capitalismo e a saude publica

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Coleção Clássicos da Saúde Coleva Emerson Elias Merhy Capitalismo e a Saúde Pública A emergência das prácas sanitárias no estado de São Paulo

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Capitalismo e a Saude Publica.

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  • Coleo Clssica Sade Coletiva

    Emerson Merhy

    Sade Pblica como Poltica

    Editora Rede Unida

    Coleo Clssicos da Sade Coletiva

    Emerson Elias Merhy

    Capitalismo e a Sade PblicaA emergncia das prticas sanitrias

    no estado de So Paulo

  • Coleo Clssicos da Sade Coletiva

    Emerson Elias Merhy

    Capitalismo e a Sade Pblica

    A emergncia das prticas sanitrias no estado de So Paulo

    2 Edio

    Porto Alegre, 2014 Editora Rede UNIDA

  • Coordenador Nacional da Rede UNIDAAlcindo Antnio Ferla

    Coordenao EditorialAlcindo Antnio Ferla

    Conselho EditorialAlcindo Antnio FerlaEmerson Elias MerhyIvana BarretoJoo Jos Batista de CamposJoo Henrique Lara do AmaralJulio Csar SchweickardtLaura Camargo Macruz FeuerwerkerLisiane Ber PossaMara Lisiane dos SantosMrcia Cardoso TorresMarco AkermanMaria Luiza JaegerRicardo Burg CeccimMaria Rocineide Ferreira da SilvaRossana BaduySueli BarriosVanderlia Laodete Pulga Vera KadjaoglanianVera Rocha

    Comisso Executiva EditorialJanaina Matheus CollarJoo Beccon de Almeida Neto

    Arte Grfica - CapaDanantesKathleen Tereza da CruzBlog: saudemicropolitica.blogspot.com.br

    DiagramaoLuciane de Almeida Collar

    DigitaoJuliana PortoVanessa da Rosa GuerraVirginia de Menezes Porto

    RevisoMaria Helena Harlacher Jardim

    Grafia atualizada segundo o Acordo Orto-grfico da Lngua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    M559c Merhy, Emerson Elias. Capitalismo e a sade pblica: a emergncia das prticas sanitrias no estado de So Paulo/ Emerson Elias Merhy. 2. ed. - Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. 148 p.: il. - (Coleo Clssicos da Sade Coletiva)

    Bibliografia ISBN 978-85-66659-21-4

    1. Sade pblica 2. Capitalismo 3. Polticas pblicas de sade I. Ttulo II. Srie

    NLM WA 100

    Catalogao na fonte: Rubens da Costa Silva Filho CRB10/1761

    Todos os direitos desta edio reservados ASSOCIAO BRASILEIRA REDE UNIDARua So Manoel, n 498

    90620-110 Porto Alegre RSFone: (51) 3391-1252

    www.redeunida.org.br

  • Nos outros eu sei onde se abriga o corao. no peito - todos sabem disso.

    Comigo a anatomia ficou louca. Eu sou todo corao -

    Ele bate em todo o corpo. (Maiakovski)

    Mina, Ao Pedro e Emlia,e aos meus pais Isaura e Antonio.

  • Onde eu morrer

    eu vou morrer cantando.Que eu caia aqui ou l, no

    importa eu sou digno de ser colocado

    prximo aos que tombaram sob a

    bandeira vermelha. (Maiakovski)

  • Gelson Reicher,

    Antonio Carlos Cabral eCeclia Donnangelo.

  • NDICE

    Apresentao desta Edio.................................................13

    Apresentao Edio anterior.............................................17

    Captulo I

    As Prticas Sanitrias e as Relaes Sociais Capitalistas...........................................................................23

    Parte I - As Prticas Sanitrias como Objeto de Estudo...................................................................................23

    Parte II - As prticas sanitrias nas formaes sociais capitalistas............................................................................40

    Captulo II

    A Emergncia das Prticas Sanitrias no Estado de So Paulo....................................................................................59

    Parte I - A Repblica Velha....................................................65

    Parte II So Paulo da Repblica Velha e as prticas sanitrias..............................................................................80

    Parte III As reformas de 1917 e 1925, os Projetos Sanitrios untura Social no Estado de So Paulo.................................123

    Bibliografia.........................................................................141

  • Apresentao desta EdioEsse livro foi fruto do meu mestrado defendido em

    1983, na Faculdade de Medicina da USP, em um momento que muitos de ns estvamos engajados em uma luta social contra a ditadura brasileira, que tnhamos elegido a militncia no campo da sade pblica, em So Paulo, como uma frente de ao poltica que apostava que uma nova sociedade era possvel, centrada em prticas sociais organizadas de modos coletivos e na ntima relao entre as polticas de governo, sua gesto e os movimentos populares que agitavam o pas, naquele momento.

    J vinhamos, muitos pelo Brasil afora, produzindo muitos acontecimentos no campo da sade atravs da cria-o e da luta do movimento pela reforma sanitria brasileira, que lutava pela construo de uma poltica de sade baseada no direito universal sade, de qualquer brasileiro, de res-ponsabilidade estatal e realizada por uma interveno em sade que tivesse na integralidade do cuidado e na equidade das aes, seus eixos ordenadores.

    Nesse intenso processo, construir novos conheci-

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    mentos sobre ns mesmos e a prpria histria do pas e desse campo de prticas, tornou-se elemento vital e um ato em si de militncia. Muitos companheiros estiveram nesse front. Donnangelo, Arouca, Madel, Cordeiro, Mendes Gonalves, entre outros, eram bons mestres e parceiros.

    Debruar sobre as relaes entre a organizao da nossa sociedade como construo capitalista e o conjunto das prticas governamentais na sade, em especial na sade p-blica, foi objeto de vrios estudos, sob vrios formatos.

    Estvamos pelo movimento sanitrio brasileiro indo alm dessa mesma sade pblica e inventando o campo da sade coletiva, que lhe vazava.

    A importncia da oferta do campo marxista mostrou-se muito potente e um forte aliado, em vrias de suas corren-tes, mas destaco em especial as ofertas francesas e italianas, como do pensamento de Poulantzas e Gramsci, como fortes no interior do nosso movimento, bem como a presena de italianos como Basaglia e Berlinguer.

    Foucault aparecia, Lourau tambm, mas um pouco ainda pela lateral.

    Tendo como forte influncia a linha de trabalho de Maria Ceclia Ferro Donnagelo, que faleceu no comeo de 1983, que estimula meu trabalho, bem como os de Ricardo Bruno Mendes Gonalves e Lilia Blima Schraiber, a presena do pensamento das Cincias Sociais de alguns professores da USP, como Florestan Fernandes, vai se fazer elemento consti-tutivo dos referenciais e do modo como trabalharemos nos-sos objetos de estudo.

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    Essa produtiva influncia vai gerar em mim um es-foro em procurar compreender as relaes entre a formao capitalista da sociedade brasileira e a conformao da sade pblica, como poltica de estado.

    Os esquemas tericos de Poulantzas e a contribui-o de Donnagelo e Mendes Gonalves vo me orientar para estudar na emergncia da situao republicana (oligrquica) paulista as prticas sanitrias e sua institucionalidade no m-bito da organizao do estado.

    Essa associao j era fortemente trabalhada, no campo mais amplo das sociedades capitalistas por Donnan-gelo na sua produo Sade e Sociedade e por Mendes Gon-alves no Medicina e Histria: Razes Sociais do Trabalho M-dico. Alm disso, Poulantzas oferecia sua anlise dos modelos de revoluo burguesa dos processos franceses, ingleses e alemes que tambm me levavam para o entendimento das prticas de sade sob vrias modalidades.

    Autores de forte influncia marxista, foram minhas pontes para trabalhar meu material de pesquisa.

    Mesmo que hoje no siga essa trilha de uma maneira to exclusiva, vejo que nesse trabalho h algo que me animou muito da em diante. O campo de prticas de sade era uma disputa constante por distintos tipos de projetos, dos varia-dos atores sociais, e no s uma construo linear de ao de um estado de classe.

    A sade pblica como poltica ficar muito claro para mim, alguns anos depois, quando produzo meu outro material, em 1990, que est sendo editado nessa mesma coletnea da Editora da Rede Unida, em seu lanamento

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    nesse ano de 2014.

    Espero que essa aposta de re-editar esses materiais tragam contribuies, no mnimo, para se compreender o grande esforo que muitos fazamos para municiar o movi-mento de luta social, por uma sociedade mais democrtica e justa, que tinha a construo de que a sade de qualquer um vale a pena como seu eixo ordenador.

    Emerson Elias Merhy - 2014

  • Apresentao Edio anteriorPoucos tm sido os estudos sobre Sade Pblica

    entre ns, que permitem uma compreenso deste campo de atividades para alm dos seus aspectos organizacionais burocrtico-administrativos ou tcnico-cientficos em geral. A maior parte tem enfocado o conjunto das prticas sanitrias, fundamentalmente como prtica cientfica que visa as aes coletivas de sade, em funo do bem estar de uma coletividade.

    O questionamento, que a maioria dos estudos mais crticos tem levantando, de que as referidas prticas no tem contribudo para a consecuo daquele fim, devido sua posio subalterna no conjunto das aes de sade e/ou inadequao da organizao dos seus instrumentos meios.

    No entanto, a compreenso deste campo de atividades como um campo de prticas sociais, que expressam o conjunto das relaes sociais, das quais a Sade Pblica um componente orgnico, tem sido muito mais um privilgio das anlises, que tm como objeto de estudo a

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    prtica mdica em geral.

    Vrios autores, entre eles Maria Ceclia Ferro Donnangelo, tm mostrado que a compreenso da prtica mdica vincula perspectiva que ela , antes de tudo, uma prtica social de um modo de produo especfico, e com isto afirmam que a mesma constitui o conjunto das prticas sociais, no interior das sociedades capitalistas, que visam a produo e a reproduo das relaes de explorao econmica de classe e de dominao poltica-ideolgica particular, do capital sobre o trabalho - da burguesia sobre o proletariado.

    Maria Ceclia Ferro Donnangelo tem enfatizado que a anlise dos servios de sade permite, como ngulo privilegiado, uma compreenso do carter social da prtica mdica, ao mesmo tempo em que possibilita um entendimento de como estas prticas efetivam a sua ao social em sociedades concretas.

