônicas da escala, alterando-se os tons e semitons quando os graus normais não
coincidirem com as exigências da escala. Colocando as duas escalas na pauta elas
figuram assim:
Figura 12. Escala de Dó Maior.
Figura 13. Escala de Sol Maior.
Além do modelo de escala maior, temos outro modelo que é muito importante,
o modelo de escala menor. Este se diferencia do modelo maior porque os semitons
estão entre o segundo e o terceiro graus, e entre o quinto e o sexto. O modelo
portanto fica o seguinte:
1 tom ½ tom 1 tom 1 tom ½ tom 1 tom 1 tom
┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬
1° grau – 2°grau – 3° grau – 4° grau – 5° grau – 6° grau – 7°grau – 8°grau
Figura 14. Modelo da escala Menor.
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Na escala menor, a tônica que não precisa de inclusão das notas extra é a
nota Lá. Assim, como ocorre com o Dó na escala maior, iniciando o modelo pelo Lá
todos os intervalos naturais coincidem com as exigências da escala.
1 tom ½ tom 1 tom 1 tom ½ tom 1 tom 1 tom
┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬
1° grau – 2°grau – 3° grau – 4° grau – 5° grau – 6° grau – 7°grau – 8°grau
Lá - Si - Dó - Ré - Mi - Fá - Sol - Lá
Figura 15. O modelo e a escala de Lá Menor.
Se utilizarmos a escala menor com a tônica Dó, que no modelo de escala maior não
precisava de notas extras, agora precisaremos de três alterações para completar
adequadamente os intervalos dos graus exigidos:
1 tom ½ tom 1 tom 1 tom ½ tom 1 tom 1 tom
┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬ ┬
1° grau – 2°grau – 3° grau – 4° grau – 5° grau – 6° grau – 7°grau – 8°grau
Dó - Ré - Mi - Fá - Sol - Lá - Si - Dó
Figura 16. O modelo e a escala de Dó Menor.
Como entre Ré e Mi naturalmente existe um tom, é necessário baixar um
semitom de Mi, colocando um bemol, para que o grau exigido na escala seja
estabelecido. Entre Mi e Fá, que naturalmente tem um semitom de diferença, a
introdução do bemol também corrigiu a diferença do intervalo natural para o intervalo
exigido que é de um tom. Nesta escala ainda são acrescidos bemóis em Lá e Si
para que se possam completar os intervalos necessários.
Existem ainda outros modelos de escalas que não vamos apresentar aqui,
mas que diferenciam-se pela posição dos tons e semitons em relação a nota tônica.
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Estas posições imprimem em cada escala um caráter particular (HOLST, 1998, p.
22), uma sonoridade peculiar que pode ser reconhecida por nossos ouvidos.
1.2.3. Consonância e Dissonância
Quando ouvimos duas notas sendo tocadas juntas podemos reconhecê-las
claramente, mesmo que o som pareça fundir-se, elas não perdem sua identidade
própria (HOLST, 1998, p. 71). Os sons combinados são chamados de intervalos e,
assim como os graus da escala, são indicados por sua relação com outra nota. Nas
escalas os graus eram nomeados pela relação com a tônica, neste caso a relação é
com a nota mais grave. Portanto teremos duas notas que soam tons vizinhos, como
Dó e Ré, têm um intervalo de segunda.
Quando uma determinada nota é a terceira na escala partindo de qualquer
outra nota referencial, este intervalo é de terça, por exemplo Dó e Mi, ou Fá e Lá.
Assim também acontece com os intervalos de quarta, quinta, sexta, sétima e oitava.
Acontece que os intervalos não são idênticos entre todas as notas. Entre Fá e
Sol o intervalo é de uma segunda, e existe um tom inteiro entre eles, por isso
chamamos esse intervalo de segunda maior, para diferenciar de segunda menor que
ocorre quando duas notas tem um intervalo de segunda entre semitons, como
acontece entre Mi e Fá por exemplo.
Essa mesma lógica serva para diferenciar a terça maior (dois tons) e a terça
menor (um tom e meio), sexta maior (quatro tons e meio) e a sexta menor (quatro
tons) e também a sétima maior (cinco tons e meio) e a sétima menor (diferença de
cinco tons). As notas que têm um intervalo de quartas e quintas recebem uma
denominação um pouco diferente. Os intervalos de quartas têm naturalmente dois
tons e meio a única exceção é o intervalo entre Fá e Si que naturalmente tem um
intervalo de três tons e é chamado de quarta aumentada por causa do acréscimo de
um semitom. Já os intervalos de quinta têm três tons e meio entre as notas e são
chamados de quintas justas, também por causa de uma exceção. É que a quinta Si
– Fá tem um intervalo de três tons e por isso é chamada de quinta diminuta, por
causa da perda de um semitom (HOLST, 1998, p. 73).
Quando nós ouvimos os intervalos sendo tocados nosso ouvido reconhece
alguns deles de forma mais amena enquanto que outros carregam uma tensão em
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sua audição. O intervalo de uma oitava, por exemplo, é um intervalo que soa de uma
forma muito agradável, serena, ao que chamamos de intervalo consonante. Por
outro lado o intervalo de uma sétima maior soa de forma tensiva, ao que chamamos
dissonante (HOLST, 1998, p. 77).
Essa sensação é provocada pelas ondas sonoras produzidas por cada nota
que se cruzam e recruzam no ar e estabelecem uma “espécie de batida leve”
(HOLST, 1998, p. 77) nos pontos onde se encontram, cujo som nos parece
ligeiramente inquietante. Esse desconforto gera uma tensão que atinge o nível
máximo nos intervalos de segunda menor e sétima maior. Em contraponto, existem
intervalos que causam relaxamento por não apresentarem níveis de desconforto,
como os intervalos em oitavas e principalmente os uníssonos (a execução de duas
notas iguais) com suas ondas coincidentes, que geram um som absolutamente
repousante.
Com a noção de consonância e dissonância podemos classificar os intervalos
em três grupos. O primeiro é o grupo das consonâncias perfeitas, que compreende
os intervalos em uníssono, em oitava, quintas justas e quartas justas. O segundo
grupo é o das consonâncias imperfeitas, que compreende as terças maiores, as
terças menores, as sextas maiores e as sextas menores. Por último o intervalo das
dissonâncias, onde estão as segundas maiores e menores, as sétimas maiores e
menores e os intervalos diminutos e aumentados (HOLST, 1998, p. 78).
Os intervalos consonantes são repousantes e satisfatórios, já os dissonantes
são tensos e parecem querer movimentar-se para outro lugar onde não causem
esse tipo de desconforto (HOLST, 1998, p. 78). Nestes jogos de sensações que se
baseia a música, ela “requer tanto dissonâncias quanto consonâncias, pois é a
alternância entre tenção e relaxamento que a mantém viva” (HOLST, 1998, p. 78).
