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 16/01/2015 Capitali smo e de mocr acia na pós-mode rni dad e: uma a nálise cr ítica da te ori a de mocr ática de Boaventura de Sousa Santo s - Sociologia - Âmbito J… ht t p ://w ww .am bi to -j ur idi co.com .br /si te / in d e x. p h p? n li nk= revi sta ar t ig os l ei tur a&art ig o id =1 1216 1 / 7 Sociologia  Capitalismo e democracia na pósmodernidade: uma análise crítica da teoria democrática de Boaventura de Sousa Santos Rafael Roque Garofano Resumo: O objeto do estudo compreende a identificação e a análise crítica dos postulados teóricos da democracia na obra do autor português Boaventura de Souza Santos, um dos mais expoentes pensadores da política e da so ciedade do nosso tempo. O trabalho procura não apenas reconhecer a permanente crise sofrida pelo conceito de democracia desde a sua origem na antiguidade até a emergência e consolidação do Estado liberal e do modelo de economia capitalista próprio das sociedades modernas ocidentais, como também compreender as transformações enfrentadas pelo Estado e pelo Direito na atualidade, em função do reconhecimento do déficit democrático e do potencial transformador da inclusão participativa dos múltiplos atores coexistentes na vida social contemporânea. [1]  Palavraschave: Capitalismo; democracia; participação popular; diversidade; inclusão política. Sumário: 1. Introdução; 2. A concepção liberal de democracia; 3. A crise de representatividade e participação política; 4. A teoria democrática contrahegemônica de Boaventura de Sousa Santos; 5. Conclusão. 1. Introdução As soluções não protagonizadas pelas promessas do sistema capitalista têm gerado algumas perplexidades no campo social e político nos tempos recentes. As flagrantes dicotomias presentes na estrutura social, tais como a gritante diferença de poder econômico entre classes ou o próprio “esquecimento” daqueles que à classe nenhuma pertencem, fazemnos parar e refletir acerca dos caminhos que pretendemos seguir ou até que ponto tais caminhos ao final nos farão chegar, fazendonos reavaliar se os atalhos que aparentemente encurtam nosso trajeto valem mesmo a pena serem trilhados diante dos riscos de nos perdermos nel es. Não há maneira melhor de iniciarmos uma análise sobre a teoria de Boaventura de Sousa Santos senão com uma metáfora, marca presente em grande parte de seus escritos mais recentes. Nas linhas seguintes se pretenderá que esta metáfora inicial possa em verdade ser entendida segundo os desígnios do autor, notadamente naquilo que sua teoria pode contribuir sobre o tema da democracia. Obviamente aqui não se pretende afastar ou refutar as suas importantes idéias e conclusões. Pelo caminho inverso, buscase apenas contribuir com um exame crítico acerca do conteúdo inovador de sua teoria democrática. Visando atingir este objetivo sem incorrer em excessos desnecessários – atendose aos limites deste trabalho –, a presente pesquisa pretenderá identificar o conceito de democracia forjado ao longo do período moderno, procurando evidenciar o estreito relacionamento desse conceito com a emergência e consolidação do Estado liberal e do modelo de economia de mercado nas sociedades modernas ocidentais, como decorrência direta das Revoluções burguesas havidas no final do século XVIII e do desenvolvimento do modo de produção capitalista. De fato, a partir desse marco revolucionário, a concepção liberal de democracia inegavelmente passou a ser adotada por grande maioria dos Estados nacionais ocidentais. Dentre as principais características desse sistema político encontrase o atributo representativo, ou seja, o cidadão comum, por supostamente não ter capacidade ou interesse político, ou mesmo por não possuir condições e tempo suficientes para a vida pública, elege os seus mandatários a quem incumbe a tomada de decisões em seu lugar[2]  [3] . No entanto, considerando a constatação feita por Marx[4]  ainda na primeira metade do século passado, segundo a qual o modelo de Estado liberal, mesmo ao afirmar o elemento democrático como uma de suas bases estruturais, não proporcionaria formas de participação política pelos diferentes atores sociais tal como proclamavam os seus discursos, a pesquisa se debruçará, em um segundo momento, sobre a questão da crise de representatividade e participação política verificada no âmbito do modelo liberal de democracia, buscando responder se a democracia, tal como a conhecemos, realmente consiste em um sistema político que objetiva a participação efetiva dos diferentes grupos sociais nas tomadas de decisões sobre o futuro comum da sociedade à qual pertencem. Não se desconsidera que o assunto analisado afigurase bastante problemático. Porém, exatamente em razão da atual situação de transição, mostrase de extrema importância a identificação dos motivos que originaram a crise de representatividade e legitimidade sofrida pelo modelo de democracia próprio do Estadomoderno [5] . Sobretudo, impende entender por que neste modelo ficam excluídos do debate político as minorias [6]  e grupos com maiores dificuldades de ter seus direitos reconhecidos (mulheres, negros, idosos, índios, pobres, estrangeiros)[7] . Por fim, de posse de tais conceitos e informações, e com a finalidade de propor alternativas ao cânone democrático existente, principalmente considerando as constantes mutações sofridas pelas sociedades globalizadas no capitalismo internacional, buscarseá, na teoria política contemporânea do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, uma nova e pósmoderna concepção de democracia, com foco principal na prática democrática como pano de fundo de uma cultura política que realmente tenha por objetivo a efetiva participação no debate pelos diferentes grupos coexistentes no seio das sociedades capitalistas contemporâneas.  2. A concepção liberal de democra cia Embora haja quem considere que a democracia passou de uma aspiração revolucionária no século XIX para um slogan[8]  adotado universalmente porém vazio de conteúdo no século seguinte, a emergência da democracia tem sido considerada o acontecimento mais importante do século XX [9] . Parece consenso, no meio científico, a constatação de que o tema democracia assumiu um lugar de destaque no campo político atual. A origem do termo Democracia remonta ao mundo antigo, segundo a trilha traçada por Platão e Aristóteles (Grécia antiga, século V a.C.). Na origem, democracia significa va “poder do demos”, que consistia numa comunidade territorial que se configura como uma unidade política, ou seja, “uma comunidade de homens livres”. As determinações básicas desse conceito são a idéia de comunidade e de liberdade. Os cidadãos decidem os destinos da  pólis, na ágora, a praça pública. Assim, na antiguidade, democracia significava a forma de governo baseada na soberania popular e na distribuição eqüitativa do poder, caracterizada pelo direito da população de participar das decisões sobre a administração pública, diretamente (democracia participativa) ou indiretamente, por meio de representantes eleitos livremente (democracia representativa). Para Aristóteles, o valor dos valores em uma democracia é a liberdade, sendo este o princípio da política democrática. Outro princípio seria viver sob a autodeterminação, que é justamente o contrário do conceito de escravidão. Dessa forma, somente em uma democracia haveria plena liberdade e somente a igualdade absoluta (que não é econômica, mas social e pol ítica) permitiria a democracia. O sistema idealizado por Aristóteles porém, entra em decadência com a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso (431 a.C.404 a.C.). A partir de então, os ideais democráticos ficam “esquecidos” durante um longo período na história, só vindo a ressurgir com a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, em 1688, momento no qual são estabelecidas as bases teóricas da divisão do poder (Executivo, Legislativo e Judiciário). A teoria da democracia é reforçada no século XVIII, com o Iluminismo e com a Revolução Francesa, que amoldam o conceito moderno de democracia prevalecente na civilização ocidental. É claro que este conceito, no entanto, não é exatamente idêntico ao conceito original da Antiguidade, uma vez que foi essencialmente modificado pelo liberalismo político ao pretender restringir o poder do governo no interesse da liberdade d o indivíduo [10]. A partir de então, como ressalta Jean Roche: “todas as declarações, todos os preâmbulos, todos os artigos constitucionais consagrados aos direitos e liberdades nos regimes oficialmente democráticos ou liberais, que vão se suceder de 1789 ao fim da primeira guerra mundial, ou mesmo depois, reafirmarão os direitos e os princípios proclamados em 1789, alargando a lista algumas vezes”[11]. Talvez o principal teórico da democracia no período Revolucionário francês tenha sido o genebrino JeanJacques Rousseau, para quem o termo reassume em parte o sentido que tinha na Antiguidade, quando as assembléias de cidadãos eram convocadas para adotar medidas de nítido caráter governamental. Democracia, para Rousseau, é a forma de governo pela qual o soberano (entendido como ser coletivo, como exercício da vontade geral) pode confiar o governo “a todo o povo ou à maior parte dele, de modo que haja mais cidadãos magistrados do que cidadãos simples particulares”[12]. Os homens, impossibilitados de subsistirem por seus próprios meios no estado de natureza, isto é, como simples indivíduos, entre si contratam uma transformação na maneira de viver, unindose numa “forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum e pela qual cada um, unindose a todos, só obedece a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” [13]. Importante notar já em Rousseau o reconhecimento de que “não há forma de governo tão sujeita às guerras e às agitações intestinais quanto a forma democrática ou popular, porque não há outra que tenda tão forte e continuamente a mudar a forma, nem que exija mais vigilância e coragem para se mantida na forma original”. Talvez por esta razão tenha ele chegado a afirmar que democracia verdadeira nunca existiu e nunca poderá existir, pois “é contra a ordem natural governar o grande número e ser o menor governado”[14]. A partir desta reflexão é que as teorias liberais do início do século XIX defenderão a democracia representativa como única forma compatível com o Estado liberal, definido como aquele que reconhece e garante alguns direitos fundamentais, dentre eles a liberdade civil e política, identificando a democracia como a liberdade do Você está aqui: Página Inicial  Revista  Revista Âmbito Jurídico  Sociologia

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  • 16/01/2015 Capitalismoedemocracianapsmodernidade:umaanlisecrticadateoriademocrticadeBoaventuradeSousaSantosSociologiambitoJ

    http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11216 1/7

    Sociologia

    Capitalismo e democracia na psmodernidade: uma anlise crtica da teoria democrtica deBoaventura de Sousa SantosRafael Roque Garofano

    Resumo: O objeto do estudo compreende a identificao e a anlise crtica dos postulados tericos da democracia na obra do autor portugus Boaventura de SouzaSantos, um dos mais expoentes pensadores da poltica e da sociedade do nosso tempo. O trabalho procura no apenas reconhecer a permanente crise sofrida peloconceito de democracia desde a sua origem na antiguidade at a emergncia e consolidao do Estado liberal e do modelo de economia capitalista prprio das sociedadesmodernas ocidentais, como tambm compreender as transformaes enfrentadas pelo Estado e pelo Direito na atualidade, em funo do reconhecimento do dficitdemocrtico e do potencial transformador da incluso participativa dos mltiplos atores coexistentes na vida social contempornea. [1]

    Palavraschave: Capitalismo; democracia; participao popular; diversidade; incluso poltica.