    Em funo deste tipo de abordagem, achamos que a anlise do conjunto das prticas sanitrias em sociedades capitalistas dever buscar, a princpio, o entendimento destas prticas enquanto constituem relaes sociais, para que isto possa permitir o estudo da problemtica da adequao ou no das mesmas a fins determinados, no plano tcnico/organizacional.

    muito difcil exercer uma determinada atividade, de modo espontneo, e depois transform-la em seu objeto de estudo. Porm, se o seu objetivo nesta atividade o seu exerccio tambm crtico, torna-se necessrio um certo afastamento daquela espontaneidade e o aprofundamento

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    do seu conhecimento.

    Acredito que este foi o principal motivo, que me levou a transformar a Sade Pblica em So Paulo naquele objeto de estudo, isto porque, depois de atuar vrios anos nesta rea, com a perspectiva de modific-la, no sentido de fazer com que sua atuao fosse mais dirigida segundo os interesses populares, achei que tal interveno era feita, na maior parte das vezes, de um modo pouco elaborado.

    Quando comecei a pesquisar o tema, com a necessidade de delimitar o campo de estudo, deparei-me com vrios problemas, que tentarei explicitar no decorrer do trabalho. Inicialmente, eu deveria entender o como e o porqu do surgimento das prticas sanitrias em So Paulo, e depois tentar extrair as implicaes que este processo deixou em todo o seu desenvolvimento futuro. Neste trabalho a anlise centrou-se basicamente, no estudo da emergncia das prticas sanitrias no Estado de So Paulo, pois, percebi, durante a sua realizao, que este momento era um dos mais ricos em dados e fatos para a compreenso das prticas sanitrias em So Paulo, como constituintes das relaes sociais que se concretizaram na sociedade brasileira contempornea.

    Ao comear pesquisar a sua emergncia histrica, defrontei-me com duas questes importantes: a primeira era a de delimitar o campo das prticas sanitrias, e a segunda a de situar a poca histrica do seu surgimento.

    Assim, dividi a minha abordagem em duas etapas: na primeira procuro compreender quais as peculiaridades do objeto e como o mesmo foi, , e poderia ser abordado,

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    buscando situ-lo no interior das relaes sociais capitalistas, que se efetivaram principalmente na Inglaterra; em outra busquei verificar, no interior da sociedade paulista, como as prticas sanitrias emergem e se efetivam enquanto prticas sociais e, ao mesmo tempo, tirar algumas concluses que pudessem contribuir para a compreenso atual deste campo de saber e prticas.

    A alternativa para a primeira etapa, a grosso modo, foi a de buscar, em estudos j realizados sobre as prticas sanitrias em So Paulo, os conceitos que eles contm de forma explcita ou implcita. Mas, para no cair numa escolha pessoal dos referidos estudos, procurei aqueles que se consagraram como referencial, tanto para o trabalho terico quanto prtico, neste campo de atividade, isto , a partir das concepes dominantes nas instituies universitrias e naquelas prestadoras de servios de Sade Pblica, procedendo, posteriormente, construo metodolgica para a anlise do tema proposto.

    Quanto segunda etapa, deparei-me com um dado importante, o de que a emergncia institucional das prticas sanitrias d-se conjuntamente com o surgimento da Repblica Velha, e isto mais evidente naquelas regies do pas que concentram a vitalidade econmica e poltica do perodo, como So Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Diante desta constatao, procurei desenvolver o tema, tendo como pano de fundo o fato de que as prticas sanitrias no Estado de So Paulo eram organicamente ligadas s prticas sociais, que construram a relao de dominao das oligarquias agrrias com os outros grupos sociais.

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    O desenvolvimento deste trabalho ter-se-ia tornado impossvel se no fosse a orientao dada pela Prof. Dra. Maria Ceclia Ferro Donnangelo.

    Tristemente, quando da produo final do trabalho, ocorreu a morte trgica de Ceclia. Isto abalou profundamente todas as pessoas que a conheciam, no s pela perda intelectual que este fato significou, mas tambm, pelo que sua ausncia representa afetivamente. Ceclia sempre foi uma pessoa que colocava muito carinho nas coisas que fazia, e irradiava este carinho para todos ns que tivemos o privilgio de conhec-la e de trabalhar ao seu lado. Apesar de ter sido uma das pensadoras mais importantes da atualidade, na rea de Cincias Sociais, em nosso meio, vemos que a sua produo intelectual no composta de uma vasta obra assinada de punho prprio, isto porque, ela sempre preferiu escrever coletivamente, ou seja, dedicando-se formao daqueles que se mostravam interessados no seu campo de estudo. Considero que este trabalho faz parte desta produo coletiva, sem com isso querer dizer que Ceclia seja responsvel por todas as idias e concluses desenvolvidas neste trabalho. Entretanto, quero homenage-la atravs do esforo que dedicou para a finalizao deste estudo.

    Quero deixar explcito o meu agradecimento ao Prof. Eurivaldo Sampaio de Almeida, que com sua amizade me deu a devida segurana para continuar a tarefa.

    Particularmente, gostaria de agradecer minha companheira Ermnia Silva e aos meus amigos Ana Ceclia Sucupira e Ricardo Bruno M. Gonalves, que foram fundamentais, tanto no apoio que me deram intelectualmente,

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    como emocionalmente.

    Aos companheiros do Departamento de Medicina Social e Preventiva da Faculdade de Cincias Mdicas da PUC - Campinas, agradeo pela compreenso que tiveram comigo quando no pude colaborar para a manuteno do nosso trabalho coletivo, com o mesmo empenho de antes.

    Dedico este trabalho, tambm aos profissionais de sade, que vm tendo uma participao importante na luta pela mudana dos rumos da poltica de sade no Brasil, junto populao brasileira: em particular os meus colegas mdicos sanitaristas da 1 turma do Curso de Formao de Mdicos Sanitaristas para o nvel local, da Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo, de 1976.

    O Autor

  • Captulo I

    As Prticas Sanitrias e as Relaes Sociais

    Capitalistas

    Parte I - As Prticas Sanitrias como Objeto de

    Estudo

    A maioria dos estudos sobre Sade Pblica realizados no Brasil apresenta como caracterstica principal, o fato de considerarem o objeto das prticas sanitrias como anistrico1, ao mesmo tempo em que confere uma dada historicidade a este campo de prticas, a partir da histria dos meios de realizao deste objetivo. O que diferencia as etapas histricas, nesses estudos, a evoluo cientfica

    1 Emprega-se aqui o termo no mesmo sentido que foi dado por Maria Ceclia Ferro Donnangelo em seu livro Sade e Sociedade: Historicidade dos meios e anistorieidade dos objetivos a frmula na qual sintetiza Laura Conti o carter dessa histria cronolgica, escrita em termos de uma aprendizagem progressiva por parte da humanidade dos meios mais idneos para curar a enfermidade. Donnangelo, M. C. F. e Pereira, L. - Sade e Sociedade, Duas Cidades, So Paulo, 1979, p. 16.

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    destes meios ao longo do tempo, ou seja, o que caracteriza os sucessivos perodos a incorporao de um maior ou menor grau de cientificidade e/ou racionalidade queles meios.

    Portanto, esses estudos, que reduzem as alteraes no campo das prticas coletivas de sade ao processo de produo de conhecimentos, segundo uma viso bem particular deste processo, enquanto uma sucesso linear de progressiva acumulao da verdade cientfica, no permite identificar o que a caracterstica central e uniforme destas prticas, e que se expressa fundamentalmente no conjunto.

    Este conjunto de prticas apresenta em comum o fato de que o seu objeto de ao o coletivo, mesmo que este seja designado de modo diferente, a partir das vrias conotaes que lhe so imputveis, dando-lhes a aparncia de se constiturem em prticas distintas em todas as suas caractersticas. No entanto, estas distines expressam a prpria caracterstica bsica destas prticas, e que a possibilidade de seu objeto assumir mltiplas formas de interpretao.

    Estas diferentes concepes que se podem construir sobre o coletivo, e que so produto das diferentes formas concretas de designao do social, possibilitam uma diferenciao correspondente no modo de trat-lo no mbito das prticas. Para o conjunto das concepes que tomam o coletivo como exterior aos indivduos, abre-se uma perspectiva de abordagem das prticas sanitrias, que lhes d um tratamento semelhante s anlises da histria das cincias naturais, e para aquelas outras concepes que o tomam enquanto social, possibilitam-se as diferentes perspectivas

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    de abordagem que se encontram dadas sobre este mesmo objeto - o social.

    Maria Ceclia Ferro Donnangelo expressa isto ao escrever:2

    Essa multiplicidade de objeto e de reas de saber correspondentes - da cincia natural cincia social - no indiferente permeabilidade aparentemente mais imediata desse campo a inflexes econmicas e poltico-ideolgicas. O compromisso, ainda quando genrico e impreciso, com a noo de coletivo, implica a possibilidade de compromissos com manifestaes particulares, histrico-concretas desse mesmo coletivo, dos quais a medicina do indivduo tem tentado se resguardar, atravs do especfico estatuto de cientificidade dos campos de conhecimento que a fundamental. Claro est que no se pretende afirmar aqui a invulnerabilidade histrica da medicina individual. Poder-se-ia dizer, de outra forma, que as prticas designadas de sade coletiva, sendo passvel da mesma ordem de alteraes na produo, distribuio e consumo de servios que afetam a medicina individual, encontram-se, tambm em termos de sua(s) estrutura(s) de saber, em condies de acionar alternativamente mltiplas possibilidades, em resposta a condies histrico-sociais especficas. Particularmente porque, entre os objetos que designa como passveis de interveno, encontra-se o prprio social, ainda que invariavelmente conceptualizado (tal como se apresenta, alis, no campo mesmo das Cincias Sociais).

    A histria da Medicina Social e da prpria

    2 Donnangelo, M. C. F. A Pesquisa na rea da Sade Coletiva no Brasil - A Dcada de 70, in Ensino da Sade Pblica, Medicina Preventiva e Social no Brasil,ABRASCO, Rio de Janeiro, 1983.

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    Sade Pblica revelam, no o desenvolvimento linear de um campo de conhecimento, mas as inflexes conceituais e polticas prprias de um campo imediatamente atravessado por distintas posies, face s possibilidades de organizao da vida social.3

    Desta forma, pode-se verificar que as prticas centradas no individual e no biolgico, como as da medicina quando tornadas em instrumentos de interveno do coletivo, passam a compor o conjunto das prticas coletivas de sade. Isto , quando o cuidado mdico visto como medida sanitria, ele visa o coletivo que os indivduos (enquanto colees) expressam. Por exemplo, ao se buscar o tratamento individual de um tuberculoso no mbito das prticas sanitrias, isto estar sendo feito na medida em que este indivduo doente considerado como um meio de cultura e de propagao de bacilos e, portanto, semelhana do meio ambiente, que objeto de ao das prticas sanitrias do tipo de saneamento ambiental.

