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1 BRENO KRUSE DE MORAIS O MERCADO DE MÚSICA DIGITAL Trabalho de Conclusão de Curso ECA - USP Orientador: Victor Aquino Gomes Corrêa

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BRENO KRUSE DE MORAIS

O MERCADO DE MÚSICA DIGITAL

Trabalho de Conclusão de Curso

ECA - USP

Orientador: Victor Aquino Gomes Corrêa

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BRENO KRUSE DE MORAIS

O MERCADO DA MÚSICA DIGITAL

Trabalho de Conclusão de Curso

Comunicação social - Habilitação em

Publicidade e Propaganda

Departamento de Relações Públicas,

Publicidade e Propaganda e Turismo

Escola de Comunicações de Artes

Universidade de São Paulo

Orientador: Victor Aquino Gomes Corrêa

São Paulo

2009

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SUMÁRIO

RESUMO ....................................................................................................................... 4

GLOSSÁRIO ................................................................................................................. 5

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 6

1 - O FONOGRAMA: A PRIMEIRA REVOLUÇÃO MUSICAL ................................... 11

2 - O ANTES: O SISTEMA DAS GRAVADORAS ....................................................... 16

3 - O DEPOIS: A ECONOMIA DA MÚSICA NO MUNDO DIGITAL .......................... 24

3.1 - AS NOVAS TECNOLOGIAS ................................................................................ 25

3.1.1 - MP3 e peer-to-peer ......................................................................................... 25

3.1.2 - "Rip, Mix, Burn" e o iPod ................................................................................. 27

3.2 - AS NOVAS RELAÇÕES ENTRE MÚSICA E USUÁRIO ....................................... 29

3.3 - A REAÇÃO DA INDÚSTRIA ................................................................................. 35

3.4 - O NOVO MERCADO ........................................................................................... 41

3.5 - CAMINHOS ALTERNATIVOS: BANDA CALYPSO E CANSEI DE SER SEXY ..... 48

3.5.1 - Cansei de Ser Sexy .......................................................................................... 48

3.5.2 - Banda Calypso ................................................................................................ 51

4 - O FUTURO: NOVAS VISÕES E MODELOS ......................................................... 56

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS: MÚSICA E A ECONOMIA DO GRÁTIS .................. 63

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 72

ANEXOS ...................................................................................................................... 73

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RESUMO

O trabalho que se segue propõe uma breve análise de como se constituiu a

indústria do disco no século XX, e como a chegada das tecnologias digitais

reestruturou não só a comercialização, mas todo o ritual de consumo

existente. Nesse contexto, discute-se alguns dos possíveis apontamentos e

alternativas apresentados pelas novas tecnologias para o novo mercado de

música.

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GLOSSÁRIO

ABPD - Associação Brasileira de Produtores de Disco

IFPI - Federação Internacional da Indústira Fonográfica (International

Federation of the Phonographic Industry)

RIAA - Associação Americana da Indútria de Gravação (Recording Industry

Association of America)

Peer-to-peer - rede de servidores conectados que permite o acesso,

gerenciamento e troca de conteúdo em um ambiente distribuído e em tempo

real, através de um sistema de busca avançada.

Streaming - Tecnologia para transferência de dados através da qual um

arquivo (geralmente de música ou vídeo) pode ser executado direto de um

servidor virtual, sem ocupar espaço no computador do usuário.

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INTRODUÇÃO

É absolutamente inegável que grandes transformações ocorreram com

a introdução da web e das tecnologias digitais nas sociedades e no mercado

nas últimas décadas. Poderíamos apontar dezenas de exemplos de nosso dia-

a-dia, em casa ou no trabalho, do quanto nossa rotina se transformou. No

entanto, poucos setores sofreram essa mudança de forma tão profunda e

emblemática quanto a indústria fonográfica.

O chamado “mercado de disco” se resignificou completamente, ao

longo dos pouco mais de dez anos subseqüentes a mudanças como a

chegada da internet aos computadores pessoais e a reprodução doméstica de

Cds, que no princípio confundiam-se com modismos restritos a uma pequena

parcela do público, mas que mostraram-se poderosos transformadores da

sociedade e do consumo de cultura.

O objetivo desse trabalho é comparar, dentro das esferas de marketing

e comportamento de consumo, o mercado musical antes e depois da

revolução digital. Para tanto, apresentaremos uma análise do cenário da

música e das gravadoras, antes, durante e depois da mudança.

Como a evolução da técnica de gravação e comercialização dos

fonogramas resultantes evoluiu num mercado que ao longo do século XX se

tornou uma indústria milionária que, em seu auge, criou mitos,

comportamentos e movimentos culturais, e se tornou um dos mais lucrativos

segmentos da indústria de entretenimento, chegando a um cenário no qual

mais de 80% do comércio de música no mundo chegou a ser dividido entre

apenas quatro empresas multinacionais, que através de sistemas de marketing

e fórmulas de divulgação estabelecidas, definiram os rumos da música pop.

A chegada do digital a princípio não negava os paradigmas

estabelecidos pela indústria. As primeiras manifestações das novas

tecnologias eram apenas formas “marginais” de reprodução e

compartilhamento do conteúdo construído pelas grandes gravadoras dentro

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do esquema citado no parágrafo anterior. No entanto, a evolução da relação

entre música e web mostrou-se muito mais – uma profunda transformação na

relação entre música e público. O formato MP3 e as redes peer-to-peer

trouxeram possibilidades inéditas no modo como se descobre e se divulga

música.

A união desses três fatores – A internet cada vez mais popular, o

formato MP3 e as redes peer-to-peer - rapidamente surtiu efeitos no mercado

fonográfico, atingindo especialmente a fatia mais ativa de seus consumidores:

Os jovens. A liberdade trazida pelos novos meios era extremamente atraente,

as possibilidades infinitas de trocas de referências, a facilidade para se

encontrar e distribuir música independente, e a liberdade quanto a uma das

convenções mais significativas da história da música gravada até então: O

formato "álbum".

As mudanças em pouco tempo foram ganhando um grande numero de

adeptos, e a indústria, sentindo-se ameaçada, passou a tratar como criminosa

todo tipo de manifestação que envolvesse qualquer das tecnologias digitais

"ilegítimas", considerando o compartilhamento digital tão ilegal quanto a

venda de Cds falsificados. O problema que surge daí, é o fato de que a música

em formato digital e a música no suporte físico não são o mesmo produto. A

luta inicial, portanto, não foi contra a utilização ilegal do produto existente, mas

contra o nascimento de uma nova forma de distribuição e de ritual de

consumo. A indústria "legal" da música demorou tanto tempo para incorporar

o MP3 e a distribuição digital, que quando o fez, as atividades marginais

estavam tão evoluídas que se tornara impossível destruí-las.

Mas se a mudança brusca, de um lado, enfraquece um sistema, cria

novos. Ao mesmo tempo em que os grandes êxitos fonográficos, nos moldes

como foram construídos ao longo do século passado, perderam muito de sua

força (e tornam-se cada vez mais difíceis de serem repetidos), outros

caminhos surgiram, permitindo que artistas cresçam em meios alternativos, de

forma como não cresceriam no cenário predominante até a década de 90.

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Construiremos algumas breves análises das realidades a serem

comparadas, analisando meios de consumo, distribuição e promoção, nos

dois contextos em que se foca o trabalho. O primeiro momento, discutindo o

mundo dominado pelas majors - as grandes gravadoras - funciona quase

como um relato histórico das estratégias que funcionaram no passado. As

discussões seguintes têm a intenção de apontar alguns novos caminhos

abertos pela revolução digital.

A análise referente ao passado, naturalmente é mais simples. Não

somente pelo fato de que o passado já tem seus êxitos bem definidos, ou por

ser mais fácil construir um olhar crítico sobre um fenômeno estático, mas

neste caso, por uma questão estrutural que se reconstruiu dentro do mercado

da música: O conceito de “sucesso”.

Segundo as fórmulas tradicionais da indústria fonográfica, a definição

do sucesso é absolutamente objetiva: Grande vendagem de discos. As

gravadoras foram construídas sobre esse objetivo fundamental.

No Brasil dos anos 80, as corporações responsáveis pelo mercado de

disco haviam criado fortes sistemas de promoção e venda de seus

lançamentos, e atingiam grandes vendagens em um cenário que proliferava

financeiramente e parecia crescer indefinidamente, tanto do ponto de vista dos

artistas quanto dos empresários. Essa indústria contrastava grande sucesso

com manobras políticas e econômicas, quando o resultado nas lojas dependia

da criação de esquemas favoráveis de distribuição, através de boas relações

com grandes e pequenos varejistas, e a popularidade estava atrelada ao

pagamento do "jabá" radiofônico e televisivo.

O contexto atual, no entanto, se mostra muito mais complexo e múltiplo

no que diz respeito às praticas do mercado musical. A própria delimitação do

que era esse mercado perdeu sentido - se antes o foco era a venda física (LP

e, posteriormente, CD), hoje as atividades que podem ser entendidas como

integrantes desse segmento são inúmeras. Desde o entendimento de que o

show, sempre visto pelas gravadoras como uma ferramenta de divulgação,

pode ser em si uma fonte de renda, até o surgimento de possibilidades

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inéditas, como a exploração de conteúdo (musical ou não) gerado pelos

artistas em plataformas variadas dentro de um ambiente digital. E dentre essas

inúmeras novas concepções, a boa e velha venda de disco, ou mesmo a

venda da música para o consumidor final, ocupa um espaço muito menor no

montante geral da indústria da música.

Em face desse quadro, como podemos então, definir o sucesso na

música contemporânea? Não existe mais uma maneira objetiva ou absoluta de

fazê-lo. Um conjunto ou artista de sucesso é aquele que cresce e desenvolve

uma carreira estável, conquistando uma base de consumidores que permitam

à “máquina” que faz a banda existir e produzir, se sustentar e crescer. E isso

depende de uma longa série de variáveis, discutidas posteriormente neste

trabalho, que possibilitarão a existência de diversos tipos de sucesso, dos

quais selecionei dois exemplos bem distintos para a análise da indústria

contemporânea da música. São eles: Banda Calypso e Cansei de Ser Sexy.

O primeiro desses, nascido dentro de um contexto extremamente

específico, dos shows populares, da guitarrada (estilo musical do norte do

país) e do brega paraense, utilizou desde o início formas alternativas de

comercialização do seu produto, tirando proveito da pirataria (apontada como

o coração da ruína da indústria pelas grandes gravadoras) e da grande

quantidade de shows realizados pelo grupo, para alcançar vendagens

impressionantes e construir um fenômeno que se espalhou por todo o Brasil.

O segundo exemplo, também oriundo de uma cena isolada - das casas

underground e da música independente da cidade de São Paulo; tomou para

si a imagem da revolução digital e independente, e produziu, a partir de shows

registrados em vídeo e foto, e divulgados em sites de relacionamento, além de

distribuição de material musical gerado pela banda, um conteúdo online com

um caráter de buzz que fez a banda ser conhecida por sua ousadia não só

aqui no Brasil como em todo o mundo, e transformou o Cansei de Ser Sexy no

maior nome da música contemporânea brasileira, com direito a contrato de

licenciamento com uma das principais gravadoras independentes do mundo

(Sub Pop Records) e participação nos maiores festivais de rock e música pop

dos Estados Unidos e da Europa.

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Ambos são casos atuais de inegável sucesso, que tem em comum o

fato de terem utilizado meios não tradicionais de music business, e por isso,

de não poderem ter existido da mesma forma dez anos atrás. As novas

práticas e caminhos, como nos dois exemplos acima citados, aconteceram

num contexto onde ainda existem os esquemas tradicionais, onde o sucesso

da Banda Calypso e do Cansei de Ser Sexy convivem lado a lado com

sucessos criados nos moldes de grandes vendedores como Roberto Carlos,

dentro do mercado da música considerado “legítimo” pelas grandes

gravadoras. No entanto, as estruturas tradicionais estão se enfraquecendo, e

os moldes sobre os quais elas foram construídas geram cada vez menos

resultado. As novas práticas não devem extinguir completamente as antigas,

nem as grandes gravadoras devem desaparecer, mas é certo que a receita do

sucesso mudou.

A conclusão traz algumas considerações desenvolvidas a partir do olhar

crítico sobre os acontecimentos descritos ao longo do trabalho. Quais são

algumas das possibilidades que podem surgir no futuro do mercado da

música, e para que tipo de evolucões a indústria pode caminhar, tendo em

vista as mudanças que vêem ocorrendo.

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1. O FONOGRAMA A Primeira revolução musical

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Desde o surgimento das primeiras formas de expressão musical, ainda

em sociedades tribais, até o fim do século XIX, todo tipo de música era

marcado por um ponto em comum: A efemeridade da performance. "Ouvir

música" fazia parte de um ritual social, e só era possível através do encontro

entre músico e público. Um indivíduo que não tivesse domínio de nenhum

instrumento (ou seja, incapaz de produzir sua própria música) jamais poderia

ouvir música sozinho. Qualquer evento musical existia somente durante sua

execução, e o indivíduo que quisesse desfrutá-lo novamente precisaria

aguardar uma nova performance (que, por mais próxima que fosse, não seria

igual à primeira).

No entanto, num cenário pré-fonograma, já existia um mercado

musical,posteriormente, pelo comércio de partituras. Ainda assim, a audição

estava necessariamente presa à performance e, por conseqüência, música era

essencialmente um evento social.

Com a invenção da tecnologia de gravação e reprodução de áudio, no

final do século XIX, o que surgiu foi mais do que a simples possibilidade de se

ouvir repetidas vezes a mesma obra musical. O papel da música na sociedade

se alterou, e posteriormente, com o desenvolvimento do mercado, diversos

setores da indústria se desenvolveram a partir disso, e transformaram não só o

modo como se ouve música, mas que tipo de música se ouve e de onde ela

vem. O nascimento da indústria fonográfica criou novas categorias de ouvintes

e de músicos, criou novos eventos sociais e culturais, e trouxe uma infinidade

de novos significados para a música, sem no entanto, eliminar os rituais

antigos. Os concertos e exibições públicas continuaram existindo, as

partituras continuaram sendo produzidas e vendidas. A revolução não excluiu

os rituais existentes, mesmo que tenha alterado seus significados. No entanto,

os meios pelos quais se consumia música antes da tecnologia de gravação

deixaram de ser os meios principais. Em compensação, o volume de música

consumido por cada indivíduo passou a ser maior.

Como costuma ocorrer no surgimento de uma tecnologia muito

inovadora, no início da tecnologia de gravação, grande parte dos envolvidos

no que então era conhecido como "mercado de música" se mostraram

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avessos ao novo sistema. Os músicos em especial, temiam que a

comercialização da música através de disco os faria perder oportunidades de

trabalho, já que as pessoas, tendo acesso à musica em suas casas, não

precisariam se movimentar para ir aos concertos e apresentações. Algumas

histórias interessantes sobre as primeiras gravações de Jazz relatam que

vários dos intérpretes mais reconhecidos da época se negaram a serem

registrados, com medo de que isso colocasse em cheque a unicidade de sua

música, que se tornaria mais fácil de imitar. A primeira gravação de Jazz da

história foi feita com o grupo Original Dixieland Jass Band, formado por

músicos brancos, sabidamente inferiores aos grandes intérpretes de New

Orleans, pois os últimos renegavam a produção dos fonogramas.

Ao cabo de alguns anos porém, a nova indústria foi aceita pelos

músicos, que perceberam no disco, além de uma fonte de renda, uma

possibilidade de aumentar a popularidade de seus shows. Esse fato trouxe

uma novidade que ia além do ritual propriamente dito de se ouvir música. A

partir do momento em que cada performance se torna um produto, a figura do

intérprete ganha um peso inédito até então. A indústria fonográfica passa a se

sustentar sobre personalidades, artistas como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald

e Frank Sinatra tornaram-se fundamentais para o desenvolvimento do

mercado musical como ele viria a se tornar.

Poucos anos depois da legitimação dos formatos criados pela indústria

nascente das gravadora, um novo meio surgiu como ferramenta

profundamente transformadora da realidade que se instalava: O rádio. Tal qual

a reação dos artistas ao fonograma, a reação das gravadoras ao rádio foi

inicialmente negativa. Os produtores imaginavam que a possibilidade de se

ouvir músicas através de um novo aparelho, sem pagar individualmente pelos

discos, acabaria com as companhias que dependiam da venda. Mais uma vez

a suposição mostrou-se infundada, e o que ocorreu foi justamente o oposto.

O rádio mostrou-se uma poderosa ferramenta de promoção, e mostrou

que o consumidor não se satisfazia com uma programação feita por terceiros,

sentia a necessidade de, mais do que ouvir a música, possuí-la. Num

crescente mercado fonográfico, a compra do disco era a única maneira de se

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ter a possibilidade de ouvir qualquer coisa que se quisesse, em qualquer

momento desejado. Ainda assim, o rádio tornou-se uma peça fundamental no

dia-a-dia da sociedade, e uma das principais formas de consumo de

entretenimento e de informação. Especialmente para a indústria de música,

inaugurava possibilidades poderosas.

Até então, a única forma de se conhecer novos artistas eram os shows.

Portanto, o único caminho que as gravadoras tinham de promover

eficientemente suas apostas eram as excursões (turnês) dos músicos. Mesmo

que outros tipos de divulgação fossem usados, como cartazes, ou divulgação

em mídia impressa, a única maneira realmente eficiente de persuadir o

consumidor a adquirir um disco era (e desde então continua sendo) fazendo

com que a música pudesse ser ouvida.

Essa relação apresentava dificuldades nas duas pontas do consumo:

Os produtores não conseguiam fazer com que a música chegasse a todos os

lugares em que poderiam ser vendidos discos, e os consumidores muitas

vezes não podiam comprar a música que ouviam, visto que muitos artistas que

se apresentavam em shows e concertos não tinham registro em disco. O rádio

transformou profundamente essa relação. Com a possibilidade de se ouvir

novos artistas em casa, em diferentes situações, criou-se um cenário em que

o rádio passou a ser a principal forma de o ouvinte descobrir novos números

musicais. Vislumbrando, através disso, conquistar novos consumidores e

expandir o mercado, as gravadoras passaram a promover suas atrações

através da programação musical das estações de rádio.

A mudança trazida pelo rádio para a vivência musical da sociedade, no

entanto, representou mais que simplesmente um novo canal de descoberta de

artistas. O consumo tornou-se muito maior. O que antes se restringia a

concertos e apresentações, que exigiam o deslocamento do indivíduo até o

local onde aconteciam, ou, posteriormente, a audição proporcionada pelos

poucos produtos oferecidos por uma indústria incipiente e socialmente

restrita, se transformava em uma atividade diária.