    Sumrio: 1. Introduo; 2. A concepo liberal de democracia; 3. A crise de representatividade e participao poltica; 4. A teoria democrtica contrahegemnica deBoaventura de Sousa Santos; 5. Concluso.

    1. Introduo

    As solues no protagonizadas pelas promessas do sistema capitalista tm gerado algumas perplexidades no campo social e poltico nos tempos recentes. As flagrantesdicotomias presentes na estrutura social, tais como a gritante diferena de poder econmico entre classes ou o prprio esquecimento daqueles que classe nenhumapertencem, fazemnos parar e refletir acerca dos caminhos que pretendemos seguir ou at que ponto tais caminhos ao final nos faro chegar, fazendonos reavaliar se osatalhos que aparentemente encurtam nosso trajeto valem mesmo a pena serem trilhados diante dos riscos de nos perdermos neles.

    No h maneira melhor de iniciarmos uma anlise sobre a teoria de Boaventura de Sousa Santos seno com uma metfora, marca presente em grande parte de seusescritos mais recentes. Nas linhas seguintes se pretender que esta metfora inicial possa em verdade ser entendida segundo os desgnios do autor, notadamentenaquilo que sua teoria pode contribuir sobre o tema da democracia. Obviamente aqui no se pretende afastar ou refutar as suas importantes idias e concluses. Pelocaminho inverso, buscase apenas contribuir com um exame crtico acerca do contedo inovador de sua teoria democrtica.

    Visando atingir este objetivo sem incorrer em excessos desnecessrios atendose aos limites deste trabalho , a presente pesquisa pretender identificar o conceito dedemocracia forjado ao longo do perodo moderno, procurando evidenciar o estreito relacionamento desse conceito com a emergncia e consolidao do Estado liberal e domodelo de economia de mercado nas sociedades modernas ocidentais, como decorrncia direta das Revolues burguesas havidas no final do sculo XVIII e dodesenvolvimento do modo de produo capitalista.

    De fato, a partir desse marco revolucionrio, a concepo liberal de democracia inegavelmente passou a ser adotada por grande maioria dos Estados nacionais ocidentais.Dentre as principais caractersticas desse sistema poltico encontrase o atributo representativo, ou seja, o cidado comum, por supostamente no ter capacidade ouinteresse poltico, ou mesmo por no possuir condies e tempo suficientes para a vida pblica, elege os seus mandatrios a quem incumbe a tomada de decises em seulugar[2] [3].

    No entanto, considerando a constatao feita por Marx[4] ainda na primeira metade do sculo passado, segundo a qual o modelo de Estado liberal, mesmo ao afirmar oelemento democrtico como uma de suas bases estruturais, no proporcionaria formas de participao poltica pelos diferentes atores sociais tal como proclamavam osseus discursos, a pesquisa se debruar, em um segundo momento, sobre a questo da crise de representatividade e participao poltica verificada no mbito do modeloliberal de democracia, buscando responder se a democracia, tal como a conhecemos, realmente consiste em um sistema poltico que objetiva a participao efetiva dosdiferentes grupos sociais nas tomadas de decises sobre o futuro comum da sociedade qual pertencem.

    No se desconsidera que o assunto analisado afigurase bastante problemtico. Porm, exatamente em razo da atual situao de transio, mostrase de extremaimportncia a identificao dos motivos que originaram a crise de representatividade e legitimidade sofrida pelo modelo de democracia prprio do Estadomoderno[5].Sobretudo, impende entender por que neste modelo ficam excludos do debate poltico as minorias[6] e grupos com maiores dificuldades de ter seus direitosreconhecidos (mulheres, negros, idosos, ndios, pobres, estrangeiros)[7].

    Por fim, de posse de tais conceitos e informaes, e com a finalidade de propor alternativas ao cnone democrtico existente, principalmente considerando as constantesmutaes sofridas pelas sociedades globalizadas no capitalismo internacional, buscarse, na teoria poltica contempornea do socilogo portugus Boaventura de SousaSantos, uma nova e psmoderna concepo de democracia, com foco principal na prtica democrtica como pano de fundo de uma cultura poltica que realmente tenhapor objetivo a efetiva participao no debate pelos diferentes grupos coexistentes no seio das sociedades capitalistas contemporneas.

    2. A concepo liberal de democracia

    Embora haja quem considere que a democracia passou de uma aspirao revolucionria no sculo XIX para um slogan[8] adotado universalmente porm vazio de contedono sculo seguinte, a emergncia da democracia tem sido considerada o acontecimento mais importante do sculo XX[9]. Parece consenso, no meio cientfico, aconstatao de que o tema democracia assumiu um lugar de destaque no campo poltico atual.

    A origem do termo Democracia remonta ao mundo antigo, segundo a trilha traada por Plato e Aristteles (Grcia antiga, sculo V a.C.). Na origem, democraciasignificava poder do demos, que consistia numa comunidade territorial que se configura como uma unidade poltica, ou seja, uma comunidade de homens livres. Asdeterminaes bsicas desse conceito so a idia de comunidade e de liberdade. Os cidados decidem os destinos da plis, na gora, a praa pblica.

    Assim, na antiguidade, democracia significava a forma de governo baseada na soberania popular e na distribuio eqitativa do poder, caracterizada pelo direito dapopulao de participar das decises sobre a administrao pblica, diretamente (democracia participativa) ou indiretamente, por meio de representantes eleitoslivremente (democracia representativa).

    Para Aristteles, o valor dos valores em uma democracia a liberdade, sendo este o princpio da poltica democrtica. Outro princpio seria viver sob a autodeterminao,que justamente o contrrio do conceito de escravido. Dessa forma, somente em uma democracia haveria plena liberdade e somente a igualdade absoluta (que no econmica, mas social e poltica) permitiria a democracia.

    O sistema idealizado por Aristteles porm, entra em decadncia com a derrota de Atenas na Guerra do Peloponeso (431 a.C.404 a.C.). A partir de ento, os ideaisdemocrticos ficam esquecidos durante um longo perodo na histria, s vindo a ressurgir com a Revoluo Gloriosa, na Inglaterra, em 1688, momento no qual soestabelecidas as bases tericas da diviso do poder (Executivo, Legislativo e Judicirio). A teoria da democracia reforada no sculo XVIII, com o Iluminismo e com aRevoluo Francesa, que amoldam o conceito moderno de democracia prevalecente na civilizao ocidental. claro que este conceito, no entanto, no exatamenteidntico ao conceito original da Antiguidade, uma vez que foi essencialmente modificado pelo liberalismo poltico ao pretender restringir o poder do governo no interesseda liberdade do indivduo[10]. A partir de ento, como ressalta Jean Roche:

    todas as declaraes, todos os prembulos, todos os artigos constitucionais consagrados aos direitos e liberdades nos regimes oficialmente democrticos ou liberais, quevo se suceder de 1789 ao fim da primeira guerra mundial, ou mesmo depois, reafirmaro os direitos e os princpios proclamados em 1789, alargando a lista algumasvezes[11].

    Talvez o principal terico da democracia no perodo Revolucionrio francs tenha sido o genebrino JeanJacques Rousseau, para quem o termo reassume em parte osentido que tinha na Antiguidade, quando as assemblias de cidados eram convocadas para adotar medidas de ntido carter governamental. Democracia, para Rousseau, a forma de governo pela qual o soberano (entendido como ser coletivo, como exerccio da vontade geral) pode confiar o governo a todo o povo ou maior parte dele,de modo que haja mais cidados magistrados do que cidados simples particulares[12]. Os homens, impossibilitados de subsistirem por seus prprios meios no estado denatureza, isto , como simples indivduos, entre si contratam uma transformao na maneira de viver, unindose numa forma de associao que defenda e proteja apessoa e os bens de cada associado com toda a fora comum e pela qual cada um, unindose a todos, s obedece a si mesmo, permanecendo assim to livre quantoantes [13].

    Importante notar j em Rousseau o reconhecimento de que no h forma de governo to sujeita s guerras e s agitaes intestinais quanto a forma democrtica oupopular, porque no h outra que tenda to forte e continuamente a mudar a forma, nem que exija mais vigilncia e coragem para se mantida na forma original. Talvezpor esta razo tenha ele chegado a afirmar que democracia verdadeira nunca existiu e nunca poder existir, pois contra a ordem natural governar o grande nmero eser o menor governado[14].

    A partir desta reflexo que as teorias liberais do incio do sculo XIX defendero a democracia representativa como nica forma compatvel com o Estado liberal,definido como aquele que reconhece e garante alguns direitos fundamentais, dentre eles a liberdade civil e poltica, identificando a democracia como a liberdade do

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    indivduo de escolher livremente seus representantes. No decorrer daquele sculo, quase todos os pases monrquicos da Europa Ocidental se tornam democraciasliberais ao instituir uma legislao representativa, onde os cidados, ao invs de participar pessoalmente das assemblias, elegem quem vai representlos e decidir poreles nas reunies[15].

    Notase, com isso, que os direitos e liberdades nascidos com a Revoluo ou pelo menos tratados com maior nfase aps ela podem, em geral, ser sumariados como decarter universal e metafsico, com princpios eternos e gerais, reconhecendo e declarando regras fundamentais vlidas para todas as sociedades. Com carter tambmindividualista, que reconhece preponderantemente os direitos dos indivduos considerados isoladamente, deixa aparente o seu gnio burgus, revelado principalmentepela proteo propriedade privada.

    Jrgen Habermas descreve a conscincia revolucionria como o bero de uma nova mentalidade, a qual cunhada atravs de uma nova conscincia do tempo, de umnovo conceito de prtica poltica e de uma nova idia de legitimao[16]. Segundo o autor, alguns conceitos so caractersticos dessa nova conscincia instituda a partirda revoluo, tais como: o rompimento com o tradicionalismo; a prtica poltica pela autodeterminao e pela autorealizao, com a convico de que todos os indivduosso autores de seus prprios destinos (individualismo)[17]; e a confiana em um discurso racional que passa a legitimar o prprio poder poltico[18]. Est, desde ento,definida uma nova etapa da histria da cultura, chamada por muitos de modernidade[19].

    Assim, toda a estrutura est posta para proteger a liberdade individual, com a sociedade fundada no contrato social e na autoridade da lei. A partir da Revoluo,ressalta Habermas, tambm vem a liberao dos cidados dos antigos vnculos estamentaiscorporativos e h o nascimento do Estadonao, que abre um livre caminhorumo ao desenvolvimento do sistema econmico capitalista:

    Esta formao estatal assegurou condies propcias ao desenvolvimento, em escala mundial, do sistema econmico capitalista. O Estado nacional configurou a infraestrutura para uma administrao disciplinada pelo direito, alm de oferecer a garantia para um espao de ao individual e coletiva, livre do Estado[20].

