saude publica e ambiental

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Notas de Saúde Pública e Ambiental 1 ÁGUA E SAÚDE Pediram-me para falar sobre água e saúde e, também, na perspectiva correcta, da água como alimento. Como começar? Lembrei-me de ir a um site da Internet e procurar uma das muitas águas que se vendem por aí. Logo à primeira, verifiquei que publicitava, entre muitas outras coisas, dez razões para a consumir. Passo a citá-las e a comentar. Primeira: - “A água é essencial à vida”. Esta frase é tão evidente que nem merece comentários. Apenas algumas curtas observações. A vida começou na água, o nosso corpo é essencialmente constituído por água e aquela frase segundo a qual viemos do pó e ao pó regressaremos melhor seria substitui-la por da água viemos e à água regressaremos! Segunda razão: - “É uma fonte de beleza e de juventude”. São várias as lendas da procura da fonte de juventude. Faz parte da cultura de muitos povos que procuram nas águas a forma de impedir o envelhecimento. Mas considerá-la hoje na forma engarrafada é muito menos poético. Quanto à beleza, nada a dizer até

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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ÁGUA E SAÚDE

Pediram-me para falar sobre água e saúde e,

também, na perspectiva correcta, da água como

alimento.

Como começar? Lembrei-me de ir a um site da

Internet e procurar uma das muitas águas que se

vendem por aí. Logo à primeira, verifiquei que

publicitava, entre muitas outras coisas, dez razões

para a consumir. Passo a citá-las e a comentar.

Primeira: - “A água é essencial à vida”. Esta frase é

tão evidente que nem merece comentários. Apenas

algumas curtas observações. A vida começou na

água, o nosso corpo é essencialmente constituído por

água e aquela frase segundo a qual viemos do pó e

ao pó regressaremos melhor seria substitui-la por da

água viemos e à água regressaremos! Segunda

razão: - “É uma fonte de beleza e de juventude”. São

várias as lendas da procura da fonte de juventude.

Faz parte da cultura de muitos povos que procuram

nas águas a forma de impedir o envelhecimento. Mas

considerá-la hoje na forma engarrafada é muito

menos poético. Quanto à beleza, nada a dizer até

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porque a água não é só um alimento, mas

desempenha função primordial na higiene dos corpos,

base da conservação da beleza, para a quem a tem,

como é evidente. Terceira razão: - “Ajuda a recuperar

de uma ressaca”! Por esta não esperava. Claro que

uma bebedeira se acompanha de transtornos do

equilíbrio hídrico com perdas devido à acção do

álcool, o que leva os cultivadores ou os ocasionais

dos excessos de bebidas alcoólicas a terem de beber

grandes quantidade de água no dia seguinte. Para o

efeito basta qualquer tipo de água, desde que não

esteja contaminada, quer por bactérias, vírus,

parasitas ou eventual álcool. Quarta: - “Facilita a

recuperação muscular”. Este aspecto relaciona-se

com o facto de algumas águas serem mais

mineralizadas do que outras o que ajuda a repor as

perdas de sais e iões indispensáveis ao normal

funcionamento dos músculos. Quinta: - “Facilita a

digestão”. Neste aspecto, reconheço propriedades

terapêuticas tão procuradas nas águas ao longo dos

tempos quer na forma de banhos ou ingestão. Sexta:

- O facto de ser considerada como uma bebida

natural isotónica vem na sequência do que já foi dito,

a propósito de um elevado teor de sais minerais que

muitas águas apresentam Sétima: - “Realça o paladar

dos alimentos”. Neste caso, sou obrigado a comentar

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que já foi criada, em 2004, a “Confraria da Água -

Associação dos Provadores de Água de Portugal” que

tem como missão “valorizar, promover e dignificar a

água natural portuguesa, tanto na vida como na

mesa”. A razão de ser desta organização assenta em

outras semelhantes, como é do caso do vinho

Segundo uma notícia publicada na altura, “A nova

Confraria”, com o objectivo de dinamizar a presença

da água natural nos restaurantes, a par da habitual

“carta de vinhos”, propõe que haja, também, uma

“carta de águas” para o consumidor escolher a mais

adequada para acompanhar a refeição, e desenvolver

“acções de divulgação e sensibilização para a

preservação das águas naturais e salvaguarda dos

recursos hidrogeológicos, preservando-os das

contaminações e poluição provenientes do

desenvolvimentos não sustentado”. Quanto à

segunda parte estou perfeitamente de acordo, porque

os riscos de contaminação hídrica são cada vez mais

preocupantes. Relativamente à primeira, e apesar de

ainda há pouco tempo ter recebido um pequeno, mas

ilustrativo manual explicando como fazer a selecção

das águas para acompanhar os diferentes pratos e

alimentos, reconheço não ter grande queda nem

capacidades para desfrutar as alegrias de uma

degustação hídrica. Oitava: - “Protege os dentes”.

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Neste aspecto, muitas águas mineralizadas contém

flúor, elemento indispensável ao combate da cárie

dentária. Realmente as pessoas que vivem em zonas

de águas ricas em flúor estão mais protegidas desta

afecção, se bem que corram riscos de intoxicação,

caso da fluorose. De um modo geral, as águas

portuguesas não contêm teores elevados de flúor,

excepto algumas, nomeadamente, as mais

mineralizadas. Mas também não há casos de fluorose,

salvo nos Açores. De qualquer modo, este achado

esteve na base da técnica de fluorização das águas de

abastecimento, mas que acabou por ser abandonada

ao fim de algum tempo, devido aos efeitos

secundários. Nona: - “Pode ajudar a regular o

colesterol”. Neste caso, sabe-se, desde há muito

tempo, que as pessoas que vivem em zonas cujas

águas são ricas em cálcio e em magnésio têm uma

mortalidade mais baixa de doenças cardiovasculares.

Pessoalmente, durante muitos anos efectuei muitas

experiências nesta área, com diversas espécies de

animais, tendo concluído por um efeito protector

cardiovascular e hipolipediamente das águas mais

ricas em cálcio e magnésio, facto que pode explicar

as variações regionais de mortalidade e morbilidade

cardiovascular. Décima: - “É uma fonte natural de

cálcio”. De facto, o cálcio, e muitos outros elementos

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encontram-se na forma iónica o que confere

actividade bioquímica mais intensa. A quantidade de

cálcio que algumas águas apresentam, sobretudo as

do Centro da Europa, propiciam um suplemento

alimentar nada discipiendo, mas que em Portugal, de

um modo geral, não ocorre, já que a tendência das

nossas águas é para a hipomineralização.

Gostaria agora de analisar alguns conceitos sobre a

água numa perspectiva de sociologia médica. A água

é fonte da vida mas também é de morte. Podemos

afirmar, sem exagero, que, ainda hoje, a maior parte

das doenças são transmitidas ou relacionadas com

este elemento, não só no mundo subdesenvolvido,

mas à escala global. A atitude humana face à água é

de facto única. São-lhe atribuídas nalguns casos

propriedades miraculosas. Águas santas ocorrem em

todos os países e continentes e são procuradas com

muito afinco para a solução de muitos problemas. A

procura da água pura é uma constante, perfeitamente

compreensível, mas começa a atingir foros

preocupantes. Senão vejamos: quem diria que o

negócio das águas engarrafadas constituiria um dos

mais lucrativos negócios dos nossos tempos? Tornou-

se um verdadeiro acessório, publicitada a todos os

níveis, lembrando às pessoas que têm a obrigação de

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proteger a sua saúde, como se a água da torneira

constituísse um atentado à integridade física das

pessoas! Uma reunião que se preze tem sempre uma

garrafa de água à nossa frente. As marcas são as

mais variadas. Serve para humedecer a língua nos

longos parafraseados, intervalar nos momentos mais

aborrecidos, ler os interessantes rótulos, analisar a

composição química (para os mais curiosos e desde

que tenham uma boa visão, podem ser utilizados

para testar a acuidade visual), conhecer um pouco

mais de geografia, ao descobrir o local da colheita,

equacionar a hipótese de quão útil seria verter o

precioso líquido na cabeça de certos oradores, aliviar

o stress, apertando e estalando a embalagem de

plástico e muito mais.

A competição entre as marcas leva os produtores a

utilizarem aditivos, transformando-as em

“aquacêuticos”, sempre com o objectivo de as

purificar cada vez mais e reforçar os seus efeitos

terapêuticos. Claro que tudo tem um preço. O

equivalente da água engarrafada face à água corrente

é só 1.000 vezes mais! Não há melhor negócio.

A água da torneira é, frequentemente, objecto de

apreensão, com o argumento de que pode fazer mal à

saúde! Às vezes pode ter um pouco de cloro a mais, é

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verdade, mas daí a fazer mal à saúde vai uma grande

distância. É raro pedir água e apresentarem um jarro.

No entanto, lembro-me que, durante vários anos em

que participei em reuniões na Comissão Europeia, no

Luxemburgo, a água vinha em jarros. Seria o bom e o

bonito se nos apresentassem água engarrafada de

um qualquer país que não fosse o nosso. Ainda

arranjariam algum problema diplomático! Pelo menos

foi essa a explicação da distribuição da água feita sob

esta forma. Tem lógica, reconheço. Em algumas

capitais europeias, muitos restaurantes apresentam

água da torneira. Prática corrente e económica, já

que não a cobram.

A obsessão da água engarrafada chega ao ponto de

ser vendida a preços exorbitantes. A água favorita da

cantora Madona provém das fontes da Montanha

Kaballa ao preço de 10 euros o litro! Atribuem a esta

água pretensas propriedades tais como: absorção das

radiações, o alívio do reumatismo, além de evitar o

envelhecimento! Claro que tudo isto provém do facto

de ser abençoada por um líder espiritual. Cara

bênção! Mas há outras, umas consideradas

analgésicas, porque contêm salicilina, outras capazes

de melhorar a pele porque as “memórias negativas”

foram removidas da água, algumas óptimas para o

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cabelo… Não tarda muito que os industriais comecem

a engarrafar águas milagrosas de uma forma

sistemática. A este propósito, em Portugal não faltam

fontes, e, algumas, que não sendo milagrosas,

também podem ser abençoadas, enganando os mais

crédulos que também não faltam.

Como é do conhecimento geral fazer certas

afirmações sobre as propriedades terapêuticas de

alimentos, e a água também é um alimento, exige

provas científicas. Muitas pessoas são altamente

crédulas ao ponto de aceitar que determinados

produtos são mesmo bons para a saúde, desde que

esteja “comprovado cientificamente”!

O Júri de Ética do Instituto Civil da Autodisciplina da

Publicidade classificou como “enganosa” parte da

informação publicitária relativa a certos produtos que

grassam entre nós, ao ser realçado algumas

propriedades terapêuticas. Há tempos, tentei

encontrar os trabalhos científicos de alguns produtos,

sobretudo águas que "não têm calorias"(!) e que

“emagrecem”, ou que "ajudam a converter a gordura

em energia", por exemplo. Mas nada! Alguns dos

proprietários desses produtos alimentares, que são

rotulados como “nutracêuticos”, afiançam que há

evidências científicas. Fiz algumas pesquisas com o

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objectivo de estudar e analisar esses artigos, segundo

os quais estão afiançadas as suas propriedades

terapêuticas, mas não consegui encontrá-los em

nenhuma revista científica com ou sem peer review.

Sendo assim, é fácil de concluir que a dita

“cientificidade" dos “nutracêuticos” deixa muito a

desejar, contribuindo para o descredibilizar da ciência

e para o enriquecimento menos "ético" de muitos

operadores industriais. Clientela não falta. O que falta

é uma regulamentação e informação adequadas. Uma

coisa é certa, pelo menos para mim: recuso a aceitar

que transformem os alimentos e bebidas,

nomeadamente a água, em “nutracêuticos”. São

alimentos e basta. A forma como os utilizamos é que

faz a diferença entre “fazer bem ou mal”. O que

importa é que seja garantida a qualidade e a

segurança dos mesmos.

Uma pequena chamada de atenção para as águas

termais. Estas têm características muito específicas

que, ao longo do tempo, muitas vezes de forma

verdadeiramente empírica, revelaram e continuam a

revelar acções positivas. Devido ao seu contexto

teríamos que recuar muito no tempo para explicar o

sucesso das águas termais “inventadas” pelos

Lacedemónios, cidadãos de Esparta. Mas não é nosso

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objectivo enveredar por esta área.

Para terminar não queria deixar de focar alguns

aspectos relacionados com a doença. Não vou realçar

os perigos da contaminação microbiológica. Presumo

que é do conhecimento geral a importância da

mesma o que obriga a um rigoroso e escrupuloso

cumprimento da Lei da Água de forma a garantir a

sua qualidade. Mas a par da contaminação

microbiológica, a contaminação química é, também,

um problema grave cujo controlo está, igualmente,

estabelecido no mesmo documento. A

obrigatoriedade das instituições fornecedoras de água

em a vigiar está regulamentada, verificando-se, de

ano para ano, melhorias significativas. Importa,

apesar de tudo, afirmar que a nossa saúde e bem-

estar depende destas instituições.

Queria chamar, também, a atenção para

determinados contaminantes que podem originar

problemas de saúde e na ecosfera. Destaque, por

exemplo, para o uso de desinfectantes, cujos

subprodutos, trialometanos e cloraminas, podem ter

alguma responsabilidade em certas forma de cancro,

na reprodução, atraso do crescimento, defeitos do

tubo neural e abortamentos espontâneos. Nitratos,

pesticidas, componentes dos combustíveis,

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exploração animal e fertilizantes têm sido

responsabilizados em muitas situações clínicas,

sobretudo nas crianças. Um pequeno parêntesis. As

crianças são muito mais vulneráveis do que os

adultos, porque o seu metabolismo e fisiologia são

diferentes, mas também, porque consomem muito

mais água em função do peso do que um adulto.

Deste modo, os efeitos de uma substância tóxica

revela-se com muita mais facilidade numa criança do

que num adulto.

Muitas substâncias são hoje designadas como

disruptores endócrinos e provêm das águas

contaminadas com microquantidades de

determinadas substâncias, algumas já conhecidas, ao

passo que outras ainda não foram identificadas. Os

efeitos destas substâncias revelam-se a longo prazo,

na maior parte das vezes. A própria natureza tem

vindo a evidenciar alterações do equilíbrio muito

preocupantes, sobretudo a nível dos répteis, peixes e

batráquios que começam a diminuir e a apresentar

malformações. Os efeitos dos denominados

disruptores endócrinos são devidos a modificações

das funções hormonais. A própria redução da

fertilidade humana, e não só, é em grande parte

devido à contaminação hídrica. Mas a par destas

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substâncias, começam a levantar-se problemas

decorrentes do uso de medicamentos. Muitos

cientistas começam a denunciar um grave problema

de poluição motivado pelo uso dos diferentes

fármacos. Têm sido detectadas na água de

abastecimento, por esse mundo fora, dezenas de

substâncias, tais como, antibióticos, tranquilizantes,

hormonas sexuais, anticonvulsivantes, analgésicos,

antihipertensores, antihipercolesterolémicos,

antiinflamatórios, entre muitas outras. As

concentrações são da ordem de partes por milhão,

por bilião ou mesmo por trilião, muito abaixo dos

níveis das doses médicas, pelo que as águas são

consideradas seguras. Mas serão mesmo? Os

diferentes produtos e seus derivados alcançam os

aquíferos através da eliminação dos esgotos

contaminados pelos excreta dos que tomam

medicamentos. As centrais de tratamento dos

“esgotos” e das águas de abastecimento não

conseguem eliminar totalmente os fármacos e os

seus derivados. Atendendo ao número de pessoas

que os tomam, para não falar dos que são usados na

agropecuária, não é de admirar que este fenómeno

comece a preocupar os responsáveis, tanto mais que

alguns estudos apontam para efeitos negativos nos

diversos ecossistemas e, em última análise, o homem

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também não irá escapar. Se quisermos ainda ir mais

longe, seria interessante analisar o que acontecerá

com certas drogas proibidas e os seus metabolitos.

Há tempos, investigadores chegaram a calcular que,

por exemplo, no rio Pó, são lançados, diariamente,

através dos esgotos cerca de 4 kg de cocaína e seus

derivados! Face à multiplicação de estudos, alertando

para os efeitos na saúde humana e dos animais,

resultantes da exposição, ainda que em doses baixas,

de muitas substâncias, começam a ser descritas

modificações comportamentais em diferentes

espécies. Garças, gaivotas, caracóis, codornizes,

ratos, macacos, mosquitos, falcões, rãs, entre outros,

têm sido estudados, verificando-se alterações

importantes no acasalamento, na formação de

ninhos, na aprendizagem, no forragear, no voo, no

cantar, alguns não conseguem fugir dos predadores,

outros procuram membros do mesmo sexo, enfim, o

mundo animal começa a apresentar sinais bizarros

provocados pela exposição a muitos químicos em

baixas concentrações. Houve quem, em jeito de

graça, afirmasse que os peixes se tornam

hiperactivos – às tantas até saltam

desesperadamente para os anzóis dos pescadores –

as rãs tornam-se estúpidas (também nunca me

apercebi que fossem inteligentes), os ratos intrépidos

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e muitas gaivotas despenham-se em pleno voo. Se no

futuro, estes dados forem confirmados, então, quem

sabe, se muito daquilo que observamos no nosso dia

a dia poderá ser explicado pelas mesmas substâncias

que provocam aqueles efeitos nos animais!

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QUALIDADE NA SAÚDE: TERRA, ÁGUA E AR

O tema proposto para esta conferência desperta de

imediato um conjunto de reflexões. De facto, as

palavras terra, água e ar fizeram-me recordar, com

toda a naturalidade, a fundação da primeira teoria

explicativa geral do mundo, a teoria dos quatro

elementos: água, ar, terra e fogo. Segundo esta

teoria a combinação dos quatro elementos seria a

origem de todas as coisas. A sua união e desunião

ocorreriam em função de dois princípios antagónicos:

o amor que une e o ódio que separa. Empédocles de

Agrigento, filósofo, médico, poeta, político, profeta e

místico, foi o autor desta teoria. Aristóteles

desenvolveu-a de tal forma que reinou durante largos

séculos até à Renascença.

Teoria simples que qualquer um assimilava, já que

era perfeitamente identificada com os quatro

elementos da Natureza.

Nesta conferência não me foi pedido para falar sobre

o quarto elemento, o fogo. De todos é o mais puro,

não é contaminado, mas pode ser fonte de

contaminação dos demais, conforme teremos

oportunidade de verificar. Mesmo assim, a sua

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presença está implícita no tema, já que a água, a

terra e até o próprio ar dependem da sua presença e

da sua força catalizadora. A principal fonte está a 150

milhões de km, aquecendo o nosso planeta, sendo

fonte e garante da vida. Não deixa de ser curioso que

o próprio Empédocles, que se considerava como

sendo dotado de poderes mágicos, quis provar a sua

origem divina mergulhando, em 430 a.C., na cratera

do vulcão Etna. O elemento fogo deverá tê-lo

convencido da precariedade humana. Não sei se teve

tempo para se aperceber deste pormenor.

Sem sombra de dúvida que os referidos elementos

constituíram o caldo germinador da vida em

condições muito diferentes do presente. As formas de

vida actuais dependem das condições do ar, da água

e da terra. Tentaremos dar um panorama sobre o

passado recente, o presente e um futuro nada

promissor.

Durante cerca de quatro milhões de anos, os seres

humanos estavam dispersos, praticavam o

nomadismo, as comunidades eram reduzidas, a caça

e a colecta constituíam a fonte do sustento, tinham

patologias próprias, eram menos atreitos a doenças

infecciosas e a doenças carenciais. A esperança de

vida era fraca, mas mesmo assim, e com toda a

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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probabilidade, superior à verificada em épocas mais

recentes, sobretudo após a última glaciação.

As condições verificadas a nível da terra, do ar e da

água influenciavam, com toda a certeza, as suas

vidas. Mas estas áreas não sofriam dos efeitos

antropogénicos tal como hoje acontece. Muito longe

disso!

A qualidade da terra tem a ver com as suas

características e efeitos a vários níveis. Numa

perspectiva humana a diversidade é importante, mas

no que toca à sua composição e frutos, entendendo

por frutos os diversos tipos de expressão vegetal,

ocorrem efeitos que não podem deixar de serem

tomados em linha de consideração. Mesmo na

ausência de contaminação antropogénica, o uso

reiterado da produção florestal, por exemplo, a

devastação de amplas superfícies, a sua substituição

por outras espécies e a utilização de terras para a

produção de diferentes monoculturas são, sem

excepção, motivos de desequilíbrios ambientais

susceptíveis de reflexos na saúde humana. Basta que

hajam perturbações ambientais para originar o

aparecimento de vários tipos de doenças. Muitas

afecções, ditas emergentes, traduzidas por diversos

vírus, têm como causas próximas alterações

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ecológicas profundas. A desorganização está

associada com novas formas de equilíbrio e com o

aparecimento de espécies diferentes para as regiões

em causa e a libertação na ecúmena de novos/velhos

agentes patogénicos.

Os solos podem ser contaminados com várias

substâncias potencialmente perigosas, quer sob o

ponto de vista químico, quer sob o ponto de vista

biológico, com repercussão na saúde pública. Podem

conter níveis elevados de chumbo ou de cádmio com

sérios problemas de saúde para as populações locais.

O caso da Capadócia, no centro da Turquia, ilustra os

efeitos perversos e naturais dos solos. De facto,

ocorre nestas populações uma prevalência elevada de

uma forma rara de cancro relacionada com o

amianto. Os solos da Capadócia são ricos neste

mineral. Em contrapartida, teores baixos em

elementos essenciais podem ser responsabilizados

pelas carências alimentares importantes. O caso do

iodo é paradigmático, já que a sua carência pode

provocar bócio e idiotia nas crianças e jovens. É

interessante ler os relatos dos médicos dos exércitos

napoleónicos quanto à dificuldade em recrutar jovens

na península ibérica, aquando das invasões, em

virtude do elevado número de idiotas, devido,

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sabemos hoje, à carência de iodo. No norte da

Espanha, mais concretamente nas Astúrias um adágio

popular ilustra bem o baixo teor dos terrenos neste

elemento: ”Quem não tem papo não é guapo”.

Se relativamente ao ar e à agua poluídas é

relativamente fácil identificar as principais vias de

exposição, no tocante ao solo, a contaminação faz-se

através de várias formas, nomeadamente, comendo

terra, alimentos, bebendo água, inalando partículas

do solo ou vapores ou através do contacto dérmico.

No caso de ingestão de terra – não é preciso recorrer

a casos patológicos de geofagia – partículas do solo

contaminado podem ser ingeridas directamente por

acidente e contacto casual das mãos com a boca. O

solo pode aderir às superfícies das plantas (alimentos

mal limpos) e as partículas muito finas não são

facilmente removíveis durante a preparação culinária.

Enfim, é fácil concluir que as crianças (<3 anos)

geofágicas podem chegar a ingerir mais de 10

gramas de terra por dia e, nalguns casos, mesmo 25-

60 gramas. Uma criança dita normal, entre os 1 e os

5 anos, chega a ingerir entre 40 a 200 mg de

terra/dia.

As crianças são particularmente mais sensíveis à

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exposição de terra contaminada, mas não são as

únicas. Os que trabalham na terra são muito atreitos

à exposição. Não só os agricultores, mas muitos

outros, tais como os que exploram petróleo, ou os

que escavam túneis. Ainda recentemente, aquando

da construção do Millennium Dome em Londres, foi

necessário preparar os terrenos que estavam

formalmente contaminados com químicos, os quais

originaram dermatites de contacto nos trabalhadores.

Vários estudos revelam o impacto das terras

contaminadas na saúde humana, tais como o caso do

gás radão, típico das zonas graníticas, e que pode

constituir um importante factor de risco de cancro do

pulmão, ou a contaminação das terras do famoso

Love Canal, nas cataratas do Niagara, utilizado como

aterro para produtos altamente tóxicos. Muitos

estudos avaliam o efeito e impacto dos diferentes

aterros nas populações vizinhas, nomeadamente

crianças e grávidas. As conclusões são muito

importantes. Podemos afirmar que seria muito fácil,

documentar com toda a propriedade a problemática

da contaminação dos solos e os seus efeitos na saúde

das populações quer as vizinhas, quer mesmo as

mais afastadas, já que a distribuição dos produtos

alimentares contaminados pode atingir muitas

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pessoas. Por uma questão metodológica e como

paradigma da importância da qualidade das terras,

exemplifiquemos os seus impactos através da

descrição de alguns estudos: o caso do mesotelioma

da Capadócia, que já comentámos, e que tem a ver

com a presença do amianto nos terrenos, o caso da

contaminação industrial do Jinzu Valley no Japão com

cádmio, o qual foi o responsável por uma grave

afecção denominada itai-itai. Não podemos esquecer

as mais recentes evidências que associam os

diferentes tipos de aterros e as malformações

congénitas e abortamentos.

A qualidade das terras tem sido objecto de

regulamentação com o pressuposto em evitar não só

desequilíbrios ecológicos, mas também proteger a

população humana.

A conquista do planeta por parte dos seres humanos

acompanhou-se, e continua acompanhar-se, da

produção de lixo e substâncias poluentes. Existe um

paralelismo marcante entre o número de habitantes e

o grau de desenvolvimento com as substâncias

poluentes.

As nossas sociedades são sociedades de “lixo” e de

poluentes. A produção de lixo e de poluentes é

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proporcional ao produto nacional bruto. Havendo um

progressivo desenvolvimento é de prever que o futuro

irá reservar-nos surpresas muito desagradáveis.

Conscientes destes problemas, têm sido realizadas,

sem grande sucesso, encontros internacionais

destinados a contrariar muitos dos efeitos perniciosos

da actividade humana. A cimeira do Rio de 92, a de

Joanesburgo em 2002 e o protocolo de Quioto são

apenas algumas, entre outras, iniciativas tendentes a

encontrar soluções para uma actividade

verdadeiramente planeticida.

Todas as grandes iniciativas têm demonstrado

vontade em atingir soluções práticas e de rápida

concretização; importa pois, que, através de

diferentes medidas, possamos contribuir para um

melhor e mais saudável ambiente, ajudando a

diminuir as agressões antropogénicas ao sistema

fechado que é o planeta Terra que, possuindo uma

notável capacidade de auto-regeneração, pode, na

perspectiva da sua deusa – Gaia –, reagir de uma

forma inusitada contra os virulentos antigénios,

denominados seres humanos, provocando-lhes

sofrimento e doenças. Apesar de não partilhar da

teoria de Gaia, não posso deixar de lhe reconhecer

um simbolismo preocupante, a que não é alheio as

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últimas notícias sobre uma catástrofe a nível global.

O relatório Meeting The Climate Change ilustra bem o

perigo do aquecimento global, resultante das

actividades humanas que ocorreram sobretudo após o

início da era industrial e que se traduz pela emissão

de gases de estufa.

A poluição atmosférica não é sinal dos nossos

tempos. Se fizermos uma incursão na história do

homem verificamos que começou há 6.000 anos

atingindo pela primeira vez um pico máximo nos

tempos dos gregos e romanos. Em 500 a.C., o teor

de chumbo no ar era quatro vezes superior ao

verificado antes dos europeus começarem com a

fundição dos metais. Séneca já se queixava do ar

pesado na Roma antiga.

Em 1285 o ar de Londres estava tão poluído que o rei

Eduardo I estabeleceu a primeira comissão da

poluição do ar, proibindo, 22 anos mais tarde, a

queima de carvão (lei sem sucesso).

Não resisto à tentação de contar uma pequena

história sobre a poluição de Londres.

A longevidade sempre seduziu o homem. Na

Inglaterra, Thomas Parr, que deverá ter nascido em

1483, foi levado, no seu centésimo quinquagésimo

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segundo ano de vida, à presença do rei Carlos I, que

tinha muita curiosidade em ver tão idosa pessoa.

O conde de Arundel transportou-o com todo o

cuidado e carinho até à corte. O rei encorajou-o a

comer carne e muitos outras delícias alimentares.

Verdadeira hospitalidade real. Coitado do "Old Parr"!

Um vegetariano a cometer excessos! Morreu ao fim

de algumas semanas depois de ter chegado a Londres

(1635) e foi sepultado na famosa abadia de

Westminster.

William Harvey, o ilustre médico que descobriu a

circulação do sangue, autopsiou-o concluindo que o

"Old Parr" morreu devido a alterações da dieta e à

poluição da cidade.

A cidade de Londres era tão poluída que levou o

poeta Shelley a afirmar que “o inferno deve ser

parecido muito com Londres, uma cidade populosa e

cheia de fumo”

As razões para tamanha poluição eram conhecidas e,

com o tempo, melhorou consideravelmente.

A chamada poluição grosseira é tão evidente que

facilmente qualquer um, sem o auxílio de

aparelhagem e doseamentos complexos, consegue

Page 25: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

25

detectar, fazendo todos os possíveis para se furtar a

tão perigosas agressões. O problema equaciona-se,

hoje em dia, face a um conjunto de poluentes que

não são detectáveis pelos nossos órgãos dos

sentidos, mas que são susceptíveis de provocarem

graves danos. Naturalmente que não vou enunciá-los

todos, já que se contam pelas largas dezenas de

milhares, havendo anualmente novos produtos e

substâncias que podem provocar problemas a médio

e a longo prazo. Destaco apenas algumas dessas

substâncias. Muitas são consideradas como

disruptores endócrinos actuando a níveis tão baixos,

mas com um impacto violento no funcionamento

normal dos organismos, colocando-nos em situações

deveras preocupantes. É o caso das dioxinas, PCBs,

bifenilos polibromados, DDT, que provocam redução

da fertilidade, atrofias testiculares, alterações dos

níveis das hormonas, caso das tiroideias, alterações

dos linfócitos, cancros e endometriose, só para falar

de algumas.

Podemos afirmar que, hoje em dia, estamos a

confrontar-nos com novos problemas ambientais

devido às novas tecnologias, os quais por não

estarem devidamente estudados e divulgados,

constituem sérias ameaças para os seres humanos e

Page 26: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

26

outros animais. Os disruptores endócrinos ou

fisiológicos são agentes que interferem na síntese, no

armazenamento, na libertação, na secreção, no

transporte, na eliminação, na ligação, ou na acção

das hormonas.

Estudos efectuados em animais permitem-nos

concluir que as ligeiras flutuações das hormonas

podem influenciar a morfologia genital, o momento

da puberdade, a atracção sexual e o próprio

comportamento sexual.

Os seres durante o seu desenvolvimento embrionário

sofrem alterações cuja expressão ocorrerá muito mais

tarde durante a vida adulta.

Quanto aos efeitos adversos há muitas perguntas

para responder sobre o efeito dos disruptores

endócrinos na saúde humana. Quais as substâncias?

Quanto tempo é necessário para detectarmos as

alterações? Os estudos epidemiológicos não

abundam, mas mesmo assim começam a avolumar-

se evidências para esta preocupante situação.

Numa perspectiva crónica, podemos afirmar que na

década de trinta várias substâncias químicas foram

consideradas como tendo propriedades estrogénicas,

tais como PAHs, Bisfenol-A (plásticos, resinas epóxi e

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

27

retardadores de chama), DDT (efeitos estrogénicos

em frangos desde 1950), o DES (dietilstilboestrol), o

qual foi ministrado a milhões de mulheres grávidas

devido a um hipotético efeito protector contra o

abortamento, o qual, posteriormente se verificou não

possuir, antes pelo contrário! A lista destas

substâncias alarga-se aos alquilfenóis, ftalatos e mais

de quarenta pesticidas, dioxinas, furanos, PCBs e

compostos organoclorados.

Quantos aos efeitos, tal como já afirmámos, são

variados. A redução da fertilidade, a atrofia testicular

e alterações dos níveis hormonais são, sem dúvida,

os mais frequentes e problemáticos.

Não podia deixar de aproveitar a oportunidade para

ilustrar as consequências de exposição ambiental,

menos conhecida, mas nem por isso menos

interessante.

Como é do conhecimento geral o mundo químico é

uma realidade. Muitas das substâncias utilizadas

protagonizaram verdadeiras revoluções. Na década

de sessenta os contraceptivos orais contribuíram para

a "libertação" da mulher e o controlo demográfico.

Os efeitos podem ter tradução mais grave como é o

caso do cancro. O cancro da mama tem vindo a

Page 28: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

28

aumentar, assim como o cancro do testículo. Nas

últimas décadas aumentou de uma forma inesperada,

sendo que nalguns países atinge 4 a 5 vezes mais nos

últimos 30 anos. São os países ao redor do mar

Báltico, Alemanha, Reino Unido, EUA, Nova Zelândia

e Dinamarca que apresentam as taxas mais elevadas.

Além dos tumores tem-se observado incremento

significativo de anomalias do sistema reprodutor

(criptorquidia e hipospadias).

Os acidentes ambientais têm os seus paradigmas tais

como a célebre explosão de Seveso (10/6/1976),

acompanhada de emissão de dioxinas, cujos efeitos

se manifestam de uma forma inequívoca passados

mais de 20 anos, traduzidos por uma prevalência

mais elevada de cancros da mama, mielomas,

cancros linfohematopoiéticos, leucemias e alteração

da razão de masculinidade - passaram a nascer mais

meninas do que meninos, os quais, hoje em dia,

também procriam muito mais meninas,

demonstrando um efeito curioso que não se esgota

na geração atingida mas continua nas seguintes.

A endometriose tornou-se epidémica no mundo

ocidental, assim como a diminuição dos

espermatozóides e da sua qualidade de forma

significativa.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

29

O que estamos a analisar é fruto do novo mundo

químico que teve o seu “boom” no início da década de

40. Deste modo, foram, e continuam a ser, lançadas

no ar, na água e nos solos milhares de produtos.

Cada um dos presentes nesta sala, comporta 100

químicos que não existia no corpo de ninguém há 50

anos atrás.

Disse no início desta conferência que o elemento fogo

não fazia parte do título. Mas, mesmo assim o fogo é

responsável pela libertação de substâncias muito

perigosas, nomeadamente dioxinas. As fontes são as:

incineradoras hospitalares, as incineradoras

municipais, os combustíveis fósseis, refinarias, fusão

de metais, fogos, vulcões, etc.

A selecção das dioxinas é feita no pressuposto de ser

sinónimo da moderna industrialização.

Os seres humanos podem ser contaminados através

dos alimentos (principal fonte), carne, peixe e

produtos lácteos. As crianças são muito mais

sensíveis, porque, proporcionalmente, comem mais

em relação ao peso. São múltiplos os seus efeitos.

Vários tipos de tumores têm sido descritos nos seres

humanos, mas também nos animais. Os cães

militares utilizados na Guerra do Vietname

Page 30: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

30

apresentavam mais carcinomas testiculares do que

aqueles que ficaram nos E.U.A., e até os próprios

cães de estimação não se livram dos efeitos

perniciosos destas substâncias apresentando mais

linfomas.

Um dos aspectos que mais preocupa os profissionais

de saúde tem a ver com a resistência aos

antibióticos. As causas são múltiplas, algumas da

responsabilidade dos próprios profissionais, mas há

outras que têm a ver com a qualidade da água e dos

próprios solos.

Para terminar não queria deixar de comentar um

pouco a responsabilidade política para as situações

ambientais entretanto criadas.

Os políticos necessitam, cada vez mais, de dados de

natureza científica para tomarem decisões.

Aparentemente não há nada a opor, pelo contrário,

até é desejável, porque medidas técnicas e

cientificamente avalizadas permitirão soluções mais

adequadas para a salvaguarda dos cidadãos e da

sociedade. Assim, não é de estranhar que,

progressivamente, se venham a constituir comissões

de cientistas para se pronunciarem sobre casos

concretos. Até aqui, tudo bem. O pior é quando se

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

31

verifica distorção dos princípios. A possibilidade de

manipulação da ciência é um perigo real que importa

ter em conta. Para o efeito, ilustramos com a

manipulação subtil da indústria tabaqueira que,

através da constituição de organizações científicas,

encorajava a desacreditar os estudos de associação

entre o fumo passivo e a doença (caso da

Advancement for Sound Science Coalition criada em

1993 — verdadeira 5ª coluna da tabaqueira Philip

Morris). Mas, a par desta "solução", outras foram alvo

de atenção; nomeadamente a campanha das "boas

práticas epidemiológicas" para estabelecer elevados

padrões de qualidade. Aparentemente, estamos

perante uma óptima iniciativa. Na prática, o objectivo

consistia em explorar algo que os cientistas

conhecem muito bem: a incerteza científica, ou seja,

a ausência de uma relação evidente entre a causa e o

efeito. Ao mesmo tempo eram criadas condições que

permitiam realçar outras causas ambientais,

deslocando os focos de investigação!

A poluição grosseira tem os seus dias contados, o pior

são, repito, as muitas substâncias lançadas no

ambiente, na sequência de actividades humanas, as

quais têm sido responsabilizadas, mesmo em doses

baixas, por alterações fisiológicas de muitas espécies,

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Salvador Massano Cardoso

32

incluindo o homem. As modificações operadas a nível

dos organismos condicionam e propiciam o

aparecimento de muitas doenças, nomeadamente,

degenerativas. Estes achados têm sido alvo de

atenção e preocupação por parte dos cientistas, os

quais vão alertando para a necessidade de evitar e

minimizar as consequências nefastas, mas,

aparentemente, sem grande sucesso. Paralelamente

a estes factos, adicionam-se outros, que, são

igualmente preocupantes. De facto, começam a ser

descritas modificações comportamentais em

diferentes espécies.

A descoberta da agricultura, que tem a ver com a

terra e a sua qualidade, ocorreu pouco tempo após a

última glaciação, originando uma revolução social,

política, demográfica e sanitária sem precedentes. O

nascimento da agricultura constituiu o primeiro

choque em termos de saúde. Ao aumentar a

disponibilidade alimentar, favoreceu a explosão

demográfica mas também foi determinante no

aparecimento de doenças. Até aqui, a diversidade

alimentar era uma característica. Em seguida, ao

consumir mais alimentos, a diversidade diminuiu,

com a subsequente deficiência de ingestão de alguns

nutrientes susceptíveis de provocarem doenças.

Page 33: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

33

Paradoxo: mais alimentos, mais gente, mais doenças.

Na história da alimentação observamos uma

constante: o fenómeno “mais doença” ocorre sempre

que surge uma revolução alimentar.

Hoje em dia, contabiliza-se por larguíssimas centenas

de milhões o número de mulheres que tomam a

milagrosa e ansiolítica pílula. Tratando-se de produtos

artificiais são metabolizados e eliminados pela urina.

Deste modo, milhares de milhões de litros de urina de

mulher contendo estrogénios sintéticos são largados,

todos os dias, na Natureza, directamente, ou através

de esgotos, indo contaminar os sistemas hídricos. A

Natureza “engole”, desta forma, uma “grande pílula”,

sem estar ameaçada de qualquer perigo de

fecundação! Em contrapartida, certas espécies correm

riscos, tal como a que foi demonstrada recentemente.

As trutas macho vêem o seu potencial de fertilização

gravemente reduzido quando expostas a níveis muito

baixos de etinilestradiol (um dos componentes da

pílula).

Não se sabe bem se os sistemas de drenagem dos

esgotos, o tratamento (mesmo no caso das ETARs

funcionarem!), ou a presença de outras substâncias

possam ou não alterar estes efeitos, reduzindo-os,

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Salvador Massano Cardoso

34

neutralizando-os ou potenciando-os. O facto é que é

ainda muito cedo para avaliar o impacte ambiental

destas substâncias, mas é provável que possam a vir

a ter consequências nada desprezíveis. Para já, as

trutas-macho já se "queixam".

Não é preciso recorrer à pílula para analisarmos o

impacte na fertilização de certas espécies. O próprio

homem tem vindo a sofrer efeitos na qualidade e

quantidade dos seus espermatozóides, neste último

meio século. Uma das hipóteses deste declínio é

atribuída ao efeito de certas substâncias químicas

dotadas de actividade hormonal, dentro das quais se

destacam os ftalatos.

Os ftalatos, muito provavelmente, são das

substâncias mais utilizadas, entrando na constituição

de muitos plásticos (outro símbolo de grande

revolução), brinquedos, material médico, cosméticos

e desodorizantes.

Estudos recentes revelam a presença destas

substâncias no esperma e na urina de homens com

dificuldades em conceber. Peritos em toxicologia já

contribuíram para a suspensão de alguns destes

produtos, os quais se revelaram tóxicos em animais,

levando a União Europeia a proibir o seu uso na

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

35

cosmética.

O melhor é pensar duas vezes de manhã, após o

banho, se valerá a pena ou não usar o desodorizante.

Mas, se já marcou presença, com descendência,

então talvez valha a pena contribuir para um odor

colectivo mais agradável…

A utilização dos antibióticos como factor estimulante

do crescimento é conhecida, desde há muitos anos,

na produção de alimentos, quer de origem animal ou

vegetal. Cerca de 50% de todos os antibióticos são

utilizados na produção animal, incluindo a

piscicultura. O objectivo é acelerar o crescimento. A

eliminação através dos excreta contaminam aquíferos

podendo, através de mecanismos vários, contribuir

para o aumento crescente da resistência bacteriana.

Não deixa de ser curioso enunciar uma hipótese

recente que tenta explicar o aumento da obesidade

nas crianças com a utilização e contaminação

ambiental pelos antibióticos. A melhoria das

condições alimentares verificadas nas últimas

décadas não é suficiente para explicar tão grave

fenómeno. A ingestão de pequenas quantidades de

antibióticos poderá ter um efeito equivalente na

nossa espécie, justificando em parte o aumento do

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Salvador Massano Cardoso

36

peso e aceleração de crescimento entretanto

verificado. As consequências são, como é de esperar,

graves a todos os títulos.

A exploração da "incerteza" (ausência de uma

evidência inquestionável entre o factor em causa e os

seus efeitos) constitui um instrumento para a sua

propagação, permitindo atrasar a elaboração da

adequada legislação. Esta filosofia de explorar a

"margem de incerteza" é utilizada não só pela

indústria tabaqueira, mas também pelos políticos,

com objectivos não consentâneos com o bem-estar

das pessoas e das comunidades, mas com interesses

estratégicos e económicos. Basta ver o

comportamento do presidente Bush que justifica a

não ratificação do protocolo de Quioto, com base na

ausência de evidências científicas inquestionáveis

sobre as verdadeiras causas das alterações

climáticas. Ao preferir jogar nas incertezas, adia a

não ratificação, enquanto os cientistas não

fornecerem dados seguros sobre a matéria em

apreço, apelando para que as provas da origem

humana sejam apresentadas — cientificamente —

dentro de dois a cinco anos! Esta atitude deve ser

considerada condenável, porque muitos organismos,

como a EPA (Agência de Protecção Ambiental norte

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

37

americana), admitem a actividade humana como um

dos principais contribuintes do aquecimento global.

É difícil estabelecer nexos de causalidade de uma

forma categórica. A dúvida e a incerteza estão

sempre presentes, e, por vezes, necessitamos de

muitos anos de estudo e de observação para

concluirmos de uma forma conclusiva. Mas, à medida

que vamos acumulando evidências ou mesmo

suspeitas de uma eventual relação causal, importa

que sejam tomadas medidas de protecção do cidadão

e do ambiente de modo a evitar problemas graves. A

"margem de incerteza" deve ser utilizada em sentido

contrário aquele que foi exposto, numa perspectiva

de defesa e não para justificar interesses de cariz

económico, político ou estratégico. Esperemos que os

políticos não enveredem pela exploração das

incertezas científicas. Se o fizerem estão a enviesar o

papel da ciência e a prejudicar os direitos dos

cidadãos.

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Salvador Massano Cardoso

38

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

39

DOENÇAS, ETNIAS E DESIGUALDADES SOCIAIS

Em 2005, a FDA aprovou, pela primeira vez, um

fármaco (combinação de dois velhos medicamentos)

para o tratamento de doentes negros com

insuficiência cardíaca grave. Qual é o significado

desta medida? Que existem diferenças étnicas! É do

conhecimento geral que certas etnias apresentam

maior ou menor susceptibilidade a certas doenças.

Tal facto é o resultado da interacção entre o

património genético e o meio ambiente. Dentro dos

vários exemplos que podíamos seleccionar, como

paradigma da Medicina Darwiniana, a “hipótese do

sódio” revela-se de uma forma particular. Tudo

aponta para que a sensibilidade ao sódio tenha

ocorrido há cerca de dois milhões de anos durante o

Pleistoceno em África. Razões? Alguns autores

apontam que caçar e perder sódio pela transpiração

não é desejável em populações que vivam em climas

quentes e zonas pobres em sal. É compreensível!

Vários estudos efectuados em negros e brancos

norte-americanos revelam diferenças na prevalência

de muitos genes, nomeadamente os responsáveis

pela “hipertensão”. A frequência, por exemplo, do

alelo T do M235T - variante do gene AGT

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Salvador Massano Cardoso

40

(angiotensina) é dupla nos negros americanos e

caribenhos face aos brancos de origem europeia.

Evidentemente, não podemos inferir causalidade

directa com a hipertensão, porque se trata de uma

doença multifactorial.

No Brasil, a hipertensão arterial é muito grave nos

negros pelo que correm maior risco de DCV e morte

súbita. Estes elementos são importantes contributos

para a hipótese do “gene africano” que influencia a

captação celular de sódio e cálcio, assim como o

transporte renal (gene economizador do sódio). No

Sul dos E.U.A., na zona conhecida pela “Cintura do

AVC”, os negros sofrem 3 a 4 vezes mais AVCs,

mesmo depois de serem controladas as diferentes

variáveis de confundimento de natureza cultural,

social e económica. Recentemente, chegou-se à

conclusão de uma interessante associação entre a

latitude, o genótipo e a hipertensão arterial. Tudo

aponta para que a distribuição de cinco genes,

relacionados com a hipertensão, seja mais prevalente

nas latitudes mais baixas. Um deles, o gene GNB3-

825T, que contribui para a grande variação mundial

da pressão sanguínea, revela estar associado à

latitude, permitindo explicar que os oriundos de

climas mais quentes sejam mais susceptíveis à

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

41

hipertensão do que os oriundos das zonas mais frias.

Face a estes achados é pertinente colocar a seguinte

questão: Qual foi o papel da escravidão na

hipertensão arterial, sobretudo em Portugal? Neste

caso, podemos afirmar que o navegador Antão

Gonçalves, capitão do Infante D. Henrique,

transportou o primeiro lote de escravos africanos

para Portugal em 1441. Comprou-os na costa de

Arguim (actual Mauritânia). O comércio deve ter sido

muito lucrativo, porque entre l450 e 1500 chegaram

a Lisboa cerca de l50 mil escravos. Em meados do

século XVI, 10% da população da capital era

constituída por negros. De facto, Portugal devia estar

cheio de negros. A este propósito, o livro de Joris

Tulkens, “Perro Cristão entre Muçulmanos”, sobre

Nicolau Clenardo, humanista e teólogo flamengo

(Diest 1493 - Granada 1542), atribui a este pensador,

ao chegar a Évora, onde foi mestre do futuro Cardeal

D. Henrique, a seguinte afirmação: “Portugal está

cheio de negros”! Uma passagem desta obra é

paradigmática: “...Sempre que um senhor sai a

cavalo, saem dois negros à sua frente; um terceiro

transporta-lhe o chapéu; um quarto o manto; um

quinto segura as rédeas do cavalo; um sexto

transporta as pantufas de seda; um sétimo apresenta

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Salvador Massano Cardoso

42

a escova para o vestuário; um oitavo seca o suor do

cavalo; um nono entrega o pente ao seu senhor; um

décimo supervisiona todo este exército. Eu apenas

falo do que vi...” Portugal sofreu três vagas de genes

africanos. A primeira foi há 6.000 anos, aquando da

desertificação do Saará, a segunda com a invasão

magrebina há 1300 anos e a terceira correspondeu ao

período de escravidão. A tolerância nacional face aos

filhos das escravas deverá ter contribuído para a

disseminação dos genes africanos entre nós. A

elevada prevalência de hipertensão arterial não pode

ser explicada apenas através dos nossos hábitos

alimentares, nomeadamente o elevado consumo de

sódio. Será que a prevalência dos “genes da

hipertensão” pode contribuir para este fenómeno?

Afinal o que é um português? A sua origem é muito

complexa. No entanto, ao lermos o livro da jornalista

brasileira, Ângela Dutra de Menezes, “O Português

que nos Pariu”, podemos analisar, de uma forma

agradável, os principais ingredientes para a receita

“Como fazer um português!”: homens pré-históricos

do vale do Tejo e do Sado; um punhado de povos

indígenas, principalmente lusitanos; celtas, apenas

para polvilhar; bárbaros: alanos caucasianos,

vândalos germânicos e escandinavos, suevos e

visigodos, estes últimos dissolvidos na civilização

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

43

romana; mouros, tribos islamizadas de Marrocos e da

Mauritânia; judeus sefarditas (coloque um punhado

entre um ingrediente e outro e reserve a porção

maior para o final da receita) e, por fim, cristãos a

gosto! Curiosamente, esqueceu-se dos escravos

negros. Quanto ao modo fazer, o melhor é ler o livro.

Voltando à iniciativa da FDA, de há três anos, em que

foi proposta uma terapêutica racial, é preciso ter

muito cuidado, porque estas atitudes podem

desencadear reacções negativas ao servirem de

argumento aos defensores do racismo, além de

poderem prejudicar os “brancos”, porque os genes

em questão (“africanos”) também podem estar

presentes em muitos indivíduos louros e de olhos

azuis que andam por aí...

Se os factores “étnicos” são impossíveis de controlar

o mesmo não se pode dizer dos factores sociais.

Friedrich Engels (1820-1895), amigo e colega de Karl

Marx, chamou a atenção para a saúde dos

trabalhadores relacionada com os factores sociais.

Descreveu o papel dos tóxicos ambientais, a

intoxicação pelo chumbo, a elevada prevalência das

doenças infecciosas, como a tuberculose pulmonar e

o tifo, a má alimentação e o fornecimento de

alimentos, o problema do alcoolismo, a má

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Salvador Massano Cardoso

44

distribuição do pessoal médico, as elevadas taxas de

mortalidade nas classes mais desfavorecidas, os

acidentes e as doenças ocupacionais. Os seus

relatórios anteciparam, e em muito, o papel social no

sofrimento e morte dos seres humanos. Mas foi

Rudolf Virchow (1821-1902), que podemos classificar

como o “Pai” da Medicina Social, quem estabeleceu a

necessidade de reformar a medicina com base nos

seguintes princípios: a saúde das pessoas é um

problema social; as condições socioeconómicas têm

um papel importante na saúde e na doença e as

relações entre elas deverão ser sujeitas a

investigação científica, e as medidas destinadas a

promover e a combater as doenças deverão ser tanto

sociais como médicas.

As desigualdades socioeconómicas são fonte de vários

tipos de patologia. Em Portugal a situação é

verdadeiramente desconfortável a nível dos países da

U.E. Também é do conhecimento geral que o fosso

ricos-pobres se alarga de ano para ano. Neste

momento, cerca de dois milhões de portugueses têm

um rendimento inferior a 350 euros/mês. As

comunidades mais ricas são mais saudáveis, ao

contrário das mais pobres, devido a diferentes

comportamentos e estilos de vida. As últimas bebem

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

45

mais, fumam mais, adoecem mais e, naturalmente,

morrem mais cedo. Os mais favorecidos conseguem

controlar melhor os factores de risco e promover os

factores de protecção, enquanto nos pobres é

precisamente o contrário. Pretende-se resolver

muitos dos problemas de saúde graças a uma

melhoria de acesso aos cuidados e à realização de

exames mais sofisticados, mas a verdade é que não

conseguem resolver todos, além de contribuírem para

o agravamento do financiamento na área da saúde.

Quando o gradiente socioeconómico é curto a

produção da riqueza alcança todos os membros dessa

comunidade desde os mais ricos aos menos ricos. À

medida que o gradiente vai aumentando corre-se o

risco de os mais pobres ficarem excluídos da

distribuição da riqueza. Em termos sociais, o

investimento público do qual resulte bem-estar para

todos, mas sobretudo para os mais desfavorecidos,

permite que estes obtenham mais rendimentos e

aquisição de comportamentos mais saudáveis. O

investimento público diminui de uma forma acelerada

à medida que os mais favorecidos se afastam dos

mais pobres. Neste caso, os últimos, “cansados”,

acabam por “desviar” grande parte dos seus

rendimentos (depois de cumprirem com as suas

obrigações fiscais!) para o seu próprio bem-estar.

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Salvador Massano Cardoso

46

Como? Através dos seguros de saúde, de

condomínios fechados, opção por escolas privadas,

“deliciarem-se” com águas engarrafadas, enfim, todo

um conjunto de conforto virado para o seu próprio

bem-estar deixando de “investir no bem comum”. O

que é que esta atitude pode originar? Maior

distanciamento entre os mais ricos e os mais pobres

e, consequentemente, mais doenças. A esperança de

vida constitui, a par de muitos outros, um bom

indicador do desenvolvimento de uma comunidade.

Quando Cristo andava pela terra, a esperança de vida

rondava os 25 anos, mantendo-se praticamente

inalterável até meados do século XIX, período em que

começou a aumentar, atingindo os 40 anos no

princípio do século XX. Desde então, nos povos mais

desenvolvidos, tem sofrido um aumento substancial

aproximando-se dos 80 anos, contrastando com os

mais pobres. A diferença actual entre os dois mundos

é da ordem dos 30 anos! Enquanto nos mais ricos a

esperança de vida aumentou sete anos desde 1970-

75, nos mais desfavorecidos, caso dos povos

subsaarianos, o aumento foi apenas de quatro meses!

As causas destas diferenças são conhecidas,

originando a criação de um novo síndroma, a

“síndroma do status”, sinónimo de desigualdades

sociais. Acontece que esta síndroma não se verifica

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

47

somente entre os países mais ricos e os mais pobres.

Também, dentro do mesmo pais, é possível encontrá-

la. Há mais de 25 anos, no famoso estudo Whitehall,

o epidemiologista britânico, Professor Marmot, tinha

chegado à conclusão de que o risco de morrer era

quatro vezes superior nas camadas sociais mais

baixas face às das classes mais elevadas. Em

Portugal, por exemplo, a prevalência da diabetes, da

hipertensão arterial, das doenças cardiovasculares

são inversamente proporcionais aos graus

académicos. Mais prevalentes nos analfabetos,

seguidos dos que têm o ensino básico, mais baixa nos

que conseguiram atingir o secundário, para alcançar

os valores mais reduzidos nos que têm ou

frequentaram o ensino superior. A “síndroma de

status” é uma realidade entre nós, verificando-se

mesmo com diferenças culturais e académicas

mínimas, o que torna mais relevante a importância da

formação académica, cultural e económica. Adoecer e

morrer prematuramente têm a ver com as condições

socioeconómicas, as quais estão associadas à

pobreza, às más condições alimentares, às deficientes

condições das habitações, às atitudes e

comportamentos face aos diferentes tipos de factores

de risco. Se em Portugal o gradiente socioeconómico

continuar a aumentar, e tudo aponta para que sim, é

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Salvador Massano Cardoso

48

de esperar um menor investimento nos sectores mais

desfavorecidos. As desigualdades são passíveis de

serem estudadas através de vários índices. Um deles,

o índice Robin Hood - cujo simbolismo é mais do que

evidente -, permite afirmar que, caso aumente,

venhamos a observar: “mais” diabetes; “mais”

obesidade; “mais” hipertensão; “mais” doenças

cardiovasculares; “mais” pobreza, e muito “mais”

doenças... Passados mais de 150 anos, depois de

Virchow ter “criado” a Medicina Social, podemos

afirmar que são necessárias terapêuticas “políticas”

para resolver muitos dos nossos problemas... O

século XIX ficou conhecido como o Século da

Liberdade e muitos esperavam que o século XX

acabasse por ser conhecido pelo Século da Justiça

Social, mas, infelizmente, não foi! A seguinte frase,

da autoria de Virchow, encerra em si muito do

potencial para a resolução dos problemas de saúde:

“A medicina é uma ciência social e a política não é

mais do que a medicina em grande escala”. Haja

vontade para a praticar como deve ser...

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

49

POLÍTICA DE AMBIENTE E SAÚDE

O filme “Uma Verdade Inconveniente” com Al Gore

foca de uma forma brilhante o problema do

aquecimento global. Presumo que são muito poucos

os que ainda não aceitam este fenómeno, por

interesse ou por eventual, e ingénua, incredulidade.

As consequências não são nada agradáveis. A

emergência de muitas doenças infecciosas mergulha,

em parte, neste fenómeno, e o reavivar de velhas

doenças, que tinham sido eliminadas em certas

latitudes, caso da malária, correm o risco de

reaparecerem. Veja-se a descrição de um caso

recente na Córsega. Mas, mesmo nos povos onde ela

grassa, equaciona-se a hipótese de voltar a utilizar o

velho DDT para controlar os vectores. Sabendo dos

efeitos deste pesticida, nada de bom se avizinha.

O equilíbrio planetário é cada vez mais delicado,

fazendo-se à custa de uma imensa entropia negativa,

quer no verdadeiro sentido da palavra, com todos os

inconvenientes energéticos, quer em sentido figurado

pelos receios resultantes das medidas a adoptar.

A par deste fenómeno, complexo, outros merecem a

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Salvador Massano Cardoso

50

nossa atenção. O caso da poluição atmosférica é uma

realidade inquestionável que não atinge apenas as

vias respiratórias, mas acaba por contribuir para o

aparecimento de problemas congénitos, tumorais e

cardíacos.

O relatório sobre Ambiente e Saúde publicado pela

Agência Europeia do Ambiente realça os efeitos da

poluição na saúde humana. As consequências

ocorrem a vários níveis e resultam de vários

poluentes. Dentro destes destacamos os níveis

excessivos de partículas no ar provenientes da

utilização dos diversos combustíveis os quais

provocam elevada mortalidade. A OMS calcula que as

partículas no ar sejam responsáveis por 100 mil

mortes e 750 mil anos de vida perdidos (dados de

2004).

As partículas mais finas estão a ser alvo de atenção

redobrada de forma a reduzir a sua produção. A

inalação crónica de baixas concentrações provoca

graves problemas de saúde. Ultimamente tem sido

discutido o papel da poluição atmosférica nas doenças

cardiovasculares caso do enfarte do miocárdio e dos

acidentes vasculares cerebrais. Aparentemente, esta

associação não seria de esperar. No entanto, alguns

estudos epidemiológicos e experimentais em animais

Page 51: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

51

revelam que a associação existe.