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Essa mudança de foco trouxe o que poderia ser entendido como uma

forma de "banalização" da música, que deixava de ser um ritual atrelado a

uma determinada situação, num instante específico e num espaço ideal. Mas o

fato é que nunca se havia consumido tanta música no mundo. O mercado

fonográfico se aproveitou dessa condição para expandir a oferta de produtos,

que com o novo meio poderiam ser promovidos e vendidos de forma quase

livre de barreiras geográficas.

Essa relação criada entre ouvinte, veículo e gravadora, que se traduzia

comercialmente na relação consumidor, loja de disco e gravadora, ditaria todo

o desenvolvimento posterior da indústria fonográfica. Os canais agregados

posteriormente (cinema e televisão, principalmente) traziam apenas novos

elementos à mesma lógica. O objetivo passou a ser a criação, através dessa

força de promoção, de personalidades que fossem capazes de conquistar

grandes massas de fãs, e nas quais se apoiariam as grandes vendagens de

disco.

Discutiremos a seguir, as formas através das quais a indústria construía

e transformava em fonte de grandes lucros os grandes personagens da

música. O sucesso alcançado pelos grandes ícones era, sem dúvida, resultado

de uma convergência de fatores culturais e musicais - a identificação do artista

com o contexto sócio-cultural, a habilidade de sintetizar artisticamente o

pensamento comum, a qualidade musical, o talento e o carisma, todos esses,

pontos comuns às figuras realmente relevantes da música do século XX .

Ainda assim, tudo isso estava intimamente relacionado aos fortes métodos de

divulgação utilizados pela indústria, e pelo contexto midiático criado pelo rádio

e televisão. Os caminhos utilizados pela indústria que se desenvolveu

incrivelmente desde seu surgimento até atingir seu auge absoluto entre 1990 e

2000, para perder quase que completamente o sentido no curtíssimo intervalo

de tempo em que as tecnologias digitais revolucionaram o consumo midiático.

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2. O ANTES O Sistema das gravadoras

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O sistema que tornou-se absoluto na segunda metade do século XX na

indústria fonográfica mundial, era aquele construído e administrado pelas

gravadoras, essas empresas que, detentoras exclusivas dos meios de

produção dos fonogramas e dos discos por eles compostos, definiam o que

existiria ou não no mercado da música, e teriam poder absoluto sobre a maior

parte da informação musical que chegava aos consumidores. A vivência do

mercado de disco ao longo dos anos levou essas corporações a desenvolver

alguns sistemas de produção, distribuição e promoção que ditariam todo o

comportamento do consumo de música.

O selo, ou a gravadora, numa realidade como a que descreveremos

nesse capítulo, era o único caminho possível para que um artista pudesse

existir em qualquer situação que fosse além da performance ao vivo. E os

caminhos possíveis para o músico que quisesse alcançar o público dessa

forma eram bem definidos dentro desse sistema. Existia um profissional

responsável pela contratação de novos artistas, cujo cargo era conhecido

como A&R (a sigla é de origem inglesa, e significa "Artist and Repertoire").

Essa figura seria responsável por freqüentar os bares e casas de show, afim

de encontrar novos talentos, e analisar quaisquer materiais artísticos que

fossem enviados à gravadora por aspirantes. O A&R era, para o artista, a porta

de entrada da gravadora.

Dentre as bandas e artistas selecionados pelos recrutadores, apenas

alguns chegariam a fazer gravações, que muitas vezes não chegavam a

compor um disco completo. Esse processo dependia de duas figuras-chave:

O diretor artístico da gravadora, e o produtor musical. O diretor artístico era

responsável por separar, entre as apostas trazidas pelo A&R, aqueles em que

valia a pena apostar. A escolha desse artista era seguida pela escolha de um

produtor musical responsável. Esse profissional deveria organizar e auxiliar,

artística e tecnicamente, a gravação, definindo coisas como repertório,

músicas de trabalho e sonoridade do álbum.

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Ao fim da gravação, terminava a parcela artística do trabalho, para se

iniciar o processo mercadológico. Via de regra, o trabalho se fazia em torno de

um lançamento. O disco ou o compacto em questão deveria ser fabricado,

distribuído e promovido. Cada lançamento tinha a intenção de sustentar-se, ou

seja, o resultado de venda da unidade precisaria justificar sua produção e

promoção, e gerar lucro para a companhia. O resultado dessa equação era

fator determinante para a manutenção do trabalho do músico ou banda em

questão.

No caso de novos artistas, muitas vezes, se fazia o lançamento do

compacto, a versão nacional do single americano, que continha normalmente

duas músicas, uma em cada lado do pequeno disco de vinil. O sucesso desse

primeiro formato determinaria se seria ou não gravado o disco completo.

A distribuição era um ponto fundamental no sucesso de um

lançamento, especialmente no período entre os anos 60 e os anos 90. Nesse

período, diferente do cenário que se constituiria a partir dos anos 90, o único

canal através do qual se comprava música eram as lojas de disco. Nesse

cenário, a boa relação entre as distribuidoras e as redes de lojas, tanto os

grandes como pequenos comerciantes, era fundamental para o sucesso de

um determinado produto. A figura do vendedor era bastante influenciável, e a

disposição dos discos era um diferencial importante. Apesar de existirem

cadeias poderosas, responsáveis por grandes volumes de venda, a presença

dos pequenos varejistas era marcante, existiam muitos pequenos pontos de

venda que atendiam a demandas locais, mas que, juntos, respondiam por uma

parcela relevante do mercado.

No entanto, o coração da estratégia de lançamento e de vendas da

indústria fonográfica era o rádio. As estações de rádio eram fonte quase

exclusiva de descoberta de novos artistas ao redor do país, e mesmo nas

grandes capitais, eram extremamente fortes, e os programadores das rádios,

os disc-jóqueis, posteriormente conhecidos pela abreviação "dj", eram fortes

influenciadores da cultura musical. O sucesso deveria, necessariamente,

passar por eles.

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Em função dessa posição privilegiada de contato com o público, as

gravadoras sempre buscaram boas relações com esses profissionais. Tão

antiga quanto o mercado fonográfico é a figura do divulgador. O divulgador

era, de uma certa forma, o "representante de vendas" da gravadora, diante

dos programadores de rádio. Expunham o catálogo e apresentavam as

novidades. Desde o início, sempre houveram incentivos, ou formas de pressão

por parte das gravadoras. No entanto, a relação não era direta entre as

compensações oferecidas pela gravadora e o repertório selecionado pelo dj.

Essa realidade se alteraria quando, no início da década de 70, se criaria um

movimento em que os programadores de rádio passariam a cobrar das

gravadoras para tocar seus discos. Essa prática ficaria popularmente

conhecida como jabá, ou jabaculê.

O jabá é considerado uma prática imoral, uma forma de corrupção, e

sua existência sempre foi negada tanto pelas rádios quanto pelas gravadoras.

Diversos profissionais do mercado, no entanto, entre músicos e executivos de

gravadora, já vieram a denunciar o sistema publicamente. Em 2003, o

executivo André Midani, que acabara de se aposentar de uma notável carreira

na indústria fonográfica, explicou, em breve entrevista à Folha de S. Paulo,

como funcionava o jabá na mídia brasileira, e como se desenvolveu desde seu

início.

André Midani, sírio radicado brasileiro, envolveu-se com o mercado

nacional de música já em sua chegada ao Brasil em 1955. Ao longo de sua

carreira tornou-se uma das figuras mais relevantes da indústria fonográfica

nacional, tendo sido responsável pelo lançamento de dezenas de artistas de

alguns dos movimentos mais importantes da cultura brasileira, figuras como

Tom Jobim, Chico Buarque, Nara Leão, Raul Seixas, Ultraje a Rigor, Paralamas

do Sucesso, entre outros, tendo sido diretor das gravadora Philips e Polygram

e, posteriormente, fundado a filial nacional da Warner Music. Aposentou-se do

cargo de vice-presidente da matriz Nova-iorquina da Warner Music Group.

Após decretar o fim de sua carreira fonográfica, aos 71 anos, Midani

denunciou publicamente diversas práticas controversas da indústria. Ele conta

que, entre 1971 e 1972, quando comandava a holandesa Philips, diversos

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disc-jóqueis importantes de São Paulo e do Rio de Janeiro se uniram, em um

movimento em que sugeriam que as gravadoras "reconhecessem seus

méritos". A partir desse momento, as empresas teriam que pagar às rádios

para que seus artistas tivessem músicas executadas. Esse sistema era

desorganizado e pouco profissional, não haviam acordos precisos

relacionando o quanto se pagava ao quanto se tocava. O pagamento era feito

em espécie, pelos divulgadores aos programadores, o que provocava uma

perda de controle por parte dos executivos de gravadoras e dos dirigentes das

rádios. Com o crescimento da prática e dos volumes de capital envolvidos, a

relação passou a ser feita, em diversos casos, entre a gravadora e a direção

da rádio, constituindo uma institucionalização do jabá, encarado como verba

publicitária em cada lançamento.

A lucratividade que o sistema gerava para as rádios fez com que outros

segmentos de entretenimento aderissem à prática. O próprio André Midani

conta que o programa do Chacrinha, conhecido por apadrinhar novos artistas,

alguns anos depois passou a cobrar para incluir artistas em sua programação.

A cultura se espalhou, e não muito tempo depois, grande parte dos programas

de rádio e televisão passavam a cobrar de formas semelhantes.

O sistema de promoção dos lançamentos englobava outras formas de

mídia, jornais, televisão, mídia exterior; os grandes lançamentos podiam contar

com grandes campanhas televisivas, como era o caso de artistas como

Roberto Carlos, que tinha cada um de seus lançamentos vastamente

alardeados em todas as mídias.

Outro ponto importante da divulgação de lançamentos eram os shows,

e no caso as turnês que levavam o nome de cada disco. No Brasil, em geral,

essa parte não era necessariamente relacionada à gravadora. Existiam

"agentes de show", pessoas responsáveis exclusivamente por esse lado, que

para muitos artistas era a principal fonte de renda. Em alguns casos, a

gravadora contribuía com a promoção e execução de alguns shows

diretamente relacionados ao lançamento do disco, mas no geral a circulação

de shows acontecia de forma independente dessas empresas.

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Internacionalmente, a turnê era encarada de uma forma um pouco

diferente. Tanto para a gravadora quanto para grande parte dos artistas,

shows eram uma ferramenta exclusivamente promocional. Não consistia em

fonte de renda, e em geral dependia de incentivos financeiros da gravadora,

que fornecia o chamado tour support - quantia em dinheiro que tinha como

finalidade cobrir os custos extras da turnê.

David Byrne, músico escocês naturalizado americano, líder da banda

Talking Heads, conta em artigo de 2006 sobre a indústria fonográfica, que as

bandas entravam em dívida com as gravadoras (através de avanço de royalties

a serem compensados com vendas de disco), para poderem promover seus

discos em turnês. Os shows em si não eram vistos como atividade

isoladamente rentável, eram apenas mais um meio de divulgação. Esse foco

só mudou muito recentemente, quando as vendas de disco passaram a ser

menos representativas, e grandes agências de show começaram a se

destacar. Mas no geral, em se tratando de artistas de alcance internacional, a

circulação de show em diferentes países era um importante canal de

promoção e de conquista de novos mercados.

De volta ao Brasil, a promoção feita pelas gravadoras acontecia em

várias frentes, mas o rádio era o veículo principal. A instituição do jabá tornou

essa prática o elemento mais importante da estratégia de publicidade de um

lançamento. Novamente segundo André Midani, o orçamento de divulgação

de um disco, nos anos 80, era de cerca de 10% das vendas. Desse total,

cerca de 70% eram destinados ao jabaculê, em rádio e televisão.

Hoje o jabá em rádio ainda é amplamente praticado. Alguns

divulgadores em atividade no mercado afirmam que cerca de 80% das rádios

FM das capitais de São Paulo e Rio de Janeiro trabalham com alguma forma

de jabá. Em televisão a cultura é menos difundida atualmente, e os programas

de maior audiência se afastaram da prática. Ainda assim, o jabá continua

sendo um ponto fundamental na divulgação de música.

A divulgação bem feita não era, no entanto, capaz de, sozinha, construir

um grande fenômeno, ou mesmo um sucesso expressivo de vendas. Os

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grandes ídolos eram resultado de uma série de fatores: Carisma, identificação

popular, contexto cultural e social, além de, naturalmente, qualidade musical.

Todos os movimentos realmente representativos da música uniram

essas qualidades. No Brasil podemos citar a Bossa Nova, expressão da

geração que vivia o pós-guerra, e a política de aproximação dos EUA com os

países sul-americanos, que promoveu a entrada de diversos números

brasileiros no mercado internacional, aliado a esse movimento ocorria o

crescimento da classe média, consumidora do movimento, e por fim, sua

concretização através da produção de artistas de alto nível de qualidade

musical, como Tom Jobim e Baden Powell, e poética, como Vinícius de

Moraes.

A mesma lógica se aplica à tropicália, expressão nacional da

contracultura, que assumia postura crítica diante de um governo ditatorial,

alinhando-se perfeitamente com as necessidades de consumo cultural de uma

juventude politizada que creditava grande valor à manifestações artísticas, e

reconhecia as mesmas características e posturas em seus ídolos musicais.

Esses dois cenários, no entanto, eram possíveis graças à produção das

gravadoras, que reconheciam os artistas potencialmente interessantes para o

mercado e investiam nos mesmos, inclusive através do pagamento do jabá.

Até meados dos anos 80, esse processo tinha como forças igualmente

competentes a direção artística e empresarial das companhias. O retorno

financeiro era significativo, porém, a liberdade em relação aos investidores era

grande, o que permitia aos executivos apostarem em projetos muitas vezes

mais interessantes no sentido artístico que no financeiro, sem causar, a médio

ou longo prazo, prejuízos para a companhia, que ganhava em imagem e

reconhecimento de público e crítica. As matrizes internacionais eram pouco

exigentes, possibilitando manobras mais ousadas por parte dos executivos.

"As companhias naquela época eram uma brincadeira gostosa do dono de

cada conglomerado." Diria André Midani, décadas depois.

A partir da segunda metade da década de 80, as gravadoras foram

tornando-se parte de conglomerados cada vez mais poderosos, dirigidos de

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forma rígida pelas matrizes, que passavam a vislumbrar a potencialização dos

lucros e o crescimento cada vez maior do mercado de música. A partir de

então, com o surgimento de fenômenos gigantes da música pop, o objetivo da

indústria passou a ser a conquista de resultados cada vez maiores e

imediatos. Essa mentalidade resultou numa reestruturação do sistema de

promoção, a partir da qual, cada lançamento deveria ter o objetivo de bater

recordes de vendagem, e para isso, precisava de grandes investimentos em

divulgação, que traduziam-se em grandes somas destinadas ao jabá. Esse

comportamento gerou uma série de sucessos radiofônicos auto-sustentados,

que alcançavam marcas de milhões de cópias, mas pressupunham

investimentos proporcionalmente altos, e resultados imediatos. Essa prática

levou as gravadoras a uma economia de excessos que, no futuro, mostrar-se-

ia extremamente frágil, se desestabilizando quase completamente, diante das

baixas de vendas provocadas pela chegada da internet.

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3. O DEPOIS A economia da música digital

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3.1 - AS NOVAS TECNOLOGIAS

3.1.1 - MP3 e peer-to-peer

O nascimento da internet não teve um impacto imediato sobre o

mercado de música - seu efeito seria sentido de forma relevante apenas cerca

de 5 anos depois de sua apresentação para o grande público. Mas os

primeiros fatores que desencadeariam a crise do disco surgiram junto com a

web. O primeiro dos elementos decisivos para essa mudança é o formato de

compactação conhecido como MP3, criado em 1991 pelo grupo Moving

Picture Experts Group (MPEG).

O Moving Picture Experts Group foi formado pela Organização

Internacional para Padronização (ISO) para desenvolver padrões para

compressão e transmissão de áudio e vídeo. O primeiro dos formatos criados,

batizado de MPEG-1, foi desenvolvido para permitir que filmes e vídeos

pudessem ser codificados no bitrate (velocidade de processamento de

informação) de um Compact Disc. Em função disso, essa codificação

simplificava os arquivos de forma que, apesar de uma perda sensível de

qualidade, eles pudessem ser leves o suficiente para serem transmitidos via

CD. Um dos desdobramentos desse formato de compactação, o MPEG-1

Audio Layer 3 tornaria-se o mais popular formato de compactação de música

da próxima década.

A conveniência trazida pela compactação do MP3, no entanto, se

mostraria muito mais eficaz fora do suporte do CD. O poder de compactação

do formato permitia ao usuário obter arquivos até vinte vezes menores que os

arquivos de áudio encontrados no Cds originais, onde o arquivo vinha sem

compressão. Essa característica permitiu que, mesmo em uma realidade onde

as conexões de internet eram extremamente lentas, esses arquivos

começassem a aparecer disponíveis na web. No início, existiam sites que

ofereciam o download, alguns disponibilizando uma ou outra música, e outros

com imensas listas de músicas. O volume de arquivos circulando ainda era

pequeno em comparação ao que existiria pouco tempo depois - o download

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era extremamente lento, e a capacidade de armazenamento dos

computadores era baixa, mas os fãs de música já usavam a internet como

fonte de pesquisa, e começavam a montar suas bibliotecas de MP3.

Nesse contexto primitivo no entanto, as fontes de música no novo

formato ainda eram bastante limitadas. Não existiam catálogos "oficiais" de

MP3, o formato não era reconhecido pelas gravadoras, portanto, os usuários

precisavam produzir e disponibilizar os próprios arquivos e, para tanto,

precisavam de algum conhecimento específico em tecnologia, além de tempo

e disposição, o que fazia com que apenas uma pequena parcela de usuários

se dedicasse a disponibilizar músicas. Esse quadro se reverteria quando, em

junho de 1999, o estudante americano Shawn Fanning lançaria o Napster.

A proposta era simples: Um software que simplificasse a busca e

possibilitasse o compartilhamento de arquivos MP3. Para alcançar esse

objetivo, o Napster criava uma rede entre todos os usuários conectados no

serviço, e reconhecia como fonte as bibliotecas de arquivos de todos eles.