    Alm do que, a anlise acima daquela autora permite afirmar que a concepo que se elabora sobre o referido coletivo possibilita a criao de diferentes caminhos na compreenso das referidas prticas coletivas de sade. Assim sendo:

    1- quando o coletivo tomado como exterior aos indivduos, adquirindo restritivamente o estatuto de meio externo, as prticas sanitrias so entendidas como prticas cientficas, que visam a sade e a felicidade de uma coletividade (como coleo de indivduos). Nesta perspectiva, os objetivos destas prticas sero sempre os mesmos e

    3 Donnangelo, M. C. F. A Pesquisa na rea da Sade Coletiva no Brasil - p.21

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    sero atingidos progressivamente, com a evoluo linear e sucessiva do conhecimento cientfico sobre o meio externo. Os instrumentos destas prticas sero entendidos a partir da ideia, da cincia positiva, em que a verdade daquele coletivo estaria inscrita nele prprio, e iria sendo progressivamente descoberta e apreendida pela humanidade, que de posse dela obter cada vez mais o bem-estar. assim que se explica, nestes estudos, a existncia das prticas sanitrias que intervm sobre o meio ambiente, armadas com as aes de saneamento, e tambm as prticas sanitrias que intervm ao mesmo tempo sobre o meio ambiente e os agentes etiolgicos, atravs das aes embasadas na bacteriologia - a polcia sanitria e o campanhismo.

    2- quando o coletivo tomado como exterior aos indivduos, todavia adquirindo um estatuto de social, neste caso, sendo considerado como redutvel a um conjunto de aspectos do ambiente exterior que influenciariam as caractersticas sanitrias da coletividade, permite-se uma outra compreenso das prticas sanitrias. Nestes casos, entretanto, mantm-se as mesmas perspectivas que foram colocadas como caracterizando os estudos referidos, no item anterior, pois, eles tm como base metodolgica a ideia de um social naturalizado e, portanto, passvel de abordagens do tipo das Cincias Naturais. Aqui, as prticas sanitrias mantm seus objetivos anistricos, mas agora seriam influenciadas pela presena, ou ausncia, de fatores sociais externos como a pobreza, o baixo salrio, a ignorncia, a desorganizao dos recursos, tomados como fatores moduladores. Incorpora-se uma perspectiva

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    de conhecer, cientificamente, alm do meio ambiente externo, os fatores do prprio indivduo e da organizao social - burocrtico/administrativos - que dificultariam ou facilitariam a efetivao dos objetivos anistricos das prticas sanitrias. Este tipo de perspectiva mais vinculada s propostas mdico-sanitrias americana, nas quais se articula o discurso da Educao Sanitria.

    3- quando o coletivo entendido como campo estruturado de prticas sociais, que como totalidade se tornaria ponto de partida para a compreenso e estruturao das prticas sanitria, o prprio objetivo destas prticas adquire historicidade. Neste caso podem-se supor dois tipos principais de encaminhamento, para o atendimento destas prticas:

    3.1- tomar as variaes que sofram os instrumentos utilizados nas prticas sanitrias, em funo da variao do seu objeto em particular e verificar como isto se integra em organizaes socais especficas;

    3.2 - tomar a historicidade dos objetivos destas prticas e os objetos e instrumentos a elas correspondentes, onde esta prtica se efetiva. Assim sendo, elas se tornam inteligveis enquanto prticas sociais estruturadas, constitutivas de uma estrutura social determinada.

    Nestes estudos, quando se toma a estruturao do social como guardando uma relao de exterioridade por referncia ao campo particular das prticas sanitrias, tende-se a cair numa abordagem funcional deste campo. Enquanto que, quando este campo concebido como parte da estruturao do referido social, ele se torna objeto e sujeito

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    das relaes sociais que se efetivam entre os componentes infra e supraestruturais de uma dada sociedade.

    nesta ltima direo que se pretende apontar neste trabalho. Inclusive, ao se tomarem as prticas sanitrias no Estado de So Paulo como objeto de estudo, procurou-se centr-lo no momento histrico em que ficava mais cristalina a relao de constitutividade entre estas prticas e a estruturao da sociedade no Estado de So Paulo, isto , no momento histrico de sua emergncia e institucionalizao, o que ocorre na Repblica Velha.

    Ao se delimitar o Estado de So Paulo na Repblica Velha como o lugar e o perodo histrico, no qual se desenvolver este trabalho, optou-se pela anlise dos estudos disponveis na rea da Sade Pblica sobre as prticas sanitrias nesse Estado, como a melhor maneira de se captarem os principais pontos metodolgicos que os caracterizam, e a partir desse conhecimento, proceder-se construo do quadro terico referencial e explicitao do mtodo de investigao que ser adotado.

    Destacam-se duas linhas principais de anlise entre os estudos que so considerados os mais expressivos nesta rea de pesquisa, e que reproduzem as mesmas questes j abordadas anteriormente, isto :

    1- aqueles que abordam este objeto de estudo, a partir de um ngulo que toma o tipo de conhecimento cientfico, que se incorpora nas estruturas de servios de Sade Pblica, como o meio privilegiado de compreenso deste campo de prticas, e que acabam centrando suas anlises no estudo da obra cientfica de grandes personagens

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    histricos, por consider-los os portadores da cincia. Nesses estudos, ainda, toma-se o ltimo conhecimento cientfico elaborado, ou o melhor incorporado estrutura de servio, como parmetro racional para o entendimento da verdade cientfica dos anteriores;

    2- aqueles que esto centrados na anlise da organizao institucional da Sade Pblica, e nos quais acaba-se utilizando a abordagem de instituies especficas, como principal ngulo de entendimento do referido campo de prticas. Nestes, a cientificidade do campo um dado a priori.

    Vrios tm sido os estudos4 sobre o perodo da Repblica Velha em So Paulo que identificam nas figuras de Emlio Ribas e Geraldo Horcio de Paula Souza duas grandes fases histricas das prticas sanitrias em So Paulo. No

    4 Entre eles, citam-se:- Mascarenhas, R. S. - Contribuio para o Estudo da Administrao Sanitria Estadual em So Paulo, apresentado como tese de Livre Docncia Faculdade de Higiene e Sade Pblica da Universidade de So Paulo, So Paulo, 1949.- Mascarenhas, R.S. Histria da Sade Pblica no Estado de So Paulo, in Revista de Sade Pblica de So Paulo, Faculdade de Higiene e Sade Pblica da Universidade de So Paulo, 7:433-46, 1973.- Amaral, R. Ribas, o pioneiro, in Arquivos de Higiene e Sade Pblica, So Paulo, maro de 1962.- Blount, J. A. A administrao da Sade Pblica no Estado de So Paulo: O Servio Sanitrio, 1892-1918, in Revista de Administrao de Empresas, Fundao Getlio Vargas, Rio de Janeiro, volume 2, n 4, 1972.- Ferreira, C. O Dr. Emlio Ribas, Um Benemrito Servidor do Estado e Benfeitor da Humanidade, in Arquivos de Higiene e Sade Pblica, So Paulo, junho de 1936.- Ramos, R. A Integrao Sanitria: Doutrina e Prtica, apresentado com tese de Livre Docncia Faculdade de Higiene e Sade Pblica da Universidade de So Paulo, So Paulo, 1972.

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    entanto, so os de Rodolfo Mascarenhas5 que mais se tm destacado no conjunto das anlises da Sade Pblica no Estado de So Paulo. Estes estudos so uma expresso da incorporao daqueles dois tipos de anlises da Sade Pblica paulista referidos acima, alm de retratarem, fielmente, toda uma corrente metodolgica dominante ainda hoje nos trabalhos que se tm produzido, para a compreenso deste campo de prticas. Isto permite que se d, neste trabalho, um destaque particular para a anlise das obras deste autor.

    Nos seus trabalhos, Rodolfo Mascarenhas afirma que a fase de Emlio Ribas caracterizada pelo incio da incorporao das aes cientficas ao conjunto das prticas sanitrias, a partir da perspectiva bacteriolgica, e a fase de Geraldo Horcio de Paula Souza pela introduo de uma outra perspectiva, que traria para o campo das prticas sanitrias um conhecimento mais amplo dos fatores sociais, que interferem nas condies de sade da coletividade, marcada pela abordagem mdico-social (mdico-sanitria).

    Rodolfo Mascarenhas toma como ponto doutrinrio, em suas anlises, colocaes formuladas por C. Winslow, sanitarista americano da dcada de 20, tais como:

    Sade Pblica a cincia e a arte de prevenir a doena, prolongar a vida e promover a sade e a eficincia fsica e mental, atravs de esforos organizados da comunidade para o saneamento do meio e controle de doenas infecto-contagiosas, a educao do indivduo em princpios de higiene pessoal, a organizao de servios mdicos e de enfermagem para o

    5 Mascarenhas, Contribuio para o Estudo da Administrao Sanitria Estadual em So Paulo. __. Histria da Sade Pblica no Estado de So Paulo.

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    diagnstico precoce e o tratamento preventivo das doenas, e o desenvolvimento da maquinria social, de modo a assegurar a cada indivduo da comunidade um padro de vida adequada manuteno da sade. 6

    Rodolfo Mascarenhas assume ainda a perspectiva daquele sanitarista de que h trs fases evolutivas na Sade Pblica, ou seja:

    1. O perodo de saneamento emprico do meio ambiente, que vai de 1840 a 1890.

    2. O perodo de controle cientfico de doenas infecto-contagiosas, pela aplicao da bacteriologia, que vai de 1890 a 1910.

    3. O perodo moderno que se inicia em 1910 e cujas principais caractersticas so, segundo o mesmo autor:

    a - A educao sanitria como a pedra fundamental de toda a campanha moderna de sade pblica. Falando sobre o papel da educao sanitria nos servios de sade pblica, Sigerist apresenta uma imagem feliz quando afirma que sade pblica, sem a participao ativa do povo, o mesmo que um exrcito formado de oficiais sem soldados. A educao sanitria deve ter dois escopos: o conhecimento da higiene individual por parte dos participantes da sociedade e cada indivduo precisa ser um agente consciente dos servios de sade pblica.

    b - A utilizao do mdico, como uma fora real, na preveno e pela organizao de servios para o exame mdico de todas as pessoas sadias ou

    6 Mascarenhas, R. S. A Pesquisa na rea da Sade Coletiva no Brasil - A Dcada de 70, in Ensino da Sade Pblica, Medicina Preventiva e Social no Brasil, ABRASCO, Rio de Janeiro, 1983.p.16

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    daquelas que se encontram no estado inicial incipiente de doena (...)7

    Estes pontos doutrinrios bsicos sobre o que a Sade Pblica e qual a sua histria implicam uma determinada perspectiva metodolgica, que ser assumida por Rodolfo Mascarenhas, para a compreenso do campo das prticas sanitrias em situaes sociais particulares, como a de So Paulo. Dentre estas perspectivas assinala-se:

    1. Ao considerar a Sade Pblica como meio de (...) prevenir a doena, prolongar a vida, promover a sade e a eficincia fsica e mental (...) e como base para a expresso dos (...) princpios fundamentais para a felicidade de todos os povos (...)8, est considerando os objetivos das prticas sanitrias como independentes de qualquer processo histrico. Em qualquer situao e lugar, reduz a compreenso destas prticas anlise dos meios necessrios, que permitem atingir aquele objetivo anistrico, imputando transformao destes meios a responsabilidade pela transformao histrica da Sade Pblica.