A noção de que intervalos são consonantes e dissonantes não é uma
constante na história da música. Existiram diferenças significativas na noção de
consonância e dissonância que tinham os músicos da idade média, em relação aos
músicos do renascimento, em relação aos músicos do Barroco, do Classicismo, do
Romantismo, da Modernidade e da Contemporaneidade. Tanto que em todos estes
períodos as noções de percepção da afinação também estavam sujeitas as
concepções de consonância e dissonância. Como exemplo, podemos tomar as
harmonias da Bossa Nova brasileira, que utiliza intervalos com muita dissonância.
30
Se fossem analisados por músicos da idade média ou do barroco, por exemplo,
seriam considerados desafinados. O que eu quero deixar claro aqui é o caráter
transformador e até mesmo cultural dos conceitos de dissonâncias e consonâncias.
Podemos encontrar estas mesmas diferenciações, que aqui enfatizamos entre os
períodos do desenvolvimento da música ocidental, entre diferentes culturas musicais
ao redor do planeta (SADIE, 1995, p. 669).
1.2.4. Ritmo e Andamento
Além de suas relações de altura, os sons musicais também possuem um
caráter temporal muito acentuado, inclusive, como já vimos, com valores muito bem
sinalizados. Mas para que a música faça-se temporalmente ela precisa de uma
referencia para esses valores. É neste sentido que entra a noção de ritmo: a ele
precisam estar associadas idéias de passagem do tempo, medida e ordem
(KIEFER, 1973, p. 25). Ele pode ser medido em regularidade de pulsações, “há nele
uma tensão e um relaxamento físico. Qualquer ação contínua como andar, escalar,
correr, nadar ou remar, fica mais fácil quando adquire este ritmo de tensão e
distensão” (HOLST, 1998, p. 27).
Toda música têm um ritmo, que pode fluir livremente sem subdivisões, como
na música gregoriana onde não existem as separações dos compassos, somente
uma sucessão constante de notas; ou pode fluir em uma pulsação repetida com
regularidade, como a maioria da musica ocidental da atualidade (HOLST, 1998, p.
27). O certo é que a música tem um ritmo próprio que pode nos conduzir tão logo
deixemos de resistir a ela (HOLST, 1998, p. 28).
Em um primeiro estágio de manutenção do tempo da música, o ritmo é
medido em um padrão de notas longas e curtas, onde as curtas são o dobro das
longas. Os desenhos rítmicos formados a partir deste simples padrão inicial nos
ajudam a compreender os princípios da notação do ritmo musical.
A pauta é separada por barras verticais, chamadas barras de compasso
(HOLST, 1998, p. 29), que sinalizam determinado número de tempos entre elas. Por
exemplo, uma música em ritmo de marcha como a conhecida melodia do
cancioneiro infantil “Marcha Soldado”, que constitui-se apenas de semínimas e
colcheias, possui dois tempos em cada compasso. Desse modo entre cada barra de
31
compasso só podem figurar ao todo dois tempos musicais, sejam eles divididos em
duas notas semínimas (relembrando, um tempo cada uma), uma semínima e duas
colcheias, ou até quatro colcheias.
Figura 17. “Marcha Soldado”.
O que nos demonstra que esta música deve ser executada com esta
contagem e esta divisão é a fração que vem logo após a clave de sol e que é
chamada fórmula de compasso (HOLST, 1998, p. 31). O número inferior da fórmula
representa a unidade de tempo (HOLST, 1998, p. 31), qual a figura de tempo que é
base para a contagem: neste caso é a semínima. Usa-se o número 4 para
representar a semínima porque o valor da unidade de tempo é estipulado com
referência na nota breve, uma breve vale 4 semínimas este é o número que a indica.
O número superior da fórmula de compasso indica a quantidade de unidades de
tempo em cada compasso (HOLST, 1998, p. 32). Ainda em nosso caso, como são
duas semínimas por compasso, o número superior da fórmula é dois. Assim temos a
fórmula de compasso com a fração 2/4, que representa um ritmo popularmente
chamado de marcha.
Existe uma infinidade de fórmulas de compasso. Entre as mais utilizadas,
alem da 2/4 da marcha, estão a 4/4, quatro semínimas por compasso, que é a
fórmula do rock e do samba, por exemplo; a 3/4, três semínimas por compasso, a
fórmula da valsa; e a 6/8, seis colcheias por compasso, que é a fórmula da balada.
Para que o músico tenha noção de que velocidade executar a música, ainda
existem indicações de seu andamento que são escritas no início da peça, como
rápido e lento (HOLST, 1998, p. 29). Se o autor de determinada música quiser ser
32
mais especifico e indicar quantas notas ele quer por minuto, utiliza o sinal = 100,
que neste caso representa, cem semínimas por minuto. Essa contagem é
normalmente feita por um aparelho chamado metrônomo (HOLST, 1998, p. 30), ou
então, se não existe um metrônomo à mão, é possível também ser feita com um
relógio, se o andamento puder ser convertido em divisores e múltiplos de 60, como
30, 120, 240 batidas por minuto.
Em música erudita é comum que tenhamos indicações do andamento com
referências a intervalos de andamento escritos em Italiano. Músicas com andamento
entre 40 e 60 pulsações por minuto, são referidas com as expressões Lento, Adágio
ou Largo; de 60 a 72 pulsações por minuto, Larghetto; de 72 a 84 pulsações,
Andante; de 84 a 120 pulsações, Andantino ou Allegretto; de 120 a 150 pulsações,
Allegro; de 150 a 180 pulsações, Presto; e de 180 a 208 pulsações por minuto,
Prestíssimo (PAULI, 1997, p. 71). Essas expressões em língua italiana são herança
do período anterior a existência e disseminação do metrônomo. Sem ele a
velocidade de execução musical era referida através de analogia ao modo de
caminhar (Lento, Largo, Presto = rápido, Prestíssimo = rapidíssimo), ou então ao
próprio caráter expressivo da música (Allegretto, Allegro).
1.2.5. Harmonia
Os acordes são intervalos verticais combinados e no mínimo com três notas
(HOLST, 1998, p. 102) e cada grau de uma escala tem seu próprio acorde. Esses
acordes dos graus das escalas são chamados de tríades, porque são constituídos
de três notas: a nota principal – que pode ser uma nota qualquer da escala – com a
sua terça e sua quinta sobreposta a ela (HOLST, 1998, p. 107).
As músicas são compostas em sucessões de acordes, e assim como a nota
tônica, também existe o acorde tônico. Ele exerce uma influência muito parecida
com a da nota tônica em relação a sua importância perante a música como um todo.
Parece que os acordes que se seguem buscam um repouso alcançado ao encontrar
o acorde tônico. Desse modo, os acordes de uma escala sofrem uma influência
muito semelhante às notas, no que diz respeito às consonâncias e dissonâncias que
apresentam.
33
1.3. Percepção Sonora
Os fenômenos perceptivos estão diretamente relacionados com a capacidade
do organismo humano de assimilar sinais e dessa forma fica claro que nossa
fisiologia estabelece os principais limites de nossa capacidade de percepção
(RODRíGUEZ, 2006, p. 23). Assim podemos encontrar nesses limiares os primeiros
recortes de nossa forma de perceber o som e consequentemente a música.