Dessa forma, quando o usuário buscava uma música, o sistema localizava

todas as máquinas conectadas que possuíssem o arquivo da música buscada,

e realizava a transferência diretamente do computador (ou dos computadores)

fonte para o computador que solicitava o arquivo. Esse sistema ficou

conhecido como peer-to-peer (traduzido como "par-a-par" ou "ponto-a-

ponto"), onde todas as máquinas da rede fazem papel tanto de servidor

quanto de cliente.

Duas características principais desse sistema foram determinantes para

a sua rápida popularização, que também traria a popularização do MP3 e do

consumo digital (ilegal) de música. Primeiro, a agilidade de pesquisa,

proporcionada pela centralização dos catálogos num único canal coletivo; e

depois, e principalmente, a possibilidade de converter todo usuário e

consumidor de música em uma fonte, o quê potencializava de forma

impressionante a possibilidade de se encontrar cada vez mais títulos

diferentes, gerando um catálogo praticamente infinito, centralizado em um

único canal.

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O surgimento dessas possibilidades de acesso até então inéditas, e a

gigantesca adesão ao sistema fez com que a indústria fonográfica destinasse

grande atenção ao assunto, devido à enorme quantidade de conteúdo ilegal

que passava a circular. Em julho de 2001, o Napster foi legalmente forçado a

encerrar suas atividades, ao fim de um processo de dois anos de duração

contra a Recording Industry Association of America (RIAA). A essa altura,

porém, o sistema peer-to-peer já havia se popularizado, e outros softwares

fortes como o Kazaa e o LimeWire continuaram espalhando a cultura instalada

pelo Napster.

3.1.2 - Rip, Mix, Burn e o iPod

Paralelamente a esse processo, uma outra inovação tecnológica

também criava ferramentas que contribuiriam com a desestruturação do

mercado fonográfico. A popularização da tecnologia de gravação de Cds em

computadores pessoais, e a filosofia "Rip, Mix, Burn" (sintetizando o processo

de extrair músicas de cds, misturá-las e gravar novos cds personalizados)

propagada pela campanha homônima da Apple permitiam situações em que

as empresas que produziam e comercializavam música pouco tinham a ver

com o processo de consumo da mesma.

A possibilidade de se colocar músicas de diversos títulos, a gosto do

usuário, em uma mídia personalizada não era, por si só, uma grande novidade.

Desde a década de 70, quando as fitas K7 se popularizaram, a chamada

"mixtape", exatamente uma coletânea de músicas aleatórias montada pelo

usuário, era bastante comum. A princípio o que acontecia com os Cds era

apenas uma evolução de formato. No entanto, no caso das fitas, a fonte

original de áudio era necessariamente um disco produzido de maneira

legítima, ou pelo menos uma outra fita, que por sua vez teria de ter sido

gravada a partir de uma fonte original. Como a existência do fonograma estava

atrelada ao suporte físico, não se podia fazer de outra maneira. Num contexto

digital, onde o usuário usava a internet para obter arquivos de áudio, que

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seriam usados na montagem de seus cds personalizados, o disco como

produto, como fonte original da música, começava a perder espaço.

Ao mesmo tempo em que o consumo online de MP3 se popularizava,

surgiu um produto que viria a se tornar icônico no consumo de música no

mundo digital. Em 23 de outubro de 2001, a Apple lançou o iPod. Um aparelho

portátil, que armazenava e reproduzia arquivos digitais de música, em

especial, o MP3. O iPod não foi o primeiro tocador de MP3 do mercado, mas

nenhum dos similares lançados anteriormente conseguiu alcançar a

popularidade e a representatividade que ele conquistou junto ao novo

consumidor de música. Numa primeira análise, o novo objeto pouco difere do

walkman lançado pela Sony em 1979. O aparelho da Apple tinha como

vantagem nítida a capacidade de armazenamento - A primeira geração do

iPod já tinha capacidade de 5GB, o que equivalia a mais de 80 horas de

música, contra menos de uma hora da fita K7 do walkman; além disso, a união

dessa enorme quantidade de músicas com a interface simples e didática

representou a popularização de um conceito que até então pouco ou nada

significava, mas que desse momento em diante, definiria quase que a

totalidade do consumo de música digital: as playlists.

A possibilidade de se ouvir tantas horas ininterruptas resignificava os

conceitos sobre os quais se organizava o ritual de ouvir música. Até então,

existiam apenas dois caminhos possíveis: Ou se respeitava a ordem e o tempo

determinados pelo álbum, ou se ouvia a seleção de algum indivíduo que

estivesse controlando manualmente a exibição musical (o disc-jóquei, tanto no

rádio quanto em festas ou quaisquer eventos onde houvesse música). Quando

se tem uma quantidade gigantesca de informação sonora que pode ser

executada sem interrupção, os padrões impostos pelo álbum tornam-se

insuficientes. O iPod trazia, além da opção de ouvir os álbuns um depois do

outro sem intervalo, a interessante opção do shuffle, através da qual o

aparelho misturava músicas de todos os álbuns e artistas da biblioteca do

usuário, e a possibilidade de se montar playlists, ou seja, de organizar a

biblioteca de MP3 de qualquer forma que agrade o ouvinte.

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Apesar de proporcionar enorme controle do ritual "ouvir música" ao

consumidor, o iPod pressupõe o uso de um sistema fechado para o

funcionamento completo. A única interface com a qual o iPod se comunica

para receber as músicas, é o programa iTunes, também da Apple. A biblioteca

de arquivos MP3 deve ser montada com base nesse software. Além disso,

para justificar o consumo legal do aparelho, a Apple criou a "iTunes Music

Store", uma loja de arquivos digitais de música, mais uma vez, com foco

principal no MP3.

Todas essas inovações, que surgiram e ganharam gigantesca

popularidade em um curtíssimo intervalo de tempo, seriam responsáveis por

uma profunda alteração no comportamento de consumo de música e, mais

que isso, na relação do indivíduo com a música. O acesso às novas

tecnologias criou uma geração de consumidores cujos meios de interação e

modos de compreensão da música são completamente diferentes daqueles

existentes num mundo de rádios e discos.

3.2 - AS NOVAS RELAÇÕES ENTRE MÚSICA E USUÁRIO

Os meios e maneiras de se consumir música, ao longo da história,

sofreram diversas alterações, mais ou menos significativas, ao longo do

tempo. Desde as diferenças entre orquestras, orquestras de câmara, quartetos

ou apresentações de solistas, formatos que possibilitavam maneiras de se

interagir com a música em diferentes espaços, passando pelas caixinhas de

música e pelas pianolas mecânicas (engenhocas criadas no fim do século XIX,

que consistiam em um piano que tocava sem músico, através de um

mecanismo acionado por uma folha de papel perfurado), pelo comércio de

partituras até a invenção do fonograma, todas essas mudanças

transformações transformaram de alguma forma o modo de se produzir,

comercializar e consumir música.

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Depois da revolução trazida pelo rádio, algum tempo depois

resignificada pela televisão, a música já não era mais necessariamente

associada à presença física do músico. No entanto, ainda existia a

necessidade de concentração em torno de um aparelho capaz de reproduzir

ou captar áudio, o que naquele momento significava estar em uma sala, em

casa ou em algum ambiente mais ou menos preparado para esta situação,

onde se encontraria o rádio ou a vitrola.

Poucas décadas depois do surgimento dos aparelhos de rádio usados

domesticamente, as empresas produtoras começaram a flertar com a

portabilidade. Surgiram na década de 50 rádios menores, facilmente

transportáveis, e que passaram também a ser instalados em automóveis. Com

essa nova possibilidade, a música tornava-se ainda mais presente no dia-a-dia

da sociedade, consumia-se mais música, em situações cada vez mais

diversas.

Em 1960 a Sony lançou um novo modelo de rádio que substituía as

válvulas, usadas até então na reprodução de som, pelo transistor, que

possibilitava a criação de um aparelho de rádio tão pequeno que poderia

caber no bolso do usuário. Mas essa portabilidade só se extendia à recepção

do sinal de rádio a princípio. Com a popularização das fitas cassete nos anos

70, surgiram novos caminhos - Os rádios de automóveis passaram a portar

essa tecnologia, abrindo espaço para a que o produto musical vendido pelas

gravadoras pudesse se desassociar do ritual caseiro de audição. Desenvolveu-

se então mais uma possibilidade de mercado, om a produção do novo

formato. Mas essa produção ainda era muito inferior à tradicional produção de

LPs, pois a qualidade de som era baixa, e trazia a necessidade de um aparelho

diferenciado.

Só em 1979 é que a portabilidade se tornou absoluta para os produtos

das indústria fonográfica. O lançamento do Walkman, produzido pela Sony,

criou uma nova série de interações com a música. O advento do fone de

ouvido (que já existia nos aparelhos domésticos, mas só no Walkman tornava-

se obrigatório) transformou uma atividade essencialmente social e coletiva em

um prazer solitário. O usuário isolava-se do ambiente externo completamente,

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e se relacionava apenas com a informação sonora transmitida pelo aparelho.

No entanto, à exceção do fone, que era realmente uma mudança de rumo no

consumo musical, a evolução portátil trazida pelo Walkman era bastante

condizente com o sentido de crescimento do mercado fonográfico como vinha

acontecendo. Através dessa nova tecnologia o mercado de fitas cassete

cresceu, apesar de lutar contra a popularidade das fitas regraváveis, que

permitiam a montagem de seleções dos próprios ouvintes. Ainda assim, o foco

estava no produto disco ou na fita adquirida oficialmente, uma vez que a fita

regravável precisava de uma fonte original de áudio para ser preenchida.

Em que medida essa realidade foi transformada pelo crescimento das

tecnologias digitais, o MP3, o peer-to-peer e o iPod?

Desde a invenção do fonograma, todas as renovações descritas acima

foram mudanças de formato que eram fortemente conectadas - ou mais,

dependentes - do produto fornecido pelas gravadoras. Mesmo que a

aquisição não fosse sempre direta - em alguns casos o conteúdo poderia ser

copiado de produtos adquiridos por outras pessoas que não o usuário final, a

interação que existia era com o produto disco, era uma relação de posse de

um objeto, e assim, estava ligada basicamente à compra.

Essa situação se inverteu no mundo digital. A perda do suporte físico, a

possibilidade de reprodução infinita dos arquivos, sem perda de qualidade e

sem custo, e a possibilidade de compartilhamento de um banco de dados por

milhares de usuários, fez com que uma parte das convenções entendidas

como verdade nos contextos anteriores fossem desaparecendo em ritmo

acelerado.

A descoberta de novas referências e a obtenção de conteúdo se

desligavam completamente da idéia de compra, num sistema que,

comercialmente, era totalmente independente da indústria fonográfica (mesmo

que utilizasse na maioria absoluta dos casos, conteúdos produzidos por ela).

O consumidor encontrava um cenário em que poderia adquirir o que desejasse

da forma que desejasse, sem pagar por isso. Mas a liberdade criada pelo

"sistema de compartilhamento" de arquivos MP3 ia além da questão financeira

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- mesmo que fosse essa a principal para o mercado. A unidade básica de

consumo passava a ser uma música, contrariando o que sempre fora

praticado pelas gravadoras, que pensavam o álbum como unidade básica. A

liberdade em relação ao suporte também era profundamente transformadora.

Dentro de pouco tempo, o Cd deixaria de ser o objeto de desejo para tornar-

se um formato inconveniente, para um usuário que concentrava seu consumo

em um iPod, e não precisava ocupar espaço com um disco de plástico.

A fatia do público responsável por essa mudança era justamente o filão

mais interessante para o mercado, o grupo que movimentava a maior parte

das vendas: Os jovens.

Em 1999, ano em que o Napster nasceu, os jovens entre 15 e 24 anos

representavam 27% do mercado americano (fonte: IFPI). Era exatamente essa

a faixa etária que seria a primeira a aderir ferozmente ao formato mp3 e ao

compartilhamento de arquivos. Do ponto de vista desse usuário, o download

era uma forma muito mais cômoda de adquirir novas referências musicais.

Não exigia do consumidor qualquer movimentação geográfica, não envolvia

um aparelho específico para esse fim, já que a música podia ser ouvida no

próprio computador e, em pouco tempo de existência, já era possível ter

acesso a um vasto catálogo, de maneira rápida e através de uma busca

organizada.

As desvantagens ainda pesavam nos primeiros anos - A velocidade de

transferência de arquivos era extremamente baixa, o espaço de

armazenamento dos computadores pessoais da época também era pequeno,

o que impedia o usuário de acumular um catálogo expressivo, e a qualidade

do áudio era nitidamente inferior à do Cd. Ainda assim, os atrativos principais

(gratuidade e o catálogo gigantesco) faziam com que a prática do download

ganhasse adeptos. A venda de música em formato físico começou a sofrer

quedas sucessivas, que se tornaram especialmente significativas quando, no

final de 2001, o iPod chegou ao mercado. Ganhando imensa aceitação

popular já de início, o iPod criou um mundo no qual o Cd tornava-se cada vez

menos necessário. Se a maior parte do consumo de música passa a ser feita

através dele e, portanto, através dos arquivos MP3 que ele carregava, que

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podiam ser encontrados na rede, o Cd tornava-se quase completamente

obsoleto.

No entanto, se o Walkman da Sony já trazia a possibilidade de

portabilidade, quais as transformações que a nova de fato trazia para o

consumidor? A relação com o iPod ia mais longe do simples fato de se ter o

MP3 ao invés da fita cassete. Pela primeira vez, existia a possibilidade de se

concentrar uma quantidade imensa de conteúdo num só aparelho. O primeiro

modelo lançado tinha capacidade para cerca de 1000 músicas. Esse fato gera

uma grande alteração no foco de consumo. O Walkman, assim como o

Discman, versão do player portátil lançada posteriormente, mas que suportava

o formato Cd, era uma fonte complementar de consumo musical. Comprava-

se o Cd para ser ouvido num aparelho de som tradicional, e em algumas

situações apenas, no Discman. E a fita cassete do Walkman era em muitos

casos gravada a partir de um LP ou Cd que se escutava em um outro

aparelho. Isso ocorria principalmente por quê a portabilidade oferecida por

esses aparelhos apresentava uma forte limitação: A mídia fita ou Cd - da qual

o aparelho era dependente, e que carregava uma quantidade pequena de

músicas. Assim, o consumidor só poderia "tornar portátil" uma pequena fração

de sua discografia.

O iPod em seu formato inicial poderia carregar cerca de 65 discos, O

que dava ao usuário a possibilidade de tê-lo como única fonte de música por

um longo intervalo de tempo. A popularidade do aparelho alcançou níveis

elevados, tornando-o um objeto de desejo em muitos países.

A combinação de uma série de fatores envolvendo o iPod e a cultura

MP3 resultou em um enorme aumento no consumo per capita de música em

todo o mundo. E da mesma forma, atribui novas funções e novos contextos à

música.

A rápida evolução da tecnologia trouxe conexões mais rápidas e

sistemas mais eficientes de integração e busca de conteúdos, além do

progressivo crescimento da capacidade de armazenamento tanto dos

computadores pessoais quanto dos dispositivos portáteis. Essas mudanças

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fizeram com que o consumidor de música pudesse ter, sem dispor de muito

tempo ou dedicação, coleções gigantescas de arquivos de áudio, que

circulavam entre seu computador, o MP3 player de sua preferência e,

eventualmente, os Cds gravados de forma caseira, a partir de arquivos

conseguidos via internet. Nenhum desses caminhos estava diretamente

relacionado à indústria fonográfica, nem a qualquer relação que envolvesse a

compra de música.

Essa explosão da disponibilidade de conteúdo e acesso a esse, faz com

que esse consumo de música, maior hoje que em qualquer momento da

história, continue aumentando. O iPod com maior capacidade de

armazenamento suporta hoje 160 GB, o que equivale a mais de trinta mil

músicas, ou cerca de 2.500 horas ininterruptas de áudio. Levando-se em

conta que um álbum tem em média 45 minutos, o iPod com 160 GB poderia

carregar mais de 3.000 álbuns. Um jovem fã de música com alguma dedicação

poderia, em menos de um ano, conseguir conteúdo suficiente para preencher

esse espaço. Há vinte anos atrás, um colecionador com a mesma dedicação

poderia levar toda a vida para reunir esse conteúdo. A oferta de música

também é hoje maior do que nunca (o iTunes Music Store tem hoje um

catálogo que ultrapassa 10 milhões de músicas).

Essa abundância de informação se justifica de certa forma no cenário

atual, pois é muito maior o tempo que as pessoas ficam expostas à música. O

estabelecimento do MP3 player como fonte principal de consumo (podendo

este ser tanto o iPod como o celular, ou qualquer semelhante), que pode estar

junto do usuário o tempo todo, criou um cenário em que ouvir música é uma

atividade constante. A todo momento, seja no ônibus, em casa, caminhando

pela rua ou praticando algum esporte, pode-se ter o aparelho lhe fornecendo a

trilha sonora.

Essa condição inaugura uma nova relação de atenção. Se antes era

necessário um dado grau de dedicação na escolha do disco que seria

executado e, após o seu término, trocá-lo, em uma determinada circunstância

de espaço e tempo, no mundo do iPod, o ritual se dava de forma

completamente diferente. A audição ocorria muitas vezes de forma aleatória,

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no simples ato de se ligar o aparelho e escutar o que quer que estivesse

dentro dele, mas sem nunca dedicar total atenção a esse ato, que ocorria

simultaneamente às situações cotidianas. O disco era substituído pela playlist,

uma coleção de músicas organizadas de acordo com os critérios que o

usuário achasse convenientes. A grande diferença da playlist para as Mixtapes

e Cds montados pelo usuário era a ausência de limite de tempo, e a

possibilidade do shuffle, ferramenta através da qual as músicas eram

executadas de forma aleatória, gerando uma sensação semelhante à do rádio,

onde não se sabe o que vai tocar na seqüência, mas com a vantagem de toda

a programação ser escolhida pelo próprio ouvinte, e sem intervalos.

A realidade da música digital cria um usuário que tem a sensação de

absoluto poder em relação ao conteúdo musical ao qual é exposto. O

consumidor de música online quer (e em grande parte dos caso, tem) acesso a

um catálogo infinito, 100% de domínio de sua biblioteca de sons, podendo

organizá-los como quiser, e reorganizá-los facilmente durante o período de

audição e, acima de tudo, poder levar sua coleção de MP3 para todos os

lugares, e poder ouvi-las em todas as situações.