    2. discutindo aqueles meios, atravs de uma viso evolutiva dos mesmos, que tenta entender a histria deste campo de prticas. Em outras palavras, aquilo que se entende por superao cientfica da fase emprica pela bacteriolgica o que explica sua histria. Os meios iro ser concebidos conforme as concepes sobre os diferentes aspectos

    7 Mascarenhas, R.S. A Pesquisa na rea da Sade Coletiva no Brasil - A Dcada de 70, in Ensino da Sade Pblica, Medicina Preventiva e Social no Brasil,p,158 Ibidem, p. 16.

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    do social e desta forma que estes aspectos se tornam objeto das prticas sanitrias: os que dizem respeito ao meio ambiente, onde vivem as pessoas, sero objeto das aes de saneamento, os que se referem ao agente etiolgico sero passveis do (...) controle cientfico (...) pela aplicao da bacteriologia (...) e os que se referem ao hospedeiro permitem desde uma ao individual educativa, no sentido da higiene pessoal, at as aes organizadas (mdico-sanitrias) para o (...) diagnstico precoce e o tratamento preventivo das doenas(...) (antes que elas atinjam a coletividade).

    Dentro desta concepo, o autor assume que a sociedade um todo homogneo (comunidade), passvel de uma ao harmnica dos homens, pois, o lugar em que se d o desenvolvimento da maquinaria social, aliada aplicao de uma determinada racionalidade cientfica, que asseguraria a (...) cada indivduo um padro de vida adequado manuteno da sade (...) Com tudo isto a anlise da histria da Sade Pblica se reduz dos instrumentos necessrios para as suas aes, sendo estes compreendidos enquanto formas particulares, e cada vez mais abrangentes, evolutivamente, do conhecimento cientfico do homem, do agente etiolgico e do meio. E foi, para este autor, a maior racionalidade cientfica adquirida por estas teorias, que se tornou responsvel pela transformao, no sentido linear e evolutivo, das prticas sanitrias.

    Estas bases metodolgicas apresentavam vrias implicaes, mas entre elas devem-se ressaltar as seguintes:

    1. A identificao dos problemas sanitrios e dos meios

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    para solucion-los so atribuies da cincia e de seus portadores, os tcnicos. Assim, a maior ou menor dificuldade com que se defrontaro as aes destes tcnicos ser devida ou falta do conhecimento cientfico ainda no atingido naquele momento histrico, ou irracionalidade da administrao dos meios necessrios para efetiv-las. Nesta abordagem no se permite uma anlise dos problemas sanitrios, a partir das diferentes necessidades sentidas pelos diversos grupos sociais, que procurariam impor na sociedade a satisfao de seus interesses, porque o discurso cientfico que teria legitimidade de reconhecer aqueles problemas em uma sociedade, que se comportaria como um todo harmonioso, onde no h lugar para os conflitos entre os grupos sociais.

    2. O avano histrico de determinados conhecimentos cientficos obedece a um sentido linear e evolutivo, de tal forma que o ltimo conhecimento produzido o parmetro de racionalidade e legitimidade cientfica dos anteriores; alm disso, esses conhecimentos cientficos so produtos das aes de indivduos portadores de uma genialidade particular, e isolados dos diversos interesses que permeiam uma formao social especfica. assim que Rodolfo Mascarenhas historia as fases da evoluo das prticas sanitrias em So Paulo, a partir das figuras de Emlio Ribas e Geraldo Horcio de Paula Souza, ao mesmo tempo em que as caracteriza como as fases da cincia do contgio e da cincia do indivduo e da organizao, respectivamente. Quando concebe a fase miasmtica9

    9 Corresponde ao perodo emprico, no qual o miasma seria o agente etiolgico das doenas, existindo em meio fsico propcio, como a sujeira,

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    como no cientfica, imputando-lhe a conotao de emprica, adota a concepo de que s tornar-se-o cientficas, em Sade Pblica, as teorias que se adequarem aos padres de racionalidade das cincias positivas, nas quais o objeto do conhecimento contm em si mesmo uma verdade absoluta, que dever ser apreendida pela ao neutra do mtodo cientfico, segundo os padres tradicionais das cincias naturais.

    O modelo bsico sobre o qual estes conhecimentos se efetivam aquele que tem uma concepo semelhante ao da Histria Natural da Doena, formalizada por Leavell e Clarck na dcada de 1940, e muito bem discutida por Antonio Sergio Arouca10:

    A Histria Natural como cincia da ordem (...) baseada num esquema cartesiano (...) [onde temos a histria do processo sade/doena em sua regularidade (...) [nela] o aparecimento da doena est determinado...pela relao (...) entre (...) o homem, o ambiente e os fatores determinantes das doenas (...) [e] (...) onde os homens e os agentes so vistos como os pratos de uma balana e o ambiente como fiel da mesma (...) O ambiente considerado como uma composio homognea entre os nveis fsico-qumico, biolgico e social, que jogariam um idntico papel na determinao mecnica do equilbrio.

    (...) [esta] estrutura (...) importada diretamente da epidemiologia (...) [na qual] o carter dos elementos desta estrutura o conjunto daquelas variveis que influenciam o equilbrio mantido

    lixo, esgoto, vento, etc.10 Arouca, A. S. - A Histria Natural das Doenas, in Sade em Debate, CEBES, So Paulo, n 01, 1976.

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    entre estes elementos (a geografia, o clima, o salrio, a baixa resistncia, idade, sexo e outros) (...).

    (...) a noo de causa em medicina no sculo passado estava nitidamente influenciada por uma ptica positivista e (...) unicausalista de determinao (Koch), se bem que os estudos da chamada medicina social j apontavam para a multicausalidade (...) (Chadwick) (...) noo de causa em epidemiologia distribui os caracteres dos elementos em um espao plano de identidades de essncias(...)iguala-se o estado econmico (...) com o soro que permanece nas seringas, (...) com a higiene deficiente (...) o mecanismo pelo qual opera o conceito de causalidade na epidemiologia... o reducionismo, (...) [assim] liberta-se do unicausalismo para prender-se nas redes de causalidade (...) [como] uma nova forma de monismo causal (...) [neste] qual o lugar (...) assinalado ao social e que tipo de viso de mundo implica (...) [?]

    No modelo original de Leavell e Clarck o social participa simultaneamente como fator causal, ligado ao hospedeiro e ao meio ambiente, (...) como status econmico (...), atitudes em relao ao sexo (...) e (...) [como] instituies (...) como famlia, comunidade, (...) [aqui] o social no aparece como um mecanismo explicativo(...) mas como um carter dos indivduos (...) Tal mecanismo de afirmao-negao do social (...)poderia denominar...[como] mitificao do social... Entendendo como mito um sistema (...) que produz uma deformao (...) dos conceitos (...) despolitizando-os (...) Assim (...) populao e comunidade (...) servem para neutralizar o conceito de classes (...) o social (...) contribui como atributo dos elementos e no como explicao (...) a dimenso privilegiada do

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    social atributo individual, em detrimento da determinao estrutural e das relaes sociais (...).11

    O que permite retomar e dizer que ambas as perspectivas, a bacteriolgica e a mdico-sanitria, constroem e incorporam uma concepo do social que o nega enquanto totalidade contraditria, estruturada a partir das relaes dos homens entre si, e destes com a natureza, na produo da vida material, e que permitem absorver aspectos fundamentais do social sobre o qual falam miticamente e com diferentes graus de abrangncia, e sobre os quais instrumentalizam aes de transformao.

    A partir dos questionamentos que foram colocados por referncia s bases metodolgicas de Rodolfo Mascarenhas, e do apontamento dos limites e das implicaes que acarretam, pode-se assumir, neste trabalho, a perspectiva de que a anlise das prticas sanitrias devero dar-se em um contexto terico, no qual se recupere a idia de que as mesmas so constitutivas das relaes sociais, j que prticas sociais estruturadas.

    Isto no ser feito a partir de uma exposio formal do quadro terico, que se torna referencial para este estudo particular, pois, procurar-se- realizar um trabalho conjunto de compreenso das prticas sanitrias, conforme a perspectiva acima apontada, no interior de uma anlise de sua realizao em uma sociedade concreta. Como se pde constatar, para as prticas sanitrias desenvolvidas em So Paulo, a importao da mesma base cientfica, que foi fundamento

    11 Arouca, A. S. - A Histria Natural das Doenas, in Sade em Debate PP. 15-19.

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    da estruturao da Sade Pblica nos pases capitalistas centrais, procurar-se- empreender aquela anlise conjunta, inicialmente, para o lugar e o modo como surgiram aquelas teorias cientficas naqueles pases, para posteriormente procurar-se compreender o processo de emergncia das prticas sanitrias no Estado de So Paulo.

    Para tanto, no se adotar uma perspectiva, segundo a qual a sociedade brasileira seria pensada como uma espcie de importadora daqueles procedimentos cientficos, tais e quais se realizavam nos pases de origem, mas entendendo este processo como o de uma resposta s necessidades economias e polticas, geradas pela dinmica de reproduo das condies de realizao do capitalismo no Brasil, na era agroexportadora cafeeira. Em outros termos, entende-se que aquelas teorias sofreram um processo de reelaborao, que possibilitou sua efetiva contribuio para a implantao e consolidao de um certo tipo de sociedade, isto , sendo digeridas de acordo com o modo particular como, no Brasil, se realizam, sob a forma oligrquica, as relaes sociais da Repblica Velha.