    A difuso rpida desse modelo de Estadonao tratou de dar fisionomia ao Estado Democrtico de Direito, no qual a democracia[21] e os direitos passaram a formar o seuncleo universalista fundamental, como bases do constitucionalismo moderno e marcos iniciais do Direito Constitucional. Por ser racional e vlido universalmente, odireito concentrado em um nico centro de produo jurdica, qual seja, o Estado. Essa figura abstrata tem a capacidade de pensar, criar e aplicar o direito vlido eaceito por toda a sociedade. Tais fatos permitem que seja criado um monoplio jurdico no Estado.

    Com o maior desenvolvimento das sociedades capitalistas no final do sculo XIX, o conceito originrio de democracia transmutado pela prtica constante da democracialiberal[22], o que transforma os trs conceitos originrios de democracia (comunidade, liberdade e igualdade) da seguinte forma: (i) a comunidade no mais definidapela medida comum (liberdade) e passa a ser definida como comunidade nacional; (ii) a liberdade se define pela propriedade (1 fase da democracia liberal caracterizada pela qualificao da vontade e do representante por sua renda, com a excluso dos dependentes), e (iii) a igualdade se define pela cidadania, determinadapela lei (determinando homens mais iguais, fazendo com que discriminaes econmicas, de raa e de sexo no sejam incompatveis com a igualdade). Segundo Moore:

    Os elementoschave na ordem da sociedade liberal e burguesa so o direito de votar, a representao numa legislatura que faz as leis e, portanto, mais do que umachancela para o executivo, um sistema de leis objetivo que, pelo menos em teoria, no confere privilgios especiais em virtude do nascimento ou de uma situaoherdada, segurana para os direitos de propriedade e eliminao das barreiras herdadas do passado no seu uso, tolerncia religiosa, liberdade de palavra e direito areunies pacficas. Mesmo que, na prtica, falhem, so estes os marcos reconhecidos de uma sociedade liberal moderna[23].

    Portanto, na sociedade burguesa, o conceito de democracia se transforma passando de modo de existncia social a estatuto de regime poltico. A condio para haverdemocracia no modo de produo capitalista sua reduo de forma global das relaes sociais de sistema poltico de governo. Isso acontece no momento em que oconceito de igualdade fica subordinado ao de segurana para o contrato no mercado de compra e venda da fora de trabalho e o de liberdade ao de liberdade de opinioe de voto. Esta a forma representativa do poder que legitima o Estado, mesmo separandoo da sociedade e sua apropriao pela classe dominante. Nesse sentido,Marilena Chau adverte que:

    a democracia liberal no , pois, a democracia, nem a nodemocracia, mas o trabalho histrico de uma sociedade de classes na qual a separao entre relaes deprodues e relaes polticas permite a uma formao social, que Aristteles tranqilamente classificaria de oligrquicaplutocrtica, apresentarse perante si mesmacomo politicamente democrtica[24].

    Ainda segundo Marilena Chau[25], os traos caractersticos da Democracia liberal so: (i) legitimidade e necessidade de conflito; (ii) fundamentase na idia de direitos eno de privilgios; (iii) no se confina no Estado, pois ela que determina a forma das relaes sociais e no o Estado; (iv) Na democracia, poder diferente de governo poder dos cidados e o governo de seus representantes; e (v) Tem um problema constante e necessrio: a questo da participao.

    O ideal da democracia liberal pode ser retratado no tipo democrtico formulado por Schumpeter. Em resumo, o seu modelo de democracia a qualifica como ummecanismo para escolha e autorizao de governos, a partir da competio entre grupos e partidos, cuja funo dos votantes no a de resolver os problemas polticos esim de eleger representantes que o faa. Este modelo poltico est fundado no modelo do mercado econmico, na soberania do consumidor, na maximizao racional dosganhos, servindo o aparelho do Estado para estabilizar as demandas da vontade poltica. clssica a definio procedimental de democracia de Schumpeter, para quemo mtodo democrtico aquele arranjo institucional para chegar a decises polticas em que os indivduos adquirem o poder de decidir por meio de uma lutacompetitiva pelo voto do povo[26]. Percebese que se trata da concepo de democracia como um mtodo de escolha, o que veementemente criticado por Atlio A.Boron:

    Em todo o caso e sem entrar a considerar um tema que escaparia dos limites do presente trabalho, convm tomar nota das perniciosas implicaes tericas e polticoideolgicas desse triunfo contundente das concepes schumpeterianas que reduzem a democracia a uma questo de mtodo, dissociado completamente dos fins,valores e interesses que animam a luta dos atores coletivos a expensas das formulaes clssicas, nas quais a democracia tanto um mtodo de governo quanto umacondio da sociedade civil[27]. (grifos nossos)

    Tambm em Weber, a democracia no tem, de forma alguma, um sentido amplo de soberania popular, sequer desempenhando um papel estrutural no Estado moderno,uma vez que a liderana deste seria prerrogativa de uma minoria qualificada. O Estado moderno, na concepo weberiana, apresenta uma tendncia burocratizao, ea burocracia se apresenta antinmica democracia, uma vez que as provises abstratas que garantam o prprio implemento do procedimento democrtico implica omonoplio do funcionalismo burocrtico.[28] A democracia, assim, ensejaria um risco de dominao burocrtica, passvel de ser evitada apenas por uma liderana polticaqualificada.

    Seguindo a linha de pensamento de Weber, que identifica no Estado racionallegal e burocrata o principal fator de desenvolvimento do capitalismo, a democraciadesempenharia um mero papel de forma procedimental de escolha de representantes polticos. Uma vez escolhidos pelos representados, os representantes polticosestariam plenamente aptos a comandar o Estado.

    A cultura polticojurdica do sculo XX tambm foi influenciada pelo pensamento dogmtico e formalista de Hans Kelsen, para quem a democracia, no plano da idia,assume a conotao de forma de Estado e de sociedade na qual a vontade geral realizada por quem est submetido ordem social, isto , pelo povo, entendido como apluralidade de indivduos a constituir um corpo unitrio que ele mesmo classifica como fictcio[29]. Para o pensador alemo, a unidade do povo, essncia da democracia,deve ser pensada no sentido normativojurdico e no no sentido da realidade sensvel, na qual obviamente nem todos os que fazem parte do povo como indivduosparticipam, de fato, do processo de criao das normas que regem a ordem estatal.

    Diante disso, h autores que acreditam, inclusive, que a democracia jamais foi um objetivo da burguesia ou fundamento do Estado liberal, pois o que se visou foi apenas agarantia de uma igualdade formal e a liberdade de atuao econmica. As conquistas histricas em prol da participao poltica teriam sido, em verdade, decorrnciadireta da mobilizao das massas, que acabavam forando concesses da burguesia em nome uma estabilidade social, o que tambm requisito para um bomdesenvolvimento das relaes capitalistas. Nesse sentido, leciona Atilio A. Boron:

    ... o que faltava era um Estado capitalista, que fosse burgus e liberal, mas no necessariamente democrtico. Sua progressiva democratizao foi resultado de umlongo e violento processo de extenso dos direitos civis, polticos e sociais, que assegurou as liberdades requeridas para o exerccio pacfico da competio poltica. preciso sublinhar, no entanto, que essa abertura no foi uma benvola concesso de cima, mas o resultado da mobilizao poltica das classes subalternas que, comseu protesto e suas reivindicaes, seus partidos e sindicatos, foraram a democratizao do Estado liberal.[30]

    Cumpre lembrar que nas duas das maiores potncias mundiais da poca, Inglaterra e Frana, as mulheres s alcanaram plena cidadania em 1946, aps a Segunda GuerraMundial. Os negros do sul dos Estados Unidos s se tornaram cidados nos anos 60 do sculo passado e, em pases da Amrica Latina sob a democracia liberal, os ndiosficaram excludos da cidadania e os negros da frica do Sul votaram pela primeira vez em 1994. As lutas indgenas e africanas pelo reconhecimento e participao polticacontinuam at os dias atuais.

    Nesse ponto, chegase a uma preocupante indagao: a democracia, ao longo da histria, nunca se preocupou efetivamente em ser um modo pelo qual as pessoas, comseus diferentes anseios e ambies, ou os grupos, com seus diferentes objetivos e tradies, possam ordenadamente decidir sobre o futuro comum da sociedade da qualpertencem, em todas as esferas da vida social?

    3. A crise de representatividade e participao poltica

    Visando responder indagao acima formulada, se faz preciso, ainda que superficialmente, retomarmos o curso da histria da democracia. Isto se justifica porque no de hoje que o problema da representatividade e participao poltica se faz presente nos foros e debates sobre a democracia. Desde o modelo ateniense j havia oprivilgio de apenas seus cidados (homens livres, nascidos em Atenas e maiores de idade) com o direito de participar ativamente da Assemblia e tambm de fazer amagistratura. No caso dos estrangeiros, estes, alm de no terem os mesmos direitos polticos, eram obrigados a pagar impostos e prestar servios militares.

    Na sociedade ateniense, alm dos escravos, que por serem estrangeiros eram excludos da cidadania, as mulheres, independentemente da sua classe social ou origemfamiliar, tambm se encontravam afastadas da vida poltica. A grande parte da populao, dessa forma, no participava dos destinos pblicos, estimandose que osdireitos de cidadania estavam disposio, no mximo, de 30 a 40 mil homens, o que representava aproximadamente um dcimo da populao total da cidade, que,segundo as estimativas, dificilmente ultrapassava 400 mil habitantes durante o apogeu dos sculos VIV a. C.

    No passado de uma forma geral, muitas outras sociedades negaram a pessoas o direito de votar baseadas no grupo tnico. Exemplo disso a excluso de pessoas comascendncia africana das urnas, na era anterior dos direitos civis, e, mais recentemente, na poca do apartheid na frica do Sul.

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    Na medida em que as sociedades polticas foram sofrendo um aumento populacional por conta da extenso das suas bases geogrficas, tornouse indispensvel levar parajunto do poder as reivindicaes de interesses do governados, o que se passou a fazer por meio de representantes. Isso comeou a ocorrer na Idade Mdia, porm deuma maneira um tanto quanto autoritria, pois a concepo poltica medieval de representao estava por demais ligada aos aspectos da teologia crist. Assim,representar significava ser autorizado a ter poderes pela fonte originria de todo poder: o prprio Deus. A representao assume o sentido de assuno daresponsabilidade de praticar atos em nome do prprio Ser supremo, uma vez que o representante visto como a pessoa escolhida para encarnalo na Terra.