3.3 - A REAÇÃO DA INDÚSTRIA

No fim da década de 1990, quando começou a se popularizar o formato

MP3, a indútria fonográfica vivia o seu auge. As quatro majors dominavam

80% do mercado mundial de música, e ano após ano criavam fenômenos pop

que batiam recordes de vendagem. A distribuição nas lojas de disco, que eram

fortes tanto comercialmente quanto culturalmente, unia-se às massivas vendas

de Cds em grandes lojas de departamento como a rede Wal-Mart nos Estados

Unidos e as Lojas Americanas no Brasil.

Ainda nessa época, um outro fenômeno impulsionava as vendas: O

ciclo de substituição do disco de vinil pelo CD ainda proporcionava venda de

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títulos antigos em muitos países, a atualização dos catálogos das gravadoras

continuava em processo.

Esse cenário proporcionava às empresas produtoras de música uma

altíssima lucratividade, mas que, por sua vez, construiu um sistema de alto

custo. A produção e divulgação de discos de grandes artistas era um

investimento que pressupunha altas vendagens. Até então era viável pensar

dessa forma, num mundo onde os números cresciam ano após ano.

As primeiras manifestações da "cultura" MP3 não pareciam

particularmente ameaçadoras às gravadoras, não diferiam, aos olhos da

indústria, da reprodução ilegal de Cds ou mesmo da produção caseira de

Mixtapes, e de cópias ilegais de fitas k7 populares desde o final dos anos 70.

Desde o seu surgimento, e mais incisivamente após o nascimento das redes

peer-to-peer, o MP3 vinha sendo encarado apenas como mais um formato de

pirataria. As campanhas que surgiram, a postura das empresas, e as decisões

legais adotadas, pouco diferiam das usadas para combater a pirataria em

suportes físicos.

É interessante notar a semelhança no tratamento, se compararmos

campanhas capitaneadas pelas associações ligadas às majors no passado

com algumas mais recentes. A semelhança é assustadora. No início dos anos

80, a associação British Phonographic Industry (BPI) lançou a campanha

"Home Taping is Killing Music", que usava como argumento o fato de que, as

gravadoras perdendo em vendas de discos, deixariam de investir em seus

artistas, que ficariam impossibilitados de produzir música. Mais de duas

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décadas depois, as campanhas anti-pirataria que circulam usam o mesmo tom

fatalista, os mesmos argumentos e, em muitos casos até se assemelhan no

design e na construção discurso. Um exemplo particularmente próximo do

citado acima é o da campanha "Piracy Kills Music", da filial norueguesa da

International Federation of the Phonographic Industry (IFPI), veiculada entre

2007 e 2008, que valia-se da mesma lógica da campanha dos anos 80, e

ostentava um logotipo curiosamente semelhante (ambos sugeriam a imagem

de uma caveira através de objetos relacionados à música).

Mas mais do que combater os downloads ilegais de MP3, as

gravadoras ignoraram completamente o formato no início, marginalizando-o

sem considerar qualquer potencial de comercialização. Em parte isso se deu

pela baixa qualidade dos primeiros MP3, que precisavam ser leves para ter

funcionalidade numa realidade onde as conexões eram lentas, mas essa

negligência colaborou para que o universo dos downloads ilegais crescesse e

se desenvolvesse de forma totalmente desassociada das empresas detentoras

de copyright. A iTunes Store, que é hoje a maior loja de arquivos digitais de

áudio no mundo, só foi inaugurada em 2003, em um cenário onde o

compartilhamento de arquivos peer-to-peer já havia alcançado um grande

desenvolvimento, dois anos depois do boom do Napster.

A negligência da indústria frente às novas tecnologias foi nociva não só

economicamente, mas também culturalmente. A postura das grandes

corporações da música fez com que elas ganhassem a imagem quase que de

inimigo público. O caso do fechamento do Napster é emblemático nesse

sentido. O processo através do qual as atividades da empresa foram

efetivamente fechadas foi aquele movido pela RIAA, mas outras batalhas

legais surgiram na mesma época, inclusive movidas por alguns artistas, como

é o caso do Metallica, que foi largamente coberto pela mídia - A banda

acusava o software de violação de direitos autorais, depois de uma música

ainda inédita da banda surgir no sistema em versão "demo". Mas mais que

isso, Lars Ulrich, baterista e representante da banda, manifestou-se

publicamente em diversos canais criticando o Napster. Nos dois anos em que

se desenvolveram esses processos, o software recebeu gigantesca atenção

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da mídia, o que fez crescer a popularidade dos sistemas de compartilhamento

de arquivos, diminuindo drasticamente a popularidade da indústria

fonográfica, que passou a tratar como criminosos todos aqueles que

adquiriam conteúdo ilegal de música, uma vez que, nesse primeiro momento,

não se considerava reconhecer o formato MP3 como legítimo. Essa escolha

transformou consumidores em inimigos.

Quando a indústria finalmente decidiu aderir aos formatos digitais,

através de lojas virtuais como o iTunes e o próprio Napster em seu novo

formato - após ser adquirido pelo grupo alemão Bertelsmann, em 2002, a

empresa abandonou o sistema de compartilhamento e converteu-se em loja

de arquivos digitais, que funcionava (além de vender arquivos avulsos), através

de um serviço mensal, no qual o usuário pagava uma taxa fixa e fazia

downloads livremente - criou-se uma série de empecilhos e condições de

utilização dos arquivos pelo usuário.

A preocupação inicial desses serviços era evitar que as cópias vendidas

legalmente fossem reproduzidas de forma indiscriminada e compartilhadas

nas redes ilegítimas. Para que fossem eliminadas essas possibilidades, foram

criadas algumas tecnologias de Digital Rights Management (DRM), que

pudessem ser aplicadas aos arquivos digitais de áudio.

As condições de reprodução variavam de acordo com a loja. No caso

da iTunes Music Store, as músicas compradas estavam atreladas a um

software, o Apple iTunes, e o software se comunicava com o iPod,

transferindo as músicas presentes na biblioteca do computador para o

aparelho, permitindo assim, a portabilidade dos arquivos adquiridos. No

entanto, as músicas não podiam ser transferidas de uma máquina para outra,

e todo o conteúdo do iPod estava necessariamente atrelado ao iTunes ao

qual ele fora ligado. Não se podia misturar, dentro do aparelho, músicas

vindas de computadores diferentes.

No caso do Napster, as músicas só podiam ser ouvidas através do

Windows Media Player, e apenas no computador através do qual elas foram

adquiridas. Se o usuário quisesse gravar a música comprada em um Cd,

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precisaria pagar um valor adicional de 0,99 dólares por faixa. Para obter a

possibilidade de transferir os arquivos para um tocador portátil, pagava-se

uma taxa de 5 dólares sobre o valor mensal da assinatura. Ainda assim, os

arquivos só poderiam ser executados em aparelhos que contessem o selo

Microsoft PlaysForSure, o que naturalmente, excluía o iPod, da Apple.

A soberania absoluta do iPod como tocador portátil, e sua dependência

do sistema iTunes foram, em boa parte, responsáveis pela liderança absoluta

da iTunes Music Store como fonte de download legal (ela hoje é responsável

por cerca de 70% do total das vendas de música digital). O esforço no

sentido da venda de música em formatos digitais vem sendo encarado como

positivo. Desde 2003, a participação da música digital na receita das grandes

gravadoras cresce ano a ano, e também se multiplicam os serviços bem

sucedidos de venda de música online.

No entanto, esses serviços encontraram uma realidade na qual a cultura

de compartilhamento ilegal já era extremamente forte. Tanto quanto crescem

os downloads legalizados, crescem também os ilegais, que já no início

somavam uma quantidade muito maior de arquivos. Em janeiro de 2009, a

iTunes Music Store declarou ter alcançado a marca de 6 bilhões de

downloads. A campanha norueguesa "Piracy Kills Music" divulgava que,

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apenas em 2005, 20 trilhões de arquivos de música foram baixados

ilegalmente.

Ao lado desse crescimento do consumo de música digital (legal e

ilegalmente) e, principalmente por causa da força dos novos meios, nos pouco

menos de dez anos em que a música digital tomou as proporções atuais, o

mercado de Cds vem diminuindo drasticamente. O mercado brasileiro vendeu,

em 2000, 94 milhões de unidades. Em 2005, esse numero caiu para 53

milhões de unidades, segundo dados da Associação Brasileira de Produtores

de Disco (ABPD). O Disco de Ouro, um dos prêmios mais tradicionais da

indústria fonográfica, concedido ao artista que superava a marca de 100 mil

cópias vendidas, em 2003, passou a representar a marca de 50 mil cópias,

anunciando a gravidade da crise.

As lojas de disco desapareceram quase completamente, os pequenos

comerciantes fecharam as portas, as cadeias sobreviventes são aquelas que

diversificaram seus serviços, deixando de depender das vendas de música. A

Virgin Megatores, uma das cadeias de lojas de Cds mais conhecidas do

mundo, anunciou em 2008 o fechamento de suas últimas unidades, incluindo a

icônica loja da Times Square, em Nova Iorque.

Em dez anos, o mercado de música mundial caiu de 38 bilhões de

dólares (IFPI, 1998) para apenas 18 bilhões (IFPI, 2008), sendo que o valor

atual inclui formatos de vídeo musical (DVD, VHS, VCD), enquanto o valor

anterior contabilizava apenas formatos de áudio. Nos EUA ocorreu uma queda

de quase 70% - o mercado de 13 bilhões de dólares em 1998 hoje é de

apenas 4 bilhões. No Brasil, a diminuição do mercado foi ainda mais drástica:

de 1,2 bilhões para 180 milhões de dólares (ABPD, 2009), o que representa

uma queda de cerca de 85%.

Tradicionalmente, o Brasil é um dos mais fortes mercados para a

indústria fonográfica mundial, mas vem perdendo espaço gradativamente.

Desde os anos 60, se alternou entre o 5º e 6º lugar entre os maiores mercados

de música (ao lado da França). Em 1998 ocupava o sexto lugar, porém em

2006, aparecia somente em 12º. Essa diferença seria tradicionalmente

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associada à expansão da pirataria física, que atinge mais ferozmente os países

menos desenvolvidos. No entanto, não houve, nesse intervalo, crescimento da

pirataria de formato físico, proporcionalmente ao tamanho do mercado. O IFPI

aponta que, em 1999, cerca de 50% das unidades vendidas no Brasil eram

piratas. O mesmo estudo sobre pirataria promovido pelo IFPI aponta que, em

2006, a porcentagem de unidades piratas no Brasil era de 40%.

Esses fatores nos levam mais uma vez a pensar que a diminuição do

mercado fonográfico no Brasil, e da mesma forma no mundo, é resultante de

mudanças de cultura. E essas mudanças devem ditar a sobrevivência ou não

das grandes gravadoras, e o futuro do mercado de música.

3.4 - O NOVO MERCADO

A crise que se instalou na indústria fonográfica nos últimos 8 ou 9 anos,

no entanto, não deve de forma alguma ser entendida como uma crise da

música. É inegável que existe uma crise nas gravadoras tradicionais, e nos

sistemas tradicionais de consumo, no suporte físico que vinha até então sendo

comercializado como se fosse ele - o disco - a música em si. Mas instalados

todos estes problemas, tornou-se nítido o fato de que nem as gravadoras,

nem os discos, nem mesmo os MP3 são a música. A web nos mostrou que

nunca existiu tanta música em circulação quanto hoje, ou ainda, que nunca se

produziu tanta música como tem se produzido no mundo digital.

A evolução que ocorreu no equipamento e nas técnicas de gravação

nos últimos 15 anos é tão transformadora quanto a revolução digital como um

todo, para os produtores de música. A grande justificativa para a "ditadura"

das gravadoras, ou seja, a necessidade de se passar por elas para se

comercializar fonogramas fora, desde o seu surgimento, o altíssimo custo das

gravações. A montagem de um estúdio só poderia ser arcada por grandes

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empresas, e o custo de produção de um disco já pressupunha a venda de

milhares de cópias, para que o produto fosse economicamente viável.

Com a popularização de computadores pessoais cada vez mais

potentes, e com a digitalização do processo de gravação, que tornava

materiais de alto custo (como as fitas magnéticas até então usadas)

desnecessários, e permitia a criação de equipamentos de alto padrão com

custo baixo custo, aos poucos foram se democratizando os meios de

produção de música. Saímos assim de um cenário onde a produção de

música gravada era uma atividade altamente restrita, para um mundo em que,

pouco mais de uma década depois, qualquer indivíduo com pouca coisa além

de um computador pessoal, algum conhecimento e boa vontade pode se

tornar um produtor de conteúdo musical.

No entanto, o surgimento de um mercado "alternativo" de música, fora

do domínio das majors, não dependia exclusivamente da possibilidade de

produzir conteúdo a custo mais acessível. Outros dois fatores eram

determinantes para se constituir um mercado: Distribuição e promoção.

Esses dois fatores também ganhavam significados absolutamente

novos dentro da internet, e de uma realidade que tinha o MP3 como principal

formato de música. Se o suporte físico era desnecessário, e o arquivo de áudio

digital podia ser copiado e compartilhado indefinidamente sem praticamente

nenhum custo (a princípio haveria um custo de servidor, mas não demoraram

a aparecer servidores online gratuitos), o problema da distribuição mudava de

foco, e passava a ser exclusivamente como levar a música até o consumidor

em potencial. Na web, esse problema se confunde com a promoção. Se a

música está disponível online, o contato com o consumidor pode ser, ao

mesmo tempo, promoção, pois exibe o conteúdo que não é necessariamente

familiar ao usuário - ou mesmo que seja, ainda não foi adquirido - e

distribuição, uma vez que, já no contato com a informação, existe a

possibilidade de se adquirir o produto (ou conteúdo). Essa lógica, no entanto,

ainda encontra muitos problemas para se sustentar financeiramente. Em

muitos casos, a distribuição online de MP3 é usada por produtores

independentes apenas como estratégia de divulgação, para que eles possam

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buscar lucros em outros tipos de relações, como shows e venda de produtos

como camisetas, ou até cds e dvds por canais não digitais.

A cultura criada pelo digital cria uma nova relação dos produtores com

o mercado de música independente. Até o fim do século XX, uma produtora de

música independente era uma empresa constituída e organizada, e se

intitulava independente por não estar ligada a nenhum grande conglomerado

empresarial, sustentava-se por si própria. No geral eram estruturas menores,

mas não necessariamente pequenas, grandes gravadoras existiram de forma

independente, algumas de grande popularidade, como a Motown e a SubPop.

No entanto, no decorrer dos anos 80 e 90, essas gravadoras foram aos

poucos sendo adquiridas por grandes empresas de mídia. Apesar disso,

mesmo no auge das grandes gravadoras, no fim dos anos 90 e início da

década atual, cerca de 20% do mercado fonográfico mundial ainda funcionava

dessa forma independente.

A grande novidade é que, no contexto digital, o conceito de

independente passou a significar, em muitos casos, a cultura "faça você

mesmo", em que o próprio artista, ou o artista e seu empresário produzem o

disco, divulgam, distribuem e vendem os shows. Se por um lado isso pode

não contribuir para a profissionalização dos sistemas online de distribuição,

por outro, essa possibilidade de se trabalhar com estruturas menores - ou com

estruturas de qualquer tamanho conveniente - que podem se sustentar

relativamente bem com um pequeno capital, permitiu com que uma classe

média de artistas surgisse. Músicos que não cabiam na estrutura das grandes

gravadoras poderiam tomar a iniciativa de produzir e conduzir suas próprias

carreiras através da internet, usando os meios que a rede oferece para se

divulgar e estabelecer contato direto com seu público, criando meios de fazer

seu trabalho crescer e às vezes, promovendo estratégias de grande sucesso

fora dos sistemas tradicionais de circulação de música.

O "novo mercado", no entanto, não tem nos produtores e gravadoras

independentes o foco principal das novas propostas. É certo que essas

iniciativas são fundamentais, mas a mudança de foco mais relevante no

mercado não é das majors para os produtores independentes. As grandes

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oportunidades de novos negócios surgiram justamente fora do que era

tradicionalmente entendido como "indústria fonográfica". A versatilidade dos

formatos digitais de música chamou a atenção de diversos tipos de empresas,

que buscavam diferenciar seus serviços ou desenvolver estratégias de

comunicação mais ousadas.

Esses novos caminhos tornaram-se possíveis também em função da

redução de custos de produção musical, em contraponto aos investimentos

drasticamente reduzidos das gravadoras, que mesmo com as facilidades de

gravação reduziram seus catálogos.

Algumas empresas, relacionadas a música ou não, chegam a tornar-se

gravadoras e distribuidoras de artistas, transcendendo o conceito de

patrocínio. Casos como o da agência de shows Live Nation que, em 2007,

optou por expandir suas atividades, tornando-se selo de artistas como

Madonna e U2, mas em acordos mais liberais que os das gravadoras

tradicionais, responsabilizando-se pela promoção e distribuição dos artistas,

mas sem a exigência de vários lançamentos, comum em outras gravadoras, e

em alguns casos, como o da cantora Shakira, sem envolver nem mesmo a

venda dos discos em si, restringindo-se à promoção da artista como um todo,

além dos shows.

Um exemplo de empresa totalmente desligada do mercado da música,

mas que vem desenvolvendo cada vez mais atividades nesse sentido é o da

Natura, que empreende o projeto "Natura Musical". Nesse projeto, a empresa

vai além do patrocínio tradicional e, ao invés de simplesmente apoiar as

atividades de artistas, promove e financia completamente, através de editais,

projetos que vão de turnês nacionais e gravação de álbuns a pesquisas e

workshops musicais.

Esses novos agentes, ou novos papéis atribuídos aos agentes

tradicionais trazem uma dinamicidade cada vez maior ao mercado. Nos casos

acima, temos novas abordagens, ou meios diferentes de se alcançar os

sistemas tradicionais. Mas as relações se constroem de forma realmente nova

quando empresas que desenvolviam serviços digitais originalmente não

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associados à música, perceberam nela uma forma de tornar seu produto mais

atraente e expandir suas atividades.

O caso mais emblemático é, naturalmente, o da Apple. O

desenvolvimento do software iTunes e da iTunes Music Store transformou

uma empresa tradicionalmente associada à informática em uma das figuras

mais importantes do mercado de música. A grande sacada desse sistema foi,

observando o comportamento do consumidor de MP3 via internet, criar um

sistema rápido e organizado que levasse a loja de música para dentro do

computador do usuário, tal qual acontece nos softwares peer-to-peer.