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    Parte II - As prticas sanitrias nas formaes sociais capitalistas

    A origem das prticas de sade, que pode ser detectada em momentos anteriores s formas sociais contemporneas, no imprime o perfil destas prticas na atualidade, pois, com o surgimento da era capitalista, os elementos constitutivos daquelas prticas so postos e repostos, conforme as novas relaes sociais que se realizam historicamente.12

    Sem dvida, os momentos nos quais melhor se expressa essa relao so marcados pelo Sanitarismo na Inglaterra, pela presena da Polcia Mdica na Alemanha, e pela Medicina Social na Frana.

    O surgimento desses diferentes movimentos tem merecido estudos sistemticos por vrios autores. E estes, por mais diferentes que possam ser suas perspectivas, tm tido, como que de maneira consensual, a opinio de que aqueles movimentos nascem colados nova ordem social.12 nesta direo que apontam vrias observaes feitas por alguns autores que estudam as prticas de sade, dentre as quais citamos a de Maria Ceclia Ferro Donnangelo: diferentemente de outras prticas sociais cuja origem coincidente com a prpria emergncia ou com o desenvolvimento da sociedade capitalista, a medida tende a revestir-se mais facilmente de um carter de neutralidade, faz-se s determinaes especificas que adquire na sociedade de classes. Analisar a especificidade assumida pela pratica mdica na sociedade de classes implica, primeiro, romper com essa concepo de neutralidade, buscando identificar, em todos os aspectos da prtica, as formas pelas quais ela exprime as determinaes prprias a essa estrutura [...], Donnangelo, M.C.F. e Pereira, L. - Sade e Sociedade, Duas Cidades, So Paulo, 1979, pp. 29 - 30.

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    Tem-se enfatizado que os processos de surgimento e consolidao das relaes de produo capitalista nos diferentes pases foram marcados por especificidades significativas, que se traduziram na diferenciao das formaes sociais.13

    Para este estudo, inicialmente, interessa entender como esses processos especficos determinaram os servios de sade nestas diferentes realidades sociais, em particular no tocante aos traos que iro especificar as prticas sanitrias.

    A Inglaterra tem sido o objeto privilegiado para as anlises que, dos mais variados ngulos, tm como objetivo compreender o nascimento das relaes sociais capitalistas; e no tem sido diferente naquelas que tm-se preocupado com o surgimento das prticas de sade. o fato de ter sido o plo hegemnico do desenvolvimento do capitalismo14 que lhe tem dado este destaque, o que se tem traduzido na riqueza de informaes, dados e anlises disponveis.

    O sculo XVIII, na Inglaterra, um momento de grandes transformaes sociais e institucionais. J em 1640 d-se a revoluo burguesa15e16 naquele pas, aps a fase 13 Como faz Nicos Poulantzas na sua anlise sobre os diferentes modelos da Revoluo Burguesa, que se gestaram na Inglaterra, na Frana e na Alemanha, Poulantzas, N. - Poder Poltico e Classes Sociais, Martins Fontes, So Paulo, 1977, pp; 164-182.14 [...] Nessa obra, o que tenho de pesquisar o modo de produo capitalista e as correspondentes relaes de produo e de circulao. At agora, a Inglaterra o campo clssico dessa produo.... Marx, K. - O Capital, Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, vol. I, livro 1, 1971, pp. 4 e 5 - quando se referia ao fato de ser a Inglaterra, desde a origem do modo de produo capitalista at o sculo XIX, o pas onde melhor se ilustravam as suas anlises.15 Poulantzas. Op. cit, p. 164.16 A revoluo de 1640, apesar de ter lanado as bases da dominao poltica

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    de acumulao primitiva do capital que, diferentemente da Frana e da Alemanha, no se assenta na organizao poltica do Estado Absolutista.17

    O perodo que vai do sculo XVII at o XVIII, economicamente se caracteriza como aquele que se d passagem da fase de capitalizao da renda fundiria para a de revoluo urbano-industrial, sendo que, no comeo do sculo XIX, temos a consolidao da fase industrial.18

    No plano institucional verifica-se, em 1601, na era Elizabetana, a instituio da Lei dos Pobres, na qual a pobreza era vista como consequncia do no-trabalho19. A partir de 1934, com a reforma desta Lei, a pobreza passa a ser vista como uma expresso das condies de vida do trabalhador, e como tal se torna uma questo social.20

    da burguesia, no lhe trouxe o poder poltico. A sua dominao econmica se d, at 1832, poca do Reform Act, sob a hegemonia poltica da nobreza. Para melhor informao veja-se Poulantzas, N. - Poder Poltico e Classes Sociais Poder Poltico e Classes Sociais, p. 166.17 Ibidem, p. 167-8.18 Ibidem, p. 165.19 Aos mtodos violentos de preveno da vadiagem e da mendicncia vem logo agregar-se o reconhecimento oficial do pauperismo, e a formalizao da assistncia ao indigente torna-se significativa com a Lei dos Pobres de 1601[...] O pobre se define justamente pelo no-trabalho, mas este no-trabalho conceptualizado como indigncia ou mendicncia, jamais como desemprego [...]. Donnangelo, M.C.F. e Pereira, L., Sade e Sociedade. pp. 62 e 63.20 [...] a pobreza no assumiu diretamente a forma de questo social, e a assistncia representou papel significativo entre as condies que impediram a emergncia, sob forma contundente, na cena poltica do problema da necessidade como questo social... O Reform Act de 1832 marca, ... o incio de uma nova modalidade de manipulao das condies econmicas e polticas ... (voltada) ... para a preservao da ... (organizao econmica-

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    Nova margem!Por esta Lei, uma das maneiras de combater a pobreza era atravs das casas de trabalho21, de cunho paroquial, a forma administrativa imperante na Inglaterra da poca, e onde cada parquia era responsvel pelos seus pobres.22

    no interior destas instituies, as casas de trabalho, que se instala o cuidado mdico ao pobre, o qual se constitui no inicio do processo de medicalizao da pobreza. A perspectiva destes servios de sade, assim como a separao dos pobres do resto da sociedade, tinha em vista criar barreiras para que a pobreza no contaminasse, com seus perigos23, os outros grupos sociais, diretamente relacionados produo material ou gesto social.

    No fim do sculo XVIII e comeo do sculo XIX h um grande aumento da pobreza e das dificuldades sociais para enfrentar, s que agora a mesma assumida, como j se viu, como resultado das novas relaes sociais, que haviam amadurecido na Inglaterra as relaes sociais do capitalismo industrial. Os pobres no eram fruto do no-trabalho, mas

    social) ... com um mnimo de rupturas. Essas rupturas se impunham agora como necessrias ... e, entre elas, a modificao, at certo ponto radical, do estatuto da pobreza....21 Donnangelo, M.C.F., e Pereira, L. Sade e Sociedade, p. 65.22 Para uma abordagem mais especfica ver Dobb, M. - A evoluo do Capitalismo, Zahar, Rio de Janeiro, 1973; particularmente captulos VI e VII, e ainda: Esse controle muito direto exercido pelas comunidades locais implicava mesmo um princpio de reteno geogrfica do pobre, o qual pertencia parquia ou freguesia. Donnangelo, Op. cit., p. 63.23 Aqui o sentido do perigo tem duplo aspecto: por um lado ele entendido a partir da concepo de que o pobre um indolente, possa contaminar os que trabalham, e por outro a partir da constatao de que so os pobres os principais portadores das molstias que levam doena e morte em idades precoces.

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    eram os prprios trabalhadores empobrecidos pelas relaes de explorao.

    Este um novo contexto, tambm poltico, onde a burguesia industrial ir tornar-se a classe hegemnica do interior do bloco no poder24, definido institucionalmente pelo Reform Act de 1832. Neste, o proletariado, tambm, se constitui em uma fora social, e diga-se que, na Inglaterra, as outras classes sociais, como a classe mdia, no tiveram peso poltico importante como na Frana e na Alemanha.25

    dentro desta nova situao social, a do sculo XIX, com a industrializao e a urbanizao, que ocorre a medicalizao do ambiente, a qual, segundo Rosen, se d sobre a forma de um projeto de Reforma Social que, posteriormente, se transforma em um programa de reforma sanitria, que era praticamente vivel.26

    Em 1834, com o novo Parlamento ingls, forma-se uma comisso para estudar e propor solues para a Lei dos Pobres elisabetana, dada a nova realidade da sociedade inglesa. Esta Lei tinha-se tornado um obstculo para a livre relao entre o capital industrial e a fora de trabalho, porque, devido a seu carter paroquial e pr-capitalista no trato da pobreza, impedia o livre vai-e-vem do trabalhador, segundo a dinmica do mercado da fora de trabalho, amarrando-o a uma localidade especfica (o municpio, a parquia).

    E, assim, o trao mais marcante da Emenda Lei

    24 Poulantzas, N. Poder Poltico e Classes Sociais. p. 166.25 Ibidem, p. 168.26 Rosen, G. O que medicina social? E Poltica econmica e social no desenvolvimento da Sade Pblica. In Da Polcia Mdica Medicina Social, Graal, Rio de Janeiro. 1980.

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    gerada na poca o de liberar o pobre do carter paroquial e excluir o pobre capaz e sua famlia dos cuidados da Lei.27

    Esta uma poca de profunda reformulao administrativa do aparelho do Estado e neste processo se destaca a presena dos discpulos de Jeremy Bentham, cuja filosofia tinha como um dos propsitos (...) tratar dos problemas pblicos em bases racionais cientficas28, dentro da perspectiva do utilitarismo racionalista. Entre eles desponta Edwin Chadwick, um dos principais realizadores da referida Emenda Lei dos pobres.

    Edwin Chadwick tinha em perspectiva a fuso, na prtica, dos princpios da Economia Clssica e do benthanismo29; e atravs da execuo destes princpios, liderou todo um movimento de reformulao da mquina estatal, adequando-a nova realidade poltica e econmica da Inglaterra do sculo XIX.

    Em 1842, Edwin Chadwick, realiza uma investigao, que se tornou clssica, o Inqurito Sanitrio das Condies da Populao Trabalhadora da Inglaterra30, no qual mostra a relao entre a presena das doenas e as pssimas condies de moradia, a falta de esgotos, a ausncia de gua limpa, erros na remoo e tratamento do lixo, etc.