É muito mais prático abordar o problema da

obesidade, que constitui, também, um excelente

exemplo de outro tipo de poluição ambiental

relacionada com vários factores, em parte, genéticos,

sem dúvida, mas, sobretudo, com interesses

económicos e inoperância política, nomeadamente em

termos legais. Os portugueses são

extraordinariamente obesos o que constitui um risco

elevado de virem a sofrer diabetes,

hipercolesterolemia, enfarte e acidente vascular

cerebral. Deste modo, podemos afirmar que ser

obeso é um factor de risco cardiovascular nada

desprezível, mas no caso de viver em meio poluído,

caso das grandes cidades ou zonas industrializadas, o

risco de enfarte ou de acidente vascular cerebral

aumenta de forma significativa.

A par da poluição global, cujos efeitos começam a ser

bem conhecidos, não obstante a falta de colaboração

das autoridades que só muito a custo, e à força de

lóbis ambientalistas, é que exercem actividades

fiscalizadoras, de acordo com os tratados e

convenções internacionais, devemos citar o problema

do tabaco, e do fumo passivo, claro. O ditador Fidel

Castro, que deixou de fumar em 1986, consciente dos

Page 52: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

52

malefícios, apresentou um argumento digno de um

génio: “a melhor coisa a fazer é dá-los (tabaco) ao

teu inimigo”. Mesmo assim, é muito pouco provável

que os prisioneiros políticos de Cuba estejam a

receber caixas de charutos!

Sabemos que as medidas legislativas são

indispensáveis para reduzir as consequências deste

factor altamente nocivo. Aguardamos há bastante

tempo legislação neste sentido. No entanto, tudo

aponta para um recuo nos objectivos iniciais, pondo

em causa os interesses e direitos de muitos cidadãos.

Todos sabemos a importância de medidas legislativas

adequadas na modificação de comportamentos

impróprios para a saúde.

Esta abordagem tem um objectivo: afirmar que a

patologia ambiental é mais do que um problema de

saúde pública. Sendo, basicamente, um problema

político, e caso não ocorra uma inflexão nesse

sentido, não iremos muito longe. Acabaremos por

continuar a ser agredidos de várias maneiras, através

do ar, da água, dos alimentos, das condições

ambientais no local do trabalho, das novas

tecnologias, dos diferentes sistemas políticos e

económicos, entre outros.

Page 53: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

53

A capacitação do cidadão em termos de controlo

ambiental está bem definida através de várias

convenções que aconselham os estados a legislar no

sentido de produzirem normativos adequados às

novas realidades ambientais. É indispensável que

sejamos dotados desses meios, mas tardam.

Claro que os problemas de poluição “grosseira” são

fáceis de detectar por qualquer um de nós, graças

aos nossos sentidos, e mesmo assim eles ocorrem de

uma forma obscena debaixo dos nossos olhos e

narizes, sem que os responsáveis accionem os

mecanismos adequados à sua prevenção. Se assim é,

e estamos a falar do nosso país, o que dizer da

chamada poluição “fina”, a que não se vê, a que não

se cheira, a que não mata imediatamente e, mesmo

provocando doenças, porque provocam, demoram

décadas a manifestarem-se, acabando por serem

interpretadas como meras fatalidades da velhice?

Muito da patologia que nos atinge tem a ver com o

meio ambiente em geral e do trabalho em particular.

Claro que os estudos nestas áreas não são nada

fáceis de realizar, por falta de patrocinadores, de

interesse do próprio estado, cúmplice de interesses

instituídos e que não pretende mexer. Lá sabem as

razões. Não é preciso transformar um português

Page 54: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

54

numa Erin Brockovich, até, porque entre nós, seria

muito perigoso.

Começam a aparecer alguns estudos ambientais que

revelam efeitos negativos na saúde dos nossos

concidadãos, mas não são acarinhados e, pelos

vistos, nem bem-vindos, ao porem em causa muitas

situações negativas.

As próprias autoridades de saúde deveriam efectuar

mais estudos e fiscalização nestas áreas, mas não me

parece que seja o caso, infelizmente. Compete aos

médicos diagnosticar, denunciar e propor medidas

que possam contribuir para a melhoria do ambiente

que bem precisa, quer à escala global, mas também à

nossa escala, não esquecendo que estamos perante

uma forma de disfunção transnacional.

Importa ainda afirmar que os múltiplos e crescentes

efeitos da poluição não são estáticos mas sim

dinâmicos a ponto de provocarem efeitos nas

próximas gerações mesmo antes de virem a ter

contacto com o futuro ambiente que, esperemos, seja

muito melhor do que o presente. O que não é justo é

terem de pagar pelos disparates dos seus

antepassados.

O fenómeno epigenético começa a ser uma realidade

Page 55: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

55

incontestável, e, por isso mesmo, tem de ser tomado

em linha de conta nas políticas ambientais. Crianças

ou jovens adultos expostos a contaminação ambiental

poderão sofrer efeitos na sua estrutura susceptível de

provocar problemas a nível do ADN de tal modo que

os descendentes, directos ou mais longínquos,

venham ainda a sofrer na pele as consequências da

exposição dos seus antepassados. Esta nova

realidade obriga-nos a pensar duas vezes sobre o que

andamos a fazer, sobretudo quando as vítimas

poderão ser aqueles que não tiveram qualquer quota-

parte na produção da poluição. A responsabilidade

transgeracional é uma nova realidade a desenvolver e

a esclarecer.

Importa destacar o papel da chamada de

responsabilidade dos decisores políticos, por parte

dos cidadãos, quando, sabendo de antemão das

vantagens de determinadas decisões, as protelam. O

recente exemplo espanhol é bastante esclarecedor

desta postura. De facto, a introdução das medidas de

sistema de pontos para reduzir a sinistralidade

rodoviária acompanhou-se de efeitos muito

significativos, ao ponto dos cidadãos questionarem o

seguinte: se o Estado sabia dos efeitos positivos

desta medida, por que é que a não tomou há mais

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Salvador Massano Cardoso

56

tempo? O mesmo se pode dizer em relação ao fumo

passivo, à poluição citadina, às agressões dos

processos industriais, devido à localização ou tipo de

produtos utilizados. Mutatis mutandi, se já sabiam

dos seus efeitos, por que razão ou razões não

tomaram medidas mais cedo? A resposta que salta de

imediato, além da irresponsabilidade, é a falta de

coragem política que mata mais do que pensamos,

traduzindo uma forma de poluição muito difícil de

eliminar.

Importa que os cidadãos disponham de meios e

mecanismos de forma a exercer os seus direitos

protegendo-se das múltiplas agressões ambientais. A

problemática ambiental constitui uma das principais

preocupações a nível mundial. O elevado número de

convenções, cimeiras e protocolos são prova de um

verdadeiro desassossego ambiental. Apesar de todos

os esforços, não tem sido possível evitar as múltiplas

e constantes agressões ambientais.

A par da educação e formação cívica torna-se

imperioso criar legislação adequada para minimizar e

reduzir as consequências, salvaguardando deste

modo as diferentes espécies. A legislação criada ao

redor da poluição ambiental é vasta e naturalmente

muito importante, mas mesmo assim não é

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

57

suficiente, já que a sua aplicação prática não é

consentânea com os fenómenos que, quase

diariamente, são noticiados, os quais provocam

ansiedade e preocupação nas comunidades.

Nas últimas décadas assistimos a uma crescente

consciencialização dos problemas ambientais, como é

o caso de Portugal. Facto que consideramos

naturalmente muito positivo, mas que originou vários

problemas, nomeadamente desconfiança por parte

das populações, face às empresas poluidoras ou

potencialmente poluentes, assim como em relação às

organizações estatais a quem compete fiscalizar a

aplicação de um conjunto, cada vez mais vasto de

normativos nacionais e comunitários.

Existe uma natural e perfeitamente aceitável

desconfiança das populações face à implantação de

focos potencialmente poluidores, além dos já

existentes. Esta percepção colectiva de risco

“imposto” origina frequentemente movimentos de

contestação e de revolta contra o estabelecimento de

novas unidades e até mesmo das já existentes. As

razões aduzidas são compreensíveis. As autoridades

nem sempre cumprem a sua missão, as instituições

também não, violando frequentemente de uma forma

descarada os preceitos legais que têm como missão,

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Salvador Massano Cardoso

58

precisamente, proteger a saúde dos cidadãos e do

ambiente em geral.

Quanto ao cidadão deverá ter voz activa em todo este

processo de controlo ambiental. Não basta existirem

organismos oficiais a quem compete fiscalizar ou

associações ambientalistas que denunciem e

equacionem os problemas. É preciso que o cidadão

tenha acesso aos dados que, por lei, as empresas e

organismos têm de efectuar relativamente ao

cumprimento das normas ambientais. Deste modo,

poderá exercer o seu direito de cidadania.

A convenção de Aarhus assenta basicamente em três

pilares: o primeiro possibilita ao cidadão o direito de

acesso à informação em matéria ambiental; o

segundo permite intervir nos processos de decisão e,

por fim, o terceiro assegura o acesso à justiça. Esta

tríada é fundamental para fechar o círculo dos

intervenientes e responsáveis pelas condições e

equilíbrio ambiental, com a inclusão do elemento

mais “fraco” e menos respeitado, ou seja o vulgar

cidadão. A sua presença nesta dinâmica é imperiosa

para a resolução dos problemas.

A possibilidade dos cidadãos exercerem este direito

será determinante para uma maior confiança por

Page 59: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

59

parte dos mesmos, e organizações ambientalistas, e

um controlo eficaz das medidas de prevenção

ambiental. Qualquer cidadão deverá, legalmente, ter

acesso à informação em matéria de ambiente,

sempre que considere estar em causa o meio em que

está inserido, protegendo-se e protegendo a sua

comunidade. A disponibilidade da informação, a

participação activa e a transparência de todos os

fenómenos contribuirão para eliminar a desconfiança

comunitária, face a determinadas situações

complexas.

Ao ratificarmos esta convenção, na última legislatura,

demonstramos um sinal de maturidade e empenho na

resolução dos muitos problemas que nos afligem,

com a possibilidade de uma participação activa e

dinâmica do cidadão, sinal de uma verdadeira

capacitação, base de uma intervenção

verdadeiramente activa e eficaz.

A amplitude dos problemas relacionados com a saúde

é muito vasta. De qualquer modo, importa abordar

dois ou três aspectos mais concretos que nos

permitam analisar a complexidade e a interacção com

o nosso bem-estar.

Uma das áreas mais em foco tem a ver com a

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Salvador Massano Cardoso

60

problemática da emissão de subprodutos tóxicos e

partículas finas resultantes da combustão e

tratamentos térmicos de resíduos perigosos. Os

processos térmicos e a combustão dominam a

poluição atmosférica. A atenção tem sido dada aos

principais contribuintes, caso do ozono, compostos

orgânicos voláteis, óxidos de azoto e produtos de

combustão incompleta. Contudo, poluentes orgânicos,

tais como benzeno, dioxinas e furanos, acrilonitrilo e

brometo de metilo, são exemplos de combustão

incompleta de carbono, carbono e cloro, carbono e

azoto, e carbono e compostos de brometo,

respectivamente.

Muitos destes poluentes estão, frequentemente,

associados com partículas finas e ultrafinas. As

partículas finas são definidas de acordo com o

diâmetro. As PM2,5 e as PM0,1 têm diâmetros

inferiores a 2,5 e a 0,1 micra, respectivamente.

Muitos poluentes estão associados com partículas

finas, as quais são responsáveis por muitas doenças

respiratórias e cardiovasculares. A evidência científica

revela que estas partículas são responsáveis pelo

stress oxidativo que, por sua vez, está implicado no

desencadear de muitas patologias. Os

hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, os

Page 61: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

61

hidrocarbonetos clorados, incluindo dioxinas e

furanos, os metais tóxicos, os radicais livres estão

associados com as partículas geradas pela combustão

e têm sido responsabilizadas por vários problemas de

saúde.

Dentro de classe dos principais poluentes, resultantes

da combustão e degradação dos resíduos perigosos,

destacam-se os derivados de hidrocarbonetos de

cloro e de bromo, diversos radicais e partículas finas

e ultrafinas. As partículas ultrafinas, nanopartículas,

não são eficientemente capturadas pelos dispositivos

de controlo da poluição, penetram profundamente

nas vias respiratórias, e são susceptíveis de serem

transportadas à distância, produzindo graves

prejuízos.

As partículas de maiores dimensões PM10 depositam-

se na parte superior das vias respiratórias e podem

ser limpas através do sistema mucociliar. Em

contrapartida as PM2,5 e as PM0,1 atingem os

alvéolos pulmonares onde penetram rapidamente o

epitélio. A sua clearance é mediada através da

actividade fagocítica e dissolução das partículas. No

tocante às nanopartículas (PM<0,1), estas

conseguem ter um impacto muito significativo

noutros órgãos.

Page 62: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

62

Os radicais livres presentes nas partículas finas e

ultrafinas podem produzir alterações do ADN. Mas as

suas acções manifestam-se a nível pulmonar com

diminuição da função, alterações inflamatórias cujos

efeitos não ficam acantonados ao órgão de choque,

indo exercer os seus efeitos em várias partes da

economia humana. A função imunológica sofre,

igualmente, os efeitos, ao modular a resposta devido

a certas infecções respiratórias.

São inúmeros os estudos epidemiológicos que

revelam aumento da mortalidade associada a níveis

elevados de PM. A hospitalização de crianças em

idade pré-escolar, assim como pessoas de idade

duplica nas comunidades onde as PM10 atingem

concentrações superiores ao recomendado. Os

macrófagos alveolares humanos apresentam

diminuição significativa de certos número de

receptores para a defesa do hospedeiro quando

expostos às PM. Por exemplo, a capacidade de

produzir ROS (reactive oxygen species), que são

muito importantes na destruição de microrganismos,

fica substancialmente reduzida dentro de 18 horas,

assim como uma diminuição significativa da sua

capacidade fagocítica.

Além de múltiplas perturbações da função pulmonar,

Page 63: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

63

o desenvolvimento pulmonar nas crianças pode ficar

comprometido. O sistema cardiovascular não está

imune aos seus efeitos. De tal modo, que a taxa de

mortalidade cardiovascular pode ser superior à taxa

de mortalidade respiratória nos picos de poluição

atmosférica. A associação temporal entre a

hospitalização e a mortalidade cardiovascular e as

partículas ambientais é muito curta (0 a 3 dias)

sugerindo que o incremento observado seja devido a

isquémia miocárdica, enfartes e/ou arritmias

ventriculares. A longo prazo a inflamação

cardiovascular torna-se uma realidade responsável

por vários fenómenos degenerativos. Os mecanismos

precisos, através dos quais as PM aumentam o risco

cardiovascular ainda não estão perfeitamente

esclarecidos. De qualquer modo, a evidência aponta

para o papel das citocinas, para a absorção pelo

sangue e transporte até ao coração. As partículas

ultrafinas parecem que penetram profundamente no

organismo humano, através do tracto respiratório

inferior, difundindo-se pelo organismo, através da

corrente sanguínea.

A genotoxicidade, que resulta em alterações do ADN,

assim como perturbações da reprodução, é, a par de

outras, objecto de atenção e de estudo dos efeitos

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Salvador Massano Cardoso

64

das diversas partículas que não se esgotam nas

tradicionalmente já, relativamente, bem conhecidas

PM10, mas, sobretudo nas mais finas, nomeadamente

nanopartículas.

Um dos problemas que mais preocupam as

autoridades de saúde pública diz respeito aos

chamados disruptores endócrinos que são agentes

que interferem na síntese, armazenamento,

libertação, secreção, transporte, eliminação, ligação,

ou acção das hormonas. Obviamente as

consequências da sua exposição dependem do

momento, duração e intensidade de exposição. É no

decurso do desenvolvimento fetal e nas crianças que

ocorrem as denominadas janelas de vulnerabilidade.

Estudos efectuados em animais, no decurso do

desenvolvimento fetal, revelam alterações da

morfologia genital, do momento da “puberdade”, da

atracção e comportamento sexuais e do nível de

descendência. Tudo isto provocado por ligeiras

flutuações das hormonas esteróides devido ao efeito

de múltiplas substâncias disruptoras.

As observações experimentais revelam uma relação

entre a exposição fetal e fenómenos que

comprometem a saúde na vida adulta, traduzindo um

Page 65: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

65

longo intervalo de tempo entre a exposição e o

aparecimento de perturbações ou doenças.

A perspectiva histórica é recente. Na década de 30

várias substâncias químicas foram consideradas como

tendo propriedades estrogénicas, tais como PAHs

(hidrocarbonetos aromáticos policíclicos), bisfenol-A

(plásticos, resinas epóxi e retardadores de chama)

cuja actividade estrogénica é reconhecida desde

1938, DDT, DES (dietilstilboestrol) que chegou a ser

ministrado a milhões de mulheres grávidas.

A lista de substâncias consideradas como disruptoras

endócrinas é extensa. Destacamos os alquifenóis, os

ftalatos, mais de quarenta pesticidas, dioxinas,

furanos, PCBs e compostos organoclorados. Os seus

efeitos abrangem a redução da fertilidade, atrofia

testicular, alterações de hormonas tiroideias,

perturbações do funcionamento dos linfócitos,

bloqueio de receptores androgénicos, entre outros.

Fungicidas, insecticidas, detergentes, tintas, plásticos

podem conter disruptores. Os ftalatos, grupo de

substâncias químicas mais abundante de origem

humana, apesar de terem fraca actividade

estrogénica, podem ser responsáveis por muitas

perturbações e doenças.

Page 66: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

66

Sabemos que muitas doenças têm vindo a aumentar,

caso, por exemplo, do cancro da mama, o qual tendo

na sua génese vários factores responsáveis, também

está associado à exposição a estrogénios. A exposição

a substâncias com actividades estrogénica durante a

vida fetal, puberdade e adolescência pode ter algum

papel no incremento observado nas últimas décadas.

O cancro testicular, raro, deixou de o ser nos últimos

trinta anos. Nalguns países a incidência quintuplicou,

e não é por acaso que ocorra em países

caracterizados por rápido desenvolvimento industrial

e fenómenos de poluição.

Em 1976 Seveso sofreu os efeitos de uma explosão

durante a qual se formou uma nuvem de dioxinas que

é um importante disruptor endócrino. Em 1989,

começou a suspeitar-se de aumento do número de

cancros que podia ser atribuído à exposição ocorrida

vinte e três anos antes. O número era pequeno, pelo

que não foi possível tirar conclusões significativas.

Mas, em 1999, os estudos epidemiológicos

permitiram verificar riscos relativos significativos de

vários tipos de cancros, quer para os homens, quer

para as mulheres. Aumentos de mieloma, cancros

linfohematopoiéticos, leucemias, (número pequeno),

e alteração da razão de masculinidade.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

67

Em termos de Saúde Pública podemos enunciar que

os disruptores endócrinos poderão ter a sua quota

parte de responsabilidade no aumento do cancro da

próstata, no declínio do número de contagem de

espermatozóides, por alterações neurológicas

(memória e atenção), do comportamento (sexual), da

aprendizagem, pela endometriose e ovários

poliquísticos, constituindo uma área de investigação

científica de primeira linha, já que os seus efeitos,

nada discipiendos, não se esgotam na população

alvo, mas podem dar verdadeiros saltos

transgeracionais, comprometendo a saúde e a

qualidade de vida dos nossos descendentes,

obrigando que a actual geração proceda à sua

identificação, controlo e eliminação.

Koffi Annan, a propósito da recente conferência da

ONU sobre alterações climáticas, em Nairobi,

afirmou: “As nossas sociedades ainda estão a tempo

de mudar de rumo. Não temamos os eleitores nem

subestimemos a sua vontade de fazer investimentos

importantes e mudanças a longo prazo!”.

É melhor actuar enquanto há tempo. Depois…

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Salvador Massano Cardoso

68

Page 69: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

69

AMBIENTE E SAÚDE

Falar de ambiente e de poluição é um dos principais

imperativos sociais e científicos do nosso tempo.

Como é do conhecimento geral, somos o resultado de

uma interacção ocorrida ao longo de milhões de anos

entre o património genético e o meio ambiente.

Poluição houve sempre, mas os tempos actuais são

muito férteis em factores poluentes cujos efeitos

começam a ser preocupantes quer para a nossa

espécie, mas também para as demais.

O tema é tão vasto e complexo que dificilmente

poderemos abordá-lo em toda a extensão. Sendo

assim, nada melhor do que focalizar ou particularizar

alguns aspectos, susceptíveis de chamar a atenção

obrigando-nos a pensar e a reflectir.

Há pouco tempo li uma notícia interessante que dava

conta de um fenómeno muito estranho ocorrido na

Austrália: “chuva de pássaros mortos”.

Neste país continente, numa pequena cidade

portuária, curiosamente chamada Esperança(!), os

habitantes começaram a observar um estranho

fenómeno: os pássaros tombavam mortos dos céus,

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Salvador Massano Cardoso

70

sem que houvesse um ataque maciço de chumbadas

por parte dos caçadores! Como a hipótese de morte

súbita por enfarte do miocárdio não foi colocada, os

habitantes, alarmados, denunciaram a situação às

autoridades, exigindo que as mesmas dessem

explicações. As autoridades de saúde afiançaram que

não tinham que se preocupar, mesmo depois de

terem encontrado níveis elevados de chumbo e níquel

nos tanques de água da chuva, a principal fonte

naquelas paragens. Nalgumas amostras os níveis

ultrapassavam em 130 vezes os limites. Milhares de

pássaros morreram envenenados por chumbo.

Esperança é um porto através do qual são exportados

níquel e carbonato de chumbo para a Ásia.

Agora interromperam as operações depois do chumbo

ter poluído o ar, a água e o mar.

As populações estão indignadas, e muito

preocupadas, pelo facto das autoridades terem

demorado meses a esclarecer a situação, com a mais

perfeita e despudorada arrogância de quem detêm o

poder, apesar das evidências terem tido início meses

antes!

Pensava eu que só no nosso terceiro-mundismo

comunitário é que seria possível observar uma

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

71

inoperância desta natureza, mas afinal também

ocorre em países mais desenvolvidos do que o nosso.

Para esclarecer o problema criaram uma comissão (os

mecanismos são os mesmos).

O ministro da saúde considera a situação

preocupante, em termos de saúde pública, mas, logo

a seguir, o responsável técnico do departamento de

saúde australiano vem afirmar que os níveis de

chumbo no sangue das pessoas não são assim tão

elevados, em muitas pessoas. Logo, a causa não está

perfeitamente esclarecida!

Entre nós não há registo, felizmente, de pássaros a

caírem do céu. Mas as afirmações de que as

incineradoras no meio da cidade são a “coisa” mais

natural do mundo, ou que a emissão de poluentes

provenientes da combustão de resíduos industriais

perigosos é inferior aos combustíveis habituais dão

que pensar.

Em síntese, os responsáveis não são muito dados a

respeitar os direitos dos cidadãos. Austrália ou

Portugal, qual a diferença?

Page 72: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

72

Já afirmei que a poluição também atinge outras

espécies e a este propósito não queria deixar de focar

que muitas substâncias lançadas no ambiente, na

sequência de actividades humanas, têm sido

responsabilizadas, mesmo em doses baixas, por

alterações fisiológicas de muitas espécies, incluindo o

homem. As modificações operadas a nível dos

organismos condicionam e propiciam o aparecimento

de muitas doenças, nomeadamente, degenerativas.

Estes achados têm sido alvo de atenção e

preocupação por parte dos cientistas, os quais vão

alertando para a necessidade de evitar e minimizar as

consequências nefastas, mas, aparentemente, sem

grande sucesso. Paralelamente a estes factos,

adicionam-se outros, que são igualmente

preocupantes. De facto, começam a ser descritas

modificações comportamentais em diferentes

espécies. Garças, gaivotas, caracóis, codornizes,

ratos, macacos, mosquitos, falcões, rãs, entre outros,

têm sido estudados, verificando-se alterações

importantes no acasalamento, na formação de

ninhos, na aprendizagem, no forragear, no voo, no

cantar, alguns não conseguem fugir dos predadores,

outros procuram membros do mesmo sexo, enfim, o

mundo animal começa a apresentar sinais bizarros

provocados pela exposição a muitos químicos em

Page 73: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

73

baixas concentrações. Houve quem, em jeito de

graça, afirmasse que os peixes se tornam

hiperactivos – às tantas até saltam

desesperadamente para os anzóis dos pescadores –

as rãs tornam-se estúpidas (também nunca me

apercebi que fossem inteligentes), os ratos intrépidos

e muitas gaivotas despenham-se em pleno voo.

Se no futuro, estes dados forem confirmados, então,

quem sabe, se muito daquilo que observamos no

nosso dia poderá ser explicado pelas mesmas

substâncias que provocam aqueles efeitos nos

animais!

Esta abordagem ilustra que os comportamentos de

muitos animais começam a ser preocupantes,

constituindo indicadores da gravidade de exposição

ambiental que não se esgotam nas actividades

industriais já que muitos cientistas começam a

denunciar um grave problema de poluição motivado

pelo uso dos diferentes fármacos. Têm sido

detectadas na água de abastecimento, por esse

mundo fora, dezenas de substâncias, tais como,

antibióticos, tranquilizantes, hormonas sexuais,

anticonvulsivantes, analgésicos, antihipertensores,

antihipercolesterolémicos, antinflamatórios, entre

muitas outras. As concentrações são da ordem de

Page 74: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

74

partes por milhão, por bilião ou mesmo por trilião,

muito abaixo dos níveis das doses médicas, pelo que

as águas são consideradas seguras. Mas serão

mesmo?

Os diferentes produtos e seus derivados alcançam os

aquíferos através da eliminação dos esgotos

contaminados pelos excreta dos que tomam

medicamentos. As centrais de tratamento dos

“esgotos” e das águas de abastecimento não

conseguem eliminar totalmente os fármacos e os

seus derivados. Atendendo ao número de pessoas

que os tomam, para não falar dos que são usados na

agropecuária, não é de admirar que este fenómeno

comece a preocupar os responsáveis, tanto mais que

alguns estudos apontam para efeitos negativos nos

diversos ecossistemas e, em última análise, o homem

também não irá escapar.

Ao reflectir sobre este assunto, perpassou-me pela

cabeça que os produtos homeopáticos deveriam ser

considerados como “ecológicos”, já que não havendo

comprovação científica da sua eficácia, aliada,

praticamente, à “ausência” de moléculas activas nos

seus produtos, não contaminam o meio ambiente.

Page 75: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

75

Claro que os medicamentos homeopáticos não podem

produzir alterações ambientais. Mas o mesmo não se

passa em relação aos plásticos, infelizmente.

Já tive oportunidade de escrever sobre a

problemática da poluição provocada pelos plásticos.

De facto, os oceanos, e não só, estão cheios de

produtos à base deste material, os quais constituem

focos de atracção para várias espécies marinhas. Ao

ingeri-los acabam por sofrer consequências muitas

vezes mortais. Tartarugas, golfinhos, baleias e muitas

aves, nomeadamente albatrozes, são vítimas deste

grave atentado ambiental.

Dentro do “mundo plástico”, os sacos que utilizamos

no dia a dia, e que começaram a ser introduzidos na

década de setenta, constituem uma das principais

fontes. Basta dizer que globalmente utilizamos entre

500 mil milhões a um trilião por ano, qualquer coisa

como 150 sacos por pessoa, ou seja a um ritmo de

um milhão de sacos por minuto. Não esquecer que o

tempo médio de vida de um saco de plástico é

bastante miserável, cerca de 12 minutos, o que

contrasta com a sua permanência no meio ambiente

que se pode contabilizar por dezenas e mesmo

centenas de anos! Tudo isto, porque degradam-se

muito lentamente. A natureza não previu que um dia

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Salvador Massano Cardoso

76

aparecessem coisas “estranhas” e,

consequentemente, não desenvolveu mecanismos

adequados à sua destruição. Tanto é assim que neste

momento está a constituir-se no oceano Pacífico um

novo continente feito à custa de plásticos, fruto das

condições marítimas que levam para aquelas bandas

o lixo de plástico planetário.

Há que interromper este ciclo. O facto de começarem

a surgir movimentos contra o uso sacos de plástico,

estimulando o uso de materiais biodegradáveis é de

louvar e de encorajar.

A este propósito, a cidade de Modbury, na Grã-

Bretanha, passou a constituir o primeiro local a abolir

os sacos de plástico nas compras. Todos os 43

comerciantes desta localidade passaram a receber

sacos de papel reciclável ou sacos reutilizáveis feitos

de algodão, de juta e de outros materiais

biodegradáveis.

A ideia partiu da fotógrafa Rebeca Hosking que, numa

viagem ao Havai, acabou por verificar que os

albatrozes, e sobretudo os seus filhotes, morriam

devido ao facto de se alimentarem com tudo o que

era plástico que encontravam nas suas longas

peregrinações em busca de alimentos. Tudo o que

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

77

brilha à superfície é interpretado como alimento, é

“pescado” e ao fim de centenas e centenas de milhas,

pensando que carregam alimentos para os filhotes,

acabam por lhes enfiar nas goelas brinquedos,

plásticos variados e até isqueiros. Claro que os

animais morrem e os seus corpos ao degradarem-se

revelam as causas já que no meio das carcaças

surgem os tais plásticos prontos a serem novamente

“pescados” ou engolidos por outras espécies,

perpetuando a morte.

Chocada com este quadro, Rebeca conseguiu

convencer os comerciantes de Modbury a associarem-

se a este projecto. Não importa se é ou não a

primeira localidade a assumir este comportamento,

até, porque São Francisco na Califórnia acabou, muito

recentemente, por tornar-se na primeira cidade a

proibir o uso de sacos de plástico nos grandes

supermercados e farmácias. Apesar de todo o

processo legislativo ainda não estar completo, os

envolvidos manifestaram o seu acordo e não deve

haver grandes problemas (supermercados com

facturação superior a dois milhões de dólares por ano

e farmácias com mais de cinco filiais).

A necessidade em promover a reciclagem não é nova.

Até o próprio Bangladesh, pais paupérrimo, já proibiu

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Salvador Massano Cardoso

78

o uso de sacos de plástico quando se descobriu que o

sistema de esgotos do país ficava entupido,

contribuindo para o agravamento de inundações tão

comuns naquela parte do globo.

Aqui está uma medida simples, perfeitamente

acessível, capaz de contribuir para um ambiente

melhor e estimular a consciência ambiental dos

cidadãos, preservando um planeta que tem sido tão

mal tratado. Uma medida simples arrasta outras

medidas simples.

Alguns supermercados começam a tomar medidas,

utilizando, por exemplo, materiais recicláveis. Um

bom princípio, mas manifestamente insuficiente sem

o concurso dos restantes operadores, comerciantes e

clientes.

Já lancei o repto de Coimbra aderir a um projecto

desta natureza. Bastaria que os comerciantes da

nossa cidade, com a ajuda dos responsáveis locais e

com a “anuência” do cidadão anónimo aceitassem.

Com tanta discussão ao redor dos perigos ambientais,

bem poderíamos mostrar que também somos capazes

de os evitar...

Fala-se muito sobre poluição atmosférica. De facto,

Coimbra, apesar de ser uma cidade mediana já tem

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

79

problemas de poluição atmosférica.

A poluição atmosférica não se cinge apenas aos

órgãos de choque, vias respiratórias, pele, olhos, mas

também a outros órgãos da nossa economia, caso do

coração.

O relatório sobre Ambiente e Saúde publicado pela

Agência Europeia do Ambiente realça os efeitos da

poluição na saúde humana. As consequências

ocorrem a vários níveis e resultam de vários

poluentes. Dentro destes destacamos os níveis

excessivos de partículas no ar provenientes da

utilização dos diversos combustíveis os quais

provocam elevada mortalidade. A O.M.S. calcula que

as partículas no ar sejam responsáveis por 100 mil

mortes e 750 mil anos de vida perdidos (dados de

2004).

As partículas mais finas estão a ser alvo de atenção

redobrada de forma a reduzir a sua produção. A

inalação crónica de baixas concentrações provoca

graves problemas de saúde: desencadeiam ataques

de asma além de graves doenças pulmonares e

cardíacas. Os novos limites a propor são

manifestamente inferiores aos existentes o que exige

a tomada de medidas bastante drásticas. Não

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Salvador Massano Cardoso

80

esqueçamos que os veículos a gasóleo e as fontes

que utilizam carvão são as principais fontes destas

partículas.

Ultimamente tem sido discutido o papel da poluição

atmosférica nas doenças cardiovasculares, caso do

enfarte do miocárdio e dos acidentes vasculares

cerebrais. Aparentemente, esta associação não seria

de esperar. No entanto, alguns estudos

epidemiológicos e experimentais em animais revelam

que a associação existe e poderá ser explicada

através de fenómenos inflamatórios que, ocorrendo a

nível pulmonar, acabam por se repercutir a nível

sistémico. Assim, no caso de artérias apresentarem

lesões ateroscleróticas o processo inflamatório pode

agravá-las e desencadear uma situação de obstrução.

A obesidade constitui uma das mais graves epidemias

do mundo ocidentalizado e tem uma influência

negativa na saúde dos vasos sanguíneos. Os

portugueses e, sobretudo, as portuguesas estão cada

vez mais obesos, ao ponto de 52% das últimas, com

idade igual ou superior a 18 anos, ultrapassarem um

perímetro abdominal de 88 cm, o que constitui um

risco elevado de virem a sofrer diabetes,

hipercolesterolemia, enfarte e acidente vascular

cerebral.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

81

Deste modo, podemos afirmar que ser obeso é um

factor de risco cardiovascular nada desprezível, mas

se viver em meio poluído, caso das grandes cidades

ou zonas industrializadas, o risco de enfarte ou de

acidente vascular cerebral aumenta de forma

significativa. Se for obeso ou praticar uma dieta não

saudável, por exemplo rica em gorduras, é melhor

não respirar as partículas provenientes da combustão

de gasóleo ou do carvão.

Comer uma refeição rica em gorduras num

restaurante ou numa esplanada na Avenida na Fernão

de Magalhães em Coimbra ou na Avenida da

Liberdade em Lisboa pode constituir uma associação

muito perigosa para as nossas artérias…

Se eu disser que pode haver alguma relação entre

aspirina e a poluição, alguém acreditará? Pois parece

que sim.

Vejamos o seguinte: eu faço parte de um grupo que

não tem grande receio em andar de avião, até,

porque, frequentemente, chego a adormecer mesmo

antes de levantar voo! Das duas uma, ou é alguma

falta de oxigenação que ataca o meu cérebro, ou,

então, este quer “desligar-se” de qualquer coisa. Mas,

adiante. O que me incomoda mais é a falta de

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Salvador Massano Cardoso

82

espaço. Apesar de não preencher os critérios de ser

um “avantajado”, sinto-me apertado e não sei onde

meter as pernas.

Há já algum tempo foi descrito um novo síndroma,

denominado da “classe económica” que, segundo

alguns autores, é uma designação errada, já que

pode atacar os passageiros da classe executiva e,

até, mesmo os que viajam noutros meios de

transporte. Afinal, tudo se resume à formação de

pequenos trombos nas veias das pernas devido à

imobilização das mesmas. Assim, quanto maior for o

tempo da viagem sem mobilização dos membros

inferiores maior é o risco de vir a sofrer uma

“trombose venosa profunda” a qual pode libertar

trombos capazes de se alojarem nos pulmões,

podendo, nalgumas circunstâncias, provocar a morte.

Para evitar tal situação recomenda-se várias práticas

que vão desde a utilização de meias elásticas,

movimentos com contracção dos músculos das

pernas, tentar andar pelo corredor, uso de aspirina, e

até mesmo de anticoagulantes, sobretudo nas

pessoas de elevado risco, caso de idosos ou quem

tenha sido sujeito a cirurgia.

A par da situação já descrita, veio agora juntar-se

mais alguns dados novos. Ou seja, novas “causas”

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

83

para a denominada “trombose venosa profunda”.

A poluição atmosférica tem sido ultimamente

responsabilizada por vários problemas, caso de

acidentes cardiovasculares, nomeadamente enfarte

do miocárdio. Pois bem, tudo aponta para que as

pessoas que habitem, ou trabalhem, em zonas

poluídas corram riscos acrescidos de virem a sofrer

“trombose venosa profunda” semelhante ao já

definido “síndroma da classe económica”. E o risco

não é nada pequeno, chega a ser 75% superior nas

áreas mais poluídas! Deste modo, o que poderá ser

feito para as pessoas que respiram ar poluído?

Mexerem as pernas? Já as mexem! Às tantas, os

autarcas das zonas mais poluídas das suas cidades

ainda vão começar a distribuir meias elásticas ou

aspirinas para prevenirem o problema. Aqui está um

bom mote para uma campanha eleitoral. “Pela minha

parte comprometo-me a oferecer a todos os

munícipes das zonas poluídas um par de meias

elásticas e uma caixa de aspirinas para prevenir a

“síndroma da classe económica”.

Como andamos a sofrer “embolias” de vários tipos

sempre é uma ajudita...

Não queria terminar sem fazer uma abordagem ética

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Salvador Massano Cardoso

84

sobre os problemas de poluição ambiental.

A razão de sexos ao nascimento é definida pelo

número de crianças do sexo masculino versus os do

sexo feminino. Por cada 100 raparigas nascem

105/106 rapazes. Especula-se muito sobre as razões

deste fenómeno. Em certos países e regiões foram

observados desvios e inversões desta razão. Quanto

às causas, são muitos os factores invocados. Entre

estes, destacam-se os de origem ambiental,

constituindo a inversão da razão de masculinidade –

para alguns autores – um “bom” sinal de alerta de

agressão durante a gravidez, já que o sexo masculino

é mais sensível às “agressões” químicas do que os

indivíduos do sexo feminino. Não obstante a

controvérsia entre os diferentes autores, não é de

excluir esta hipótese, reforçada por vários estudos

recentes.

As comunidades remotas que vivem ao redor do

Círculo Polar Árctico apresentam duas vezes mais

raparigas do que rapazes. Curiosamente, países como

os Estados Unidos e Japão exibem, pela primeira vez,

um predomínio feminino!

Os cientistas concluíram que a poluição química é o

principal responsável por tão preocupante fenómeno.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

85

Os poluentes são canalizados pela acção dos ventos e

dos rios, “afundando-se” numa zona muito sensível

do planeta, acabando por contaminar a cadeia

alimentar e, consequentemente, atingindo os seres

humanos e outros animais.

A Gronelândia apresenta a maior proporção de

mulheres do mundo.

O Árctico já demonstrou a sua “utilidade” ao

contribuir para o diagnóstico das alterações climáticas

em curso. Agora, está a “mostrar” o que pode

acontecer à Humanidade em termos de poluição. Na

prática, não se vislumbram grandes preocupações

nesta matéria.

Muitos dos poluentes de origem humana – frutos da

actividade industrial – são dotados de actividade

semelhante às hormonas femininas. A inundação

destes disruptores no meio ambiente é cada vez mais

preocupante. Importa, naturalmente, aplicar medidas

preventivas à escala planetária, antes que seja tarde

de mais, a fim de evitar uma catástrofe difícil de

quantificar. Não é "só" o fenómeno de inversão que

está em causa. Outras consequências a nível da

saúde são muito sérias para as ignorarmos.

"Um problema de ética ambiental" que urge

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Salvador Massano Cardoso

86

resolver...

Tenho muito respeito pelos movimentos

ambientalistas que têm desempenhado um papel

muito importante como denunciadores e

consciencializadores da opinião pública.

Os movimentos ambientalistas têm algumas tiradas

capazes de provocar avinagradas reacções face a um

aparente “patetismo”. No entanto, importa saber que,

ao chegarem a essas atitudes, despoletadoras de

críticas, já decorreram muitas e muitas tragédias

tradutoras de incúria e falta de respeito pelo

ambiente, além dos fatais interesses económicos.

As evidências científicas têm vindo a esclarecer

muitas dúvidas, alertando para situações que, à falta

de melhor expressão, poderemos classificar como

dramáticas. Caso das modificações do

comportamento e sobrevivência de batráquios e

répteis e agora de aves.

O uso indiscriminado de pesticidas tem tido efeitos

muito nefastos. O velho DDT, usado

indiscriminadamente durante muitos anos, e apesar

de ter sido abandonado, continua a fazer das suas.

Quem diria que certas partes dos cérebros de tordos,

responsáveis pelas “cantigas” e pelo acasalamento,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

87

sofrem uma atrofia quando expostas a níveis

elevados daquele pesticida? É verdade. O facto da

natureza não conseguir degradar de forma adequada

este químico, já que continua a persistir desde a

década de sessenta, assusta qualquer um com

interesses nestas áreas.

Como a poluição é fundamentalmente “feminina”, os

machos são os mais atingidos. As partes do cérebro

mais sensíveis às hormonas reprodutivas, associadas

com o canto e o acasalamento, são bastante

afectadas. Coitados! Querem cantar e devem sair

sons que aos ouvidos das fêmeas devem a soar a

perfeitos castrati, ou, então, querem acasalar mas,

quando chegam a vias de facto, não devem saber

como! O estudo incidiu em tordos, mas é muito

provável que atinja outras aves e que outros

pesticidas possam ter efeitos semelhantes.

Desconhecem-se, como é óbvio, as consequências

neurológicas e comportamentais nos seres humanos,

mas não é de excluir alguns efeitos. O tempo o dirá.

Quem sabe se muitas das atitudes, face ao aparente

“patetismo” dos que pretendem defender o meio

ambiente, não são já uma tradução do atrofiamento

do cérebro provocado pelos pesticidas, isto para não

nos envolvermos com certas formas de “cantar”…

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Salvador Massano Cardoso

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

89

AMBIENTE, EVOLUÇÃO E PATOLOGIA HUMANA

Há cerca de 2.500 anos, Demócrito afirmou que “tudo

o que existe no universo é fruto do acaso e da

necessidade”. Em 1970, Jacques Monod, prémio

Nobel francês, escreveu um ensaio com o título “O

acaso e a necessidade”. Na sua obra, Monod escreve

que “a antiga aliança foi quebrada; o homem,

finalmente, sabe que está sozinho na imensidão

indiferente do universo, do qual emergiu por acaso.

Seu dever, como seu destino, não está escrito em

lugar nenhum”. O nosso destino não está escrito, mas

está fortemente condicionado pelas interacções entre

um património genético seleccionado para viver em

determinadas circunstâncias e a realidade actual,

para não falar da futura. Assim, nasce a necessidade

de conhecer as causas do sofrimento e da doença

que, desde todo o sempre, acompanhou e continua a

acompanhar a nossa espécie e todas as outras.

Há, de facto, uma constante ligada à vida que é a

existência da doença. Em termos evolutivos é uma

fatalidade, ou melhor uma necessidade. Não podemos

ignorar que a doença é um processo biológico mais

antigo que o homem. Antigo como a própria vida,

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Salvador Massano Cardoso

90

porque é um atributo da vida. Sendo assim, todo o

esforço efectuado no sentido de a evitar estará, em

princípio, condenado ao fracasso.

Podemos afirmar que dentro dos inúmeros objectivos

da espécie humana, há um que poderemos considerar

como universal: viver mais e de preferência com

saúde. Os esforços indirectos ocorridos ao longo da

nossa história e os directos desenvolvidos, sobretudo,

no último século, em termos de qualidade de saúde

permitiram que a esperança de vida tivesse sofrido

um acréscimo significativo no período compreendido

entre o início do século XX e os nossos dias, passando

dos 40 para os cerca de 80 anos, facto que contrasta

com os 25 da pré-história e até mesmo com os 30

anos no período áureo do império romano.

A forma de morrer e de adoecer reflectem as

diferentes eras e épocas. Com o aumento da

esperança de vida, novas, ou melhor, situações não

previstas durante a evolução primordial tornaram-se

bastante prevalentes, constituindo focos de atracção

e de investigação que estão na base da compreensão

dos seus mecanismos e, consequentemente, na luta e

prevenção das mesmas.

Face à situação actual, quais são os cenários que se

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

91

colocam ao homem para viver mais anos e com mais

saúde? Podemos considerar três: viver mais uns

anitos, graças à genética (mas não para já), à

medicina preventiva e à intervenção médica

secundária. Podemos, caso consigamos alcançar os

meios necessários, viver muitos mais anos, mas

dificilmente evitaríamos a demência e, por fim, no

limite, traduzindo anseios divinos alcançar a eterna

juventude e a imortalidade. Não podemos esquecer

que, depois de termos comido o fruto da árvore da

sabedoria, andamos a lamber os frutos da árvore da

vida.

A investigação médica-biológica centra a atenção em

três grandes áreas: reparação das lesões cancerosas,

reparação das lesões arteriais e dos neurónios.

Mesmo na hipótese de cura destas três grandes tipos

de lesões, não conseguiríamos atingir a imortalidade

e, nem sei se valeria a pena, basta ver o que

aconteceu a Titonus quando a deusa Aurora se

apaixonou por este mortal. Pediu a Zeus a

imortalidade para o seu amado. Zeus concedeu-lhe,

mas imortalidade não é sinal de juventude eterna.

Assim, Titonus envelheceu, envelheceu até que ficou

totalmente demente. Como não podia morrer, Aurora,

piedosamente, transformou-o em gafanhoto, símbolo

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Salvador Massano Cardoso

92

da eternidade. Não vejo vantagens em sermos

“gafanhotos”.

Através de um exercício académico podemos calcular

o que aconteceria se, por artes mágicas, fosse

possível eliminar todas as doenças cardiovasculares,

neoplásicas e todas as causas de morte natural,

ganharíamos cerca de 46 anos de vida. Se

adicionássemos à esperança de vida actual cerca de

78 anos, iríamos viver quase tanto como Jeanne

Louise Calment que morreu aos 122 anos, porque

tinha que morrer.

Esta introdução tem como objectivo ilustrar que o

conhecimento das causas das doenças e a capacidade

para as eliminar ou reduzir não irão permitir viver

mais do que aquilo que “merecemos”, e ainda bem. O

ideal seria viver mais anos e de preferência com

saúde.

Para combater as doenças e preveni-las temos de

conhecer as causas. Hoje, já sabemos muito, mas

não tanto como desejaríamos. Na análise das doenças

focamos a atenção às causas próximas das doenças,

ou seja, sal em excesso, consumo de tabaco, de

gorduras, exposição ao sol, falta de exercício,

exposição a noxas ambientais, agressões sociais e

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

93

psicológicas, entre muitas outras. Mas, esquecemos

de focar a nossa atenção nas causas remotas. As

explicações prévias permitem compreender porque é

que algumas pessoas adquirem a doença e outras

não, ao passo que as explicações evolucionistas

mostram, porque é que em geral os seres humanos

são susceptíveis a algumas doenças e não a outras. A

perspectiva darwiniana da medicina abre novas e

interessantes explicações para as doenças,

recordando que não podemos encarar somente as

causas próximas, mas também temos de entrar em

linha de conta com as causas evolucionárias. As

explicações próximas respondem ao “o quê?” e ao

“como?” (perguntas sobre estruturas e mecanismos).

As explicações evolucionárias respondem ao

“porquê?” (perguntas sobre a origem e funções).

A selecção natural originou órgãos tão complexos

como os olhos, o cérebro, o coração e mecanismos de

defesa tão sofisticados como o sistema imunológico.

Mas não conseguiu dotar-nos de mecanismos que

possibilitem substituir um dedo quando o perdemos,

reparar uma artéria obstruída ou viver 200 anos. O

estudo da fisiologia humana e dos diferentes sistemas

são verdadeiramente maravilhosos, mas,

aparentemente a natureza não explica certos “erros”.

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Salvador Massano Cardoso

94

Porque razão a vias digestivas e área se cruzam?

Para nos engasgamos? Não. Estamos perante velhos

compromissos da evolução. Do mesmo modo

poderíamos perguntar porque razão um quarto da

população mundial sofre de miopia? Porque é que não

foram eliminados os genes responsáveis ao longo da

evolução? São inúmeros os exemplos que podíamos

descrever para demonstrar a incongruência em

termos evolutivos de determinadas características.

Viver comporta uma dose elevada de ansiedade que,

tal como a dor, é indispensável para nos protegermos

das agressões do meio ambiente, só que as

agressões modernas são bastante diferentes das

primitivas. A selecção de algumas patologias poderão

ilustrar a importância das causas remotas ou

evolucionárias no seu desencadeamento ou

aparecimento.

O sistema nervoso autónomo é um sistema de

respostas altamente adaptativo e bastante primitivo,

já que foi encontrado nos organismos primitivos. Uma

das situações não previstas durante a evolução

primordial do sistema autónomo é a emergência das

doenças crónicas. Muitas doenças humanas podem

ser consideradas como desvios evolucionários, e as

distorções do equilíbrio autónomo podem participar

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

95

na patogenia. Muitas doenças cardiovasculares que

afligem a maioria das populações do mundo ocidental

reflectem mal adaptação da tríada da resposta ao

trauma: adrenergia, inflamação e coagulação. O

trauma desempenhou um papel determinante na

selecção natural da evolução pré-moderna. A

competição ecológica foi sempre uma constante.

Traumatismos mortais e subletais, resultantes de

conflitos com outros indivíduos ou em interacção com

o meio ambiente, obrigavam à manifestação de um

conjunto de mecanismos de defesa, sem os quais, a

probabilidade de sobreviver seria praticamente nula.

Deste modo, os componentes do trauma, adrenergia,

inflamação e coagulação limitavam (e continuam a

limitar) as perdas de volume intravascular, a defesa

das feridas contra os microorganismos e o início da

reconstrução dos tecidos. Os traumatismos

desempenharam um papel preponderante na

construção evolucionária e na fisiologia do organismo.

Muitas doenças cardiovasculares podem reflectir,

modernamente, desvios à resposta traumática

adaptativa. A alimentação, os diferentes estilos de

vida, o aumento da esperança de vida constituem

novos agentes stressizantes dos nossos sistemas

fisiológicos. O tabaco, a hipercolesterolemia, a

hipertensão e a diabetes convergem e provocam

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Salvador Massano Cardoso

96

microagressões nos vasos sanguíneos com a

subsequente disfunção endotelial. Trauma do

endotélio, inflamação a nível dos vasos e coagulação

são manifestações da tríade do trauma que, no caso

dos traumatismos, salvam as vidas, mas que

reportadas a nível de uma artéria coronária

constituem uma catástrofe, por vezes mortal.

Estamos perante um exemplo de um desvio

caracterizado por má adaptação não prevista na

evolução.

O próprio sistema renina-angiotensina é

filogeneticamente muito antigo, observado em

espécies tão velhas como os elasmobranquios. Há

mais de 500 milhões de anos possibilitou a invasão

da terra de organismos aquáticos. Sem este sistema

não seria possível regular o tonus vascular, nem o

volume sanguíneo. Com mais de 500 milhões de

anos, hoje, o homem luta, frequentemente, contra

uma sistema que é responsável em grande parte pela

hipertensão arterial. Um sistema que esteve na base

da própria vida e da adaptação ao meio ambiente

acaba, muitas centenas de milhões de anos depois,

de ser um alvo preferencial na prevenção secundária

das doenças cardiovasculares.

Uma das áreas de saúde mais preocupantes diz

Page 97: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

97

respeito à saúde mental. O número crescente de

patologias mentais leva os responsáveis a considerá-

las como verdadeiras epidemias pondo em causa o

bem-estar pessoal e social. Dentro do vasto universo,

destacamos a doença afectiva sazonal. Existe a

convicção de que terá tido um papel nada despiciendo

no decurso da evolução. O sofredor típico, nas

latitudes moderadas, sente-se bem na Primavera e no

Verão. Nestas alturas um terço dos sofredores até

tem comportamento hipomaníaco de grau variável.

Os meses de Outono e do Inverno são penosos

devido à sintomatologia. As alterações do humor e do

comportamento são originariamente genéticas e

influenciadas pelo meio ambiente. Quando o homem

começou a migrar há 150.000 anos a partir das

regiões mais equatoriais, esta anomalia já existiria.

Alguns autores consideram que haveria três grupos

de Homo sapiens: indivíduos que eram muito

sensíveis às mudanças sazonais (que não

sobreviveram). Aqueles que eram moderadamente

sensíveis (antepassados das actuais pessoas com

doença afectiva sazonal) e aqueles com baixa

sensibilidade cujos descendentes sobreviveram e

floresceram. Não deixa de ser interessante verificar

que existe uma associação entre elevados níveis de

capacidade intelectual e a sazonalidade. Vejamos o

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Salvador Massano Cardoso

98

caso da Escócia. País pequeno mas desproporcionado

em termos de importantes invenções: logaritmos,

televisão, telefone, penicilina, clorofórmio, anti-

sepsia, máquina a vapor….

A ciclotomia estimulada ou desenvolvida pela

sazonalidade acompanha-se de um aumento da

criatividade. A vantagem selectiva tem repercussão a

nível da reprodução e no timing da procriação. Os que

sofrem de doença grave estão em desvantagem, por

motivos óbvios. À medida que o homem migrou para

longe do equador a ligeira ou moderada depressão do

Inverno evoluiu com vantagem tornando-se

geneticamente transmissível. Só que, hoje em dia, a

forma como está organizada a sociedade,

nomeadamente o trabalho indoor, transformou a

“depressão do Inverno” em doença. Agora, sobretudo

nas latitudes mais nórdicas, as populações

geograficamente imóveis começam a sofrer

desvantagens reprodutivas, o que permite antever

que nos próximos milhares de anos seja menos

comum.

A principal queixa que os médicos se confrontam nos

primeiros três meses da vida são as cólicas das

crianças. A situação é muito comum e está associada

com níveis elevados de stress maternal. A razão tem

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

99

a ver com a interpretação dada à situação, já que é

considerada como um sinal de grave problema. A

situação chega a ser responsável de abusos graves e

até, por vezes, de morte ocasional.

A cólica pode ser analisada numa tripla perspectiva:

trata-se de uma situação que as crianças fazem, de

uma situação exacerbada pelas condições de vida

típica das sociedades industrializada ou, então, de

uma situação que faz todo o sentido em termos

evolucionários. Passando a analisar este último

aspecto, podemos afirmar que as cólicas nas crianças

!Kung San (caçadores-colectores do Botswana) são

particularmente interessantes. Além de uma natural

indulgência, as crianças são transportadas

constantemente nos braços das mães ou num sling

(kaross). Estão em contacto directo com o corpo da

mãe. A posição vertical assumida assenta numa

cultura própria a um melhor desenvolvimento. As

mães permitem que as crianças se alimentem

“continuamente” (3 a 4 vezes por hora durante 1 a 2

minutos) e respondem acto contínuo às solicitações

das crianças, ou seja, são muito mais rápidas que as

ocidentais (92% respondem em menos de 10

segundos). As ocidentais estão mais frequentemente

separadas e refreiem as respostas em 40% do

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Salvador Massano Cardoso

100

tempo. A frequência dos gritos é a mesma mas a

duração é metade do observado no ocidente.

Aspectos idênticos foram observados nos macacos

rhesus, esquilos e macacos rabo de porco (macaca

nemestrina).

A composição do leite e o tipo de estratégia de

cuidados estão relacionados. Espécies com baixos

níveis de proteínas e de gordura têm taxas baixas de

sucção mas frequentes a intervalos curtos. Espécies

com elevados teores de proteínas e de gordura têm

comportamentos opostos. O comportamento da cólica

é universal. Outros aspectos podem e devem ser

tomados em linha de conta, nomeadamente, o facto

de que a resposta à cólica produz uma redução da

duração e, consequentemente, poupança de energia

para o crescimento e maior probabilidade de

sobrevivência, à qual se associa um aumento da

frequência da amamentação. O aumento paralelo da

prolactinemia e da anovolução jogam em favor do

interessado, assim como uma maior proximidade e

maior protecção face aos predadores. No fundo,

razões de ordem económica apontam para a

sobrevivência do indivíduo. Actualmente, a não

aplicação dos conhecimentos evolucionários

asseguram interpretações erradas, do género de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

101

doença grave, de fome ou de falta de cuidados

adequados. Numa perspectiva evolucionária faz todo

o sentido a criança gritar e, daqui a muito milhares

de anos, continuarão a gritar nos ambientes

tecnológicos mais sofisticados e inimagináveis,

comportando-se mesmo no longínquo espaço de uma

forma idêntica aos caçadores-colectores que nos

procederam. Convém não esquecer esta condição.

As doenças susceptíveis de interpretação darwiniana

são múltiplas e algumas têm a ver com a evolução

das condições higiénicas. De facto, a evolução das

condições higiénicas constitui uma das maiores

conquistas da humanidade. Praticamente, iniciou-se

em meados do século XIX, através do controlo da

qualidade da água, a eliminação dos dejectos, a

melhoria da qualidade e quantidade alimentar, a

construção de habitações adequadas, o controlo das

noxas químicas e biológicas, a implementação da

vacinação, a incorporação de medidas de higiene

pessoal e colectiva, o desenvolvimento da

puericultura e vigilância gravídica e o estabelecimento

de medidas de organização laboral.

As medidas descritas, as quais se foram

desenvolvendo ao longo do tempo, permitiram, sem

sombra de dúvida, contribuir para que, no mundo

Page 102: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

102

ocidental, sejamos uma sociedade mais saudável e,

simultaneamente, sofredora face a novas/velhas

patologias.

Hoje, é visível um agravamento substancial de

determinadas patologias, as quais são interpretadas

de acordo com as agressões do mundo moderno.