Outras empresas que adquiriram grande força na distribuição de música

em formato digital foram as operadoras de telefonia celular, bem como as

produtoras desses aparelhos. A primeira forma de utilização de conteúdo

musical em aparelhos celulares foram os ringtones, toques que continham

melodias que faziam parte dos catálogos de grandes gravadoras. Essa

possibilidade surgiu ainda em 1998, quando os primeiros toques foram

disponibilizados para a compra em aparelhos na Finlândia. De lá pra cá a

evolução tomou diversos caminhos, e hoje a telefonia móvel representa um

importante filão da indústria fonográfica, tendo sido responsável, em 2008, por

47% das vendas digitais.

A popularização dos celulares com suporte para o MP3 potencializou a

relação de portabilidade e de ubiqüidade trazida para a música pelo iPod mas,

por outro lado, inaugurou uma série de possibilidades novas de criar relações

mercadológicas com o consumidor. No Brasil, produtores como a Sony

Ericsson e a Motorola criaram pacotes bem sucedidos em que os aparelhos

eram vendidos já com algum conteúdo musical, geralmente algumas faixas

acompanhadas de material de divulgação (vídeo e fotos), ou até um álbum

completo. Esse sistema trouxe fontes de renda alternativas para as

gravadoras, mas ainda era pouco satisfatório para o usuário. A possibilidade

de se agregar algumas músicas ou um álbum ao aparelho era insignificante

diante do universo de conteúdo disponível online.

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Foram criados sistemas de lojas virtuais gerenciadas pelas operadoras

de telefonia móvel, que funcionavam num sistema semelhante ao da iTunes

Music Store. No entanto, especialmente no Brasil, os catálogos são reduzidos

e os preços extremamente altos - variam entre R$ 3,99 e R$ 5,00 por música,

enquanto o iTunes vende faixas a U$0,99. Ainda assim, em função da

ausência de um canal forte de venda de arquivos de áudio pela internet, o

consumo via celular responde hoje por 78% do mercado digital nacional

(ABPD, 2009), o que corresponde cerca de 33 milhões de reais.

O mercado de música em telefonia móvel é um dos terrenos mais férteis

da indústria. É talvez o meio que apresente maiores e mais variadas

possibilidades. A relação que se constrói entre o usuário e o aparelho de

celular é extremamente profunda e, em muitos casos, o celular torna-se uma

grande fonte de conteúdos digitais de entretenimento. Tendo isso em vista, as

operadoras buscam a todo momento meios de explorar novos tipos de

conteúdo, que ao mesmo tempo são fonte de renda e fortes atrativos do

serviço. Nesse sentido, algumas empresas buscam novas formas de oferecer

conteúdo musical como diferencial.

O caso do "Nokia Comes With Music" é um dos que receberam maior

destaque nos últimos tempos. É o primeiro projeto de grande porte que se

baseia na idéia do "All you can eat" (Tudo o que você pode comer), que

consiste na possibilidade de downloads ilimitados ao participante, dentro de

algumas condições favoráveis a ambos os lados. No caso desse sistema da

Nokia, os downloads ilimitados são atrelados a um aparelho específico. Todos

os compradores desse aparelho têm livre possibilidade de adquirir quantas

músicas puder por um ano, em um vasto catálogo, que conta com cerca de

3,6 milhões de músicas. O programa chegou ao Brasil esse ano, sendo

anunciado como "o maior acervo de música digital legalizada do país".

Outro caso que merece destaque no Brasil é o da operadora Oi. Uma

das mais novas operadoras do mercado, a Oi tem como alvo o público jovem,

e trata a música como um importante diferencial, e vem desenvolvendo

diversas ações nesse campo. Fora do espaço diretamente associado ao

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telefone móvel, a Oi abriu estações de rádio em diversas grandes cidades

brasileiras. Essas rádios funcionam normalmente, em frequência FM, mas têm

sistemas integrados com outros canais - internet e o próprio celular. O cliente

Oi interage através do celular com a rádio, criando possibilidades

interessantes de mercado musical. Pode-se opinar e interferir na programação,

ou adquirir os conteúdos exibidos através de download pela loja virtual.

E a operadora ainda vai mais longe nesse sentido. Na intenção de

oferecer conteúdo exclusivo e em condições cada vez mais interessantes, foi

fundado o selo Oi Música, que promove e distribui digitalmente artistas de um

catálogo próprio, reunido em parceria com o selo carioca MZA. Além disso, a

empresa ainda sustenta o portal Oi Novo Som, no qual podem se cadastrar

bandas independentes, buscando divulgação. Através desse canal, a Oi

promove festivais, programas de rádio e internet, promovendo os artistas e a

marca. Todos os eventos são abertos ao público, mas oferecem incentivos

especiais aos usuários da Oi.

Por outro lado, apesar dos projetos desenvolvidos, o conteúdo

disponível por canais realmente diferenciados na Oi ainda é restrito, apesar de

ela possuir também a tradicional loja virtual de música, ela funciona pelos

mesmos altos preços praticados no mercado nacional.

A popularização da tecnologia 3G e do uso massivo de internet por

celular traz um sem-número de possibilidades, não só para as operadoras,

mas também para quaisquer empresas que venham a desenvolver idéias

aplicáveis a esses aparelhos, pois se por um lado a telefonia móvel é

inevitavelmente controlada por essas companhias que vendem o acesso, a

liberdade trazida pelo 3G possibilita a entrada de quaisquer outras tecnologias

interessantes para o consumidor. Ainda assim, com a tendência de união entre

os celulares e os MP3 players, que vem se mostrando cada vez mais forte (o

iPhone, atualmente um dos maiores objetos de desejo do mercado, nada mais

é que um iPod que contém a função telefone), tudo parece apontar para a

consolidação do dispositivo móvel (que passa a incluir o telefone celular, e não

mais ser somente ele) como fonte primária de consumo de música.

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3.5 - CAMINHOS ALTERNATIVOS - Banda Calypso e Cansei de Ser Sexy

Todas as mudanças que ocorreram na estrutura da indústria nos últimos

anos colocaram em cheque principalmente uma noção prática, profundamente

arraigada na cultura das gravadoras: Existe um modelo básico para a venda de

música. Se há alguma certeza que podemos absorver da revolução trazida

pelo digital, é a de que os sistemas criados ao longo do século XX para o

comércio de fonogramas já não funcionam mais da forma como outrora

funcionaram. Se ainda não se extinguiram, claramente não são mais

suficientes para sustentar o mercado. Nesse cenário normalmente entendido

como negativo e prejudicial, surgem alguns casos de sucesso que valem-se

de estratégias absolutamente originais.

Os dois aqui apresentados têm em comum uma relação em que o

negócio está muito mais centrado no próprio artista (ou na figura do agente,

desassociado das gravadoras), uma relação onde o conteúdo é entregue

diretamente ao consumidor, e na qual o artista, apesar de ter de empenhar

mais volume e energia, também recebe uma fatia maior dos lucros que gera.

Esses dois casos, no entanto, são completamente diferentes no que se refere

aos pontos de contato com o consumidor e aos canais e estratégias de

divulgação. Eles comprovam que no momento atual do mercado, o ponto

principal é conhecer as múltiplas possibilidades existentes online e offline, e

desenvolver sistemas personalizados, calcados na identidade do artista e do

público, e na criatividade.

3.5.1 - Cansei de Ser Sexy

Formado em 2003, em São Paulo, pelo baterista e produtor Adriano

Cintra, e por 4 garotas que, segundo elas mesmas, mal sabiam tocar seus

instrumentos, o "CSS", como se tornaria conhecido anos depois, começou a

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carreira se apresentando em bares de rock e música eletrônica, e lançou, no

ano seguinte, dois EPs ("Extended Play", formato entre o "Single" e o Álbum,

que contém de 4 a 6 músicas) produzidos pelo próprio Adriano Cintra.

O grupo alcançou destaque imediato no cenário paulistano, em parte

devido a alguma fama de que gozava o baterista como DJ em casas noturnas

de São Paulo, e também graças à popularidade dos fotologs (site tipo blog,

exclusivo para exibição de fotos do usuário) comandados pela vocalista, Luisa

Lovefoxxx. Atentos à rapida ascensão da banda, alguns jornalistas influentes

publicaram matérias a respeito, contribuindo para o crescimento do CSS fora

da cena "underground" de São Paulo. Formadores de opinião como Lúcio

Ribeiro e Erika Palomino, ambos da Folha de S. Paulo, lideraram o movimento.

O carisma da vocalista, e a atitude despojada da banda, além do aspecto

visual, com as roupas coloridas e as presenças femininas, faziam do Cansei de

Ser Sexy um forte produto midiático.

Em 2005 a gravadora Trama assina contrato com a banda, que já vinha

se destacando nos canais digitais, inclusive o site "TramaVirtual", da própria

gravadora. Só então seria lançado o primeiro álbum, intitulado simplesmente

"Cansei de Ser Sexy", também produzido por Adriano Cintra. O Cd foi

lançado com distribuição nacional, e divulgação em mídias digitais e

tradicionais. Em seguida, o mesmo foi lançado em edição especial que trazia,

além dó próprio disco, um Cd em branco, gravável, no qual o comprador

poderia copiar o Cd original, para presentear um amigo. Posterior a esse

lançamento, foi feito o EP "CSS Suxxx", distribuído somente em formato

digital, ou em formato físico apenas nos shows. Essas atitudes atribuíram ao

grupo uma imagem extremamente favorável, com a qual simpatizava

imediatamente o consumidor de MP3 e música digital em geral.

O resultado em vendagem de discos foi modesto, mas a popularidade

da banda crescia progressivamente. A convite da Trama e do empresário da

banda na época, alguns jornalistas de publicações estrangeiras escreveram

sobre o CSS, conferindo alguma visibilidade fora do Brasil. O jornal inglês

"The Guardian" publicou uma matéria em que o repórter Peter Culshaw, que

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havia assistido um dos shows de lançamento do Cd em São Paulo, afirmou:

"Essa pode ser a maior banda já vinda da América do Sul".

Em função dessa projeção, o grupo assinou, em 2006, um contrato para

o licenciamento do primeiro disco com a gravadora independente Sub Pop, de

Seattle, nos EUA. Apesar de contar a partir desse ponto, com duas

gravadoras, uma responsável pelo território brasileiro, e outra pela América do

Norte e Europa, o Cansei de Ser Sexy centraliza as atividades na própria

banda - Os discos são licenciados por tempo determinado, a própria banda os

produz (através do baterista) e tem a propriedade de seus fonogramas. A partir

daí, os acordos fechados visam necessidades que não possam a princípio ser

supridas pelos integrantes, como distribuição e divulgação.

A partir do contrato com a Sub Pop, foi produzido um video clipe, da

música escolhida como single (música de trabalho) do álbum fora do Brasil. O

clipe de "Let's Make Love and Listen to Death From Above" passou a ser

exibido com frequência na MTV européia e, em menor grau, também na matriz

americana do canal. Esse fator foi decisivo para o crescimento da

popularidade do CSS fora do Brasil. Com uma base inicial de fãs constituída, o

grupo partiu, em Julho de 2006 para sua primeira turnê internacional, junto

com a banda "Bonde do Rolê", também brasileira e com o Dj americano

"Diplo". A partir dessa turnê e do lançamento internacional, a banda passou a

receber destaque em importantes mídias internacionais, dentre as quais se

destaca o periódico inglês "New Musical Express" (NME). A partir daí,

alcançaram popularidade inédita entre artistas brasileiros no circuito de

rock/pop.

Em 2007, o Cansei de Ser Sexy participou de alguns dos maiores

festivais de Rock e música Pop do mundo, como o "Lollapalooza", em

Chicago, ao lado de artistas como Pearl Jam e Amy Winehouse o "O2

Wireless", em Londres, que contou também com White Stripes e Daft Punk, e

o "Coachella Valley Music and Arts Festival", ao lado de Red Hot Chilli

Peppers e Rage Against The Machine, entre outros.

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O segundo disco da banda, "Donkey", lançado em 2008 foi recebido

com alarde pela mídia especializada no Brasil e no exterior. Em território

nacional, foi também lançado pela Trama, mas dessa vez inaugurando um

sistema inovador promovido pela gravadora, o "Álbum Virtual", que funciona

através de um sistema por eles batizado como "Download Remunerado".

"Donkey" foi o primeiro álbum a ser lançado nesse formato, que consiste em

oferecer os arquivos de áudio em MP3 e todo o material gráfico do disco de

forma gratuita para o consumidor que, mediante um cadastro no site da

Trama, é exposto à um anúncio de um patrocinador (nesse caso específico, a

Volkswagen), que paga os custos do artista e do selo. Em território

internacional, o álbum foi lançado normalmente, através da Sub Pop, com a

distribuição física tradicional, e digital em lojas como a iTunes Music Store.

No geral, o Cansei de Ser Sexy nunca foi um grande suceso de venda

de discos. O primeiro disco do grupo, segundo o jornalista Lúcio Ribeiro,

vendeu no primeiro ano cerca de 60 mil cópias. No mesmo ano (2006), o

álbum Stadium Arcadium, do Red Hot Chilli Peppers, vendeu mais de um

milhão de cópias apenas na primeira semana. No ano seguinte, a cantora

brasileira Céu, com menos exposição na mídia e longe dos grandes festivais,

vendeu 100 mil cópias pelo selo "Hear Music", da rede de cafeterias

Starbucks. Ainda assim, apesar das modestas vendas, o CSS conseguiu

transformar-se em um grupo bem conceituado no mercado de shows, um

empreendimento rentável.

3.5.2 - Banda Calypso

Longe das grandes capitais nacionais, e muito longe do buzz gerado

pela imprensa paulistana sobre o Cansei de Ser Sexy, uma das bandas mais

rentáveis do país completa dez anos de atividade, com um crescimento

admirável, paralelo à decadência do mercado brasileiro de disco.

Cledivan Almeida Farias, conhecido desde o início de sua longa carreira

musical como Chimbinha, produtor e guitarrista atuante em diversas bandas

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de guitarrada e brega (estilos populares do norte do Brasil), formaria uma

banda que venderia mais de 12 milhões de cópias e se tornaria um dos

maiores fenômenos da música popular brasileira, sem qualquer apoio (ao

menos no início) de gravadoras, rádios ou grandes corporações mídiáticas.

Nascido em uma família pobre no interior do Pará, Chimbinha cresceu

ouvindo as rádios AM da América Central, do Caribe e das Guianas, que

seriam influência determinante na concepção do estilo musical que

desenvolveria anos depois.

Iniciou a carreira musical em tocando em boates e bailes paraenses, e

pouco tempo depois, aos 16 anos, começou a participar como guitarrista em

bandas de lambada em estúdios de Belém. No começo ainda morador de

favela, Chimbinha foi galgando seu espaço, gravando com artistas

desconhecidos, de poucos recursos, e aos poucos se destacando entre os

guitarristas do mercado, até alcançar uma posição privilegiada como

instrumentista e produtor, sendo muito requisitado em segmentos musicais

populares em todo norte e nordeste.

Em 1999 foi convidado para produzir o Cd da cantora Joelma Mendes

e, insatisfeito com o repertório, decidiu ele mesmo se encarregar da

composição. Em meio a esse processo, os dois começaram a namorar, e

tiveram a idéia de montar uma banda, e batizá-la com o nome do estilo

musical resultante da mistura de ritmos que compunha o som do produtor:

Calypso.

À época de lançamento do primeiro Cd, o casal morava em um

apartamento de um cômodo na periferia de Belém. Chimbinha abandonou as

atividades de guitarrista de estúdio e passou a investir seu tempo na

divulgação da banda. Sem dinheiro para colocar suas músicas nas rádios

tradicionais, o músico aproveitou-se de um fenômeno característico de Belém,

as chamadas "rádios de poste". Essas rádios eram canais não

regulamentados espalhados pelas ruas da cidade, os responsáveis fixavam

caixas de som nos postes e tocavam música o dia todo. Chimbinha distribuiu

discos nessas rádios, e como conseqüência, as rádios normais passaram a

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tocar as músicas, a pedido do público, que ouvia a banda ao passar pela rua.

Essa popularidade resultava numa maior freqüência de shows, cuja receita era

reinvestida na divulgação da banda, em todos os canais imagináveis - carros

de som, lojas, festas, em alguns casos, diretamente para o público. A banda

diz ter distribuído gratuitamente 50 mil Cds, para alcançar o sucesso gerado

em torno do primeiro álbum.

A banda Calypso criou um sistema em que tem controle absoluto de

sua produção, distribuição e promoção. Com a popularização do grupo,

muitas rádios passaram a tocar suas músicas espontaneamente dentro e fora

do Pará, e Chimbinha passou a fabricar mais Cds, que ele entregava

diretamente às redes de lojas do norte. Ainda assim, continuava a promover o

trabalho, agora em rádios mais distantes. Para alcançar um público maior, que

não necessariamente freqüentava as lojas de disco e, com isso aumentar a

popularidade da banda e o público dos shows, o casal começou a vender por

canais menos convencionais, como supermercados populares ou camelôs. A

distribuição era feita por correio, Joelma anotava os pedidos feitos através do

escritório da banda, e Chimbinha enviava os produtos. No caso dos camelôs,

o produto era vendido aos chefes das redes de camelô, que constituem um

sistema organizado no norte e que, a partir desse momento, passaram a

desenvolver fortes relações com o mercado de música alternativa,

especialmente no Pará.

A banda Calypso inaugurou práticas de mercado que hoje são

populares entre produtores de música popular nas regiões Norte e Nordeste. A

crise das gravadoras gerou um cenário extremamente carente nessas regiões,

e os músicos e produtores foram forçados a buscar sistemas auto-

sustentáveis. Os representantes do Tecnobrega Paraense, estilo musical que

caiu no gosto popular nos últimos anos em Belém, e chamou a atenção de

diversos estudiosos de mercado da música pela originalidade do modelo de

negócio, segue alguns dos passos ditados pela banda Calypso. Os produtores

têm no camelô fortes aliados. O comércio informal é o grande responsável

pela divulgação desses personagens. O artista que cai nas graças dos

"atravessadores", pessoas responsáveis por distribuírem os Cds aos camelôs,

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fica conhecido, toca nos carros de som, e consegue, em virtude dessa "fama",

agendar um maior número de shows. A negociação entre o produtor e os

camelôs pode acontecer de duas maneiras: Através da venda de Cds

prensados pelo artista - Seguindo o modelo de Chimbinha, onde muitas vezes,

o próprio músico trabalha como atravessador - num sistema similar à

distribuição em lojas de música ou supermercados; ou através da venda do

Cd "master", contendo as gravações originais, para o atravessador, que se

responsabiliza pela prensagem e distribuição nos camelôs. Esses canais

alternativos viabilizaram a existência de centenas de artistas que não poderiam

depender de gravadoras, como fora o caso da Banda Calypso no início.