1.3.1. Fundamentos da Percepção Sonora
Quando nosso ouvido está exposto a um estímulo sonoro o sistema
perceptivo humano desencadeia um processo interpretativo que analisa
primeiramente a intensidade, o tom e a duração desse som. Todos esses
parâmetros possuem limiares bem definidos que veremos agora.
Quanto à intensidade, sabemos que o limiar mínimo da audição humana é de
0 decibel (dB) a 1.000 Hz (RODRíGUEZ, 2006, p. 137). Acontece que a sensação
de intensidade é variável em função da freqüência, sendo que um som a 2.500 Hz
pode ser ouvido a -16 dB, enquanto que um som com freqüências de 50 hz precisa
de 50 dB para que seja escutado. Por outro lado, o limiar máximo da audição, que é
chamado limiar da dor, está situado em torno dos 130 dB (RODRíGUEZ, p. 2006,
137). Existe também o limiar diferencial, que é o salto mínimo que o som precisa
executar para que se tenha uma sensação de mudança de intensidade. Este limiar
gira em torno do 3dB (RODRíGUEZ, p. 2006, 137), isso quer dizer que um som
precisa soar com mais força ou menos força cerca de 3dB para que se perceba
auditivamente essa mudança.
A sensação tonal também é afetada por estes limiares que nossa fisiologia
impõe. Sabe-se que o ouvido humano começa identificar um som se ele estiver
vibrando a no mínimo 16 Hz (RODRíGUEZ, 2006, p. 145). E que a freqüência
máxima que identificados como som é a de 20.000 Hz (RODRíGUEZ, 2006, p. 145).
O limiar diferencial para o tom também está intimamente ligado à freqüência de
vibração. Para sons a 500 Hz podemos perceber alteração no tom com um aumento
de mais 1Hz, portanto de 500 Hz para 501 Hz. Já para um som a 8.000 Hz a
diferença será percebida somente com um salto para 8.100 Hz (RODRíGUEZ, 2006,
34
p. 145). Podemos perceber claramente que no fenômeno perceptivo da tonalidade,
enquanto a freqüência de um som aumenta exponencialmente a sensibilidade a
mudança de tom vai variar de forma linear (RODRíGUEZ, 2006, p. 145).
Quando nos voltamos à percepção temporal do som temos que a duração
mínima para que um fenômeno sonoro seja audível é de 5 milésimos de segundo
(ms) (RODRíGUEZ, 2006, p. 147). Já em uma situação inversa, se introduzirmos
um fragmento de silêncio no meio de um som constante deixamos de percebê-lo
quando for inferior a 3 ms. Mas é curioso notar a sensação de presença do som é
independente das sensações de intensidade e tom. Tanto que é necessário que um
som dure ao menos 150 ms para que possamos perceber sua intensidade real,
antes disso, a partir dos 5 ms a intensidade começa a ser ouvida de um modo e vai
aumentando em relação ao tempo até torna-se estacionária por volta dos 150ms
(RODRíGUEZ, 2006, p. 148). Com relação ao tom, um som precisa de 0,1 segundo
para gerar uma sensação tonal, antes disso ele é percebido como um “clic”
(RODRíGUEZ, 2006, p. 148). Quanto ao limiar máximo de duração temporal de um
som não é possível estabelecer um parâmetro rígido, mas é certo afirmar que se um
som permanece estacionário, sem variação ao longo do tempo, em um determinado
momento o receptor deixa de prestar atenção. E a atenção volta quando surgem
variações em alguma dimensão do som (RODRíGUEZ, 2006, p. 149).
Existe um quarto parâmetro sonoro que nos permite distinguir dois sons
mesmo que tenham a mesma intensidade, o mesmo tom e a mesma duração e que
possibilita-nos ainda reconhecer sua fonte, ou o instrumento musical que o produz.
Este parâmetro é o timbre. Por sua natureza complexa e sua importância no
desenvolvimento deste trabalho vamos dar uma atenção especial a ele.
Em “A dimensão sonora da linguagem audiovisual”, Ángel Rodríguez trás a
seguinte definição para o timbre:
o timbre é uma sensação auditiva complexa (independente das de duração,
tom e intensidade e simultânea a elas) que nos permite perceber a estrutura
acústica interna dos sons compostos (2006, p. 101).
35
Observando o conceito de Rodríguez, podemos ressaltar que, em primeiro lugar, o
timbre é uma sensação psicológica, apesar de fazer referência às estruturas
acústicas do som que são fisicamente mensuráveis. Em segundo lugar, que existe
uma classificação sonora que distingue som simples e composto, apesar de não
encontrarmos sons simples gerados naturalmente, e que a teorização desta
categoria é fundamental para os estudos sonoros.
Os sons simples, também chamados de sons puros, são formados a partir de
movimentos harmônicos simples que têm freqüência, amplitude e fase constante
(ROEDERER, 2002, p. 44). Estes sons simples só são produzidos a partir de
geração eletrônica e têm uma representação gráfica semelhante a da Figura 18 e da
Figura 196, respectivamente, uma som com freqüência de 430 Hz e a outra, uma
onda com freqüência de 860 Hz.
Figura 18. Onda Simples de 430 Hz, Figura 19. Onda Simples de 860 Hz, em em um recorte de 0,01 s. um recorte temporal de 0,01 s.
Já os sons compostos, que são os sons produzidos naturalmente, são “uma
superposição de sons puros misturados em uma certa proporção” (ROEDERER,
2002, p. 44). Essa superposição faz com que a onda sonora dos sons compostos
torne-se diferenciada da onda dos sons simples. Os sons compostos têm
representações gráficas muito variadas e a Figura 20 é a representação gráfica da
onda sonora constituída a partir da superposição das ondas das Figuras 18 e 19.
6 No gráfico temos verticalmente os valores de amplitude e horizontalmente os valores de tempo.
36
Figura 20. Onda Composta, em um recorte temporal de 0,01s.
Mas voltando ao timbre, ele é constituído de três dimensões diferentes que
irão lhe conferir suas características: a harmonicidade, a impressão espectral e a
definição auditiva (RODRíGUEZ, 2006, p. 102). Cada um desses parâmetros é
percebido por nossa audição de uma forma independente e simultânea.
A harmonicidade é uma sensação auditiva que se refere aos “diferentes graus
de limpeza e agradabilidade que percebemos ao escutar um som composto”
(RODRíGUEZ, 2006, p. 103). Essa sensação é produzida a partir da relação que
existe entre freqüências harmônicas e inarmônicas no espectro de cada som. Para
compreender estes conceitos vamos nos voltar novamente para uma análise física
do som.