    No obstante esta representao divina, existia ainda na Idade Mdia uma outra face da representao, cuja origem mais econmica e social do que religiosa. Trataseda defesa dos interesses e dos direitos dos trs estamentos sociais da poca (clero, nobreza e povo), que passaram a ter seus representantes nas Cortes de Portugal, naEspanha, nos Estados Gerais da Frana, e no Parlamento na Inglaterra, vindo a desempenhar funes consultivas e deliberativas sobre tributos, marcao do valor damoeda, observncia das leis fundamentais do reino etc.

    Porm, segundo os historiadores, o tema da representao somente entra para o campo poltico a partir de Hobbes, no sculo XVII, com a insero da idia derepresentao como autorizao concedida pelos sditos para que o seu representante possa agir e falar por eles. Para Hobbes, essencial que a autorizao parta doconsentimento voluntrio dos cidados, pois, nesse caso, a autoridade do representante passa a ser irrevogvel. Ao contrrio da teoria teolgica, representar agora passaa ser estar no lugar de algum, agindo e falando em seu nome, em razo de estar plenamente autorizado a fazlo.

    Com a queda do absolutismo, surge a concepo liberal da representao que combina elementos da representao medieval com aspectos da representao soberanade Hobbes. Segundo a concepo liberal, o representante no representa mandatrios ou eleitores, mais sim a prpria razo universal, a vontade geral, a verdade e obem comum, sendo certo que os representantes eleitos so meros executores dessa prtica. Seguindo esta tica, a poltica s poderia ser exercida por especialistas, poissomente eles teriam a capacidade de enxergar esse bem comum e essa razo universal, o que, obviamente, exclui a atuao do povo da vida poltica.

    Contudo, devido aos movimentos operrios e populares do sculo XIX, e com a organizao partidria das classes trabalhadoras, a concepo liberal de representao nopde mais ser sustentada da forma como vinha sendo defendida, pois fica evidente que o representante no representa um poder geral, mas sim reivindica os direitosprprios de uma classe ou de um grupo. A teoria liberal de representao percebe, com isso, a necessidade de uma modificao em suas estruturas, e transmutase parauma nova concepo de representao a partir da idia de partidos polticos, como canais institucionais reconhecidos pelo Estado como representantes dos interesses dosdiferentes grupos sociais.

    Justamente nesse momento que a democracia representativa demonstra a sua ineficincia. Ela no funciona porque a atuao dos representantes, organizados ou no empartidos polticos, geralmente no atende aos interesses dos representados, os quais so desprovidos de meios institucionais para exigir o devido cumprimento domandato, alm de no lhes ser possvel revoglo, acarretando em constantes e persistentes decepes nos representados. Somente os poderosos economicamenteconseguem apoio no sistema representativo, e isto, devido a grande desigualdade social e at jurdica provocada pela alavancada do capitalismo liberal no incio do sculoXX, torna o sistema de governo absolutamente autoritrio, ainda que travestido de democrtico:

    [...] as idias de representao como suporte da igualdade poltica encontra o limite de sua eficcia prtica e ideolgica. Partidos e parlamentos no representam interesses conflitantes igualmente representados; no mximo, sancionam um jogo scioeconmico que lhes escapa. [...] Quando hoje se reafirma que a igualdadedemocrtica poltica e no social e econmica, ainda assim a noo de representao no pode mais satisfazer ao quesito da igualdade, pois para que a desigualdadesocial e econmica pudesse democraticamente manifestarse como igualdade poltica, seria preciso que as diferenas de classe e de grupos interferissem diretamentenas decises, o que supe, pelo menos, igualdade de participao e no de representao[31]. (Os grifos so nossos)

    Esta condio de democracia formal, ao tempo em que esvazia quase por completamente a efetiva participao dos cidados, deixando o debate concentrado no mbitode partidos polticos financiados pelo capital, transforma os polticos (representantes) em tcnicos e o Estado passa a ocupar posio de verdadeiro comit burocrtico daburguesia, sempre tomado pelo poder econmico, mesmo que algumas medidas de reforma sejam promovidas pelo sistema dando a ele um carter mais popular(exemplos so a socialdemocracia, os direitos sociais, ou as polticas keynesianas). Segundo salienta Pedro Vidal Neto, o embate do princpio liberal individualista com arealidade logo mostrar suas limitaes e deficincias[32]. Nesse momento, nos Estados ocidentais de modo geral, h uma verdadeira transio de uma democraciapoltica (meramente) para uma democracia que podemos chamar de social.

    Acompanhando a transformao da democracia poltica em democracia social, o Estado Liberal de Direito transformase em Estado Social. Fica claro que a extenso dosufrgio universal, conjuntamente ao desenvolvimento dos direitos econmicos e sociais, tem por objetivo tornar efetivas as possibilidades de acesso aos meios materiais eespirituais necessrios plena participao na vida poltica. Apesar disso, no se vislumbra uma alterao no modelo democrtico vigente no que tange ao critrio derepresentao.

    A crise de representatividade e participao poltica na esfera pblica detectada em muitos tericos como um grave problema de difcil soluo, prprio dasdemocracias liberais. Basta lembrarmos Bobbio (ao enfatizar a presena da legitimidade negativa), McPherson (ao identificar o colapso das democracias representativas eo antidemocratismo das elites dirigentes) e Hanna Arendt (ao afirmar que a crise da repblica seria o sinal para a reconstruo democrtica que no seja uma farsacruel)[33].

    O prprio Foucault j anunciava o excesso de controle social produzido pelo poder disciplinar e pela normalizao tcnicocientfica com que a modernidade domesticaos corpos e regula as populaes de modo a maximizar a sua utilidade social e a reduzir o seu potencial poltico[34]. Esta denncia crtica modernidade faz parte deuma reflexo terica que vai desde a lei de ferro da racionalidade burocrtica de Max Weber at sociedade administrada de Adorno e colonizao de mundo davida de Habermas[35]. Os movimentos para a dominao cultural e social no pararam de crescer desde o surgimento dos Estados nacionais e a ascenso do capitalismoglobal, encontrando na estrutura do poder administrativo o seu principal meio executor e difusor[36].

    A forma da democracia representativa elitista prope uma extenso para o resto do mundo do modelo de democracia liberal, ignorando as discusses oriundas dos pasesdo Sul no debate democrtico. O moderno caracterizado como a verdade absoluta, valores absolutos, o que, por outra via, faz suprimir qualquer reconhecimento dasdiferenas culturais e dos particularismos. O mais relevante notar que o prprio sistema poltico e a forma de governo adotada a partir das teorias liberais nascidas coma modernidade so a expresso mais evidente de que a sociedade evoluiu mais depressa do que os partidos e o sistema representativo. Com as novas tecnologias, com oneoliberalismo econmico e com a globalizao, houve uma profunda alterao na estrutura poltica que, no essencial, ainda se rege por modelos herdados do sculo XIX.H um evidente esvaziamento do campo poltico verificado sobretudo nas sociedades capitalistas modernas, com a mdia desempenhando importante papel nesseprocesso de absentesmo poltico[37].

    Portanto, o Estado, configurado para a poltica da inrcia, limitase ao papel da defesa das instituies, burocracia, aplicao das leis e distribuio de umaassistncia social precria. O sistema democrtico, por seu turno, baseado em listas partidrias e num parlamento com crescente dificuldade em representar apluralidade social, deixa de fora aqueles que no conseguem organizarse politicamente e que vivem nas orlas da cidade e da sociedade, gerando uma enorme crise derepresentao[38] e o desinteresse pelo prprio processo democrtico.

    Portanto, como vimos, ainda quando a democracia foi inventada pelos atenienses, partiuse do pressuposto da instituio de trs direitos fundamentais que definiam ocidado: igualdade, liberdade e participao no poder. Porm, apesar de Aristteles afirmar que a primeira tarefa da justia fosse igualar os desiguais, seja pelaredistribuio da riqueza social, seja pela garantia de participao no governo, a cidadania ateniense nunca foi reconhecida a todos os habitantes de Atenas seno aoshomens adultos e livres.

    Se levarmos em conta que, aps Atenas, o conceito de democracia apenas foi reutilizado com maior nfase a partir da Revoluo de 1789, quando so declarados osdireitos universais do homem e do cidado, podemos facilmente conceber que o que sempre existiu de verdade foi uma democracia formal, e no concreta, pois asociedade moderna (fundada aps as Revolues burguesas) est estruturada de tal maneira que tais direitos ditos universais no podem existir concretamente para amaioria da populao, seno queles detentores do capital que monopolizam o poder poltico em seu proveito.

    Com efeito, se considerarmos que o efetivo acesso aos direitos civis e polticos fundamentais que deve determinar quanto espao est disponvel para que os gruposexcludos construam suas prprias organizaes representativas, inegvel que a democracia historicamente apareceu, atravs do Estado, como a liberdade concretada classe dominante de exercer toda a ditadura sobre a classe dominada e assegurar sua explorao. O Estado foi (e no cessou de ser) o instrumento desta ditadura,desenvolvendose e aprimorandose segundo o progresso material econmico e cultural das sociedades de classes.

    Por isso, no falta quem a define como um engodo burocrtico e antiparticipativo que impede a tomada de deciso pelo prprio povo, pois o princpio da cidadania nateoria poltica liberal abrange exclusivamente a cidadania civil e poltica perante a autoridade do Estado, e o seu exerccio reside exclusivamente no voto. Qualqueroutra forma de participao poltica excluda ou desencorajada.

    4. A teoria democrtica contrahegemnica de Boaventura de Sousa Santos;

    Inicialmente vista do contexto pretendido , se mostra importante um reconhecimento sumrio daquilo que podemos considerar como estruturas do pensamento deBoaventura Sousa Santos, notadamente em relao s suas contribuies no campo da teoria social e poltica luz dos problemas surgidos no perodo de ascenso esolidificao do sistema capitalista (ocasionados por ele ou no) como modo de produo dominante, assim como do ideal democrtico liberal como modelo a ser adotadouniversalmente pelos governos[39].

    Num primeiro momento, notase que o autor identifica, no limiar do sculo XXI, a existncia de uma transio entre paradigmas societais e epistemolgicos que estavampresentes no projeto da modernidade. Os primeiros fazem referncia aos diferentes modos de organizar e viver a vida em sociedade, enquanto que os segundos dizemrespeito a passagem da cincia moderna para uma cincia psmoderna. Segundo Boaventura, o paradigma cultural da modernidade, constitudo antes de ter incio adominao capitalista[40], haver de se extinguir antes mesmo do capitalismo deixar de ser dominante, pois algumas de suas promessas foram cumpridas em excesso,enquanto outras demonstram total impossibilidade de seu cumprimento. Tanto o excesso quanto falta seriam causas da atual situao de transio[41].