Neste caso particular destacamos as alergias de todos

os tipos, quer cutâneas, quer respiratórias, quer

alimentares. O aumento que se tem observado,

nestes últimos anos, tem sido atribuído a uma maior

exposição a substâncias provenientes da actividade

humana. Será correcto atribuir o acréscimo

substancial, por exemplo, da asma às tais

substâncias? Podemos afirmar que talvez não seja

assim. O facto de vivermos num ambiente cada vez

mais "higienizado", sobretudo nos primeiros tempos

da existência, leva as crianças a não terem contacto

com determinados germens e sofrerem os respectivos

"ataques". Esta falta de agressão pode ser

responsável por uma maior fragilidade face aos

alergenos circulantes. É um paradoxo! O "excesso de

higiene" pode ser responsável, por acréscimo, pelo

agravamento de determinados tipos de patologia. A

tendência para "excessos" de cuidados higiénicos

pode provocar, curiosamente, desequilíbrios da

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

103

relação entre o homem e o meio ambiente,

transferindo a responsabilidade do aparecimento de

algumas afecções para certos tipos de agentes, os

quais, tendo o seu papel, talvez não sejam tão

culpados como se crê à primeira vista. O exemplo do

cancro do estômago que diminui à medida que as

condições alimentares e higiénicas melhoram

constitui, também, um bom exemplo. A associação

com o Helicobacter pylorii está bem definida,

sobretudo com alguns serótipos. Hoje, é possível, em

termos epidemiológicos, estudar a prevalência dos

mesmos nos quatro cantos do mundo. Também se

começa a verificar que a sua ausência pode trazer

benefícios em termos de agressividade gástrica, mas,

em contrapartida, pode ser fonte de partida para o

aumento da prevalência de uma forma mortal de

adenocarcinoma esofágico. De facto, a presença do

Helycobacter determina uma redução da acidez

gástrica, mas até um certo ponto. Na sua ausência, o

pH pode baixar muito mais e, consequentemente,

originar um factor de agressão para o esófago,

explicando, o incremento de uma das formas de

cancro. Este desequilíbrio ecológico, determinado por

muitos milhares de anos acaba por ter

consequências, positivas por um lado e negativas por

outro.

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Salvador Massano Cardoso

104

Os constantes desequilíbrios provocados pelo homem

obrigam-no a procurar novas soluções e

compromissos, só que são, cada vez, mais instáveis,

já que põem em causa interesses adaptativos. As

doenças não podem deixar de serem consideradas

numa perspectiva evolucionista e ecológica. Tivemos

oportunidade, através, de alguns exemplos justificar

a análise das causas remotas das doenças face às

causas próximas, estas mais fáceis de estudar e de

quantificar. Muitas outras poderiam ter sido alvo,

desde a fibrose quística e a protecção contra a

Salmonella typhi e o vibrião colérico, à

hemocromatose e a protecção contra patogénios

intracelulares, à heterozigotia dos genes de

histocompatibilidade major e a atracção sexual,

passando pela clássica drepanocitose e malária, até

ao aparecimento da diabetes tipo 1 em consequência

da severa descida de temperatura verificada durante

no Younger Dryas há 14.000 a 11.400 anos atrás,

traduzindo um efeito de selecção ambiental

patogénica, equivalente à selecção epidémica

patogénica e ao papel da acne na selecção sexual

precoce. O desenvolvimento da medicina darwiniana

irá recondicionar muitas das políticas da saúde e

conferir novas interpretações capazes de contribuírem

para explicar fenómenos, muitas vezes erradamente

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

105

assumidos, contribuindo desta forma para uma maior

e efectiva prevenção e até tratamento. Quanto à

perspectiva ecológica importa considerar alguns

aspectos, magistralmente retratados na obra de Jared

Diamond. No seu livro, “Guns, Germs and Steel”,

descreve no primeiro capítulo a razão de ser da sua

obra. Fala de Yali, um habitante da Nova Guiné que

um dia lhe pôs uma questão tão importante e tão

pertinente como a seguinte: “Porque é que vocês,

brancos, desenvolveram tanto cargo (equivalente

para designar tecnologias) e trouxeram-no para a

Nova Guiné, enquanto nós, pretos, temos tão pouco

cargo?” A palavra cargo utilizava-se para tudo o que

era inovação e inexistente na Nova Guiné, quando, há

200 anos, chegaram os primeiros brancos com os

seus utensílios, rodas, chapéus, remédios, roupas,

etc., os quais foram instantaneamente reconhecidos

pelos autóctones. Daqui o título do primeiro capítulo.

Diamond descreve que após a última glaciação, há

cerca de 13.000 anos, todos os povos do planeta

encontravam-se em pé de igualdade em termos de

desenvolvimento. Eram caçadores-colectores. Mas,

em 1500 d.C., os povos encontravam-se em fases

muito distintas. Na Europa, a situação era totalmente

diferente de outros povos que acabavam de entrar na

idade do Bronze, enquanto outros permaneciam na

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Salvador Massano Cardoso

106

idade da Pedra. O que motivou a disparidade que

originou a conquista e a colonização pela civilização

ocidental? Foram diferentes taxas de

desenvolvimento em diferentes comunidade. Se um

viajante extraterrestre tivesse chegado a este planeta

há 50.000 anos, nunca teria previsto que a Europa

seria um dia a vencedora, até porque não tinha sido

ainda povoada. Provavelmente apontaria para a

África ou Austrália, já que a primeira foi o berço da

humanidade e a ilha-continente albergava humanos

anatómica e comportamentalmente modernos, além

de indícios de dispositivos de transporte aquáticos. A

Euro-Ásia, com a sua morfologia e biodiversidade,

tornou-se palco de interacção entre as comunidades,

permitindo que a taxa de invenção fosse mais veloz e

a taxa de perdas culturais mais lenta face às outras

áreas em que a interacção entre as populações eram

mais fracas, fruto das condições geográficas e do

número de indivíduos. Rapidamente, a produção

alimentar e as reservas subsequentes obrigaram ao

desenvolvimento da escrita e ao nascimento de

sistemas políticos centralizados, assim como o

desenvolvimento metalúrgico. A partir daqui é

compreensível explicar tudo aquilo que nos rodeia. O

Ocidente “vencedor”, à custa das armas, do aço e da

ajuda dos microrganismos, definiu as regras e os

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

107

códigos, cujos efeitos não serão os mais benéficos

para a própria espécie e o planeta. O autor equaciona

o que teria acontecido se fossem os ameríndios ou os

africanos a imporem as suas regras, invadindo a

Europa. As estratégias desenvolveram-se à custa de

vários fenómenos. A interacção social, aliada ao

aproveitamento das condições ecológicas criaram o

caldo para o progresso que acabou por ser imposto a

tudo e a todos. O crescimento e o desenvolvimento é

feito de uma forma intensa e perigosa. O acaso

também teve a sua quota parte neste capítulo e a

necessidade de adaptação cultural às novas

realidades criadas pelo homem tornou-se vital à sua

sobrevivência como espécie.

As novas/velhas doenças surgem assim de um

confronto entre os eternos caçadores-colectores e um

ambiente em constante evolução, mais fragilizado,

mais agressivo, mais competitivo e estranhamente

incapaz de impor as leis da evolução à espécie que

viu nascer. A “recusa” em se submeter às regras da

evolução levam-no, inclusive, quem sabe um dia, a

impor mudanças na sua própria espécie recriando-se

continuamente, originado novas espécies…

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Salvador Massano Cardoso

108

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

109

ALIMENTAÇÃO, AMBIENTE E EVOLUÇÃO

O homem tal como qualquer outra espécie sofreu

influências ambientais que moldaram a sua fisionomia

e fisiologia. Fruto de um acaso e de uma necessidade,

apresenta-se a nível planetário como rei e senhor.

Tudo é analisado e discutido numa base

antropomórfica que nem sempre é sinónimo de

equilíbrio e de respeito pela natureza. Pelo contrário,

frequentemente, causa distúrbios e atentados,

contribuindo para um crescente e preocupante

desequilíbrio à escala planetária, comprometendo o

futuro de muitas espécies e a sua naturalmente.

A grande revolução humana iniciou-se após a última

glaciação ocorrida há cerca de 13.000 anos. Na altura

todos os núcleos humanos encontravam-se no

mesmo estadio e tinham comportamentos idênticos.

Alimentavam-se de uma forma idêntica (caçadores –

colectores), aproveitando o que tinham à mão. Não

havia superioridade civilizacional. O meio ambiente

condicionava o modo e o estilo de vida, com aspectos

evidentes para a alimentação. De facto, a

alimentação constituiu, a par das condições

ambientais, um dos factores mais importantes em

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Salvador Massano Cardoso

110

termos de evolução humana. Os nossos antecessores

evoluíram de acordo com as disponibilidades

alimentares. No caldo africano, as condições do meio

ambiente foram propícias à sua evolução. Os

alimentos que disponham eram variados,

contribuindo com os seus princípios imediatos para

uma alimentação variada e curiosamente rica e

equilibrada. Para justificar esta afirmação, não

podemos deixar de relembrar que a selecção natural

privilegiou os mais aptos e seleccionou os genes mais

adequados para uma vivência equilibrada com o meio

ambiente. A pressão selectiva foi enorme, originando

o aparecimento de genes económicos. Ou seja, a

diversidade humana funda-se num genótipo

económico. E compreende-se a razão. Face às

dificuldades ambientais e às pressões selectivas

torna-se imperioso que os recursos existentes sejam

aproveitados ao máximo. De outro modo, o sucesso

de uma espécie, seja a humana ou outra qualquer,

estará votada ao fracasso. Assim se explica que a

principal característica humana se baseie na

capacidade de viver na pobreza e na carência.

O homem é um ser preparado para viver não na

abundância, mas sim na penúria. Este conceito é

muito importante e vital para compreendermos a

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

111

evolução e o comportamento do homem no tocante

ao binómio saúde - doença.

A esperança de vida dos nossos antepassados era

manifestamente inferior à dos nossos dias devido às

condições de higiene, estilos de vida e à interacção

com o submundo microscópico.

A alimentação paleolítica era adequada e respeitadora

de uma fisiologia própria. Tal conceito é hoje

abordado e considerado como positivo a tal ponto que

há defensores de tal prática. De facto, o tipo de

alimentação dita paleolítica era muito mais

diversificada e os nutrientes ocorriam numa

proporção adequada às necessidades do perfil

humano. A paleonutrição aponta para uma ausência

de doenças nutricionais. A descoberta da agricultura

que ocorreu pouco tempo após a última glaciação

originou uma revolução social, política, demográfica e

sanitária sem precedentes. A globalização pré-

civilizacional era uma realidade. Os mesmos

comportamentos, as mesmas necessidades e

idênticas soluções. No final do século XV e princípio

do século XVI, o desequilíbrio social, militar e

civilizacional era uma outra realidade.

O que é que determinou este desfasamento entre os

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Salvador Massano Cardoso

112

povos do planeta Terra, originando potências e

civilizações avançadas e povos que “teimavam” viver

nas mesmas condições do período pós glaciar? Como

é possível em pouco mais de 10.000 anos a

humanidade apresentar-se em fases tão distintas? A

alimentação foi o primum movens para este

fenómeno. A domesticação das espécies vegetais e

animais levou a uma produção alimentar com

excedentes. Alguns povos, em certas regiões do

globo, confrontaram-se pela primeira vez com a

necessidade de gerir os seus excedentes alimentares

deixando de ter a necessidade de continuarem a

senda de caçadores - colectores. Havia necessidade

de gerir bens tão preciosos como os alimentares,

mão-de-obra para a produção alimentar, mais

gestores dos bens e seus distribuidores, necessidade

de organização burocrática, hierarquias sociais,

libertação de muitos braços para fins de protecção e

de conquista de novos espaços. Em suma, começou a

complexidade da sociedade, com o nascimento de

sociedades hierarquizadas, em que cada um ocupava

o seu espaço. Os povos que habitavam certas partes

do globo e que não disponham das mesmas

facilidades, riquezas agrárias e outros recursos

naturais continuaram na senda primitiva. Não é por

acaso que, nalgumas partes do planeta, o

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

113

desenvolvimento se tenha feito de uma forma mais

acelerada do que noutras ou, então, não houve

nenhum como ainda se pode verificar nos nossos

dias. Claro que a par da evolução da alimentação

surgiu a cultura do ferro e a supremacia do mais forte

legitimada através da conquista, da morte e da

escravidão. Aqui os microrganismos tiveram a sua

quota e acção.

A civilização nasceu fruto de um controlo da produção

alimentar. O nascimento da agricultura constituiu o

primeiro choque em termos de saúde. Por um lado

aumentou a disponibilidade alimentar favorecendo a

explosão demográfica mas também o aparecimento

de doenças. Até aqui, a diversidade alimentar era

uma característica. Passou-se em seguida a consumir

mais alimentos, mas a diversidade diminuiu, com a

subsequente deficiência de ingestão de alguns

nutrientes susceptíveis de provocarem doenças.

Paradoxo: mais alimentos, mais gente, mais doenças.

Aliás, na história da alimentação é uma constante

este fenómeno de mais doença sempre que surge

uma revolução alimentar. E, ultimamente, as

revoluções alimentares são cada vez mais frequentes

originando o aparecimento de novos problemas. Uma

fatalidade a que não podemos escapar, que acabamos

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Salvador Massano Cardoso

114

por compreender e modificar mas só ao fim de muitas

e muitas gerações.

A fome é um dos principais arquétipos e motores da

sobrevivência dos seres vivos. O que não fazem os

animais e os humanos quando tem fome e, no nosso

caso, mesmo não a tendo! A história da humanidade

está repleta de comportamentos verdadeiramente

horrorosos e indignos que, no fundo, traduzem um

imperativo de sobrevivência a todo o custo. A fome é

má conselheira, e os comportamentos dos humanos,

neste caso concreto, dispensam quaisquer

comentários, pois põem a descoberto o que é mais

primitivo e mais baixo.

A fome e a sexualidade são os dois pilares da

sobrevivência das espécies. Estão tão ligadas na sua

finalidade, que não é difícil encontrar semelhanças e

traços comuns nestas duas áreas tão interessantes. A

este propósito não posso deixar de expressar o

pensamento de um célebre escritor francês ao afirmar

que “o homem é o único animal que come sem ter

fome, bebe sem ter sede e faz amor em todas as

estações”!

O homem está preparado para viver na penúria e não

na riqueza e na abundância. Por esta razão tem de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

115

sofrer as consequências da violação deste princípio

através de inúmeras doenças.

Ao longo dos últimos milénios as doenças tem-se

abatido sobre a nossa espécie de formas diversas

consoante a época e o grau de desenvolvimento. De

qualquer modo, a alimentação é a principal causa,

quer de uma forma directa, quer favorecendo o

aparecimento de outras relacionadas com os

microrganismos.

As técnicas de conservação de alimentos têm sofrido

uma grande evolução. Uma das mais primitivas tem a

ver com a utilização do sal. Logo após a descoberta

da agricultura, o homem começou a utilizar o sal

como forma de conservar os alimentos evitando que

se tornem perecíveis, sobretudo os ricos em

proteínas. O consumo excessivo deste nutriente

tornou-se uma constante e deu origem ao

aparecimento de novas afecções que ainda hoje

perduram na nossa sociedade. Não é por acaso que o

livro mais antigo que se conhece seja um livro de

medicina, já que a preocupação com a saúde e com a

doença sempre perseguiu o homem. Não bastou

conhecer como fugir à fome, pois a fuga a este

flagelo foi acompanhada de novas e preocupantes

doenças. O livro do Imperador Amarelo relata que as

Page 116: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

116

pessoas que tinham um pulso duro morriam mais

cedo do que os outros. Este livro escrito poucos

milénios depois da introdução do sal na alimentação é

paradigmático da não adaptação a uma nova forma

de alimentação. Tanto mais que o homem nasceu e

evoluiu em ambientes muito pobres em sal, o que

originou a selecção de genes “poupadores” do

mesmo. Face à abundância, as conclusões são de

esperar: mais doenças.

A filosofia aplicada ao fenómeno sal - doença, coloca-

se relativamente a muitas outras doenças

metabólicas que afligem a humanidade dos nossos

dias. A hipercolesterolemia, a diabetes, a obesidade

são algumas anomalias que ilustram bem a complexa

e difícil interacção do homem com o novo meio

ambiente em que estamos inseridos. Comportamo-

nos diariamente de uma forma primitiva face à

alimentação. Ou seja, apresentamos comportamentos

estereotipados que nos levam a ter com os alimentos

uma relação difícil de compreender. De um modo

geral alimentamo-nos como se não soubéssemos

quando vai ser a refeição seguinte! Convêm avisar

que daqui a seis a oito horas vamos comer

novamente! A análise do comportamento das pessoas

face aos alimentos é ilustrativa da influência dos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

117

nossos arquétipos. Basta ver o comportamento em

reuniões festivas, ou não festivas... Não é nosso

objectivo fazer uma análise sociológica do fenómeno

alimentação. De qualquer modo também contribui

para o aparecimento e explicação de muitas doenças.

O ritual cronológico de praticarmos a alimentação

também não respeita as nossas verdadeiras

necessidades fisiológicas. O francesismo de

dividirmos as refeições ao longo do dia é mais uma

conveniência social, fruto de uma forma de estar de

algumas elites que se entretinham superiormente a

gozarem os seus dias do que um imperativo

nutricional devidamente fundamentado. Tudo está

construído de forma a dar a impressão que pequeno-

almoço, almoço, lanche, jantar é uma coisa tão

normal que eventualmente já era praticado no

período paleolítico! Coitados dos nossos avós!

Comiam quando podiam. E quando podiam deviam

comer até mais não, pois não sabiam a que horas era

servido o próximo jantar, se não fosse o caso de

serem eles próprios o jantar de outros com o mesmo

pensamento.

As variações fisiológicas do peso, aumentar quando

há abundância e diminuir quando há carência, deverá

ser mais fisiológico e natural do que esta tendência

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Salvador Massano Cardoso

118

moderna para manter o peso constante a níveis

considerados “normais”, quando não se mantêm a

níveis exageradamente elevados.

Apesar de toda a evolução verificada na área da

alimentação, mesmo assim podemos afirmar que, no

mundo ocidental, pertencemos à primeira ou segunda

geração de indivíduos que não passam realmente

fome. As consequências traduzem-se pelo

aparecimento de inúmeras afecções. As doenças

cardiovasculares, o cancro, a diabetes e a obesidade

são por si perfeitamente conhecidas como reflexo de

vários factores entre os quais se destaca pelo papel

primordial a alimentação. No caso da diabetes,

epidemia mundial cuja tendência para se agravar nos

próximos anos é uma realidade, impondo um

conjunto de medidas à escala global de forma a

diminuir o impacto social e económico, é uma

consequência da inadaptação entre aquilo que nós

somos sob o ponto de vista genético e o mundo

criado por nós.

Os portadores dos genes “diabéticos” são os mais

adaptados para sobreviverem em condições

alimentares as mais desfavorecidas.

E os obesos? Cada vez há mais obesos. A situação

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

119

neste momento, nos povos ocidentais é muito e

muito preocupante. Como interpretar esta nova forma

de epidemia? De uma forma idêntica à apresentada

para os diabéticos. Se as condições ambientais forem

desfavoráveis, os mais propensos a sobreviverem são

precisamente os obesos, logo devemos encarar este

importante grupo da população como um garante da

sobrevivência da espécie humana em caso de

catástrofe alimentar. Afinal, fazem parte da

diversidade humana, só que vivem em épocas

diferentes daquelas em que são considerados como

os mais aptos a sobreviverem. No paleolítico não

havia restaurantes, grandes superfícies comerciais,

cafés, pastelarias, lojas de conveniência ou

mercearias de esquina. Logo, não havia obesos...

Sabemos que constituem um problema de saúde

pública, mas não devem ser considerados como

sinónimo de fealdade ou relegados para um plano

secundário na escala moderna de valores estéticos. A

mim não me repugna absolutamente nada a criação

de uma associação de protecção e defesa dos gordos,

pois, sem eles a humanidade pode, em qualquer

momento, ficar em causa, já que os obesos ou,

melhor, os portadores de genes propensos à

obesidade são um garante da perpetuação da

sobrevivência da espécie humana...

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Salvador Massano Cardoso

120

Nos dias actuais o mundo apresenta uma enorme

variabilidade no tocante à alimentação: abundância

nalguns pontos e carência obscena noutros. Nunca

em toda a história da humanidade se alargou o fosso

entre os superalimentados e os desesperados

famintos. A amplitude da desigualdade faz-se sentir

de uma forma crescente, a tal ponto que a

preocupação número um situa-se nos

comportamentos alimentares excessivos com todas

as suas complicações a nível metabólico, cancerígeno

e cardiovascular. É certo que nos devemos preocupar

com estes aspectos. Importa naturalmente conhecer

como modificar e instituir medidas de forma a

minimizar os prejuízos em termos de saúde. Através

de uma educação dirigida, da aplicação correcta de

técnicas ligadas à produção, conservação,

distribuição, confecção e por fim ingestão. Não é fácil

instituir e divulgar certas normas e conceitos, porque

esbarram com muitos valores pessoais e culturais,

com interesses económicos, com pressões sociais

diversas, em suma, vai ser preciso muito e muito

tempo antes de conseguirmos transmitir e aplicar na

prática os muitos conhecimentos já produzidos.

Aparentemente, é frustrante este desajustamento

entre o que sabemos e a inexistência de medidas

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

121

práticas. São fenómenos de transição que fatalmente

todos os povos e culturas terão de calcorrear. Os

cientistas deverão ter consciência destes factos e

deverão começar a planear as adequadas estratégias

para um futuro um pouco mais distante.

A produção alimentar tem como objectivo facilitar a

aquisição de alimentos para todos em qualidade e em

quantidade e que sejam, igualmente,

economicamente acessíveis.

Os interesses económicos subjacentes condicionam

estratégias e a utilização de substâncias e técnicas

que comportam riscos. Resta saber se, se justifica

muitos desses riscos. Provavelmente não. Se

analisássemos profundamente este capítulo

verificaríamos que estamos rodeados de muitos

exemplos negativos. A necessidade de aumentar a

produção alimentar de proteínas animais levou a

exageros como a “carnivorização” indirecta de

herbívoros e a explosão de uma epidemia grave com

implicações na saúde humana ainda difícil de

quantificar, como é o caso da BSE e da sua variante

humana. Uma análise detalhada permite-nos verificar

que o interesse economicista é o principal

determinante de toda esta questão. Do mesmo modo,

a tendência universal de uniformização alimentar

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Salvador Massano Cardoso

122

constitui um perigo para a saúde das populações já

que cada povo deveria alimentar-se de acordo com as

condições geográficas e climáticas do local onde

vivem. Se em termos genéricos os nossos organismos

necessitam dos mesmos nutrientes, a sua ingestão e

relacionamento implicam o respeito por regras

ambientais perfeitamente elaboradas numa base de

um adequado equilíbrio entre o homem e o meio

ambiente. A democratização e a globalização

alimentar, comendo os mesmos alimentos em

qualquer parte do mundo, além de constituir uma

eventual violação dessas regras, ainda têm o condão

de quebrar ou fazer desaparecer regras e

comportamentos sociais importantes nos equilíbrios

instáveis de muitas culturas. Não podemos esquecer

o importante factor cultural e sociológico inerente às

práticas alimentares. A este propósito, não queria

deixar de fazer uma incursão numa área que mexe

connosco, ou seja a tão propagada dieta

mediterrânica, que alguns especialistas querem impor

ao restante mundo com o objectivo de reduzir a

mortalidade cardiovascular.

Os “inventores” da dieta mediterrânica tornaram-se

nos povos mais obesos da Europa! De acordo com

vários trabalhos científicos os povos mediterrânicos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

123

gozavam de melhor saúde e uma maior longevidade,

em virtude dos seus hábitos alimentares, definidos

como “dieta mediterrânica”. Estes aspectos eram

mais proeminentes no caso das doenças isquémicas

do coração e das neoplasias. Os hábitos ditos

mediterrânicos têm a ver com a pobreza típica do Sul,

levando as pessoas a consumirem alimentos próprios

da região e em quantidades próprias de acordo com o

poder de compra. O consumo de azeite, vegetais,

frutas, leguminosas, peixe e a ingestão de pequenas

quantidades de carne foram determinantes para um

determinado aspecto da saúde dessas populações. A

dieta mediterrânica tornou-se paradigma de uma

alimentação protectora em termos, sobretudo,

cardiovasculares e disseminou-se pelos quatro

campos do mundo dito “civilizado”. Paradoxalmente,

os povos que caracterizaram este tipo de alimentação

passaram a alimentar-se de modo diferente, copiando

hábitos e atitudes de países, onde a prática de má

alimentação por excesso se tornou clássica.

O aumento do poder de compra verificado nesses

países originou um aumento do consumo de

alimentos tipo fast food, ricos em gorduras e em

carne. A situação é de tal modo grave e caótica que

originou uma explosão de obesos nos países do Sul.

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Salvador Massano Cardoso

124

Portugal, Grécia, Espanha vêem os seus habitantes a

tornarem-se cada vez mais gordos. A tal ponto que a

situação já teve “honras” de publicação na Times. O

articulista fazia referência aos dados da Eurostat.

“Um homem em quatro e uma mulher em cinco são

obesos na Europa”. É de realçar o aspecto menos

positivo dos portugueses, já que as portuguesas são

as mulheres mais obesas da Europa e os homens, a

continuarem por este caminho, não estarão muito

longe delas. Afinal, a dieta mediterrânica é

consequência da fome e da “pobreza mediterrânica”.

Diminuindo a pobreza, perde-se concomitantemente

a dieta típica e passa-se para uma dieta

ocidentalizada mais consentânea com a dos povos

mais ricos. Agora, voltar para trás não é fácil e

somente através de um processo educacional

complexo é que poderá haver benefícios. Vai levar

muito tempo a convencer os povos do Sul a

adoptarem o tipo de dieta que criaram ao longo os

séculos, fruto das condições geo-climáticas e

económicas.

Este pequeno exemplo ilustra muito bem a fragilidade

e a facilidade de um povo em assimilar novos

estereótipos, como é o caso dos portugueses que, à

sua alimentação tradicional, enxerta,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

125

patologicamente, novos hábitos, decorrendo,

consequentemente, um agravamento das suas

patologias.

Se analisarmos o fenómeno alimentar verificamos que

é alvo preferencial de uma publicidade altamente

agressiva, continuada e até desajustada, contribuindo

para excessos perigosos. Basta olhar para a televisão,

jornais, revistas e propaganda diversa para termos a

noção do impacto desta actividade. É de tal forma

importante que, por sua vez, deu origem a uma

proliferação de indústrias paralelas com o objectivo

de combater as consequências, nomeadamente

clínicas de tratamento de obesidade ou reparadoras

plásticas de corpos violentados por anos a fio de

agressões e excessos, fármacos poderosos, mezinhas

milagreiras e sei lá o que mais. No fundo,

movimentam muitos milhares de profissionais,

constituindo um poderoso e muito “saudável” sector

económico que, por sua vez, será inevitavelmente

fonte de novos problemas, já que, decerto, irá criar

no futuro o aparecimento de novas indústrias e novos

interesses...

A conquista do bem-estar da humanidade fez-se, e

continua a fazer-se, à custa de violências e violações

ambientais.

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Salvador Massano Cardoso

126

A poluição ambiental reveste-se sob muitas formas;

algumas demasiado visíveis, outras mais incipientes e

ocultas. Os chamados sistemas suportes de vida são

alvo de atenções particulares, porque são facilmente

reconhecíveis e motivo de preocupação imediata.

Hoje, o mundo é classificado com base no

desenvolvimento socioeconómico e muitos países do

primeiro mundo são alvo de inveja e de admiração

pelos restantes. Além disso, tornaram-se símbolos de

democracia, de mais cultura e são vistos como mais

civilizados, “verdadeiros” guardiães dos princípios e

valores morais, não desdenhando um crescente

chauvinismo, a meu ver, patético. O seu

desenvolvimento cifrou-se em valores diferentes

daqueles que hoje defendem, e alcançaram o seu

status à custa de catástrofes ambientais e

verdadeiros genocídios laborais. Sinal de hipocrisia

civilizacional.

As grandes catástrofes ambientais são divulgadas e

têm um impacto muito grande. No entanto, são

meros flashes de um filme mais dramático em que os

protagonistas acabam por sofrer e mesmo morrer.

Nos últimos tempos, acontecimentos como a doença

de Minamata, o síndroma de Love Canal, os acidentes

nucleares de Three Mile Island e de Chernobyll, o

Page 127: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

127

obsceno acidente de Bhopal na Índia, Seveso,

Monsanto, são sinais evidentes do não respeito pelo

equilíbrio do planeta, traduzindo em muitos casos

falta de organização, desrespeito pelas normas de

segurança e por vezes inconfessáveis intenções,

mesmo criminosas, ao colocarem deliberadamente

em perigo a vida e a saúde de muitos seres humanos.

A par destas situações, não podem deixar de ser

focadas inúmeras outras que, não sendo tão

mediatas, acabam por ser mais perigosas devido ao

desconhecimento e ao volume de pessoas expostas.

Todos os anos surgem novas moléculas, as quais são

impossíveis de serem estudadas de forma adequada

quanto ao seu impacto ambiental e consequências

para a saúde dos seres vivos. São necessários anos e

anos de exposição para sabermos os seus reais

efeitos. Infelizmente, muitas vezes é tarde de mais

para minimizar os efeitos. Esta forma de poluição

«secreta» é um perigo muito grave pelos efeitos a

longo prazo. É certo que não queremos deixar de

desfrutar do bem-estar, mas é perfeitamente racional

que o mesmo pode ser obtido não de uma forma tão

rápida, traduzindo atitudes hedonísticas e egoístas e

interesses económicos que podem proporcionar

riqueza imediata, mas não garantem a riqueza de um

Page 128: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

128

futuro cada vez mais comprometido.

A poluição ambiental já foi incorporada como uma

importante prioridade, tornando-se preocupação de

todos (sobretudo dos habitantes do primeiro mundo).

Mas, curiosamente, não basta a percepção ou o

conhecimento dos fenómenos para os mesmos serem

combatidos ou eliminados. Tal como acontece com

certos estilos e comportamentos, os quais são

considerados perigosos para a saúde, mesmo assim,

não se conseguem eliminar ou reduzir de imediato.

Estamos perante fenómenos complexos capazes de

explicarem este paradoxo. Há uma décalage entre a

assimilação e incorporação dos conhecimentos e uma

prática positiva. Sempre foi assim e pelos vistos

continuará! Sabemos diagnosticar os problemas,

propor soluções, mas a sua concretização depende de

inúmeros factores difíceis de controlar e até em os

conhecer. Quais os problemas com que o mundo se

depara nos dias actuais? Basta estar atento à

comunicação social, para nos apercebermos que o

ambiente e a saúde constituem as duas principais

preocupações dos homens. E compreende-se porquê!

As alterações climáticas são um facto visível e muito

preocupante, porque se trata de uma força com

efeitos devastadores e humanamente incontrolável.

Page 129: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

129

As discussões feitas ao redor deste tema têm sido

múltiplas, mas pelos vistos sem sucesso devido a

interesses económicos e estratégicos. Aqui também o

presidente da mais poderosa nação se escuda atrás

dos cientistas...

Afinal, o escudo da ciência serve para os interesses

políticos e económicos, quando devia estar ao serviço

dos interesses dos povos. Pensava que era uma

invenção nacional, mas pelos vistos não!

A poluição atmosférica ligada à indústria e circulação

automóvel começa a ser dramática com situações

algo caricatas. Pode poluir-se num lado e sofrer as

consequências noutros mesmo que sejam

aparentemente conotados como locais ecológicos e

saudáveis. A poluição deixou de respeitar fronteiras

ou regiões. A contaminação hídrica é um facto,

ultrapassando as capacidades regeneradoras, até

porque alguns dos poluentes não são

verdadeiramente biodegradáveis. A contaminação dos

terrenos, dos alimentos de origem hídrica e não

hídrica propicia a ingestão de produtos com

consequências imprevisíveis ou talvez não para os

seres humanos. Se fosse possível analisar os corpos

actuais com os de há cinquenta anos, verificaríamos

que transportamos actualmente 100 a 150 compostos

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Salvador Massano Cardoso

130

com utilidade desconhecida mas com prováveis

efeitos nefastos para a nossa saúde. E o pior são as

crianças, por razões óbvias relacionadas com as suas

necessidades e forma de crescer, as quais irão,

quando adultos, sofrer consequências graves. Muitas

das substâncias perigosas para a saúde são

precisamente os xenobióticos, muitos deles dotados

de actividade hormonal e desreguladores fisiológicos

que, embora em doses muito baixas, acabarão por

originar o aparecimento de vários tipos de doenças.

Tal como já afirmei, este aparente «fenómeno

benigno» é, silenciosamente, criminoso e mais

criminosos são aqueles que, ao conhecerem os seus

efeitos, teimam em não colaborar na sua erradicação

ou substituição por outros, menos agressivos.

O ambiente não se cinge só aos sistemas de suporte

de vida. Há outros ambientes: os sociais, os laborais,

os políticos e muitos mais que também tem os seus

focos de poluição e são tão “mortíferos” como os

convencionais. As formas de trabalho, as relações

sociais, as novas formas de domínio e de escravidão

são evidentes e muito preocupantes. Não dispomos

de espaço para fazer investidas nestas áreas, mas é

bom que nos preocupemos com elas, porque, muito

brevemente, irão ser fonte de discórdia e de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

131

discussão com o mesmo entusiasmo e calor que tem

presidido ao aparecimento dos grupos de

ambientalistas.

Mas será que o futuro é tão negro? É muito difícil

responder a esta questão. A Terra tem os seus

mecanismos de defesa. Ao longo da sua história já

deu provas do que era capaz. Sacrifícios de muitas

espécies e surgimento de novas. A capacidade de

auto regeneração é evidente, resta saber quem é que

irá ser sacrificado desta vez, se o homem ou o

próprio planeta. Os sinais de rejeição tal como os

anticorpos face a certos agressores têm surgido nos

últimos tempos. É bom estarmos atentos a todos os

fenómenos pois são sinais de que algo vai mal e,

como tal, impõe-se a tomada de medidas correctoras

e preventivas, até, porque tudo evidencia que apenas

somos tolerados e não desejados. Pode ser que tudo

se resolva, desde que o queiramos.

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Salvador Massano Cardoso

132

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

133

”A PERGUNTA DE YALI”…

Jared Diamond, no seu livro “Guns, Germs and

Steel”, descreve no primeiro capítulo a razão de ser

da sua obra. Fala de Yali, um habitante da Nova

Guiné que um dia lhe pôs uma questão tão

importante e tão pertinente como a seguinte: “Porque

é que vocês, brancos, desenvolveram tanto cargo e

trouxeram-no para a Nova Guiné, enquanto nós,

pretos, temos tão pouco cargo?” A palavra cargo

(equivalente para designar tecnologias) utilizava-se

para tudo o que era inovação e inexistente na Nova

Guiné, quando há 200 anos chegaram os primeiros

brancos com os seus utensílios, rodas, chapéus,

remédios, roupas, etc., os quais foram

instantaneamente reconhecidos pelos autóctones.

Daqui o título do primeiro capítulo.

Após a última glaciação, todos os povos do planeta

encontravam-se em pé de igualdade em termos de

desenvolvimento. Eram caçadores-colectores. Mas,

1500 anos d.C., os povos encontravam-se em fases

muito distintas. Na Europa, a situação era totalmente

diferente de outros povos que acabavam de entrar na

idade do Bronze, enquanto outros permaneciam na

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Salvador Massano Cardoso

134

idade da Pedra.

O que motivou a disparidade que originou a conquista

e a colonização pela civilização ocidental? A produção

alimentar e as reservas subsequentes obrigaram ao

desenvolvimento da escrita e ao nascimento de

sistemas políticos centralizados. A partir daqui é

compreensível explicar tudo aquilo que nos rodeia. O

Ocidente “vencedor” definiu as regras e os códigos,

cujos efeitos não serão os mais benéficos para a

própria espécie e o planeta. O crescimento e o

desenvolvimento são feitos de uma forma intensa e

perigosa. O ambiente é o caldo e a fonte de riquezas.

Mas as fontes não são inesgotáveis e, apesar da

elevada capacidade de auto-regeneração do planeta,

as cicatrizes começaram a tornar-se visíveis e

frequentes. Para obstar a estes inconvenientes o

Homem elaborou e continua a elaborar códigos de

conduta.

Na obra hipocrática estão referenciados normas e

códigos. Apesar de tudo, a história da humanidade

ilustra fenómenos e situações de acções nefastas

sobre os seres humanos, traduzidos em genocídios,

no papel negativo de profissionais que deveriam

salvaguardar a saúde, caso dos médicos nazis e que

originou o primeiro código de ética moderna,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

135

relativamente à investigação médica, através do

famoso código de Nuremberga.

Para ilustrar o papel da violação do ambiente e as

suas repercussões na saúde humana e nos

ecossistemas, podemos citar o papel da economia e

seus interesses e da política. Em 1973, a crise

petrolífera foi o detonador desta situação. O Mundo

Ocidental tornou-se dependente dos fornecimentos do

petróleo dos países árabes. A OPEP decidiu atingir o

Mundo Ocidental culpabilizado do apoio político a

Israel. O preço quadruplicou! Em poucos anos os

países produtores de petróleo enriqueceram de forma

escandalosa. A maioria dessas dezenas de milhar de

milhões de dólares foi depositada nos principais

bancos europeus. A Europa vivia um período crítico

em termos económicos: a paragem do

desenvolvimento e a inflação. Os bancos europeus e

americanos não sabiam o que fazer com os elevados

depósitos dos produtores de petróleo. Deste modo,

optaram por conceder empréstimos aos países do

terceiro mundo. Empréstimos de elevado risco,

porque havia poucas garantias de reembolso e

pagamento dos juros. O dinheiro foi emprestado aos

governos e empresas públicas. Ao fim de alguns

anos, a dívida acumulada tornou-se monstruosa e

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Salvador Massano Cardoso

136

começaram a surgir dúvidas a propósito dos

pagamentos. Apesar de grande parte destes

empréstimos nunca terem sido pagos (e em muitos

casos até foram perdoados), o que importa referir é

que os países devedores tiveram de pagar os juros

em bens. Uma parte desses bens traduziu-se numa

forte e tremenda desflorestação com as inevitáveis

consequências ambientais, nomeadamente a

emergência de doenças infecciosas, pretensamente

acantonadas, e que acabaram por ter repercussões

na saúde de muitas comunidades, no ambiente em

geral, além de modificações das culturas tradicionais

e importação de indústrias poluentes, susceptíveis de

provocarem desequilíbrios ecológicos muito graves à

escala mundial. Afinal, estamos a analisar um

problema de saúde pública, focando a atenção nos

factores a montante que são de natureza política e

económica. Há em todo este processo uma cadeia de

acontecimentos com vários participantes em que o

objectivo final é sempre o mesmo: o Homem.

A intervenção em termos de Saúde Pública pode e

deve fazer-se a todos os níveis sem excepção. Mas

não é fácil, porque mesmo que se identifique a

situação e sejamos capazes de intervir, aquilo que se

pode fazer é minimizar ou estabilizar o fenómeno em

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

137

níveis considerados críticos o que exige uma entropia

negativa nada fácil de atingir. Tudo, porque as

verdadeiras causas escapam ao controlo dos

profissionais da saúde, e até aos próprios políticos. A

Saúde Pública tem que ser analisada em várias

escalas. A primeira é sobretudo a nível global

(planetário), a segunda a nível loco-regional, a

terceira em comunidades devidamente delimitadas e

a quarta a nível individual. A tudo isto acresce a

necessidade de um ou vários sistemas organizativos

complexos. No fundo, os problemas de Saúde Pública

centram-se nos indivíduos (sua biologia e

comportamento), no ambiente e na organização dos

cuidados de saúde.

Os abusos de que tem sido vítima o nosso planeta

começa a preocupar-nos. Outro exemplo bem

conhecido e mais recente tem a ver com a BSE. A

crise das vacas loucas e o uso indevido de rações por

motivos económicos; alimentos contaminados por

dioxinas e outras substâncias cancerígenas; o uso

crescente do álcool, a não redução do consumo do

tabaco; as dúvidas sobre o perigo dos alimentos

transgénicos; a contaminação radioactiva ambiental;

os genocídios políticos; a explosão da mão de obra

infantil; o uso de materiais impróprios para a

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Salvador Massano Cardoso

138

construção; o trabalho esforçado dos emigrantes, etc.

No fundo, o verdadeiro problema é de natureza

económica, com reflexos no ambiente, na saúde

animal e na saúde humana. A associação entre

economia, ambiente, patologia humana e ética está

bem patenteada nas diferentes formas de poluição,

indústria de resíduos perigosos e efeito estufa.

Todos já ouviram falar sobre a conferência de Rio de

Janeiro, o protocolo de Quioto ou, mais

recentemente, a conferência de Haia. As

recomendações são interessantes. No entanto, a

aplicação prática não é tão eficiente. Neste caso,

importa, em termos de ética ambiental, saber se

todas as recomendações, conferências e protocolos

estão de acordo com aquilo que se entende por ética

ambiental. Nesta última situação, estamos virados

mais para uma ética antropocêntrica. Gostaria de

saber quem é que legitimou desenvolver a ética neste

sentido. Ou será que a teremos de a redimensionar

em termos de uma ética mais ampla, mais global em

que o homem não está acima de nada, nem de

ninguém, mas em pé de igualdade?

Richard Routley, ambientalista e filósofo australiano,

define a nova ética ambiental antropocêntrica como

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

139

resultado do “chauvinismo humano”. Uma das

principais expressões do “chauvinismo humano” é

precisamente o “núcleo principal da ética ocidental”.

A filosofia liberal do mundo ocidental assenta em que

cada um pode fazer o que entender, desde que não

prejudique os outros, ou ele próprio, de forma

irreparável. Este princípio, denominado de “princípio

do prejuízo do dano”, impõe restrições reais nas

liberdades dos seres humanos, quando lidam com o

ambiente. Paralelamente à ética ambiental,

deveremos considerar um comportamento particular

da mesma, ou seja ética e ambiente de trabalho. É

reconhecida a importância do trabalho no

desenvolvimento da humanidade. No entanto, as

condições de trabalho, nem sempre foram as

melhores. Uma análise ultra rápida permite-nos

verificar que o mais comum foi, é e provavelmente

continuará a ser as más condições de trabalho. Houve

períodos de mudanças, rápidas, eficazes, explosivas e

ao mesmo tempo cruéis. A revolução industrial é

paradigmática. Mesmo nos nossos dias, muitos povos

cresceram e desenvolveram-se de tal forma que

constituem motivos de inveja para muitos outros. No

entanto, não esqueçamos que cresceram à custa de

verdadeiros genocídios laborais. Não foram sujeitos a

quaisquer julgamentos de condenação internacionais,

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Salvador Massano Cardoso

140

não obstante o número de mortos, estropiados ou

inválidos terem atingido cifras obscenas. Era altura

desses mesmos países edificarem memoriais às

vítimas do trabalho.

As condições de trabalho têm sido alvos, sobretudo a

partir do século XIX (o chamado século da liberdade),

de muitas organizações, criadas para a defesa dos

trabalhadores. Códigos e mais códigos, com o

objectivo de defender a ética no “ambiente do

trabalho” (caso da OIT, legislação nacional, legislação

comunitária, reivindicações sindicais). O trabalho é

visto como fonte de produtividade, de

desenvolvimento social e de realização pessoal. Mas o

trabalho tem uma outra face (que não é oculta) e que

provoca doença, mal-estar e até mesmo a morte.

Consciente de todos estes problemas, os

responsáveis tem-se dedicado a legislar e a

regulamentar com o objectivo de proteger a saúde

dos trabalhadores.

O mundo actual (ocidental) é considerado como o

primeiro mundo (mundo civilizado). Era bom que

assim fosse, mas uma análise mais aprofundada

revela-nos que existe um mundo escravizado. São

novas formas de escravidão, mas não deixa de ser, e,

no futuro, os historiadores, os filósofos irão criticar a

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

141

violência, a falta de respeito e o espírito escravizador

da humanidade dos séculos XX e XXI. Não podemos

esquecer que somos contemporâneos de formas

violentas de trabalho: trabalho infantil, sobrecarga de

trabalho nocturno, controlo e manipulação de

trabalhadores e sectores intermediários,

trabalhadores migrantes, perigo de exposição às

condições de trabalho, etc.

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Salvador Massano Cardoso

142

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

143

SAÚDE E TRABALHO

Na definição de saúde da OMS - definição política -

está contemplado que o nível mais elevado de saúde

é um objectivo social em todo o mundo, cujo alcance

exige a intervenção de muitos factores sociais e

económicos.

A saúde é coisa própria, a saúde ganha-se ou perde-

se. Neste jogo, os meios ambientes material, afectivo

e social jogam um papel importante, algo que,

consideramos singular: a organização do trabalho.

Quando se fala da famosa definição de saúde da

OMS, omite-se ou pára-se na primeira fase. Seria

conveniente continuar com a mesma para vermos a

importância do trabalho. A definição original de saúde

é retomada pela mesma organização de forma a

realçar aspectos importantes do meio e do trabalho.

A saúde não é a mera ausência de doença, mas sim

um estado óptimo de bem-estar físico, mental e

social. A saúde não é algo que se possua como um

bem, mas sim uma forma de funcionar em harmonia

com o meio (trabalho, lazer e forma de vida em

geral). Não significa somente ver-se livre de dores ou

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Salvador Massano Cardoso

144

doenças, mas também a liberdade para desenvolver e

manter as capacidades funcionais. A saúde mantém-

se por uma acção recíproca entre o genótipo e o meio

em geral. Como o meio ambiente de trabalho

constitui uma parte importante do meio geral, a

saúde depende das condições de trabalho.

Não é vital neste momento analisar todas as

definições que, entretanto, foram criadas para

explicar o que é a saúde. O meio ambiente social e o

momento histórico são determinantes para

explicarem estes fenómenos, não a história natural

das doenças (existe?), mas sim a história social das

relações saúde-doença. Exemplo: o bacilo de Kock

existe há muitos milhares de anos. Foi sobretudo a

concentração dos agricultores deslocados para as

cidades, a desnutrição e as carências higiénico-

sanitárias da revolução industrial, as razões para o

desbravamento da tuberculose. As mudanças do tipo

de trabalho foram determinantes para a eclosão da

epidemia.

Na história sobre as epidemias da cólera, podemos

analisar as discussões ao redor da sua origem e

causas. Quer relativamente a uma e a outra,

prevaleceram (finais dos século passado) as razões

menos sociais, mas as mais práticas e mais aceitáveis

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

145

para a época e para o poder reinante. Assim, a cólera

transformou-se numa doença exótica importada do

Oriente e a sua causa era um gérmen transmitido

pela água. As causas reais, tais como as péssimas

condições de vida e de trabalho foram completamente

olvidadas.

Alguns autores, como Virchow, tentavam em vão

explicar que a doença era uma consequência social e,

a título de curiosidade, mostravam que, os mais

poderosos e ricos, não padeciam desta doença.

A saúde não é um dom. A saúde é coisa própria. A

saúde é a reserva mais importante que os

trabalhadores têm.

O Modelo Laboral Italiano define as grandes linhas de

orientação. Os indivíduos fundamentais na defesa da

saúde nos ambientes de trabalho são os próprios

trabalhadores. A saúde de quem trabalha não é uma

mercadoria para vender, mas sim um bem a defender

mediante a prevenção. A prevenção efectua-se com a

contribuição dos conhecimentos técnicos e científicos,

os resultados dos estudos ambientais e sanitários e a

avaliação subjectiva dos trabalhadores. Estes

diferentes conhecimentos podem ser sintetizados e

constituírem uma base da luta dos trabalhadores,

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Salvador Massano Cardoso

146

mediante uma actividade colectiva de investigação e

propostas conduzidas conjuntamente por técnicos e

trabalhadores, nomeadamente no que respeita à

linguagem, aos instrumentos e fases operativas.

De acordo com estas regras verificamos que a

tendência é caminhar desde o direito à saúde até à

prevenção. É interessante verificar a tentativa de

ruptura com uma velha tradição que, infelizmente,

ainda permanece: a "monetarização da saúde". Ou

seja, a aceitação de recompensas ou incentivos

económicos a troco de condições de trabalho hostis.

Vejamos, em termos práticos, o discurso oficial,

relativamente à prevenção, assenta nos hábitos

pessoais, como sinónimo de responsabilidade do

estado de saúde-doença. Quando se fala em cancro,

a tónica da prevenção assenta nos riscos individuais,

esquecendo-se os factores ambientais e laborais; o

mesmo se passa num sem número de doenças,

inclusive as próprias doenças cardiovasculares. São

os trabalhadores com menores rendimentos os que

sofrem, bebem, fumam mais e têm as piores dietas.

A falta de decisão ou a sua limitação, aliada às

exigências de trabalho, e falta de suporte social,

determinam que os trabalhadores nestes patamares

estejam mais sujeitos ao stress no trabalho e,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

147

consequentemente, expostos a um sem número de

problemas. Em síntese, o não reconhecimento destas

influências sociais e laborais limita naturalmente

qualquer tentativa de impacto da prevenção, em

virtude de centrar-se no indivíduo.

Algumas doenças laborais são conhecidas desde

longa data. Talvez a falta de prevenção nos

ambientes de trabalho e as suas consequências

estejam na origem dos patronos dos diferentes

ofícios: São José para os carpinteiros, São Lourenço

para os ferreiros, Santa Bárbara para os mineiros,

São Cosme e São Damião para os médicos e, mais

recentemente, São Isidoro de Sevilha eleito para os

cibernautas.

Nos finais de 1700, Sir Thomas Percival descrevia que

"as indústrias têxteis compram meninos em Londres

e noutras cidades por cinco libras. A urgência é tanta

para conseguir mercadoria barata, que se aceitava

um idiota por cada 12 normais". "A vida destes

meninos ficava totalmente à mercê dos industriais;

viviam em barracas e os horários de trabalho,

alimentação, roupa e assistência médica dependiam

deles, vocacionados em explorá-los ao máximo,

porque sabiam que se um deles morresse, havia

outro para ocupar o seu lugar". Sir Percival continuou

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Salvador Massano Cardoso

148

a efectuar denúncias. No final do século XVIII, o

Parlamento Britânico terminou com a situação,

impedindo que os industriais obrigassem as crianças

a trabalhar mais de 12 horas por dia ou a efectuar

trabalho nocturno.

O impacto das más condições de trabalho na doença

e nos acidentes tem sido alvo de várias publicações e

reflexões. Renzo Richi, no seu livro "La muerte

obrera", afirmava que a Itália não é só uma terra de

poetas, de santos e de emigrantes. A sua fama na

história da civilização ocidental ficará também ligada

à primazia no campo dos acidentes de trabalho e

doenças profissionais.

O êxito da Itália no pós-guerra não contabilizou (os

políticos) o sofrimento dos trabalhadores em termos

de saúde. A guerra deslocou-se dos campos de

batalha para as fábricas e campos.

Mussolini, nas vésperas da declaração de guerra à

Inglaterra, disse a Badoglio que necessitava apenas

de alguns milhares de mortos para conquistar o

direito a sentar-se à mesa da paz em traje de guerra.

Resta saber quantos morreram ou ficaram

estropiados para que os políticos e empresários se

sentassem à mesa do progresso económico. Esta

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

149

reflexão está contida igualmente noutras obras.

O fluxo migratório de trabalhadores, ocorrido nos

E.U.A. para os diversos campos de batalha, onde

tiveram (e têm) que lutar contra os agentes químicos,

as más condições de trabalho, sujeitos a tensões

intensas quer do ponto de vista físico e emocional, é

paradigmático. Para estas vítimas, que se contam por

milhões de doentes e de mortos ou incapacitados,

não se erigem mausoléus, além de que, não seriam

mais do que um testemunho à negligência, a medidas

ineficazes e a ocasiões perdidas.

A deterioração da saúde perante as más condições de

trabalho é somente um indicador, um sintoma que

nos remete para as contradições sociais. Os acidentes

de trabalho são uma praga a nível mundial.

Anualmente ocorrem mais de 200.000 óbitos (o que

corresponde a 22 por hora). Sabemos que existe uma

correspondência da ordem de 750 acidentes por

óbito. Deste modo, estima-se em cerca de

150.000.000 de acidentes de trabalho a nível

mundial, por ano.

Um dos problemas que se nos coloca é a sub-

notificação das doenças profissionais. Mesmo nos

países desenvolvidos, dos quais Portugal faz parte,

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Salvador Massano Cardoso

150

concluímos por cifras patéticas. As consequências são

óbvias, os interessados não recebem as respectivas

indemnizações, além de adiar ou impossibilitar as

necessárias acções preventivas.

Quando se fala de doenças do trabalho, devemos ter

em consideração dois conceitos: doenças profissionais

e doenças relacionadas com o trabalho. As doenças

profissionais são as originadas directa e

exclusivamente por um factor de risco próprio do

ambiente do trabalho (ex: surdez profissional,

silicose, bissinose, etc.). No entanto, o conceito de

doença profissional é um conceito meramente

legislativo, isto é, para assinalar as doenças, para as

quais, nos diferentes regimes de segurança social,

estão contempladas acções de indemnização. Há

países cujas listas de doenças profissionais são

limitadas. Pode acontecer que uma doença seja

considerada como profissional num país e não noutro.

O conceito de doença profissional é reducionista e

deixa de lado um grande número de doenças que,

não sendo exclusivas de agentes ou factores laborais,

se distribuem com predilecção especial entre os

trabalhadores. Estas afecções, que sendo

inespecíficas, porque não reconhecem um só agente

causal, são designadas como doenças relacionadas

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

151

com o trabalho. Podemos destacar doenças como o

cancro, o aborto, as doenças cardiovasculares, as

artroses, etc.

Alguns dados permitem-nos verificar a enorme

ignorância sobre estes temas. Se analisarmos as

dezenas de milhares de substâncias químicas

utilizadas, podemos afirmar que em 80% dos casos

não existem estudos de toxicidade; os médicos não

têm de um modo geral formação na área da saúde

ocupacional durante o seu percurso universitário

(uma a meia dúzia de aulas?); os trabalhadores

habitualmente não estão informados sobre os riscos

que correm, e os organismos estatais revelam

insuficiências e limitações confrangedoras.

A medicina do trabalho foca o seu interesse em áreas

muito importantes. Destaco o problema do stress

laboral, o envelhecimento precoce (medido através

da polipatologia), o desgaste laboral (morte

prematura - o risco de morrer entre trabalhadores

qualificados e executivos era 1,52 vezes superior na

década de 20 e aumentou para 1,78 na década de

70).

O desgaste pode ser definido como a perda de

capacidade efectiva e/ou potencial, biológica e

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Salvador Massano Cardoso

152

psíquica. Os indicadores de desgaste mais utilizados

são os sinais e sintomas inespecíficos, o perfil

patológico, os anos de vida perdidos, o

envelhecimento precoce e a morte prematura.

Na realidade não há uma saúde física e uma saúde

mental. O processo saúde-doença obriga-nos a

encará-lo na totalidade. Muitas profissões estão

sujeitas a pressões diversas a nível laboral, das quais

resultam consequências graves. Stress, síndroma de

burn-out, alcoolismo e enfarte constituem alguns dos

principais problemas, nos quais o desgaste psíquico

desempenha um papel muito importante.

Em 1700 foi publicado o primeiro tratado médico de

especialidade. Foi precisamente na área da Medicina

do Trabalho. Bernardino Ramazzini, cuja reputação

mundial é reconhecida por todos, deu um impulso

notável à compreensão dos fenómenos que atingem

os trabalhadores. Estamos ainda a comemorar o

terceiro centenário do De Morbis Artificum Diatriba.

Efeito do mercúrio, problemas das tipografias,

patologias dos fabricantes de espelhos, soldadores,

químicos, ferreiros, pedreiros, manipuladores de

cereais, operários da indústria têxtil, do tabaco, entre

muitos outros, dão uma imagem muito séria das

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

153

condições laborais na saúde dos trabalhadores No

mínimo, o que se pode afirmar é que é notável a

perspicácia e o alcance deste professor de Modena,

que deixou um legado muito importante à

comunidade científica. No entanto, esta, atrasada,

não soube aproveitar os ensinamentos e os princípios

que muito mais tarde foram desenvolvidos. De facto,

no século XIX observou-se uma revolta e uma

consciencialização dos problemas laborais em todas

as dimensões, nomeadamente na área da saúde. A

medicina começou a ser considerada como uma

ciência social apenas em meados do século XIX. Foi a

última das disciplinas a ser abrangida pela revolução

científica dos séculos precedentes!

De acordo com George Rosen, no seu livro "Da Polícia

Médica à Medicina Social", Emil Behring verificou que

a associação causal entre a miséria social e a doença

constituía uma característica do pensamento médico

do século XIX.

Não há nenhum médico que desconheça o nome de

Rudolf Virchow. No entanto, é conhecido, sobretudo

como anátomo-patologista. Mas este ilustre autor

desempenhou, a par de outros cientistas, um papel

muito importante no desenvolvimento da medicina

social. Virchow foi um entusiasta do espírito

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Salvador Massano Cardoso

154

revolucionário que varreu a Europa Central em

meados do séc. XIX. Aderente do movimento

revolucionário de 1848, defensor das barricadas dos

"Dias de Março" de Berlim, trocou as armas pela

escrita onde fez uma interessante e profunda análise

da concepção da medicina. Para Virchow a medicina

"É uma ciência social e a política nada mais é do que

a medicina em grande escala".

As principais razões para a medicina ser considerada

como uma ciência social assentaram na

industrialização e nos consequentes problemas

sociais, o que levou os investigadores a estudar a

influência de factores como a pobreza e a profissão

no estado da saúde.

Nomes como Villermé, Benoiston de Chateauneuf,

Guépin, Constatin Pecqueur, em França, foram os

mentores de novas ideias que irradiaram para a

vizinha Alemanha. Virchow defendia a profilaxia social

e proclamou alto e em bom som o "direito do cidadão

ao trabalho, princípio fundamental a ser incluído na

constituição de um estado democrático". Segundo

Rosen, "Virchow foi influenciado pelo Governo

Provisório Francês de 1848 que reconheceu o direito

ao trabalho - a doutrina de Droit au travail que Louis

Blanc propagava desde 1839"

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

155

Segundo Virchow, "o proletariado em grau cada vez

maior é vítima de doenças e epidemias, e as crianças

morrem prematuramente ou tornam-se inválidas".

Para a resolução destes problemas, alguns autores

propuseram programas de higiene industrial com

ênfase na regulação legislativa das condições de

trabalho, nomeadamente a proibição do trabalho

infantil antes dos catorze anos, a redução do dia de

trabalho nas profissões perigosas, a protecção das

mulheres grávidas, ventilação dos locais de trabalho e

muitas outras medidas de carácter preventivo face às

noxas conhecidas. Podemos observar a existência

duma estreita correlação entre os conceitos de

medicina preventiva e o local de trabalho numa época

em que as condições laborais eram verdadeiramente

dramáticas.