Até aqui sempre que falamos na freqüência de um som nos referimos a um
valor único e exato. Mas na verdade os sons contêm em sua composição uma gama
de freqüências bem maior que a freqüência que vínhamos indicando até aqui, a
chamada freqüência fundamental, responsável pela sensação tonal sonora. As
outras freqüências que compõem o som são classificadas em duas categorias:
harmônicos e inarmônicos. Os harmônicos são freqüências organizadas em
múltiplos da freqüência fundamental e vão sucedendo-se no espectro sonoro – o
conjunto de freqüências que compõem o som (RODRíGUEZ, 2006, p. 103) Assim se
um som está vibrando com uma freqüência fundamental de 80 Hz, seus harmônicos
estarão situados em torno de 160, 240, 320, 400, 480, 560, 640, 720, 800, 880, 960,
1040, ... Hz. Já os inarmônicos são freqüências que não têm relação de
multiplicidade com a fundamental e não possuem uma forma de organização.
Voltando à harmonicidade, quanto mais harmônicos um som possuir maior
será a sensação de limpeza e agradabilidade desse som, mais harmonicidade esse
37
som terá. Para exemplificar vamos comparara a análise espectral de dois sons: o
som de um violino (Figura 21) e o som de um trovão7 (Figura 22). Nos gráficos
abaixo os picos representam os parciais harmônicos e inarmônicos que compõe um
instante desses timbres específicos.
Comparando as duas figuras, podemos perceber claramente a organização
das freqüências do violino, a partir de sua fundamental, a freqüência mais grave, e a
representação gráfica do som do trovão, muito mais desorganizada, sem freqüência
fundamental nem harmônicos. Podemos perceber pela análise dos espectros e
também se recorrermos a nossa memória auditiva que o som do violino
normalmente é muito mais limpo e agradável, portanto, tem muito mais
harmonicidade, que o som do trovão.
Figura 21. Análise espectral do som de um violino, em um instante de tempo.
7 Nos gráficos temos horizontalmente os valores de freqüência e verticalmente os valores de amplitude.
38
Figura 22. Análise espectral do som de um trovão, em um instante de tempo.
É interessante também notar que as características espectrais de um som
não são rigorosamente fixas. Apesar de um som conservar suas características,
fundamentais como sua harmonicidade, essas características sofrem micro
variações já que um som não é um fenômeno estático, mas um evento que se
desenvolve no tempo.
Vamos analisar agora a segunda dimensão do timbre, a impressão espectral.
Quando uma onda sonora é emitida esse som incide nas paredes e nos demais
obstáculos físicos do ambiente de modo que se modifica ao somar-se com seus
próprios reflexos (RODRíGUEZ, 2006, p. 104). Nesse processo algumas freqüências
ficam reforçadas e outras perdem força ou são anuladas. Se observarmos
novamente a análise espectral do som de um violino, Figura 21, e traçarmos uma
linha imaginária entre os picos dos harmônicos que a constituem, o desenho que
teremos é a chamada envolvente espectral (RODRíGUEZ, 2006, p. 104). Quando
um som sofre influência de sua reflexão, reforçando ou atenuando freqüências, a
envolvente espectral sofre variações no seu formato, de modo que é possível fazer
uma análise comparativa.
A impressão espectral é a sensação que um ouvinte tem ao escutar um som
de idêntica composição de freqüências, mas de envolvente espectral diferente,
39
sendo que através dessa sensação ele consegue distinguir a diferença de
ressonância de um mesmo som quando eles soam em ambientes diferentes
(RODRÍGUEZ, 2006, p. 104). Assim é possível relacionar diretamente a impressão
espectral com a sensação espacial da música.
Como última dimensão do timbre, temos a definição auditiva. Rodriguez defini
a definição auditiva como “a sensação de máximo grau de precisão, exatidão ou
detalhamento sonoro que o ouvinte percebe ao escutar atentamente um som” (2006,
p. 111). A sensação da definição auditiva tem relação com a gama de freqüências
que compõem um som, de modo que quanto maior a gama de freqüências de que
um som é composto, maior é a sensação de detalhe e de precisão sonora que
produz (RODRÍGUEZ, 2006, p. 112). Por exemplo, sabemos que a capacidade
perceptiva do ouvido humano estende-se de 16 Hz a 20.000 Hz, portanto dentro
desta gama de freqüência estão os sons que escutamos cotidianamente. Quando
falamos ao telefone estamos recebendo sons que se situam em uma gama de 300
Hz a 3.000 Hz, pois é essa faixa de freqüências que o telefone é capaz de transmitir,
fazendo com que a definição auditiva do telefone seja bastante pobre (RODRIGUEZ,
2006, p. 113).
A razão pela qual o efeito de definição auditiva acontece é simples, quanto
mais o ouvido dispões de elementos acústicos capazes de transmitir informação
sonora, mas é a sensação de definição auditiva. Por outro lado, quanto menor o
número de elementos, menor é a precisão ao escutá-los, portanto, menor é o efeito
de definição auditiva (RODRIGUEZ, 2006, p. 112).
Nós vimos então, que a percepção humana do som se dá por quatro
aspectos: a intensidade, o tom, o tempo e o timbre. Este ultimo, dotado de uma
complexidade maior, possibilita que o ouvinte reconheça e diferencie dois sons
mesmo que eles tenham a mesma intensidade, o mesmo tom e a mesma duração
entre si. Vimos ainda que o timbre é dotado de três características simultâneas e
independentes: a harmonicidade regula a sensação de limpeza e agradabilidade, a
impressão espectral que basicamente vai regular no som sua dimensão espacial, e
por último a definição auditiva que organiza a sensação de precisão, exatidão e
detalhamento sonoro.
40
1.3.2. Os Princípios da Inércia Sonora
Os sons que nos envolvem cotidianamente “são fenômenos sonoros que
ocorrem num âmbito inercial e, consequentemente, correspondem sistematicamente
à primeira lei de Newton, ou a lei da inércia.” (RODRIGUEZ, 2006, p. 195). Isso quer
dizer que eles conservam seu estado de movimento e de repouso, a menos que lhe
sejam aplicadas forças exteriores. “Essa lógica inercial determina todo fenômeno
acústico que nos rodeia e configura também nossa experiência perceptiva em
relação a eles” (RODRIGUEZ, 2006, p. 195). Nascem daí seis princípios que
demonstram a forma como percebemos o som segundo a inércia sonora.
Princípio da coerência espectral: “A relação de multiplicidade existente entre
as freqüências que compões um sinal sonoro, proveniente de uma mesma fonte,
tende a não ser afetada por nenhuma das variações que este sinal sofre”
(RODRIGUEZ, 2006, p. 196). Esse princípio diz respeito às situações em que
chegam aos nossos ouvidos uma mistura sonora de muitos componentes acústicos
ao mesmo tempo. Nossa percepção consegue distinguir as diferentes fontes
sonoras através da relação de multiplicidade que existe entre as freqüências
sonoras de cada sinal, separando estas freqüências em blocos vindos de diferentes
fontes. “Nosso ouvido aprendeu (...) a reconhecer como uma forma sonora única
todo um ‘feixe’ de freqüências que seguem um mesmo padrão relacional de
harmonicidade” (RODRIGUEZ, 2006, p. 195).