O sucesso do grupo de Chimbinha e Joelma não demorou a extrapolar

as fronteiras do Norte e Nordeste do Brasil. Depois do bem-sucedido primeiro

álbum de 1999, e do registro ao vivo lançado em 2001, a banda já gozava de

grande reconhecimento, e fazia muitos shows em diversos estados. Até então,

toda a promoção da banda tinha sido feita apenas através de rádios, lojas ou

meios alternativos, como carros de som e camelôs. A decisão de usar a

televisão como meio de divulgação veio apenas em 2002. Apesar do

reconhecimento que o nome "Calypso" trazia, e do sucesso radiofônico, a

imagem dos integrantes ainda era muito pouco conhecida, o que provocou o

surgimento de diversos números "piratas", ou seja, outras bandas que se

vendiam ou eram divulgadas como "Banda Calypso". Essa necessidade de

reconhecimento visual fez com que a banda procurasse a divulgação

televisiva. As primeiras aparições foram no programa Gilberto Barros, na rede

bandeirantes. A partir daí ocorreu a consolidação do sucesso do grupo em

todo o território nacional. Segundo Chimbinha, quando a banda participou do

programa Domingão do Faustão, em 2005, já haviam vendido mais de 5

milhões de discos.

Em diversos lançamentos, a partir desse ano de 2005, a banda contou

com distribuição nacional da gravadora Som Livre, no entanto, toda a

produção musical e executiva, bem como a maior parte da promoção da

banda, é concentrada na figura de Chimbinha. O Calypso é hoje uma empresa

com mais de 200 funcionários, com marcas impressionantes: 18 títulos

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lançados em Cd e 6 em DVD, mais de 12 milhões de cópias vendidas, e uma

média de 20 shows por mês.

A Banda Calypso é um exemplo de uso inteligente de sistemas

considerados inimigos do mercado (como é o caso dos camelôs e da pirataria

física), ou ainda ignorados pelas grandes gravadoras (carros de som, rádios

não regulamentadas), na criação de um sistema totalmente centrado no

artista, que é responsável por todas as etapas da produção e distribuição do

seu conteúdo. Mas o Calypso mostra, mais uma vez, que a chave é a

identificação dos pontos de contato entre artista e público.

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4. O FUTURO Novas visões e modelos

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Esse capítulo trata de algumas das interpretações do mercado de

música digital que foram usadas como base na concepção deste trabalho.

Merecem maior destaque alguns pesquisadores: Andrew Dubber, da

Universidade de Birmingham, autor do livro "20 things you must know about

music online" e Gerd Leonhard e David Kusek, da Berklee Music College,

autores do livro "The future of music".

Antes de mais nada, é necessário identificar a partir de que momento,

ou de que mudança, surge aquilo a que nos referimos como "música digital".

O grande elemento transformador foi, no caso, a perda da necessidade de

suporte físico. No momento em que a música se transforma em informação

digital, uma série de características se alteram, e algumas das verdades sobre

as quais foi construída a indústria fonográfica perdem sentido.

As primeiras manifestações da cultura do MP3 já apontavam para uma

grande resignificação do sentido comercial da música. Na realidade dos

downloads e do compartilhamento online, um único arquivo fonte pode servir

de base para milhares de downloads - o que significa que, no mundo digital, a

escassez não existe quando se trata de fonograma. Esse fato, aliado ao modo

como o consumidor de música online adquire seus arquivos, que na maioria

das vezes é totalmente desligado do conceito de compra, faz com que a

música sofra uma mudança estrutural - perca o status de produto.

E a pergunta que surge daí, naturalmente, é: se a música não é mais

produto, o que ela se tornou? Ainda não existe uma resposta objetiva, mas

alguns apontamentos. E dentro de cada um destes apontamentos existem

meios de se desenvolver estratégias que façam sentido nos contexto atual.

Podemos tratar a música como serviço, aplicando a ela uma lógica similar à

usada na telefonia ou televisão; podemos entender também música como

conteúdo digital, e assim pensar em distribuição através de canais como

celulares e provedores de acesso à internet. A chave para o sucesso é

oferecer um serviço que seja mais ágil e vantajoso para o usuário que o

download ilegal.

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No mundo das lojas de disco e das gravadoras, o indivíduo que

desejasse ouvir música tinha apenas dois caminhos possíveis: O rádio, onde

ele teria de se submeter à seleção musical que a programação oferecesse ou,

se desejasse ter o controle sobre o que escutar e quando, teria que comprar o

objeto oferecido e formatado pelas gravadoras, que pressupunha, além do

registro da música em si, a prensagem feita em vinil ou, posteriormente, em

Cd, dentro de uma embalagem impressa e montada, submetida a uma

logística de distribuição que resultava no produto exposto em loja, pelo preço

estipulado pelas necessidades do processo e dos agentes envolvidos,

contabilizando estoque e transporte, e que poderia então, ser adquirido.

Em um mundo digital, a música passa direto do registro do fonograma

para o consumo. Essa eliminação de intermediários provoca uma revolução

nas noções de preço e promoção de música.

A única barreira existente entre o consumidor final e o produtor de

conteúdo é o fazer-se conhecer, levar o indivíduo até o conteúdo, criar nele o

desejo pela obra em questão. Ou seja, a grosso modo, a promoção. Em se

tratando de música, só existe uma forma realmente eficiente de conquistar o

potencial consumidor: A audição.

Dubber (2007) fala sobre a única verdade imutável no consumo de

música - O processo Hear - Like - Buy (Ouvir - Gostar - Comprar). Esse

processo se mantém em todas as situações de consumo desde o início da

indústria. Mesmo nas redes peer-to-peer, e no universo do MP3. Mas apesar

de o sentido ser o mesmo, na nova realidade, a obtenção do produto nem

sempre se dá pela compra, ainda que o resultado seja a posse da música.

Partindo de um cenário onde não existe a escassez, e a principal

ferramenta de divulgação é a audição da música, o custo da promoção pode

ser drasticamente reduzido. O livro "20 things you must know about music

online" (Dubber, 2007) traz um exemplo bastante esclarecedor desse

processo: Um artista que, em 1995, fizesse uma prensagem de 1000 unidades

de seu Cd, daria 200 deles para diversos canais de divulgação, e esperaria,

com esse esforço, gerar demanda para a venda dos 800 restantes. Hoje, um

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artista que faz a mesma prensagem de 1000 unidades, pode entregar um

milhão de arquivos com suas músicas para divulgação, e ainda vender as

1000 unidades.

O problema que se cria nesse sistema é que, se o consumidor busca a

música apenas, o benefício trazido pela promoção é exatamente o mesmo

trazido pelo produto físico, o que exclui a necessidade do disco. E se o

benefício trazido pelo download ilegal também é o mesmo, como viabilizar

financeiramente a produção musical? Como precificar esse conteúdo? As lojas

digitais ainda tomam por base os valores dos álbuns físicos, apesar de não

precisarem da mesma estrutura, e ainda assim, não geram receita suficiente

para a movimentação da indústria.

O livro "The Future of Music" traz alguns apontamentos nesse sentido.

Os pesquisadores da Berklee, analisando o comportamento que havia se

instalado no consumo de música desenvolveram, em 2005, o conceito "music

like water" (música como água). Segundo essa noção, a música nos meios

digitais flui livremente em quase todos os lugares e, em grande parte dos

casos, dá ao consumidor a sensação de ser gratuita. Essa visão prevê um

mundo onde o usuário passe 100% do seu tempo online, podendo assim, ter

acesso à musica em qualquer situação. Hoje essa relação, em muitos casos, já

é realidade. Os celulares mais recentes trazem essa possibilidade, não existe

mais limite entre o online e o offline, o ato de conectar-se perde o sentido, pois

nunca nos desconectamos.

No momento em que essa se torna a realidade do usuário, e a música

está facilmente disponível através desse canal, então a música passa a estar

presente a todo momento, "flui" livremente. Como se aproveitar desse

momento para criar um sistema lucrativo para os produtores de música é a

principal questão a ser discutida.

A metáfora "música como água", portanto, vai além de representar a

ubiqüidade com que se apresenta a música no mundo de hoje. Ela também

serve como apontamento para uma nova maneira de se pensar a economia

dos fonogramas. Se a música não exige mais um suporte físico, nem sofre de

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escassez, e portanto, encontra dificuldades em ser precificada e vendida

seguindo o padrão de produto usado até então, podemos pensar em um

sistema onde a cobrança seja feita no acesso aos meios que levam à música.

Se os meios de acesso são provedores de acesso à internet e operadoras de

celular, poderia ser pensado um sistema em que essas empresas oferecessem

serviços organizados de música e cobrassem por isso um valor dissolvido nas

faturas existentes, já pagas pelos usuários. O mercado de música digital

representa hoje 3,7 bilhões de dólares, no sistema de lojas virtuais. Quase

metade desse valor vem do consumo via dispositivos móveis. Em alguns

mercados, como o Japão, a porcentagem do consumo por celular supera os

90%. Existem atualmente no planeta cerca de 4 bilhões de telefones

celulares. Se pensássemos em converter metade desses usuários em

consumidores de música, uma parcela que soa perfeitamente plausível em um

mundo onde a capacidade de reprodução de arquivos de áudio é cada vez

mais presente nos telefones, e acrescentássemos uma taxa sobre o conteúdo

disponível de, por exemplo, 5 dólares anuais, para o acesso ilimitado a um

grande catálogo, teríamos um mercado potencial de 10 bilhões de dólares,

quase o triplo do total do mercado digital atual. Esse despretensioso cálculo,

naturalmente, encontraria uma série de empecilhos e distorções sociais e

mercadológicas, se fosse adaptado à realidade. Mas esse pensamento, mais

que uma estratégia, pode ser entendido como uma forma de encarar novas

possibilidades de mercado.

De volta à comparação com a água, podemos separar esse consumo

massivo, o consumo pela subscrição aos provedores de conteúdo, via

dispositivos móveis ou internet - a água que usamos em nossas casas para

beber, cozinhar, tomar banho ou limpar - de um consumo de produtos (agora

sim) exclusivos, com uma série de diferenciais, kits com informação exclusiva,

e benefícios ao fã que vão além da própria música, como camisetas, imagens,

vídeos, livros, vendidos como as águas engarrafadas são vendidas em

restaurantes e supermercados.

Essas abordagens representam, essencialmente, as possibilidades

vislumbradas por profissionais e estudiosos da indústria fonográfica. O

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contexto atual vem colocando essas idéias em teste, conferindo ao mercado

grande dinamicidade, e valorizando a criatividade, cada vez mais necessária

num cenário em que o mercado ainda se encontra em decadência. Desde a

idealização do conceito de "música como água", diversos serviços de

subscrição foram colocados em prática, com maior ou menor sucesso, mas

que em nenhum momento despontaram como soluções para a crise. No

entanto os entendimentos do comportamento de consumo trazidos por essas

evoluções se mostram especialmente valiosos diante da instabilidade.

O maior dos reveses na conquista de modelos econômicos

verdadeiramente eficientes para se trabalhar a música digital ainda é a

eficiência dos sistemas ilegais de download e, naturalmente, a gratuidade que

eles oferecem.

Tomando como ponto de partida a dificuldade de precificação dos

conteúdos de informação nas mídias atuais, uma recente corrente de

pensadores, jornalistas e escritores envolvidos com o mercado digital têm

flertado com a idéia de modelos econômicos baseados no custo zero de

conteúdos digitais, na chamada "economia da abundância. Uma das figuras

de destaque a teorizar sobre o assunto é o escritor americano Chris Anderson,

editor-chefe da revista americana Wired, e um dos mais populares pensadores

da economia digital - autor do aclamado livro "A Cauda Longa". Anderson

lançará, no dia 6 de julho de 2009, o livro "Free", no qual propõe práticas a

partir das quais pode-se viabilizar economicamente a gratuidade de uma série

de produtos. A convergência de mídias e o planejamento de sistemas de

compensações financeiras paralelas aos custos do produto são o centro da

teoria.

Em se tratando do mercado de música, Anderson cita como exemplo,

entre outros a Banda Calypso, e seu sistema de distribuição gratuita de discos

para o público, compensado pela vasta audiência dos shows, e o novo modelo

do tecnobrega, que entrega Cds "gratuitos" junto do ingresso do show, que,

novamente em compensação, passa a custar um pouco mais caro. Outro

exemplo citado é o do lançamento, em 2007, do álbum "Planet Earth", do

cantor e multi-instrumentista Prince, que foi distribuído gratuitamente junto à

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uma edição de domingo do jornal londrino Daily Mail, com tiragem de 2,8

milhões de exemplares. O artista teria, a princípio, perdido dinheiro,

licensiando o conteúdo do disco 0,36 dólares, quando o valor tradicional seria

de 2,00 dólares. Mas a promoção gerada pela distribuição teria compensado a

atitude, pois o músico lotaria 21 shows na região nos meses seguintes. Da

mesma forma, o Daily Mail também teria tido prejuízo na operação, uma vez

que o custo da produção e distribuição adicional gerado pela adição dos Cds

seria inferior ao lucro obtido com as vendas. No entanto, o dirigente da

publicação justificou a atitude pelo fato de o projeto ter valorizado a marca do

jornal, que passou a atrair mais anunciantes.

O fato é que, cada vez mais, proliferam-se as opiniões de que a

gratuidade da música é uma opção viável. A busca é por um sistema que,

além de ser gratuito, ou pelo menos passar ao usuário essa sensação, possa

ser mais atraente e eficaz que os sistemas ilegais de download.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Música e a economia do grátis

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O primeiro ponto a ser exposto nessas considerações finais é a

constatação, desenvolvida ao longo deste trabalho, de que no entendimento

do consumidor assíduo de música, o jovem, que tem sido nas últimas décadas

o motor dessa indústria, o usuário de internet que se relaciona com áudio em

formato digital, a música já é gratuita. Para a maioria absoluta desses

indivíduos, que desenvolveram seus hábitos junto com o crescimento das

redes de relacionamento, dos programas peer-to-peer, do formato MP3 e do

iPod e iPhone, não existe relação de compra e venda de arquivos, o

download parece livre de qualquer relação comercial.

As tentativas da indústria de legalizar esse consumo através das lojas

virtuais mostraram-se surpreendentemente eficazes, levando-se em conta as

perdas sofridas com o boom das redes de compartilhamento, mas mesmo o

crescimento destes sistemas não foi capaz de compensar as constantes

quedas que as gravadoras vem sofrendo ano após ano. O sistema de venda

de arquivos digitais funciona quase como um eufemismo do fim da relação de

produto que se tinha com a música, uma forma de atenuar uma verdade

dolorosa, ou um meio de desacelerar um processo inevitável.

A autonomia trazida pela internet apresenta ao ouvinte uma série

incontável de alternativas aos sistemas "oficiais", que entregam o mesmo

benefício, ou benefícios muito semelhantes sem nenhum custo. Se os

softwares descendentes do Napster apresentam como contraponto ao

volume de informação uma péssima organização, e a falta de confiabilidade

dos arquivos, os incontáveis blogs dedicados a disponibilizar discos e

discografias em MP3 apresentam informação de alta qualidade - tanto no que

diz respeito à qualidade sonora quanto à imagens e informações relativas ao

conteúdo musical, sendo muitas vezes superior a lojas como a iTunes Music

Store. Neste contexto, o caminho "legítimo" se apresenta ao consumidor

como uma opção muito menos interessante.

As diversas campanhas capitaneadas pelas gravadoras nos últimos

anos alternam entre o educativo e o ameaçador, em slogans como "o

compartilhamento de arquivos mata a música" e "pirataria é crime". No

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entanto, a imagem pública da indústria é extremamente negativa, o que

contribui para a falta de eficácia dessas iniciativas, que se soma à carência de

alternativas oficiais realmente atraentes.

Num cenário como esse, onde a circulação de conteúdo ilegal é imensa

e bem organizada, e o usuário é soberano, a única alternativa realmente capaz

de ser bem-sucedida, é a criação de um serviço legal que seja realmente

atraente para o consumidor - principalmente, mais atraente que as alternativas

ilegais. Entretanto, as possibilidades referentes ao download de arquivos

parecem ter se esgotado. Que tipo de solução poderia ser encontrada em

novos formatos?

Certamente existem várias respostas, complexas e possivelmente

eficazes. No entanto, ao cabo das análises aqui desenvolvidas, e da

observação do mercado e do consumo, uma das possibilidades chama

atenção em especial.

A música na web pode chegar ao usuário de duas formas principais -

download e streaming. O download é a primeira e mais tradicional dessas

formas, e consiste na transferência de um arquivo de áudio de um servidor

virtual para o disco rígido do computador do usuário, que o executa através de

um software específico para reprodução, no caso de música ou vídeo. O

streaming, por sua vez, surgiu como forma de viabilizar programas online de

rádio - consistia na execução, em uma determinada página da internet, de um

arquivo de áudio hospedado em um servidor virtual, mas que tocava no

navegador, sem a necessidade de se copiá-lo para o computador pessoal.

Devido à lentidão das conexões de internet à época de seu nascimento, os

áudios exibidos dessa forma tendiam a ter baixa qualidade, e não raro eram

interrompidos várias vezes durante a execução. Depois da popularização das

conexões de banda larga, contudo, passaram a surgir canais mais

interessantes que utilizavam o streaming como atrativo principal, dessa vez

com uma qualidade muito mais próxima dos arquivos de MP3.

Diversos canais fundamentados nessa forma de execução se

popularizaram, podemos citar alguns como o Pandora, um site fundamentado

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no auto-intitulado "Projeto Genoma da Música" (Music Genome Project), que

sugeria programações musicais a partir de artistas indicados pelo usuário,

cruzando informações de um banco de dados de características musicais,

fruto de pesquisas do referido projeto. A execução das músicas era feita

sempre por meio do streaming. Outro site de funcionamento parecido, mas

que se tornou ainda mais popular foi o Last.fm, que funcionava em um

sistema relativamente parecido, que indicava programações musicais aos

usuários, e as tocava por streaming. A diferença é que, neste caso, o

cruzamento de referências era feito a partir do comportamento dos ouvintes

que freqüentavam o site e buscavam os artistas de sua preferência. O mais

popular dos sites de streaming, porém, não é fundamentado em exibição de

música, mas sim de vídeo. O YouTube mostrou-se uma das criações mais

populares e poderosas da web. E mostrou também o potencial da música

nesse sistema de exibição, pois não só a música é um dos temas mais

procurados e exibidos no YouTube, mas ele mesmo se tornou uma importante

fonte de consumo musical.