A derrota da revolução de 1848 foi seguida não da

derrota das ideias de Virchow, mas do seu

adormecimento. O movimento da reforma médica

chegou ao fim. Virchow e os seus colaboradores não

tiveram a ocasião de ver o desabrochar das sementes

então lançadas. Os problemas de natureza social e

económica, considerados responsáveis pela doença

nos tempos de Virchow, tiveram igualmente outros

lutadores e pensadores que não podemos deixar de

Page 156: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

156

considerar como marcos importantes na história da

Medicina Preventiva. Além do mais, as condições de

trabalho foram os factores mais determinantes para o

desenvolvimento do conceito de Medicina Preventiva.

A este propósito não se pode deixar de citar o clássico

Inquiry into Sanitary Condition of the Labouring

Population of Great Britain de Chadwick em 1848.

Todos temos consciência da importância do campo da

Higiene Ocupacional nos nossos dias. Questionamos,

porquê é preciso proteger a saúde dos trabalhadores?

A protecção dos trabalhadores é o corolário

indispensável das actividades profissionais. A

protecção dos trabalhadores está incorporada na

própria organização científica e humana do trabalho,

é um complemento e também um factor de correcção

da produtividade.

A Medicina do Trabalho é o paradigma da Medicina

Preventiva e pode contribuir para uma melhoria

significativa não só da saúde dos trabalhadores, como

também da saúde da comunidade, com ganhos

deveras importantes a todos os níveis, com lucros

impossíveis de contabilizar.

A necessidade de produzir legislação nesta matéria

não é de hoje, e Portugal até foi um dos pioneiros.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

157

Infelizmente, a abundante legislação nacional não se

acompanhou (nem se acompanha), da adequada

implementação de medidas correctivas e de

prevenção, necessárias para proteger a saúde dos

trabalhadores. Há uma verdadeira hipocrisia social

nesta área. As directivas comunitárias têm sido

transcritas para o normativo interno. Na prática,

vemos que o mesmo não é cumprido de forma

adequada, não obstante algum esforço por parte dos

empresários e alguma fiscalização. Mas estamos

longe de atingirmos não o ideal, mas o mínimo

desejável, já que todos os trabalhadores sem

excepção correm riscos de acidentes e de doenças

profissionais, incapacitantes e por vezes mortais. A

falta de cultura, e as insuficiências na materialização

dos projectos estão à vista de todos. Basta ver o que

se passa no caso dos acidentes de trabalho, para

concluir que pertencemos, ainda, a um “terceiro-

mundismo”, não obstante sermos parte integrante da

União Europeia. E no caso das doenças profissionais?

Bom, neste caso, o melhor é nem falar, porque

devemos ser um paraíso e exemplo para muitos

outros - bem mais desenvolvidos - visto que,

praticamente, não temos nada de especial, salvo

alguns casos de surdez, de silicose e de dermatoses!

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Salvador Massano Cardoso

158

A área da Medicina do Trabalho é vital para o

desenvolvimento do país. É preciso investir mais, não

só no caso da Medicina do Trabalho, mas também na

Segurança e na Higiene. É preciso que os políticos

acordem para estes temas e acendam a luz verde

para que os diferentes técnicos nacionais possam

actuar no terreno. Apesar das limitações quantitativas

em certos domínios, Portugal possui neste momento

bons e bem treinados profissionais, capazes de

revolucionar o panorama nacional. Aliás, a talhe de

foice, é obrigatório recordar o já longínquo ano

Europeu de Segurança, Higiene e Saúde do Trabalho,

no qual tivemos oportunidade de acompanhar e que

teve um impacto substancial, a tal ponto que, todos

nós, envolvidos no processo acalentámos uma

esperança - esperança vã - de continuar na senda

adequada. Infelizmente, e como já é habitual, as

boas ideias e iniciativas não têm o seguimento

necessário, fruto da falta de visão de responsáveis

que, nas substituições periódicas, acabam por

eliminar os mais dotados e esclarecidos,

comprometendo todo um processo que consideramos

vital ao bom funcionamento do país.

Mas é tudo uma questão de tempo. Mais tarde ou

mais cedo - inclinamo-nos para mais tarde -

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

159

acabaremos por atingir os nossos desideratos. De

qualquer forma, não se pode deixar de afirmar que a

área em causa vai, por força das circunstâncias,

atingir uma importância crucial. Assim, a medicina e

os seus praticantes especializados neste sector irão

ser chamados a contribuírem decisivamente para o

bem-estar e desenvolvimento da sociedade

portuguesa.

Page 160: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

160

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

161

DOENÇAS PROFISSIONAIS. “UM ASSASSINO

SILENCIOSO”

O facto de ter sido convidado para participar neste

seminário subordinado ao tema “Dia Nacional da

Prevenção no Trabalho – Que Prevenção?”,

organizado pela UGT, constitui uma honra que não

posso deixar de agradecer.

Quando me propuseram o tema “Doenças

Profissionais – Um Assassino Silencioso” fiquei logo

entusiasmado pela provocação e profundidade do

tema, assim como, pela possibilidade de poder

dissertar e analisar uma área que não tem sido

objecto de atenção e cuidados adequados no mundo

em geral e no laboral em particular.

Em primeiro lugar, queria afirmar que é impossível

erradicar a doença. De facto, e parafraseando George

Rosen, “A doença é um processo biológico mais

antigo que o próprio homem. Antigo como a própria

vida, porque é um atributo da vida”.

Não obstante todos os esforços, todos os

conhecimentos e todas as potencialidades técnicas e

científicas, quer actuais, quer as que irão emergir no

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Salvador Massano Cardoso

162

futuro, iremos confrontar-nos sempre com a doença

e, naturalmente, com a morte.

Há aqui, nesta introdução, um fatalismo evidente.

Mas, então, o que fazer? Muito. Todos os nossos

objectivos, quer da prevenção primária à terciária,

passando pela promoção da saúde, têm como

objectivo contribuir para aquilo que podemos chamar

o fenómeno da contracção da morbilidade e da

mortalidade. Ou seja, fazer todos os possíveis para

adiar para os últimos dias da nossa existência as

doenças e o sofrimento, adicionando, entretanto,

mais anos à nossa existência. Viver mais tempo, com

mais saúde, transferindo e concentrando para o

último período da nossa vida a doença e o sofrimento

que a acompanha. Utopia? Talvez sim, talvez não.

Aliás, muito daquilo que fazemos hoje e a que

chamamos prevenção, não é mais do que o

adiamento do aparecimento das doenças.

Fala-se muito em cancro e em doenças

cardiovasculares, as quais constituem as principais

causas de morte e nas respectivas medidas de

prevenção, subjacente às mesmas, traduzidas por um

conjunto de factores de risco, muitos dos quais são

do conhecimento de todos. Prevenir é, no fundo,

adiar e não evitar. Esta é uma realidade que temos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

163

de aceitar. Morrer por enfarte do miocárdio não é tão

mau como dizem. Pelo contrário, até é uma óptima

forma de morrer, subitamente, face às alternativas

que não são nada agradáveis. A diferença está em

morrer aos 40, 50 ou 60 anos ou, então, a partir dos

90 ou mesmo após os 100 anos de uma vida plena de

saúde.

Esta observação constitui o ponto número um desta

intervenção: a doença é uma fatalidade. Antes de o

homem aparecer já existia.

A saúde do homem depende das suas características

biológicas traduzidas na biodiversidade que

caracteriza cada um de nós. Apesar das expectativas

surgidas face às modificações a operar a nível

genético, não nos parece que nos tempos mais

próximos se consiga obter uma resistência global e

tão pouco será desejável, porque contraria uma das

regras da perpetuação das espécies, à qual o homem

está também intimamente ligado, não obstante o seu

distanciamento face às mesmas. As outras duas

áreas, responsáveis pela saúde, assentam no

ambiente e no comportamento. Esta observação é

igualmente verdadeira quer no cômputo geral, quer

no cômputo mais específico ligado ao trabalho. E, é

aqui que iremos daqui a uns instantes focar a nossa

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Salvador Massano Cardoso

164

atenção tentando analisar o assassino silencioso que

são as doenças profissionais. De facto, o

comportamento e o ambiente são os responsáveis por

80% das nossas doenças. Existe um quarto campo de

saúde, designado por organização dos cuidados de

saúde que, no tocante à patologia laboral, passa

necessariamente pelos serviços de segurança e saúde

no trabalho.

As doenças profissionais são uma constante do

homem desde que foi expulso do paraíso. O momento

em que o homem nasceu, simbolicamente

representado pela expulsão do Éden, coincide com a

tomada de consciência da sua existência. Saber que

existia constituiu um drama que hoje continua. Teve

que começar a trabalhar e logo de imediato começou

a sofrer doenças ligadas ao trabalho. Logo, a

patologia laboral é tão antiga como o homem e faz

parte da nossa vida, já que estamos condenados a

trabalhar. E, mesmo os que não trabalham também

sofrem patologias próprias, denominadas patologias

do desemprego. São inúmeras as doenças provocadas

e relacionadas com o trabalho. Para ilustrar é

suficiente dar uma espreitadela à longa lista de

doenças profissionais.

Não querendo ser fastidioso, vou seleccionar apenas

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

165

dois grandes grupos de doenças que são as mais

prevalentes e objectos de atenção e de preocupação

por parte das autoridades e investigadores. Doenças

cardiovasculares e cancro. O que é que têm a ver

com as doenças profissionais? Mais do que se supõe.

Quando se fala nestes dois grupos vem logo à liça, o

tabaco, a diabetes, a hipertensão arterial, o colesterol

elevado, o sedentarismo, o consumo de álcool, a

obesidade, os desvios alimentares, as substâncias

químicas, os efeitos físicos das radiações, as acções

cancerígenas de determinados agentes virusais, etc.

No caso do cancro existem estudos que permitem

estabelecer um perfeito nexo de causalidade com os

diferentes agentes causais. Noutras circunstâncias a

associação não é tão evidente. Excluindo as situações

caracterizadas por forte associação entre o agente

responsável e certas formas de cancro, as quais são

naturalmente doenças profissionais assassinas, mas

não silenciosas, queria tecer algumas considerações

sobre aquelas que são consideradas como uma

fatalidade e quase, ou nunca, relacionadas com o

trabalho.

Muitos agentes, em exposição mínimas, acabam por

desencadear, provocar ou acelerar muitos problemas.

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Salvador Massano Cardoso

166

Sabendo que é a partir dos 60 – 64 anos que o

cancro apresenta a sua maior incidência, não

podemos esquecer que resulta, na sua grande

maioria, de uma exposição demorada, ocorrida ao

longo da vida, na qual o trabalho constitui um factor

de risco. Desta forma, o aparecimento de muitos

casos é considerada como “normal”, dependendo da

idade e de múltiplos factores, dos quais são,

curiosamente, excluídos os factores profissionais.

Queria afirmar nesta mesa – redonda que a forma

como se organiza o trabalho é tão importante como a

avaliação dos factores de risco. Um grau permanente

de insatisfação laboral, aliado a situações

stressizantes e instabilidade profissional, podem ser

verdadeiramente dramáticos ao condicionar e limitar

a capacidade de defesa e reparação do organismo. A

diminuição da capacidade de vigilância imunológica é

uma realidade e está perfeitamente documentado o

seu papel no desencadear das doenças neoplásicas.

Deste modo, podemos questionar: quantos e quantos

cancros, que irão atingir e vitimar muitos cidadãos,

estarão relacionados com o trabalho ou são

considerados como doenças profissionais?

Provavelmente muitos. E, se as campanhas de

prevenção de riscos e detecção e tratamento precoce

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

167

constituem armas ao nosso alcance, não podemos e

nem devemos deixar de incidir a nossa atenção no

controlo, na monitorização das condições de trabalho

em termos químicos, físicos ou biológicos, mas

também em termos de organização laboral, das

condições de trabalho e do grau de satisfação no

trabalho.

Um grau de satisfação elevado constitui um factor

muito importante para minimizar ou prevenir muitas

doenças profissionais, verdadeiros assassinos

silenciosos.

Este ponto da minha intervenção focou uma das

formas de doença profissional ou relacionada com o

trabalho que podemos considerar como um

verdadeiro assassino silencioso.

Podemos perguntar, até que ponto a organização

social e do trabalho pode provocar este tipo de

doenças?

A organização social e do trabalho dos tempos

modernos caracteriza-se, entre outros aspectos, por

taxas elevadas de desemprego e pela precariedade

das ligações laborais. As causas são múltiplas e,

ciclicamente, observamos situações preocupantes, em

virtude do impacto nas vidas dos atingidos.

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Salvador Massano Cardoso

168

Alguns trabalhos vêm revelando a existência de

associação entre o desemprego e taxa de mortalidade

elevada, comparativamente aos que estão

empregados. Este indicador, de patologias do

desemprego, também se reflecte nos diferentes tipos

de vínculo laboral.

Um trabalho recente, efectuado na Finlândia,

compreendendo mais de 26.000 homens e mais de

65.000 mulheres, observados durante onze anos,

revelou que o emprego temporário estava associado

com mortalidade mais elevada dos que tinham

emprego permanente, mas com taxas inferiores aos

desempregados. Curiosamente, no mesmo estudo,

verificou-se redução da mortalidade daqueles que

transitavam de empregos temporários para empregos

fixos.

Os desempregados de longa duração,

comparativamente aos que tinham emprego fixo, têm

duas a quatro vezes mais risco de morrer por todas

as causas e doenças cardiovasculares e três a cinco

vezes mais por doenças relacionadas com o álcool.

Mortalidade por doenças relacionadas com o álcool,

com o tabaco e com o stress são mais frequentes

neste grupo de trabalhadores (emprego temporário),

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

169

facto que obriga a cuidados, sempre que se faça a

abordagem dos estudos, em termos de associação

entre os que não trabalham e os que trabalham, já

que estes últimos correm riscos diferentes, consoante

o tipo de vínculo. Por outro lado, a prevenção de

riscos, que estão subjacentes a muitas doenças dos

nossos dias, tem de ter em linha de conta não só os

comportamentos individuais e as agressões

ambientais, mas também a própria forma de

trabalhar.

O elevado número de desempregados, mais o

crescente número de empregados em situação

temporária, constituem, eventualmente, um factor de

risco de mortalidade através de doenças relacionadas

com o consumo de álcool, tabaco e "causas externas"

nada desprezíveis.

Esta abordagem talvez fuja à ortodoxia esperada.

Mas é precisamente através desta reflexão que

podemos iniciar novas áreas de investigação e

determinar novos rumos conducentes a um melhor

conhecimento que possa contribuir para o bem-estar

dos trabalhadores.

Não queria deixar de referir, antes de terminar, que

ao longo da história da humanidade e, mais

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Salvador Massano Cardoso

170

recentemente, durante e após a revolução industrial

ocorrem nos países que, hoje, consideramos os mais

desenvolvidos do mundo, verdadeiros genocídios

laborais frutos do não respeito pelas regras de

segurança e saúde no trabalho. Essas doenças

profissionais são bem conhecidas de todos e foram

símbolos de assassínios colectivos mas não

silenciosos.

Paralelamente, continuamos a observar novas

epidemias, mortíferas, silenciosas, as quais implicam

um redobrar da nossa atenção, quer como

investigadores, quer como médicos do trabalho, os

quais têm a responsabilidade de diagnosticar, de

prevenir e combater todas as formas de injustiças

médico-laborais, facto que obriga a reequacionar

todos os sistemas e organização da segurança,

higiene e saúde do trabalho.

É altura de dar visibilidade ao “assassino silencioso”

que são as doenças profissionais. Hoje, tornaram-se

um pouco mais visíveis, mas não o suficiente.

Paralelamente ao discurso científico e técnico é vital a

associação com o discurso político e, até, porque não,

dar uma visibilidade pública, tal como um memorial

às vítimas das doenças e acidentes profissionais. Não

conheço nenhum e as vítimas ultrapassam de longe o

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

171

somatório dos diferentes genocídios praticados até

hoje. O genocídio laboral foi uma constante no

passado e continua a ocorrer debaixo dos nossos

olhos…

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Salvador Massano Cardoso

172

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

173

“O MÉDICO DO TRABALHO FACE À MEDICINA

ITINERANTE: OS NOVOS ANDARILHOS”

Uma das minhas paixões é a medicina preventiva.

Entendi muito cedo, logo nos bancos da universidade,

que manter a saúde das pessoas constitui uma das

tarefas mais nobres da medicina. Não é que não

sentisse a importância das diferentes disciplinas

básicas e clínicas, às quais, invariavelmente, me

atirava como gato a bofes com o objectivo de

aprender o máximo possível. Se assim o pensei,

melhor o fiz.

Curiosamente, na minha altura, só havia uma

disciplina que abordava a prevenção e o carácter

social das doenças. Era ministrada no quarto ano e

não despertava grande interesse na maioria dos

alunos. Recordo-me, como hoje, que uma turma

como a minha, comportando centenas de alunos,

mais de quatrocentos, talvez um dos maiores cursos

de sempre no pré 25 de Abril, apenas meia dúzia ou

talvez menos aguentou na parte final do curso as

aulas teóricas do então jovem professor que, muito

provavelmente vendo o meu interesse e assiduidade,

acabou, inexplicavelmente para mim, na altura, por

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Salvador Massano Cardoso

174

convidar-me a colaborar com ele, mesmo antes de

fazer exame à disciplina. Não me esqueço da

conversa tida numa tarde de sexta-feira no seu, que

é hoje o meu, gabinete, pelas 14 horas. Perguntou-

me se gostava destas áreas e obrigou-me a dissertar

sobre problemas sociais e médicos. Fi-lo com a

ingenuidade e voluntariedade própria da idade, tinha

acabado de fazer 21 anos, e da época, estávamos em

1972. De qualquer maneira, hoje à distância, e

apesar de não me recordar dos conteúdos da

conversa, identifico-me com a forma de pensar e de

actuar que na altura demonstrei. Sou o mesmo.

Sinto. Além do mais, as preocupações que na altura

me atormentavam continuam a manifestar-se hoje

em dia.

A razão de ser desta pequena introdução,

autobiográfica, tem, naturalmente uma razão de ser,

ou seja, preocupo-me com os problemas médico-

sociais e a medicina preventiva, como todos, penso,

que sabem. Cultivo, estudo e analiso as diferentes

formas, tentando dinamizar um dos mais profícuos e

prometedores campos de saúde.

No fundo, o que já fiz ao longo destas décadas teve

um ponto de partida, consigo identificá-lo com uma

precisão matemática, e, ao mesmo tempo, delicio-me

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

175

a partilhá-lo convosco.

O destino de cada um é talhado por pequenas

grandes coisas, e o meu não é diferente dos outros. O

que é certo é que agradeço aquele convite numa bela

tarde primaveril.

Ao longo dos tempos, dediquei-me a estas áreas com

paixão. Os meus colegas achavam um desperdício

enveredar por estes campos em detrimento da clínica

que, curiosamente, nunca abandonei, nem abandono,

porque o médico deve manter laços de proximidade e

de intimidade com a realidade nua crua do sofrimento

e da miséria humanas, porque tal facto faz-nos

recordar a necessidade de cultivar o humanismo que,

na área da saúde, é vital, para compreender a outros

níveis os porquês e os "comos" do seu aparecimento,

fugindo às analises desapaixonadas e frias.

Tentar vender estas ideias não é fácil. Impor os

conceitos da epidemiologia e da medicina preventiva

foi muito difícil. Pertenço a uma geração de meia

dúzia de pessoas que tudo fizeram para enobrecer e

divulgar estas áreas do conhecimento. Conseguimos,

apesar de faltar ainda muito para atingir o nosso

desiderato.

Certas leituras marcam-nos para sempre. Muitos dos

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Salvador Massano Cardoso

176

nossos mestres desconhecem os seus seguidores.

Um ensaísta, humanista e hematologista francês,

Jean Bernard, escreveu um dia que a medicina actua

de quatro formas. Para ilustrar a sua afirmação

socorreu-se de quatro verbos: cortar, substituir,

modificar e prevenir. Os três primeiros têm

correspondência na cirurgia, medicina e na

transplantação. Todas são formas de corrigir o que

está mal, ao passo que o último verbo, prevenir,

constitui uma forma elegante, ao manter a saúde,

impedindo a doença. Aliás, este desiderato deve ser

um dos únicos comuns a todas as sociedades, e tem

evoluído de forma particular ao ser integrado como

um direito universal. Todos têm direito à saúde e à

preservação da mesma. Conceito interiorizado, na

maioria das sociedades, mas cuja evolução foi lenta e

precedida por uma outra, que grande parte de nós

viveu, caracterizada pelo direito a ter acesso a

cuidados de saúde e ao tratamento. Hoje, predomina

a prevenção da doença e, podemos afirmar, mesmo a

promoção da saúde. Ou seja não basta evitar a

doença, mas inclusive dar mais saúde à saúde.

Sendo assim, o verdadeiro paradigma da medicina

preventiva é a medicina do trabalho. A sua

importância e alcance não é de hoje, é mesmo muito

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

177

antiga, mas indo aos tempos mais próximos, a obra

genial de Bernardino Ramazzini, “As doenças dos

trabalhadores”, cuja primeira edição, em latim, foi

publicada em 1700, personifica esta área e a

importância da actuação médica. Tenho lido e relido

com particular curiosidade, e muita satisfação, a

tradução brasileira da mesma. Recomendo-a a todos,

porque o passado ensina-nos que muitas das nossas

preocupações não foram inventadas por nós, longe

disso, outras cabeças já tiveram oportunidade de as

analisar.

Não vou enfatuar-vos com a história da medicina do

trabalho, mas vou saltar para a realidade dos nossos

dias.

Seria uma estultice demonstrar a importância desta

área. De qualquer modo, não quero deixar de passar

a oportunidade para afirmar que o sucesso da

civilização e a riqueza de muitos povos se fez à custa

de verdadeiros genocídios laborais. Logo após a

revolução industrial, muitos investigadores tomaram

consciência da necessidade de melhorar as condições

laborais, propiciando aos trabalhadores os meios para

evitarem que adoecessem. Muito foi feito,

naturalmente, mas na maioria das vezes de forma

muito lenta, porque tentar travar certos interesses

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Salvador Massano Cardoso

178

não é fácil, e exige medidas de carácter social e

politicas muito fortes. Foi o que aconteceu no decurso

do século XIX.

Compete aos médicos do trabalho inúmeras funções

que estão bem estabelecidas por lei e regulamentos.

No entanto, na prática, o que observamos permite-

nos concluir que estamos muito aquém do desejável.

Passámos por um período de grave carência de

médicos do trabalho. Foi só no início da década de

oitenta, através de novos cursos, Coimbra e Porto,

que começamos a produzir mais técnicos qualificados.

Não foi fácil implementar os novos cursos, mas lá se

conseguiu e, em pouco tempo, foi possível diplomar

algumas centenas de médicos para satisfazer grande

parte das necessidades do pais. Um período bastante

fértil. A partir do momento em que foi exigido por lei

que só especialistas em medicina do trabalho podiam

exercer, as coisas complicaram-se. Ainda hoje, digo

com toda a sinceridade, não compreendo esta

alteração legislativa que veio causar alguma

perturbação, diminuindo, não os diplomados, mas os

especialistas, cerceando aos interessados o

recrutamento dos mesmos. Se adicionarmos a

redução de número de médicos, então é fácil de

concluir que a situação não se afigura muito positiva

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

179

em termos de satisfação legal, em medicina do

trabalho.

A tudo o que já disse, acresce que muitos dos

diplomados e, até, mesmo os que alcançaram o título

de especialistas, não praticam, porque optaram pela

dedicação exclusiva nas suas carreiras. Talvez, mas

já por mais de uma vez tive oportunidade de

constatar que não é bem assim, possam, após a

passagem à reforma, dedicarem-se a esta actividade.

De qualquer modo, nada nos surpreende que, muito

provavelmente, iremos assistir a uma grave falta de

médicos do trabalho.

Outro aspecto que rouba alguma dignidade,

podemos, sem qualquer espécie de rebuço, fazer esta

afirmação, diz respeito à inexistência de carreiras de

medicina do trabalho. A este propósito fiz todos os

meus possíveis, aquando da minha passagem pela

Assembleia da República para que fosse aprovado um

projecto de resolução com o objectivo de obrigar o

governo da República a criar uma carreira de

medicina do trabalho de forma idêntica às existentes,

ou seja, a carreira hospitalar, a carreira de clínica

geral e a de saúde pública. Ainda consegui que desse

entrada na mesa da Assembleia, mas nunca foi

discutido e, afirmo, publicamente, que nunca houve

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Salvador Massano Cardoso

180

qualquer manifestação de interesse em abordar este

assunto, apesar de todo o meu esforço e capacidade

de argumentação. Chocou-me esta forma de estar de

responsáveis políticos, da minha própria área, o que

me permitiu, a par de outros acontecimentos, concluir

que somos atrasados, porque muitos dos que nos

governam manifestam total e obscena inconsciência

dos verdadeiros interesses do pais. Sei que este

desabafo não é para aqui, mas não resisti a farpá-los.

Tanto mais que para se alcançar o título de

especialista é necessário que a Ordem dos Médicos

defina o programa curricular do médico. Se quanto à

obrigatoriedade em obter o curso de medicina do

trabalho não há qualquer dúvida, o mesmo não se

pode dizer no tocante aos locais de estágio. Como na

função pública não há, ou melhor há apenas alguns

serviços, e, mesmo assim, sem a dimensão

necessária para a prática estagiária, restam-nos os

serviços privados, alguns dos quais com elevada

qualidade e dimensão. Mas as directivas comunitárias

exigem que o estágio de qualquer interno seja

remunerado. Não estou a ver o sector privado a

financiar estas áreas, nem o Estado a pagar para que

o mesmo seja feito nesses serviços. Sendo assim,

está criado um grande imbróglio que eu, por mais de

uma vez denunciei, e para o qual não vejo solução,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

181

atrapalhando e limitando as actividades do Colégio de

Especialidade.

Mas há mais, muito mais. E, aproveito para dizer que

a qualidade de prestação dos cuidados em medicina

do trabalho, por parte de grande número de

empresas, está aquém do desejável. A não

certificação das mesmas, por parte de uma entidade

que tem vindo a cair e a desvalorizar-se, caso do

actual, e penso que moribundo, ISHST, determina

que a actual situação seja aquela que muitos de nós

conhecem e que outros intuem.

Seria interessante que a fiscalização actuasse e nos

desse o verdadeiro panorama da nossa realidade.

Numa altura em que se fala tanto de certificação e de

acreditação, controlo de qualidade e quejandos,

poderemos perguntar, para quando a regulação

efectiva deste sector?. Não podemos esquecer que

estamos perante um negócio, e que negócio! Só que

o paradigma da medicina preventiva exige muito

mais, sobretudo excelência. Muitos empresários que

recorrem a serviços externos fazem-no por obrigação

e não por devoção, logo, procuram os que lhe dêem

mais vantagens, sobretudo operacionais e

racionalização dos custos. A ideia de que o sector da

medicina do trabalho deve ser considerado não como

Page 182: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

182

um custo, mas sim como um investimento, está

muito longe de ser uma verdade e, até, alimentada

pela própria postura de muitos responsáveis pela

medicina do trabalho.

Dentro desta esfera de actuação, sinto-me um pouco

constrangido, quando vejo caravanas com publicidade

à medicina do trabalho a calcorrear tudo quanto é

sítio, num verdadeiro nomadismo da medicina.

Afianço, desde já, que não sou anti-semita, mas

custa-me ver este espectáculo, quer no meio de

grandes cidades, como é o caso de Lisboa, quer nos

inúmeros aglomerados urbanos ou não, do

aparecimento da “carrinha” para serem efectuados os

exames obrigatórios.

É certo que a medicina do trabalho enquadra-se num

dos quatro tipos de exames médicos. Os outros são a

consulta habitual, em que os responsáveis são o

médico e o doentes, o diagnóstico precoce, também

da responsabilidade dos dois já enunciados

protagonistas, o rastreio, da responsabilidade das

autoridades e o nosso, ou seja, as consultas de

medicina do trabalho, fruto de imperativos

administrativos. O facto de ser imposto pela lei, e não

por opção ou escolha da pessoa, não diminui a

dignidade do próprio acto. Há uma imposição, facto

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

183

que já por si limita o nível de confiança entre

trabalhador e médico, agravado, naturalmente, se o

exame for efectuado em condições menos próprias.

Diga-se em abono da verdade que este sistema, que

peca muitas vezes pelo não cumprimento legal,

quanto às condições em que se deve efectuar o

exame, e que passo por cima, porque é mais do que

evidente as violações, rouba ainda mais a

necessidade de fortalecer o relacionamento,

contribuindo para a despersonalização do mesmo.

Se esta solução "nomádica" fosse, realmente,

benéfica, já o senhor ministro da saúde teria

adquirido vários camiões TIR, devidamente

apetrechados para fornecer, sobretudo às pobres

populações do interior, os cuidados médicos de base,

numa altura em que as vias de comunicação

constituem um argumento de peso para obrigar à

deslocação das populações em caso de urgência, tal

como está a ser desenhado neste momento.

Parece-me, pois, não muito curial que, numa altura

em que as populações mais idosas e menos

desfavorecidas são “convidadas” a procurar outros

locais para satisfazerem as suas necessidades de

saúde, haja tamanho “benefício” para as populações

trabalhadoras.

Page 184: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

184

Sendo assim, importa que a medicina do trabalho

seja transformada numa carreira médica, com acesso

idêntico às restantes carreiras, que o governo crie

condições no sector público para o estágios dos

internos, que o governo cumpra a lei, que tanto exige

ao sector privado, já que a grande maioria dos seus

serviços não dispõe medicina do trabalho, que a

regulamentação se faça sentir, impondo critérios de

elevada exigência, de forma a transpor situações de

“dumping” e de má qualidade, quase que diria

generalizada, que seja permitido aos detentores dos

que possuem só os cursos de medicina do trabalho a

prática da mesma, pelo menos nos tempos mais

próximos, de forma a ultrapassar as enormes

dificuldades no seu recrutamento, enfim, que sejam

criadas as condições para dignificar uma das mais

importantes áreas da medicina, que é precisamente a

medicina preventiva, consubstanciada na medicina do

trabalho.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

185

SAÚDE DOS TRABALHADORES E OS RISCOS

BIOLÓGICOS

Microcosmo biológico e evolução

O microcosmo biológico emergiu há cerca de 3,5 mil

milhões de anos, constituindo a fonte primária de

todas as formas de vida. Representam, actualmente,

mais de 95% por cento de todas as espécies. Ao

longo de todo o processo evolutivo, as diferentes

espécies foram condicionadas por este mundo, do

qual dependem.

O homem, no seu trajecto evolutivo, fruto de um

acaso e de uma necessidade, deve muito das suas

características aos microorganismos. Estes exerceram

uma forte pressão selectiva, conjuntamente com

outros factores ambientais. Mesmo quando foi capaz

de adquirir autonomia cultural, o que lhe permitiu a

conquista da ecúmena, os agentes microscópicos

continuaram a exercer os seus efeitos. Continuaram e

continuam.

Page 186: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

186

Germes, aço e armas

Os germes, mais o aço e as armas (utilizando o título

da obra do biólogo Jare Diamond), formam a tríade

que permitiu em pouco tempo criar uma diversidade

cultural e níveis civilizacionais muito distintos. Basta

recordar que após a última glaciação, ou seja há

cerca de 13.000 anos, todos os povos do planeta se

encontravam no mesmo plano. Mas, em 1500 d.C., os

povos deste planeta distribuíam-se e hierarquizavam-

se numa diversidade que ia desde os povos cultos da

Europa, a outros que viviam na idade da pedra ou

que acabavam de entrar na idade do bronze. É fácil

de compreender as consequências resultantes destas

discrepâncias com a conquista, o domínio e a

exploração dos povos menos desenvolvidos. Nesta

história, os germes não deixaram de dar o seu

contributo, no desenvolvimento de uma verdadeira

patologia biológica da conquista e colonização.

Alimentação e infecções

As deficiências de natureza alimentar, uma constante

da história humana, associadas à falta de condições e

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

187

práticas de higiene, proporcionavam óptimas

condições para o aparecimento das infecções, causa

principal de morte, a qual se manteve até meados do

século XX, no mundo ocidental, e que se mantém,

infelizmente, nos países em desenvolvimento.

Infecções, trabalhadores e Ramazzini

A importância das mesmas está bem patenteada num

sem número de obras. No caso dos trabalhadores,

podemos citar Bernardino Ramazzini que na sua obra

De Morbis Artificum Diatriba, publicada em 1700,

descreve vários e interessantes relatos de doenças

dos trabalhadores. Não obstante o seu

desconhecimento sobre a origem microbiana de

muitas delas, é possível verificar o papel deste

agente. Para o efeito, ilustro esta exposição com

algumas passagens do famoso mestre de Modena.

A arte do pisoamento, consistia, durante os priscos

tempos, em limpar lãs e, sobretudo, em desfazer

manchas das vestes…era, pois bastante comum,

antigamente, que os pisoeiros utilizassem urina para

limpar as lãs e os vestidos, como hoje se faz.

Marinello traz várias histórias de Hipócrates sobre as

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Salvador Massano Cardoso

188

enfermidades dos pisoeiros. “Pisoeiro doente da

cabeça e do pescoço”. “Pisoeiro louco em Sira, por

inflamação das pernas”. É verdadeiramente curiosa a

história de Hipócrates, sobre as condições mórbidas,

com carácter epidémico, que os pisoeiros suportam.

“Incham-se as virilhas, ficando endurecidas e

indolores, perto do púbis, e no pescoço, igualmente,

aparecem tubérculos grandes e febre, antes do

décimo dia.

Noutra passagem, a propósito das doenças das

parteiras, Ramazzini diz: Seja qual for a condição do

sangue menstrual, tal como crêem aqui e ali, não há

dúvida de que o fluxo uterino que precede e sucede

ao parto é maligno e virulento; demonstra-o

suficientemente a repentina supressão ou redução

dos lóquios, pois logo sobrevêm febres malignas que

matam as míseras puérperas…Fernélio, considerando

o poder das doenças contagiosas, diz que uma

parteira, ao atender a uma parturiente sofreu tais

lesões em uma das mãos, que terminou aleijada; a

puérpera acrescenta Farnélio, tinha estado infectada

de lues gálica. Da mesma forma a nutriz que

amamenta a uma criança infectada contrai lues

primeiramente nos seios….

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

189

A propósito das doenças dos agricultores: não é raro

que os agricultores sofram, no Verão, febres altas,

ainda mais quando começa a abrasar seus corpos “a

ira do vesânico leão”; assim, no Outono, padecem de

disenteria que pode ser atribuída às frutas da época e

a outros erros alimentares….

Revolução industrial e riscos biológicos dos trabalhadores

A época da revolução industrial foi acompanhada de

fenómenos com grande impacto na saúde das

comunidades, nomeadamente da trabalhadora. Se

analisarmos a tuberculose, podemos afirmar que

existiu desde sempre, como testemunha a

paleopatologia. No entanto, nunca, ao que se saiba,

tomou formas epidémicas. A concentração dos

agricultores deslocados para as cidades, aliada à

desnutrição e consequente perda da resistência,

constituem as razões para o desbravamento da

tuberculose. As mudanças do tipo de trabalho foram

determinantes para a eclosão da epidemia que, desde

então, assumiu proporções catastróficas, tal como

aconteceu durante o século XIX.

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Salvador Massano Cardoso

190

Riscos biológicos actuais

Os trabalhadores estão sujeitos a inúmeros riscos de

natureza variada, e os riscos biológicos constituem

uma área particular que continua a preocupar os

responsáveis, apesar de nos encontrarmos numa era,

aparentemente confortável, onde se pensava -

erradamente - que seria possível lutar com grande

eficiência contra as doenças microbianas e virusais.

Sabemos que não é assim, e, a testemunhar,

salientamos o ressurgir com virulência de certas

doenças, e a emergência de novas.

Na prevenção de muitas afecções, no caso presente,

infecções, medidas normativas contribuem de forma

positiva. Neste sentido a produção de legislação

nacional e comunitária é sinónimo de preocupação e

interesse pelos agentes biológicos no ambiente de

trabalho. Acresce, ainda, as medidas de carácter

geral sobre os mesmos agentes.

A título de exemplo citamos as directivas

comunitárias relativas à protecção dos trabalhadores

contra os riscos ligados à exposição a agentes

biológicos (7ª Directiva especial) com as

consequentes adaptações, assim como o decreto-Lei

que regula a utilização e comercialização de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

191

organismos geneticamente modificados - facto que

ilustra o alcance dos riscos biológicos que não se

limita aos agentes microbianos e virusais. A legislação

nacional estabelece as regras de protecção dos

trabalhadores contra os riscos de exposição a agentes

biológicos, assim como a classificação dos mesmos.

Classificação dos riscos biológicos

Estes são classificados em quatro grupos. No primeiro

grupo enquadram-se aqueles cuja probabilidade de

causar doenças no ser humano é baixa. No segundo,

apesar dos agentes poderem causar doenças e

constituir um perigo para os trabalhadores, é escassa

a probabilidade de se propagarem na colectividade,

além de que existem, em regra, meios eficazes de

profilaxia ou tratamento. Os agentes que podem

causar doenças no ser humano e constituir risco

grave para os trabalhadores e que sejam susceptíveis

de propagação na colectividade, mesmo que existam

meios eficazes de profilaxia ou de tratamento,

enquadram-se no terceiro grupo. Por fim, temos o

quarto grupo; no qual se encaixam os agentes

responsáveis de doenças graves no ser humano,

nomeadamente trabalhadores, sendo susceptíveis de

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Salvador Massano Cardoso

192

apresentarem elevados níveis de propagação na

colectividade e para o qual não existem, em regra,

meios eficazes de profilaxia ou de tratamento.

Riscos biológicos “banais” e sua importância actual

Com base nas características clínico-epidemiológicas

dos diferentes agentes, não é difícil agrupá-los nesta

classificação. Apesar dos agentes dos grupos três e

quatro serem, naturalmente, os mais preocupantes,

tal facto não significa que devemos desvalorizar os

pertencentes aos grupos mais “benignos”, os quais

sendo mais comuns, acabam por ter efeitos gravosos

em termos de bem-estar e de produtividade laboral.

Infecções simples e banais podem traduzir-se em

problemas complicados, quer a nível individual, quer

a nível da organização do trabalho, quer a nível do

desenvolvimento do país.

Novas perspectivas dos riscos biológicos para os trabalhadores e para os que contactem com os mesmos

A abordagem deste tema desperta naturalmente por

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

193

parte dos participantes, expectativas sobre que tipo

de análise irá ser efectuada a propósito de

determinados tipos de doenças, tais como, a sida, a

hepatite, a tuberculose, entre outras. O risco de

propagação é elevado, sobretudo nos profissionais de

saúde, facto que exige medidas de prevenção a

vários níveis.

A identificação dos riscos biológicos está

minimamente reconhecida a nível laboral. Conhecem-

se as diferentes profissões mais sujeitas a contraírem

problemas, assim como implementar as medidas

adequadas. Seria exaustivo e recorrente uma análise

sobre estes aspectos, os quais constituem motivo de

horas e horas de ensino para os diferentes

profissionais da área da Segurança, Higiene e Saúde

no Trabalho.

O risco profissional não pode ser dissociado da

eventual propagação aos utentes das diferentes

actividades. Senão vejamos: se um profissional de

saúde corre risco de contrair uma doença infecciosa,

pode igualmente ser fonte de propagação. Estão

descritos casos de cirurgiões e dentistas que

contaminaram os seus doentes. Mas não deixa de ser

curioso é o impacto de certas medidas em termos de

saúde pública.

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Salvador Massano Cardoso

194

Uma das explicações para a grave crise de epidemia

da sida no continente africano assenta nos factos de

que a actividade sexual contribui com cerca de 90%,

as transfusões e infecção mãe-filho com 5% e as

agulhas contaminadas com outros 5%. Mas, estudos

recentes permitiram reanalisar estes dados. O curioso

é que o sexo não seguro não contribui com mais de

um terço dos casos, enquanto a utilização de agulhas

contaminadas contribui com 50%. De acordo com os

autores a promiscuidade servia como explicação,

como consequência dos preconceitos ocidentais

acerca da sexualidade africana. A baixa taxa atribuída

às agulhas e seringas contaminadas revela o medo da

perda de confiança nas instituições de saúde e nas

imunizações. Se tivermos em conta que anualmente

são ministradas 7,5 mil milhões de injecções com

agulhas não devidamente esterilizadas, é fácil

verificar como uma actividade profissional tão nobre,

como a prestação de cuidados de saúde, pode

originar problemas tão graves.

Os riscos biológicos têm sido alvos de particular

atenção por parte dos políticos, face à sua utilização

como armas. Não é de hoje, a prática do

bioterrorismo. Lançar corpos contaminados com

peste, ou envenenar poços, constituem algumas das

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

195

práticas de guerra utilizadas, e, diga-se em abono da

verdade, muitas vezes com sucesso.

A facilidade na sua elaboração preocupa os

responsáveis, já que o risco não se coloca só aos

militares, mas também à população em geral e,

particularmente, a sectores de actividade profissional

que constituam os principais núcleos da actividade

produtiva e económica de um povo.

Medidas de carácter preventivo deverão ser tomadas

de forma a impedir a destruição de sectores vitais.

Trabalhadores imunodepressivos

Tive já a oportunidade de falar das consequências

resultantes das infecções ocorridas ao longo da

história da humanidade. A fragilidade imunitária

decorrente de uma alimentação deficiente e a

ausência de condições higiénicas colectivas e

pessoais, explicam a elevada mortalidade.

Hoje em dia, a alimentação melhorou de uma forma

substancial, a tal ponto, que é a fonte número um de

problemas de saúde no mundo ocidental. No entanto,

podemos afirmar que, graças à conquista da medicina

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Salvador Massano Cardoso

196

e da higiene, vivemos cada vez mais. As pessoas

idosas são mais susceptíveis às doenças, mas não

podemos deixar de equacionar um novo paradoxo

que se prende com as nossas resistências

imunológicas. Cada vez há mais pessoas que

sobrevivem e vivem com deficiências imunitárias,

resultantes de transplantações, terapêuticas

imunosupressoras e de doenças degenerativas.

Muitos, mas mesmo muitos, são jovens e adultos e

consequentemente são trabalhadores. Numa

perspectiva de saúde ocupacional, não podemos

deixar de analisar este novo grupo face às agressões

biológicas. E sendo certo que os agentes dos grupos

três e quatro são perigosos para todos, tenham ou

não saúde, os do grupo um e dois podem

transformar-se em agentes mesmo perigosos para

este novo grupo de trabalhadores. Importa deste

modo debruçar-nos em termos de segurança, higiene

e saúde no trabalho, face aos imunodeprimidos.

Riscos biológicos e interacção com os riscos químicos

A análise actual dos riscos biológicos não pode ser

dissociada da exposição química e física. Existe uma

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

197

interacção entre os mesmos que merece algum

destaque. O nosso mundo biológico é antigo, como já

sabemos, mas o mundo químico é particularmente

recente. A introdução de milhares de novas moléculas

originou muitas patologias. A exposição a estas

substâncias, mesmo em doses baixas, muito

provavelmente originará modificações biológicas nos

nossos organismos, tornando-os sensíveis à acção de

agentes que habitualmente não provocariam

transtornos. A este propósito, não deixaria de invocar

o aparecimento de um novo paradigma que poderá

explicar muitos sintomas e até doenças para as quais

se desconhecem as causas. A perda da tolerância

induzida pelos tóxicos (TILT) tornaria muitas pessoas

sensíveis à toxicidade dos mesmos com expressão

multifactorial. Não podemos deixar de equacionar que

nesta perspectiva a interacção germes-toxicidade

induzida a baixas doses possam desencadear novas

situações.

Riscos biológicos e stress

Já citei o papel da imunodepressão no desencadear

de doenças infecciosas. Situações como as

decorrentes de várias terapêuticas, doenças

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Salvador Massano Cardoso

198

neoplásicas e transplantes, são muito relevantes no

contexto actual. Mas há ainda outras situações, tais

como, os já citados efeitos tóxicos e o efeito

imunossupressor do stress. Sendo o trabalho a

principal fonte de stress, é de prever que nas

circunstâncias actuais hajam muitos trabalhadores

com compromissos imunitários que, embora ligeiros,

possam ser suficientes para os tornar vulneráveis a

infecções banais com repercussões a vários níveis.

Riscos biológicos e organização do trabalho

Gostaria de expressar que, de acordo com os actuais

conhecimentos, a análise dos riscos biológicos não

pode ser efectuado sem o concurso de outras áreas,

nomeadamente organização do trabalho, fontes de

stress laboral, condições físicas de trabalho,

exposição a tóxicos e a condição prévia do estado de

saúde.

A interpenetração destas áreas é fundamental para a

compreensão e inclusive protecção dos trabalhadores.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

199

Riscos biológicos e condições físicas do local do trabalho

As condições físicas do local de trabalho obrigam-nos

a algumas considerações. Trabalhar em edifícios

aparentemente inteligentes é agradável, mas a

existência de sistemas de ventilação e arejamento

colocam problemas delicados, tais como o

desenvolvimento de germes patológicos e de outros

que, não o sendo em condições normais, acabam por

produzir problemas de saúde ocupacional. Deste

modo, quem diria que um funcionário de serviços,

trabalhando em ambiente agradável de iluminação e

de temperatura, mas com deficiente organização de

trabalho e estando sujeito a stress laboral aliado a

exposição de substâncias, embora mínimas,

provenientes dos vários produtos utilizados na

construção e equipamento está mais vulnerável a

bactérias e vírus, sofrendo as naturais

consequências?

Mutações dos germes

Para que possamos instituir medidas adequadas para

a prevenção e redução de doenças profissionais

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Salvador Massano Cardoso

200

associada aos riscos biológicos, necessitamos de

conhecer as características dos germes, a sua

evolução e como se transformam rapidamente, já que

começam a resistir às terapêuticas existentes ou a

adquirir mutações virulentas. Situação preocupante,

face às novas características dos indivíduos.

Buraco 10/90

Necessitamos de investir em novos meios de

terapêutica, já que existe um buraco 10/90 entre o

mundo ocidental e os países em desenvolvimento. De

facto, 90% dos recursos existentes para a saúde são

despendidos para resolver 10% da patologia, que

afligem os primeiros, e apenas se despendem 10%

para os 90% da patologia que atingem os menos

favorecidos. A “vingança” do terceiro mundo paira

sobre as nossas cabeças e é bom que estejamos

atentos.

Viver na proximidade de um aeroporto internacional

ou trabalhar no mesmo é um risco para contrair o

paludismo.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

201

Medidas de prevenção

Necessitamos criar boas condições de trabalho, no

seu sentido mais lato, evitando o stress (utopia),

exposição profissional e favorecendo sempre que

possível a utilização de equipamentos e de protecção

individual.

Medidas de natureza ambiental, nomeadamente o

controlo de alterações climáticas, permitem evitar no

alastramento para latitudes mais longínquas de

velhas-novas doenças.

Necessitamos evitar que os interesses económicos

favoreçam a propagação de doenças infecciosas.

Basta recordar a poupança energética na renovação

do ar nos aviões e o risco - aumentado - de contrair

graves doenças infecciosas.

Conclusão

O mundo dos riscos biológicos exige cada vez mais

compreensão e estudo, já que novas interacções,

novos germens, novas condições de risco e novos

paradigmas, estão a emergir, complexizando uma das

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Salvador Massano Cardoso

202

áreas mais interessantes e fontes de eternos

problemas, sem os quais, curiosamente, não

conseguimos sobreviver, porque traduzem um

baluarte da própria vida, apesar do risco de vida que

muitos de nós corre face à sua presença.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

203

SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE NO TRABALHO

A Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho constitui

uma das principais áreas de actividade humana por

vários motivos.

O trabalho é a realização máxima da nossa espécie.

Fomos desde muito cedo, em termos evolutivos,

“condenados” a ganhar o pão com o suor do rosto.

Mas não é preciso ganhá-lo à custa da doença, da

invalidez e da morte. Infelizmente, em muitas

situações, é mesmo assim. Se olharmos para o nosso

passado colectivo, verificamos facilmente que as

conquistas da humanidade, feitas à custa do trabalho,

foram em muitas circunstâncias, verdadeiros

genocídios laborais, que continuam, apesar de todos

os esforços em sentido contrário, nos nossos dias, em

todos os países e regiões com os seus figurinos

próprios.

Todos os esforços feitos no sentido da protecção da

saúde e da sua promoção relativamente ao trabalho

são bem-vindos. Muitas das conquistas da libertação

do homem tiveram como causas e consequências as

condições laborais. Não havendo tempo para ilustrar,

mesmo recentemente, estes aspectos, que foram

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Salvador Massano Cardoso

204

mais mediatizados após a revolução industrial e

durante o século XIX – também designado pelo

século da liberdade -, passaremos ao tema que hoje

nos propusemos abordar: falar de segurança e saúde

no trabalho para jovens trabalhadores que vão entrar

na vida activa.

Esta temática é alvo prioritário dos responsáveis

europeus. A Comissão Europeia está atenta e a título

de curiosidade informo que na semana passada foi

publicado um relatório da Agência Europeia para a

Segurança e a Saúde no Trabalho sobre jovens

trabalhadores.

É do conhecimento geral que o número de jovens

está a diminuir em quase todos os Estados-Membros

devido à redução da taxa de natalidade. Seria de

esperar que, havendo menos jovens, houvesse mais

emprego. Mas não é o caso. O facto de haver menos

jovens trabalhadores tem a ver com o fenómeno

demográfico já citado, assim como ao prolongamento

e à generalização da formação, não esquecendo que

os jovens são vítimas preferenciais, se assim

podermos afirmar, da recessão económica.

Em 2005, cerca de 194 milhões de indivíduos

estavam empregados na UE-25, dos quais 20,4

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

205

milhões eram jovens. Estes representavam 10,5% da

força de trabalho. Quanto à taxa de desemprego esta

atingia 18,7% nos jovens ou seja mais do dobro da

taxa geral de desemprego (9%). Facto revelador que

nalgumas regiões chegava a atingir 59%! No nosso

pais atingia, em 2005, 16%.

São várias as áreas que pretendemos abordar,

embora de forma aligeirada: o emprego, obviamente,

o tipo de trabalho e respectivos locais, as diferenças

de género, a exposição aos riscos, as consequências

para a saúde e as necessidades de prevenção e de

investigação.

Uma boa politica é o primeiro passo para a

empregabilidade e para a adequada integração dos

jovens na sociedade e nas empresas, indispensável

ao seu bem-estar e saúde. Não esqueçamos que a

falta de emprego é fonte de doença, porque a par da

patologia dita profissional também há uma patologia

associada ao desemprego e à insegurança tão

marcantes nos nossos dias vitimando e cerceando as

legítimas aspirações dos mais novos.

A percentagem de jovens com emprego a tempo

inteiro na EU-25 era inferior aos restantes e tinham

mais contratos temporários (39% contra 14%). Em

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Salvador Massano Cardoso

206

2005, um em cada quatro jovens trabalhadores tinha

emprego a tempo parcial. Os que estão nestas

circunstâncias têm menos oportunidade de formação

e de progressão na carreira, os níveis salariais são

mais baixos, têm menos benefícios da segurança

social, os trabalhos são geralmente monótonos, o

trabalho por turnos são mais frequentes, factos que

podem comprometer a saúde dos jovens.

Mas onde é que trabalham mais os jovens? Na UE-25

a taxa mais elevada de jovens trabalhadores ocorre

na hotelaria e restauração (22,7%) e no comércio

(16,3%). Em Portugal os três primeiros lugares são

ocupados pelo comércio (14,9%), hotelaria e

restauração (13,4%) e construção (12,5%).

Esta análise é muito importante pelas implicações em

termos de segurança e de saúde no trabalho. Baixos

salários, sazonabilidade do emprego, condições de

trabalho deficientes e desgaste físico intenso são uma

constante. Muitos destes sectores e profissões

caracterizam-se por riscos elevados de acidentes e

exposição a substâncias perigosas nos locais de

trabalho.

É difícil estabelecer diferenças entre os géneros em

termos de saúde e de exposição a riscos profissionais.

Page 207: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

207

De qualquer modo, são mais os jovens do sexo

masculino a trabalhar do que do sexo feminino, 11,1

milhões de rapazes contra 9,3 milhões de raparigas.

Evidentemente que há profissões mais femininas e

outras mais masculinas não obstante a tendência

para uma equalização do género. Queria, no entanto,

chamar a atenção para o facto das raparigas serem

mais vulneráveis em termos de agressão. Não por

serem mais fracas, muito pelo contrário. As raparigas

são biologicamente mais resistentes que os rapazes,

mas, atendendo ao seu papel na reprodução, poderão

sofrer efeitos muito perniciosos comprometendo a

sua saúde reprodutiva e até a dos seus descendentes.

Estes aspectos são cada vez mais importantes numa

época em que as agressões ambientais em geral, e a

do ambiente de trabalho em particular, se revelam

perigosas para a nossa espécie.

A exposição aos riscos profissionais são múltiplos,

mas os mais comuns, a que estão expostos os jovens

trabalhadores, são físicos, caso de ruído, vibrações,

calor e frio e manuseamento de substâncias

perigosas. Os produtos químicos utilizados na

agricultura e na construção são preocupantes aos

quais se associam os utilizados na limpeza, os

solventes orgânicos e muitos outros com efeitos

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Salvador Massano Cardoso

208

genotóxicos e cancerígenos nada desprezíveis.

Sabemos que estamos a envelhecer quando

aparecem certos sinais ou sintomas. Um deles diz

respeito à maldita dores nas costas. Pois bem, já não

é um sinal de envelhecimento, porque é tão comum

que começa a atingir as pessoas em idades cada vez

mais jovens. As perturbações músculo-esqueléticas

constituem a situação profissional mais comum a que

os jovens trabalhadores não estão isentos, fruto de

posturas e de actividades ergonómicas impróprias,

causando mal-estar, absentismo e reformas

prematuras relacionadas com as actividades

profissionais. Outro aspecto muito frequente tem a

ver com os fenómenos repetitivos causadores de

tendinites variadas que chegam a ser altamente

invalidantes. Vejam o uso intensivo de computadores

e dos ratos, só para dar um exemplo, para

rapidamente se aperceberem desta situação. Quem

sabe se entre os presentes não haverá alguém que

sofra ou tenha sofrido desta perturbante doença

reumatismal. E são jovens! Agora imaginem o que

poderá acontecer daqui a mais alguns anos.

O trabalho por turnos não é fisiológico, podendo

originar graves alterações que comprometem o

normal funcionamento do organismo e da mente.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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O stress tem como principal fonte o trabalho. São três

os determinantes para o seu aparecimento: agressão

intensa e prolongada, falta de apoio social nas

empresas e ausência de capacidade de decisão.

Quando se associam é certo e sabido que o stress

emerge em toda a plenitude. Pois bem. Agressões

intensas não faltam. Falta de apoio social por parte

das empresas é uma constante. São muito poucas as

que desenvolvem esta área. Como é do conhecimento

geral o mobying – também conhecido por assédio

moral – ocorre com alguma frequência com o

objectivo de criar más condições ao trabalhador

levando a que este se despeça sem que a empresa

incorra na responsabilidade em o indemnizar. Esta

situação não é rara podendo atingir os 4 a 5%.

Desconhece-se qual o verdadeiro peso entre os

jovens trabalhadores. Mas deve existir, apesar das

condições de precariedade dos jovens quase o

dispensar. O terceiro determinante da origem do

stress laboral tem a ver com a ausência da

capacidade de decisão. Quando está limitada, e a

grande maioria dos jovens estão limitados em tomar

decisões, o stress aumenta. A presença desta

situação é muito comum e provoca vários tipos de

sofrimento psíquico e físico.

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Salvador Massano Cardoso

210

Já que falámos de mobying, assédio moral, e de

stress, devemos falar, também, de assédio sexual.

Por exemplo, as jovens com empregos precários em

hotéis e empresas prestadoras de serviços têm muito

mais probabilidades de ser assediadas.

A sinistralidade laboral é uma realidade que,

felizmente, entre nós tem vindo a decrescer, embora

as taxas sejam ainda das mais elevadas, traduzindo

posturas e comportamentos de risco quer por parte

dos trabalhadores quer por parte dos empregadores.

Os dados nacionais e europeus revelam que os jovens

trabalhadores correm mais riscos de acidentes de

trabalho, em média 40% superior no grupo etário dos

18 aos 24 anos. No entanto, apesar dos acidentes

serem mais frequentes nos jovens os acidentes

mortais são menos comuns, o que não quer dizer que

nalgumas actividades, por exemplo, agricultura,

transportes e comunicações, possam ser

consideráveis.

No tocante às doenças profissionais os riscos dos

jovens trabalhadores são inferiores aos de mais

idade, na medida em que o factor tempo, exposição

ao risco, ter um papel fundamental no aparecimento

e no desencadear de muitas situações. As mudanças

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

211

constantes de emprego aliadas aos novos tipos de

contrato laboral, muitas vezes de curta duração,

levam a que as exposições a certos factores de risco

sejam reduzidas. No entanto, convém recordar que,

na globalidade, o somatório das diferentes exposições

não deixarão de ocasionar novos tipos de patologia

profissional fruto precisamente desta miscelânea de

riscos.

Mesmo assim é já possível fazer um pequeno balanço

sobre a frequência das doenças profissionais mais

frequentes. “As cinco principais doenças que afectam

os trabalhadores entre os 15 e os 35 anos na Europa

são as reacções alérgicas, a irritação da pele, as

lesões pulmonares, as doenças infecciosas e as lesões

músculo-esqueléticas. Cerca de 87% dos problemas

de saúde comunicados pelos trabalhadores,

associados a lesões pulmonares, e que causaram

mais de duas semanas de absentismo, diziam

respeito a trabalhadores com menos de 25 anos.

Quase metade (48,9%) de todos os problemas de

saúde comunicados pelos trabalhadores, associados a

stress, depressão e ansiedade, e que causaram mais

de duas semanas de absentismo diziam respeito a

jovens trabalhadores com menos de 25 anos”. Estes

últimos dados confirmam a frequência do stress e de

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Salvador Massano Cardoso

212

outras perturbações psíquicas relacionadas com o

trabalho, para não falar das relacionadas com a falta

do mesmo.