Princípio da estabilidade espectral: “A composição espectral de um sinal
contínuo que emana de uma mesma fonte sonora não tende a se transformar
repentinamente” (RODRIGUEZ, 2006, p. 196). Esse princípio é exemplificado nas
situações em que conseguimos perceber, por exemplo, que estamos dentro de um
ambiente de dimensões diferentes somente pela mudança de reverberação que o
som de nossa voz sofre. Esse princípio também está intimamente ligado ao conceito
de impressão espectral, já que é através dela que podemos reconhecer mudanças
espaciais do ambiente de propagação do som.
Princípio da estabilidade tonal: “A freqüência de um som contínuo que emana
de uma mesma fonte não tende a mudar repentinamente” (RODRIGUEZ, 2006, p.
196) Esse princípio é o que diz respeito à sensação do fim de um som e início de
outro quando, por exemplo, um instrumento toca várias notas diferentes, mesmo que
41
ele não pare de produzir som nem por um instante. Graças ao princípio da
estabilidade tonal percebemos cada nota como um fato sonoro diferente.
Princípio da regularidade: “As séries ou fluxos de eventos sonoros que
emanam de uma mesma fonte sonora não tendem a se transformar repentinamente”
(RODRIGUEZ, 2006, p. 196). Esse princípio nos diz que as qualidades acústicas de
uma mesma fonte sonora se mantêm estáveis apesar de surgirem interrupções
breves da emissão do som.
Princípio da sincronia: “Quando diferentes componentes acústicos que se
superpõem no tempo provêm da mesma fonte sonora, tendem a começar e a parar
no mesmo tempo” (RODRIGUEZ, 2006, p. 196).
Princípio da assincronia: “Quando diferentes componentes acústicos que se
superpõem no tempo provêm de fontes sonoras diversas, tendem a não começar e
a não parar no mesmo momento” (RODRIGUEZ, 2006, p. 196). Os princípios da
sincronia e da assincronia decorrem um do outro e também atuam na distinção das
diferentes fontes sonoras, assim como o princípio da coerência espectral. Os
princípios da sincronia e da assincronia são extremamente úteis também para
distinguir sons que não têm harmonicidade, consequentemente, não tem relação de
multiplicidade entre as freqüências e, portanto, escapariam do princípio da coerência
espectral.
Todos estes princípios demonstram como nossa percepção está organizada
para responder a determinados estímulos de forma específica, organizando o
material sonoro que nos chega aos ouvidos e processando informações que
automaticamente tomamos consciência. É certo que este sistema auditivo humano
desenvolveu-se para garantir a percepção das formas sonoras essenciais à
sobrevivência, diferenciando-as de outras formas menos importantes (RODRIGUEZ,
2006, p. 204).
1.3.3. Taxonomia das Formas Sonoras
Ángel Rodríguez propõem uma taxonomia para o som que procura
estabelecer os parâmetros básicos de análise de um evento sonoro. Essa
42
taxonomização divide-se inicialmente em dois parâmetros que posteriormente se
subdividirão: o contorno e a textura do som.
“Denomina-se contorno todas as evoluções da intensidade e do tom que se
produzem ao longo de um evento sonoro concreto” (RODRIGUEZ, 2006, p. 215).
Desse modo fazem parte da subdivisão do contorno sonoro as categorias de:
ataque, corpo, queda e duração.
O ataque é a fase inicial do evento sonoro. “Sua característica fundamental é
que a energia do som parte do valor 0 dB e adquire um valor “X” dB em um tempo
determinado” (RODRIGUEZ, 2006, p. 215). O ataque também é subdividido em
quatro categorias. O ataque forte, quando o som varia de 0 dB apara X dB em
aproximadamente 0,01 segundos (RODRIGUEZ, 2006, p. 218). Esse ataque produz
uma sensação auditiva semelhante a uma explosão, ou um golpe a algo duro. Um
exemplo deste som é o produzido pelos pratos da bateria. O ataque suave é
produzido quando o som varia de 0 dB para X dB em mais que 0,05 s
(RODRIGUEZ, 2006, p. 218). A sensação auditiva é de um começo brusco mas sem
explosão. O terceiro ataque é o ataque lento, que ocorre quando o som vai de 0 dB
para X dB ao longo de todo 1 segundo (RODRIGUEZ, 2006, p. 218). Esse ataque
permite escutar a elevação progressiva do som, o que não ocorre com os outros
ataques. O quarto e último é o ataque múltiplo. Quando a elevação do som de 0 dB
para X dB se der em um segundo ou mais e for possível perceber variações de tom
e intensidade, está configurado um ataque múltiplo. A sensação é de uma subida
sonora vibrante (RODRIGUEZ, 2006, p. 218).
A segunda categoria do contorno sonoro é o corpo. Ele “é a etapa central do
som. Situa-se entre o instante que o ataque termina e o instante que a energia
sonora volta a se desestabilizar para iniciar a queda” (RODRIGUEZ, 2006, p. 215). É
importante constatar que nem todo o evento sonoro possui corpo. Sons como os
produzidos pelos pratos da bateria só têm ataque e queda porque a energia sonora
passa do movimento de ascensão para o de queda, sem uma sustentação
intermediária. O corpo ocorre quando o som tem uma fase estacionária, onde a
energia estabiliza-se. Podemos dividir o corpo, novamente, em duas partes: a
intensidade e o tom (RODRIGUEZ, 2006, p. 219).
43
A intensidade de um corpo pode ser estável, variável ou oscilante. Quando a
intensidade for estável ela será considerada alta se estiver em torno dos 100 dB,
média alta se estiver em torno dos 70 dB, média baixa se estiver em torno dos 40 dB
e fraca se estiver em torno dos 20 dB. Quando a intensidade estiver variando ela
pode ser considerada ascendente quando aumentar progressivamente e
descendente quando diminuir progressivamente. E por fim, a intensidade pode ser
oscilante com pulsações rápidas (mais de 80 variações por minuto), médias (de 70 a
80 pulsações por minuto) e lentas (menos de 70 pulsações por minuto)
(RODRIGUEZ, 2006, p. 121 a 124).
Por sua vez, o tom do corpo sonoro também está sujeito a uma classificação
entre estável variável e oscilante. Quando estável, o tom pode ser classificado como
agudo quando estiver acima dos 500 Hz, médio alto quando estiver em torno dos
240 Hz, médio baixo quando estiver em torno dos 120 Hz e grave quando estiver em
torno ou abaixo dos 70 Hz. Quando o tom for variável ele pode ser classificado como
ascendente quando sua freqüência aumenta progressivamente, descendente
quando sua freqüência diminui progressivamente e melódico quando suas
freqüências sofrem alterações ascendente-descendente ou descendente-
ascendente, sem nenhuma alteração brusca. E também podemos classificar o tom
do corpo sonoro como oscilante quando ele sofrer mais que 80 pulsações por
minuto (oscilação rápida), de 70 a 80 pulsações por minuto (oscilação média) e
menos que 70 pulsações por minuto (oscilação lenta) (RODRIGUEZ, 2006, p. 224 a
227).