Estes sistemas, no entanto, tem alguns problemas determinantes em

relação consumo de música como acontece atualmente. Primeiro, todos os

projetos citados tem pouca funcionalidade no que se trata de um dos

conceitos mais importantes na música digital: A playlist. Em um momento no

qual a noção mais importante do relacionamento entre indivíduo e música é o

controle, é absolutamente determinante que se possa ter um sistema

organizado, ágil e facilmente acessível de playlists. A carência de controle

nesses sistemas é tratada um diferencial no caso da Last.fm e do Pandora,

que tem como pretensão apresentar novos conteúdos ao usuário, mas é

justamente isso que impede esses sistemas de serem encarados hoje como

fonte primaria de consumo de música.

Outro fator que impede os sistemas de streaming disponíveis de

superarem o download como fonte primaria de consumo de música é a falta

de portabilidade. A popularização de iPods e celulares com suporte para MP3

fez com que a música se tornasse totalmente móvel, passível de ser apreciada

em todos os lugares e situações. Os sistemas criados envolvendo o streaming,

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até pouco tempo atrás, não tinham condições de acontecerem fora do

navegador de internet de um computador pessoal, uma série de barreiras

tecnológicas impediam a utilização do sistema em formatos portáteis.

Depois das inovações trazidas pelas últimas gerações de smartphones

e aparelhos com a tecnologia 3G, essa portabilidade tornou-se viável, e

começam a surgir novas gerações de softwares e sistemas de streaming mais

atraentes e mais condizentes com a realidade do usuário contemporâneo. A

tendência é que, com a popularização cada vez maior do streaming, a partir da

elaboração de um sistema adequado às necessidade atuais, o download

desapareça ou, pelo menos, deixe de ser a principal forma de consumo de

música em formato digital. Essa mudança pode representar, para indústria,

uma oportunidade de gerar um esquema legítimo e lucrativo, tornando legal a

maior parte do consumo de música.

Os serviços mais recentes de streaming, entre os quais podemos citar o

francês Deezer, e o sueco Spotify, apresentam soluções cada vez mais

completas para o consumidor contemporâneo, e o fazem de forma legítima, a

partir de acordos com a indústria. O Próprio YouTube, em 2008, já revertia

parte de sua arrecadação em publicidade a empresas com vídeos

cadastrados, que apresentavam grande número de exibições.

Ainda não existe um sistema unificado para a remuneração referente ao

streaming de músicas, cada um dos serviços desenvolve seus próprios

acordos, que podem ou não ir ao encontro dos interesses das gravadoras. No

entanto, o streaming já apontava ser uma possível fonte de renda antes desse

novo formato - as distribuidoras digitais usavam sites de streaming para

promover conteúdos musicais de forma remunerada - o que fez com que as

gravadoras se sentissem mais confortáveis com o streaming do que se

sentiam com o download. Além do fato de que, para esses produtores, a

simples exibição da música parece ser menos ofensiva, ou menos prejudicial

do que uma relação em que o usuário passa a possuir a música.

O fato é que, de uma forma ou de outra, o streaming vem tendo boa

aceitação tanto do mercado quanto dos usuários. Do ponto de vista do

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usuário, existem vantagens nítidas - O streaming não pressupõe o tempo de

espera do download, a música pode ser executada diretamente, a partir do

acesso ao canal onde ela está disponibilizada, e não ocupa espaço no disco

rígido de seus computadores pessoais. Se as desvantagens antes associadas

ao streaming (má qualidade de áudio, carência de playlists eficientes, ausência

de portabilidade) deixam de existir, ele passa a ser uma possibilidade

extremamente atraente ao usuário. Do ponto de vista dos produtores de

música, qualquer iniciativa online que apresente uma alternativa viável de gerar

lucro é válida.

Outros serviços de música que tem por base a sensação de

"gratuidade" se proliferaram em diversos canais nos últimos anos. Dois

exemplos interessantes são o projeto Nokia Comes With Music e o sistema

de Download Remunerado, desenvolvido pela gravadora Trama no Brasil.

No caso da Nokia, a idéia é embutir no custo do aparelho de celular um

preço referente ao download de músicas inclusas no programa. O celular

oferece um catálogo vasto (3,6 milhões de músicas, segundo a campanha de

divulgação do novo sistema), dentro do qual o usuário do aparelho pode fazer

downloads ilimitados por um ano. A remuneração das gravadoras é feita com

base num acordo que estima uma média de downloads possíveis por usuário,

e remunera as empresas envolvidas de acordo com o tamanho do catálogo

disponibilizado.

No sistema atualmente usado pela Trama, o do Download

Remunerado, um patrocinador compra o projeto em troca de espaço

publicitário no site TramaVirtual, e os músicos e produtores participantes

recebem de acordo com o número de downloads efetuados. Esse sistema vale

para o portal de artistas independentes criado pela Trama, onde os artistas se

cadastram livremente, e recebem com base exclusivamente na quantidade de

downloads efetuados. O sistema, no entanto, não envolve nenhum dos artistas

efetivamente contratados pela gravadora. O catálogo oficial da Trama não

está disponível nem para streaming nem para download. A exceção só

acontece no caso do projeto Álbum Virtual, no qual um artista do casting da

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gravadora disponibiliza todo o disco, incluindo capa, encarte, rotulo e afins,

para download gratuito (mediante cadastro) no site da Trama. Nesse caso, o

patrocínio é vendido separadamente para cada álbum participante do projeto.

Nestes dois últimos projetos, no entanto, o usuário tem poucas

vantagens em relação ao download ilegal. A única vantagem absolutamente

nítida é a presença de uma fonte "legítima" e, talvez no caso do Álbum

Virtual, a presença das imagens que compõe o disco. As desvantagens, no

entanto são as diversas limitações impostas por esses serviços. No caso do

Nokia Comes With Music, além do serviço estar atrelado à compra do

aparelho, o catálogo, por maior que seja, jamais será tão completo quanto o

disponível ilegalmente na web. Outro agravante é a presença de tecnologias

DRM em todos os arquivos adquiridos nesse sistema. Uma música adquirida

pelo aparelho de celular só pode ser executada nele mesmo, não podendo ser

compartilhada, transferida para computadores ou MP3 players, nem gravada

em Cd. Esse bloqueio é contrário à idéia de portabilidade da música que,

apesar de estar armazenada em um dispositivo móvel, não pode ser

transportada para nenhum outro meio.

No caso do Download Remunerado, o catálogo é extremamente

limitado, composto basicamente de bandas absolutamente independentes e,

justamente por isso, quase completamente carentes de divulgação e pouco

atraentes para os consumidores. Mesmo o Álbum Virtual, que oferece artistas

que já possuem alguma base de fãs interessados, nunca oferece mais que

alguns poucos artistas simultaneamente, além de cada lançamento ser

disponibilizado por um período curto de tempo. Não bastassem essas

limitações, se a hegemonia o streaming de fato se converter em uma

realidade, todos os serviços baseados no download se tornarão obsoletos.

A precificação no streaming ainda não encontrou um modelo definitivo

mas, em boa parte dos casos, assemelha-se mais ao sistema de remuneração

do rádio que à venda de música. É acordado com a empresa produtora do

fonograma um valor por execução, pago depois de um determinado tempo de

atividade do sistema, de acordo com o número de vezes que cada música foi

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ouvida. A fonte de renda desses programas varia de acordo com cada

concepção, havendo sistemas que cobram uma taxa de subscrição do

usuário, que a partir dela tem acesso a todo o catálogo, e sistemas baseados

na venda de espaços publicitários. A criação de um software completo e

organizado com base no streaming, no qual o consumidor possa facilmente

administrar playlists, acessá-las em diversos suportes e encontrar um catálogo

extremamente vasto, que possa remunerar produtores, artistas e gravadoras,

o mercado de música tomará rumos absolutamente novos.

Nos últimos meses, tem ganhado grande popularidade no mundo digital

um software sueco desenvolvido com base numa plataforma de streaming. O

Spotify funciona agregando servidores virtuais de música com um sistema

peer-to-peer, que reconhece arquivos de áudio armazenados nas máquinas de

cada usuário e possibilita a audição desses arquivos, o que permite o acesso a

um grande catálogo. São oferecidos dois modelos de consumo: O modelo

"Free", em que o usuário pode utilizar o programa gratuitamente, sendo

exposto a mensagens publicitárias de 20 segundos, com intervalos de cerca

de meia hora, e o modelo "Premium", no qual o usuário paga uma taxa mensal

e pode usufruir do serviço livre de publicidade.

O software é disponibilizado no site da empresa, e pode ser instalado

em diversos computadores, o usuário configura uma conta pessoal, a partir da

qual pode acessar seu conteúdo independente da máquina em que se

encontra. Da mesma forma, o software já existe em versão móvel, compatível

com o sistema operacional Google Android, disponível em diversos aparelhos

de telefonia móvel. Especula-se que dentro de alguns meses sejam

disponibilizadas versões compatíveis com o iPhone e com outras plataformas

móveis, como o Windows Mobile. O Spotify conta com boa aceitação da

indústria fonográfica, tendo firmado acordos com as quatro majors e com

diversas gravadoras e distribuidoras independentes de conteúdo online.

As apostas em relação ao novo programa têm animado tanto à indústria

quanto aos críticos e estudiosos do mercado, além de ter tido excelente

aceitação de público nos países em que já está em operação - a versão

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gratuita já está em pleno funcionamento na Suécia, Noruega, Finlândia, Reino

Unido, França e Espanha, tendo alcançado a marca de um milhão de usuários

já no quarto mês de atividade.

Como o cenário se consolidará nos próximos anos, se o streaming

superará o download, se as gravadoras sobreviverão nos novos sistemas, ou

se a música mudará de foco, sendo subsidiada pelas empresas de acesso

digital, não se pode saber, só se pode especular. No entanto, alguns fatores

marcantes podem ser indicadores de uma mudança de rumo. Entre eles, o

fato de, pela primeira vez na história, as quatro grandes gravadoras acordarem

em ter seu conteúdo disponível em um sistema online e gratuito. Outro ponto

que pode ser entendido como favorável à possível soberania do streaming é o

fato de que a Apple, hoje uma das mais importantes ditadoras de tendências

musicais, reduziu a capacidade de armazenamento dos modelos mais

recentes de iPods e iPhones, sugerindo a diminuição da necessidade de

armazenamento de arquivos.

O site hypebot.com, importante agregador de notícias do mercado

musical, propôs a seguinte previsão, na ocasião em que foi divulgado o

lançamento da versão para o Google Android do Spotify:

"Quando a versão para iPhone for lançada, e o Spotify se expandir nos

EUA - ambos são inevitáveis - todo o cenário se alterará, e todos seguirão o

Spotify, ao invés do iTunes." (Bruce Houghton, editor do site hypebot.com e

presidente da agência Skyline Music)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUINO, V. Folks and cowboys: aesthetical of Brazilian country music. Monroe, LA USA: Wea Books, 2001 DUBBER, A. 20 things you must know about music online. Birmingham, UK, 2007. Disponível em: < http://newmusicstrategies.com > GOMES CORRÊA, T. Mercado da música, disco e alienação. São Paulo: Expert, 1987 KUSEK, D.; LEONHARD, A. The future of music. Boston, MA USA: Berklee Press, 2005 MIDANI, A. Música, ídolos e poder. São Paulo: Nova Fronteira, 2008 ANDERSON, C. Free! Why $0.00 Is the Future of Business. Wired Magazine, Issue 16.03, USA, fev. 2008. Disponível em: < http://www.wired.com/techbiz/it/magazine/16-03/ff_free >

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ANEXOS Entrevista: Chimbinha por Ricardo Calil, revista Trip edição 175, Março de 2009. Chimbinha - O líder da Calypso não fica parado e já pensa em reinventar outra vez o negócio da música Como foi sua infância no interior do Pará? Foi muito boa e difícil ao mesmo tempo. Eu tinha uma família muito humilde. Meu pai trabalhava numa serraria, minha mãe era dona de casa. Nós somos sete irmãos. Não foi fácil para meu pai sustentar todo mundo. Quando viemos para Belém, eu já tinha uns 10 anos. Fomos morar numa invasão, tipo uma favela. Aí papai foi trabalhar na feira como vendedor de peixe e eu fui ajudá-lo. A música já tinha entrado em sua vida nessa época? Desde que eu me entendo por gente, eu já estava com o violão na mão. Meu irmão Pedro era músico. Ele foi a pessoa que eu ouvia tocar todos os dias. Quando ele deixava o instrumento, eu pegava e ficava tocando. Meu irmão tocava rock, mas eu já sabia que gostava de música caribenha, das lambadas internacionais que tocam no Pará. Como essas músicas caribenhas chegavam até você? Pelas rádios AM. Lá no interior não pegava FM. Minha avó tinha um rádio grande. Ela tentava sintonizar as estações, ficava chiando até parar na música. Às vezes era rádio do Caribe, da Guiana Francesa. Não pegava rádio do Sul. A gente ficava ouvindo música o dia todo, até tarde da noite. Aquilo foi entrando na minha cabeça. E acabou influenciando na sua música? Influenciou na minha vida toda. Hoje a Banda Calypso existe por conta dessa influência que vem de criança. Até hoje eu ouço rádio AM para escutar essas músicas, até hoje elas me inspiram. Era seu irmão quem lhe ensinava as notas ou você aprendia sozinho? Com uns 10 anos de idade, já comecei a tirar música sozinho. Eu escutava no rádio, ia pegando e tocando em cima do que eu ouvia. Bastava ouvir duas vezes e eu já sabia tocar. Mas, quando a música era mais difícil, quando tinha alguma nota dissonante, ele me ensinava. Com 12 anos, comecei a tocar numa banda de baile por indicação do meu irmão. Mas continuei trabalhando na feira com meu pai. De dia eu ia pra feira, à tarde ia pro colégio, dormia um pouco; quando dava meia-noite, eu já estava na festa tocando. Estudei até a sexta série. Muito pouco, né? Você já tinha responsabilidade de levar o dinheiro pra casa? Tinha. De comprar o material escolar dos meus irmãos, a comida lá de casa. Meu pai perdeu três dedos, ficou difícil trabalhar, e ele tem problema de vista. Eu tinha que trabalhar. Era tipo o chefe da casa, como até hoje. E o apelido Chimbinha, de onde surgiu? Rapaz, isso é complicado para falar. [risos]. Ai, meu Deus do céu. Eu vou contar. O povo me chamava não era de Chimbinha, era de bichinha [risos]. Era moleque, tocava com essa banda em uma boate. a gente chamava assim antes, não sei nem como chamam hoje. Puteiro?

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Deve ser. A gente tocava muito nesses bares onde as mulheres iam fazer programa. Eu era molequinho mesmo, era mais novo que meu filho [que tem 12 anos]. O dono da banda mandava as mulheres darem em cima de mim, de brincadeira. Eu ficava triste, chorava muito. Daí ele me chamava de bichinha. Teve um dia que falei que não ia mais tocar. Daí ele disse que ia mudar meu apelido para Chimbinha. Eu gostei. Chimbinha é carinhoso. Depois é que eu descobri que Chimbinha é trocadilho de bichinha. Mas aí o apelido já tinha pegado. O que vocês tocavam na banda? Banda de baile tem que tocar tudo que está na moda. Na época, era Roupa Nova, Zé Ramalho, Sandra de Sá, Alceu Valença, Elba Ramalho, José Augusto. De internacional, a gente tocava o que estava nas rádios: Brian Adams, Rod Stewart, Dire Straits, U2 [começa a lembrar as músicas no violão: “Every Breath You Take”, do Police, “Sweet Child of Mine”, do Guns N’ Roses, “Alagados”, do Paralamas]. E quando você passou da banda para o estúdio? No finzinho dos anos 80, começo dos 90. No começo foi difícil para pegar os clientes. O sucesso na época era a lambada, e já havia uma banda muito boa de Belém que dominava as gravações. A gente só gravava aqueles cantores que não tinham condição de gravar com eles. Mas, numa dessas, um cantor com que eu gravei estourou. Foi o Roberto Vilar. Daí o povo começou a me chamar para gravar e a vida da minha família melhorou um pouco. Nós ainda morávamos na favela, mas já tinha chegado água e luz. Só não dava para comprar uma casa ainda. Eu li que você participou de uns mil cds como guitarrista. Por aí. Não tenho o número exato. Tocava todos os ritmos que pedissem. E não gravava só aqui. Gravava em Recife, Fortaleza, Manaus. Eu fiquei de 90 até 99 no estúdio, gravando dia e noite sem parar. Entrava nove da manhã e saía às três da madrugada todos os dias. Carga puxada para um garoto, né? Muito puxada. E até hoje eu sinto isso, porque não consigo dormir. Eu me adaptei com essa vida. Hoje durmo muito pouco. Quando eu consigo dormir quatro horas é uma vitória. Mas você não sente falta de ter feito mais coisas na adolescência? De dançar com as garotas, em vez de tocar no palco? Não, eu gostei de tudo. Se tivesse que voltar, faria tudo igual. Foi muito bom. Aprendi muito. Mas teve muito sacrifício, não estudei do jeito que meu pai queria. O sonho dele era ver a gente formado. Mas hoje ele é feliz, porque a gente pode lhe dar uma vida que ele nunca sonhava. Se eu fosse formado em direito, por exemplo, não sei se seria um bom advogado. Porque eu gosto muito do que eu faço. Eu nasci para ser músico e tocar isso que eu toco. Como você saiu do estúdio para criar a Banda Calypso? Em 99 um amigo meu, o Kim Marques, me apresentou à Joelma, que queria gravar seu primeiro disco e precisava de um produtor. Eu ouvi o repertório e não gostei das músicas. Comecei a correr atrás de letras com a Joelma, a fazer música com meus parceiros. Foram dois ou três meses até encaixar um repertório bom. Nesse tempo, nós começamos a namorar. Quando chegamos ao estúdio, eu fiz a proposta de a gente fazer uma banda. E a Joelma topou. Ela disse: vamos botar o nome de Calypso, que vocês usam muito no estúdio. Mas eu disse que o nome era muito difícil, o povo não ia acertar. Daí um dia chega um amigo meu, o Bispo Júnior, e diz: “Chimbinha, eu achei o nome pra tua banda: Calypso! Todo mundo fala que tu é o rei do calipso”. Falei pra Joelma: “Esse nome é bom mesmo”. Ela reclamou que estava sem moral, mas ficou Calypso. No começo, os locutores chamavam de Colapso, Calistro, Calypson, e pensavam que a gente era banda de forró. Deu um trabalho do caramba pro povo assimilar. Mas hoje todo mundo sabe o que é a Banda Calypso, que calipso é um ritmo. Quer dizer, é uma mistura de muitos ritmos que a gente chama de calipso. Vamos completar dez anos de banda, e a gente mesmo não sabe qual é o som que a gente tira. Mas quais ritmos você identifica no som da banda?