Quais as causas para estes perfis de doenças e

acidentes profissionais? Podemos invocar as

seguintes: falta de experiência dos jovens,

imaturidade física e psicológica, falta de sensibilização

para os problemas de segurança e de saúde no

trabalho – formação muito deficiente a todos os

níveis – nas quais se integram também os

empregadores que não compensam estes aspectos

com prévia formação, supervisão e medidas de

protecção adequadas sobretudo aos jovens que

corram mais riscos.

“Os riscos relacionados com o trabalho a que estão

sujeitos os jovens trabalhadores devem ser

encarados com grande seriedade.

Muitos dos factores de risco continuam a ser

encarados como inerentes aos seus comportamentos

de risco ou à natureza temporária do seu trabalho. É

necessário adoptar medidas de enfoque específico no

ensino e na formação, bem como na prática

quotidiana dos locais de trabalho”.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

213

O conhecimento dos principais riscos para a saúde

implica igualmente que os empregadores e os jovens

trabalhadores devam ser sensibilizados para esses

riscos.

Em termos práticos a Agência Europeia para a

Segurança e a Saúde no Trabalho propõe as

seguintes medidas:

identificar os sectores em que os jovens

trabalhadores correm mais riscos;

identificar os riscos com maior prevalência, para

aumentar a sensibilização dos empregadores e dos

jovens trabalhadores;

promover a sensibilização das agências de emprego

para os riscos a que os jovens trabalhadores estão

expostos;

formar inspectores do trabalho nos sectores que

empregam mais jovens e sobre os riscos que eles

correm;

ter em conta as necessidades especiais de grupos

específicos de jovens trabalhadores

(masculinos/femininos, migrantes, etc.);

dar especial atenção aos trabalhadores temporários e

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Salvador Massano Cardoso

214

a tempo parcial. O aconselhamento deve referir a

importância de se dar especial atenção aos jovens

trabalhadores e de se transmitir orientações

específicas aos empregadores, aos inspectores e aos

serviços de prevenção;

incluir a questão dos jovens trabalhadores nas

orientações relativas ao trabalho por turnos;

recentrar as políticas de reabilitação e

empregabilidade dos trabalhadores acidentados de

forma a incluir os jovens trabalhadores;

integrar a SST no ensino. Isto é especialmente

importante para aqueles que ocupam empregos

precários, dado que recebem menos formação no

trabalho e são difíceis de alcançar.

A Comissão Europeia está atenta a estes problemas e

pede que os Estados-Membros se debruçam e

reconheçam a importância das novas doenças

profissionais que começam a proliferar de forma

inusitada com consequências imprevisíveis e custos

muito elevados para todos.

O tema que me tinha sido proposto para esta

conferência, “Hoje é o primeiro dia do resto da tua

vida”, encerra em si um simbolismo próprio de quem

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

215

vai iniciar uma nova etapa, a etapa do trabalho, fonte

de realização, de bem-estar, mas também de

sofrimento e até de morte. O tema é forte, agressivo,

provocador mas nem por isso inútil ou errado. Tentei,

ainda de que forma sumária, sem pretensões de dar

um qualquer curso de Segurança e Saúde no

Trabalho, abordar as principais problemáticas que se

colocam aos jovens trabalhadores e os riscos que

podem correr. A organização e os novos tipos de

trabalho aliados à falta de formação e de

sensibilização por parte dos intervenientes, assim

como dos responsáveis políticos e operacionais em

matéria de fiscalização das normas e regulamentos

em vigor, constituem as principais causas de doença

profissional e de acidentes com todas as

consequências previsíveis em matéria de saúde e de

bem-estar. Não faz sentido que o trabalho seja fonte

de doença, mas, na prática, o número de doenças

ligadas ao trabalho ou agravadas por este aumentam

assustadoramente contribuindo para um

encurtamento da nossa existência ou fazendo com

que passemos tempo a mais no estado de doentes.

Viver mais e viver com mais saúde é um desiderato

perfeitamente ao nosso alcance, desde que se

respeitem certas regras. Na prática a realidade é

outra, muito distinta, o que obriga a que todos nós

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Salvador Massano Cardoso

216

tenhamos consciência desses factos adoptando as

respectivas medidas de prevenção, promovendo a

formação, assimilando novas culturas, obrigando os

responsáveis a cumprir com as suas obrigações

legalmente definidas mas nem sempre cumpridas, ou

seja, contribuindo e adquirindo novas posturas

compatíveis com as actuais formas de organização de

trabalho e travando o crescendo de novas patologias.

Sendo assim preferia que o tema desta conferência

fosse não “Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”

mas: “Hoje é o primeiro dia de uma longa e saudável

vida”. O trabalho pode e deve contribuir para alcançar

este objectivo.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

217

DESABAFO SOBRE A HIPERTENSÃO ARTERIAL

Quando os deuses criaram Gilgamesh, deram-lhe um

corpo perfeito. Shamash o Sol glorioso dotou-o de

beleza, Adad o deus da tempestade dotou-o de

coragem, os grandes deuses fizeram sua beleza

perfeita, sobrepassando a todos outros, terrífico como

um grande touro selvagem. Dois terços lhe fizeram

deus e um terço homem.(...).

Gilgamesh procurou durante toda a sua vida a

imortalidade, mas aquele terço tão humano não lhe

permitiu alcançá-la. Os deuses não eram burros!

Todos os esforços feitos pelo homem têm na sua

génese algo de semelhante, mas a doença e a morte

são inevitáveis. Sem doença não poderíamos

sobreviver, porque “A doença é um processo biológico

mais antigo que o homem. Antigo como a própria

vida, porque é um atributo da vida” (George Rosen).

Sendo assim, muitas das afecções que atingem os

seres humanos têm explicações remotas de cariz

evolutivo, e causas próximas sujeitas a análise,

diagnóstico, “correcção” e prevenção.

A hipertensão arterial não foge à regra e, muito

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Salvador Massano Cardoso

218

provavelmente, há 500 milhões de anos, a criação do

sistema renina-angiotensina foi vital para a evolução

das espécies entre as quais o futuro homem que hoje

combate com fármacos um dos principais factores de

risco cardiovasculares a fim de viver mais e melhor.

Apesar de ser um dentro de centenas de factores,

tem a particularidade de que uma ligeira diminuição

da mesma se traduzir numa acentuada redução da

morbilidade e da mortalidade. Este aspecto é

relevante e talvez explique a discrepância verificada

entre a redução da mortalidade e a manutenção dos

valores da prevalência da hipertensão. Não se

observa redução do número de hipertensos, mas

estes passaram a ser “menos hipertensos”. Do

mesmo modo os hipercolesterolémicos passaram a

ser “menos hipercolesterolémicos” e a mesma

observação se poderia fazer para os diabéticos. Estes

fenómenos poderão explicar o “paradoxo português”,

redução da mortalidade sem que seja acompanhada

da redução da prevalência dos principais factores de

risco, à excepação do tabaco que tem vindo a

diminuir nos homens, mas não nas mulheres e do

aumento da obesidade.

Portugal constitui um pais de alto risco cardiovascular

devido sobretudo à elevada incidência e prevalência

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

219

dos AVCs.

A análise dos anos de vida perdidos por óbitos

devidos a AVCs antes dos 70 anos impede o viés dos

“certificados de óbitos”, permitindo calcular que,

anualmente, se perdem, em média, mais de 40.000

anos de vida contra os 32.000 anos de vida perdidos

devido a doença coronária. Sabendo de antemão do

desfasamento etário destes dois tipos de rubrica,

ocorrência mais cedo na doença coronária versus

AVC, é fácil de compreender a importância desta

última no contexto nacional.

Apesar da paradoxal evolução de muitos factores de

risco em Portugal, aumento nos últimos anos do

consumo calórico, da prevalência da diabetes, da

hipercolesterolemia e da obesidade acompanhados de

fraca redução da prevalência da hipertensão arterial e

do consumo do tabaco, a mortalidade cardiovascular

está a diminuir. A explicação para este fenómeno

pode ser encontrada no facto da prevenção

secundária estar em franca evolução, não obstante o

facto de estar muito longe das suas reais

possibilidades. Mesmo assim, deverá ser a principal

explicação para o fenómeno. Vários estudos já

realizados apontam para esta tese.

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Salvador Massano Cardoso

220

O combate e a prevenção da hipertensão arterial

constituem pontos-chave para minimizar este

problema. Neste momento, entre nós e dentro do

grupo etário dos 55 aos 84 anos, mais de 400.000

indivíduos (de uma população ao redor dos

2.500.000) correm o risco de vir a sofrer um AVC nos

próximos 10 anos. Sabendo da impossibilidade em

eliminar esta causa, é no entanto possível quantificar

o número de indivíduos que, beneficiando de uma

correcção dos seus valores tensionais, graças aos

actuais recursos, ficariam “isentos” de um AVC: cerca

de 175.000, cifra suficientemente elevada para a

tomarmos em linha de conta.

A política da prevenção da hipertensão arterial passa,

entre as medidas ditas clínicas, por medidas de cariz

político-social.

A hipertensão arterial é muito prevalente em

Portugal. Num recente estudo coordenado por nós,

W-Risk – Alterações Ponderais e Situações de Risco

em utentes do S.N.S., realizado em parceria com a

Associação de Médicos de Clínica Geral, foi possível

verificar que, numa amostra representativa de

utentes (cerca de 15.000) com idade igual ou

superior a 18 anos, a prevalência padronizada para a

população portuguesa era de 33%. Esta cifra

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

221

explicará em grande parte o grave problema das

doenças cardiovasculares em Portugal.

Estudos epidemiológicos revelam que um dos

principais factores responsáveis pela hipertensão tem

a ver com o consumo do sal. Neste momento, e na

sequência de estratégia de prevenção a nível

mundial, torna-se imperioso reduzir o consumo de sal

dos 9 a 12 g/dia para 5 a 6 g/dia. Importa esclarecer

que Portugal se encontra no limite superior, com o

pormenor de muitos portugueses ultrapassarem, e

em muito, o consumo dos 12 g/dia de sal. Uma

redução da ordem de grandeza enunciada permitiria

reduzir a pressão arterial de 7,2 a 11,2 mmHg para a

tensão arterial sistólica e 3,8 a 6,4 mmHg para a

tensão arterial diastólica nos hipertensos. Os

normotensos também sofreriam uma diminuição

significativa. Estas reduções seriam suficientes para

permitir salvar muitos milhares de vidas todos os

anos.

Num inquérito recente, destinado a avaliar os

conhecimentos e a relação do sal com a hipertensão

arterial, foi possível chegar às seguintes conclusões:

cerca de 77% dos hipertensos que tomam

medicamentos também fazem dieta com pouco sal,

dos quais 79% foi por indicação médica. Chamamos

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Salvador Massano Cardoso

222

a atenção para o facto de 66% dos portugueses

considerarem as suas dietas normais em sal e 26%

considerarem mesmo pouco ricas! Só 7,6% é que

consideram a dieta muito rica. Provavelmente os que

consideram a dieta como pouco rica são precisamente

aqueles que adoptaram uma dieta mais pobre em sal,

devido à sua condição de hipertensos. Além do mais,

77% sabem que os alimentos pré-confeccionados, e

muitos produtos que compram nos mercados, têm

teores elevados de sal, ao passo que 23% não têm

opinião ou desconhecem mesmo.

No tocante à relação entre a tensão arterial elevada,

o consumo do sal e as doenças cardiovasculares

podemos afirmar que está perfeitamente identificada

na nossa população, já que 94% demonstram ter

esses conhecimentos.

Relativamente à opção de alimentos com teores

menos elevados de sal por parte dos portugueses

verificamos que 79% fariam essa opção contra 7,3%,

o que significa que a rotulagem dos alimentos, no que

respeita à indicação dos teores de sal, seria muito

bem-vista, já que 91% apoiam esta ideia.

Há de facto um conhecimento adequado sobre a

problemática do sal, hipertensão arterial e acidentes

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

223

vasculares cerebrais entre os portugueses, assim com

um “desejo” em modificar os seus hábitos, reduzindo

a ingestão de sal e procurando alimentos mais sadios,

facto que associado à prevenção médica secundária

originaria a curto prazo mudanças ainda mais

substanciais na morbi-mortalidade cardiovascular em

Portugal.

O homem, sendo dotado de percepção temporal,

uma das dimensões que o distingue de outras

espécies, necessita de referências, de datas, de

rituais, em que o tempo é dono e senhor. O

compasso temporal, não obstante as recordações

negativas entremeadas com alguns momentos de

felicidade, tranquiliza-nos na angústia permanente

da nossa existência.

As datas traduzem vida, morte, dor, felicidade,

momentos históricos e religiosos, orgulho,

identidade, iniciação… Enfim, tudo ciranda ao redor

de uma construção humana.

Os detractores dos dias nacionais ou internacionais

recusam-se a aceitar, na maior parte dos casos

mais uma artificialidade, ironizando, que, não tarda

muito se acabe por esgotar os poucos ainda

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Salvador Massano Cardoso

224

disponíveis. Mas, não podemos deixar de salientar,

o facto de, pelo menos, nos obrigar a reflectir, a

conhecer, a identificar, a focar, ainda que

momentaneamente, a nossa irrequieta e saturada

atenção sobre alguns dos muitos problemas que

atormentam e penalizam as comunidades.

Em 2004 foi instituído pela primeira vez, em

Portugal, o Dia Nacional dos Acidentes Vasculares

Cerebrais, em 31 de Março, com o objectivo de

chamar a atenção para este flagelo médico-social.

A par deste dia, muitos outros já foram criados no

âmbito das doenças cardiovasculares.

Ir directamente a uma das principais causas

parece-nos ser evidente, plausível e com sucesso

garantido. Assim, não obstante a importância e o

significado do sal nas nossas vidas e na própria

evolução das espécies, seria curial a

implementação de um DIA DO SAL - CONVITE A

UMA UTILIZAÇÃO MAIS RACIONAL.

Até se poderia propor o 27 de Março ou o 24 de

Setembro. No primeiro caso corresponderia à

morte de São Ruperto, primeiro bispo de

Salzburgo. No segundo caso coincidiria com o

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

225

feriado da cidade de Salzburgo, antiga cidade

romana Juvavum, cidade do sal, sal que constitui o

símbolo de Ruperto, Apóstolo da Bavaria e Caríntia.

As relíquias do santo foram removidas para o altar

da nova catedral em 24 de Setembro de 1628.

Falar do sal, é falar da hipertensão. É falar dos

acidentes vasculares cerebrais. É falar do enfarte

do miocárdio. É falar das principais causas de

doença e de morte em Portugal. É falar da principal

causa de invalidez. É falar de tragédias humanas e

familiares. É falar de uma epidemia silenciosa em

termos políticos, mas gritante e exasperante para

as vítimas e suas famílias. É falar de projectos de

vida interrompidos conflituando, em muitos casos,

com uma auto-imagem negativa e uma humilhante

necessidade de ajuda de terceiros.

O problema dos acidentes vasculares cerebrais não

pode e nem deve cingir-se ao foro médico ou aos

cuidados de enfermagem ou familiares. Trata-se de

um problema de carácter individual, assente em

responsabilidades colectivas, influenciado por

factores económicos, culturais e, até, quem diria,

políticos!

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Salvador Massano Cardoso

226

Anualmente morrem mais de 20.000 portugueses

só por acidentes vasculares cerebrais. Estamos a

falar de morte, que é um epifenómeno. Se

tomarmos em linha de conta o número de AVCs,

dos quais, cerca de um quarto se manifesta através

da morte e outros 25% por incapacidades graves,

necessitando a ajuda de terceiros, torna-se fácil

compreender o impacto desta entidade. Acresce

que, em Portugal este fenómeno é particularmente

violento, face aos restantes países comunitários.

As razões subjacentes a esta problemática são bem

conhecidas. Dentro dos múltiplos factores,

destacamos o consumo excessivo de sal, tão

característico do povo português, o não controlo

efectivo da hipertensão arterial, cuja elevada

prevalência é deveras preocupante e, os consumos

excessivos de álcool e do tabaco.

Apesar da tendência para a redução da mortalidade

verificada nas últimas duas décadas, mesmo assim,

a situação não deixa de ser dramática.

Muitos dos factores enunciados têm a ver com

hábitos e comportamentos pessoais, os quais,

paradoxalmente, se agravaram ou não sofreram

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

227

modificações significativas.

A necessidade de educar e informar os portugueses

a diferentes níveis é indispensável. Mas, a par das

medidas educacionais e informativas, as quais são

muito limitadas e, quase sempre restringidas à

área do foro da saúde, torna-se imperioso outras

atitudes que se revistam de carácter político.

Iniciativas legislativas que limitem o teor de sal dos

alimentos pré-confeccionados são vitais, já que

uma pequena redução do teor deste produto, na

ordem dos 10%, por exemplo, é susceptível de

uma redução substancial da morbimortalidade,

mesmo a curto prazo, sem implicar alterações de

fundo da qualidade e sabor dos produtos em causa.

É pena que certos opinadores da nossa praça ao

arvorarem-se em defesa das liberdades e lutando

contra correntes “fascizantes” que procuram

regulamentar comportamentos diversos pondo em

paralelo, por exemplo, a luta contra o tabaco e a

lei “contra o sal” fossem mais honestos ou menos

ignorantes, já que as medidas de carácter

legislativo a serem tomadas terão como objectivo a

rotulagem ou a redução da concentração dos

alimentos pré confeccionados permitindo que

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Salvador Massano Cardoso

228

milhares de toneladas de sal deixem de percorrer,

anualmente, o nosso sistema sanguíneo reduzindo

os riscos cardiovasculares. Quanto aos “doutos”

fazedores de opinião têm todo o direito em ingerir

o sal que lhes aprouver respeitando não só a sua

liberdade de escolha mas também exprimir a sua

estupidez e que São Ruperto os proteja.

A restrição do uso de sódio deve associar-se à do

álcool cujo consumo excessivo está intimamente

associado com esta patologia. As medidas

enunciadas no Plano Nacional de Saúde podem

contribuir para minimizar o problema. Mas, as

medidas não passam só por estas vias. O

aconselhamento na confecção adequada dos

alimentos constitui um factor de promoção de

saúde cardiovascular. A par destas medidas,

destacamos a necessidade de uma utilização e

controlo mais eficiente da hipertensão arterial, a

qual exige não só o concurso da classe médica,

mas também uma adequada aderência à

terapêutica e, consequentemente, uma política de

medicamentos virada para esta patologia. Não

podemos esquecer que se trata de uma situação

crónica, a qual exige o concurso de medicamentos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

229

consentâneos com a capacidade económica das

pessoas, que, na sua grande maioria não dispõem

de meios necessários. Acresce o facto de 50% não

aderirem à terapêutica com os inevitáveis

resultados negativos.

No entanto, o fenómeno, apesar de ser passível de

redução, é inevitável. Para os casos não passíveis

de prevenção, realça-se a necessidade de uma

terapêutica o mais rápido possível, sobretudo nas

primeiras três horas, de forma a aproveitar a

abertura de uma janela passível de controlar as

consequências. Esta prática exige o concurso de

conhecimentos por parte da população e a

disponibilidade dos serviços de urgência, através de

vias preferenciais.

Mesmo assim, irão ocorrer casos, por vezes graves,

que exigem o concurso de terceiros. Para o efeito,

a existência de estruturas sociais de reabilitação e

de assistência são essenciais.

A falta de uma rede capaz de cobrir estas

necessidades tem impacto a vários níveis,

nomeadamente familiar.

Em jeito de conclusão e apesar da evolução positiva

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Salvador Massano Cardoso

230

da mortalidade cardiovascular em Portugal, não

podemos considerar o nosso país como de baixo

risco, pelo contrário, devido ao facto dos principais

factores de risco não terem sofrido a diminuição

esperada, até aumentou a prevalência de alguns

deles, apontando para um eventual agravamento. No

entanto, face ao arsenal terapêutico, ao nosso dispor,

é possível contrariar este efeito, já que a terapêutica

não está a ser efectuada de acordo com o seu

potencial. Assim, poderemos observar uma

estabilização nos próximos anos, a qual deverá sofrer

um desequilíbrio, perfeitamente explicável pelo

envelhecimento acentuado da população. Neste caso,

os acidentes vasculares sofrerão um agravamento

nas idades mais avançadas, o que não é nada mau. É

que morrer de doença vascular é a melhor forma de

morrer, sobretudo quando ocorre de forma súbita,

pois que as alternativas que estão ao nosso dispor,

não são nada agradáveis.

“Enkidu morre, e Gilgamesh, inconsolável, parte para

uma viagem em que espera encontrar o único homem

que lhe pode dizer como vencer a morte”…

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

231

O TABACO MATA SOB TODAS AS FORMAS"1

A história da introdução do tabaco na Europa está

associada a medidas restritivas e punitivas. Basta ver

o que aconteceu a Rodrigo de Jerez, membro da

tripulação de Colombo, quando começou a passear

pelas ruas de Sevilha a deitar fumo pelo nariz e pela

boca: acabou por ser preso nos calabouços da

Inquisição, onde passou sete anos, por ter

manifestado sinais, inequívocos, da presença do

diabo. Provavelmente nunca mais deve ter tido

vontade de fumar nos restos dos seus dias. Mas as

medidas de combate aos fumadores não ficaram por

aqui. Desde Murad IV, sultão louco de

Constantinopla, que se entretinha a perseguir, a

esquartejar, a enforcar e a entregar os fumadores aos

inimigos, passando pelas chicotadas do primeiro dos

Romanov, em Moscovo, até às atitudes, mais

civilizadas, diga-se de passagem, de combate ao

tabaco pelo rei Jaime I de Inglaterra que chegou a

taxar em mais de 4.000% o tabaco, não foi possível

travar este fenómeno que, em poucas décadas,

1 Dia Mundial sem Tabaco – 31 de Maio de 2006

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Salvador Massano Cardoso

232

avassalou por completo a Europa e o resto do Mundo.

Acresce ainda que as eventuais propriedades

curativas do tabaco, num mundo desprovido de meios

terapêuticos adequados, contribuíram para a sua

popularização.

Em poucos séculos originou a maior epidemia de

toxicodependência jamais verificada à escala global.

Apesar de nas primeiras décadas do século XX

começarem a aparecer evidências bastante negativas

do seu uso, particularmente na Alemanha, onde

medidas de prevenção e combate ao tabagismo

precederam em muitos anos a abertura oficial de luta

contra o tabagismo, em 1964, mesmo assim estamos

muito longe de atingir os tais mínimos aceitáveis de

fumadores. É certo e sabido que muito dificilmente se

conseguirá erradicar algum dia este fenómeno. O que

importa é tomar consciência do fenómeno e

minimizá-lo a níveis tão baixos quanto possível.

Durante o século XX o tabaco matou 100 milhões de

pessoas no nosso planeta. Esta cifra é aterradora,

bastando para o efeito compará-la com os mortos das

Grandes Guerras e outros conflitos armados ou

mesmo com as pandemias de gripe verificadas.

Muitos estudos, campanhas e medidas têm sido

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

233

desenvolvidos com vista à luta e prevenção do

tabagismo. Resta saber se as medidas entretanto

anunciadas e aplicadas têm sido acompanhadas da

redução da mortalidade e da morbilidade tabágica.

Face a alguns indicadores entretanto publicados

poderíamos ficar entusiasmados com os resultados.

Mas não podemos, apesar de nalguns países se ter

verificado redução apreciável do número de

fumadores, esperar grandes mudanças à escala

global. De facto, a indústria do tabaco está de pedra

e cal, pelo menos no decurso do presente século. De

acordo com as estimativas da O.M.S. o número de

mortos que irão ocorrer no século XXI não serão 100

milhões, nem de perto, nem de longe, mas qualquer

coisa como 1.000 milhões!

Recentemente, surgiram novos problemas

relacionados com o tabaco, caso do fumo passivo. Foi

em 1976 que teve início a luta contra a contaminação

do tabaco no local do trabalho, graças ao papel de

Donna Shimp, empregada de uma companhia norte-

americana de telefones, que exigia um lugar de

trabalho sem fumo. O caso acabou no tribunal e

ganhou a causa. A luta contra o tabagismo passivo,

inicialmente considerado mais como um incómodo,

acabou por resvalar, ao fim de alguns anos e de

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Salvador Massano Cardoso

234

muitas peripécias, como é de esperar, sempre que

estejam em confronto os direitos de fumadores e não

fumadores e os interesses da poderosa indústria,

para a proibição em vários locais. Hoje, está

documentado que o fumo passivo contribui para

aumentar o risco de cancro e de doenças

cardiovasculares em 30%. Só por si este facto obriga-

nos a reflectir sobre a responsabilidade dos

fumadores que insistem em contaminar o meio

ambiente de trabalho e de espaços de lazer públicos.

Quantas e quantas pessoas não deverão ter adoecido

e falecido graças à agressão tabágica de terceiros. É

preciso proteger os não fumadores. Competirá às

autoridades essa missão. A este propósito, o Dr.

André Dias Pereira ilustrará a importância da

legislação. A forma, muitas vezes egoísta, de muitos

fumadores não respeitarem a saúde e o bem-estar

dos não fumadores tem efeitos altamente nocivos nos

próprios familiares e descendentes. Esta atitude tem

os seus paladinos que, de forma verdadeiramente

despudorada, tal como aconteceu recentemente

numa crónica de Vasco Pulido Valente que, fazendo

uso da sua coluna, mandou recados ao senhor

ministro da Saúde, dizendo-lhe que não havia

quaisquer evidências cientificas de que o fumo

passivo fizesse mal a saúde. Isto a propósito da

Page 235: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

235

proposta legislativa. A partir deste pressuposto é fácil

de compreender o que vinha a seguir. É verdade.

Evidências científicas apontam para riscos acrescidos

de doenças nos seus descendentes mesmo que estes

nunca venham a fumar. Os efeitos epigenéticos da

acção do tabaco acabam por se propagar aos

descendentes provocando-lhes doenças para as quais

não deram o seu contributo. Quem diria que um neto

possa ainda vir a sofrer as consequências do facto do

avô ter passado a vida a fumar, mesmo que o pai

nunca tenha sido fumador? A nossa responsabilidade

não se esgota na nossa geração mas estende-se às

gerações futuras, facto que nos obriga a reequacionar

a forma de encarar determinados fenómenos e

comportamentos.

Um dos aspectos mais comummente disseminados

entre a população de fumadores prende-se com o

conceito de, se fumarem pouco, apenas alguns

cigarritos por dia, não virão a sofrer graves

consequências. Conceito errado, já que o tempo de

exposição, por exemplo no cancro do pulmão, é mais

poderoso do que o número de cigarros fumados. Para

este tipo de cancro não há um limiar abaixo do qual a

exposição ao tabaco não aumente o risco. Um cigarro

diariamente consumido durante longo tempo

Page 236: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

236

aumenta o risco. Não há "petits fumeurs". O objectivo

é terminar o consumo e a exposição ao fumo do

tabaco.

Os esforços neste sentido estão consubstanciados na

Convenção Contra o Tabaco. Com este tratado, a

publicidade, a promoção e os patrocínios serão

proibidos e a saúde pública ficará protegida das

interferências da indústria.

Não tenho, pessoalmente, grande estima ou

admiração pelo ditador Fidel Castro que deixou de

fumar em 1986. Mas, não podia deixar de o invocar

pelo facto de ter proibido o consumo de tabaco nos

locais públicos, precisamente, na ilha produtora dos

famosos “habanos”. E, consciente dos malefícios,

apresenta um argumento digno de um génio: “ a

melhor coisa a fazer é dá-los (tabaco) ao teu

inimigo”. Mesmo assim, não acredito que os

prisioneiros políticos de Cuba estejam a receber

caixas de charutos!

Conscientes dos graves problemas resultantes do

consumo de tabaco, os cientistas fazem todos os

possíveis para contrariar esta tendência que atinge

particularmente os jovens. Realmente, se um

indivíduo não começar a fumar antes dos 20 anos as

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

237

probabilidades de se tornar fumador é muito baixa.

Logo, além das medidas educativas e legislativas há

quem preconize a utilização de vacinas anti-tabaco. O

processo consiste em imunizar as crianças com

super-vírus, os quais induzirão a produção de

proteínas capazes de bloquear ou reduzir os efeitos

das substâncias.

Aparentemente, o objectivo é muito louvável, criando

expectativas de segurança entre todos os agentes

envolvidos, as potenciais vítimas, as famílias e o

próprio estado. No entanto, podemos questionar

sobre a legitimidade ética de um processo desta

natureza. Não estamos a lidar com agentes invisíveis

perante os quais somos indefesos. Estamos a lidar

com efeitos de comportamentos adquiridos. Fumar é

uma questão de opção pessoal. Sofrer sarampo ou

poliomielite é uma fatalidade. É fácil perceber

quantos interesses estão em jogo, facto que augura

boas perspectivas para alcançar os objectivos em

curso. No entanto, terá que haver um longo e

profundo debate sobre este assunto, porque a medida

proposta pressupõe uma aplicação prática da tirania

da saúde, com a consequente diminuição da liberdade

individual. E a este propósito não posso, nem devo,

deixar de alertar para as terríveis consequências da

Page 238: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

238

intromissão da moral na saúde, a qual poderá

provocar graves discriminações.

O caso paradigmático conta-se em poucas linhas e

ocorreu há 13 anos, no Reino Unido.

Um homem a quem foi recusado efectuar testes para

a realização de um bypass cardíaco morreu, vítima de

enfarte. A recusa baseou-se no facto de ser fumador.

Só lhe faziam os exames se deixasse de fumar.

Perante esta exigência acabou por abandonar o vício

o que permitiu ao seu médico marcar para o dia 19

de Agosto a realização dos testes. Tarde demais

morreu dois dias antes.

O caso de Harry Elphick desencadeou um vivo debate

no Reino Unido. Até que ponto os médicos podem

tomar atitudes destas? A exigência do clínico baseou-

se em conceitos moralistas e não em critérios

médicos. É certo que o tabaco é um importante factor

de risco cardiovascular e não só. É certo que muitas

pessoas precisam de cuidados terapêuticos. É certo

que os custos com os cuidados de saúde aumentam

de forma exponencial. Mas não é correcto cercear

cuidados com base em princípios que violem os

direitos dos seres humanos.

Ao fim de mais de uma década, as autoridades de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

239

saúde britânicas propõem que não sejam ministrados

tratamentos médicos aos doentes que recusem

modificar os seus estilos de vida não saudáveis.

Assim, se um fumador recusar abandonar os seus

hábitos, é-lhe vedada a cirurgia cardíaca, a menos

que faça uma promessa nesse sentido.

A moralização da medicina é um perigo real. Um dia

poderá acontecer que uma pessoa não tenha acesso

ao tratamento, porque, no entender da medicina

moralista, o cidadão bebe álcool, fuma, não tomou os

respectivos cuidados nas suas relações sexuais, não

usava o capacete de protecção no local de trabalho,

continua a ser um desbragado à mesa, passa a maior

parte do tempo sentado face ao televisor…

Combater estilos de vida não saudáveis é uma

obrigação dos responsáveis. Proibi-los ou tomar

atitudes discriminatórias é um erro e um sério perigo.

O melhor é alterar aquele princípio de que ninguém

deverá ser discriminado em função da raça, sexo,

idade, religião, estado socioeconómico,

acrescentando-lhe: ”nem em função dos seus vícios

públicos ou privados”. Se este último aspecto tivesse

sido tomado em linha de conta talvez Harry Elphick

não tivesse falecido aos 47 anos de idade….

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Salvador Massano Cardoso

240

O tema desta conferência, “tabaco: mata sob todas

as suas formas”, exige, apesar de não ter feito uma

listagem das várias formas de matar, as quais irão

ser alvo das imagens chocantes que alguns

pretendem colocar nos maços de cigarros, uma

abordagem ao problema do terrorismo.

O contrabando do tabaco é um dos mais poderosos

negócios, movimentando muitos milhões e milhões de

euros, grande parte dos quais subsidiam movimentos

terroristas internacionais. Os esquemas que são

montados, por esse mundo fora, não são

complicados, sobretudo os norte-americanos, facto

curioso, já que são um dos alvos preferenciais do

terrorismo.

Num mundo em que a violência e o crescente número

de vítimas decorrentes de atentados é uma triste

realidade, importa que sejam tomadas todas as

medidas de carácter preventivo. No caso concreto do

consumo de tabaco, é bom que se saiba que os

cidadãos que não cumpram as suas obrigações fiscais

e legais, quer a nível dos consumidores, quer a nível

de revendedores, poderão estar a contribuir para

financiar grupos de terroristas. Afinal, não pudemos

esquecer que, quando alguém puxar de um cigarro,

está a prejudicar não só a sua saúde, mas também a

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

241

saúde dos que partilham o seu espaço e, no caso de

fumar tabaco de contrabando pode também estar a

ajudar a montar um armadilha ou bomba em

qualquer parte do globo.

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Salvador Massano Cardoso

242

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

243

OBESIDADE INFANTIL E DO ADOLESCENTE

A Fundação Portuguesa de Cardiologia elegeu para

este ano (2004) a obesidade como tema de reflexão e

discussão. A escolha traduz a preocupação face a

uma situação cada vez mais prevalente e susceptível

de directa e indirectamente originar sofrimento e

morte através de múltiplas maleitas, dentro das quais

salientamos as doenças cardiovasculares. Não pondo

de parte outras patologias, nomeadamente certas

formas de cancro e a diabetes, convém destacar a

necessidade de definir um conjunto de directivas

susceptíveis de contrariar um dos aspectos mais

emblemáticos das sociedades desenvolvidas, que está

indissociavelmente ligada à patologia cardiovascular.

Convém, ainda que de uma forma breve, tecer

algumas considerações sobre as razões subjacentes a

esta anomalia.

Presumo que todos se identifiquem com a afirmação

de que os dois principais motores que estão na base

da nossa existência são a sexualidade e a

alimentação. E, em questão de prioridade, podemos

até conceder a primazia à alimentação. É fácil de

compreender que a fome desvie todas as energias na

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Salvador Massano Cardoso

244

busca de alimentos. Primeiro, garantir a

sobrevivência individual e em seguida a sobrevivência

da espécie. Sendo assim, é perfeitamente

compreensível que, em termos evolutivos, as

diferentes espécies fossem seleccionadas de modo a

serem portadoras de genes ditos “económicos”.

Num mundo altamente competitivo, as

disponibilidades não abundavam e, em muitos sítios,

continuam a não abundar, de forma que o ser

humano, assim como muitas outras espécies, estão

preparados para viverem na penúria e não na

abastança. Tudo se alterou, quando o homem

conseguiu controlar e produzir mais alimentos.

A segunda grande revolução alimentar, traduzida pelo

nascimento da agricultura – a primeira foi a utilização

do fogo – não foi suficiente para originar a

abundância necessária, susceptível de provocar um

aporte excessivo aos nossos organismos. Mesmo após

a conquista de armazenamento dos alimentos, de

forma a contrabalançar os anos de penúria, não foi

suficiente para promover o aparecimento da

obesidade à escala global. A democratização da

obesidade é muito recente. Mesmo muito recente,

sobretudo em Portugal. Só na segunda metade do

século XX, por razões óbvias, é que os portugueses

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

245

começaram a ficar “rechonchudos e rechonchudas”.

Nas primeiras décadas do século passado, a fome, em

Portugal, era uma realidade protagonizada por

muitos. Os menos novos ouviram as desventuras e as

histórias contadas pelos familiares a propósito da

fome. Para ilustrar esta afirmação, e com base em

dados estatísticos, podemos afirmar que em 1937 o

consumo calórico médio dos portugueses oscilava ao

redor das 2.100 calorias. Valor baixo e, se

atendermos que se tratava de um valor médio,

significa que muitos chegavam a passar fome. Mas,

60 anos depois, em 1997, o consumo calórico médio

atingia as 3.550 calorias, ou seja um aumento da

ordem dos 65%.

Em cada 3,5 segundos, no Terceiro Mundo, morre um

ser humano devido á fome, sobretudo crianças.

Contraste obsceno com o que se passa no Ocidente

civilizado com percentagens elevadas de crianças e

adolescentes a sofrerem de excesso de peso.

Nos E.U.A 10% dos jovens são obesos e 30%

apresentam excesso de peso, enquanto no Norte da

Europa 20% sofrem excesso de peso, valores

inferiores aos do Sul com 20 a 35%. As crianças e

jovens portugueses só muito recentemente é que

começaram a engordar. De facto, num estudo

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Salvador Massano Cardoso

246

efectuado há 22 anos, em mancebos da região

Centro, verificámos que ainda havia magreza. Cerca

de 18% eram magros e, numa análise mais

pormenorizada, nalgumas regiões as percentagens

eram substancialmente superiores. Nesse mesmo

estudo, 9,3% já apresentavam excesso de peso e

apenas 0,8% eram considerados obesos. Estes dados

reportam-se há duas décadas. Hoje, o panorama é

substancialmente diferente.

Os autores de um estudo, liderado pela professora

Cristina Padez, da Universidade de Coimbra,

concluíram que 31,5 por cento das crianças

portuguesas entre os sete e os nove anos têm

excesso de peso ou obesidade. A situação é

particularmente grave nas meninas. Não é de esperar

que aos 20 anos, os rapazes portugueses estejam

mais elegantes do que há duas décadas. Hoje em dia,

a problemática da obesidade estende-se também à

primeira infância. Uma investigação médica feita na

Grã-Bretanha permitiu concluir que mais de 20% das

crianças menores de 4 anos estão acima do peso

ideal e 10% do mesmo grupo já são classificadas

como clinicamente obesas. A investigação, liderada

pelo Dr. Peter Bundred, da equipa médica da

Universidade de Liverpool, examinou mais de 50 mil

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

247

crianças dos 0 aos 4 anos. O estudo, publicado no

British Medical Journal, concluiu que a percentagem

de crianças com o peso acima do normal passou de

14,7% em 1991 para 23,6% em 2004. No mesmo

período a percentagem de crianças obesas na

população britânica aumentou de 5,4% para 9,2%.

Este autor afirmou: “Já tínhamos verificado que

actualmente os adolescentes estavam a engordar

mais rapidamente, mas esta é a primeira vez que o

aumento de peso se verifica também durante a

primeira infância."

Os últimos relatos sobre a obesidade infantil são

muito preocupantes, mesmo dramáticos. O que fazer?

Ensinar, educar, aconselhar, ter cuidados com a

escolha de alimentos, não têm tido resultados

positivos. A enorme variedade e disponibilidade de

produtos alimentares, associada a uma intensa e

agressiva publicidade, complementada por um

sedentarismo infantil, resultante da exposição às

novas tecnologias, que absorvem e roubam o tempo

às crianças, impedem que estas se desenvolvam de

forma harmoniosa e saudável. Proibir a publicidade

de certos alimentos, obrigar à rotulagem de

perigosidade de outros, com a indicação expressa de

que são prejudiciais às crianças, poderá incomodar

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Salvador Massano Cardoso

248

muita gente. É certo que a obesidade é um

verdadeiro problema social com consequências

médicas gravíssimas. Apesar da oposição esperada de

muitos que irão afirmar que não há alimentos

saudáveis ou não saudáveis, mas sim dietas salutares

ou não salutares, de acordo com as opções das

pessoas e da posição dos responsáveis pela

publicidade de que esta não aumenta o consumo

(então podemos perguntar por que a fazem!), é

urgente a tomada de medidas legislativas que

permitam travar e inverter este fenómeno,

susceptível de transformar as crianças em bombas de

gordura, anunciadoras de graves explosões.

A Organização Mundial de Saúde estabeleceu em 21

de Maio de 2004 um acordo sobre uma resolução

para combater a obesidade no mundo. A Estratégia

Global sobre Dieta, Actividade Física e Saúde,

subscrita por mais de 170 países na última

conferência da OMS, em Genebra realizada em 17 de

Junho de 2004, visa, entre outros objectivos,

aumentar o consumo de frutas e hortaliças, no

mínimo 400 gramas ou cinco porções diárias. Assim

como, incluir na alimentação diária os legumes,

cereais integrais e sementes; aumentar a quantidade

de actividade física para o mínimo de 30 minutos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

249

diários (mínimo cinco dias na semana); diminuir o

consumo de gorduras saturadas e gordura do tipo

trans e substituí-las por gorduras insaturadas,

mantendo um limite para a ingestão total; reduzir a

ingestão de carnes gordas, leite integral e derivados;

reduzir a ingestão de açúcares, sacarose para o

máximo de 10% das calorias totais ideais para uma

dieta adequada; reduzir o consumo de sal,

observando o conteúdo de sódio dos produtos

industrializados e apoiar e incentivar a amamentação

natural exclusiva durante os seis primeiros meses de

vida da criança e orientar a partir dessa época as

práticas saudáveis de alimentação do lactante e da

criança pequena. A situação é de tal ordem que, caso

continue a agravar-se, é muito provável que, nalguns

países, a obesidade ultrapasse o tabaco como a

principal causa de mortes evitáveis. Esta afirmação

dá uma ideia muito precisa sobre a problemática da

obesidade no mundo ocidental.

No passado mês de Maio, na reunião do American

College of Cardiology foi afirmado que o número de

crianças com diabetes do tipo 2 ultrapassou a

diabetes juvenil do tipo 1 (E.U.A). Facto inaudito e

impensável que pudesse ocorrer há alguns anos, e

não muitos.

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Salvador Massano Cardoso

250

Durante o meu curso de medicina aprendíamos que a

diabetes do adulto tinha tendência para ocorrer por

volta dos 40 anos. Se fizéssemos a afirmação de que

poderia ocorrer por volta dos 9, 10, 11 ou 12 anos, o

risco de chumbar no exame seria muito sério!

A Comissão Europeia considera a luta contra o

excesso de peso como de alta prioridade nos

próximos 5 anos. O alvo número um é combater a

“junk food”. São precisas iniciativas, muitas de

carácter político, para ajudar a travar a epidemia.

Numa primeira fase seria curial que os responsáveis

da indústria alimentar revissem as suas políticas,

assumindo um papel activo. As dúvidas sobre o seu

papel são legítimas, mas, caso não colaborem, é

necessário introduzir legislação específica. Bruxelas

está pronta a actuar segundo o comissário Markos

Kyprianou. Não podemos esquecer que neste

momento, na União Europeia, 2 a 8% das despesas

da saúde são devidas à obesidade.

Neste mundo complexo e cheio de problemas devido

à intervenção humana, poderíamos perguntar quais

as vantagens dos obesos? Além de alimentarem

verdadeiros exércitos de profissionais que navegam

nos oceanos da gordura, com as diferentes técnicas,

receitas, dietas, mezinhas e outras coisas

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

251

mirabolantes difíceis de descrever, apenas se

vislumbra um efeito positivo neste caso, ou seja, se

os obesos deste planeta acabassem por perder o peso

em excesso agravariam o efeito estufa, já que

libertariam milhões de toneladas de CO2 para

atmosfera.

Os Estado Unidos da América não ratificaram, como

todos sabem, o protocolo de Quioto, e são o principal

responsável pelas emissões do CO2. Imaginem o que

aconteceria se acabassem com os seus obesos. O

efeito estufa agravar-se-ia de uma forma substantiva!

Espero que não façam a apologia de uma obesidade

global…

Compete aos profissionais da saúde denunciar,

equacionar e promover as medidas destinadas à

resolução dos principais problemas de saúde. A

Fundação Portuguesa de Cardiologia com esta

iniciativa, na sequência de muitas outras, demonstra

uma vez mais, a necessidade de empenhamento, a

todos os níveis, desde os educacionais, aos aspectos

formativos exercendo pressão sobre quem tem

responsabilidade directa na produção, publicitação

dos alimentos, não descurando o poder político, o

qual tem a sua quota de responsabilidade e não é

pequena. Esperemos que a curto prazo seja possível

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Salvador Massano Cardoso

252

travar a “michelinização” das crianças e adolescentes

portugueses e possamos enveredar por uma

crescente “gracilização”.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

253

SEGURANÇA ALIMENTAR

A alimentação e a sexualidade foram os dois

principais determinantes da evolução de qualquer

espécie, à excepção das que não ligam a sexo, claro

está!

São tão fortes que até estão interligadas. Mas se

quisermos ordená-las até podemos colocar em

primeiro lugar a alimentação, já que esta é vital para

a funcionalidade da segunda.

Os organismos estão preparados para viverem na

penúria e não na abundância, facto que explica a

selecção de genes ditos “económicos” ou poupadores.

As razões são óbvias e dispenso-me de as enunciar.

Nos primórdios da existência, os nossos antepassados

mais distantes, hominídeos e pró hominídeos,

passavam as suas curtas existências à procura de

alimentos, a precaverem-se de serem alimentos para

outros e a reproduzirem-se. Presumo que não tenham

tido preocupações de segurança alimentar, ou

melhor, até começaram a ter, quando confrontados

com alguns produtos que lhes causava a morte. Neste

momento, os responsáveis passaram a conhecer e a

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Salvador Massano Cardoso

254

identificar quais os alimentos venenosos e,

naturalmente, a transmitir esses achados aos

descendentes, como fazem, aliás, muitas outras

espécies. Sendo assim, poderíamos afirmar que as

preocupações em termos de segurança alimentar

antecedem o aparecimento da nossa própria espécie.

Feita esta nota introdutória, através da qual

pretendemos dar o mote para esta conversa

realçamos a necessidade de focarmos a nossa

atenção e conhecimentos nesta tão importante.

É óbvio que poderíamos ilustrar o papel dos alimentos

nas suas múltiplas funções tóxicas ao longo dos

milhares de anos e das suas consequências em

termos civilizacionais, as quais não foram nada

pequenas, antes pelo contrário. Povos que

enriqueceram, civilizações que desapareceram, países

que devem a sua existência mais a problemas de

segurança e de disponibilidade alimentares do que

propriamente à heroicidade dos seus exércitos são

uma constante histórica.

O tipo de alimentação praticada hoje em dia não tem

rigorosamente nada a ver com aquela que se

praticava ainda há poucos anos. De facto, os mais

velhos sabem que a nossa alimentação num passado

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

255

muito recente se caracterizava, basicamente, por um

consumo de produtos criados e obtidos localmente.

Claro que tinha que haver alguns cuidados, mas,

mesmo que houvesse problemas, as consequências

eram auto-limitadas. Hoje, não. Desconhecemos, na

maioria dos casos, onde e como foram produzidos os

alimentos que nos chegam à nossa mesa ou às

nossas mãos. Sem um conjunto de cuidados especiais

os riscos para a saúde poderiam ser muito

preocupantes.

Apesar de toda a legislação e da vigilância praticada,

mesmo assim, os riscos são reais.

Como o tema é demasiado vasto, arrisco-me a ser

parcial, ao pegar numa das múltiplas pontas. De

qualquer modo, tenho de correr algum risco e,

sobretudo, criar o ambiente necessário para o debate.

Aí sim! No debate podemos falar de coisas mais

importantes do que propriamente uma abordagem

teórica sobre o assunto.

A problemática das condições microbiológicas e do

seu controlo são mais do que evidentes, exigindo que

os produtos tenham a respectiva qualidade sem

provocar problemas. Dizer que as empresas de

alimentação deverão ter laboratórios adequados para

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Salvador Massano Cardoso

256

exames microbiológicos e bromatológicos é uma

verdade de La Palisse. O que é certo é que algumas

não devem dispor, mas caso não os tenham têm que

socorrer aos laboratórios privados ou oficiais.

As consequências para a saúde de produtos

contaminados podem ser muito graves. A história da

alimentação está repleta destes casos, desde a velha

história da Maria Febre Tifóide, cozinheira irlandesa,

que, no princípio do século XX, provocou várias

epidemias, devido ao facto de ser portadora de

Salmonella typhi, originando uma verdadeira

perseguição policial pelos Estados Unidos, cheia de

episódios rocambolescos a epidemias de Escherichia

coli O157 em vários países, nomeadamente em 1996,

atingindo 8.000 crianças japonesas, passando pela

epidemia da síndrome do óleo tóxico em Espanha, ou

até à crise das vacas loucas em Inglaterra e que

depois se propagou a outros países e passando pelas

dioxinas dos frangos belgas, só para citar alguns.

O potencial impacto na saúde humana está bem

documentado pelas epidemias graves de Salmonella

typhimurium que, em 1985, atingiu 170.000 pessoas

através de leite pasteurizado, nos E.U.A.; ou a

epidemia devido a hepatite A por consumo de

moluscos atingiu cerca de 300.000 pessoas na China

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

257

De um modo geral, as causas subjacentes a muitos

dos problemas de toxicidade alimentar têm a ver com

interesses económicos a par de falta de cuidados

higiénicos. Se analisássemos profundamente, por

exemplo, a crise das vacas loucas, acabaríamos por

concluir que o primum movens teve a ver com

interesses meramente económicos, ou seja produzir

mais, com menos gastos e com mais lucros. O

exemplo é paradigmático e extensível a outras

situações de crise.

A segurança alimentar passa por um controlo

apertado, face à possibilidade de deterioração, no seu

sentido mais lato, dos produtos que consumimos, por

motivos económicos, por falta de preparação dos

responsáveis, pela sua transformação e

manuseamento – que também custam dinheiro, como

é fácil de compreender – visto que pessoas com mais

qualificação e laboratórios apetrechados serem

dispendiosos. A população recorre habitualmente a

produtos mais económicos e por este motivo

“contribuem” para que o fenómeno se arraste,

embora tenham consciência que um adequado

controlo é indispensável, além de exigirem produtos

de qualidade. A entrada de responsáveis pela

segurança alimentar está perfeitamente legitimada.

Page 258: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

258

Neste preciso ponto, importa introduzir o conceito de

“rastreabilidade”, segundo o qual é preciso seguir

todos os passos de quaisquer produtos alimentares

quer sejam para seres humanos, quer sejam para os

animais, incluindo todos os ingredientes, ao longo da

cadeia alimentar. Faz todo o sentido seguir o rasto de

tudo e de todos numa verdadeira perspectiva

sherlockiana, ou se preferirem, numa visão

bigbrotheriana, no seu sentido mais positivo. Se

assim for, é possível identificar e isolar o responsável

por qualquer efeito negativo, assim como

responsabilizar, a diferentes níveis, os diferentes

actores.

A segurança alimentar é uma das prioridade da União

Europeia, competindo à Autoridade Europeia para a

Segurança dos Alimentos (AESA) importantes

responsabilidades.

Dificilmente encontraremos uma área tão

regulamentada como esta, mas mesmo assim os

perigos espreitam.

O uso de aditivos constitui um grave problema para a

saúde das pessoas e animais. Muitos, apesar de

estarem regulamentados são suspeitos ou então são

utilizados de forma ilegal. Quem estiver atento à

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

259

comunicação social apercebe-se destes fenómenos,

como aconteceu recentemente com animais a quem

foram ministrados anabolizantes, com o tal fim de

retirar dividendos económicos, mas que são perigosos

para a saúde pública. Outros, apesar de legais,

podem estar na origem de situações de intoxicação,

como aconteceu há poucos dias com jovens ao

beberem bebidas estimulantes. Bebidas essas

passíveis de publicidade, como é do conhecimento

geral.

Passar para o campo da publicidade é aliciante, por

vários motivos. A possibilidade de permitir que certos

alimentos sejam apresentados como nutracêuticos,

dotados de propriedades farmacológicas capazes de

tratar certas doenças é preocupante. O interesse

económico está mais uma vez presente e a forma de

engodar papalvos está ao alcance dos promotores

que vendem saúde a troco dos seus produtos. “Este

produto não tem colesterol”. Está bem! O produto

não tem colesterol, mas será que um produto vegetal

tem colesterol? Que eu saiba não, mas são

apresentados como tal. É um problema de segurança

alimentar? Para mim é, porque induzem na procura

de certos produtos. Outros são mais preocupantes ao

fazerem afirmações de carácter científico que poderão

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Salvador Massano Cardoso

260

desviar os interessados de uma intervenção

terapêutica mais sustentada, e perfeitamente cabal,

aumentando o risco de doença. Caso dos produtos

cuja rotulagem indicam que faz baixar o colesterol,

levando algumas pessoas a substituir as terapêuticas

pelo seu uso, contribuindo para riscos

cardiovasculares. A rotulagem obrigatória, séria,

objectiva e cientificamente comprovada deverá ser

alvo das autoridades legislativas comunitárias e

nacionais de molde a salvaguardar a segurança dos

consumidores.

Falar de segurança alimentar é falar também de

biossegurança.

A lógica que presidiu à construção deste termo foi

definida em 1975 aquando da Conferência de

Asilomar, na Califórnia. Nesta Conferência foram

analisados os possíveis riscos da manipulação do ADN

recombinante. A repercussão do evento foi tal que

marcou o início da necessidade da regulamentação da

biotecnologia.

A biossegurança implica, curiosamente, o

reconhecimento de agressões fisiológicas, promotoras

e indutoras da saúde. O mundo quase asséptico, que

se pretendeu construir, fruto da revolução biológica e

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

261

da medicina, não deixa de ser também perigoso, já

que a ausência de agressão é tão perigosa como o

excesso da mesma. Hoje, o excesso da higienização

levanta muitos problemas, estando-lhe associada o

aumento da prevalência de certas doenças, em que a

ausência de agressão ambiental nos primeiros tempos

de vida é determinante, e a outras que, sendo raras

há algumas décadas, acabaram por se tornar,

inesperadamente, frequentes, e vão exigir, no futuro,

paradoxalmente, agressões biológicas.

De facto, quem diria que uma das principais causas

do aumento da prevalência da asma no mundo

moderno se deve a uma higienização excessiva, na

qual está, implicitamente, a higiene alimentar. A

ausência de parasitas intestinais determina o fim de

uma relação muito antiga a que o nosso organismo se

habituou, desencadeando e estimulando várias

respostas que também tem repercussões a outros

níveis. Do mesmo modo, o aparecimento de doenças

inflamatórias crónicas intestinais parece ser, também,

pelo menos em parte, da sua responsabilidade. Mas

entenda-se o seguinte o facto do paradoxo de

higienização existir, tal não significa que advogue a

parasitação da humanidade, mas quem sabe se um

dia não irão aparecer produtos derivados dos

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Salvador Massano Cardoso

262

parasitas para reduzir e controlar estas afecções, e

até outras? Afinal a segurança alimentar também tem

a sua face oculta que merece ser relevada.

Voltando à biossegurança, sabemos que tem sido

frequentemente relacionada, embora não

exclusivamente, com as tecnologias associadas à

produção de alimentos, nomeadamente os

organismos geneticamente modificados. Trata-se de

uma área muito importante e que tem suscitado

posições perfeitamente antagónicas entre, sobretudo,

o novo e o velho continente. As preocupações são

legítimas por parte de quem tem receio ou qualquer

tipo de apreensão face a estas formas de intervenção

deliberada num sector complexo como é o da

produção de alimentos. Além dos aspectos técnico-

científicos, levantam-se igualmente aspectos de

natureza ética, devido à sua utilização, e até mesmo,

em algumas circunstâncias, à não utilização. É uma

matéria controversa que exige, só por si, um

destaque particular.

Na prática, as culturas já existentes servem na sua

grande maioria interesses comerciais mais do que as

necessidades dos agricultores pobres do mundo. No

entanto, e apesar das naturais reticências, a FAO

refere que a biotecnologia representa um grande

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

263

potencial para a agricultura dos países em

desenvolvimento, mesmo que não seja uma solução

definitiva, manifestando-se favorável à sua

introdução.

Os alimentos são susceptíveis de ameaças

bioterroristas por motivos óbvios.

Na 55ª Assembleia Mundial de Saúde, em 2002, foi

discutido este tema, tendo os estados membros sido

recomendados a aumentar a sua capacidade nacional

de resposta.

Não é inédito situações bioterroristas envolvendo

alimentos. Em 1984 um grupo religiosos americano,

Rajneeshee foi responsável por 751 casos de

intoxicação por salmonelas em 10 bares de Oregon,

usando saladas e creme. Razão? Muito simples! Fazer

com que certos eleitores ficassem doentes,

possibilitando que determinado candidato ganhasse

as eleições a fim de adquirirem terras. Um verdadeiro

terrorismo alimentar de natureza politica.

O bioterrorismo pode ser utilizado com outros fins

políticos e económicos, caso do que aconteceu, por

exemplo, com as laranjas israelitas contaminadas em

1978 com mercúrio, ou com a contaminação de uvas

chilenas em 1989 com cianeto.

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Salvador Massano Cardoso

264

Num estudo efectuado em 2005 sobre o modo como

os consumidores europeus se apercebem dos riscos

relacionados com a saúde e em particular com a

segurança alimentar merece uns breves comentários

finais.

A percepção da segurança alimentar é positiva, 42%

considera um risco potencial, embora a maioria, 61%,

refere que o risco número um é a poluição ambiental.

As grandes crises do passado, tal como a crise das

vacas loucas não são consideradas no top. Memória

curta!

À pergunta quais os principais problemas associados

com os alimentos, em primeiro lugar surge a

intoxicação alimentar, seguida dos químicos e em

terceiro da obesidade. As percentagens elevadas de

europeus preocupados ao redor de: resíduos de

pesticidas, novos vírus, resíduos na carne, más

condições de higiene fora de casa, poluentes como

mercúrio e dioxinas, organismos geneticamente

modificados, entre outros, demonstram,

inequivocamente, interesse em termos de segurança

alimentar.

Há de facto uma percepção de risco elevada.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

265

Para contrariar e minimizar muitas das situações

relacionadas com a segurança alimentar são

indispensáveis vigilância apertada, adequada

legislação, agências fiscalizadoras e controlos a vários

níveis, porque, no clima global em que vivemos, a

margem de segurança é cada vez mais apertada,

podendo, em qualquer momento, sair das

conformidades espalhando a doença, a morte e o

pânico.

No fundo, vivemos mesmo no fio da navalha.

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Salvador Massano Cardoso

266

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

267

EPIDEMIOLOGIA DA ASSOCIAÇÃO DIABETES

MELLITUS – HIPERTENSÃO ARTERIAL

A diabetes mellitus afecta mais de 150 milhões de

pessoas a nível mundial. Os dados epidemiológicos

apontam para um agravamento da prevalência nos

próximos anos, quer nos países industrializados, quer

nos que se encontram em desenvolvimento. O facto

de ser tão prevalente revela que estamos perante

uma entidade que reflecte a interacção de vários

factores. De facto, os aspectos genéticos, que já são

relativamente bem conhecidos, traduzem pressões

selectivas ambientais. Sendo o homem fruto da

interacção entre o seu património genético e o

ambiente, é fácil de concluir que determinados genes

se tornaram mais prevalentes.