    Para Boaventura, a relao entre o moderno e o psmoderno uma relao contraditria. No de ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade comoquerem outros, uma situao de transio em que h momentos de ruptura e momentos de continuidade.[42]

    Metaforicamente (trao marcantes em quase todas as suas obras), o autor identifica que o projeto sciocultural da modernidade caracterizado, em sua matriz, por umequilbrio entre regulao e emancipao, convertidos nos dois pilares sobre os quais se sustenta a sociedade moderna, distinguindo o pilar da regulao do pilar daemancipao. O primeiro (regulao) seria constitudo pelo princpio do Estado (teoria de Hobbes), pelo princpio do mercado (incurso por Locke) e pelo princpio dacomunidade (presente em Rousseau). Por sua vez, o pilar da emancipao (o segundo pilar) seria constitudo por trs lgicas da racionalidade, a saber: (1) a

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    racionalidade estticoexpressiva da arte de da literatura, que estaria ligada diretamente ao princpio da comunidade no pilar da regulao; (2) a racionalidade moralprtica da tica e do direito, que se articularia com o princpio do Estado; e (3) a racionalidade cognitivoinstrumental da cincia e da tcnica, que seria ligadaprivilegiadamente com o princpio do mercado[43].

    O problema da democracia para Boaventura estaria inserido no desequilbrio que ocorreu no pilar da emancipao, que foi de certa forma quase anulado pelo pilar daregulao nas sociedades capitalistas. Segundo aponta o autor, tal desequilbrio consistiu, globalmente, no desenvolvimento hipertrofiado do princpio do mercado emdetrimento do princpio do Estado, e ambos em detrimento do princpio da comunidade. Diante da grande diversidade de situaes na nova era poltica e do fracasso dateoria crtica moderna, que ao pretender a emancipao acabou favorecendo a regulao, Boaventura acredita que a tarefa da teoria crtica psmoderna seria apontarnovos caminhos, aproveitando os pontos positivos na experincia histrica e identificando tudo aquilo que verdadeiramente novo. O esforo terico deve, portanto,incluir uma nova teoria da democracia, a qual permita a reconstruo do conceito de cidadania.

    Nesse sentido, a teoria democrtica de Sousa Santos reconhece a tenso existente entre democracia e capitalismo. Para o autor, a concepo de democraciadesenvolvida por Schumpeter e pelos demais tericos considerados liberais seria uma concepo hegemnica de democracia, pois estaria baseada narepresentatividade[44], cujas caractersticas so apatia poltica, desenhos eleitorais frgeis e pluralismo partidrio de elites, ou seja, a proposta da democracia liberalteria esvaziado o conceito de soberania popular na medida em que o processo democrtico teria passado a ser um mtodo poltico e institucional para tomada de decisespolticas cujos elementos de representao seriam incapazes de representar as diferenas.

    Como h a proposio de uma reviso radical do paradigma epistemolgico da modernidade, levantase a suspeita (evidncia) de que o prprio objeto de reviso estmudado, ou seja, de que o processo histrico de descontextualizao das identidades e de universalizao das prticas sociais no pode ser mais visto como homogneo enem to inequvoco como antes se pensou, pois hoje estariam concorrendo com ele velhos e novos processos de recontextualizao e de particularizao das identidadese das prticas. Os prprios fatores tradicionalmente tidos como motores da secularizao, como por exemplo o liberalismo e a democracia, seriam hoje vistos mais comoum certo tipo de fundamentalismo religioso ou algo parecido, perdendo certa credibilidade em razo da irracionalidade de que estariam revestidos.

    Somese a isso o fato do prprio Estadonao ter entrado em crise, decorrncia da mundializao do capital, com este criando um novo suporte institucional diverso doEstado e fora dele (transnacional)[45], constitudo pelas agncias financeiras e monetrias internacionais etc. Assim, o mercado estaria aparentemente desreguladodevido a ausncia do Estado nacional. No entanto, Boaventura identifica que na verdade a regulao total e transnacional pois a aparncia de desregulao seria amiragem essencial do neoliberalismo. Toda esta situao ofereceria condies propcias para que a democracia liberal possa ser imposta como condio poltica daajuda internacional dos pases centrais aos pases de terceiro mundo, ao mesmo tempo em que so eliminadas as condies econmicas e sociais mnimas de uma vivnciaefetivamente democrtica.

    A concepo hegemnica da democracia caracterizada pelo autor como aquela que est centrada em trs elementos principais: 1 identificao da democracia comregras do processo eleitoral (relao entre procedimento e forma), com a reduo do procedimentalismo a um processo de eleio de elites; 2 indispensabilidade deuma forte burocracia; e 3 representatividade como nica soluo possvel nas democracias de grande escala. Surge a o problema da dificuldade de representao deidentidades minoritrias especficas, que no tm a expresso adequada no parlamento e por isso tm grande dificuldade (ou mesmo impossibilidade) de ter seus direitosreconhecidos.

    Por outro lado, a nova teoria democrtica proposta por Boaventura que ele prprio denomina de concepo contrahegemnica de democracia , teria como pressupostoa alterao do critrio de participao poltica, deixando ele de ser o simples ato de votar, para se tornar uma articulao entre democracia representativa edemocracia participativa. Para tanto, seria preciso haver a repolitizao global da prtica social, abrindose o campo poltico de maneira a permitir a desocultao dasformas de opresso e dominao, permitindo, com isso, a emergncia de novas formas de democracia e de cidadania.

    O professor Celso Campilongo identifica em Boaventura as premissas tericas da democracia denominada contrahegemnica, a saber: o esforo pela democratizaoradical do direito e do Estado; a criao incessante da cidadania, associada democracia sem fim; e o aclaramento da verdadeira dimenso do dficit de democracianas sociedades capitalistas.[46]

    Dentro das teorias contrahegemnicas de democracia, Boaventura identifica a teoria Habermasiana como a primeira a abrir espao para que o procedimentalismopassasse a ser pensado como prtica societria e no como mtodo de constituio de governos, com dois elementos bsicos: (i) uma condio de publicidade (esferapblica) capaz de gerar uma gramtica societria (reconhecendo a pluralidade das formas de vida existentes nas sociedades contemporneas); e (ii) o papel demovimentos societrios na institucionalizao da diversidade cultural.

    As concepes no hegemnicas de democracia, dentre elas a desenvolvidas por Habermas, caracterizariamse por negar as concepes substantivas de razo e as formashomogeneizadoras de organizao da sociedade, reconhecendo a pluralidade humana por meio de uma nova gramtica social e cultural e pela procura de uma novainstitucionalidade da democracia. Haveria, com isso, o reconhecimento de que a democracia uma forma social e histrica e no determinada por leis naturais,significando rupturas constantes com as tradies, novas determinaes, novas normas, novas leis.

    Boaventura considera que Habermas foi quem melhor mostrou as antinomias do projeto da modernidade no terceiro perodo do capitalismo. No entanto, enquantoHabermas acredita que o projeto da modernidade apenas um projeto incompleto, podendo ser completado com recurso aos instrumentos analticos, polticos eculturais desenvolvidos pela modernidade, Boaventura acredita que:

    o que quer que falte concluir da modernidade no pode ser concludo em termos modernos sob pena de nos mantermos prisioneiros da megaarmadilha que amodernidade nos preparou: a transformao incessante das energias emancipatrias em energias regulatrias. Da a necessidade de se pensar em descontinuidades, emmudanas paradigmticas e no meramente subparadigmticas[47].

    Nesse sentido, Boaventura observa que na medida em que se ampliam os atores envolvidos na poltica, com esta passando a envolver uma disputa sobre um conjunto designificaes culturais refletida no aumento da participao de diferentes grupos tnicos e culturais, o argumento de que toda assemblia seria capaz de representar astendncias dominantes do eleitorado (at ento presente nas idias modernas de Stuart Mill, dentre muitos outros) perde credibilidade, pois os grupos mais vulnerveissocialmente e as etnias e grupos minoritrios, ou mesmo aqueles com menor poder econmico ou desprivilegiados, no conseguem que seus interesses sejamrepresentados.

    Considerando este problema em face da grande extenso democrtica iniciada em 1970 nos pases centrais (Europa) e 1980 nos pases do Sul, Boaventura acredita que asmais promissoras formas de democracia seriam aquelas que conseguissem a relativizao da representatividade, articulandoa com a participao, sendo, portanto, ademocracia participativa um dos grandes campos onde se estaria a reinventar a emancipao social no incio do sculo XXI.

    relevante notar que Boaventura no ignora completamente a concepo liberal de democracia mas, por outro lado, a considera um avano histrico importante, deonde devemos partir para novos aprofundamentos no exerccio democrtico, mediante o aprofundamento de novas articulaes entre democracia participativa edemocracia representativa, com nfase no pluralismo jurdico, no minimalismo legal e nas lutas microrevolucioinrias pelo direito. Portanto, a expanso do critrio dasmaiorias, combinada com a proteo das minorias e todas as demais regras do jogo poltico liberal, integram a concepo de democracia de Boaventura de SousaSantos[48].

    Isto porque o autor considera a democracia participativa uma verdadeira conquista das classes trabalhadoras (mesmo que no capitalismo socialmente se apresente comouma concesso das classes dominantes) e, por ser positiva nesse sentido, deve ser apropriada pelo campo social da emancipao:

    O capitalismo no criticvel por no ser democrtico, mas por no ser suficientemente democrtico. (...) A complementao ou o aprofundamento da democraciarepresentativa atravs de outras formas mais complexas de democracia pode conduzir elasticizao e aumento do mximo de conscincia possvel, caso em que ocapitalismo encontrar um modo de convivncia com a nova configurao democrtica, ou pode conduzir, perante a regidificao desse mximo, a uma ruptura, oumelhor, a uma sucesso histrica de microrupturas que apontem para um ordem social pscapitalista[49].

    Por outro lado, tambm possvel afirmar, no que tange sua teoria da democracia, que Boaventura resgatou Rousseau naquilo que ele era mais contrrio ao liberalismoclssico, ou seja, na afirmao de que a vontade geral tem de ser constituda como participao efetiva dos cidados, de modo autnomo e solidrio, sendo para issonecessrio uma igualdade substantiva (crtica da propriedade privada) e no meramente formal. A sua teoria pretende ampliar o cnone democrtico para alm daconcepo hegemnica de democracia liberal, contestandoa na sua pretenso de universalidade e exclusividade, abrindo assim espao para concepes e prticasdemocrticas contrahegemnicas.

    O autor nota que o projeto da modernidade ocasionou a polarizao e descontextualizao das identidades, uma vez que prevalece uma subjetividade individual eabstrata em detrimento de uma subjetividade coletiva e contextual. Isso seria decorrncia do princpio do mercado e do Estado liberal operados pela verso hegemnica,liberal, da modernidade.