A queda, terceira categoria do contorno sonoro,
é a fase final de todo evento sonoro. Sua característica essencial é que a energia do som parte de um valor X dB e se extingue progressivamente até chegar a um valor 0 dB em um tempo determinado (RODRIGUEZ, 2006, p. 216).
A queda subdivide-se em quatro classificações: forte, suave, lenta e múltipla.
A queda forte é aquela em que o som vai de X dB para 0dB em até 0,01 segundos.
Essa queda produz uma sensação antinatural como a interrupção feita por um corte
em uma saída de áudio (RODRIGUEZ, 2006, p. 227). A queda pode ser considerada
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suave quando ocorre em um tempo maior que 0,05 s. É um final muito rápido, mas
sem nenhuma oclusão e nenhum tipo de alongamento ou ressonância
(RODRIGUEZ, 2006, p. 228). A queda ainda pode ser lenta, quando a intensidade
vai de X dB para 0 dB ao longo de 1 segundo. Ela produz uma sensação de
ressonância, como o final de uma nota e piano ou de violão (RODRIGUEZ, 2006, p.
228). E por último, a queda pode ser múltipla quando ocorre durante 1 segundo e ao
longo dessa descida ocorrem variações de tom e intensidade. Esse tipo de queda é
característico de sons de sino e gongos.
Na taxonomisação de Rodríguez não encontramos nenhuma classificação
específica para duração, ultima categoria do contorno sonoro, visto que a
temporalidade é uma questão extremamente aberta do ponto de vista da percepção.
Mas se observarmos as outras classificações notamos que a questão temporal
permeia muito dos outros conceitos definindo seus parâmetros de categorização. O
autor deixa bem clara a importância da descrição temporal para a análise sonora.
É evidente, por exemplo, que a sensação provocada em nosso ouvido pela repetição de um evento sonoro que tenha exatamente as mesmas características acústicas é completamente diferente se o evento dura 0,5 segundos ou 6 segundos (RODRIGUEZ, 2006, p. 228 e 229).
O segundo grande parâmetro da taxonomia das formas sonoras é a textura.
“Denominaremos textura todas as evoluções do timbre que se produzem ao longo
de um evento sonoro concreto” (RODRIGUEZ, 2006, p. 215). Podemos notar que o
autor emprega textura como sinônimo de timbre, utilizando para a sua
subclassificação os mesmos três parâmetros daquele: definição, impressão
espectral e harmonicidade.
Como já vimos, o conceito de definição espectral diz respeito ao
detalhamento sonoro que o ouvinte percebe ao escutar um som. Conceituamos uma
definição sonora como baixa quando ela estiver entre uma gama de 300 Hz a 3.000
Hz. Essa gama produz uma sensação de qualidade auditiva muito pobre como os
sons que escutamos através do telefone (RODRIGUEZ, 2006, p. 231). A definição é
considerada média quando vai de uma gama de por exemplo 160 Hz a 6.300 Hz.
Esse tipo de precisão auditiva é característico do rádio de ondas médias e longas
45
(RODRIGUEZ, 2006, p. 231). E por último, a definição de alta qualidade é
caracterizada por uma extensão de gama tão grande quanto a capacidade de
percepção do ouvido humano, de 20 Hz até 20.000 Hz. Essa gama de freqüências
produz uma sensação de grande minúcia e exatidão, característica dos sons
naturais e dos equipamentos sonoros de alta definição (RODRIGUEZ, 2006, p. 232).
Relembrando o conceito de impressão espectral, ele diz respeito à forma de
ressonância de um som, que está intimamente ligada ao ambiente em que esse som
é propagado ou ao corpo do objeto que o propaga. A impressão espectral é
classificada como escura, mate e brilhante. A impressão espectral escura é formada
quando a intensidade da zona de freqüências baixas for proporcionalmente superior
a intensidade das demais freqüências. A sua sensação é a de uma voz em corredor
muito amplo com um teto muito alto abobadado (RODRIGUEZ, 2006, p. 233). A
impressão espectral mate é causada por uma intensidade das freqüências médias
superior a intensidade das demais freqüências. É a sensação de uma voz emitida
em um estúdio de paredes acarpetadas, por exemplo (RODRIGUEZ, 2006, p. 233).
E por fim, a impressão espectral pode ser brilhante quando as freqüências altas
possuírem uma intensidade proporcionalmente maior que as demais gamas de
freqüência. A sensação sonora que se produz e semelhante a de uma voz
pronunciada em uma sala vazia de paredes lisas e duras (RODRIGUEZ, 2006, p.
233).
E por último, para encerrar as características da textura sonora e a taxonomia
do som, temos o conceito de harmonicidade. Como já vimos ele se refere à limpeza
e agradabilidade que temos ao escutar um som, e pode ser classificado da seguinte
forma: harmonicidade suja, quando a organização harmônica estiver abaixo dos
1.700 Hz (sensação de ruído, como o som de um moedor de café) (RODRIGUEZ,
2006, p. 234); harmonicidade áspera, quando a organização harmônica estiver
abaixo dos 3.300 Hz (sensação de um som produzido pro uma corneta de
brinquedo) (RODRIGUEZ, 2006, p. 234); e harmonicidade transparente, quando a
organização harmônica estiver acima dos 3.300 Hz (som de um diapasão)
(RODRIGUEZ, 2006, p. 234).
Na Figura 23 nos temos um esquema que facilita a compreensão das
divisões e subdivisões da taxonomia sonora de Ángel Rodríguez, que pretende-se
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útil para a descrição de qualquer som (RODRIGUEZ, 2006, p. 235) e portanto,
também útil para a descrição dos sons musicais.
1.3.4. Expressão Musical
Quando se fala na capacidade de expressão da música parece mais certo
afirmar que ela não possui nenhuma capacidade direta de ser psicologicamente
expressiva, principalmente se comparada ás artes das palavras, dos desenhos e
dos gestos (ANDRADE, 1962, p. 40). Isso porque, “a gente registra os sentimentos
por meio de palavras (...) as artes das palavras são pois as psicológicas por
excelência” (ANDRADE, 1962, p. 40). E como esses mesmos sentimentos também
podem refletir-se nos gestos ou determinarem atos, as artes do espaço, pela
imagem e pela coreografia, também expressam a psicologia com certa verdade
(ANDRADE, 1962, p. 40).