A selecção de genes ditos “económicos”, tais como os

que favorecem ou estão na génese da diabetes do

tipo 2 é vital para a sobrevivência da espécie. No

entanto, à medida que o progresso e o

desenvolvimento se vão processando, a produção, a

disponibilidade e a acessibilidade alimentar

transformaram-se numa realidade ao alcance de

grande parte dos seres humanos, nomeadamente, os

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Salvador Massano Cardoso

268

que se encontram acantonados no mundo ocidental,

tornando “obsoletos” certos genes. Acresce que as

melhorias de condições de vida, que contribuíram

significativamente para o prolongamento da

sobrevivência humana, foram determinantes para a

expressão clínica e metabólica de uma das principais

doenças conotadas com a civilização.

O número total de diabéticos irá sofrer um acréscimo

muito significativo nos próximos anos, saltando dos

171 milhões em 2000, para 366 milhões em 2030.

Neste momento, em certos países, observa-se, pela

primeira vez uma epidemia de diabetes mellitus em

jovens e, até, mesmo em crianças. Verdadeiras

manifestações de excessos alimentares, das quais a

obesidade é um sinal evidente.

A pressão arterial é uma variável contínua

influenciada pela idade e que teve um papel

determinante na evolução das diferentes espécies,

inclusive a humana.

O sistema renina-angiotensina, que desempenha um

papel primordial na regulação da pressão arterial, é

filogeneticamente muito antigo, observado em

espécies tão velhas como os elasmobranquios. Há

mais de 500 milhões de anos possibilitou a invasão

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

269

da terra de organismos aquáticos. Sem este sistema

não seria possível regular o tonus vascular, nem o

volume sanguíneo. Com mais de 500 milhões de

anos, hoje, o homem luta, frequentemente, contra

uma sistema que é responsável em grande parte pela

hipertensão arterial. Um sistema que esteve na base

da própria vida e da adaptação ao meio ambiente

acaba, muitas centenas de milhões de anos depois,

de ser um alvo preferencial na prevenção secundária

das doenças cardiovasculares.

Podemos considerar a hipertensão arterial essencial

como uma doença multifactorial e poligénica,

resultante da interacção de vários genes, uns com

outros, e com o ambiente, manifestando-se sob

diferentes fenótipos, com uma hereditariabilidade

estimada em 30 a 50%. hereditário

A prevalência da hipertensão, em muitos países

desenvolvidos, particularmente nas sociedades

urbanas, é semelhante ao verificado nos países em

desenvolvimento, devido ao aumento da longevidade

e à concomitante prevalência de factores

contribuintes tais como a obesidade, a inactividade

física e alimentação não saudável. A nível mundial

estima-se em cerca de 7 milhões o número de mortes

prematuras e em cerca de 4,5% as doenças

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Salvador Massano Cardoso

270

provocadas, ou seja, qualquer coisa como 64 milhões

de anos de vida incapacitantes.

Quer a diabetes, quer a hipertensão arterial,

constituem dois dos mais importantes factores de

risco cardiovascular, a par da hiperlipidemia e da

obesidade. Sendo as doenças cardiovasculares a

principal e a primeira causa de morte no mundo,

torna-se imperioso conhecer a dinâmica e a evolução

do fenómeno esclarecendo a intervenção e a

interacção dos principais factores de risco.

Apesar dos estudos e da controvérsia sobre a

existência de uma associação entre a resistência à

insulina e insulinemia com a hipertensão arterial, o

facto é que ambas estão frequentemente associadas,

traduzindo eventuais mecanismos subjacentes ou

respostas de sistemas independentes a agressões

ambientais e/ou interacção com outros factores de

risco, nomeadamente a obesidade.

No estudo Prevenção Secundária da Doença

Coronária – Estudo Fármaco-epidemiológico, em que

foram estudados cerca de 8.000 doentes com enfarte

do miocárdio e angina instável (todos sujeitos a

hospitalização), foi possível verificar que a

prevalência da diabetes tipo 2 ronda os 19,7%,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

271

enquanto a hipertensão arterial atinge 47,6% dos

doentes. Uma análise mais pormenorizada permite

constatar que 12% dos doentes sofrem

simultaneamente de diabetes e hipertensão arterial.

Num outro estudo efectuado em 2.300 doentes

coronários (PIADC – Projecto de Investigação no

Âmbito da Doença Coronária em Portugal) tivemos

igualmente a oportunidade de verificar as elevadas

prevalências de diabetes e hipertensão arterial, 20%

e 54% respectivamente. Em 11% dos doentes

observámos uma associação diabetes mellitus e

hipertensão arterial. Mais recentemente num estudo

sobre a prevalência da obesidade nos utentes do

Serviço Nacional de Saúde abrangendo cerca de

15.000 pessoas foi possível verificar que a associação

entre diabetes e hipertensão ronda os 11,8% (W-

Risk). Os estudos apontam para cifras da ordem dos

12%, no tocante à associação diabetes e hipertensão

arterial, facto que justifica uma abordagem clínica,

terapêutica e investigacional no sentido de controlar

dois dos mais importantes factores de risco

cardiovasculares.

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Salvador Massano Cardoso

272

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

273

DIABETES MELLITUS E “SÍNDROMA DE STATUS”

A diabetes mellitus adquiriu, em termos

epidemiológicos, uma relevância especial quando, em

1978, foi publicado, na sequência de uma conferência

internacional - a primeira sobre epidemiologia da

diabetes realizada pela Fundação Kroc na Califórnia -,

o livro de Kelly West em que a autora propôs a

classificação, a padronização de metodologias e dos

critérios de diagnóstico de uma realidade emergente

muito preocupante. Convém referir que, em tempos

idos, no século XII, Maimónidas tinha proferido a

seguinte frase: A diabetes mellitus é pouco frequente

na “fria” Europa e frequente na África “quente”.

Podemos considerá-lo como um dos primeiros

epidemiologistas da diabetes.

O que é certo é que nenhuma doença crónica teve um

incremento semelhante à diabetes cuja prevalência

duplicou num quarto de século, havendo mesmo

países em que chegou a quadruplicar,

nomeadamente, no Sul e Este asiático, caso da China

e da Índia.

Vivemos uma epidemia num crescendo incomparável.

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Salvador Massano Cardoso

274

Morrer de diabetes ou, melhor, das suas

complicações, tornou-se numa regra universal que se

agrava com as situações de hiperglicémia que,

mesmo que não leve à “doença”, propriamente dita,

chega a matar mais de dois milhões de pessoas por

ano por doença cardíaca e acidentes vasculares

cerebrais às quais se deve somar o milhão de mortes

por diabetes!

Não é difícil prever as consequências sociais e

económicas desta doença em, praticamente, todas as

comunidades, tornando-se em muitas num verdadeiro

sorvedouro de recursos técnicos, sociais e

económicos dificilmente sustentáveis.

Para compreendermos melhor o panorama desta

afecção, devemos apontar vários factores, entre os

quais destacamos: o envelhecimento, o

“enriquecimento”, a “urbanização” e o sedentarismo.

Obviamente que os últimos justificam, plenamente, a

aquisição de novos hábitos alimentares.

A importância de que se reveste esta doença está

bem patenteada no facto de jovens e até crianças

começarem a adoecer de diabetes tipo 2, o que faz

pensar o que aconteceria aos colegas mais velhos,

aquando da passagem pelos bancos das faculdades

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

275

de medicina, se tivessem a ousadia de dizer que esta

forma de doença atingia, também, os miúdos.

Chumbo certo! Mas hoje, nalgumas comunidades

norte-americanas, a prevalência do tipo 2 começa a

ser tão ou mais prevalente que o tipo 1.

Portugal não foge à regra, antes pelo contrário,

apresenta indicadores de elevada gravidade a par da

obesidade. Apesar de ainda não possuirmos dados de

prevalência de base populacional – o estudo liderado

pela Sociedade Portuguesa da Diabetologia está em

curso –, muitos estudos epidemiológicos efectuados

nos utentes do Serviço Nacional de Saúde permitem,

após adequadas projecções, apontar para uma

prevalência de diabetes mellitus da ordem dos 9 a

10% na população adulta portuguesa, com mais de

18 anos de idade, o que é altamente preocupante.

A associação com a obesidade é um facto indiscutível

e se excluirmos os casos “patológicos”, que estão

devidamente esclarecidos, poderemos apontar para a

existência de uma verdadeira “obesidade social” a

que não é estranho a “predisposição da espécie”, o

aumento da produção alimentar, a capacidade de

armazenamento, uma maior eficiência na distribuição

de alimentos, assim como melhor acessibilidade, o

estímulo ao consumo, as mudanças do sistema

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Salvador Massano Cardoso

276

laboral e, por fim, talvez a mais importante, o défice

cultural.

São precisamente os povos ou comunidades com

maior défice cultural, mas já com algum nível

económico, os mais permeáveis a certas condutas

que motivam o aumento da obesidade e da diabetes.

Entre nós, é patente a relação inversa entre o nível

académico e a prevalência da obesidade e da

diabetes, o que nos permite concluir que quanto

maior for o nível académico menor será a prevalência

destas afecções. Sendo assim, a luta contra as novas

pragas terá de passar, inexoravelmente, por um

aumento rápido do nível cultural e académico dos

portugueses, fenómenos que não se avizinham, face

à realidade social, o que nos permite concluir que as

situações patológicas, entre nós, irão manter-se e até

mesmo agravar-se.

Importa difundir o novo conceito de “síndroma de

status” tão brilhantemente descrito pelo

epidemiologista britânico, Professor Marmot. Segundo

este cientista, adoecer e morrer prematuramente têm

a ver com as condições socioeconómicas, as quais

estão associadas à pobreza, às más condições

alimentares, às deficientes condições das habitações,

às atitudes e comportamentos face aos diferentes

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

277

tipos de factores de risco. Há mais de 25 anos, no

famoso estudo Whitehall, Marmot já tinha chegado à

conclusão de que o risco de morrer era quatro vezes

superior nas camadas sociais mais baixas face às

classes mais elevadas. Hoje em dia, na Grã Bretanha,

pequenas diferenças de nível académico, por

exemplo, licenciados e mestres é suficiente para

explicar uma maior propensão de adoecer dos

primeiros! Facilmente se pode imaginar o que

acontecerá com diferenças culturais mais marcadas.

A diabetes mellitus encaixa-se na perfeição no

denominado “síndroma de status”, quase que a

poderíamos considerá-la como um paradigma. Deste

modo, só através de lutas contra as desigualdades

sócio-económicas e aumento do nível académico será

possível controlar e evitar o aparecimento desta

situação. Não descurando as medidas que já são do

conhecimento comum, em termos de prevenção

secundária e terciária, importa politizar, no

verdadeiro sentido da palavra, a maior epidemia que

alguma vez atingiu a espécie humana.

Enquanto responsáveis pela saúde dos nossos

doentes e compatriotas compete-nos “obrigar” o

poder politico a assumir as responsabilidades na

prevenção da obesidade e da diabetes.

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Salvador Massano Cardoso

278

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

279

DIABETES E LITERACIA

Quando fui convidado para efectuar uma conferência

sobre “Diabetes e Literacia” não fiquei surpreendido.

Fiquei mesmo satisfeito com o desafio já que o

mesmo revela que as preocupações culturais com as

doenças começam a germinar dentro da nossa classe.

Óptimo sinal, porque não é suficiente conhecermos

aprofundadamente os mecanismos e as causas das

mesmas e as diferentes abordagens terapêuticas,

técnicas e até preventivas. É preciso ir mais longe, ir

às origens da patologia, à sua evolução e aos novos

figurinos culturais que têm marcado de uma forma

única o crescimento da humanidade, tentando desta

forma compreender melhor a patologia humana,

intervindo a níveis que nos escapam, enquanto

médicos, mas para os quais podemos ajudar com a

nossas capacidades diagnósticas e, porque não,

soluções sociais e politicas. Mas confesso que fiquei

um pouco apreensivo, porque o sucesso de uma

conferência deste nível depende da forma como se

transmitem certos conhecimentos e, sobretudo, como

criar novos paradigmas. Não basta chover no

molhado, temos que inovar, temos que especular,

temos que produzir novos conceitos que estejam na

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Salvador Massano Cardoso

280

base de modernas formas de pensar e contribuir para

soluções mais eficientes. E é aqui que está o busílis

da questão: saber se é possível no fim ter uma nova

visão sobre um velho problema. Tentarei que haja,

mas também não prometo.

Ao idealizar uma conferência deste tipo estou a

estimular o pensamento, aprendendo e reflectindo e,

sobretudo, desejoso em provocar.

Quer a diabetes quer a literacia são dois fenómenos

marcadamente humanos, apesar da diabetes existir

noutras espécies e até de haver algumas que têm

comportamentos culturais, embora muito longe da

nossa.

A origem da nossa espécie e o seu divinal sucesso

que nos alcandorou até ao presente deve muito à

patologia e à cultura. Quanto à patologia, ela reflecte

as consequências de um mecanismo de vida

complexo e extremamente adaptável. Só com uma

grande capacidade de adaptação é possível

sobreviver, mas para isso é necessário abrir as portas

ao indesejável, ao inesperado, através das quais

entra o sofrimento e a morte. A doença é fonte da

vida, um paradigma que esquecemos, mas que é

absolutamente indispensável para a própria

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

281

sobrevivência das espécies, sejam elas quais forem.

No fundo, sendo a doença mais antiga do que o

homem, tão antiga como a própria vida, devemos

considerá-la como a essência da vida. Lutamos contra

ela desde que nos conhecemos. Temos tido vitórias

fabulosas, mas no fundo nunca conseguiremos

eliminá-la, porque se isso acontecesse, ou

deixaríamos de ter vida ou passaríamos a ser

qualquer coisa, diferente daquilo que entendemos por

vida.

Somos igualmente seres culturais e dependemos da

cultura para sobreviver. Há muito que somos

praticamente incapazes de usar os nossos

mecanismos de adaptação física, química e

microbiológica para aguentar as forças ambientais.

Criámos um novo e poderoso mecanismo, dito

cultural, sem o qual, a maioria de nós, não

conseguiria sobreviver alguns dias caso fossemos

lançados no seio da natureza bruta e selvagem.

São inúmeras as doenças que contribuíram para a

emergência da espécie humana. A diabetes constitui

uma delas e, devido às suas características podemos,

inclusive, afirmar que jogou um papel essencial e

determinante. Aquilo que hoje constitui uma das

maiores preocupações de qualquer sociedade, pelas

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Salvador Massano Cardoso

282

elevadas prevalência, morbilidade, mortalidade e

astronómicos impactos sócio-económicos merece, e,

porque não dizer, - bem sei que é altamente

provocador – o nosso agradecimento. Sem diabetes

haveria a espécie humana tal como hoje a

conhecemos? É muito provável que não!

A diabetes mellitus, assim como muitas outras

afecções, sobretudo as de carácter metabólico, foram

determinantes para a nossa espécie. Não é por acaso

que estão tão intimamente associadas. Somos

descendentes de herbívoros, transformados em

carnívoros, condição essencial para a cerebrização

humana e acabámos em omnívoros. Vivemos em

paraísos terrestres entre há 15 e 6 milhões de anos;

fomos expulsos do paraíso há cinco milhões de anos,

carnívoros à força há dois milhões de anos acabando

por regressar ao Éden alimentar nos nossos dias.

Todos já ouviram falar de Lucy, a jovem

australopiteca com 3,5 milhões de anos, cuja

existência se limitava a uma procura incessante de

alimentos, comendo quando havia. Para sobreviver,

Lucy, deveria sofrer de “sensibilidade diferencial à

insulina”. Insulino-resistência, uma das muitas

conquistas que possibilitaram o aparecimento do

Homo sapiens sapiens e a sua propagação pela

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

283

ecúmena.

Quando li a obra, “O livro que desceu do céu”, de

Ahmad Vicenzo, sobre Zayd, o rapaz que escreveu a

primeira cópia do Alcorão, o primeiro capítulo

despertou-me a atenção quando li o seguinte

parágrafo: “A relação entre nómadas e sedentários é

um elemento fundamental da história de todas as

civilizações tradicionais e não só da islâmica. De

facto, o nomadismo representava a condição

ancestral, dos homens antigos, de natureza nobre e

desprendida dos bens terrenos. O povo de Israel foi

nómada até à construção do templo de Salomão, e o

próprio Cristo afirmou: “Os lobos têm covis e os

pássaros do ar ninhos, mas o Filho do Homem não

tem onde pousar a cabeça”. Na Arábia, até há

relativamente pouco tempo, era costume os povos

sedentários pagarem aos nómadas um “imposto da

fraternidade”, Khãwa (ou ikhãwa), em virtude de um

antigo pacto. Não se tratava de uma garantia contra

as suas incursões e sim de uma verdadeira

homenagem dos sedentários aos seus irmãos do

deserto que davam continuidade à vida nobre dos

antepassados, mantendo viva a memória”.

Este trecho obriga-nos a reflectir sobre as nossas

origens e a forma como viviam os nossos

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Salvador Massano Cardoso

284

antepassados. O nomadismo era a realidade

quotidiana. O sedentarismo é uma conquista recente,

cultural e revolucionária. Indispensável ao nosso

progresso, mas, no fundo representa algo que não

estava previsto, se é que há alguma coisa prevista.

Para viver como nómada é indispensável uma

capacidade de adaptação fisiológica e metabólica,

para a qual deve ter contribuído, e de sobremaneira,

a tendência para uma situação que, muitas gerações

depois descambou na doença que hoje é objecto de

atenção e preocupação, por parte dos profissionais de

saúde, políticos, e cidadãos em geral, a diabetes.

Quando os sedentários árabes pagavam o imposto de

fraternidade aos seus irmãos nómadas faziam-no com

uma forma de reverência e de respeito não só pelas

velhas tradições mas sobretudo pelas origens da

espécie humana. Qual seria a prevalência dos genes

da diabetes entre os nómadas? Elevada sem dúvida.

Sem eles teriam conseguido sobreviver às agruras e à

penúria da fome? Quase que me atreveria afirmar –

mais uma provocação -, que os diabéticos dariam

bons nómadas, ou são dignos representantes de um

fenómeno original. Se lhes pagavam outrora, aos

nómadas, o imposto da fraternidade, hoje

poderíamos adaptá-lo, criando, para os diabéticos,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

285

um imposto semelhante, o imposto da solidariedade.

No fundo é o que estamos a construir e a

desenvolver desde há algumas décadas, com os

cuidados, as preocupações e os avultados

investimentos neste tipo de patologia que acabou por

emergir fruto da sedentarização. Manifestações de

elevada solidariedade para com uma fatia muito

elevada da população. Neste particular, aproveito,

desde já, para expressar o destaque para o

pioneirismo mundial dos portugueses em matéria

social da diabetes que constitui uma forma particular

de elevadíssima cultura médico-social num povo de

crónica iliteracia.

O sedentarismo é um fenómeno muito recente na

longuíssima história da humanidade. Uma pequena

fracção de tempo, que já provou ser fonte de

benefícios e de conquistas que transcendem as

próprias aspirações humanas.

É tão recente o seu aparecimento que podemos datá-

lo. No final da última glaciação, ocorrida há cerca de

13.000 anos, todos os homens deste planeta

encontravam-se no mesmo nível cultural e

civilizacional. Em 1500 depois de Cristo, a amplitude

entre os homens era abismal. Povos civilizados

capazes de obras primas na literatura, na construção,

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Salvador Massano Cardoso

286

na pintura, na ciência, na navegação, na escultura e

na música, contrastavam com outros menos

civilizados e, numa cadeia em decrescendo, mesmo

com homens a viver como há cerca de 13.000 anos

atrás, sem terem evoluído um miserável ano na

evolução cultural e civilizacional. Quais foram os

determinantes para estas discrepâncias, que

continuam a fazer-se sentir nas suas variantes, nos

dias actuais? As armas, os genes e o aço. As armas e

o aço, frutos da cultura, os genes os fiéis de uma

velha natureza. Na obra com o mesmo título, Jared

Diamond explica, e bem, o aparecimento destas

diferenças.

As mudanças sociais, culturais e civilizacionais

originaram novas formas de vida, de organização

social e de alimentação, a que o sedentarismo dá um

toque final, eliminando praticamente o nomadismo, o

verdadeiro primum movens da Humanidade.

É curioso verificar que as patologias emergiram com

um potencial maligno nunca visto até então quando

ocorreu a revolução agrícola. Pela primeira vez, o

homem conseguia domesticar e produzir alimentos

em quantidade, facto que originou o sedentarismo e

tudo o resto, necessidade de organização política e

militar, hierarquias sociais, cidades, bens de riqueza,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

287

comércio e tudo o que já sabemos e dos quais

dependemos. A adaptação biológica acabou por ser

subjugada à adaptação cultural.

A revolução agrícola determinou verdadeiras

explosões demográficas, além das já propaladas

patologias e também promoveu o aparecimento de

novas culturas.

Mais gente, maior necessidade de alimentos mas,

mesmo assim, mais fome. Só muito recentemente, e

apenas na parte ocidental do mundo, é que se

conseguiu encontrar os meios para combater a fome.

Ou seja, pertencemos à primeira ou segunda geração

que, teoricamente, não passa fome. Na prática

significa que a maioria da população mundial continua

a sofrer do velho problema da fome. Os genes lá

estão para responderem a uma situação tão velha

como eles próprios: a eterna fome.

Um dos aspectos mais fáceis de analisar diz respeito

ao desenvolvimento sócio-económico, à fome e a

certo tipo de doenças.

Quando um povo começa a emergir em termos sócio-

económicos, as mudanças comportamentais fazem-se

sentir, numa primeira e longa fase, nos hábitos

alimentares. Mais dinheiro, menos fome. Em seguida

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Salvador Massano Cardoso

288

aparecem a aquisição de outros bens. Matar a fome é

a primeira das prioridades, levando à aquisição de

vários tipos de produtos e ao seu consumo de forma

muito pouco criteriosa. Consequências imediatas? A

subida da taxa de diabetes, de obesidade, de

hipertensão, da hipercolesterolemia, de enfartes e de

acidentes vasculares cerebrais. Chamar a atenção

para os maus comportamentos alimentares que se

estão a adquirir é a solução? Não, obviamente! Não

são atendidos, porque, para tal é absolutamente

necessário uma formação cultural relativamente

elevada. E aqui entramos na chamada discrepância

entre a capacidade do poder de compra que vai

aumentando, mas que não é acompanhada pela

necessária evolução cultural. O típico fenómeno de

transição sociológica que ocorre em todas as

sociedades sem excepção.

Portugal, tirando alguns períodos da sua história não

se pautou por grandes rasgos culturais, à escala

global, porque em termos individuais não temos que

nos queixar. Acontece que perdemos um dos períodos

mais importantes da história contemporânea ao não

darmos a dimensão que outros povos concederam no

decurso do Iluminismo que, praticamente nos passou

ao largo, e para o qual contribuíram as invasões

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

289

francesas e as guerras civis do século XIX. A iliteracia

de então ainda hoje tem os seus reflexos, porque dar

cultura e instrução a um povo é uma tarefa de

gerações.

Augusto Gil há muitos anos escreveu um poema

intitulado “O Edital” dedicado ao grande João de

Deus. Fala de Manuel, um petiz de palmo e meio,

inteligente, bondoso, orgulho do professor devido ao

seu interesse no saber, sabia ler correctamente, fazer

contas que nem um banqueiro e que um dia, junto ao

adro da Igreja viu um bando de homens a olharem

para um papel afixado na porta principal. Ansiosos,

cada um lançava os seus palpites que iam desde mais

contribuições à lista pr´ás sortes. Nenhum sabia ler.

O Manuel lá ia furando para ver o que estava escrito

até que “um dos do bando agarrou-o então e

levantou-o com as mãos possantes e calejadas de

cavarem pão... “ Manuel, com uma voz clara e

melodiosa, leu o que o edital continha rodeado pelo

silêncio dos circunstantes.

No final, o abade ao presenciar esta cena disse:

Olhai amigos, quanto pode o ensino...

Sois homens, alguns, pais, e até avós,

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Salvador Massano Cardoso

290

Pois só saber ler, este menino

É já maior do que nenhum de vós!

Esta era uma realidade daqueles tempos mas é

perfeitamente actual nas suas variantes modernas. A

falta de cultura é uma verdadeira praga.

A diabetes é uma doença dita da civilização, ou

melhor, resulta mais de uma inadaptação à

civilização. Calcula-se que 150 milhões de pessoas

sofram desta doença e que num curto período de

tempo, um quarto de século, duplicará. Presumo que

mais nenhuma outra maleita apresente esta

velocidade de agravamento.

Nos diferentes estudos realizados no nosso país é

possível verificar que os cidadãos com mais baixo

nível cultural apresentam prevalências mais elevadas

de diabetes, consomem mais medicamentos e estão

pior controlados.

Existem várias razões para explicar o aparecimento e

a explosão da diabetes mellitus. Algumas já foram

descritas. Muitas outras poderiam e deveriam ser

analisadas, desde o sedentarismo crescente, às

modificações do tipo de trabalho, passando pelo

aumento da disponibilidade alimentar, a

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

291

comportamentos atávicos face ao consumo de

alimentos, o comportamento menos ético das

indústrias ligadas à alimentação cujos objectivos

lucrativos são mais do que evidentes e a que não é

alheio a publicidade e manipulação intencional da

falta de cultura das sociedades.

A diabetes personifica no seu melhor o exemplo de

um síndroma de status. Este síndroma está

perfeitamente definido e traduz-se de várias formas.

Vejamos o caso da esperança de vida que no princípio

do século XX rondava os 40 anos e que actualmente

se aproxima dos 80 anos nos povos mais

desenvolvidos, em perfeito contraste com os mais

pobres. A diferença actual entre os dois mundos é da

ordem dos 30 anos! Enquanto nos mais ricos a

esperança de vida aumentou sete anos desde 1970-

75, nos mais desfavorecidos, caso dos povos

subsaarianos, o aumento foi apenas de quatro meses!

As causas destas diferenças são conhecidas,

originando a criação de um novo síndroma, a

“síndroma de status”, sinónimo de desigualdades

sociais.

Acontece que esta síndroma não se verifica somente

entre os países mais ricos e os mais pobres. Também,

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Salvador Massano Cardoso

292

dentro do mesmo país, é possível encontrá-la. Há

mais de 25 anos, no famoso estudo Whitehall, o

epidemiologista britânico, Professor Michael Marmot,

tinha chegado à conclusão de que o risco de morrer

era quatro vezes superior nas camadas sociais mais

baixas face às classes mais elevadas.

Adoecer e morrer prematuramente têm a ver com as

condições socioeconómicas, as quais estão associadas

à pobreza, às más condições alimentares, às

deficientes condições das habitações, às atitudes e

comportamentos face aos diferentes tipos de factores

de risco.

Durante muito tempo chamou-me a atenção o facto

de muitos, mas mesmo muitos, filósofos e “homens

do pensamento” desfrutarem longas vidas, apesar

das épocas em que se notabilizaram não serem

profícuas em elevadas esperanças de vida! O

contraste é tão flagrante que acabei por admitir que a

melhor maneira de atingir idades provectas era

dedicar a vida ao “pensamento e à reflexão”. Quase

que me apeteceu chamar de “efeito do filósofo” a este

fenómeno de longevidade.

Mas tem que haver razões para isto tudo. De facto,

passar a vida a fazer o que se quer não é para

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

293

qualquer um, infelizmente. É preciso

“empoderamento”!

O “empoderamento” (em inglês: empowerment) “é

utilizado para designar um processo contínuo que

fortalece a autoconfiança dos grupos populacionais

desfavorecidos, os capacita para a articulação de seus

interesses e para a participação na comunidade e que

lhes facilita o acesso aos recursos disponíveis e o

controlo sobre estes”.

Há vários tipos de “empoderamento”. Um deles tem a

ver com as necessidades materiais, permitindo, por

exemplo, adquirir alimentos ou roupa para as

crianças. Se não conseguirem não têm capacitação. A

par deste tipo, outro, de origem psico-social, permite

o controlo das suas vidas e, por fim, destacamos

ainda um terceiro tipo, o empoderamento politico, ou

seja ter “voz activa”.

Um pais como o nosso, em que dois milhões de

pessoas vivem na pobreza, logo desprovidas de

“empoderamento económico”, a que podemos

associar ausência de “controlo das suas vidas” (neste

caso serão muito mais dos que os dois milhões), e a

dificuldade em usar a “voz” por motivos variados,

“explica” muito da patologia que infelizmente grassa

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Salvador Massano Cardoso

294

por aí. E é precisamente neste franja importante da

nossa sociedade que a diabetes irá exprimir-se de

uma forma particularmente violenta, quer em termos

de prevalência, quer em termos de dificuldades em a

tratar com a emergência de complicações a todos os

níveis transformando os pobres em mais pobres e os

menos pobres também irão empobrecer-se ao serem

desviadas verbas para tão significativa e prevalente

doença, a qual se arrisca a ser o maior cancro da

sociedade portuguesa com prejuízos incalculáveis e

incomportáveis num país que tarda em se afirmar

como desenvolvido e justo.

Queria chamar a atenção para o facto dos

responsáveis governamentais “se esquecerem” das

chamadas terapêuticas políticas, descurando o campo

da medicina social tão bem desenhado há mais de

150 anos por Virchow. O enfoque dado às medidas

curativas, embora úteis, sem sombra de dúvida, não

consegue ir ao cerne da questão. As desigualdades

sociais que estão na base da “síndroma de status”

têm que ser tomadas em consideração, de outro

modo continuaremos a adoecer e a morrer de forma

desigual impedindo o desfrutar de algo semelhante ao

“efeito do filósofo”, mas com saúde. Mas para isso é

preciso investir muito, mesmo muito na literacia e na

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

295

cultura do povo português.

Termino, dizendo que pudemos saber muito sobre a

diabetes, sobre a sua origem e causas próximas.

Sabemos como a tratar e até como a prevenir.

Dispomos de meios e técnicas cada vez mais

elaboradas e sofisticadas, mas nunca iremos

conseguir travá-la e até minimizar o seu

aparecimento e controlá-la de modo eficaz sem

politicas adequadas, que são muitas, claro está, mas

todas dependentes de um elevado nível económico,

social e cultural. Quanto tempo necessitamos para

modificar o curso dos acontecimentos? Muitos anos e,

talvez, algumas gerações. Mas se começarmos a

apostar agora é muito provável que os nossos

descendentes ou, melhor, os filhos dos nossos filhos e

netos poderão usufruir de uma qualidade de vida

superior à nossa, agradecendo o nosso empenho e

dedicação, numa verdadeira e altruísta solidariedade

transgeracional.

Assim o queiramos.

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Salvador Massano Cardoso

296

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

297

“SAL, HIPERTENSÃO E POLÍTICA”

Neste momento, e na sequência da estratégia de

prevenção a nível mundial, torna-se imperioso reduzir

o consumo de sal dos 9 a 12 g/dia para 5 a 6 g/dia.

Importa esclarecer que Portugal se encontra no limite

superior, com o pormenor de muitos portugueses

ultrapassarem, e em muito, o consumo dos 12 g/dia

de sal. Uma redução da ordem de grandeza

enunciada permitirá reduzir a pressão arterial de 7,2

a 11,2 mmHg para a tensão arterial sistólica e 3,8 a

6,4 mmHg para a tensão arterial diastólica nos

hipertensos. Os normotensos também sofrerão uma

diminuição significativa. Estas reduções são

suficientes para permitir salvar muitos milhares de

vidas todos os anos.

Por este motivo falar do sal, é falar da hipertensão. É

falar dos acidentes vasculares cerebrais. É falar do

enfarte do miocárdio. É falar das principais causas de

doença e de morte em Portugal. É falar da principal

causa de invalidez. É falar de tragédias humanas e

familiares. É falar de uma epidemia silenciosa em

termos políticos, mas gritante e exasperante para as

vítimas e suas famílias. É falar de projectos de vida

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Salvador Massano Cardoso

298

interrompidos conflituando, em muitos casos, com

uma auto imagem negativa e uma humilhante

necessidade de ajuda de terceiros.

O problema dos acidentes vasculares cerebrais não

pode e nem deve cingir-se ao foro médico ou aos

cuidados de enfermagem ou familiares. Trata-se de

um problema de carácter individual, assente em

responsabilidades colectivas, influenciado por factores

económicos, culturais e, até, quem diria, políticos!

Anualmente morrem mais de 20.000 portugueses só

por acidentes vasculares cerebrais. Estamos a falar

de morte, que é um epifenómeno. Se tomarmos em

linha de conta o número de AVCs, dos quais, cerca de

um quarto se manifesta através da morte e outros

25% por incapacidades graves, necessitando a ajuda

de terceiros, torna-se fácil compreender o impacto

desta entidade. Acresce que, em Portugal este

fenómeno é particularmente violento, face aos

restantes países comunitários.

As razões subjacentes a esta problemática são bem

conhecidas. Dentro dos múltiplos factores,

destacamos o consumo excessivo de sal, tão

característico do povo português, o não controlo

efectivo da hipertensão arterial, cuja elevada

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

299

prevalência é deveras preocupante e, os consumos

excessivos de álcool e do tabaco.

A necessidade de educar e informar os portugueses a

diferentes níveis é indispensável. Mas, a par das

medidas educacionais e informativas, as quais são

muito limitadas, e quase sempre restringidas à área

do foro da saúde, torna-se imperioso outras atitudes

que se revistam de carácter político. Iniciativas

legislativas que limitem o teor de sal dos alimentos

pré-confeccionados são vitais, já que uma pequena

redução do teor deste produto, na ordem dos 10%,

por exemplo, é susceptível de uma redução

substancial da morbimortalidade, mesmo a curto

prazo, sem implicar alterações de fundo da qualidade

e sabor dos produtos em causa.

A abordagem deste problema é prioritária. Por quê?

Com base em dados recentes de um estudo, sobre a

probabilidade de risco de AVC em Portugal nos

próximos 10 anos, envolvendo mais de 20.000

utentes, com idades compreendidas entre os 55 e os

84 anos, podemos afirmar que cerca de 430.000

portugueses estão em risco. Destes, um quarto

morrerá nos primeiros meses, e um pouco mais de

um quarto ficará com limitações funcionais, bastante

comprometedoras. Também foi possível calcular que,

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Salvador Massano Cardoso

300

através de medidas simples, mas eficientes, há um

potencial de redução da ordem dos 40%, ou seja,

qualquer coisa como 170.000 indivíduos, valor nada

discipiendo.

Compete a todos os agentes da saúde, a todos os

cidadãos, mas também ao poder político debruçarem-

se de uma forma consciente sobre uma situação que

irá constituir o fim de mais de 25% de todos nós,

mas também pode incapacitar-nos antes de

atingirmos uma idade em que por força da natureza,

sejamos confrontados inevitavelmente com a doença.

Conscientes de que não podemos evitar a doença, já

que é um atributo da própria vida, ao menos façamos

os possíveis para contribuir para a contracção do

fenómeno, transferindo para as últimas semanas da

nossa existência a doença e o sofrimento.

O que é certo é que uma percentagem significativa da

população portuguesa adulta, entre os 18-64 anos, é

hipertensa, e que apesar de tomarem medicamentos,

mesmo assim, não estão devidamente compensados.

Numa percentagem significativa, 76% dizem fazer

dietas pobres em sal, sendo que 79% destes foi por

indicação médica.

Chama-se a atenção para o facto de 66,2% dos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

301

portugueses considerarem as suas dietas normais em

sal e 25,9% mesmo pouco rica! Só 7,6% é que

consideram a dieta muito rica. Provavelmente os que

consideram a dieta como pouco rica são precisamente

aqueles que adoptaram uma dieta mais pobre em sal,

devido à sua condição de hipertensos.

Por outro lado, 76,7% sabem que os alimentos pré-

confeccionados e muitos produtos que compram nos

mercados têm teores elevados de sal, enquanto

23,4% não têm opinião ou desconhecem.

A relação entre a tensão arterial elevada, o consumo

do sal e as doenças cardiovasculares está

perfeitamente identificada na nossa população, já que

94,0% têm esses conhecimentos.

Relativamente à opção de alimentos com teores

menos elevados de sal por parte dos portugueses

verificamos que 78,5% faria essa opção contra 7,3%.

A utilidade de rotulagem nos alimentos no que

respeita à indicação dos teores de sal é bem-vista, já

que 91,2% apoiaria esta ideia.

Os dados apresentados apontam para podermos

afirmar que certas medidas de cariz político poderão

dar um forte contributo à redução de tão importante

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Salvador Massano Cardoso

302

factor de risco cardiovascular em Portugal.

Haja vontade!

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

303

ÁLCOOL

MEDICAMENTO REAL

Quando procuramos conhecer a origem dos

fenómenos esbarramos, quase sempre, com lendas e

mitos. Sempre é uma forma muito humana de cunhar

o nascimento de algo e localizá-lo na nossa lenta,

complexa e longa evolução.

O vinho deve ter “nascido” lá para as bandas da Ásia

Menor, já que as uvas selvagens são apreciadoras do

clima mediterrânico. Mas, o melhor é atribuir o seu

nascimento ao lendário rei persa, Jamshheed, que

gostava de comer uvas todo o ano. Para o efeito

eram armazenadas em jarras, potes ou tonéis, enfim,

num qualquer contentor da época.

Um dia, as uvas retiradas de um desses potes

estavam amargas, além da presença de um líquido

com estranho aroma. Foi considerado como veneno.

Uma das jovens da corte, concubina ou esposa, tudo

depende da versão escolhida, dada à tristeza e à

depressão, resolveu aproveitar o tal líquido

classificado como veneno para por fim à vida. E se

assim pensou, melhor o fez. Ao consumir o líquido

começou a sentir-se feliz e bem-disposta, não

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Salvador Massano Cardoso

304

obstante ter bebido tamanha quantidade, já que

acabou por “adormecer”. Ao amanhecer, sentiu-se

diferente e comunicou ao rei os poderes de cura de

tão milagroso líquido – presumo que os efeitos da

ressaca não a deverão ter incomodado muito! O rei

experimentou, gostou, deu a beber aos seus súbditos

e proclamou o dito como “medicamento real”.

Assim nasceu o vinho! Como um medicamento que

evitou um suicídio! Nada melhor para fazer a sua

entrada na vida dos homens.

Mas a história deverá ter sido outra, não tão

“poética”!

Existem elementos que provam a produção

rudimentar de vinho no neolítico. Neste período há

indícios de “cozinhas” e de vários utensílios que

provam o armazenamento de grãos e de vinho. A

produção de bebidas alcoólicas não se cingia apenas

a este último, já que há, também, evidências de

cerveja.

A revolução culinária deste período deverá ter dado

origem à nouvelle cuisine neolítica. À noite

debicariam os diferentes pratos acompanhados de um

tinto, cuja qualidade desconhecemos, mas que,

ingerido em excesso, decerto, não deixaria de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

305

provocar alguns conflitos. De qualquer modo as

ressacas neolíticas não deveriam ser muito diferentes

das de hoje, e as complicações sociais e familiares do

abuso, também não. Transformar um “medicamento”

num “veneno” social e biológico é típico dos

homens....

VINHO E CIVILIZAÇÕES

Não há civilização que se preze que não tenha a sua

própria atitude e história em termos de produção e de

consumo de bebidas alcoólicas.

Gregos, romanos babilónios, persas, hindus, egípcios,

entre outros, fazem referências ao vinho, às suas

virtudes, aos seus efeitos, realçando as suas

propriedades na arte, na literatura e nos mais

diversos eventos. Tal foi, e é, a importância do vinho

que, até, teve direito a atributos divinos

personificados em Dionísio ou em Baco, para não

falar no simbolismo cristão e uso na Eucaristia ou nas

múltiplas referências bíblicas que vão desde a

bebedeira de Noé à transformação de água em vinho

por Cristo, passando por símbolo de prosperidade ou

mesmo o seu uso como remédio, na perspectiva de

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Salvador Massano Cardoso

306

São Paulo ao recomendar a Timóteo para beber um

pouco de vinho às refeições para não ficar fraco de

estômago e com dor de cabeça.

A difusão da cristandade acompanhou-se da

divulgação do vinho, tornando-se numa forma própria

de estilo de vida mediterrânica. Para o efeito,

algumas ordens monásticas deram um contributo

notável.

O comércio floresceu de tal forma que culminou numa

das mais lucrativas actividades humanas. Na

Inglaterra, sob o reinado de Isabel I, além da

ingestão já generosa de cidra e de cerveja,

consumiam-se, anualmente, mais de 40 milhões de

garrafas de vinho, para uma população de pouco

mais de 6 milhões!

CERVEJA

Falar de bebidas alcoólicas e só falar de vinho seria

uma heresia imperdoável.

A Suméria é considerada como berço da civilização,

mas também é a fonte da cerveja, ao ponto de

consagrar uma deusa a esta bebida: Ninkasi!

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

307

Há cerca de 4.000 anos, um provável apreciador de

cerveja escreveu um poema homenageando Ninkasi

que, afinal, parece ser também uma receita para a

sua produção. Desde então, é raro o povo que não se

tenha tornado ninkasiano.

Há quem afirme que é a bebida alcoólica mais antiga

desenvolvida pelo homem. De qualquer modo, foi

considerada durante muito tempo como o pão dos

pobres e uma forma eficaz de evitar o consumo de

águas inquinadas. Apesar de hoje, nos países

ocidentais, não faltar pão e a água ter deixado de ser

veículo de infecções, os seres humanos continuam a

idolatrar de forma intensa, particularmente durante

as festividades, em certas épocas, do ano, a deusa

Ninkasi. O consumo da “bebida da felicidade” não

pára, nem para lá caminha...

VINHO E ALIMENTO

Um dos aspectos mais controversos tem a ver com o

consumo de álcool. Os seres humanos, assim como

outras espécies têm capacidade para metabolizar o

álcool. Numa perspectiva evolucionista, alguns

autores, entre os quais se destaca Dudley, realçam o

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Salvador Massano Cardoso

308

impacto de pequena quantidades de etanol, em

determinadas épocas do ano. A fermentação natural

origina o aparecimento de pequenas quantidades de

etanol nos frutos, mas numa concentração inferior a

um por cento. Alem de eventuais mecanismos de

dispersão, estratégia assumida pelas árvores de

fruto, ao maximizarem a sua dispersão, e “utilizando”

o álcool como atractivo, em termos de sabor e de

odor, é admitido que, face às carências alimentares,

os seres vivos não podiam desperdiçar o seu uso.

Ao longo dos últimos 40 milhões de anos as

vantagens na utilização de frutos estão bem

documentadas, o que significa que a evolução

favoreceu os que a melhor utilizem, incluindo os

produtores de álcool. Quanto ao papel benéfico, em

termos fisiológicos do álcool, defendido por Duddley,

ao diminuir as doenças cardiovasculares e a

aumentar a esperança de vida não parece ser,

minimamente, convincente, porque naquelas eras

estes problemas não se punham, como é óbvio, já

que as doenças cardiovasculares se manifestam,

habitualmente, a partir de uma idade que os nossos

antepassados nem “sonhavam” que era possível

alcançar.

O facto do álcool ocorrer naturalmente em

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

309

determinadas épocas do ano, mas em pequenas

concentrações, e ter um papel nutritivo indiscutível,

face aos regimes alimentares então praticados,

parece ser interessante, justificando o seu uso.

Actualmente, esta posição encontra-se “desvirtuada”

face à facilidade com que se retira uma garrafa de

bebida com álcool de uma qualquer prateleira de um

qualquer supermercado!

Tal como tem sido demonstrado em muitas outras

áreas, as vantagens selectivas, em termos de

adaptação, do consumo de etanol acabaram – para

muitos seres humanos – por tornar-se desvantajosa.

VINHO E SAÚDE

Os efeitos nefastos do álcool são conhecidos desde os

primórdios. No livro de Bernardino Rammazzini, “Arte

de Conservar a saúde dos Príncipes, e das Pessoas da

Primeira Qualidade, como também das nossas

Religiosas”, publicado no início do século XVIII, o

professor de Modena afirma o seguinte: “Porèm naõ

há cousa alguma, que taõ clara, ou occultamente seja

mais contraria à saude dos Principes, ou outros

Grandes, como he o uso do vinho immoderamente; e

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Salvador Massano Cardoso

310

o que mais he, que naõ só padece a sua saude, senaõ

a sua reputacaõ, e gloria.” Mais à frente cita

Androcidas homem muy sabio, escrevendo a

Alexandre Magno, como nos conta Plinio, para lhe

persuadir se abstivesse da desordem do vinho, lhe

lembra: Que em bebendo vinho bebia o sangue da

terra.

Quanto aos seus efeitos benéficos descreve: He certo

que o vinho em pouca quantidade, e com moderação,

fortifica o corpo; mas da mesma sorte he certamente

sem ella muy nocivo, e prejudicial! ... O vinho he

cousa da natureza do fogo, nenhuma cousa he mais

util, nenhuma cousa mais nociva.

Francisco de Mello Franco, médico, autor de várias e

importantes obras descreve nos “Elementos de

Hygiene, ou Dictames Theoreticos, e Practicos para

Conservar e Prolongar a Vida”, publicado no início do

século XIX, o seguinte: “O vinho bom agrada á vista

pela côr, e pureza, ao olfacto pelo cheiro, e ao

paladar pelo gosto. Com estas qualidades he

nutriente, e saudavel, se usarmos delle

moderadamente. Não se póde porém determinar ao

justo, qual seja o limite desta moderação...

Segundo o que temos observado em Portugal,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

311

nenhum homem, ainda do maior trabalho corporal,

deve passar de meia canada de vinho até tres

quartilhos por dia. Os que tem vida menos activa, ou

sedentaria não devem exceder de hum até dous

quartilhos, quando muito, se o temperamento he

frouxo, e phlegmatico...

As mulheres, crianças, e pessoas moças devem

abster-se delle, a não ser aconselhado como

remédio...”

No livro “Do Vinho e do Haxixe comparados como

meios de multiplicação da individualidade” Baudelaire

afirma que “O vinho é semelhante ao homem: nunca

se sabe a que ponto se pode estimá-lo ou desprezá-

lo, amá-lo ou odiá-lo, nem de quantas acções

sublimes ou de proezas monstruosas ele é capaz.

...Confesso que perante os benefícios não tenho

coragem de contar os malefícios. Um homem que só

bebe água tem um segredo a esconder dos seus

semelhantes…” No entanto, no Le Spleen de Paris,

este autor, não deixa de apelar à embriaguez, e fá-lo

de uma forma curiosa: “É preciso que vos

embriagueis sem tréguas. Mas de quê? De vinho, de

poesia, ou de virtude, à vossa vontade”. Flaubert

(Correspondência a Georges Sand) opta por uma

postura mais equilibrada: “Que a clausura a que me

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Salvador Massano Cardoso

312

condenei seja um estado de delícias, não! Mas que

fazer? Embriagar-me com a tinta vale mais do que

embriagar-me com aguardente”

O consumo imoderado de bebidas alcoólicas em

Portugal é relativamente recente. Carlos Veloso, no

livro “A Alimentação em Portugal no Século XVIII –

nos relatos de viajantes estrangeiros”, cita Saussure,

(Cartas, Lisboa, 1730): “ Em geral o Português é

sóbrio, quer na bebida quer na comida. Um inglês, à

sua conta, come mais carne de açougue e bebe mais

vinho que quatro ou cinco Portugueses juntos”. O

português tinha fama de frugal e de sóbrio, a atirar

mais para o primeiro. De qualquer modo, tudo aponta

para que o comportamento de não excesso de

bebidas alcoólicas fosse apanágio dos Reis de

Portugal, (desde D. João I). A “fama de tais virtudes”

era partilhada, em geral, pelos súbditos. Carlos

Veloso revela a existência de “Indícios seguros de que

a embriaguez era considerada como gravíssima falta

social (meios sociais médios e elevados).

Viajantes estrangeiros, apesar das criticas aos nossos

hábitos e costumes, são unânimes em considerar que

“Na Europa do século XVII e meados do Século XVIII,

não há povo que menos se entregue ao vício

indesculpável da bebida (Colbatch, Saussure,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

313

Merveilleux, Gorani, Dalrymple)”. Mas tudo muda! A

partir do reinado de D. José surgem mudanças. O

rei, que antes do terramoto era abstémio, deixou de

o ser. Depressão… terapêutica médica? Vinho! Gostou

e abusou… Mas as causas não ficaram por aqui,

porque também é imputada aos ingleses, à guerra e à

miséria a mudança dos hábitos alcoólicos dos

portugueses .

ÁLCOOL, DESPORTO E PUBLICIDADE

Um dos aspectos mais controversos prende-se com a

publicidade ao álcool. Os códigos são elaborados com

determinados fins, nomeadamente a protecção dos

consumidores.

O desporto congrega em si uma mensagem positiva

para a vida em sociedade mas a ânsia em procurar

financiamentos para as suas actividades, leva a uma

distorção do fenómeno desportivo para a promoção e

venda de produtos que são, obviamente,

contraproducentes para o objectivo desportivo.

Falar de publicidade das bebidas alcoólicas num

determinado contexto, mesmo que seja numa área

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Salvador Massano Cardoso

314

restrita, é sem dúvida muito importante. De facto, a

associação de bebidas alcoólicas a figuras que

constituem referências e exemplos para jovens em

formação, assim como a diferentes e populares

práticas desportivas, podem induzir comportamentos

errados e fomentar o seu consumo.

A publicidade, em geral e a das bebidas alcoólicas em

particular tem sido alvo de atenções e de análises

mais ou menos complexas. As técnicas utilizadas são

cada vez mais sofisticadas e não deixam de ter como

alvo os jovens, mais permeáveis à interiorização de

certos conceitos, os quais com a idade vão sendo

abandonados.

Numa economia do álcool há que manter uma fatia

da população em permanente estado de consumo. As

pessoas à medida que envelhecem vão temperando

os seus hábitos, deixando de beber ou reduzindo a

ingestão, logo, há necessidade de fomentar o seu uso

na população adulta e nos jovens.

Os produtores de bebidas conhecem perfeitamente a

situação e não se ensaiam nada em promover

diferentes actividades que vão desde as desportivas

às culturais. Os investimentos apesar de vultuosos

têm retornos garantidos. Na luta contra o alcoolismo,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

315

as medidas destinadas a limitar a publicidade e a

promoção das bebidas são bem vindas, desde que

devidamente estruturadas e fazendo parte de um

leque mais amplo.

A publicidade ao álcool movimenta montantes muito

elevados. Só nos E.U.A. são despendidos mais de mil

milhões de dólares anualmente. Em princípio, a

publicidade deveria transmitir informação ao

consumidor, mas na prática não acontece. Os

publicitários conduzem toda as acções para os

interesses dos promotores. Para isso é que recebem

dinheiro.

A publicidade aos produtos tem fundamentalmente

dois objectivos: aumentar o consumo e conquistar o

terreno da concorrência. O aumento do consumo de

um produto, ou a diminuição do mesmo, em

consequência da publicidade ou da sua proibição tem

os seus limites naturais. Há sem dúvida uma margem

do efeito publicitário que nalgumas circunstâncias,

caso das bebidas alcoólicas, tem tendência a

estacionar. Quando os conhecimentos de uma

população permitem conhecer melhor as

consequências dos efeitos nefastos para a saúde, o

consumo tende a deter-se. Neste caso a publicidade

não faz aumentar o consumo, mas sim desviar os

Page 316: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

316

consumidores de marca para marca. Ou seja,

mantêm-se a proporção dos consumidores, o que

varia é o tipo de consumo. A mudança de hábitos de

consumo de um determinado tipo para outro, caso do

vinho para a cerveja, foi determinada pela

agressividade da publicidade de uma delas, aliada aos

baixos preços na aquisição e a condições sociológicas.

No cômputo geral, o consumo per capita de álcool

não sofreu grandes variações. Mas, não deixa de ser

curioso que o consumo de cerveja se inicia mais cedo

do que o vinho e em circunstâncias sociais mais

promissoras. A guerra entre os diferentes tipos de

cervejas ilustra bem este fenómeno. A proporção de

consumidores mantêm-se estável, mas a alternância

das marcas são bem evidentes. A publicidade neste

caso não faz mais do que oscilar a escolha entre elas.

A procura de financiamentos para determinadas

actividades culturais e desportivas tem sido uma

constante em qualquer parte do mundo ocidental.

Muito daquilo que nos orgulha e que constitui um

símbolo da civilização tem na sua origem verbas

provenientes de actividades cujo impacto na saúde e

no comportamento é no mínimo curioso. Senão

vejamos: quantos festivais e eventos desportivos não

forma promovidos pela indústria tabaqueira?

Page 317: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

317

Incontáveis. À medida que se foi conhecendo os

efeitos na saúde, foram desencadeadas medidas

destinadas a reduzir o consumo. Uma das medidas

tem a ver com a publicidade que, lentamente, foi

atingindo patamares mais ambiciosos acabando pela

proibição total. Não deixa de ser curioso a influência

dos governos junto das autoridades de saúde mundial

no sentido de não ser incluída na convenção sobre o

tabaco o sentido da proibição do mesmo. Inicialmente

esteve contemplada, depois foi retirada e só com o

esforço de muitas individualidades e associações,

nomeadamente a Associação Médica Mundial, foi

possível voltar a reintroduzi-la e, estamos a falar da

OMS! Quais os motivos destas mudanças? Os

governos não queriam assumir a promoção de

determinados eventos que, pela sua natureza,

constituem encargos elevados, pelo que os próprios

fizeram esforços no sentido de evitar a proibição

publicitária. Verdadeira hipocrisia governamental. A

cultura e o desporto têm um preço e nada mais fácil

do que passar para promotores privados. Nada a

opor, desde que não haja conflitos com os interesses

superiores dos cidadãos, nomeadamente no que diz

respeito à sua saúde. Mutatis mutandis, podemos

afirmar que, no que toca à publicidade das bebidas

alcoólicas, há necessidade de rever a legislação, de

Page 318: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

318

forma a limitar os impactos negativos na saúde e

comportamento das pessoas, com particular

incidência nos jovens em formação.

As preocupações com os excessos do álcool começam

a ser alvo das atenções dos próprios industriais que,

serodiamente, vêm defendendo a necessidade de

consumos moderados. Vale mais tarde do que nunca.

De qualquer modo, esta preocupação que vemos

contemplada nos cartazes e noutros tipos de

publicação poderão ter algum impacto e antecipa um

conjunto de normativos comunitários destinados a

reduzir e a minimizar um dos mais graves problemas

de saúde pública que, entre nós, atinge foros de

calamidade, traduzidos no elevado número de

doentes, de mortos, de conflitos de vária espécie,

além de ser um factor de empobrecimento colectivo.

As bebidas alcoólicas, ao longo dos tempos esteve,

está e estará ligado de uma forma íntima ao homem.

Faz parte das culturas da quase totalidade dos povos,

constitui mesmo uma essência da vida, está na base

da sociabilidade, inspirador, inclusive, de muitos

feitos da criatividade, possui, dentro de determinados

limites, efeitos eventualmente protectores a nível da

saúde, mas tem um reverso que obriga a

regulamentar o seu uso, a par de uma formação e

Page 319: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

319

informação adequada a todos os cidadãos, sobretudo

aos mais jovens. Limitar o seu consumo, em

determinadas circunstâncias é salutar e ninguém põe

em causa, as medidas referentes à condução

rodoviária ou no local do trabalho. No cômputo geral

as limitações ou mesmo a proibição da publicidade,

em determinados contextos, pode contribuir para

equilibrar a situação que é tão necessária e urgente

entre nós.

As medidas de carácter político têm, por vezes, muito

mais peso do que a aplicação no terreno dos

conhecimentos dos técnicos, cientistas ou

formadores, cujos efeitos exigem o passar do tempo,

característico de qualquer fenómeno de transição

sociológica. Mas, as primeiras têm o condão de se

impor quase que imediatamente garantindo e

promovendo a aceitação e a implementação das

medidas de carácter educacional e promotoras de

saúde.

ÁLCOOL E DOENÇAS CARDIOVASCULARES

A medicina “sabe” , desde há muitos anos, que o

álcool desempenha um papel protector em termos

Page 320: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

320

cardiovasculares, embora continuamos a discutir os

mecanismos da dita protecção.

É do conhecimento dos epidemiologistas que, os que

não bebem álcool e os que bebem em demasia

sofrem mais deste tipo de doenças. Este

comportamento em U é típico de várias situações,

podendo ser explicado, pelo menos em parte, devido

ao facto dos que não bebem poderem ser doentes, e

como tal não bebem, ou, então os que bebem muito,

adoecem e morrem por causa dos excessos. Ficam os

do “meio”, mais saudáveis e, consequentemente,

menos vulneráveis. De qualquer modo, o papel

"positivo" traduz-se num consumo muito moderado,

quase que diríamos em doses “terapêuticas”.

Quando se iniciou este debate, já lá vão muitos anos,

o consumo de vinho em Portugal era elevado.

Entretanto, fruto de vários condicionalismos, começou

a sofrer uma redução, sendo substituído por outros

tipos de bebidas. No cômputo geral não se observou

a desejada redução do consumo de álcool, tão

importante em termos de saúde pública.

A popularização de alguns conceitos começou a dar

forma, nomeadamente ao papel protector

cardiovascular do vinho, sobretudo através do já

Page 321: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

321

famoso “Paradoxo francês“. Este conceito resulta do

facto dos franceses apresentarem taxas baixas de

mortalidade por doenças cardíacas, apesar de

comerem muito queijo e serem grandes fumadores,

“compensados” pelas grandes quantidades de vinho

tinto que vão ingerindo. Há quem afirme q forma de

“catalogar” as causas de morte poderão explicar as

diferenças. Veja-se que o “ataque cardíaco” tem

como contrapartida o diagnóstico de doença cardíaca

nas certidões de óbito inglesas, enquanto nas

francesas é aposto: “morte súbita”.

Nos países caracterizados por consumo exagerado de

bebidas alcoólicas, como é o caso de Portugal, e que

está na base de elevada morbilidade e mortalidade, é

um perigo ouvir certos discursos e mensagens,

porque certas pessoas, e não são poucas, sentem-se

legitimados a beber, sobretudo vinho. A conversa

“meio-fiada” que alastra na nossa sociedade, e com o

“alto patrocínio” de muitos médicos, aponta para as

virtudes terapêuticas do vinho tinto. E porquê o vinho

tinto?