    Segundo ele, a converso do modelo liberal em modelo nico e universal implicaria na perda da demodiversidade[50], o que seria extremamente negativo por doisfatores: (i) primeiro porque h uma distino entre democracia como um ideal (hegemnico) e democracia como prtica; e (ii) segundo porque, crendo que o valor dademocracia intrnseco e no meramente uma utilidade instrumental, esse valor no pode assumirse como universal, pois estaria inscrito em uma determinadacultura, a da modernidade ocidental. Essa cultura, por coexistir em um mundo que agora se reconhece como multicultural, no poderia reivindicar universalidade deseus valores, pois impor qualquer universalidade seria uma prtica imperial que infelizmente hoje promovida pelas instituies que em seu nome impem a adoo dademocracia liberal (ONU, UNESCO, por exemplo). Para o autor, a convergncia entre concepes postuladas por diferentes culturas deve ser, no mximo, um ponto dechegada de um dilogo intercultural[51].

    O processo de pluralizao cultural e de reconhecimento de novas identidades tem como conseqncias diretas profundas redefinies da prtica democrtica,redefinies que esto alm do processo de agregao caracterstica da democracia representativa. Para Boaventura: Pensar em democracia como ruptura positiva datrajetria de uma sociedade implica abordar os elementos culturais dessa mesma sociedade[52]. A relevncia da cultura residiria no fato de ela ser, na poca docapitalismo global, o espao de articulao e reproduo das relaes sociais capitalistas e da contraposio a elas[53].

    Por essa razo, ao invs de pensarmos as culturas nacionais como unificadas, deveramos penslas como constituindo um dispositivo discursivo que representa adiferena como unidade ou identidade. Elas so atravessadas por profundas divises e diferenas internas, sendo unificadas apenas atravs do exerccio de diferentesformas de poder cultural. Entretanto, as identidades nacionais continuam a ser representadas como unificadas, sendo certo que a principal forma de unificao tem sidoa de representlas como a expresso da cultura subjacente de um nico povo.

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    A proposta de que a fragmentao em miniracionalidades locais, em contraposio ao universalismo irracional, passe realmente a ser adequadas s necessidades locaisdos grupos, na medida em que forem democraticamente formuladas pelas comunidades interpretativas. Assim, Boaventura nos mostra que o processo de democratizaorevela a possibilidade de inovao, entendida esta como participao ampliada de atores sociais de diversos tipos em processo de tomada de decises. O processo dedemocratizao onde haja ampliao da diversidade cultural implica a redefinio de identidades e pertenas e o aumento da participao poltica ao nvel local, alm daincluso de temticas antes nunca tratadas no sistema poltico.

    Nesse sentido, para fortalecer a democracia participativa, so propostas trs aes: (i) o fortalecimento da demodiversidade em razo da diversidade cultural; (ii) o apoiode atores democrticos transnacionais onde a democracia fraca, sempre do plano local para o plano global; e (iii) a ampliao do experimentalismo democrtico,necessrio para a pluralizao cultural, racial e distributiva da democracia.

    De acordo com a esta teoria democrtica, os monoplios do conhecimento (alta cultura) produzidos pelo paradigma sciocultural da modernidade, no devem serdesmantelados por meio de renncias interpretao (abstencionismo) como se tem verificado, mas, por outro lado, devese criar mil comunidades interpretativas volta de discursos argumentativos estruturados por topois retricos (ou seja, condensao de costumes e experincias do quotidiano) originadores de uma verdadeiraretrica democrtica, que seria muito melhor do que o apodismo imprudente e autoritrio do projeto da modernidade. Nas condies atuais de transio, a ateno deveser voltada para a capacidade de ver o formal no informal e o informal no formal.

    Como podemos perceber, fica evidente que sua proposta de demonstrar que no possvel chegarmos a solues universais, pois as prticas democrticas devemocorrer em contextos especficos para dar respostas a problemas concretos[54]. Contudo, neste momento surge a seguinte questo: Na atual situao do que autordenomina de globalizao hegemnica, como conceber democracia enquanto forma de organizao polticojurdica do Estado e como forma de organizao tambm dasinstituies infraestatais e transnacionais?

    A resposta do autor no poderia ser mais coerente. Diante de toda esta problemtica, ele sugere uma ampla reviso na teoria jurdica e na teoria do Estado, sendo quesuas principais preocupaes cientficas englobam: 1 crtica do monoplio estatal do direito; 2 reelaborao terica da diferenciao interna do prprio direito estatal; 3 descanonizao do direito estatal e a socializao dos direitos dos cidados e das comunidades; 4 fim do fetichismo jurdico; 5 crtica ao conceito de territorialidadeenquanto unidade bsica do Estado e do direito[55], deixando evidente que um dos principais assuntos ou temas de sua pesquisa o pluralismo jurdico, segundo o qualas formas bsicas de direito seriam encontradas nos principais espaos onde o poder poltico , de fato, produzido, quais sejam: o espao do trabalho, o espao domstico,o espao da produo, o espao da troca, o espao da comunidade, o espao da cidadania o espao mundial[56]. Tais espaos so considerados pelo autor como osconjuntos mais elementares e mais sedimentados de relaes sociais nas sociedades capitalistas contemporneas[57].

    Por esse motivo, Boaventura aponta a necessidade de se reconceitualizar a escala espacial das lutas democrticas que so travadas nos espaos nacionais, supranacionaise subnacionais em que o capitalismo opera. Para analisar a globalizao que ele chama de contrahegemnica, lana mo de duas categorias adicionais, as categorias decosmopolitismo e de herana comum da humanidade. Por cosmopolitismo ele entende a atividade dos grupos subordinados no interior da globalizao estadosnao,regies, classes ou grupos sociais e seus aliados de organizarse transnacionalmente em defesa de interesses comuns e utilizar, para o seu prprio benefcio, aspotencialidades de interao transnacional criadas pelo sistema mundial. Tal organizao tem a inteno de contrarrestar efeitos perversos das formas hegemnicas deglobalizao e surge da percepo de novas oportunidades para a criatividade e a solidariedade internacional criadas pela intensificao da interao global[58].

    Haveria assim a necessidade de se articular comunidades polticas territorialmente delimitadas com agncias, associais e organizaeschave do sistema internacional, detal maneira que este ltimo tornese parte de um processo democrtico. A globalizao hegemnica se expressaria como lex mercadoria ao passo que a contraglobalizao no hegemnica teria expresso na herana comum ou no assim chamado jus humanitatis. Esse ltimo definido como a expresso da aspirao a umaforma de governana dos recursos naturais e culturais que devem ser considerados como possudos globalmente e geridos no interesse da humanidade como um todo tantono presente quanto no futuro[59].

    Uma vez que a maior parte destas lutas tem origem local (como a ambiental, a feminista, a dos sem terra), a sua eficcia e legitimao dependem de alianas translocaise globais, capazes de permitir a articulao de lutas conduzidas a partir de experincias distintas. A esse tipo de integrao das lutas com a preservao da autonomia decada uma individualmente, o autor empresta o nome de teoria da traduo:

    Diferentemente de uma teoria geral da ao transformadora, a teoria da traduo mantm intacta a autonomia das lutas em questo como condio para a traduo,dado que s o que diferente pode ser traduzido. Tornar mutuamente inteligvel significa identificar o que une e comum a entidades que esto separadas pelas suasdiferenas recprocas. A teoria da traduo permite a identificao comum em uma luta indgena, uma luta feminista, uma luta ecolgica etc., sem fazer desaparecer emnenhuma delas a autonomia e a diferena que as sustenta[60].

    Com a teoria da traduo, a defesa da diferena cultural, da identidade coletiva, da autonomia ou da autodeterminao podem assumir a forma de luta pela igualdadede direitos e de acesso atravs do reconhecimento e exerccio de direitos de cidadania. Assim, a traduo pode assumir a defesa e promoo de quadros normativosalternativos, mediante a proliferao de esferas pblicas locais capazes de articulao translocal, a favor ou contra os Estadosnacionais, como formas de globalizaocontrahegemnica.

    Portanto, verificase, de forma clara, que a proposta de Boaventura a de uma soluo a nvel local, resolvendo o problema por meio de racionalidades formuladasdemocraticamente tambm localmente para, partindo de um conjunto de solues locais atingirse o global, rechaando qualquer pretenso de solucionar os problemasdo globo por meio de superestruturas universais de valores (dentre os quais, como vimos, est contida a prpria concepo liberal de democracia). O valor universal dademocracia aparece para o autor como meio de que desfrutam os pases centrais (desenvolvidos) para impor o seu modelo de desenvolvimento econmico e social todasas outras sociedades do globo, que passam a serlhes subordinadas e integradas pela mercantilizao da vida social, poltica e cultural.

    Exemplo concreto dessa prtica o que acontece com os povos indgenas no Brasil, que esto sujeitos a conceitos eurocntricos de terras indgenas e ao direito depropriedade. A adoo de modelos polticos e jurdicos eurocntricos, supostamente de validade universal, como a ordem econmica neoliberal e a democraciarepresentativa, baseada em formas de dominao fundadas em diferenas de classe, de etnia, de territrio, de raa ou de sexo, e na negao de identidades e direitoscoletivos, considerados incompatveis com as definies eurocntricas de uma ordem social moderna. No Brasil, as propostas incursas pela FUNAI retratam bem esteproblema[61].

    5. Concluso

    Como vimos, com o passar dos anos e na medida em que as bases territoriais e geogrficas do Estadonacional vo sofrendo larga expanso, promovendo maior domniosobre os diferentes grupos sociais ali instalados, fica claro que o modelo de democracia representativa, com a atuao dos representantes organizados ou no em partidospolticos, no capaz de atender aos interesses de todos os representados pertencentes quele corpo social to diversificado. Na verdade, o sistema democrticorepresentativo sempre deixou de fora do debate poltico as minorias (ou muitas vezes maiorias) e grupos com maiores dificuldades de ter seus direitos reconhecidos,evidenciando que a representatividade do modelo democrtico liberal no capaz de alcanar as aspiraes e necessidades especficas desses grupos.

    Obviamente, uma democratizao radical da vida social ainda pressupe uma iniciativa dos Estados nacionais e dos organismos internacionais, pois ainda continua sendo degrande importncia a presena de uma forte soberania nacional que garanta os direitos coletivos dos povos. Porm, como alerta Boaventura de Sousa Santos, se fazpreciso ir alm das barreiras impostas pelo espao da cidadania prprio dos Estadonacionais, do direito estatal e da teoria poltica liberal. Segundo a sua teoria, fica claroque para haver uma completa democratizao social e poltica necessrio democratizar os demais espaos componentes da vida social, tais como o espao dotrabalho[62], o espao domstico, o espao da produo, o espao da troca, o espao da comunidade e o espao mundial[63].