Pois a música não pode fazer isso. Não possui nem o valor intelectual direto
da palavra nem o valor objetivo direto do gesto. Os valores dela são
diretamente dinamogênicos e só. Valores que criam dentro do corpo estados
sinestésicos novos (ANDRADE, 1962, p.40)
Nas palavras de Mário de Andrade está uma das questões mais
características da música, seu processo expressivo particular. Ela não é capaz de
desencadear uma valorização objetiva direta, mas cria em seus ouvintes sensações,
através da excitação sonora, que então são apreendidas como valores, os quais
Andrade classifica como dinamogênicos, de dinamongênese: a geração de força ou
energia, especialmente a que ocorre em músculos e nervos em resposta à
estimulação” (DUNCAN, 1995, p. 310). Portanto a música é capaz de criar energias,
sensações internas em seus ouvintes, ou como disse Andrade: “estados
sinestésicos novos” (ANDRADE, 1962, p. 40).
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Figura 23. Taxonomia das formas sonoras.
Contorno Ataque forte suave lento oscilante
Corpo Intensidade Estável alta média alta média baixa fraca
Variável ascendente descendente
Oscilante pulsação rápida pulsação média pulsação lenta
Tom Estável agudo médio agudo médio grave grave
Variável ascendente descendente formas melódicas
Oscilante pulsação rápida pulsação média pulsação lenta
Queda forte suave lenta oscilante
Duração Textura Definição alta
média baixa
Impressão espectral escura mate brilhante
Harmonicidade suja áspera transparente
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Estes estados sinestésicos, que são provocados por um elemento exterior (a
música) e que são recebidos por uma determinação da vontade (a partir do
momento em que queremos escutar a música), são observados com interesse pela
nossa consciência que “tira deles uma porção de conclusões intelectuais que as
palavras batizam” (ANDRADE, 1962, p. 40). Por isso é possível chamar uma música
de bela ou feia, porque certos estados sinestésicos nos agradam ou desagradam,
ou então podemos caracterizar uma música como molenga, violenta, cômoda,
porque “certas dinamogenias fisiológicas amolecem o organismo, regularizam o
movimento dele ou o impulsionam” (ANDRADE, 1962, p. 41). Ou ainda, muitos
processos dinamogênicos nos levam para estados psicológicos parecidos com
outros que já vivemos, e isso nos permite chamar um trecho musical de triste,
gracioso, elegante, apaixonado... (ANDRADE, 1962, p. 41), “já com muito de
metáfora e bastante convenção” (ANDRADE, 1962, p. 41).
O processo expressivo musical, portanto, é sugestivamente muito forte,
inclusive porque, deste modo como se desencadeia, permite que qualquer ouvinte
penetre em suas formas de compreensão, mesmo que elas sejam pessoais e
particulares. A partir deste ponto, então, reconhecemos a capacidade universal da
música significar.
1.4. Unindo Conceitos
Vamos empreitar agora o exercício de relacionar os conceitos de
comunicação de que falamos no início deste capítulo e os conceitos musicais que
acabamos de ver. Esta última parte do capítulo é na verdade o ponto de
convergência de todo o texto até aqui, de modo que todas as alusões à
comunicação e à música feitas nas primeiras partes destinam-se a embasar e
possibilitar este momento.
Vamos encontrar o lugar teórico da música dentro do processo de
comunicação, reconhecendo o papel musical nas relações de emissão e recepção
de mensagens, onde possamos entendê-la como potencial portadora de
49
significação. Para isso é empreendido um diálogo entre o modelo comunicacional
emissor – mensagem – receptor; o conceito de linguagem; e a Teoria Musical, sua
notação e seus princípios, a fim da encontrar um olhar sobre o fato musical de
maneira que a música se faça comunicacional e a comunicação possa ser
musicada.
1.4.1. O Caráter Comunicacional da Música
Stevens e Warshofsky (1974, p. 9) iniciam um de seus livros intitulado “Som e
Audição” com um capítulo chamado “Ondas no Oceano do Ar” onde nos trazem a
idéia de que vivemos imersos em um mar de gases (oxigênio, dióxido de carbono,
hidrogênio, metano,...) dentro do qual conseguimos respirar e consequentemente
viver. Para que ficássemos biologicamente mais bem adaptados a esse ambiente,
nosso organismo desenvolveu mecanismos capazes de captar estímulos que nesse
meio circulam. Foi assim que surgiram o tato, o paladar, a visão, o olfato e o sentido
que é base deste trabalho, a audição.
Além de ser um sentido muito sensível – um homem pode ouvir um som
ainda que ele lhe chegue com um quatrilhonesimo de watt8 – a audição ainda é o
caminho por onde os primeiros passos do desenvolvimento intelectual têm entrada,
ainda antes do próprio nascimento, através dos primeiros sons da vida como as
cantigas de ninar e os sons intra-uterinos, e também depois dele, com choro de
fome do próprio bebê, os sons com sentidos a serem imitados e a língua. A audição
é ainda nosso sentido mais ativo, já que o centro responsável pela percepção dos
sons em nosso organismo trabalha em vigília durante toda nossa vida recebendo
uma constante de estímulos do mundo exterior (STEVENS & WARSHOFSKY, 1974,
p. 9). Esses sons recebidos são examinados e classificados, sendo arquivados, ou
determinando uma ação referente. A buzina de um carro, por exemplo, soa como
uma reclamação. Uma sirene, um apito estridente, ou o toque do telefone; cada som
carrega até o ouvinte uma mensagem precisa (STEVENS & WARSHOFSKY, 1974,
p. 9).
8 Se cem quatrilhões desse som fossem fundidos e transformados em eletricidade haveria energia para acender uma lâmpada com energia suficiente para se ler (STEVENS, et al. 1974: 9).
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Mas como, no processo comunicacional, a música se faria presente, para
poder carregar significados compreensíveis, não só aos músicos, detentores das
teorias e técnicas de sua produção, mas a um ouvinte geral, mesmo que não
conheça a teoria e a notação musical? Talvez possamos resolver esta questão se
tentarmos entender a música dentro da categoria de linguagem. Caminhando neste
sentido, vamos buscar um conceito de linguagem, para entender depois quais as
condições para que a música possa figurar dentro desta classificação, e depois
procurá-la dentro do próprio processo comunicacional, observando sua capacidade
de transportar significados.
Peruzzolo em seu livro “Elementos de Semiótica da Comunicação” conceitua
linguagem como “todo o conjunto de sinais que tem regras de valores e de
composição e que servem para deslanchar um processo de comunicação” (2004, p.
100). Portanto, para existir linguagem, segundo a definição de Peruzzolo, é preciso
que se tenham quatro características diferentes: a) é preciso que exista um conjunto
de sinais; b) que este conjunto de sinais tenha um conjunto de regras de valores; c)
que tenha também um conjunto de regras de composição; d) e que deslanche um
processo de comunicação. A partir dessa definição, podemos entender que, se
conseguirmos relacionar a música com os quatro requisitos de existência da
linguagem, também poderemos entendê-la como uma das categorias desse
conjunto conceitual.
A primeira característica para considerar a música como pertencente à
categoria de linguagem é que ela seja composta por um conjunto de sinais. Esses
sinais serão as formas materiais que, quando reconhecidos, desencadearão os
processos de significação (PERUZZOLO, 2004, p. 55), e consequentemente, as
relações de comunicação entre os dois sujeitos, o emissor e o receptor.