De facto, o vinho tinto apresenta, entre centenas e

centenas de substâncias, algumas, como os

polifenóis, cuja acção antioxidante é reconhecida.

Resta saber se nas doses “prescritas” desempenhará

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Salvador Massano Cardoso

322

ou não um papel protector.

A procura incessante de mecanismos para explicar os

efeitos protectores em termos cardiovasculares não

se limitam aos polifenóis. O papel do álcool etílico

associado à cafeína na recuperação das lesões

cerebrais, causadas, experimentalmente, em ratos

sujeitos a obstrução de artérias cerebrais, parece

ser positivo, embora se desconheça o seu papel nos

seres humanos vítimas de acidentes vasculares

cerebrais.

Podemos considerar como extraordinária a posição

dos industriais ligados à produção de bebidas

alcoólicas que, recentemente, despertaram para a

necessidade de promoverem iniciativas, das mais

diversas, conducentes a uma ingestão moderada por

parte do cidadão, de forma a limitar ou impedir

consequências nefastas. Tais atitudes denunciam uma

antecipação de futuras medidas legislativas

comunitárias. De qualquer modo o poder dos lóbis

deste sector da economia é muito poderoso, e por

este motivo não deixarão de utilizar todas as espécies

de argumentos para travar e adiar medidas

legislativas.

Os movimentos destinados a salientarem os efeitos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

323

benéficos das bebidas alcoólicas tem-se multiplicado

a um ritmo tal que não deverá haver alguém que não

“saiba” qualquer coisita sobre esta matéria. A

matéria é tão aliciante que já foi anunciado o efeito

positivo da cerveja na osteoporose, além do clássico

“tinto” nas doenças cardiovasculares. São alguns

exemplos que têm tido honras de primeira página e

dos noticiários televisivos. E como é raro o dia em

que não surgem novas “descobertas”, já se começa a

falar do resveratrol, substância que reduz de uma

forma intensa as complicações pulmonares

resultantes do efeito do tabaco, além de ser capaz de

prolongar a vida, pelo menos em animais de

experiência. Não tarda que passemos a ouvir também

o papel protector do vinho no “cancro” e no prolongar

da vida!

A polémica criada ao redor da taxa de alcoolemia está

ainda presente. O XIV Governo Constitucional baixou

a taxa máxima para 0,2 g/l, facto que originou

contestações a vários níveis. Foram ouvidos peritos

que argumentavam que a cifra proposta era a mais

adequada, face à elevada sinistralidade rodoviária

que caracterizava e continua a caracterizar o nosso

país. De facto, a medida tinha objectivos bem

definidos. No entanto os opositores a tal medida

Page 324: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

324

argumentavam que muitos países mantinham a taxa

de alcoolemia de 0,5 g/l e tinham taxas de

sinistralidade inferiores à nossa, que a medida iria

provocar colapso económico dos produtores de vinho

com impacto significativo na economia nacional, para

não falar de alguns que chegaram a afirmar que “ o

cozido à portuguesa sem o vinhito não seria o

mesmo”! Contra-argumentaram que os valores até

aquele limite não provocavam quaisquer alterações

do comportamento. Quanto aos efeitos na

sinistralidade rodoviária os representantes do lóbi do

álcool adicionaram mais argumentos do género: a)

Muitos dos sinistrados não apresentavam álcool no

sangue; b Os acidentes se deviam ao mau estado das

estradas e/ou das viaturas; c) A falta de civismo era

o factor mais importante (e realmente até é). Foram

tantos os argumentos e as pressões públicas que

levou à suspensão temporária da lei, até que foi

"restaurado" o limite anterior, na IX legislatura.

Um dos argumentos mais esgrimidos estribava-se no

facto de que, até 0,5g/l de álcool no sangue, não

ocorriam quaisquer alterações neurológicas que

pudessem por em causa a segurança rodoviária. Não

deixou de ser curioso que a grande maioria provava

inclusive com a sua experiência diária (subjectivismo

Page 325: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

325

susceptível de erros grosseiros)!.

Em França o Ministro do Interior Francês, Nicolas

Sarkozy desenvolveu esforços no reforço das medidas

legais de condução sob o efeito do álcool. Daqui

resultou um conjunto de consequências conhecidas

pelo “Efeito Sarkozy”. O movimento de contestação

foi muito forte, porque a indústria francesa do vinho

sofreu graves dificuldades, não obstante os generosos

subsídios atribuídos, houve uma quebra de 10% na

exportação e uma quebra nas vendas internas na

ordem dos 5%.

A ciência fornece constantemente novos elementos

que podem influenciar as decisões políticas. Num

número recente da revista Science, foi publicado um

trabalho interessante de Richard Ridderinkhof da

Universidade de Amesterdão. Este autor provou que

uma zona particular do cérebro, responsável pela

monitorização de um processo de reconhecimento de

sinais de erro, sofre importantes alterações, mesmo

com doses moderadas de álcool (abaixo dos limites

aceites em muitos países, o nosso incluído). Como no

decurso da condução estamos constantemente a

corrigir erros, é fácil compreender as eventuais

consequências. Sendo assim, o álcool interfere com

um componente crítico do controlo cognitivo, o qual

Page 326: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

326

pode explicar, porque é que as pessoas sob o efeito

da influência do álcool não conseguem (nem

admitem!) reconhecer a má performance e persistem

nesta posição. Perante estes novos dados (e estudos

subsequentes) é de prever que, mais tarde ou mais

cedo (naturalmente mais tarde, por motivos

óbvios...), a taxa de alcoolemia irá sofrer uma

redução.

Convinha sensibilizar todos os agentes com interesses

neste sector (nomeadamente produtores e

consumidores de álcool) a adaptarem-se a uma nova

realidade. Isto de andar na estrada, sobretudo em

Portugal, é um perigo real de morte. O civismo não é

passível de decreto, mas a taxa de alcoolemia é.

De acordo com World Drink Trends, os maiores

produtores mundiais são os seguintes por ordem

decrescente: França, Itália, Espanha e Portugal.

A nível mundial o consumo médio de álcool oscila ao

redor dos 3,8 litros per capita, enquanto na Europa

sobe para os 9,3 litros. No caso do nosso pais sobe

ainda mais, para os 10,6 litros.

De acordo com World Health Report o consumo de

álcool é responsabilizado por cerca de 4% da

morbilidade global, 3,2% nos países desenvolvidos e

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

327

por 9,2% dos DALY (anos de vida ajustados à

incapacidade)

“BINGE DRINKING”

Ultimamente tem sido referenciado um determinado

tipo de comportamento designado por “binge

drinking”. Este termo significa ingestão excessiva ou

imoderada de bebidas alcoólicas com o objectivo de

obter um efeito de intoxicação etílica imediata. Sob o

ponto de vista psiquiátrico o “binge drinking” é

entendido com uma forma de ingerir bebidas de

forma prolongada descurando totalmente quaisquer

outras actividades pelo menos durante dois ou tês

dias. Muitas destas pessoas comportam-se

normalmente em termos de consumo moderado de

álcool durante alguns meses e, de repente, bebem

que nem uns desalmados, descurando actividades

pessoais, profissionais e familiares. Em termos

populares “binge drinking” é considerado como uma

simples sessão de procura, o mais rapidamente

possível, do estado de intoxicação alcoólica.

Há quem pretenda estabelecer pontos de corte para

definir este comportamento. Do outro lado do oceano,

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Salvador Massano Cardoso

328

nos EUA, a ingestão de cinco bebidas uma atrás de

outra nos rapazes e quatro nas raparigas é

considerado como “binge drinking”. Há problemas

com o teor de álcool das mesmas, que varia de pais

para pais. Este conceito tem sido rebatido, devido ao

facto de uma pessoa poder ser considerada como

tendo um comportamento deste tipo, no decurso de

alcoolismo –

Quando uma pessoa começa a beber álcool não sente

necessidade do mesmo para se sentir bem. Com o

tempo as coisas podem mudar.

O etanol é um poderoso químico que sendo

ligeiramente tóxico estimula a libertação no cérebro

de grandes quantidades de dopamina. A dopamina

está associada a sensações de bem-estar e de prazer.

O cérebro “gosta” destas sensações e, com o tempo,

acaba por exigir a ingestão de mais álcool.

O uso frequente de álcool pode levar à depleção

cerebral de dopamina. Se a dopamina diminui a

“ordem” é para ingerir quantidades cada vez maiores

de álcool. A redução de dopamina origina sensação da

mal-estar, irritação, infelicidade, irritabilidade.

A rapidez com que um individuo se torna alcoólico

varia de pessoa para pessoa, com a idade e o sexo.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

329

Um adulto demora cerca de quatro ano ao alcoolizar-

se, ao passo que um adolescente pode demorar

apenas um ano.

Razões para a rapidez da alcoolização nos jovens:

flutuação hormonal, dimensões corporais inferiores,

células cerebrais mais sensíveis aos efeitos do álcool.

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Salvador Massano Cardoso

330

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

331

"FAZ MAL, MAS SABE BEM"

Atitude hedonista

O homem é um animal muito especial. O facto de ter

consciência da sua existência determina que sofra de

ansiedade permanente face ao seu futuro, o qual,

inexoravelmente, termina na morte. Assim, a sua

pequenez e fragilidade é vital para compreender as

atitudes hedonistas que desde sempre procurou e que

continua a cultivar nas mais variadas formas.

Parafraseando um escritor francês, cujo nome já não

consigo recordar, “o homem é o único animal que

bebe sem ter sede, come sem ter fome e faz amor

em todas as estações”.

Ora aqui estão três coisas que sabem bem, mas

podem fazer mal.

De todas as actividades humanas há duas que são

vitais: a alimentação e o sexo. E, podemos mesmo

hierarquizar, afirmando que em primeiro lugar está a

alimentação – garantir a sobrevivência individual –

seguida pela actividade sexual, ou seja, garantir a

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Salvador Massano Cardoso

332

perpetuação da espécie. Aliás, é muito difícil a última

prática com fome, como é evidente.

A procura dos alimentos, numa primeira fase da

nossa existência, não foi nada fácil e presumo que os

nossos antepassados não estariam muito

preocupados com questões de natureza

gastronómica. Ninguém consegue imaginar um

australopiteco, um Homo erectus, ou um sapiens

troglodita a escolher os alimentos mais saborosos.

Comiam o que havia e, mesmo assim, é muito pouco

provável que sofressem de graves carências

nutricionais.

A primeira grande revolução, a do fogo, permitiu uma

melhor utilização dos alimentos tornando-os mais

digestíveis e decerto mais saborosos. Quem sabe se

os primeiros efeitos de substâncias cancerígenas não

terão ocorrido nestes períodos. Carne mais saborosa,

acompanhada de carcinogénios.

Aqui está um belo exemplo da proposta que me foi

colocada “Sabe bem, mas faz mal”. Ainda hoje

mantêm a sua actualidade. O uso não correcto do

fogo pode originar benzopirenos. Cuidado com os

grelhados e a carbonização dos peixes, das febras e

churrascos.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

333

Sendo o cancro uma das principais causas de

mortalidade e de morbilidade e que resulta de uma

interacção entre os genes e o meio ambiente,

podemos afirmar que em 90% é da responsabilidade

ambiental e neste caso a alimentação é um dos

principais factores.

A formação de compostos dotados de actividade

carcinogénica ocorre em muitas outras situações. É o

caso dos nitritos adicionados intencionalmente aos

alimentos ou produzidos por bactérias nitrificantes, os

quais estão na base das nitrosaminas.

Já que falamos de presuntos, não podemos esquecer

os efeitos das fumagens, extensíveis aos enchidos

que são, confesso, uma das minhas perdições e que

contêm substâncias perigosas para a saúde. Julgo

que muitos ainda se recordarão dos velhos presuntos

conservados em salmoura. O teor de sal e também de

nitrosaminas deveriam ser monstruosos susceptíveis

de provocarem ou facilitarem o desencadeamento de

cancros e de hipertensão arterial, mas, mesmo assim,

não esquecemos, facilmente, os seus estranhos

sabores. Não podemos esquecer que a memória

proustiana é das mais poderosas.

Falemos de sal, o elemento que foi considerado como

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Salvador Massano Cardoso

334

sinónimo de vida, e com toda a razão. Hoje, está

diabolizado e compreende-se por quê. Apesar de

algumas controvérsias, estão bem definidas as

consequências. Citamos a hipertensão que, entre nós,

atinge, ainda, valores muito exagerados,

ultrapassando as 12 g/dia e, nalguns casos em muito.

São inúmeros os alimentos ricos em sal. Na nossa

época os alimentos pré confeccionados são muito

apelativos e saborosos, mas contêm teores de sódio

muito elevados. Utilizados para conservar e dar-lhes

o tal sabor, são responsáveis, em grande parte, pela

hipertensão e, consequentemente, por muitos

acidentes cardiovasculares, nomeadamente acidentes

vasculares cerebrais. Já falamos do presunto das

salgadeiras, mas a panóplia é tão extensa que nem

as pipocas se safam.

Sabem bem, mas fazem mal. Se fosse possível

reduzir em apenas 10% o teor de sal nestes tipos de

alimentos poderíamos observar uma diminuição

substancial da morbilidade e mortalidade

cardiovascular. São necessárias medidas de carácter

político que auxiliem a luta contra a hipertensão.

Passam, nomeadamente, pela redução nos alimentos,

sobretudo os pré-confeccionados, assim como a

rotulagem dos mesmos. Hoje em dia, os portugueses

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

335

têm conhecimentos e apetência para modificarem os

seus hábitos, conforme tivemos, recentemente,

oportunidade de verificar através de um inquérito.

As conquistas observadas nas últimas décadas

permitiram produzir e conservar alimentos em

quantidade e em qualidade. No mundo ocidental é

muito difícil passar fome. Foi sobretudo, a partir das

últimas décadas que o acesso aos diferentes produtos

alimentares se liberalizou e democratizou. Basta ver a

prevalência de pessoas com excesso de peso e

obesas para concluirmos que não falta apetite aos

nossos concidadãos, os quais, habitualmente,

procuram dentro do mercado aqueles que são mais

saborosos e, muitas vezes também os mais

energéticos.

Uma boa conversa, uma comemoração, uma festa,

constituem motivos para circundarem mesas bem

recheadas de coisas boas, mas que poderão

eventualmente fazer mal.

O conceito de fazer mal é relativo e depende, entre

outros aspectos, das características fisiológicas dos

indivíduos e da abundância com que são ingeridos e

sua frequência. Paracelso, afirmou que a diferença

entre medicamento e veneno é apenas uma questão

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Salvador Massano Cardoso

336

de dosagem. Ora, no que toca aos alimentos

podemos e devemos aceitar esta máxima. As

sardinhas não fazem mal, mas as sardinhadas sim, é

um exemplo.

As ditas “junk food” constituem um dos grupos de

alimentos mais problemáticos, susceptíveis de causar

situações desagradáveis para os seus habituais

consumidores. A tal ponto que, nos E.U.A., se pense

já começar com esquemas semelhantes ao observado

com o tabaco. Começam a aparecer processos

judiciais tipo Big Tobacco, agora na versão Big Fat,

responsabilizando as companhias pelas múltiplas

afecções e desvios metabólicos. É discutível, dirão

alguns, as atitudes dessas pessoas. Só come “junk

food” quem quer. Na prática, não é bem assim. Além

da publicidade aos produtos em causa, sabe-se que

devido à sua composição provocam modificações a

nível cerebral originando como que uma verdadeira

dependência. A satisfação é rápida e

simultaneamente fonte de prazer. De tal modo que

permite a ingestão de mais produtos ao fim de algum

tempo, contribuindo para um excessivo aporte

energético e desvio metabólico.

O álcool sabe bem. Tanto é assim que após a sua

descoberta, muito provavelmente acidental, o homem

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

337

nunca mais o largou. Hoje está presente de uma

forma absorvente e constitui um laço para fazer

amizades, para a socialização, para efectuar

negócios, para as mais diversas comemorações.

Todos temos consciência da sua importância,

abrangência social e consequências nefastas. O álcool

é um dos principais paradigmas do “sabe bem, mas

faz mal”. Faz mal, apenas quando não se respeita

certas regras e princípios. A publicidade que

ultimamente tem rodeado as bebidas alcoólicas,

relativamente ao seu papel protector, nomeadamente

cardiovascular, não tem sido devidamente

acautelado, até porque o consumo, ainda que

moderado pode ser perigoso, para as crianças

durante o seu desenvolvimento fetal, ou para a

própria mulher como co-responsável pelo

aparecimento da neoplasia da mama. Não sei se as

confrarias ligadas aos vinhos, às cervejas ou

quaisquer outras bebidas também publicitam estes

aspectos. Lá que apelam aos consumos moderados é

um facto.

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Salvador Massano Cardoso

338

Tabaco

Seria uma estultícia falar para tão credenciada

audiência sobre os malefícios do tabaco. O problema

assenta nas consequências individuais e sociais. As

medidas destinadas a evitar este flagelo tem sido

amplamente divulgadas e alvo de comentários,

críticas e de medidas legislativas.

Quando se começa a fumar, o que sentimos – eu

também já fumei – é um terrível e estúpido mal-

estar. Só a partir do momento em que ficamos

dependentes é que começamos a sentir o prazer.

Pudera. Estamos dependentes!

As medidas de carácter legislativo, proibindo o seu

consumo em locais específicos, são bem-vindas e têm

dado bons resultados. Mas, há sempre um mas, e

neste caso, pode, eufemisticamente falando, fazer

mal. Não a sua proibição, mas o que lhe pode estar

associado. A melhor forma de traduzir este conceito é

através de um caso concreto. O caso de Harry Eiflick.

Em 17 de Agosto de 1993 um homem a quem foi

recusado efectuar testes para a realização de um

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

339

bypass cardíaco morreu, vítima de enfarte. A recusa

baseou-se no facto de ser fumador. Só lhe faziam os

exames se deixasse de fumar. Perante esta exigência

acabou por abandonar o vício o que permitiu ao seu

médico marcar para o dia 19 de Agosto a realização

dos testes. Tarde demais.

O caso de Harry Elphick desencadeou um vivo debate

no Reino Unido. Até que ponto os médicos podem

tomar atitudes destas? A exigência do clínico baseou-

se em conceitos moralistas e não em critérios

médicos. É certo que o tabaco é um importante factor

de risco cardiovascular e não só. É certo que muitas

pessoas precisam de cuidados terapêuticos. É certo

que os custos com os cuidados de saúde aumentam

de forma exponencial. Mas não é correcto cercear

cuidados com base em princípios que violem os

direitos dos seres humanos.

Ao fim de mais de uma década, as autoridades de

saúde britânicas propõem que não sejam ministrados

tratamentos médicos aos doentes que recusem

modificar os seus estilos de vida não saudáveis.

Assim, se um fumador recusar abandonar os seus

hábitos, é-lhe vedada a cirurgia cardíaca, a menos

que faça uma promessa nesse sentido.

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Salvador Massano Cardoso

340

A moralização da medicina é um perigo real. Um dia

poderá acontecer que uma pessoa não tenha acesso

ao tratamento, porque, no entender do médico (?)

moralista, bebe álcool, fuma, não tomou os

respectivos cuidados nas suas relações sexuais, não

usava o capacete de protecção no local de trabalho,

continua a praticar exercícios violentos (já é a

segunda vez que parte a perna a fazer esqui!),

continua a ser um desbragado à mesa, passa a maior

parte do tempo sentado face ao televisor (já tinha

sido avisado de que tinha que exercitar o corpito). Se

os “doentes-desviantes” encontrarem um médico

“pecador”, talvez tenham sorte, senão…

Combater estilos de vida não saudáveis é uma

obrigação dos responsáveis. Proibi-los ou tomar

atitudes discriminatórias é um erro e um sério perigo.

O melhor é alterar aquele princípio de que ninguém

deverá ser discriminado em função da raça, sexo,

idade, religião, estado socioeconómico,

acrescentando-lhe: ”nem em função dos seus vícios

públicos ou privados”. Se este último aspecto tivesse

sido tomado em linha de conta talvez Harry Elphick

não tivesse falecido aos 47 anos de idade.

Page 341: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

341

"Chocolate, Alimento ou medicamento?"…

O chocolate foi considerado como um dos alimentos

dos deuses e apenas os soldados de Montezuma

tinham o direito a usá-lo. Foi fácil para os

conquistadores da América identificar este alimento e

divulgá-lo pelo velho continente. Hoje, o seu consumo

está amplamente divulgado, constituindo um símbolo

de prazer, de festa e alegria. Contém várias

substâncias cujos efeitos são relativamente bem

conhecidos, a par do seu elevado valor energético. O

seu abuso origina quadros de “chocolatismo”, por

vezes bastante graves. É fácil de compreender que o

consumo excessivo é perigoso para a saúde das

pessoas. Mas, hoje em dia, começa a ser objecto de

alguns estudos com forte impacto nos hábitos das

pessoas legitimando ou apelando a um consumo

crescente. O fenómeno não é novo.

Recentemente, verificou-se que um dos constituintes

do chocolate, a teobromina, tinha um efeito

antitússico superior à codeína e sem os efeitos

secundários desta última. Outros apontam para o

facto de os bebés de mulheres que consumiram

chocolate durante a gravidez serem mais "felizes".

Outros estudos chegam a apontar para efeitos

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Salvador Massano Cardoso

342

protectores cardiovasculares e até antihipertensores

devido à elevada taxa de flavonóides. Neste último

caso, quando mais negro for o chocolate melhor o

efeito. Mais recentemente constatou-se que as

mulheres que comem chocolate, diariamente,

apresentam níveis superiores de desejo sexual.

Perante estes dados, efeito estimulante da libido, o

chocolate nem devia ser considerado como alimento

mas mais como uma droga ou medicamento. A par

deste efeito, não deixa de ser curioso o facto dos

produtores de cigarros, com o objectivo de atraírem

novos consumidores, ensaiarem cigarros com "sabor"

a chocolate (e até a vinho!).

A divulgação pública, e a forma como fazem (quem

sabe se a comando dos produtores!), pode originar

novos comportamentos além de legitimar outros já

consolidados. Sofre de doença cardiovascular, ou

quer fazer prevenção? Coma uma tablete de

chocolate (mas só tinto… ou melhor só do negro e

amargo) de 45 gramas todos os dias e não se

esqueça do seu tinto! Fuma? Tem tosse? Coma

chocolate e procure aderir aos cigarros chocolatados!

O tabaco faz mal ao coração? Inibe o desejo sexual?

Coma chocolate! Está grávida? Quer que o seu filho

seja mais feliz? Coma chocolate!

Page 343: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

343

Se as coisas continuarem nesta senda ainda corremos

o risco de ao entrarmos numa farmácia encontrarmos

expositores dos mais diversos e ricos tipos de

chocolate. O problema é saber se deveremos optar

pelos de marca ou os genéricos. Os “chocolatólicos e

as chocolatólicas até veriam com muito agrado uma

eventual comparticipação pelo Serviço Nacional de

Saúde na compra da sua tablete diária…

Vigorexia e ortorexia

Actualmente somos confrontados com vários

movimentos destinados a catequizar as pessoas na

aquisição de estilos de vida saudáveis.

Aparentemente nada a opor, até pelo contrário, são

bem-vindos. Só que na prática podem originar

reacções por vezes negativas, já que existem pessoas

mais susceptíveis do que outras, acabando por

adquirir comportamentos, aparentemente, saudáveis,

mas podendo ser fonte de doenças.

A vigorexia, também conhecida por sindroma de

Adónis, é fruto de um estilo de vida, caracterizada

por excesso de treinos, acompanhada de stress,

perturbação do sono, falta de apetite, cansaço, perda

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Salvador Massano Cardoso

344

de memória, irritabilidade, desinteresse sexual, só

para citar alguns sintomas. Paradoxalmente, a

procura da beleza e de uma melhor performance

física até tem rebates nos aspectos físicos e estéticos.

Se a estes factos, juntarmos o uso e abuso de

esteróides e anabolizantes, é fácil de compreender

que o risco de doenças hepáticas, cardiovasculares e

disfunções sexuais sejam mais frequentes. Claro que

as academias de ginástica alimentam-se de

verdadeiros candidatos a patologias narcisistas. A par

da vigorexia surge uma nova afecção designada por

ortorexia (apetite correcto). Afinal em que consiste

esta nova entidade? Face aos apelos das dietas ditas

naturais, algumas pessoas passam grande parte do

tempo a planear, a comprar e a confeccionar dietas

“esquisitas” de forma a consumirem apenas o que é

mais saudável, além de evitarem cair em tentações.

Claro que uma boa feijoada, um cozido, uma

caldeirada ou um bom prato de chanfana é uma

tentação, mas uma tentação deveras agradável.

As causas destas situações são complexas e os

atingidos enquadram-se já no foro da patologia. O

que é certo é que para além de uma eventual

susceptibilidade individual, o apelo constante às

práticas naturais e a uma boa performance física

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

345

podem levar alguns a sofrer de vigorexia e de

ortorexia.

No âmbito da vida social e política detectamos

comportamentos semelhantes à síndroma de Adónis e

à ortorexia, mas é provável que com o tempo

venham a perder o vigor e a ortodoxia “dietética”,

aproximando-se da desejada normalidade…

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Salvador Massano Cardoso

346

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

347

“BIOÉTICA, REFLEXÕES A PROPÓSITO”

Apresentação do livro de Ramon La Feria

Coimbra, 27 de Abril de 2007

Minhas senhoras e meus senhores

Quando o meu colega Ramon La Feria me pediu para

fazer a apresentação do seu livro, “Bioética,

reflexões a propósito”, disse logo que sim, mas

sem uma certa apreensão. As razões são várias:

apresentar uma obra não é tarefa fácil, exige

preparação, muita reflexão e, sobretudo, capacidades

que permitem não trair ou diminuir o esforço do

autor. Além do mais, e apesar de estar habituado a

dar aulas e a fazer conferências, sinto uma certa

timidez expor, a tão selecta audiência, as minhas

apreciações.

Curiosamente é a terceira vez que faço a

apresentação de uma obra, donde poderem concluir

que não tenho um grande currículo nestas matérias.

Os autores das obras são todos médicos. Na primeira

vez apresentei um livro de contos em que a

personalidade do autor estava presente de uma

forma muito especial em muitas das linhas, e

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Salvador Massano Cardoso

348

entrelinhas, encantadoras das narrativas. O facto de

conhecer a sua personalidade desde os bancos da

universidade permitiu-me sorrir e relembrar muitos

episódios vividos conjuntamente. Um leitor

privilegiado, portanto. Claro que tive que o

“desmascarar” perante a vastíssima audiência de

então. Acredito que tenham agradecido, e até o

próprio autor, conhecer a faceta do “eterno

malandro” que sabe transmitir humanidade e aceitar

a humildade.

A segunda vez foi mais complexa. O autor elaborou

uma verdadeira história, análise descritiva e ensaio

critico sobre os sistemas de saúde em Portugal. De

uma forma exaustiva conseguiu compilar

documentos, analisá-los e interpretá-los, contribuindo

de uma forma louvável, para quem queira conhecer

mais aprofundadamente tão importantes fenómenos

da nossa vida colectiva. Comunguei muito das suas

observações e expectativas e discordei de outras, até

porque pertencemos, naturalmente, a quadrantes

ideológicos diferentes, mas comungamos dos mesmos

problemas sociais. Temi pela apresentação, aprendi

com a mesma e penso ter sido esclarecedor, perante

uma obra politica e social.

Hoje, a obra que vou apresentar não é um conto, não

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

349

é uma história politica da saúde em Portugal, é uma

obra sobre bioética. Mas todas têm algo em comum,

além dos autores serem médicos, são verdadeiros

manifestos de cidadania e de muito respeito pelos

seres humanos. Expressões de profundo e sentido

humanismo, quase que diria comovente, porque

traduzem uma necessidade em respeitar e dignificar

valores e princípios. Para os leitores, estas obras são

fonte de prazer, de reflexão e de aprendizagem para

que o mundo se torne melhor. Acredito que todos,

sem excepção, somos capazes de mudar, dentro das

nossas esferas de acção, o mundo, o mundo brutal,

desumano e injusto.

Ao apresentar a obra de Ramon de La Feria estou a

dar um contributo nesse sentido e, ao mesmo tempo,

enriquecer-me com as suas notas, observações e

ensaios. Para já quero agradecer-lhe o facto de, ao

ler a sua obra, ter aprendido muitas coisas. Sinto que

fiquei mais rico em termos de ética, naturalmente,

mas também como homem. Afinal é isso que temos

de fazer, ensinar e aprender uns com outros.

Nascemos no mesmo ano, embora seja dois meses

mais velho, e licenciamo-nos em medicina também

no mesmo ano, embora em cidades diferentes.

Conhecemo-nos há pouco tempo, mas na prática é

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Salvador Massano Cardoso

350

como se tivéssemos sido amigos desde sempre. Há

amizades pré estabelecidas à espera do momento

para se poderem concretizar.

O prefácio do seu livro é assinado por um grande

cirurgião, Fernandes e Fernandes, que, melhor do que

ninguém, consegue descrever a vida e o significado

da cirurgia nas suas múltiplas facetas, dramas,

vitórias e expectativas, além dos problemas éticos e

da dimensão humana desta tão importante área da

medicina.

O auto-retrato personalista do autor está descrito de

forma invulgar na introdução. Ao desnudar-se revela

a sua personalidade e os valores que o norteiam.

Claro que teve a felicidade de ser educado num

ambiente rico, em termos culturais e humanísticos.

Não o desperdiçou, antes pelo contrário, bebeu muito

e interiorizou valores e condutas que fazem com que

hoje seja respeitado e admirado pelos seu pares, e

não só. O seu sentido humanista, já revelado no

liceu, acabou mais tarde, não obstante as exigências

de cirurgião, por ser determinante para frequentar o

primeiro curso de mestrado em bioética da Faculdade

de Medicina de Lisboa.

Antes de entrarmos na obra propriamente dita, não

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

351

queria deixar de comentar a capa. A capa é bela.

Trata-se da chegada de Ulisses ao palácio de Alcinoo.

Mas qual o seu significado, o porquê da sua escolha?

O autor não se pronuncia, mas obriga-nos a reflectir

e procurar na Odisseia de Homero o seu simbolismo.

O canto VII descreve a entrada de Odisseu no palácio

de Alcínoo. Atena, disfarçada de garota, informa-o

onde procurar ajuda para regressar à sua Pátria.

No fundo, ao seleccionar a figura de Odisseu ou

Ulisses, o autor pretende, com toda a certeza, dizer

que o ser humano está em contínua transformação e

de que há forças misteriosas que podem ajudar a

vencer as barreiras e os perigos, mesmo aqueles que

consideramos intransponíveis e que a “nossa

aparência, a maneira como nos vêem ou nos vemos a

nós próprios, é subjectiva, transforma-nos conforme

o olhar que sobre nós incide”. Esta última análise não

é minha, mas de um especialista na interpretação da

Odisseia, Frederico Lourenço. Mas como conheço o

autor da obra que estou a apresentar, julgo poder

interpretar a sua escolha que está de acordo com o

conteúdo da sua obra.

A sua obra está dividida em onze curtos capítulos, de

leitura muito agradável, em que é possível analisar os

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Salvador Massano Cardoso

352

dilemas éticos que, na prática, se colocam a quem

tem de tomar decisões tão importantes. Apraz-me

registar o primeiro capítulo com três dilemas que o

autor teve que resolver. Constituem, muito

provavelmente, alguns dos muitos casos que lhe

passaram pelas mãos. De forma simples, elegante, e

sobretudo pedagógica, permite aos estudiosos e, na

minha perspectiva, aos candidatos a médicos saber

quão difícil é a vida de um médico. Noutros capítulos

discorre com sobriedade e muita profundidade sobre

matérias e assuntos a que eu chamo os contornos

indefinidos da bioética, porque quando ao núcleo da

mesma, denso e consolidado, ninguém põe em causa,

havendo uma quase generalizada unanimidade.

Os conflitos da bioética nascem e reproduzem-se com

os avanços científicos e tecnológicos que, nos nossos

dias, ao explodirem a torto e a direito, provocam-nos

ansiedade e incerteza. Claro que para alguns,

dogmaticamente, as questões são facilmente

resolvidas, basta negar o direito e o acesso às novas

descobertas, aspirações ou desejos. Atitude básica

capaz de aliviar qualquer ansiedade. Mas não é assim

que se resolvem os desafios bioéticos. Se assim

fosse, muito daquilo que hoje consideramos como

normal, desejável, eticamente aceitável, nunca o

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

353

teria sido, privando a humanidade de belas

conquistas. Mas, também sabemos que não podemos

aceitar tudo o que nos parece ser uma solução. É

preciso encontrar consensos e, sobretudo, evitar cair

numa excessiva e desumana instrumentalização dos

seres humanos. O autor tem consciência desse facto

e, por esse motivo, aborda muitos fenómenos que

continuam a desafiar a bioética. Fá-lo de uma forma,

repito, objectiva, pedagógica e com profundo sentido

de querer contribuir para o progresso científico,

técnico e humanístico. Estamos perante uma

personalidade que, por força das condições, e opções,

é obrigado a manipular a vida, a enfrentar a morte e

a procurar a esperança, consequentemente, ir de

encontro aos desejos e aspirações dos seres

humanos.

Um pequeno livro e, simultaneamente, uma grande

lição, capaz de contribuir para o despertar do sentido

bioético, mas, também, por dar um contributo para o

engrandecimento ético que, nas nossas sociedades,

parece querer esboroar-se, documentado por tantos

comportamentos e outras tantas atitudes menos

dignas, quase que diria impróprios da condição

humana.

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Salvador Massano Cardoso

354

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

355

APRESENTAÇÃO DO LIVRO “A SAÚDE, AS

POLÍTICAS E O NEOLIBERALISMO”

O Mário Jorge surpreendeu-me com o convite para

apresentar o seu livro “A Saúde, as Políticas e o

Neoliberalismo”. A minha primeira reacção foi porquê

eu? É que atendendo à sua personalidade e

trajectória não fazia muito sentido. A única razão que

eu encontrei foi o facto de sermos amigos há muitos

anos. Considero a amizade razão mais do que

suficiente para aceitar qualquer incumbência e por

este motivo nem o questionei, se bem que fiquei um

pouco preocupado atendendo ao perfil e conteúdo da

obra. Estar a apresentar algo da abrangência deste

calibre não é tarefa fácil, e exigiria, a meu ver,

pessoa muito mais qualificada para lhe dar o realce

merecido. De qualquer modo não me furto à tarefa e

procederei de acordo com uma perspectiva mais de

aprendiz do que de mestre. Sendo assim interpretarei

de baixo para cima com a humildade suficiente para

dizer que aprendi muito com a sua leitura e

interpretação. Os críticos, os mais entendidos nestas

matérias terão oportunidade de o discutir em

profundidade e com o detalhe necessário. Como

utilizador limitar-me-ei a transmitir as minhas

impressões.

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Salvador Massano Cardoso

356

Mas antes de entrar propriamente na obra não queria

deixar de exprimir algumas palavras a propósito do

autor. Faço-o não só pelo respeito que me merece

mas porque é indispensável para a compreensão da

sua obra.

É muito fácil realçar as virtudes de qualquer um ou

enfatizar à exaustão as suas qualidades. Fica bem,

sobretudo numa sessão desta natureza. Ninguém

estará à espera de algo em contrário, como é óbvio.

O que eu queria dizer é o seguinte: o Mário Jorge tem

uma forma de estar e de ser verdadeiramente

surpreendentes. Frontal, determinado e sobretudo

muito educado. Crente das suas convicções, com uma

intervenção cívica bem conhecida, lutador leal,

energético, dotado de uma capacidade argumentativa

e dialéctica interessantes, apresenta a particularidade

rara de atacar os seus adversários ou manifestar as

suas opiniões de uma forma objectiva sem

tergiversações e que não conseguem serem

entendidas como ofensas. Ou seja atitudes

semelhantes na boca de uma outra pessoa seriam

interpretadas à luz de sentimentos negativos. Esta

rara particularidade de alguém que diz o que pensa

traduz, inexoravelmente, a meu ver, a sua forma

sincera de ver o mundo. Não é homem para pensar

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

357

uma coisa e dizer outra e quando diz, diz mesmo, não

usa metáforas ou envereda por discursos sinuosos,

vai directamente à questão e já está. De facto se

lermos com atenção a sua obra, verificamos que esta

característica está presente dizendo o que pensa das

atitudes e decisões de muitos, sobretudo da área

política, desenhando nas folhas o que chapava na

cara dos responsáveis.

É verdade, podemos dizer tudo o que pensamos dos

outros, mas é preciso saber dizer as coisas. Nem

todos conseguem atingir este estádio elevado. O

Mário Jorge sabe dizê-las e, quantas vezes, ao ler o

livro não concordando com a sua análise e

interpretações, não senti qualquer animosidade ou

desconforto, antes pelo contrário. É curioso uma

pessoa não concordar com o autor e ao mesmo

tempo sentir respeito e até ternura. É curioso

mesmo. Só consigo compreender esta situação

através da sua personalidade de homem que quer

verdadeiramente mudar o mundo, mudando-o ao

alcance do seu verbo e actuação cívica, acreditando

que vale a pena fazê-lo. Por estes motivos é uma

satisfação e honra tê-lo como amigo.

A obra do Mário Jorge envolve várias facetas: um

Mário Jorge historiador, um Mário Jorge cronista, um

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Salvador Massano Cardoso

358

Mário Jorge ensaísta, um Mário Jorge político, um

Mário Jorge crítico e acima de tudo um Mário Jorge

humanista.

Começa por descrever alguns aspectos históricos da

saúde em Portugal que considero muito

interessantes. Focando a atenção no reinado de D.

João II podemos afirmar que já havia preocupação

em fiscalizar os numerosos estabelecimentos de

caridade os quais tinham a responsabilidade de cuidar

e tratar dos enfermos. O mesmo monarca procedeu a

reformas estruturais no sentido de reunir os hospitais

pequenos aos de maior dimensão. Reformar e

fiscalizar não são preocupações de hoje, perdem-se

na noite dos tempos, o que significa que estamos

uma área em permanente evolução e ebulição.

A nossa história, rica e pioneira em muitas acções,

leva-nos a pensar por que razão ainda não fomos

capazes de solucionar os problemas da saúde. Talvez

por uma razão muito simples: não são solucionáveis.

Os problemas avolumam-se, mudam de roupagem e

gerem novas preocupações, factos que nos obrigam a

responder da forma mais adequada em cada

momento. Acontece que a visão do mundo varia de

individuo para indivíduo e está sujeita a ideologias e a

filosofias. As ideias entram em confronto com muita

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

359

facilidade o que é bom. Melhor, é indispensável à

própria sobrevivência comunitária. Sendo um

fervoroso adepto da biodiversidade biológica e

cultural, também não podia deixar de o ser no

tocante às diferentes opiniões políticas.

Neste capítulo que considero muito rico e de grande

impacto para todos, mas sobretudo para os mais

jovens em fase de aprendizagem, podemos verificar

como é possível ter ocorrido tanta mudança no

decurso da nossa existência quer individual quer

profissional. Ao ler comecei a recordar muitos

acontecimentos. A descrição e análise dos factos

permitem considerar a obra como um documento

ímpar, onde, de uma forma simples, objectiva e

elegante, conseguimos identificar todo um percurso e

movimentos históricos que corriam o risco de se

perderem ou de caírem num esquecimento

susceptível de enviesar, no futuro, a realidade do

nosso passado mais recente.

As modificações operadas com o 25 de Abril estão

bem patenteadas permitindo-nos seguir toda a

trajectória da construção do S.N.S., os movimentos

sindicais, a criação do Ministério da Saúde as atitudes

e decisões dos diferentes ministros nos diferentes

governos, as reacções às mesmas, denotando a

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Salvador Massano Cardoso

360

natural efervescência desta importante reacção

química revolucionária que antecedeu o equilíbrio

social. Em pouco tempo podemos ver quão dinâmica

e activa foi a intervenção na área da saúde.

Aparentemente parece que nada muda ou se muda é

muito lentamente. Mas não é o caso. Há uma vida

pujante por parte dos interessados, médicos, não

médicos e outros profissionais da saúde que

contrariam esta afirmação. Assim, quem se debruçar

sobre este documento saberá entender o que acabei

de dizer.

De uma forma tipo crónica o autor descreve, analisa e

comenta os factos até ao início de 2004. A partir

desta data descreve os acontecimentos de uma forma

sucinta, transcrevendo as notícias publicadas nos

diferentes órgãos de comunicação social numa ordem

cronológica até Fevereiro de 2005, deixando ao

cuidado de cada um a interpretação e a interessante

sequência temporal dos acontecimentos observados

na área da saúde.

É preciso ter muito cuidado com aquilo que fazemos

ou dizemos, senão ainda nos arriscamos a serem

plasmadas as nossas opiniões numa qualquer obra

desta envergadura. De facto, em alguns destes

acontecimentos tive a oportunidade de estar,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

361

digamos por dentro. Mal sabia eu que uma dia ainda

teria de ver algumas posições transcritas. Afinal,

aquilo que dizemos ou fazemos é mesmo importante

e condiciona não só a nossa vida mas também as dos

outros.

Já agora, a título de exemplo, na página 162, o autor

transcreve a notícia do Jornal de Notícias de

10/11/2004 segundo a qual “Médicos do PSD criticam

actual política de Saúde”.

“Os médicos sociais-democratas levaram ao

congresso do PSD deste fim-de-semana uma moção

muito crítica à política do Governo na área da Saúde.”

“Os 39 subscritores da moção “salvar o Serviço

Nacional de Saúde”…

Ainda me lembro do momento da discussão e

assinatura da moção. Fui um deles. Partilho com o

autor, e muitos outros, que o S.N.S. constitui a pedra

fundamental do sistema de saúde do nosso país. -

Não é perfeito? Não! - Está ainda muito longe de

alcançar os seus objectivos? - Está! Mas, é sem

sombra de dúvida a base que mudou radicalmente a

nossa situação no panorama da saúde. Basta ver os

indicadores de saúde há algumas décadas e os

actuais para rapidamente testemunhar o efeito

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Salvador Massano Cardoso

362

positivo do mesmo. Qualquer tentativa para evitar a

sua destruição é bem-vinda, já que possui

intrinsecamente um valor único. Trata-se de um

sistema que garante a qualquer cidadão estar em pé

de igualdade face às situações que diminuem um ser

humano: a doença. Esta conquista é motivadora de

satisfação e de orgulho face à solidariedade e ao

respeito da dignidade humanas. Há necessidade de

garantir esta igualdade no tratamento e no acesso.

Assusta-me quaisquer medidas que possam causar

discriminação nesta área. Partilho, pois, como é

evidente, das preocupações do autor, as quais estão

bem patenteadas nos seus ensaios ao longo desta

obra. As preocupações com estas matérias tão

sensíveis não são propriedade de qualquer ideologia.

A postura e os princípios podem ser semelhantes em

todos os sectores do pensamento. E ainda bem que é

assim, já que denota a defesa de valores muito

profundos que não se confundem nem se esgotam

em quaisquer correntes ideológicas.

Todo o cidadão deverá ter os mesmos direitos na

doença e na saúde. Quaisquer tentativas de

hierarquização deverão ser contrariadas, até mesmo

dentro do próprio S.N.S.

A este propósito não posso deixar de contar uma

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

363

pequena história passada comigo. Como sabem, os

médicos são uns privilegiados em matéria de histórias

e acontecimentos.

Um dia, uma doente, no âmbito de uma consulta de

rotina, descreveu um episódio passado com o seu

genro. Embora quisesse manter uma postura calma,

via-se, perfeitamente, que estava indignada. Sabendo

que na altura exercia funções políticas, era deputado,

aproveitou a ocasião para manifestar a sua

apreensão.

Contou-me que o seu genro teve que se deslocar ao

Porto. No regresso à capital, comeu uma sandes

assim que entrou no comboio, já que não teve tempo

para almoçar. O jovem, ao fim de algum tempo de

viajem, cerca de metade, começou a sentir-se mal

com vómitos e diarreia. Um quadro típico de

intoxicação aguda. Tentou telefonar à família para

que alguém fosse esperá-lo à estação do destino,

mas não conseguiu. O quadro clínico piorava a olhos

vistos o que motivou, assim que chegou à estação,

enfiar-se num táxi, pedindo para ir para o hospital

mais próximo. Foi o que o taxista fez. Levou-o a um

hospital privado, onde lhe foi dito que, devido à

gravidade do caso, teria que ficar hospitalizado. Tudo

bem. Precisava de cuidados imediatos e ia tê-los,

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Salvador Massano Cardoso

364

mas, entretanto pediram-lhe qualquer coisa como

3.000 euros. Vómitos e diarreia não são nada

agradáveis, sobretudo quando se manifestam com

intensidade inusitada, mas colocar em cima uma

quantia destas, desarma qualquer cidadão normal!

Três mil euros? E agora? Doente e perturbado pediu

incessantemente que contactassem a família. Em

casa estava a sogra que, logo que tomou

conhecimento, correu para o hospital, “sacou” o seu

querido genro, levou-o a um hospital público, onde foi

visto, hidratado, tendo alta ao fim de alguma horas. A

sogra nunca o abandonou!

Apesar de existirem hospitais privados, há muitos

anos, entre nós, a tendência para que aumentem é

uma realidade, já que a apetência por sector está

num perfeito frenesim.

Não tenho nada contra o sector privado, pelo

contrário, mas tem que haver uma separação nítida

entre o público e o privado.

Sabendo que a área da saúde constitui um dos mais

graves problemas orçamentais para qualquer governo

– basta dizer que em Portugal a despesa total do

Estado com a saúde é de 9,2% do produto interno

bruto – fácil se compreende que haja necessidade de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

365

conter os gastos e melhorar a produtividade. Este

facto contribuiu para mudanças radicais na gestão

dos hospitais dos quais se esperam resultados

superiores à gestão tradicional. Qualquer cidadão,

actualmente, pode utilizar estes hospitais de forma

idêntica aos de gestão tradicional. O problema é a

apetência dos diferentes grupos económicos para se

“apropriarem” dos hospitais, privatizando-os. O que

vai acontecer ao cidadão normal? Terá que fazer um

seguro de doença obrigatório? Terá que continuar a

descontar, como tem feito até aqui? Terá que

continuar a financiar a construção dos hospitais

(mesmo os que passarão para a gestão privada) com

o dinheiro dos seus impostos? E terá que pagar 3.000

euros em caso de diarreia? O melhor é ter sogra e

pedir-lhe ajuda…

Esta pequena história ilustra o efeito de desigualdade

no acesso aos serviços de saúde. - É preocupante? -

É!

Mas a situação não fica por aqui. Senão vejamos: Um

estudo recentemente publicado sobre as

desigualdades dos rendimentos, entre os mais ricos e

os mais pobres, nos diferentes países da União

Europeia, coloca Portugal numa situação

verdadeiramente desconfortável já que o fosso ricos-

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Salvador Massano Cardoso

366

pobres está a alargar-se de ano para ano. Se

somarmos estes dados aos cerca de 2 milhões de

portugueses que têm um rendimento inferior a 350

euros por mês ficamos com uma ideia muito precisa

do que está a acontecer na nossa sociedade.

As implicações destes dados traduzem-se a diferentes

níveis, dos quais destacamos a saúde.

A emergência da epidemiologia social, há alguns

anos, permitiu analisar a saúde e a doença numa

perspectiva diferente da habitual. As comunidades

mais ricas são geralmente mais saudáveis. Todos

concordarão com esta afirmação. No entanto as

razões prendem-se não com o facto de haver

diferenças no acesso aos cuidados de saúde ou na

qualidade dos tratamentos, mas sim com os

comportamentos e estilos de vida dos mais pobres.

Estes são mais obesos, bebem mais, fumam mais,

vivem em áreas mais violentas e poluídas, têm

menos acesso aos confortos, sentem mais na pele o

facto de não terem os mesmos níveis de bem-estar

dos mais favorecidos, sendo, inclusive, massacrados

com os estereótipos das individualidades de

referência social, enfim são de facto mais pobres e

fazem-nos sentir isso mesmo, o que é

manifestamente mau. Deste modo, sempre que o

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

367

gradiente sócio-económico aumenta é de esperar

agravamento do estado de saúde dos menos

favorecidos (medido pelo índice Robin Hood). Não é

por acaso que a esperança de vida é mais baixa e que

a mortalidade por diversas doenças, desde as

cardiovasculares passando pelas tumorais atingem

valores elevados nesta importante fatia da

comunidade. Ora, aumentando o gradiente sócio-

económico em Portugal é de esperar um agravamento

da saúde dos nossos compatriotas. Os mais

favorecidos conseguem controlar melhor os factores

de risco que põem em causa a sua saúde, assim

como conseguem manter os factores que a

promovem. Nos pobres é precisamente o contrário.

Como estes estão a aumentar – o conceito de

pobreza relativa é muito importante – e os seus

rendimentos estão a diminuir face aos que ganham

mais, então é de esperar um agravamento do estado

de saúde do país. O problema de acesso aos cuidados

de saúde, assim como a realização de exames,

mesmos os mais sofisticados, não vão resolver o

problema, além de constituírem um factor de

agravamento em matéria de financiamento da saúde,

que já é muito preocupante.

Em termos sociais, o investimento público do qual

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Salvador Massano Cardoso

368

resulte bem-estar para todos, mas sobretudo para os

mais desfavorecidos permitindo-lhes mais

rendimentos e aquisição de comportamentos mais

saudáveis, diminui de uma forma acelerada à medida

que os mais privilegiados se afastam dos mais

pobres. Aqueles desviam os seus rendimentos para o

seu próprio bem-estar: seguros de saúde, hospitais

privados, condomínios fechados, escolas privadas,

águas engarrafadas, enfim todo um conjunto de

conforto virado para o seu próprio bem-estar

deixando de investir no bem comum. Esta recusa de

investimento começa a verificar-se em muitos países

em que o status sócio-económico se vai alargando.

Portugal, face aos últimos dados, comporta-se como

um desses países em que o fosso se alarga de ano

para ano. Sendo assim, é de prever um agravamento

substancial do estado de saúde que não se

conseguirá travar com as medidas de apoio e

cobertura médicas ciclicamente anunciadas. Longe

disso, se quisermos dar saúde aos portugueses a

solução passa não só por um acesso universal aos

cuidados – que já é um dado adquirido – mas sim

através de uma diminuição das desigualdades dos

rendimentos, um maior investimento público nos

instrumentos sociais, assim como um controlo dos

agentes stressógenos de origem social que fazem

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

369

sentir mais pobres os que efectivamente já o são.

Aumentando os rendimentos de um povo permitiria

de uma cajadada eliminar ou reduzir um sem número

de doenças que nos atormentam a toda a hora.

Esta análise presume estar em consonância com as

consequências decorrentes do neo liberalismo a nível

da saúde do nosso povo. Apesar daquilo que nos

diverge, e ainda bem, repito, o que nos une é muito

mais forte, já que temos a mesma posição face aos

valores mais nobres de qualquer cidadão seja ele

quem for. Agora, a forma operacional para resolver

os problemas não é fácil. Os recursos não abundam

mas com arte, engenho, determinação e

profissionalismo havemos de encontrar soluções.

A obra do Mário Jorge é um notável contributo para

este objectivo e como tal deverá ser fonte de

inspiração e de discussão face ao nosso futuro e ao

futuro dos nossos no tocante às políticas de saúde.

Obrigado Mário Jorge!

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Salvador Massano Cardoso

370

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

371

ACADEMIA PORTUGUESA DE MEDICINA

Declaração de aceitação como membro titular

Lisboa, 27 de Junho de 2003

Exmo. Senhor Presidente

Exmos. Senhores académicos

Algumas semanas atrás, encontrava-me no meu

gabinete, congeminando acerca de vários problemas,

alguns de cariz meio-existencialista, outros de

natureza ético-política, quando fui despertado por um

telefonema do senhor Professor Alexandre de Sousa

Pinto. De imediato, tentei prever o tema ou os temas

do inesperado, mas sem dúvida bem-vindo

telefonema. Reuniões; algo relacionado com a

Medicina do Trabalho, algum pedido de informação,

enfim, constituíram algumas das interrogações

despertadas no meu espírito, pronto a ser útil, no que

quer que fosse. Enganei-me. Falava o Presidente da

Academia Portuguesa de Medicina informando-me de

que tinha sido eleito como membro titular da

prestigiada academia. Fiquei estupefacto, numa

primeira fase, passando de imediato para um estado

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Salvador Massano Cardoso

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de satisfação. Registo nesta declaração de aceitação

este episódio que sem dúvida irá constituir uma das

principais marcas da minha vida. Claro que não pude

e nem podia, confesso, deixar de agradecer tamanha

honraria.

Saboreei o momento durante algum tempo, o qual

me alcandorou para um conjunto de acontecimentos,

os quais poderiam explicar a presente situação.

Afinal, todos os acontecimentos têm causas próximas

e remotas. Nós, médicos, habitualmente, no nosso

dia a dia profissional, damos mais relevo à

proximidade dos eventos, relegando para um plano

secundário os mais remotos, os quais se perdem na

noite dos tempos. Numa perspectiva de imitação dos

princípios da medicina darwiniana, mas à escala de

uma vida humana, tentei, repito, encontrar a

sequência de acontecimentos que estiveram na base

da eleição, para uma Academia, que alberga e

distingue tão numerosas personalidades, permitindo a

partilha de conhecimentos, valores e acima de tudo,

contribuir para a dignidade da nobre e eterna arte de

curar, tratar e prevenir as doenças.

Vi-me assim perante imagens do meu primeiro dia da

escola, no já distante ano de 1957. A data é fácil de

recordar, já que naqueles anos, o dia 7 de Outubro

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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marcava ritualmente o início da actividade escolar.

Recordei o dia calmo e ainda quente, a roupa, o

orgulho de uma mala de cartão a tiracolo, com um

caderno, um lápis e uma borracha. E também o

primeiro dissabor, quando a tira fina de couro da

mala se despregou da mesma, tendo que a

transportar, diga-se de passagem, com certa

dificuldade com ambas as mãos, já que não tinha

arcaboiço para a colocar debaixo do braço.

Em seguida, saltei para a quarta classe, a qual não

concluí, devido a doença, a qual se manteve nos anos

seguintes, obrigando a longas permanências no leito.

Este isolamento levou-me a procurar formas de

passar um tempo teimosamente lento e inibidor da

partilha com os colegas. Dedicava-me à leitura e a

criar um conjunto de regras que acabou por gerar

uma forma de autodidáctica e de autodisciplina

impróprias de uma criança. Quando recuperei a

normalidade, já me destacava pela exigência,

cumprimento das obrigações escolares, determinação

na prossecução dos objectivos, concorrendo comigo

próprio, tentando, sempre que possível executar as

múltiplas actividades que são inerentes ao

desenvolvimento de um jovem, e foram muitas. Com

uma particularidade: dava sempre a prioridade às

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actividades escolares. Ainda bem, se não fosse esta

disciplina, também não teria possibilidade de

prosseguir os estudos. Para poder estudar, só com

um bolsa de estudo, e naquele tempo, não

abundavam instituições escolares, e muito menos

promotores que possibilitassem aos jovens mais

carenciados estudarem. Foi-me atribuída uma bolsa

que me acompanhou até ao final da licenciatura.

Muitas outras passagens e marcas poderiam ter sido

descritas, mas quis com esta pública e primeira

confissão, demonstrar que o interesse pela medicina

e investigação, tem raízes que consigo perfeitamente

identificar. Afinal, se não fosse a doença, poderia ter

tido um trajecto totalmente diferente, e muito

provavelmente nem teria acedido ao ensino superior,

como tantos e tantos portugueses que, na altura, não

dispuseram das facilidades e meios de poderem tirar

um curso.

A este propósito, e mal grado as más recordações da

doença, não posso deixar de citar o famoso internista

espanhol, Gregório Maragnon, que dizia que a doença

nem sempre é má na sua finalidade.

A necessidade de agrupamento não é de hoje,

traduzindo a forma de dar consistência aos saberes e

permitir a criação de códigos. As Academias são

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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formas de agrupamento de individualidades que na

sua diversidade partilham princípios comuns e

fomentam a criatividade, além de propiciarem

espaços de reflexão. A Academia Portuguesa de

Medicina agrega diversas personalidades da medicina,

sintetizando-a e expandindo-a num continuum pulsar.

Aceitar fazer parte de uma agremiação de notáveis é

mais do que uma honra, é uma enorme

responsabilidade. Saber se estamos à altura, se a

nossa conduta se pauta ou não pelos padrões

estabelecidos, se a nossa produção técnica, científica,

pedagógica e cívica é ou não a desejada, são naturais

incógnitas, as quais só podemos resolver através de

um constante e apurado esforço no sentido

ascendente, factos que obrigam naturalmente a mais

trabalho. Se mais trabalho não é razão para assustar,

já o mesmo não se pode dizer das expectativas

criadas, as quais são fonte de uma ansiedade que não

se consegue ocultar.

Gostaria para terminar esta declaração de aceitação

dizer o que espero da Academia. Sendo, como já tive

oportunidade de dizer, uma agremiação de

personalidades que deram notáveis contributos nas

diferentes áreas da medicina e da saúde, importa que

contribua através do intercâmbio e reflexão das ideias

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dispersas, num motor de síntese do conhecimento. As

grandes conquistas nas áreas da saúde, biologia e

medicina, dispersaram e fragmentaram os

conhecimentos de tal forma, que transformaram os

médicos em verdadeiras subespécies, com grandes

dificuldades em se cruzarem. Se não houver cultores

da síntese do conhecimento, corremos o risco de não

compreendermos as verdadeiras causas dos

fenómenos e as formas mais correctas de resolver os

problemas, que afligem as comunidades.

Este espaço é deveras privilegiado para a síntese.

Face ao desenvolvimento tecnológico, cada vez há

menos sintetizadores do conhecimento. Sintetizar,

permite criar paradigmas, estabelecer nexos de

causalidade, elaborar teorias, propor soluções e

fomentar a dinâmica de novos conhecimentos e

pesquisas. Naturalmente que a Academia tem outros

objectivos, mas considero aquele que acabei de

formular um dos que mais me preocupa, face à

explosão da ciência e da tecnologia. A dispersão

resultante é de tal ordem de grandeza, que faz

recordar a expansão dos corpos do Universo que se

afastam cada vez mais uns dos outros. Nem o

conhecido princípio da rainha de copas, resultante da

obra de Lewis Carrol, na qual Alice pergunta à rainha:

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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- Por que estamos sempre a correr?