    Ainda mais, sob o perigo de haver um reconhecimento subordinado aos interesses do capital e no dos povos , a iniciativa deve partir de baixo para cima, ou seja, apartir lutas microrevolucionrias pelo direito; da prtica democrtica fragmentada em miniracionalidades locais; do aumento da demodiversidade; da ampliao dasexperincias democrticas; e da organizao em escala global dos grupos sociais diferenciados, tendo como pressuposto o desenvolvimento do critrio de participaopoltica a fim de que haja uma constante articulao entre democracia representativa e democracia participativa[64], sempre lembrando que a democracia, antes de seruma idia pronta ou um valor universal imutvel, deve ser resultado de uma prtica social e histrica em constante transformao,

    evidente que a viso de Boaventura procura, de todo modo, uma ampliao do experimentalismo democrtico nos diversos ambientes que compem a vida social.Entretanto, considerando que muitos pases do sul como o Brasil nem ao menos estiveram dentro do campo democrtico na lgica hegemnica, mostrase precisoquestionar a validade de seus postulados em face das particularidades e da prpria insuficincia democrtica da cultura poltica local.

    De fato, o Brasil uma sociedade com longa tradio de poltica autoritria, com a predominncia de um modelo de dominao oligrquico, patrimonialista e burocrtico,resultando na formao de um Estado, de um sistema poltico e de uma cultura marcados pela marginalizao poltica e social das classes populares, com enormesobstculos para a construo da cidadania e dos direitos participao popular autnoma.

    Por esse motivo, na medida em que a teoria democrtica proposta deixa transparecer a necessidade de uma articulao organizada por uma rede interconectada de lutasdemocrticas locais e globais, a fim de criar uma aliana transnacional em defesa de interesses comuns, com a utilizao das potencialidades de interao mundial parapromover aquilo que o autor denomina de globalizao contrahegemnica, a aplicabilidade das propostas de Boaventura ao caso brasileiro fica, a primeira vista,prejudicada.

    Isto ocorre no s porque a eficcia e legitimao das lutas democrticas dependem de alianas translocais e globais, capazes de permitir a articulao de lutasconduzidas a partir de experincias distintas o que exige uma cultura poltica democrtica forte e madura , mas tambm por contar com meios de interao que,especialmente no caso brasileiro, ainda no foram apropriados (e no to cedo o sero) pelos atores sociais diretamente envolvidos na luta por uma participao polticamais ampla.

    Destas concluses no decorre a desconsiderao da teoria apresentada em relao ao sistema polticosocial brasileiro. A crtica apenas demonstra que o caminho a serpercorrido talvez seja mais longo e difcil do que em princpio possa parecer. Ainda assim, na teoria democrtica contrahegemnica, a distncia entre o possvel e outpico parece ser reduzida na medida proporcional da ampliao e da articulao das lutas organizadas por uma realidade social mais inclusiva e democrtica.

    RefernciasAVRITZER, Leonardo. Em busca de um padro de cidadania mundial, Lua Nova, 2002, no.5556.BORON, Atlio A. Estado, Capitalismo e Democracia na Amrica Latina, So Paulo: Editora Paz e Terra, 1994.

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    CAMPILONGO, Celso. Direito e democracia, So Paulo, Max Limonad, 1997.CHAU, Marilena Sousa. Poltica Cultural. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984._____________________. Convite Filosofia. So Paulo: Ed. tica, 2000._____________________. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 11 ed. So Paulo: Cortez, 2006.FERNANDES, Florestan (Coordenador). HABERMAS. Organizadores: Brbara Freitag e Srgio Paulo Rouanet. 3 ed. So Paulo: Ed. tica, 1993, p. 21. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 1977.HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, vols. I e II, 1997.HALL, Stuart. A identidade cultural na psmodernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.KELSEN, Hans. A Democracia. So Paulo: Martins Fontes, 1993.MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Karls Marx com Friedrich Engels. Traduo de Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001.MATTOS, Olgria. A escola de Frankfurt. So Paulo: Ed. 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Lisboa, Santos: Edies Cosmos / Livraria Martins Fontes, p. 49), a poltica, nestemomento, pode ser resumida no direito do cidado da sociedade burguesa de votar e ser representado por um corpo poltico que faz as leis, suprimindose ao menos nateoria a concesso de privilgios especiais em virtude de uma situao herdada, o que traz segurana para os direitos de propriedade, tolerncia religiosa, liberdade depalavra e direito a reunies pacficas.[4] MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. Karls Marx com Friedrich Engels. Traduo de Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001.[5] Observase, inicialmente, que por Estado moderno designase o modelo nascido na segunda metade do sculo XV, com o desenvolvimento do capitalismo mercantil nospases como a Frana, Inglaterra e Espanha, e mais tarde na Itlia.[6] Como observa a professora Marilena Chau (In Convite Filosofia, Ed. tica, So Paulo, 2000, p. 567): Parece estranho falar em minoria para referirse a mulheres,negros, idosos, crianas, pois quantitativamente formam a maioria. que a palavra minoria no usada em sentido quantitativo, mas qualitativo. Quando o pensamentopoltico liberal definiu os que teriam direito cidadania, usou como critrio a idia de maioridade racional : seriam cidados aqueles que houvessem alcanado o plenouso da razo. Alcanaram o pleno uso da razo ou a maioridade racional os que so independentes, isto , no dependem de outros para viver. So independentes osproprietrios privados dos meios de produo e os profissionais liberais. So dependentes e, portanto, em estado de minoridade racional : as mulheres, as crianas, osadolescentes, os trabalhadores e os selvagens primitivos (africanos e ndios). Formam a minoria. Como h outros grupos cujos direitos no so reconhecidos (porexemplo, os homossexuais), falase em minorias. A maioridade liberal referese, pois, ao homem adulto branco proprietrio ou profissional liberal.[7] SOUSA SANTOS, Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, p. 47. [8] Segundo o Dicionrio da Lngua Portuguesa do Professor Francisco da Silveira Bueno (Ed. FTD, 1992), o termo ingls slogan tem no Brasil o significado de vinhetacomercial ou poltica, sendo justamente este o sentido a ele atribudo neste pargrafo.[9] SOUSA SANTOS, Boaventura de. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002, p. 39. [10] KELSEN, Hans. A Democracia. So Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 143.[11] Jean ROCHE, apud VIDAL NETO, Pedro. Estado de Direito: Direitos Individuais e Direitos Sociais. So Paulo: LTr, 1979, p. 114/115.[12] Todas as formas de governo para Rousseau (democracia, aristocracia, monarquia) tm as suas vantagens peculiares para certos casos especficos e defeitoscaractersticos em outros casos. Talvez somente a democracia absoluta no apresentasse esses defeitos, porm esta democracia irrealizvel (Cap. VIII e XI) Livro III. Porisso podese afirmar que, de Aristteles, Rousseau retm a caracterizao dos vcios da democracia, onde o povo desvia a sua ateno dos desgnios gerais paraemprestlo aos objetos particulares. Por isso, Rousseau acredita que a democracia verdadeira nunca existiu e nunca poder existir , pois contra a ordem naturalgovernar o grande nmero e ser o menor governado. Seria muito pior que o governo fosse entregue na mo da totalidade dos cidados do que a um nmero pequeno,pois enquanto neste haveria o risco de vlo abusar da lei em seu interesse privado, na mo de todos seria comprometida a prpria funo legtima de fazer leis que oprincpio fundamental da organizao poltica. As contingncias acabariam sempre exigindo formas mistas de governo. Se o povo verdadeiramente governasse como umtodo, nada mais poderia fazer, tornandose improdutivo. Se o povo, porm, delega a sua funo, j aceitou uma forma mista. Por isso que a democracia s seria possvelaos pequenos povos, que podem reunirse em assemblias gerais e com poucas questes a discutir. (In ROUSSEAU, JeanJacques. Du Contrat Social / Principes du DroitPolitique, edited by C.E. Vaughen, Manchester, 1947. Os pensadores. 17 ed. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 36).[13] Ibid, p. 44.[14] Ibid, p. 48.[15] Por tal razo que as democracias modernas se aproximam muito mais no conceito rousseauniano de aristocracia, onde o povo soberano escolhe um pequeno nmerode governantes aos quais confia a funo dos magistrados. [16] HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade. II. A soberania do povo como processo, p. 252.[17] Conforme salienta Don SLATER (In Cultura do consumo & modernidade. Traduo de Dinah de Abreu Azevedo. So Paulo: Nobel, 2002. p. 76): Ironicamente, ummundo baseado no interesse individual puro deixa o indivduo numa condio de debilidade crnica. Sem uma cultura coletiva aglutinadora, sem solidariedade, oindivduo isolado, merc dos desejos momentneos fica vulnervel manipulao e s formas mais sutis de falta de liberdade. Alm disso, a modernidade, baseadanum ataque macio s formas de regulamentao coletiva ou social, despeja ironicamente novas formas de controle coletivo e social: instituies pblicas burocrticas,grandes empresas multinacionais, meios de comunicao de massa, tecnocracia..[18] HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade. II. A soberania do povo como processo, p. 253.[19] HALL, Stuart. A identidade cultural na psmodernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 25.[20] HABERMAS, Direito e democracia: entre facticidade e validade. II. A soberania do povo como processo, p. 281.[21] Ibid., p. 259. HABERMAS salienta que Rousseau, o precursor da Revoluo Francesa, entende a liberdade como autonomia do povo e como participao de todos naprtica da autolegislao. Kant, o filsofo contemporneo da Revoluo Francesa [...] formula esse ponto da seguinte maneira: somente a vontade unida e consensual detodos pode ser legisladora, na medida em que cada um decide sobre todos e todos sobre cada um, e somente a vontade popular geral unida pode ser legisladora. . [22] Expresso utilizada para se referir ao fato de que a forma e o contedo da democracia burguesa so determinados por sua origem liberal.[23] MOORE, op. cit, p. 67.[24] CHAU, Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas, p. 210.[25] Id., Cidadania cultural: o direito cultura, p. 90.[26] SCHUMPETER, J.A. Capitalism, Socialism and Democracy. Nova Iorque; Londres: Harper & Brothers, 1942, p. 75.[27] BORON, Atlio A. Estado, Capitalismo e Democracia na Amrica Latina, So Paulo: Editora Paz e Terra, 1994 p. 14.[28] GIDDENS, Anthony. Poltica, Sociologia e Teoria Social. So Paulo: UNESP, 1998, p. 33.[29] KELSEN, op. cit, p. 35 e 36.[30] BORON, op. cit, p. 97.[31] CHAU, Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas, p. 212.[32] VIDAL NETO, op. cit, p. 121.[33] Cf. CHAU, Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas, p. 220.[34] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 1977, p. 54.[35] SOUSA SANTOS, Pela mo de Alice: o social e o poltico na psmodernidade. 3. ed. So Paulo: Cortez, 1997, p. 235.[36] O Relatrio do Desenvolvimento Humano 2004: liberdade cultural num mundo diversificado, divulgado pelo PNUD (Programa das Naes Unidas para oDesenvolvimento), p. 74, atesta que ... os movimentos para a dominao cultural esto tornandose uma fora proeminente na poltica nacional, e visam dominaoreligiosa ou limpeza tnica. Movimentos como esses so muitas vezes marginais, mas tambm podem ser segmentos de um partido poltico, ou mesmo de um Estado, aoprocurar impor uma noo particular de ideologia e identidade nacionais, eliminando ao mesmo tempo outras identidades culturais.[37] MOURA, Leonel. Cultura e Democracia. Lisboa, Fevereiro de 2001. Acesso em 23/10/2007. Disponvel em http://www.lxxl.pt/babel/biblioteca/ciclo.html. ...umasimples reforma do sistema no conseguir evitar o processo de degradao do campo poltico e do modelo de representao que lhe est associado. A desregulao dasociedade e das vidas atingiu j o descrdito das instituies democrticas e muito em particular a prpria figura da administrao pblica. O pblico tornouse sinnimode negativo e o privado tido como coisa positiva. [...] A adeso economia de mercado, rapidamente se transformou no discurso da privatizao do mundo... [...] Adesvalorizao da poltica tem pois vrias origens. Por um lado obra da utopia capitalista, na sua vontade de minimizar a influncia do interesse comum e alargar cadavez mais o seu prprio campo de aco e negcio. Resulta tambm da prpria aco dos homens polticos e tantas vezes, precisamente, de uma escandalosa falta deaco. O egosmo individualista que to desgraadamente ilustra a nossa poca outro factor significativo. E por fim, o verdadeiro deserto de convivncia e de solidosocial criado pelo fenmeno televisivo, no favorece o interesse pela poltica, como alis por praticamente nada mais. [...] O ataque cerrado e constante contra a poltica alis particularmente evidente na aco dos media. O jornalismo contemporneo assumiu uma vocao de "killer" da poltica e dos polticos. Fazemno por audincias etiragens certo, mas tambm na defesa dos interesses privados que objectivamente servem. [...] no devem restar dvidas de que esta desvalorizao do poltico, temum fundo ideolgico objectivo. [...] Na sociedade contempornea, a defesa da poltica e da democracia so, em si mesmo, tarefas da esquerda.[38] Exemplo concreto desse problema so os povos indgenas, que vm reclamando uma reformulao do Estado, de tal maneira que seja constitudo um novo modeloparticipativo e democrtico, pois o mundo moderno est organizado de um modo que no existe nenhum territrio ou povo excludo da tutela de algum Estado.[39] Este perodo referido em diversas passagens por Boaventura com a denominao de Modernidade. Faremos uso desta denominao para facilitar a compreensoacerca da teoria do autor.[40] Embora reconhea que o capitalismo como sistema de trocas monetrias generalizadas tenha se originado ainda no sculo XVI, Boaventura revela que o teste documprimento histrico do projeto sciocultural da modernidade apenas teve incio no final do sculo XVIII, quando da emergncia do capitalismo enquanto modo deproduo dominante nos pases da Europa que integraram a primeira grande onda de industrializao.