Recordando o que dizíamos nos primeiros parágrafos destinados aos
conceitos musicais, neste capítulo: a matéria fundamental à música é o som. E o
som como “um conjunto de causa, vibração física de um corpo material, e seu efeito,
uma sensação fisiológica em um cérebro animal (...), uma experiência sensorial que
podemos relacionar com nossa vida material e emotiva” (STEVENS &
WARSHOFSKY, 1974, p. 9 e 10) é então entendido como um sinal captado por
nossos órgãos sensoriais auditivos, por isso, mais especificamente, o som é
51
entendido como um estímulo auditivo. Falávamos também que habitualmente nem
todos os sinais auditivos são utilizados na música, de modo geral, apenas os que
têm freqüências regulares e que geram certa altura definida, classificados como
sons musicais (HOLST, 1998, p. 4).
A música, portanto, tem como elemento fundamental o conjunto de sinais
sonoros musicais, correspondendo assim ao primeiro requisito para figurar dentro da
categoria linguagem. É então o conjunto de sinais sonoros musicais o meio material
que excitará o aparelho auditivo do ouvinte e lhe provocará processos
dinamogênicos, que desencadeiam dentro do corpo estados sinestésicos novos
(ANDRADE, 1962, p. 40), o princípio do processo de percepção.
Continuando nossa busca, como segunda exigência para podermos
compreender a música dentro do conceito de linguagem, é preciso reconhecer nela
um conjunto de regras de composição (sintaxe). Esse conjunto de regras de
composição é o fator que garante a capacidade significativa ás representações dos
comunicantes (PERUZZOLO, 2004, p. 101) porque define padrões de organização,
diferenciando um determinado sistema de possibilidades conhecido pelos sujeitos
de uma sucessão aleatória de sinais.
Nós já vimos também, na seção destinada aos conceitos da música, ela tem
uma série de normas que regem sua composição (FIUSA, 1953, p. 5) principiando
com a noção de nota, que definimos como um som vibrando a determinada
freqüência, com um nível claro e sustentado (HOLST, 1998, p. 4). Passamos
também pelos fundamentais conceitos da notação musical (as figuras que
representam as notas e sua disposição na pauta), pela escala natural dos sons e
suas sete notas com seus respectivos intervalos, pela noção de frases musicais,
nota tônica e escalas, pela organização temporal da música que se dá através das
noções de ritmo e andamento, e também pela noção de harmonia e relações tonais.
Baseando-se nos conceitos de nota, melodia, harmonia, acorde e os outros
que vimos acima desenvolveram-se as regras para os processos de composição
musical em diferentes, complexos e simultâneos paradigmas de organização. E
assim, como a linguagem verbal funda-se no conceito de palavra e ganha
complexidade à medida que se normatiza através da gramática da língua
portuguesa, a música também, com sua célula fundadora no conceito de nota,
52
ganha complexidade à medida que se normatiza através dos estilos e escolas
musicais.
Observamos, então, que a música tem conjuntos de regras de composição,
reunidas e referidas de forma geral como a teoria musical e que correspondem ao
segundo requisito de nossa conceituação de linguagem. Assim, com a Teoria
Musical, estabelecem-se os mecanismos homogêneos de estruturação dos sinais
sonoros musicais, com os quais se torna possível a caracterização e diferenciação
do sistema musical, em relação a outros sistemas lingüísticos também sonoros.
Como terceira exigência teórica para caracterizá-la como linguagem, temos a
necessidade de encontrar na música um conjunto de regras de valores. Dito de
outra forma, é necessário que o conjunto de sinais tenha, para suas formas de
organização especifica, um conjunto de significados compartilhados entre os
diferentes sujeitos da comunicação. É preciso localizar uma semântica musical.
Vimos acima que a primeira forma de organização da música está ligada com
sua natureza sonora e os princípios perceptivos que decorrem desta condição.
Vimos também que estes princípios coordenam formas de compreendermos os
eventos sonoros que estão a nossa volta de forma muito especial. Por outro lado,
comentamos também que a própria expressão musical organiza-se ao nível das
reações fisiológicas que os processos dinamogênicos desencadeiam nos ouvintes e
que depois passam pela conscientização. Podemos perceber, portanto, que os
valores musicais, em um primeiro plano, estão ligados a nossa fisiologia e, deste
modo, a formas homogêneas de perceber e interpretar nosso ambiente imediato
(RODRÍGUEZ, 2006, 23).
Em um segundo plano, não podemos deixar de lado as próprias construções
sociais ao redor da música, desde as próprias metáforas e convenções que Mário de
Andrade refere em relação aos processos dinamogênicos, passando pelas
significações musicais atribuídas às relações internas das formas musicais – muito
difundidas entre os estudiosos técnicos da música – até os fatores externos ao fato
musical que também lhe conferem muito de significação.
Em suma, vemos então que a semântica musical tem um caráter fisiológico
muito intenso que é moldado pela relação que desenvolvemos com a música, seja
de forma individual ou coletiva.
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A quarta e última característica de definição de linguagem que iremos
procurar na música é a capacidade de deslanchar um processo de comunicação.
Vamos nos basear naquele modelo comunicacional que apresentamos nos
primeiros parágrafos deste capítulo, e procurar dentro dele o papel comunicacional
da música.
Se tomarmos a música como uma categoria de linguagem, e lembrarmos que
linguagem e código são sinônimos quando nos referimos ao processo de
comunicação, logicamente chegamos à conclusão de que a música figura como
código no processo comunicacional.
A música, então, pode ser considerada como um modo de organização que o
emissor utiliza para fazer chegar ao receptor determinadas mensagens, onde se
estabelecem parâmetros semelhantes de codificação e decodificação, possibilitando
aos dois sujeitos comunicacionais partilharem dos mesmos significados. Com esses
padrões homogêneos também se estabelece a caracterização da linguagem musical
e, portanto, sua diferenciação das demais linguagens, o que possibilita ao receptor
reconhecer as estratégias de leitura que ele precisará empregar.
Com isso, atendemos as quatro exigências que o conceito de linguagem nos
impôs para que pudéssemos considerar a música como uma de suas categorias: ela
é composta pelo conjunto de sinais sonoros, tem como seu conjunto de regras de
composição a Teoria Musical, tem como conjunto de regras de valores as formas de
organização perceptiva e os processos dinamogênicos musicais, que desencadeiam
sentidos de fruição e que deslancham o processo comunicacional por assumir o
papel de código da mensagem que relaciona os comunicantes.
Encontramos também o papel comunicacional da música estabelecendo uma
forma de conexão entre os dois campos, prerrogativa fundamental para a teorização
e análise futura dos eventos musicais. De modo algum estas explanações esgotam
as possibilidades de aproximação dos dois campos, muito pelo contrário, elas
levantam mais questões e abrem trilhas para dentro desse pouco explorado campo
que é a intersecção da comunicação com a música.