    Nesta poca, advoga uma relao entre pobreza e doena, na qual esta surge como conseqncia daquela; torna-se adepto da teoria miasmtica, defendendo a idia de

    27 Rosen, G. O que medicina social? E Poltica econmica e social no desenvolvimento da Sade Pblica, p. 22828 Ibidem, p. 230.29 Ibidem, p. 231.30 Ibidem, p. 236.

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    que a sade uma questo de engenharia e no de medicina, pois, esta aponta os problemas, mas aquela que os enfrenta e resolve.

    A Sade Pblica, enquanto Sanitarismo, configurar aquilo que sero as prticas sanitrias, restringindo-as a um conjunto de aes sobre os fatores que sero encarados como os responsveis pelo aparecimento da doena coletivamente, e identificados com o meio urbano, que ser reduzido disponibilidade maior ou menos das condies adequadas de moradia, esgoto, etc. O cuidado mdico individual no teria a sade como objeto, mas a doena, e por isso tido como limitado, dentro da viso miasmtica, tendo um certo valor para mostrar ou apontar o problema.

    Entretanto, a Reforma Sanitria, mesmo que baseada numa teoria parcial da causao das enfermidades, teve resultados significativos, alterando as condies epidemiolgicas da classe trabalhadora, no tocante a algumas doenas infectocontagiosas, principalmente as chamadas pestilncias31. Mas, assinale-se aqui que algumas doenas em massa, como a tuberculose, tiveram seu comportamento epidemiolgico alterado tambm s custas de melhorias das condies de vida que foram antes resultado de lutas salariais dos trabalhadores.32

    necessrio, portanto, investigar de que forma as prticas sanitrias participaram dos processos sociais em curso na poca Isto , ser necessrio investigar as propores e o modo, pelo qual tero participado do aumento do exrcito

    31 Como a peste, a varola, e outras.32 Illich, I. A expropriao da sade, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1975.

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    de fora de trabalho disponvel para o capital industrial. Da mesma forma ser preciso ainda esclarecer como estas prticas se integraram ao processo de urbanizao.

    Em vez de responder diretamente a essas questes, volte-se um pouco, ainda, para aquele perodo histrico. Estava-se em uma sociedade capitalista, na qual o processo de industrializao e urbanizao se d no momento em que se amplia a presena poltica do proletariado, em constituio. interessante assinalar que, no final deste perodo, as prticas coletivas de sade, tendero a assumir um evidente papel secundrio, em relao s prticas individuais, no interior do conjunto das aes de sade.33

    O processo ingls, mas tambm o francs ou o alemo, de emergncia das prticas sanitrias um exemplo bem rico para a compreenso das prticas sanitrias como prticas sociais estruturadas infra e supraestruturalmente nas sociedades capitalistas.34 (...) (A) formalizao legal da Sade Pblica (...) encontra a (na Inglaterra) (...) seu mximo

    33 Portanto, na segunda metade do sculo XIX, o Estado ingls, [...] j garantira a presena de uma rede relativamente ampla de medicalizao representada, de um lado, pelo cuidado do pobre, de outro, pela implantao de medidas gerais de controle do ambiente, bem como das doenas transmissveis e das epidemias. A ampla categoria do trabalho encontra-se ainda excluda desse processo, com relao ao cuidado mdico individual. Ser necessria toda uma recomposio econmica, ideolgica e poltica antes que se configure a generalizao da assistncia, j na metade do sculo XX. Mas, os gastos com os quais emerge gradualmente essa recomposio, j se encontram presentes e, no apenas na Inglaterra, nas ltimas dcadas do sculo anterior. Donnangelo, M.C.F., e Pereira, L. - Sade e Sociedade. p. 68.34 Para melhor abordagem desta questo das prticas sociais, veja-se Pereira, L. - Capitalismo e Sade. Apndice em Donnangelo, M.C.F., e Pereira, L. - Sade e Sociedade. e Pereira, L. Anotaes sobre o capitalismo, Pioneira, So Paulo, 1979.

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    desenvolvimento por comparao s demais sociedades europias da poca.35

    Nas suas anlises sobre este processo, Maria Ceclia Ferro Donnangelo afirma a respeito das novas condies que respondem por ele: (...) especficas circunstncias econmicas e polticas do comeo do sculo, em particular o acentuado desenvolvimento da economia inglesa, a partir da Revoluo Industrial e a alterao do quadro poltico das fraes industriais e financeiras da burguesia, bem como emergncia e ao reforo gradual das organizaes operrias as Trade Unions.36 E ainda, que aquelas aes de Edwin Chadwick anteriormente referidas, introduziram as medidas que se consolidaram com a Lei de Sade Pblica de 1875, na qual se definem as responsabilidades e os poderes das autoridades sanitrias locais e as funes do Mdico de Sade37. Evidencia-se assim que as condies do proletariado urbano, em particular nas cidades industriais, fazem com que a questo da Sade Pblica aparea na seqncia direta da reforma da Lei dos Pobres: A necessidade de controlar, por razes econmicas e polticas, a ao dos fatores que acarretam os elevados ndices de enfermidade e de morte, vai assumir agora a forma predominante do Sanitarismo, com a adoo de medidas capazes de atingir coletivamente a populao.38

    Com essas sumrias referncias ao processo histrico, no qual se institucionalizou o Sanitarismo na Inglaterra, pretendeu-se indicar como as prticas sanitrias podem

    35 Donnangelo, M.C.F., e Pereira, L. Sade e Sociedade. p. 65.36 Ibidem, loc. cit..37 Ibidem, p. 67.38 Ibidem, loc. cit.

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    ser caracterizadas como prticas construtivas da sociedade capitalista inglesa, e por extenso sugerir a forma, atravs da qual as prticas sanitrias se articulam nas sociedades capitalistas em geral. Isto , a dinmica das relaes de produo destas sociedades determina o campo de prtica e saberes, onde se organizam as aes coletivas de sade.

    Portanto, a estruturao das prticas sanitrias na Inglaterra passou pelo modo como, nesta sociedade, o capital enquanto relao social, imprimiu sua intencionalidade aos diferentes elementos que compem.39

    39 As relaes sociais capitalistas se estruturaram a partir de relaes de produo bem determinadas, onde a marca fundamental a relao entre os proprietrios do capital e os da fora de trabalho tem como resultado a produo e realizao da mais-valia, e este processo produtivo s se viabiliza se as relaes sociais determinarem que a fora de trabalho seja uma mercadoria possvel de apropriao pelo capital; e a existncia de poderes legitimados do capital sobre o trabalho. Quando Marx diz que a dinmica interna do capital regula e determina todo o processo social do modo de produo capitalista, est expressando o fato de que as relaes sociais deste modo de produo so, infraestruturalmente, relaes econmicas entre capitais, cuja dinmica permanentemente contraditria, onde o capital que se alimenta de trabalho vivo, sob a forma de capital varivel, gera o seu contrrio, isto , o aumento relativo do capital constante (trabalho morto). Deste modo, e neste movimento contraditrio, podemos dizer, em geral, que o conflito se d entre o capital e o trabalho, pois, as categorias econmicas que eles portam se expressam como grupos sociais, com interesses particulares (prprios ou no), as classes sociais. Assim, Marx identifica no conflito entre a classe capitalista e a classe trabalhadora o ponto central dinamizador, isto , o ncleo contraditrio bsico, no modo de produo capitalista. Entretanto, s possvel entender o modo de produo capitalista como uma unidade, se se puder perceber que o movimento contraditrio do capital, enquanto categoria econmica, determinante dos conflito das classes sociais, mas ao mesmo tempo gerador de um processo superestrutural, organicamente articulado a ele, legitimador e reprodutor destes conflitos sob a sua ptica. Assim, as relaes econmicas deste modo de produo supem as relaes

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    Em outras palavras, pode-se ainda afirmar que as prticas sanitrias so prticas sociais estruturadas, de acordo com o movimento infra e supraestrutural do capital, pois, este que imprime aos agentes sociais e ao meio o seu sentido, as suas finalidades. Portanto, nesse sentido, as prticas sanitrias tomam como seu objeto os grupos sociais enquanto classes sociais, e no meio ambiente enquanto lugar de produo do capital e de reproduo das classes sociais.

    O movimento social que se completou com a hegemonia da burguesia industrial inglesa mostra que as prticas sanitrias, ao mesmo tempo em que intervm sobre a populao, no nvel econmico, discriminando-a enquanto fora de trabalho e, portanto, enquanto populao produtiva para o capital industrial, procedem a essa mesma interveno, no nvel poltico-ideolgico, tomando para si como objeto a mesma populao enquanto uma categoria homognea, formada por cidados em igualdade de condies, legitimando assim a dominao burguesa.40 Com isto, estas prticas passam a ser retraduzidas permanentemente sob a ptica da burguesia, mesmo que neste processo se absorvam demandas, dos mais variados tipo, das outras classes sociais.

    polticas e ideolgicas, este processo de articulao especfico no modo de produo capitalista, devido s particularidades das suas relaes de produo. Esta sntese foi elaborada a partir dos textos de Marx, K., pp. 712 52, e Pereira, L. - Capitalismo e Sade, Sade e Sociedade.40 Decio Saes analisa com muita propriedade a questo da dominao burguesa, o direito burgus e a cidadania, e nos sugere que... existe uma diferena fundamental entre o direito burgus e os tipos historicamente anteriores de direito (escravista, feudal), enquanto estes conferem um tratamento desigual aos desiguais (classe exploradora e classe explorada), o direito burgus , na sua essncia, o tratamento igual dos desiguais. Saes, Decio - O Conceito de Estado Burgus: Direito, Burocratismo e Representao Popular, texto mimeografado, IFCH - UNICAMP, 1982

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    As prticas sanitrias estaro executando funes do capital atravs de aes, que viabilizam a ocupao no espao urbano, submetido s relaes de produo capitalista. Note-se que no so as prticas sanitrias que iro determinar a produo da fora de trabalho ou do espao urbano capitalista, mas sim as relaes de produo capitalistas, nas quais, essencialmente, o capital designa quais sero os recursos sociais necessrios sua dinmica de produo e apropriao da mais-valia41 e como sero utilizados. Entretanto, as prticas sanitrias iro participar da reproduo da fora de trabalho e das condies materiais, nas quais a fora de trabalho se reproduzir adequadamente, segundo as necessidades impostas pelo processo de acumulao do capital. nesta circunstncia que se torna compreensvel a anlise das prticas sanitrias, enquanto prticas sociais de efeitos predominantemente infraestruturais.