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    [41] Para muitos tericos contemporneos, a prpria identidade do sujeito moderno est entrando em verdadeiro colapso. Conforme salienta Stuart Hall (A identidadecultural na psmodernidade, p. 9): Um tipo diferente de mudana estrutural est transformando as sociedades modernas no final do sculo XX. Isso est fragmentandoas paisagens culturais de classe, gnero, sexualidade, etnia, raa e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido slidas localizaes como indivduos sociais.Estas transformaes esto tambm mudando nossas identidades pessoais, abalando a idia que temos de ns prprios como sujeitos integrados. Esta perda de umsentido de si estvel chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentrao do sujeito. Esse duplo deslocamento descentrao dos indivduos tanto de seulugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos constitui uma crise de identidade para o indivduo. [42] SOUSA SANTOS, Pela mo de Alice. O social e o poltico na psmodernidade, p.103.[43] SOUSA SANTOS, Pela mo de Alice. O social e o poltico na psmodernidade, p. 83.[44] SOUSA SANTOS, Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, p. 45. [45] Cf. ORTIZ, Desafios da globalizao, p. 266. Segundo este autor, a globalizao das sociedades e a mundializao da cultura provocou um rompimento da integridadeespacial , tornandose cada vez mais difcil discernir os limites de cada povo e de cada cultura. Assim, a mundializao da cultura estaria trazendo em seu bojo umaterritorialidade que j no mais se vincularia ao entorno fsico do Estadonacional.[46] CAMPILONGO, Celso. Direito e democracia, So Paulo, Max Limonad, 1997, p. 88.[47] SOUSA SANTOS, Pela mo de Alice. O social e o poltico na psmodernidade, p.115.[48] CAMPILONGO, op. cit, p. 90.[49] SOUSA SANTOS, Pela mo de Alice. O social e o poltico na psmodernidade, p. 270.[50] Por demodiversidade, Sousa Santos entende ser a coexistncia pacfica ou conflitual de diferentes modelos e prticas democrticas.[51] Abrese aqui um parntese para ressaltar a importncia da idia de dilogo intercultural na teoria de Boaventura de Sousa Santos. O primeiro passo para aquilo queo autor denomina de hermenutica diatpica, seria estabelecer o dilogo intercultural entre os diferentes saberes (topois) que, apesar de tenderem para ofechamento cultural, possam ser vulnerabilizados e utilizados no contexto de outra cultura, mediante a eliminao da rigidez existente na cultura original. Suaproposta da hermenutica diatpica caminha no sentido de compreender uma cultura a partir dos topois de outras culturas, sendo necessrio, para tanto, como ponto departida, o reconhecimento de cada um desses topois participantes como existente dentro de um contexto global plural, onde um determinado topoi no seja o nico,mas sim tambm altamente incompleto em relao aos demais.[52] SOUSA SANTOS, Democratizar a Democracia, p. 52.[53] Id., Reconhecer para libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural, p. 34.[54] SOUSA SANTOS, Democratizar a Democracia, passim.[55] CAMPILONGO, op. cit, p. 87.[56] Nas palavras do autor (SOUSA SANTOS, A Crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 277/278): O espao domstico o conjunto de relaessociais de produo da domesticidade e do parentesco, entre marido e mulher, entre cada um deles e os filhos e entre uns e outros e os parentes. O espao daproduo o conjunto de relaes sociais desenvolvidas em torno da produo de valores de troca econmicos e de processos de trabalho (...). O espao do mercado oconjunto de relaes sociais de distribuio e consumo de valores de troca atravs das quais se produz e reproduz a mercadorizao das necessidades e dos meios de asatisfazer. O espao da comunidade constitudo pelas relaes sociais desenvolvidas em torno da produo e da reproduo de territrios fsicos e simblicos e deidentidades e identificaes com referncia a origens ou destinos comuns. O espao da cidadania o conjunto de relaes sociais que constituem a esfera pblica e, emparticular, as relaes de produo da obrigao poltica vertical entre os cidados e o Estado. (...) Por ltimo, o espao mundial a soma total dos efeitos pertinentesinternos das relaes sociais por meio das quais se produz e reproduz uma diviso global do trabalho. (...) O espao mundial , por conseguinte, a matriz organizadora dosefeitos pertinentes das condies e das hierarquias mundiais sobre os espaos domstico, da produo, do mercado, da comunidade e da cidadania de uma determinadasociedade.[57] SOUSA SANTOS, A Crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 272.[58] SOUZA SANTOS, Pela mo de Alice. O social e o poltico na psmodernidade, p. 263.[59] AVRITZER, Leonardo. Em busca de um padro de cidadania mundial, Lua Nova, 2002, no.5556, p.2955.[60] SOUSA SANTOS, Reconhecer para libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural, p. 40.[61] Cf. Roberto Cardoso DE OLIVEIRA / Teses sobre o Indigenismo Brasileiro, In BOSI, Cultura Brasileira: temas e situaes, p. 197, segundo o qual: Assumindo que o ndiosomente poder tornarse civilizado pelo trabalho chamado produtivo, a FUNAI projeta sobre as comunidades indgenas ideais de desenvolvimentistas correntes nasociedade nacional moderna, ao mesmo tempo que espera possam os ndios eles prprios pagar parte de sua proteo e assistncia atravs do dzimo, que lhes descontado da explorao do patrimnio indgena; esquecemse os responsveis pelo indigenismo oficial de que a ao indigenista, para ser independente e infensa corrupo, no deve produzir renda, particularmente quando deve caber ao Estado sociedade nacional como um todo arcar com o nus financeiro da proteo eassistncia, responsveis que so Estado e sociedade pela situao dramtica em que se encontra a populao aborgene do Brasil.[62] Boaventura adverte que nas sociedades perifricas e semiperifricas lidera o espao do trabalho, que pouqussimo democrtico e at desptico (salrio baixo,lucro alto, explorao...), deixando claro que fora do direito constitucional (territorial), a regra da maioria proposta pelas teorias democrticas liberais uma verdadeiratirania da maioria.[63] Para um melhor aprofundamento do tema, ver SOUSA SANTOS, A crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 290 e ss.[64] Por outro lado, importante observar que o prprio autor reconhece a vulnerabilidade da intensificao democrtica nesse sentido como a democracia participativa, ressaltando os perigos da apropriao do discurso de democracia participativa por propostas que no implicam muito mais do que a sua reduo s categorias demercantilizao, diante do receio sempre presente de que as prticas contrahegemnicas venham a ser cooptadas pelos setores hegemnicos como tem ocorrido com oativismo social dos empresrios contra a excluso social, desmontando as polticas pblicas e fazendo um marketing social. Este exemplo repetidamente constatadonas polticas empresariais de Responsabilidade Social, bem peculiares nas cartilhas das grandes empresas, principalmente entre instituies financeiras de envergaduramultinacional.

    Rafael Roque GarofanoMestrando em Direito do Estado pela Universidade de So Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado em So Paulo

    Informaes Bibliogrficas

    GAROFANO, Rafael Roque. Capitalismo e democracia na psmodernidade: uma anlise crtica da teoria democrtica de Boaventura de Sousa Santos. In: mbito Jurdico,Rio Grande, XV, n. 98, mar 2012. Disponvel em: . Acesso em jan 2015.

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