E a rainha responde:

- Para podermos ficar no mesmo sítio,

É satisfatório. Torna-se imperioso que se sintetize o

conhecimento médico, disperso por tão vastas e

complexas áreas.

Aceitar fazer parte desta irmandade é comungar de

princípios nobres, acarretar mais responsabilidades,

com a certeza de poder receber ensinamentos

desejados mas nem sempre encontrados.

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SINISTRALIDADE

Falar de sinistralidade implica lidar com uma das

situações que provoca morte e incapacidade. Sendo

assim, todo o esforço desenvolvido no sentido de

evitar o sofrimento e/ou adiar a morte é bem-vindo,

constituindo, desde todo o sempre, um dos principais

objectivos da espécie humana.

O homem sempre sonhou com a imortalidade e com a

capacidade de prever o futuro biológico. No fundo,

quer ser um verdadeiro deus. Hoje, começa a

desenhar-se a possibilidade de no futuro se

concretizar ou pelo menos tentar alguns destes

objectivos. Muitos pertencem à área da ficção, mas,

mesmo assim, a história alerta-nos para o facto, de

que aquilo que é hoje ficção, amanhã pode

transformar-se em realidade.

A eliminação das doenças tem sido alvo de vários

ensaios. Não posso deixar de resistir à tentação de

citar "The Days of Solomon Gursky", a obra do

novelista Ian McDonald, que revela as consequências

da aplicação de novas tecnologias com o objectivo de

eliminar todas as doenças e manter uma performance

invejável. Deste modo, os "gurskys" seriam imortais,

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vivendo para além do próprio Universo. Mas, mesmo

os "gurskys" também têm de morrer, não de

doenças, mas de acidentes, suicídios e homicídios. Os

"gurskys" não teriam esperança de vida, mas semi-

vida (de forma idêntica às substâncias radioactivas).

Não havendo um limite de vida, calcula-se que a

semi-vida seria da ordem dos 500 anos, partindo do

pressuposto de que a taxa de mortalidade por

fenómenos violentos se mantivesse constante.

Significa esta introdução que havendo um potencial

extraordinário para combater e evitar as doenças, as

suas causas ou mesmo regenerando ad eternum os

organismos, mesmo assim a imortalidade será

impossível de alcançar devido à imprevisibilidade

inerente aos próprios acidentes. Ou seja: reduzindo

os factores, utilizando todos os meios de prevenção,

o acidente acabaria sempre por acontecer e

determinar a morte de qualquer ser que estivesse

imune a qualquer tipo de doença. No fundo, o

máximo que poderíamos alcançar era o estatuto de

seres não humanos mas seres gurskianos.

A sinistralidade abrange várias áreas. Para efeitos de

análise e compreensão convém reportar-nos aos

principais sectores. Sinistralidade rodoviária,

sinistralidade laboral, sinistralidade doméstica,

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sinistralidade de lazer, constituem sem sombra de

dúvida os principais tipos.

Os acidentes de viação matam 1,2 milhões de

pessoas e causam ferimentos ou inutilizam mais de

50 milhões de indivíduos todos os anos2.

Trata-se de um dos mais graves flagelos que atinge a

humanidade e de acordo com as últimas previsões as

mortes nas estradas poderão aumentar na ordem dos

80% em 2020, nalgumas partes do globo, caso não

forem tomadas adequadas medidas3.

Diariamente, morrem cerca de três mil pessoas por

dia, constituindo a segunda causa de morte entre os

cinco e os 29 anos e a terceira entre os 30 e os 40

anos.

Na Europa, ocorrem cerca de 200.000 mortes devidas

a lesões acidentais. Todos os dias morrem, na União

Europeia, 14 crianças, 2240 são admitidas nos

hospitais e outras 28.000 recebem tratamento nas

urgências4.

2 Relatório da OMS e do Banco Mundial (7 de Abril de 2004)

3 Público, 7 de Abril de 2004, pág. 26

4 Cadernos da Direcção-Geral da saúde, nº3, Abril de 2004

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Os riscos têm de ser compreendidos e

consequentemente podem ser evitados. No fundo,

estamos um problema que é eminentemente político.

Só com vontade política é possível travar e inverter

esta situação.

Além da perda de vidas e de incapacitados, os

prejuízos económicos e sociais directos e indirectos

são muito difíceis de quantificar. De qualquer modo,

calcula-se na ordem dos 518 mil milhões de dólares

os prejuízos resultantes, cerca de um a dois por cento

do produto interno bruto à escala global. Na União

Europeia, estima-se que o orçamento socioeconómico

de todos os traumatismos, ferimentos e lesões,

provocados por acidentes, é de cerca de 400 mil

milhões de euros por ano. Nos países em

desenvolvimento a situação é particularmente grave

neutralizando toda a ajuda ao desenvolvimento dos

países. Podemos afirmar que os acidentes nos povos

em desenvolvimento provocam mais prejuízos, os

quais chegam a ultrapassar a totalidade das quantias

recebidas para o seu desenvolvimento.

Convém recordar que o investimento despendido

nestas áreas, em termos de prevenção e de

segurança, é manifestamente insuficiente e muito

inferior, por exemplo ao despendido na luta contra a

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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Sida, na ordem de 30 vezes menos.

Em 2020 a previsão de óbitos por acidentes de viação

poderá atingir, a nível mundial, 2,3 milhões,

passando a constituir a terceira causa de morte.

O apelo efectuado pela OMS e o Banco Mundial,

centra-se na necessidade de mobilização de

governos, indústria e organizações não

governamentais, bem como à participação de pessoas

de diferentes disciplinas desde engenheiros de

estradas, “designers” de veículos, autoridades

responsáveis pela aplicação da lei e profissionais de

saúde.

O fatalismo faz parte da cultura portuguesa e, sem

sombra de dúvida uma das suas expressões mais

preocupantes manifesta-se na sinistralidade

rodoviária. É certo que houve uma evolução positiva

da taxa de mortalidade por acidentes de trânsito com

veículo a motor, padronizada pela idade. “Com efeito,

em 10 anos houve uma diminuição de 20 por 100.000

para 17 por 100.000, na taxa de mortalidade

padronizada pela idade, sendo, ainda mais acentuada

nos homens”5. Só que o fenómeno não está a ser

5 Observações nº 22, Março 04. Observatório Nacional de Saúde.

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bem medido, devido aos “mortos a trinta dias”.

Em Portugal o custo económico dos acidentes de

viação em 2002 ultrapassa os investimentos na rede

ferroviária nos próximos dez anos para a circulação

do TGV.6 De acordo com o presidente da Associação

Portuguesa de Seguradores, a factura representa

cerca de três por cento do produto interno bruto

nacional. Mesmo reduzindo a sinistralidade, não

houve uma natural redução dos custos suportados

pelas seguradoras.

A intervenção na área da segurança rodoviária exige

três níveis de actuação: nível fiscalizador, nível

informativo e um nível educativo e formativo.

Mudar comportamentos é difícil, mesmo muito difícil.

Poderíamos explicar em função dos fenómenos de

transição sociológica, os quais se observam em

muitos fenómenos. De qualquer forma o investimento

tem de ser feito, apesar do retorno ser baixo. Mas, a

longo prazo, os resultados serão positivos. Estamos a

falar de fenómenos ditos transgeracionais. Os

comportamentos são mimetizados quer os maus quer

os bons. Como predominam aqueles, compreende-se

6 Diário As Beiras, 14 de Abril de 2004, pág. 19

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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a dificuldade em impor os últimos. Copia-se o estilo

do pai, ou do amigo, impede-se que o peão atravesse

a passadeira, desafia-se o amarelo ou chega a passar

o próprio vermelho!

Culturalmente, em Portugal também se sofre as

consequências do não cumprimento escrupuloso das

regras de trânsito estabelecidas. De todos os níveis

anunciados, aquele que permitirá uma mudança

substancial nas consequências trágicas dos acidentes

de viação, passa pelas medidas dita repressivas. O

apertar cada vez mais das medidas legislativas é

imperioso, numa sociedade que só de uma forma

lenta vai aprendendo o cumprimento de normas de

segurança.

Falar de acidentes e não falar do consumo do álcool

seria não falar da principal causa de risco de

acidente.

Um milhão e 800 mil portugueses consomem bebidas

alcoólicas em excesso. Na União Europeia três por

cento são alcoólicos contra oito em Portugal7.

A polémica criada ao redor da taxa de alcoolemia está

ainda presente. O governo anterior baixou a taxa

7 Diário Notícias, 9 de Abril de 2004, pág. 32

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máxima para 0,2 g/l, facto que originou contestações

a vários níveis. Foram ouvidos peritos que

argumentavam que a cifra proposta era a mais

adequada, face à elevada sinistralidade rodoviária

que caracterizava e continua a caracterizar o nosso

país. A medida tinha objectivos bem definidos. Os

opositores a tal medida argumentavam de todas as

maneiras possíveis: muitos países mantinham a taxa

de alcoolemia de 0,5 g/l e tinham taxas de

sinistralidade inferiores à nossa; que a medida iria

provocar colapso económico dos produtores de vinho

com impacto significativo na economia nacional, que

o cozido à portuguesa sem o vinhito não seria o

mesmo, que valores até este limite não provocavam

quaisquer alterações do comportamento, que muitos

dos sinistrados não apresentavam álcool no sangue,

que os acidentes se deviam ao mau estado das

estradas e/ou das viaturas, que a falta de civismo era

o factor mais importante (e realmente até é)... Os

argumentos foram tantos, que levou à suspensão

temporária da lei, até que foi "restaurado" o limite

anterior, na presente legislatura.

Um dos argumentos mais esgrimidos estribava-se no

facto de que, até 0,5g/l de álcool no sangue, não

ocorriam quaisquer alterações neurológicas que

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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pudessem por em causa a segurança rodoviária. A

grande maioria provava inclusive com a sua

experiência diária (subjectivismo susceptível de erros

grosseiros). A ciência fornece constantemente novos

elementos que podem influenciar as decisões

políticas. Num dos últimos números da revista

Science, foi publicado um trabalho interessante de

Richard Ridderinkhof da Universidade de Amesterdão.

Este autor provou que uma zona particular do

cérebro, responsável pela monitorização de um

processo de reconhecimento de sinais de erro, sofre

importantes alterações, mesmo com doses

moderadas de álcool (abaixo dos limites aceites em

muitos países, o nosso incluído). Como no decurso da

condução estamos constantemente a corrigir erros, é

fácil compreender as eventuais consequências. Sendo

assim, o álcool interfere com um componente crítico

do controlo cognitivo, o qual pode explicar, porque é

que as pessoas sob o efeito da influência do álcool

não conseguem (nem admitem!) reconhecer a má

performance e persistem nesta posição. Perante estes

novos dados (e estudos subsequentes) é de prever

que, mais tarde ou mais cedo (naturalmente mais

tarde, por motivos óbvios...), a taxa de alcoolemia irá

sofrer uma redução. Convinha sensibilizar todos os

agentes com interesses neste sector (nomeadamente

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produtores e consumidores de álcool) a adaptarem-se

a uma nova realidade. Isto de andar na estrada,

sobretudo em Portugal, é um perigo real de morte. O

civismo não é passível de decreto, mas a taxa de

alcoolemia é.

Não deixa de ser curioso a conduta de várias

personalidades de reconhecido mérito científico e

ético afirmarem que “apesar do grau de álcool na

sangue máximo permitido por lei ser de 0,5 g/l,

defenderem que quem apresentar entre este valor e

0,8 não pode ser considerado como criminoso. Pelo

contrário “se proibíssemos os portugueses de praticar

qualquer actividade até este valor ninguém fazia mais

nada. Com esse valor ninguém fica perturbado, até

um médico pode exercer a sua profissão de forma

respeitável”. Falar em termos científicos é uma coisa,

falar em nome de interesses económicos e de

poderosos lóbis é outro8. É certo que o álcool não é o

único culpado.

Um dos aspectos que mais nos preocupa tem a ver

com o consumo de fármacos com acção a nível dos

sistema nervoso central e do envelhecimento

progressivo dos cidadãos com as consequentes

8 Diário Notícias, 10 de Junho de 2004, pág. 25

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perdas de capacidades.

A par da sinistralidade rodoviária destacamos um

outro tipo com impacto e gravidade muito elevada, a

sinistralidade laboral. A deterioração da saúde

perante as más condições de trabalho é somente um

indicador, um sintoma que nos remete para as

contradições sociais. De acordo com a Organização

Internacional do Trabalho, todos os anos, morrem

cerca de dois milhões de homens e de mulheres

devido a doenças e acidentes relacionados com o

trabalho. Qualquer coisa como 5.000 óbitos por dia.

Os acidentes de trabalho são uma praga a nível

mundial. Calcula-se que ocorram cerca de 250

milhões de acidentes, por ano.

Uma reflexão mais profunda permite-nos concluir que

os acidentes e doenças profissionais têm contribuído,

ao longo da história do homem, para o

desenvolvimento das sociedades. Ou seja: os

benefícios adquiridos são frutos de verdadeiros

genocídios laborais. Provavelmente constituirá a

principal causa de morte e, no entanto não se

descortina qualquer monumento relativo à memória

das vítimas do trabalho.

Os indicadores de sinistralidade, relativos a Portugal

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revelam uma tendência para a diminuição da

sinistralidade global, que não é sinónimo de uma

melhoria real das condições de trabalho, dado que a

população activa empregada tem vindo a decrescer

nos últimos anos. Curiosamente, o aumento do

desemprego pode ser acompanhado de uma redução

dos acidentes, não devido à diminuição da população

empregada, mas devido à redução da notificação dos

casos.

Portugal, como é do conhecimento geral, é um dos

países que apresenta taxas de sinistralidade laboral

das mais elevadas. Anualmente ocorrem mais de

200.000 acidentes de trabalho dos quais cerca de 250

são fatais. O fenómeno não é só nosso. Na União

Europeia contabilizam-se, todos os anos, em 4,7

milhões o número de acidentes de trabalho que

determinam absentismo superior a três dias; se

incluirmos os que não exigem absentismo, então a

cifra aumenta para 7,4 milhões. A probabilidade de

um trabalhador estar envolvido num acidente de

trabalho é de 4,7% ou de 6,4% conforme ocorra ou

não ausência ao trabalho (superior a três dias) e a

incidência anual de mortes por acidente oscila ao

redor de 5 por 100.000 trabalhadores. Calcula-se em

150 milhões o número de dias de trabalho perdidos;

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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facto que tem implicações sociais e económicas

difíceis de quantificar. Um dos fenómenos que

caracteriza os acidentes de trabalho é um

comportamento cíclico de subidas e descidas. Tem

sido observada uma associação inversa com o nível

de desemprego. Um dos determinantes utilizados

para explicar este fenómeno, relação inversa entre a

taxa de acidentes de trabalho e o desemprego,

consiste no facto de que, quando há um maior

necessidade de trabalhadores (baixa taxa de

desemprego), a exigência e a "pressão" exercidas

sobre os mesmos serem consideradas os principais

factores. Em contrapartida, o desemprego determina

menos esforço e consequentemente menos acidentes.

No entanto, esta interpretação foi posta em causa,

recentemente, por um investigador (Jan Boone da

Universidade de Tilburg na Holanda e Centre

Economic Policy Research). O estudo baseia-se na

relação entre acidentes de trabalho e a taxa de

desemprego em 17 países da OCDE. O aumento do

desemprego acompanha-se de uma redução dos

acidentes não fatais, mas não se relaciona com os

acidentes fatais. Qual a explicação? Quando aumenta

o desemprego, a notificação de acidentes de trabalho

diminui de forma significativa, porque o trabalhador

tem receio de perder o emprego. A notificação dos

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óbitos não sofre alterações, por razões evidentes. Por

este motivo, não observamos variações cíclicas no

caso dos óbitos por acidentes de trabalho. Os

resultados encontrados neste estudo permitem

concluir que os acidentes de trabalho não fatais estão

inversamente relacionados com a taxa de

desemprego, mas não com o número de horas de

trabalho nem com as mudanças de emprego. Quanto

aos acidentes fatais não existem evidências de

estarem relacionadas com as variações das condições

laborais. As condições de trabalho não se

deterioraram durante as variações cíclicas, e, a

segurança no local de trabalho não sofreu igualmente

quaisquer variações. Ou seja, a determinante clássica

para explicar este fenómeno, terá de ser substituída

por esta última: o receio do desemprego determina

uma sub-notificação dos acidentes de trabalho

(naturalmente os menos graves), por parte dos

trabalhadores, nos momentos de crise. Em Portugal,

a taxa de desemprego tem vindo a aumentar,

fixando-se neste momento em cerca de 7%

(desemprego real). Sendo assim, é de esperar que,

nos tempos mais próximos, as estatísticas possam

revelar uma redução da sinistralidade laboral; mas

não devemos considerar este fenómeno como

resultado das melhorias de condições de trabalho, ou

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

393

de um investimento sério em termos de segurança e

higiene do trabalho, mas como um epifenómeno do

aumento da taxa de desemprego que entretanto se

observa entre nós.

Os problemas relacionados com a saúde e segurança

no trabalho, e em especial com a sinistralidade

laboral, são globais e transversais a todas as

sociedades modernas, onde a capacidade competitiva

das empresas é cada vez mais um dado importante e

um objectivo a prosseguir em função do crescimento

económico e consequente desenvolvimento e social

dos Estados.

A qualidade de vida, porém, é indissociável do

desenvolvimento económico, havendo necessidade de

conciliar o progresso e a salvaguarda da

competitividade das empresas com indicadores de

qualidade de vida. Daí a importância primordial da

promoção de saúde e segurança dos trabalhadores no

local do trabalho o que acabará, aliás e em última

análise, por constituir um factor da produtividade das

empresas.

Daí que seja por todos, unanimemente reconhecida a

actual importância da segurança, higiene e saúde no

trabalho ao nível da prevenção dos riscos

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profissionais, designadamente nos seguintes

vectores: formação e certificação dos profissionais de

segurança, higiene e saúde no trabalho; acreditação

dos serviços de SHST; instrumentos de planeamento

e avaliação dos serviços de prevenção das empresas.

Aspectos impostos pelo Direito Internacional do

Trabalho (Convenção nº 155 da OIT) bem como do

Direito Comunitário (Directiva nº89/391/CEE).

Em Portugal, as micro e pequenas empresas são a

parte mais significativa do tecido empresarial

português. A promoção das condições de trabalho e

protecção social contribuirá para a diminuição dos

prejuízos inerentes à sinistralidade e às doenças

profissionais, permitindo-lhes enfrentar a livre

concorrência e o fenómeno da globalização dos

mercados.

Apesar da existência de um conjunto de diplomas

legais significativo, que estabelecem prescrições

mínimas de segurança, higiene e saúde a observar

nos locais de trabalho, o cumprimento destes

diplomas ainda se encontra desvirtuado,

comparativamente ao que se passa nalguns outros

estados da União Europeia. No entanto, os

indicadores de sinistralidade, em Portugal, revelam

uma tendência para a diminuição da sinistralidade

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

395

global que, tal como já tivemos oportunidade de

referir, poderá não significar uma melhoria real das

condições de trabalho.

A título exemplificativo e de acordo com algumas

estatísticas oficiais disponíveis/divulgadas, o número

real de acidentes de trabalho:

- Em 1995 foi de 204.263

- Em 1996 foi de 216.115

- Em 1997 baixou para 161.740 acidentes

- Já os dados referentes ao ano de 2000

demonstram um número na ordem dos 200.000

acidentes de trabalho.

Entre 1994 e o ano de 2000 observou-se na União

uma redução da taxa fatal dos acidentes de trabalho.

Existe um perfil que permite caracterizar o acidente

na Europa:

Os homens têm mais acidentes do que as mulheres

Os trabalhadores novos (18-24 anos) têm uma taxa

mais elevada da incidência de acidentes

Os trabalhadores mais velhos (55-64 anos) têm

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Salvador Massano Cardoso

396

acidentes mais fatais

Na indústria da madeira, cada ano, 10% dos

trabalhadores sofrem um acidente

A taxa de acidentes é mais elevada nas companhias

pequenas do que nas grandes

Os acidentes que ocorrem durante a noite tendem a

ser mais fatais

As extremidades são as partes mais atingidas pelos

acidentes de trabalho

As feridas e os ferimentos superficiais são o tipo mais

comum

17% de ausências ao trabalho são da

responsabilidade dos acidentes

Estima-se em 210 milhões os dias de trabalho

perdidos por acidentes de trabalho.

Os trabalhadores com menos de 5 anos de

antiguidade estão mais sujeitos a acidentes

Os que se deslocam têm taxas mais elevadas

2,3 milhões de trabalhadores europeus consideram-

se que têm uma inabilidade devido a um acidentes de

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

397

trabalho.

A prevenção dos acidentes de trabalho é um bom

investimento por motivos óbvios. Importa efectuar

investimentos neste sector, a todos os níveis. Não é

por acaso que os programas dos governos encerram

medidas de carácter político destinadas a inverter a

situação da epidemia de sinistralidade laboral. Esta

interiorização é efectuada de acordo com normas e

convenções internacionais que, desde há longas

décadas, têm vindo a alertar as autoridades e

responsáveis para a necessidade de por cobro e

reduzir a sinistralidade laboral. Infelizmente, o

sucesso não tem sido imediato, mas o esforço e a

dedicação dos interessados, a par de medidas de

carácter legislativo acabarão por “normalizar” a

situação.

Não podia antes de terminar chamar a atenção para

outras duas áreas responsáveis pela sinistralidade e

que merecem a nossa atenção, caso dos acidentes de

lazer e os domésticos. O aumento progressivo de

pessoas que ocupam os seus momentos de lazer tem

vindo a aumentar e, consequentemente susceptíveis

de vários tipos de acidentes que exigem medidas de

prevenção de forma a evitar o aparecimento de novas

formas de epidemias de sinistralidade. Também as

Page 398: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

398

condições e o progressivo aumento de factores de

risco domésticos, motivados pelas novas tecnologias

e manutenção das já existentes, propiciam condições

particularmente perigosas para os habitantes,

sobretudo crianças, o que exige conhecimentos e

técnicas cada vez mais sofisticadas.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

399

MELHORAMENTO HUMANO EM GERAL

(ASPECTOS TÉCNICOS)

A aspiração em melhorar a espécie humana é uma

constante desde os primórdios dos tempos. Por

melhoria entende-se, numa primeira fase, e mesmo

hoje em dia, combater a doença, o sofrimento e

evitar a velhice. A história da humanidade e da

medicina em particular estão cheias de relatos que

revelam esses desideratos. No entanto, a partir do

momento em que as conquistas tecnológicas se

tornaram rotina, aproveitando as conquistas de

outras áreas do conhecimento, os seres humanos,

eternos futuristas, projectam os seus anseios e

aspirações para que sejam alcançadas as metas que

perseguem desde que tomaram consciência da

existência. Mas tudo leva a supor que poderá estar a

pensar ir longe de mais, e daí não se sabe!, porque

muito das fantasias e futurologia de hoje fácil e

rapidamente se transformarão em verdades amanhã.

Sendo assim, os problemas éticos que se avizinham

são tão vastos e tão complexos que poderemos

enveredar por uma “ética futurologista”, até, porque

muitos não querem morrer, ao passo que outros...

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Salvador Massano Cardoso

400

Confunde-se com o próprio nascimento do homem o

desejo de ultrapassar determinadas limitações a fim

de melhor poder usufruir a vida. Ao tomar consciência

da sua existência, e precariedade, deverá ter pensado

como ultrapassá-las.

É muito provável que a cirurgia tenha sido a primeira

técnica utilizada pelo homem. Num artigo publicado

em 1922, no New York Times, já eram descritas

técnicas cirúrgicas e ortopédicas de correcção no

Paleolítico.

O trabalho de Nerlich e all, publicado no The Lancet,

descreve algumas técnicas utilizadas no Antigo

Egipto, nomeadamente a utilização de uma prótese

para substituir o dedo grande do pé numa mulher o

que lhe permitia caminhar normalmente.

Na Índia, 1500 a. C., já se faziam reconstruções dos

narizes. A mutilação constituía uma prática comum de

vingança de tal forma que o nariz era considerado o

órgão de respeito e de reputação. Esta prática

continuou durante o período colonial, e até nos

nossos dias, sendo o adultério uma dos principais

motivos. Deste modo, é compreensível a elevada

capacidade técnica utilizada desde há 3.500 anos,

contribuindo para o melhoramento humano.

Page 401: Saude Publica e Ambiental

Notas de Saúde Pública e Ambiental

401

É fácil demonstrar que desde os confins do tempo o

homem procurou sempre “melhorar-se”, em termos

técnicos, já que no restante mantém vivas chamas

atávicas prontas a manifestarem-se com violência,

resistentes à evolução e aos diversos códigos de

conduta entretanto produzidos.

Os três exemplos apontados representam,

simbolicamente, o desejo de resolver alguns

problemas funcionais em fases precoces da nossa

existência. Desde então nunca mais parámos ao

ponto das descobertas científicas e conquistas

técnicas adquirirem uma velocidade exponencial que

fazem inveja ao efeito da energia escura na expansão

do Universo.

A medicina surpreende-nos cada dia que passa. O

desenvolvimento e a inovação tecnológica são

notáveis, abrindo perspectivas jamais pensadas,

mesmo há poucos anos. Técnicas de exploração

imagiológica capazes de mostrar o funcionamento dos

tecidos, diversos tipos de implantes, próteses cada

vez mais sofisticadas, cirurgias menos “cirúrgicas”,

“regeneração de tecidos”, entre muitos outros, não

falando das potencialidades nanotecnológicas, e da

emergência do futuro homem biónico, obrigam-nos a

reflectir sobre o princípio da transhumanidade.

Page 402: Saude Publica e Ambiental

Salvador Massano Cardoso

402

O homem não se preocupa apenas em melhorar as

suas capacidades graças às novas tecnologias,

procura algo mais profundo, a imortalidade. Mas a

sua procura pode esbarrar em alguns problemas tão

bem traduzidos no mito de Titonus. A procura da

fonte da longevidade ou o elixir da vida é uma

obsessão a que não é alheio o medo da morte

empurrando-o à procura de um lugar próprio dos

deuses.

Não sei se valerá a pena ser imortal. Deve ser muito

cansativo. Além do mais, imortalidade sem juventude

não deve ser muito agradável, que o diga Titonus que

ao apaixonar-se pela deusa Eos (Aurora) fez com que

esta a pedisse ao todo poderoso Zeus para o seu

amado. Zeus, que não gostava muito que as suas

deusas se apaixonassem pelos mortais, satisfez-lhe o

desejo. Assim, Titonus alcançou a imortalidade mas

envelheceu tanto que ficou demente e como não

havia maneira de morrer, Aurora, sentindo pena do

seu amado, transformou-o numa cigarra, símbolo da

imortalidade.9

9 (A deusa Eos apaixonou-se por Titonus, um mero mortal. Consciente desse facto, pediu a Zeus a imortalidade para o seu amado. Eos, ingloriamente, não se apercebeu que imortalidade não é sinónimo de eterna juventude. Tinha isso em mente, quando fez o pedido. Zeus que não é ingénuo e que não gosta muito que as suas deusas se apaixonem por mortais, fez-lhe a vontade. Titonus envelheceu, envelheceu, acabando por ficar totalmente demente. Eos

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

403

As novas técnicas, que são cada vez mais

diversificadas, não deixam de levantar numerosos

problemas éticos. Para evitar maus usos ou

descalabros, susceptíveis de por em causa a

dignidade humana, os responsáveis têm a obrigação

de definir as regras a seguir. Claro que nestes

aspectos há sempre os que fazem a sua própria

interpretação, sem que isso possa ser considerado

como um “desvio” às normas. No final prevalece as

opiniões da “maioria”. Afinal, mesmo em assuntos

delicados existe uma “ ética democrática”.

Quando se manipula a vida ou se interfere com a sua

própria evolução estamos a “mexer” em matérias

muito complexas e delicadas que, durante toda a

nossa existência, como humanos, era considerada

como atributos de forças superiores, divinas. Só que

o céu começa a baixar à terra. E, às vezes, o “céu cai

mesmo em cima de nós”.

A tentativa de conhecer a existência de uma anomalia

que comprometa o futuro de uma criança, ou a

utilização de “embriões-medicamentos” para salvar a

sofria tanto com a situação que, acabou por transformá-lo em cigarra, segundo uns, em gafanhoto, segundo outros, símbolo da imortalidade na mitologia grega.)

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Salvador Massano Cardoso

404

vida de um filho constituem duas das principais

medidas enquadradas no diagnóstico pré

implantação. Há os que querem ir mais longe, numa

verdadeira selecção genética que, sendo condenável,

não tem o aval de médicos conscientes.

A decisão, desde que tenha enquadramento legal,

pertence sempre aos pais. É comum, de acordo com

as informações prestadas pelos colegas que se

dedicam a estas áreas, a tradicional pergunta: - O

que é que o senhor doutor faria se estivesse na nossa

posição? Sensatamente, os médicos não respondem,

porque não podem, nem devem saber. Claro que

quando estão do outro lado têm posições e ambições

como qualquer outro. É humano!

Os debates sobre estas matérias multiplicam-se e não

deixam de ser ricos e esclarecedores, mas o que é

problemático é considerar a doença como sinónimo

de “terrorismo” ou como algo evitável e que deveria

ser combatida a qualquer preço, justificando algumas

opções. Os que consideram a doença como sinónimo

de “terror” baseiam-se no facto de muitos de nós,

quando adoecemos, ficar aterrorizado, sobretudo se

estamos perante uma doença grave. Mas não

devemos aceitar esta posição. A razão é muito

simples e baseia-se na afirmação de um investigador

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

405

que em tempos afirmou: “A doença é mais antiga do

que o homem, é tão antiga como a própria vida,

porque é uma atributo da vida”. De facto, a evolução

da vida teve de ser feita à custa de compromissos

que, curiosamente, estão na base de muitas doenças,

inclusive o próprio cancro. Devemos lutar contra as

doenças? Claro que sim. Devemos fazer todos os

possíveis para a prevenir? Com certeza! Seremos

capazes de a eliminar? Provavelmente, não. Quando

tal acontecer, se é que isso irá algum dia acontecer,

deixaremos de ser humanos e passaremos a ser

transhumanos ou qualquer coisa semelhante. Afinal a

doença é uma inevitabilidade e temos de viver com

ela, porque é, paradoxalmente, essência da própria

vida. Mas daí a considerá-la como terrorismo vai um

grande passo.

Certas afirmações curiosas obrigam-nos a reflexões

profundas. Qual o significado da frase proferida por

um anti-darwinista convicto, o cientista António de

Lima-de-Faria, segundo a qual “Não está

cientificamente provado que uma pessoa tenha de

morrer”? Que somos potencialmente imortais? Que

poderemos utilizar todas as técnicas possíveis e

imaginárias a ponto de substituirmos tudo ficando só

com a essência da consciência?

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Salvador Massano Cardoso

406

São vários os grupos de pessoas e de cientistas

ávidos de conquistar o Ansari X Prize, entre os quais

se conta o futurologista Ray Kurzweil. No seu último

livro, The Singularity is Near, analisa a união do

humano e da máquina, originando uma singularidade

em que a nossa inteligência se tornará não biológica

e triliões de vezes mais poderosa do que é

actualmente!

“Em termos práticos, conseguiremos reverter o

envelhecimento e a doença; a poluição parará, e a

fome e a pobreza mundial desaparecerão. A

nanotecnologia permitirá criar qualquer produto

usando informação sem custos e, por fim, a morte

transformar-se-á num produto resolúvel”. Nem mais.

Futurologia pura ou não tem os seus seguidores e

cultivadores. Resta saber se o tempo disponível para

alcançar ou produzir uma nova espécie é suficiente

face aos riscos planetários que corremos. “Em

alternativa, a sobrevivência dos seres humanos

depende da capacidade em encontrar novos lares,

algures no Universo, devido aos riscos de desastres

que poderão destruir a Terra”. Esta afirmação foi feita

pelo reputado cientista Stephen Hawking, em 2006,

em Hong Kong.

Mesmo que Ray Kurzweil seja um exagerado, o que é

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

407

certo é que o desejo de viver mais, com saúde e sem

envelhecer está bem patenteado no nosso dia a dia,

embora longe do sonho.

A curta obra, do novelista Ian McDonald, "The Days

of Solomon Gursky" revela, em termos de ficção

científica, a aplicação de novas tecnologias com o

objectivo de eliminar todas as doenças e manter uma

performance invejável. Deste modo, os "gurskys"

seriam imortais, vivendo para além do próprio

Universo. Mas, neste caso, mesmo os "gurskys"

também têm de morrer, não de doenças, mas de

acidentes, suicídios e homicídios. Os "gurskys" não

teriam esperança de vida, mas semi-vida (de forma

idêntica às substâncias radioactivas). Não havendo

um limite de vida, calcula-se que a mesma seria da

ordem dos 500 anos, partindo do pressuposto de que

a taxa de mortalidade por fenómenos violentos se

mantivesse constante.

No momento actual, a taxa de mortalidade aumenta

exponencialmente devido aos erros acumulados nos

nossos organismos. Cancro e doenças

cardiovasculares ilustram bem este fenómeno. A

maior parte das pessoas que morrem de doenças

cardiovasculares tem mais de 65 anos. Se fosse

possível reduzir em 50% a mortalidade por estas

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Salvador Massano Cardoso

408

afecções estaríamos a contribuir com alguns (poucos)

anos para o aumento da esperança de vida dos seres

humanos. Com base nas análises da curva

exponencial de mortalidade é possível calcular o

limite superior de sobrevivência. Actualmente, nos

países desenvolvidos, o limite superior (calculado) é

de 103 anos para os homens e cerca de 109 anos

para as mulheres, cifras que se aproximam dos casos

relatados de pessoas que chegam a "atingir" os 120

anos.

Se fosse possível aplicar a tecnologia genética para

resolver muitas situações, verificaríamos que o limite

superior seria cerca de 115 anos. Neste cálculo

estariam excluídos as infecções, cancro, anomalias

congénitas, doenças relacionadas com a gravidez,

doenças endócrinas, hematológicas e dermatológicas.

Ou seja: a tecnologia genética aumentaria em mais

nove anos o limite actual. Mas, se conseguíssemos

um cenário mais optimista - aumentar a "melhoria"

tecnológica por um factor de dois, a duração máxima

de vida passaria para os 135 anos, e, no caso

extremo, de um aumento de dez vezes, passaríamos

a ter um limite superior de 180 anos, ou seja, se a

actual taxa de mortalidade fosse reduzida dez vezes

menos, passaríamos a alcançar "quase" o dobro do

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

409

limite actual de sobrevivência.

Na expectativa de que as futuras tecnologias não irão

tornar-nos em seres gurskianos, continuaremos a

sofrer dos erros acumulados ao longo da vida. Logo,

a curva de mortalidade continuará a ser uma curva

exponencial e não viveremos muito tempo com sinais

de debilidade mental. Afinal, a "opção Titonus" (vida

imortal com demência eterna) não ocorrerá, mesmo

com o advento de tecnologias avançadas contra o

envelhecimento.

No inicio desta curta reflexão sobre o “melhoramento

humano em geral” foram utilizados, simbolicamente,

três exemplos protagonizados pelos nossos

longínquos antepassados.

Ao longo da nossa existência, como espécie, fizemos

descobertas técnicas e científicas notáveis que

escaparam à maioria das mentes e se alguns as

equacionaram logo eram rotulados de insanos ou de

coisas ainda piores.

Pensar o futuro é projectar o presente, satisfazendo

os nossos anseios e desejos. Talvez a humanidade

nunca tenha produzido tanto e ido tão longe como a

de hoje, ao ponto de muitos sonhos se

materializarem na própria geração, o que estimula e

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Salvador Massano Cardoso

410

reforça mais a necessidade e a esperança de ir mais

longe, cada vez mais longe, ao ponto de não saber se

haverá um limite.

A criação de um aparelho de diálise portátil,

recentemente publicitado, traduz uma evolução

tecnológica face ao universo de cerca de 1,3 milhões

de doentes cujas vidas estão bastante limitadas e

condicionadas pelas terapêuticas actuais. Obviamente

que a transplantação constitui a melhor das soluções

e, por si, já reflecte uma área muito importante que

tem contribuído para o “melhoramento humano”, mas

que já não consegue resolver os problemas, não

obstante todas as medidas que propiciam a colheita

de órgãos de cadáveres e de dadores vivos, sendo

por sua vez responsável pelo aparecimento de novas

dificuldades que põem em causa valores éticos, como

é o caso do tráfico de órgãos. A nova tecnologia

ajudará a resolver, pelo menos em parte, as

necessidades de muitos pacientes, enquanto o fabrico

de órgãos não ocorrer de forma a satisfazer as

necessidades dos seres humanos.

As recentes notícias sobre a possibilidade de, em

breve, obtermos as nossas próprias bexigas constitui

uma conquista das mais revolucionárias relacionadas

com o fabrico de órgãos, criando expectativas muito

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

411

fortes para a produção de outros, caso da criação de

“novo” de um coração de ratinho pela equipa de Doris

Taylor que, apesar da sua “fraquita” potência

bombeadora, permite franquear com muita confiança

as portas de uma modernidade inimaginável, mesmo

para as mentes mais “delirantes” em termos de

antecipação do futuro e de um homem muito

diferente do actual.

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Salvador Massano Cardoso

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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BREVES REFLEXÕES SOBRE O

ENVELHECIMENTO

Conferência realizada no dia 25 de Setembro de 2008

EXPOVITA-SENIOR

Conimbriga

Pediram-me para fazer uma intervenção formal sobre

o envelhecimento. Tendo sido “nomeado” comissário

da EXPOVITA-SENIOR, facto que muito me honra,

não podia recusar o convite.

Vou tentar, no decurso dos próximos minutos, fazer

uma abordagem e algumas reflexões sobre um dos

fenómenos mais interessantes da espécie humana: o

envelhecimento

Convivi sempre com pessoas de idade e aprendi

muito com elas.

“O conceito de que a idade acarreta bom-senso, paz,

serenidade e sabedoria é verdadeiro mas só em

parte. Acompanha-a outras facetas, ângulos sombrios

e tristes, marcados pelo arrependimento, subversão,

doença, sofrimento e a estranha percepção de que o

fim está ao virar da esquina mais próxima” (Julian

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Salvador Massano Cardoso

414

Barnes).

O livro, “A mesa de limão”, de Julian Barnes, escritor

britânico, demonstra, através de vários contos as

diferentes realidades emergentes no decurso do

envelhecimento. A escolha do título, também é

curiosa, o autor baseou-se na simbologia chinesa,

segundo a qual o limão representa a morte.

Ao mesmo tempo que lia esta obra, deliciava-me com

uma outra, “Gente de palmo e meio” de Augusto Gil.

Os contos deste genial autor focam as crianças com

as suas aspirações, visões do mundo, virtudes,

traquinices, medos, desejos, insegurança, tragédias,

alegrias e sempre muita esperança mesmo entre os

mais desafortunados; em perfeito contraste com a

obra de Barnes. Augusto Gil oferece-nos doces e

suculentas laranjas que, com o tempo, e na

perspectiva “barniana”, acabarão por se transmutar

em amargos limões.

A primeira vez que tive a noção do que era a

demência ocorreu quando tinha acabado de entrar na

faculdade. A tia São, que conheci sempre velha, e

que tinha perdido o único filho quando era nova e

depois o marido, era uma pessoa alegre, seca de

carnes, com um permanente sorriso infantil,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

415

encantadora, exímia contadora de estórias, fazia de

tudo e, sobretudo, adorava conversar. Vivia num

concelho vizinho e, sempre que a visitava, fazia-me

uma festa dos diabos, do género: - Oh Manelzito,

como estás crescido! E logo a seguir: - E como vai a

escola? Contava-me estórias e preparava-me um

lanche em que era obrigado a comer um pão enorme

de centeio, quentinho, barrado generosamente com

manteiga e ornamentado com uma boa lasca de

presunto, acompanhado, quase sempre, de uma

valente caneca de café de cevada. Mas, às vezes,

sobretudo no Verão, sem que mais ninguém

soubesse, ofertava-me um copito de vinho

morangueiro, fraquito, que surripiava na adega, onde

me levava a pretexto de qualquer coisa. – Não digas

a ninguém que eu te dei o vinho! Estás a ouvir? Era a

única vez que ficava séria! Claro que não me fazia

rogado!

Quando adoeceu, foi para casa da minha avó, tinha

que ser, não havia outra possibilidade, a família tinha

que tomar conta dos velhos e dos doentes. Ao

princípio não me apercebi bem o que se passava.

Tinha longos momentos de lucidez. Mas de tempos a

tempos, virava-se para mim e dizia: - Oh Manelzito,

como estás crescido! Como vai a escola? E eu lá lhe

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dizia, meio surpreso, claro! Passados pouco minutos,

depois de silêncios confrangedores, olhava para mim

e perguntava: - Quem és tu? – Então tia, não me

está a reconhecer? Olhava, olhava e dizia com

expressão de satisfação: - Oh Manelzito, como estás

crescido! E como vai a escola? Depois abria a janela

da sua mente e conversava normalmente, contando

coisas do passado e interessantes estórias, lindas,

mesmo de encantar, algumas das quais nunca tinha

ouvido, e sempre com o seu sorriso infantil.

Com o tempo, os períodos de lucidez foram-se

apagando e os momentos de reconhecimento do

género: - “Oh Manelzito, como estás crescido! E como

vai a escola?”, tornaram-se menos frequentes, até

que a janela do tino se fechou definitivamente e

ficámos sem o seu sorriso infantil e sem as estórias

encantadoras, passando o resto da vida, se é que se

pudesse chamar vida, num estado lastimável.

Recordei-me da tia São, mulher do povo, dura,

simples e culta, que poucas vezes deverá ter saído de

um círculo com um raio de dez quilómetros, devido

aos seus contos - a lembrar, embora à distância,

Augusto Gil, obrigando-me no fim a retirar as

conclusões morais dos mesmos. E só me largava

quando ficava satisfeita. Um verdadeiro exame oral!

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

417

O fenómeno da demência está a tomar proporções

epidémicas, devido ao envelhecimento da sociedade.

Ainda há dias, a imagem de Adolfo Suarez, que

desempenhou um papel importante na transição

democrática em Espanha, ao lado do rei,

desconhecendo o papel que teve naquele país,

incomodou-me. Outros exemplos de políticos famosos

que exerceram com brilhantismo as suas actividades

acabaram por vir a sofrer desta terrível doença, caso

de Ronald Reagan e, mais recentemente, Margaret

Tatcher.

É estranho que muitas pessoas brilhantes, quer

tenham sido presidentes, primeiros-ministros,

cientistas, artistas ou simples mulheres e homens do

povo, mas que revelaram um qualquer traço de

superioridade ou até de genialidade, acabem por

perder o juízo.

Laranjas doces que na velhice acabam por

transformar-se em limões!

Desde sempre, tal como já disse no princípio desta

conferência, que convivi e aprendi muito com os mais

velhos. Também aprendi a viver outro fenómeno: a

morte. A morte que não escolhe idades mas que

privilegia, e ainda bem, os mais idosos. Horroriza-me

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418

que alguém morra sem a companhia de alguém

querido. Todos sabem que hoje em dia o mais comum

é morrer longe, às escondidas.

A primeira vez que assisti a uma morte tinha uns seis

anos. Não me custou nada. Um velho tio acabou os

seus dias no seu quarto acompanhado dos seus

familiares.

No último dia, ao fim da manhã, mandaram-me

chamar o padre Sobral, mais conhecido por padre

“Rodelas”, para ministrar a extrema-unção. Lá fui

mais o padre e as minhas primas para o quarto. O

padre “Rodelas” paramentou-se adequadamente e

começou a sua prédica, enquanto eu segurava o

balde com o hissope. Lembro-me como hoje, o

momento em que o tio Miguel foi aspergido pela água

benta a qual me salpicou os olhos. Naquela altura

olhava para o tecto onde estava pendurada, em cima

da cama, a velha bicicleta do meu tio. E, enquanto

limpava os olhos, perguntava aos meus botões: -

Como é que o tio Miguel conseguiu por a pasteleira lá

no tecto? E se ela caísse enquanto dormia? Este tio é

mesmo maluco!

Depois do almoço, o tio Miguel adormeceu para

sempre e nunca mais o veria a fazer os seus cigarros

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

419

de barba de milho e a contar as suas aventuras da

Grande Guerra. Morrer assim é outra coisa…

Acabo de falar de dois fenómenos comuns nos idosos,

a demência e a morte. Nestes dois casos, entre

muitos outros que vivi, pretendo demonstrar que as

pessoas de idade sempre tiveram quem os cuidasse

nas situações mais delicadas até ao momento final. A

família era o suporte de apoio geriátrico que ainda

hoje sobrevive. Mas os tempos mudam, as

necessidades alteram-se e as famílias modificam-se.

Cada vez é mais difícil solicitar aos familiares que

continuem a tomar conta dos seniores. Dispenso-me

de elencar as razões, porque são do conhecimento

geral.

O processo de envelhecimento é complexo e às vezes

um pouco misterioso.

Utilizo, com alguma frequência, a expressão “velho”.

Não me repugna nada esta designação, se bem que

as expressões velhice e velho, na perspectiva de

alguns, ao reflectirem um significado pejorativo,

foram substituídas por terceira idade e idosos, para

não ofender o pudor social.

Cícero usou a expressão terceira idade há dois mil

anos (séc. I, a.C.) na sua obra «De Senectute», ao

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Salvador Massano Cardoso

420

referir-se a Nestor como o mais idoso príncipe que

assistiu ao cerco de Tróia.

Huet, na década de sessenta introduziu novamente

a expressão de terceira idade para suavizar a

conotação negativa atribuída à velhice. “Qualquer

das expressões são anacrónicas, porque não existem

em si mesmas e são sempre portadoras de uma

cultura”. “O que existe é o ser humano pleno a

caminho da sua auto-realização…”.

Deste modo, o conceito de terceira idade é uma

criação artificial. Montaigne nos seus 40 anos

descrevia a chegada da triste velhice e sentia-a…

Houve alturas em que aos 50, aos 60 anos já eram

considerados velhos e tinham comportamentos e

doenças graves. Hoje, velho aos 65 anos? Era o que

mais faltava!!!!! Hoje, aos 65 anos as nossas

capacidades físicas e mentais permitem-nos trabalhar

e desfrutar a existência de uma forma perfeitamente

normal. A maior conquista da humanidade foi

precisamente vulgarizar e democratizar a velhice em

condições que, por vezes, fazem inveja aos mais

novos.

Convém relembrar que a esperança de vida pouco se

alterou entre a pré-história e o momento em que

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

421

Cristo nasceu, passou de 25 para 30 anos e demorou

1900 anos para atingir apenas 40. No último século

praticamente duplicou para os 80 anos.

E agora? Podemos viver mais? Com saúde? Sem

saúde? É fácil de compreender que a patologia

aumenta com a idade, caso das doenças

cardiovasculares, cancro, doenças degenerativas

osteomusculares e demência, mas as conquistas na

área da saúde empurram cada vez para mais tarde o

seu aparecimento assim como as sequelas funestas.

A população envelhece a um ritmo acelerado,

esperando que muito em breve deixemos de ligar a

quem faça 100 anos. Começa a ser tão corriqueiro

que a comunicação social vai deixar de dar notícias

sobre essas pessoas, passando a referenciar apenas

quem faz 110 ou 115.

O Japão é o país do mundo com mais centenários,

36.000, e em 2050 atingirá o milhão. Por aqui

poderemos tirar as nossas medidas em matéria de

longevidade. Se agora temos bastante dificuldade em

apoiar os nossos seniores, então imaginem quando

passarmos a ter centenários. Dificuldades nos

cuidados sociais, médicos e até familiares, pois ter

filhos com 80 anos a cuidar dos pais não me parece

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Salvador Massano Cardoso

422

ser muito razoável.

A nossa sociedade dispõe de alguns meios de apoio e

até de um Programa Nacional de Pessoas Idosas,

facto que releva o interesse e a preocupação com os

mais velhos. No entanto, é preciso manter as pessoas

de idade o mais activas possível, no seu ambiente,

manter e reforçar os laços familiares, que não se

esgotam nos filhos, devendo estender-se aos netos.

Deverão ser incentivados a ter participação activa na

sociedade de modo a enriquecê-la com as suas

experiências e sabedoria acumuladas ao longo da

vida, têm direitos a desfrutar de apoios sociais e

económicos de forma a ter uma vida condigna e

quando for caso disso de apoios.

Manter as pessoas de idade nas suas habitações é

essencial para preservar a saúde mental. Em caso de

necessidade, deverão usufruir de apoios técnicos,

assistenciais e clínicos. A preparação de técnicos

geriátricos capazes de resolver a maior parte dos

problemas é um imperativo que tarda em concretizar.

Os técnicos geriátricos deverão saber de

enfermagem, de medicina, de psicologia, de

sociologia, resolver problemas burocráticos e

administrativos relacionados com a vida dos idosos,

proporcionar convívio cultural, afectivo e artístico,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

423

verdadeiras personalidades cujo polivalência é

determinante para ajudar e cuidar os mais

necessitados. É difícil de compreender que face a um

“mercado” em crescendo - entenda-se a palavra

mercado, no seu sentido mais lato -, que não tenha

sido ainda explorado. É inadmissível que o

acompanhamento e cuidados com os mais idosos

sejam feitos por pessoas indiferenciadas, cuja boa

vontade e solidariedade são manifestamente

insuficientes. A população a envelhecer a breve prazo

será diferente da actual, mais refinada, mais culta,

mais exigente e, por estas razões, necessitarão de

pessoal à altura, de forma a não criar situações

embaraçosas ou negativas.

As novas tecnologias já começaram a ser utilizadas

para apoio ao idoso. Possibilidade de contacto

permanente com as diferentes instituições, em

matéria de segurança, apoio médico, esclarecimentos

sociais, conversar com familiares e amigos irão ser

vitais para um novo enquadramento dos idosos, ao

qual se associará a construção de habitações

adaptadas às limitações próprias da idade. A

domótica constitui uma área a explorar e cheia de

potencial para facilitar a vida aos mais idosos. O

próprio urbanismo terá de ser equacionado para se

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Salvador Massano Cardoso

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adaptar à nova realidade demográfica. A distribuição

da população dentro das localidades portuguesas,

caracterizadas, de um modo geral, por uma

ancestralidade defensiva com os seus castelos

altaneiros, bonitas e funcionais para quem tem boas

articulações e bom coração, mas não para as pessoas

de idade, terá de sofrer alterações significativas para

áreas mais consentâneas com as suas características

e limitações. Os desafios colocados pela processo

gerontorevolucionário em curso, estendem-se a

muitas mais áreas tais como a do turismo sénior. Um

dos mercados mais florescentes que temos à nossa

porta e dentro de nós. Seria uma estultice da minha

parte enumerar a riqueza e o potencial de oferta do

nosso país em matéria de turismo adequado às

pessoas de idade que, aliás, começa a dar passos

muito interessantes. Os aspectos culturais e literários

também têm sido objecto de atenção, facto que

merece realce entre nós, graças às Universidades da

Terceira Idade. Enfim, muito mais haveria dizer sobre

a velhice, a senectude ou a terceira idade como

queiram chamar.

O que importa, neste momento é criar o máximo de

redes que envolvam as pessoas de idade e fazer com

que essas redes, de malhas cada vez mais finas,

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

425

possam entrosar umas nas outras de forma a

potenciar uma assistência de elevada qualidade. São

inúmeros os campos onde podemos actuar, conforme

tive oportunidade de abordar, ainda que

superficialmente.

Em pequeno, um dia perguntaram-me qual era o meu

maior desejo. Recordo ter disparado, de imediato, a

seguinte frase: “A minha maior aspiração é ser

velho”!

Muitos têm dificuldade em aceitar a velhice, lidando

muito mal com esta condição, que, de facto, é um

verdadeiro estado de excepção, porque a Natureza

não é muito adepta da velhice, basta ver o que

acontece com a maioria das espécies. Seja como for é

bom viver muitos anos, sobretudo com o mínimo de

capacidades, mas o risco de adoecer e de morrer

aumenta exponencialmente com a idade. Os diversos

factores que, diariamente, são enunciados como

responsáveis por muitas doenças devem ser

analisados em função do tempo.

A este propósito convém informar que quando

comemoramos o nosso aniversário não fazemos mais

um ano, mas sim “um ano e mais qualquer coisita”,

“qualquer coisita” que vai aumentando de ano para

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Salvador Massano Cardoso

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ano! O tempo biológico acelera enquanto o

cronológico se mantém constante. Este fenómeno foi

quantificado no século XIX por Benjamin Gompertz,

matemático judeu, que criou uma interessante

equação segundo a qual seria possível calcular o risco

de morte com a idade. Como estava ligado a

seguradoras viu aqui uma forma interessante de

calcular os prémios de seguro em função da idade.

Mas o que é curioso é o facto de que através desta

lei, Lei de Gompertz, que se aplica, também, às

outras espécies, ser possível calcular o tempo de

duplicação da taxa de mortalidade que é cerca de

uma semana nas moscas, três meses nos ratinhos e

de oito anos nos seres humanos. Deste modo,

partindo da “idade em que não se morre”, que na

nossa espécie oscila ao redor dos 10/11 anos, é fácil

de calcular que a taxa de mortalidade é duas vezes

superior aos 18 anos, quatro vezes aos 26 anos, oito

vezes aos 34 anos, dezasseis vezes aos 42 anos,

trinta e duas vezes aos 50 anos, sessenta e quatro

vezes aos 58 anos e o melhor é ficar por aqui para

não assustar mais!

Por cada dia que passa envelhecemos mais

rapidamente do que no anterior, numa aceleração

preocupante que, curiosamente, parece diminuir em

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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idades muito avançadas, não se sabendo se é por

falta de combustível ou por esquecimento de São

Pedro!

Este fenómeno biológico é curioso e tem como

correspondente a percepção da passagem do tempo.

Em criança e na adolescência o tempo demora a

passar, depois começamos a ter a percepção de que

acelera, mas a partir de certa altura nem damos pela

sua passagem.

E agora? Podermos ir até onde? Qual o limite da

duração da vida? A procura da imortalidade foi

sempre uma das maiores aspirações humanas.

Presentemente podemos viver “Mais uns anitos”, mas

alcançar a imortalidade não me parece ser uma boa

ideia. Basta recordar o Mito de Titonus.

Passo a contar a história:

Eos também conhecida como Aurora, a deusa da

madrugada, apaixonou-se por Titonus, mero mortal.

Consciente desse facto, pediu a Zeus a imortalidade

para o seu amado. Eos, ingloriamente não se

apercebeu que imortalidade não é sinónimo de eterna

juventude.

Tinha isso em mente, quando fez o pedido. Zeus que

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Salvador Massano Cardoso

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não é ingénuo e que não gosta muito que as suas

deusas se apaixonem por mortais, fez-lhe a vontade.

Titonus envelheceu, envelheceu, acabando por ficar

totalmente demenciado.

Eos sofria tanto com a situação, que acabou por

transformá-lo em gafanhoto, segundo uns, ou cigarra

segundo outros, símbolo da imortalidade na mitologia

grega.

Espero sinceramente que esta EXPOVITA-SENIOR

constitua um ponto de partida em que possamos

debater para conhecer e no fim resolver muitos dos

problemas que afligem neste momento grande parte

dos nossos concidadãos e, no futuro, nós próprios,

porque o tempo não perdoa. Mas afinal o que é o

tempo? Para o efeito socorro-me desta bela frase de

um dos maiores escritores de todos os tempos, Jorge

Luís Borges, “O tempo é a substância de que sou

feito”.

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Notas de Saúde Pública e Ambiental

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ÍNDICE

ÁGUA E SAÚDE ..........................................................................................1 QUALIDADE NA SAÚDE: TERRA, ÁGUA E AR ........................................15 DOENÇAS, ETNIAS E DESIGUALDADES SOCIAIS .....................................39 POLÍTICA DE AMBIENTE E SAÚDE ..........................................................49 AMBIENTE E SAÚDE.................................................................................69 AMBIENTE, EVOLUÇÃO E PATOLOGIA HUMANA ....................................89 ALIMENTAÇÃO, AMBIENTE E EVOLUÇÃO.............................................109 ”A PERGUNTA DE YALI”… ...................................................................133 SAÚDE E TRABALHO ..............................................................................143 DOENÇAS PROFISSIONAIS. “UM ASSASSINO SILENCIOSO”..................161 “O MÉDICO DO TRABALHO FACE À MEDICINA ITINERANTE: OS NOVOS ANDARILHOS” ........................................................................................173 SAÚDE DOS TRABALHADORES E OS RISCOS BIOLÓGICOS ....................185 SEGURANÇA, HIGIENE E SAÚDE NO TRABALHO .................................203 DESABAFO SOBRE A HIPERTENSÃO ARTERIAL.....................................217 O TABACO MATA SOB TODAS AS FORMAS"..........................................231 OBESIDADE INFANTIL E DO ADOLESCENTE ..........................................243 SEGURANÇA ALIMENTAR ......................................................................253 EPIDEMIOLOGIA DA ASSOCIAÇÃO DIABETES MELLITUS – HIPERTENSÃO ARTERIAL................................................................................................267 DIABETES MELLITUS E “SÍNDROMA DE STATUS” ...................................273 DIABETES E LITERACIA..........................................................................279 “SAL, HIPERTENSÃO E POLÍTICA” ........................................................297 ÁLCOOL ..................................................................................................303 "FAZ MAL, MAS SABE BEM" ..................................................................331 “BIOÉTICA, REFLEXÕES A PROPÓSITO” ................................................347 APRESENTAÇÃO DO LIVRO “A SAÚDE, AS POLÍTICAS E O NEOLIBERALISMO” ................................................................................355 ACADEMIA PORTUGUESA DE MEDICINA..............................................371 SINISTRALIDADE ....................................................................................379 MELHORAMENTO HUMANO EM GERAL (ASPECTOS TÉCNICOS) .........399 BREVES REFLEXÕES SOBRE O ENVELHECIMENTO ...............................413 ÍNDICE.....................................................................................................429