    No entanto, interessante assinalar que estas prticas de sade apresentam uma peculiaridade bem diferenciada, em relao s do cuidado mdico individual, que como contraponto se comportam como prticas sociais de efeitos predominantemente, supraestruturais. Sobre estas ltimas tem-se assinalado a sua relativa impermeabilidade, em termos de (...) estrutura de saber e prtica, centrada no individual e nos biolgicos (...) [aos] efeitos de reordenaes econmicas e poltico-ideolgicas42, enquanto que para as de sade coletiva sucede uma relativa permeabilidade

    41 Veja-se nota 38, supra.42 Donnangelo, M.C.F. -A Pesquisa na rea da Sade Coletiva no Brasil - A Dcada de 70, in Ensino da Sade Pblica, Medicina Preventiva e Social no Brasil, ABRASCO, Rio de Janeiro, 1983, p. 20. Ver tambm o texto da nota 2, supra.

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    queles que efeitos.

    Em um determinado contexto social, com a sua dinmica econmica e poltica prpria, que se definir como e qual coletivo ser objeto das prticas sanitrias, e ser possvel interpretar dada uma conjuntura social concreta, as finalidades destas mesmas prticas.

    O objetivo e o objeto das prticas sanitrias se definiram historicamente no modo de produo capitalista, em torno do processo de acumulao de capital, no plano econmico e poltico. O conhecimento produzido neste campo de prticas se orientou no sentido de permitir a realizao de um especfico tipo de apropriao dos objetos de sua ao. Isto , as teorias sanitrias, seja a miasmtica, a bacteriolgica ou a mdico-sanitria, instrumentalizaram as aes de sade, que incidem sobre o coletivo, tendo em vista a reproduo das relaes sociais capitalistas de produo.

    Como as caractersticas do objeto, mais a finalidade do trabalho, determinam os meios de trabalho, de aproximao e transformao, temos que a historicidade dos meios de ao sanitria expressa historicidade dos seus objetos e das suas finalidades sociais e eles impressas.43

    Assim, a dinmica social que imprime as diferentes facetas adquiridas pelas prticas sanitrias, de tal forma

    43 As caractersticas do objeto de um lado, a finalidade do trabalho de outro, determinam as caractersticas desses meios de aproximao e de transformao - meios de trabalho. Toda a historicidade verificada no objeto e na finalidade deve ser reencontrada, portanto, nos meios de trabalho. Gonalves, R.B.M. - Medicina e Histria. Razes Sociais do Trabalho Mdico, apresentado como Dissertao de Mestrado Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo, 1979, p. 54.

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    que a passagem para a utilizao de outros meios ditada pela maior presena, no cenrio social, de foras sociais que se contrapem a determinados modos de se realizar a produo social capitalista, exigindo uma resposta por parte da sociedade que as absorva e/ou neutralize.

    Esse processo se torna bem perceptvel quando se observa o surgimento das prticas de Educao Sanitria em um momento posterior da relao entre as classes sociais polares, no capitalismo monopolista. A Educao Sanitria traz implcita a ideia de que a conscincia sanitria do indivduo um dos pontos bsicos para manter em harmonia a relao saudvel entre o homem e seu meio externo, apelando, portanto, para um esforo sistemtico e permanente no nvel de um trabalho pedaggico de formao (e transformao) da conscincia individual, segundo preceitos e normas ditadas pela higiene.44 Portanto, estas aes ideolgicas de Educao

    44 No III Congresso Brasileiro de Higiene, que se realizou em So Paulo, em 1926, o mdico C. S apresentou um verso, que deveria ser recitado diariamente pelas crianas como um meio de se manterem saudveis. Este verso foi apresentado junto ao tema -Formao de hbitos sadios nas crianas, e expressa, claramente, a concepo sobre Educao Sanitria e higiene pessoal:

    Hoje escovei os dentesHoje tomei banhoHoje fui latrina e depois laveis as mos com saboOntem me deitei cedo e dormi com as janelas abertasDe ontem para hoje j bebi mais de 4 copos de guaOntem comi ervas ou frutas, e bebi leiteOntem mastiguei devagar tudo quanto comiOntem e hoje andei sempre limpoOntem e hoje no tive medoOntem e hoje no menti

    Dutilh Novaes, H.M. - A puericultura em Questo, apresentado como dissertao de Mestrado ao Departamento de Medicina Preventiva da

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    Sanitria, fundamentalmente de tipo consensual, se somam quelas da polcia sanitria, de tipo mais coercitivo em momentos que a ascenso do movimento operrio tornou-se um dado importante, como, por exemplo, na sociedade americana, onde mais nitidamente se expressou esta corrente sanitria. Coincidentemente, as aes do tipo cooptativo/consensual eram uma proposta referente bem mais do que as prticas sanitrias, em alguns setores industriais americanos, a ponto de Antonio Gramsci denominar este perodo como aquele da fase de ao fordista dos setores dominantes.45

    Ao se consolidarem as relaes de produo capitalistas aparecem, tanto para o capital quanto para o trabalhador, o problema dos corpos sociais, pois, a reproduo do portador da fora de trabalho passa a ser agora elemento vital, para que o capital possa encontrar no mercado, em quantidades economicamente viveis, fora de trabalho a ser comprada.

    Percebe-se que isto j ocorre, mesmo quando as relaes de produo capitalistas ainda no se tinham consolidado, mas sem dvida quando estas se cristalizam que o corpo se torna uma questo social46, seja pela sua

    Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo, 1979 p. 97.45 Gramsci, A. Americanismo e Fordismo, in Maquiavel, A poltica e o Estado Moderno, Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1978.46 A questo social entendida aqui, conforme a prpria explicao dada por Jos Carlos de Souza Braga, quando explica a emergncia da sade como questo social no Brasil. ... De um lado, a gnese e transformao desses fenmenos constituem manifestaes concretas das formas, atravs das quais se reproduzem as relaes sociais de produo. De outro, manifestam-se nas prticas polticas e ideolgicas e tendem a se constituir em objeto de polticas do Estado. ... O desenvolvimento capitalista, neste sentido,

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    presena econmica ou poltica, na forma de ao dos grupos sociais especficos.

    Portanto, ao ter as classes sociais como objeto, as prticas de sade so o principal construtor da poltica social do corpo, ao incorporarem caractersticas infra e supraestruturais daquelas classes, e sempre retraduzindo-as sob o ngulo da dominao do capital sobre o trabalho.

    As instituies mdicas se tornam o nico e legtimo lugar para falar e atuar sobre os corpos, adquirindo a forma dos aparelhos de hegemonia no desempenho de sua atividade, onde se elegem determinados agentes sociais como, por exemplo, o mdico - como os portadores dos instrumentos necessrios para a execuo e efetivao daquela atividade.

    No caso ingls, as prticas sanitrias se configuraram enquanto prticas estatais, adquirindo sua conformao institucional, no interior do Estado burgus, sensu strictu. Portanto, interessam entender quais so as caractersticas bsicas desse Estado, que se tornam, tambm, traos fundamentais das prticas sanitrias.

    Como qualquer tipo de Estado, o burgus tambm (...) um conjunto de recursos materiais/humanos utilizados na conservao do processo de extorso do sobretrabalho

    constitui em questes sociais, entre outros, aqueles processos relacionados formao e reproduo da fora de trabalho para o capital. Num mesmo movimento, constitui o Estado no organismo por excelncia a regular e responder a tais questes; e ao faz-lo, o Estado capitalista e nacional amplia-as, atribuindo-lhes um carter geral e universal. Braga, J.C.S. e Paula, S.G. - Sade e Previdncia. Estudos de poltica social, CEBES, Hucitec, So Paulo, 1981, p. 41.

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    (...) e da dominao de uma classe (...) por outra47 (...). No entanto, a organizao destes recursos especfica para cada tipo de Estado, e no burgus o burocratismo esse modo particular.48

    O conjunto das aes inspiradas e coordenadas por Edwin Chadwick, seu contedo e estilo, permite sugerir que uma de suas caractersticas bsicas era o fato de serem componentes orgnicos deste modo de interveno estatal. Edwin Chadwick, ao estabelecer, como burocrata do Estado industrial ingls, as suas relaes com os setores sociais no estilo do benthanismo, o faz incorporando as questes coletivas de sade, conforme o direito burgus e no estilo do burocratismo.

    Desta forma, quando as prticas sanitrias transformam a problemtica das condies coletivas de sade, produto das relaes sociais de produo, em seu objeto de ao, passvel de um tratamento cientfico instrumentalizado, e se organizam a partir das instituies estatais, elas estaro intervindo de modo a reforar as ideias de que, se todos so iguais perante as instituies estatais, assim como tambm o so perante a cincia, as eventuais diferenas que se verificarem devero ser atribudas a caractersticas individuais

    47 Saes, D. O Conceito de Estado Burgus: Direito, Burocratismo e Representao Popular, p. 25.48 Vejamos em que consiste o modo particular ao Estado burgus, de organizao desses recursos, lembrando-nos, tambm aqui, que s um modo de organizao das foras armadas e das foras coletoras - e no, outros - cria as condies ideolgicas necessrias reproduo das relaes de produo capitalistas. Esse modo particular consiste, justamente, naquilo que Poulantzas, simultaneamente, incorporando e retificando a anlise de Weber, conceitua como burocratismo. Ibidem, loc. cit.

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    ou ao acaso, e no s diferenas reais que decorram de suas distintas posies nas relaes de produo. Com isso, realizam uma ao concreta de reproduzir a diferena entre os grupos sociais, conforme o lugar que eles ocupam nas relaes sociais de produo, ocultando-a ao mesmo tempo.

    A dinmica que o capitalismo industrial imprimiu sociedade inglesa bem diferente, no entanto, quantitativa e qualitativamente, daquela que o capitalismo agroexportador realizou no Brasil.

    Portanto, para se entenderem apropriadamente as especificidades das prticas sanitrias, que se institucionalizaro em So Paulo, dever-se- considerar que o processo de importao das teorias, que instrumentalizaram as prticas sanitrias que se desenvolveram nos pases centrais, se d atravs de uma descontextualizao/recontextualizao, conforme os padres prprios de desenvolvimento das relaes sociais capitalistas no Brasil.

  • Captulo II

    A Emergncia das Prticas Sanitrias no Estado de So Paulo

    Na dcada de 1860, no Brasil, ocorre uma inflexo no sistema de produo agroexportador base do trabalho escravo, o que leva introduo da mo de obra livre, baseada principalmente em imigrantes estrangeiros.

    Neste momento, assinala-se o desenvolvimento de uma nova regio no pas; comea a se evidenciar o oeste paulista frente ao Vale do Paraba. Inicia-se a ascenso econmica do grupo cafeeiro de So Paulo, que adota o trabalho assalariado em suas fazendas. Apesar de s na era republicana este grupo se tornar hegemnico, fazendo das instituies sociais trincheiras para o seu domnio de classe e das prticas sociais, como um todo, um campo de consolidao do seu poder, o seu incio de transformaes no conjunto das prticas sociais se d bem antes da formao da

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    Repblica.49

    No que se referem ao objeto deste estudo, as prticas sanitrias no Estado de So Paulo, ainda que no incio da Repblica ocorra a sua efetiva institucionalizao, j na dcada de 1880 com o Dr. Marcos Arruda, em plena monarquia, observa-se embrionariamente o incio destas prticas. As aes desenvolvidas por este mdico50 ocorriam no interior de seu consultrio particular e visavam, no fundamental, o combate varola, mesmo que precariamente. Entretanto, s na era republicana que se verifica uma mudana radical no conjunto de prticas sanitrias, tanto no que se refere ao seu objeto, quanto na estrutura organizacional e tcnica que as mesmas tero.

    Na dcada de 1880 o Estado de So Paulo era palco de uma epidemia de febre amarela, que se alastrava pelo interior, atingindo as zonas de plantao do caf e as reas urbanas, ligadas comercializao e exportao do produto, como o porto de Santos.51

    A partir de ento, assiste-se a uma avalanche de fatos52, que permite afirmar o surgimento de uma nova

    49 Uma anlise mais especfica encontra-se em Cardoso, F.H. Dos Governos militares a Prudente Campos Sales, e em Love, J. Autonomia e interdependncia. So Paulo e a Federao Brasileira, DIFEL, So Paulo, 1975, volume 8. 50 Mascarenhas, R.S Contribuio para o Estudo da Administrao Sanitria Estadual em So Paulo, A Pesquisa na rea da Sade Coletiva no Brasil A Dcada de 70., pp35 e 36.51 Lefrevre, E. A Administrao do Estado de So Paulo na Repblica Velha, Typografia Cupolo, So Paulo, 1937, p. 175.52 Mascarenhas, R.S. Histria da Sade Pblica no Estado de So Paulo, op. cit.

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    conjuntura, no Estado de So Paulo, quanto s prticas sanitrias. Como representativos dessa fase, podem-se lembrar os seguintes acontecimentos:- Cria-se o Instituto Vacinognico e a Comisso de Vigilncia

    Epidemiolgica para a zona urbana, em 1892.- Regulamenta-se o Laboratrio Bacteriolgico e o Servio de Desinfeco, em 1893.- Redige-se o 1.o Cdigo Sanitrio Estadual em 1894, e neste mesmo ano regulamenta-se o funcionamento do Hospital de Isolamento.- Funda-se o Instituto Butant, em 1901, e o Instituto Pasteur em 1903.53

    Estes fatos esto organicamente vinculados a todo um contexto social que se configurava no pas, e que influenciar o desenvolvimento ulterior da Sade Pblica paulista. O nascimento da Repblica, em 1889, se faz

    53 Vale a pena dar algumas informaes de outros fatos e datas, que sero tratados mais adiante, quanto ao desenvolvimento das prticas sanitrias no Estado de So Paulo. A historiografia dos servios de Sade Pblica neste Estado apresenta como marcos importantes, no perodo da Repblica Velha, os seguintes acontecimentos: O surgimento do Servio Sanitrio estadual em 1892 no mbito da

    Secretaria do Interior do Governo do Estado de So Paulo. A designao do Dr. Emlio Ribas para o cargo de Diretor Efetivo do Servio

    Sanitrio estadual em 1897, que ficou neste cargo at o ano de 1917, apesar de em 1913 ter-se licenciado desta funo.

    As reformas do Servio Sanitrio estadual em 1893, 1896, 1906, 1911, 1917 e 1925.

    A elaborao dos Cdigos Sanitrios estaduais em 1894, 1911 e 1918.A designao do Dr. Geraldo Horcio de Paula Souza para o cargo de Diretor do Servio Sanitrio Estadual em 1922

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    acompanhar de modificaes significativas nas instituies sociais e na relao entre os grupos sociais.

    No Decreto Lei54, de 1891, o Governo Provisrio determina que os estados sero os responsveis pela organizao das aes sanitrias terrestres55 nas suas respectivas regies; introduzindo aquilo que ser uma das caractersticas das aes dos governos oligrquicos56 republicanos, isto , a autonomizao das prticas regionais, o que possibilitou a alguns Estados, mais capacitados, um verdadeiro boom de aes sanitrias, como o caso de So Paulo.

    54 O decreto federal de 30 de dezembro de 1891, que se tornou explcita a lei oramentria da despesa para 1892, descentralizou, nos governos estaduais, as atividades terrestres da Sade Pblica. O Artigo 2. da mesma lei dizia: I. Ficam pertencendo municipalidade do Distrito Federal os servios

    concernentes higiene e polcia sanitria urbana, limpeza da cidade e das praias, Hospital So Sebastio, Desinfectrio, Assistncia Infncia, compreendidos os menores empregados nas fbricas e os educandos das Casas So Jos e Asilo de Meninos Desvalidos.

    II. Passaro para os Estados as despesas com os governadores ou presidentes e secretrios e com o servio de higiene terrestre nos respectivos territrios.

    O Governo Federal, na descentralizao planejada das atividades de Sade Pblica reservou como atribuio sua, em 1892, apenas a polcia sanitria martima Macarenhas, R.S -Contribuio para o estudo da administrao sanitria estadual em So Paulo, pp 36 e 37.

    55 Porque as aes sobre os portos e embarcaes martimas continuavam sob a responsabilidade do Governo Estadual.56 Aqui o sentido dado ao termo oligarquia aquele que utilizado por autores como Fernando Henrique Cardoso, Boris Fausto, Edgar Carone, Francisco de Oliveira, e outros para caracterizar os grupos sociais pertencentes classe dominante e que mantm a hegemonia poltica nos diversos estados do Brasil, no perodo da Repblica Velha.

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    O perodo histrico que marca o surgimento da Repblica tem, em So Paulo, um dos momentos mais evidentes de que algo de novo acontecia no conjunto das prticas sanitrias. Isto no se deu de forma homognea por todo o territrio nacional, dadas as diferentes caractersticas regionais, econmicas e polticas, da poca oligrquica. Sem dvida, s o processo de desenvolvimento das prticas sanitrias no Rio de Janeiro se compara ao ocorrido em So Paulo, pelo papel de destaque que assumia, por ser o centro poltico do poder central, como capital da Repblica.

    Lembre-se aqui que, apesar de at 1910 o Rio de Janeiro possuir a maior populao local, e liderar a produo industrial da poca, quando se observa a taxa de crescimento, tanto populacional, quanto econmico-industrial das duas regies, verifica-se que So Paulo se situava muito adiante do Rio, colocando-se evidentemente como regio mais dinmica do pas.

    Esta situao particular do Estado de So Paulo faz dele um lugar privilegiado para se entender como se do as relaes entre o desenvolvimento do capitalismo moderno57

    57 Capitalismo moderno, aqui, est se caracterizando o perodo histrico no qual se constitui uma burguesia agrria no Brasil, A formao da burguesia agrria brasileira no se d inteiramente no perodo circunscrito da Repblica Velha; claro que desde o Imprio essa burguesia est se constituindo, [...] no momento em que ela passa a ser a mediadora entre a fora de trabalho e as foras produtivas e ao mesmo tempo destri os mecanismos do exclusivo comercial. Mas elas somente se completam como burguesia agrria no momento da passagem do trabalho escravo para o trabalho livre[...]. Oliveira, F - A Emergncia do Modo de Produo de Mercadorias: Uma interpretao Terica da Economia da Repblica Velha no Brasil, in O Brasil Republicano, in Histria Geral da Civilizao Brasileira, DIFEL, So Paulo, 1975, Volume 8 p. 40.

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    no Brasil e o conjunto das prticas sanitrias, e qual ser a herana que estas carregaro, para o futuro, no seu interior, a partir deste processo.

    Para tanto, julga-se necessrio fazer referncia ao processo de constituio das classes sociais e a sua situao no cenrio poltico e econmico do perodo, seus interesses materiais e ideolgicos e seus modos de relacionamento, alm de delimitar as caractersticas do aparelho de Estado para, finalmente, proceder-se anlise e a interpretao da emergncia das prticas sanitrias no Estado de So Paulo, enquanto um conjunto de prticas sociais que se definem no campo de disputa das classes sociais.

    Por isso, torna-se necessrio realizar adiante a anlise do perodo histrico da Repblica Velha58, na tentativa de definir o carter de classe do Estado vigente neste perodo, e apreender o sentido dos conjuntos das prticas sociais, entre elas as prticas sanitrias, que tm ali o seu lugar de efetivao. Tal anlise priorizar os processos que ocorrem em So Paulo, dando seguimento concretizao dos objetivos colocados para o objeto deste trabalho.

    58 Repblica Velha aqui considerada como o perodo que vai do surgimento d Repblica em 1889 at 1930, de acordo com diversos historiadores.

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    Parte I - A Repblica Velha

    O conjunto dos estudos sobre o primeiro perodo da Repblica, no Brasil, rico em interpretaes e dados, entretanto, observa-se que os mesmos nem sempre esto de acordo entre si.

    Pode-se supor que essas interpretaes conflitantes, ainda que em alguns casos expressem variaes nas informaes de que se valeram os analistas do perodo, em outros se devem a diferentes modos de interpretao histrica. Por exemplo, h autores que, como Nelson Werneck Sodr, afirmam que a Revoluo de 30 expressa nitidamente os conflitos gerados entre a burguesia industrial e a agrria, enquanto outros, como Jacob Gorender ou Boris Fausto, afirmam que na realidade ela espalha a quebra da unidade inter-oligrquica.

    de consenso, entretanto, que o processo de instaurao da Repblica no Brasil reflete especificidades prprias do desenvolvimento capitalista especfico nessa sociedade, no reproduzindo os mesmos passos do desenvolvimento social dos pases centrais. Portanto, as relaes entre capital industrial e agrrio, entre burguesia e revoluo democrtica, obedecem a padres prprios de desenvolvimento.

    Florestan Fernandes tem afirmado, por exemplo, que o padro de desenvolvimento, gerado pela confluncia da economia de exportao, colonial e neocolonial, com a expanso do mercado interno e da produo industrial, se d sob o tipo de capitalismo competitivo, cujos marcos so