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A gente usa um pouco do carimbó, lambada, merengue, cacicó, zouk e até uma pitada do calipso caribenho. Tem uma percussão meio afro. Eu não sabia o que era o kuduro. Quando eu fui para Angola tocar, ouvi o ritmo e disse: “A gente toca isso desde criança. O Calypso toca sem conhecer”. A gente também vai muito em cima do rock, a caixa do twist com uma guitarra do chacundum, outra guitarra de reggae, outra de funk. Coloco sempre duas, três, quatro guitarras em cada música. Quando a gente vê a soma, tá um som legal pra caramba. E onde que entra a guitarrada? É influência também? É sim. Foi o mestre Vieira quem inventou. Ele pegava a música caribenha e solava a melodia com a guitarra no lugar da voz. Ouvi muito ele. Também sou fã do Aldo Sena. Era meu mestre e depois virou parceiro. Mas minha guitarra também tem outras influências, como o Renato, dos Blue Caps, e o guitarrista que acompanhava o Roy Orbinson. Misturei tudo isso e botei a minha pegada. E o processo de conquista da Joelma, como é que foi? Quando vi a Joelma pela primeira vez, eu não falei com ela. Era muito tímido. Eu pensei: “Será que ela é uma pessoa boçal? Eu não vou falar nada para ela não me tratar mal”. Passei reto. Depois ela disse que pensou a mesma coisa de mim: “É muito boçal, nem fala direito com a gente!”. Aí o Kim convidou a gente para almoçar um camarão com açaí num restaurante aqui de Belém. Ele saiu para atender o telefone, eu fiquei na mesa sozinho com a Joelma, e ela começou a conversar comigo. Quando fui levá-la em casa, ela me convidou para fazer o repertório do disco. Eu morava longe demais, e o ônibus ia só até nove da noite. Se perdesse, era só no outro dia às seis da manhã. Eu acabei dormindo na casa dela e fui ficando. Quando vi já tava junto. Foi assim que aconteceu. E estamos juntos até hoje, graças a Deus. Em Belém existem as rádios de poste, que ficam tocando música em alto-falantes na rua. Eu ouvi dizer que elas foram muito importantes para vocês no começo da carreira. Como foi essa história? Eu me emociono quando me lembro disso. Esses dias agora andando em Belém. passei numa rua e comecei a chorar. De felicidade, de alegria, mas também daquele sofrimento que eu passei no começo. A gente morava na Cidade Velha, num quartinho de quatro por quatro, só tinha uma cama e um fogão. Quando a gente lançou o primeiro disco, eu falei: tenho que parar de gravar como músico de estúdio para divulgar esse CD. Eu saía de casa cedo, às sete da manhã. Não tinha dinheiro pra comer, passava o dia tomando água. Também não tinha dinheiro para pegar ônibus, então ia a pé para as rádios. Se você visse as distâncias, ia ter pena de mim [risos]. Mas não tinha como eles tocarem a gente. Porque, pra tocar numa rádio, ou você está muito estourado ou então você tem que fazer promoção. Pagar jabá? Não chegava a ser jabá, porque não tinha grana. Era armar uma promoção com o diretor da rádio, por exemplo comprar mil camisetas pra sortear. Mas eu estava sempre liso. Não sabia mais o que fazer. Um dia, quando eu ia para casa, eu escutei essas rádios de poste tocando música. Aí tive um estalo. Passei a divulgar nosso disco nessas rádios. Daí a cidade todinha começou a tocar a Banda Calypso nos postes. Em menos de três meses, estavam todas as rádios normais tocando também. Porque as pessoas que ouviam no poste ligavam e pediam nossa música. Eu distribuí de graça 50 mil CDs do nosso primeiro disco, para loja, carro de som, rádio de poste, pro público. Aí a banda estourou no primeiro disco. A gente fazia show e não ficava com o dinheiro. Sobravam R$ 2, 3, 4 mil por semana, a gente fazia CD e dava pro povo. Você está falando das rádios. Mas antes disso você deve ter batido à porta de muitas gravadoras para lançar o disco, né? É, esse disco eu mandei pra muita gravadora. Quando a banda estourou, eu fui numa gravadora famosa de São Paulo. O diretor me perguntou: “Por que você não me mandou um disco desses para eu lançar?”.

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Eu respondi: “Eu mandei, procura aí que chegou em outubro de 99”. A secretária foi pesquisar e viu que tava lá o disco. Não era pra ser. Se eu tivesse lançado o disco com uma gravadora, não teria dado tão certo, porque tem artista com mais prioridade, eles não iriam trabalhar tão bem. O cara da gravadora deve ter se arrependido, porque perdeu muito dinheiro. Muitos se arrependeram. Eles já me falaram. Agora tenho amigos nas gravadoras. E acho que tá difícil hoje a gravadora sobreviver com essa pirataria. A gente mesmo, que é independente e não tem tanto investimento quanto uma gravadora, já está sofrendo. Antigamente a gente tirava tudo da venda do CD, hoje tira do show. A gravadora ainda paga produtor musical, um cara para escolher repertório, outro para fazer arranjo, paga a divulgação. Então as gravadoras foram muito prejudicadas. Se não tomarem uma medida contra a pirataria, eu não sei aonde isso vai chegar. Mas a piataria não ajudou a divulgar a Banda Calypso no começo? Olha, é difícil falar mal da pirataria porque eu fui ajudado por ela. Mas no nosso começo não existia essa pirataria de internet que tem hoje, de baixar música de graça. Na época a pirataria era só de CD. Isso ajudou bastante a gente. Mas hoje a gente lança o disco, amanhã tão baixando. Atrapalha as vendas. As pessoas não sabem o quanto a gente investe, mesmo sendo independente. Para vender por R$ 9,99 para o consumidor final, temos que vender para a distribuidora por um preço muito mais barato. Temos que pagar os direitos autorais dos compositores, os músicos, o estúdio, a arte. Hoje nós temos mais de 200 funcionários, temos que funcionar como uma gravadora e cuidar da divulgação. Tudo dessa parte quem administra sou eu. Então todo o dia fico falando em três telefones. Quando tá difícil tocar em todas as rádios, eu sofro muito. Aí eu vou visitar o diretor da rádio, peço uma força, volto outro dia. Até que eu consigo. Isso até hoje? Hoje é que eu faço mais. Depois de vender 12 milhões de discos? Agora é que é a hora. Há alguns anos, o povo tinha que tocar Calypso porque tava fervendo mesmo. Hoje, tem rádio que não toca. Muita gente diz que a Banda Calypso inventou um novo modelo de negócio, com essa história de não ter gravadora, de vender disco em show ou em supermercado, de fazer distribuição via camelôs. Esse esquema foi ideia sua? Foi uma ideia da necessidade. Eu não parei para bolar. Fui fazendo. Como não tinha gravadora, era a gente que fazia a distribuição no começo. A Joelma ficava no telefone tirando os pedidos. Eu ia no correio e mandava pro Brasil todo. Começou assim. Esse modelo acabou sendo imitado por muitas bandas, principalmente aqui no Pará, não é? A maioria dos artistas daqui faz isso. Hoje não existe gravadora no Norte e no Nordeste, só no Rio e em São Paulo. Então tivemos que fazer isso aqui para viver de música, porque as gravadoras foram embora daqui. E, se continuar desse jeito, elas vão embora do Brasil. Você soube que um jornalista americano chamado Chris Anderson, editor da revista Wired, citou a Banda Calypso no livro Free!, sobre a economia gratuita? Nunca ouvi falar. Mas que coisa boa. É muito bom esse modelo. Acho que os artistas mais conhecidos também podiam fazer, como Zezé di Camargo, a turma da MPB. Na hora em que um deles de nome entrar, vai dar uma força para a gente continuar mais alguns anos com esse modelo. Você acha que não vai durar muito mais?

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Acho que esse modelo deu certo por dez anos. Mas já está mudando. Hoje ninguém consegue vender disco em loja. Algumas bandas já fazem o seguinte: na compra de um ingresso para o show, leva um CD de graça. Esse é o modelo que estão usando. O Calypso vai usar também? Não sei. Se fecharem as lojas todas, vamos ter que fazer isso. A crise atingiu o Calypso? A gente tá trabalhando menos porque nós quisemos. Nasceu a Yasmin, meu filho precisa muito de mim nesse momento, porque tá entrando na adolescência. A gente precisa viver mais um pouco. Antes a gente fazia 25 shows por mês, hoje a gente faz 16. Ainda é muita coisa. A gente toca de quinta a domingo, toda semana. Tem terça e quarta para resolver as coisas da banda e outros negócios. A Joelma tem loja de roupa, fábrica de roupa. Eu tenho uma pequena fazenda no Pará, onde estou criando gado. Vocês começaram a estourar no começo do anos 2000, mas só chegaram à TV há uns três anos. Por quê? Eu não queria nem fazer televisão no começo, eu queria era mostrar a cara da banda. Quando nós estouramos, todo mundo conhecia nosso som, mas ninguém conhecia minha imagem ou a da Joelma. Aí começaram a surgir bandas piratas se passando por nós. Às vezes me ligavam e diziam: “Hoje tem show de vocês aqui em Goiânia!”. Eu dizia: “Não, meu amigo, estou com show marcado hoje em Pernambuco”. E o cara: “Mas eu estou vendo a faixa de vocês, o nome de vocês”. Aí eu ia lá ver e era uma banda se passando por nós, com uma loira e um rapaz na guitarra. Daí a Joelma falou: ou a gente vai para a televisão ou tem que criar uma marca. Deixa eu pintar uma coisa aqui no teu cabelo, como o Pepeu Gomes fez no começo da carreira. Então foi ela quem inventou a famosa mecha loira? É. Mas eu não gostava daquilo de jeito nenhum. Fiquei uns seis anos com a mecha, injuriado. O pessoal falava: a Banda Calypso é aquela com o menino da mechinha. Mas não teve jeito: os outros fizeram, virou moda. E não resolveu. Então falamos: “Agora temos que ir pra TV”. Mas, rapaz, foi difícil chegar. Fizemos dois programas do Raul Gil, mas não foi o suficiente. Quando lançamos o terceiro disco, fomos convidados várias vezes para o programa do Gilberto Barros na Bandeirantes. Daí o povo começou a conhecer nossa imagem no Brasil. Depois de um tempo fomos convidados para fazer o Faustão. Eu me emocionei muito, porque a gente já tinha vendido mais de 5 milhões de cópias e ainda não tinha ganhado disco de ouro, de diamante. Aí a fábrica que prensou os discos fez uma homenagem pra gente no Faustão. Vocês precisaram vender 5 milhões de cópias para serem notados pela TV? É, fizemos dois anos de Gilberto Barros até sermos chamados pelo Faustão. Fomos chamados pela Globo quando vendemos 600 mil cópias de DVD e 1,2 milhão de CDs em um só mês. Foi preconceito que a banda sofreu? Sofre até hoje. O preconceito vem da chamada elite intelectual, que rotula vocês de brega? É isso. Tudo no Brasil que atinge a massa, que mexe com o povão, que leva a multidão, é brega para essa turma que se diz elite, mas queria estar no nosso lugar. Não é nem odiar, é ter inveja do trabalho, porque não conseguiu chegar lá. Você fica chateado quando os críticos dizem que a música do Calypso é de má qualidade? Nunca ninguém falou isso na minha cara. Se falarem, eu vou respeitar a opinião do cara. Tem muita coisa de que eu não gosto, mas tiro o chapéu. Não gosto de metal nem de tecnobrega. O sujeito faz um jingle no computador falando o nome de sua aparelhagem e toca nas próprias festas, nos carros de som, aluga rádio pra tocar também. Deixaram de tocar a gente. Eu não

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curto muito esse som de coisas eletrônicas. Gosto de música com instrumentos. No tecnobrega, o jingle virou a própria música. Mas eles fazem sucesso, e o sucesso tem que ser respeitado. Em uma pesquisa recente do Datafolha, a Banda Calypso foi apontada como a banda mais popular do Brasil, na frente de Zezé di Camargo e Luciano. Como vocês receberam essa notícia? Primeiro ligou o rapaz da Folha de S.Paulo dizendo que queria fazer uma matéria com a gente. Daí eu me perguntei: “Será que isso aí é uma pegadinha?”. Eu falei pro repórter: “Tô gravando agora, daqui a pouco eu ligo pra você”. Em seguida me telefona o Zezé e diz: “Chimbinha, você é o artista mais popular do Brasil, e eu tô colado em ti!”. Aí vi que era verdade. Quando o cara ligou de volta, dei a entrevista, porque já tinha garantia. Eu li que seus melhores amigos na música são Zezé di Camardo, Leonardo e Bruno (do Bruno & Marrone). Você se identifica com essas figuras que saíram do nada e ascenderam socialmente pela música? É a mesma história, a mesma conversa. A gente fala das coisas da roça, da época de baile, brincamos, fazemos piada. Isso é que é bom. Não fomos criados em berço de ouro. Não temos aquela viagem. Às vezes, quando o cara é de um nível social diferente, com um conhecimento diferente do meu, ele fica viajando, e a conversa não bate. Você acha que eles falam de cima para baixo? Eles querem ser diferentes da gente, superiores. Mas com esses meus amigos é o mesmo padrão, o mesmo nível, a mesma linguagem. Todos somos felizes com o que aconteceu nas nossas carreiras, agradecemos muito a Deus. Além da fama, o sucesso trouxe bastante dinheiro. Vocês têm casas em Alphaville, Belém, Recife. Têm fazenda, já tiveram avião. Como você lida com esse dinheiro que entra? Do dinheiro que a gente ganha, metade ou mais é para reinvestir no trabalho. A gente tem hoje um bom ônibus para transportar a banda e vários cenários para apresentar um show bonito. O dinheiro também é para cuidar da nossa família e ajudar algumas pessoas que a gente acha que merecem. Nós temos um trabalho social, mas não gostamos de divulgar. No mês passado, surgiu uma história curiosa na Internet, dizendo que vocês foram recomendados para o Nobel da Paz. Nós não fomos informados disso. Fui saber aqui em Belém. Ligou um cara para nosso escritório se dizendo bispo, querendo indicar a gente como embaixadores da paz. Não era o Nobel, mas de repente virou isso. Mandei o nosso pessoal investigar quem é o cara. Pode ser que estejam querendo usar o nome da banda, porque ele tá querendo comprar nosso show no Mangueirão. Acho que é uma roubada. O cara deve estar se passando por bispo para comprar nosso show mais barato. Você acha que seus filhos, que vivem com todo o conforto, vão valorizar o que eles têm hoje tanto quanto vocês? A gente sempre conversa com eles, mostrando como a gente era antes e o que Deus está nos Proporcionando hoje. Eu espero que eles deem valor, porque foi tão difícil chegar, e é ainda mais difícil se manter. Você imagina o Calypso durando quanto tempo? Enquanto eu tiver vida, enquanto eu estiver neste mundo. O Calypso depende da dupla Chimbinha e Joelma. Se algum dia o casamento terminar, a banda acaba? Nunca pensei nisso. Nem é bom pensar. Nós nunca brigamos. Eu sou muito calmo. Quando tem uma discussão, eu saio. Quando volto, está tudo calmo. Nos momentos em que a banda passa por uma situação difícil, como quando caiu nosso avião [em novembro passado,

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matando o produtor e o piloto da banda], um dá força para o outro. Se um dia, Deus nos livre, acontecer alguma coisa, a banda vai passar alguma dificuldade, mas não vai acabar não, porque a gente ama a banda. Ela é a nossa vida, tanto a minha quanto a dela. É uma missão. E nosso trabalho ajuda muita gente. Minha família precisa da banda, a família dela também. Só se for uma coisa muito grave mesmo, o que é difícil acontecer. Eu vivo pra Joelma, ela vive pra mim, e a gente vive pra banda. A Joelma é admirada por muitas pessoas, desejada por muitos homens. É difícil ser casado com uma musa? O público tem um respeito grande pela gente, por saber que a gente é casado. Nunca ninguém faz gracinha com a Joelma quando ela tá no palco. E ninguém faz comigo. O pior momento da banda foi a queda do avião? Nós passamos alguns momentos difíceis. Você sabe. trabalhar com o ser humano é complicado. A gente tem dois, três dias de folga por semana. Aí os meninos da banda estão livres para fazer qualquer coisa. Numa dessas folgas, em 2006, o pessoal começou a beber, e um dançarino da banda caiu da sacada de um hotel e faleceu. Aquele momento foi muito triste. A gente estava indo pros Estados Unidos fazer o Brazilian Day e tinha o compromisso de tirar o visto. Não deu para ir ao enterro dele. Aí alguns desses programas de fofoca na TV ficaram a semana toda condenando a gente. E depois o outro momento difícil foi a história do avião. Foi pesadíssimo. Perdi dois amigos, dois funcionários. O produtor que morreu era meu braço direito, vivia 24 horas comigo. Eu fiquei arrasado. Até hoje não consigo falar. Nós tivemos que refazer a casa das pessoas onde caiu o avião. Eu não quis esperar a perícia. Falei: “Vamos ajeitar logo, imagina ficar sem casa”. Você é religioso? Eu creio muito em Deus. Eu ia muito à igreja evangélica. Agora com o trabalho fico até sem tempo, então a gente faz nossos cultos aqui em casa. Tem uns irmãos que oram com a gente, de vez em quando vêm uns pastores. Você viveu muito na noite. Nunca experimentou drogas? Não, porque eu andava com pessoas muito humildes. Além de não terem condição de comprar, eram Pessoas com família de base muito religiosa. Quase todo mundo que tocava comigo era evangélico. E na Banda Calypso também é assim até hoje. Não tinha espaço pra droga. Eu fui beber depois dos 20 anos. Tomar cerveja, uísque. Mas depois parei com isso, só tomo vinho. Foi o médico que me receitou, e eu acabei gostando. Você se considera um guitar hero? Não. Eu nem me considero um bom músico. Não estudei. Toco muito de ouvido. Quando vou gravar e o pessoal fica lendo partitura, fico com muita vergonha. Todo mundo com seus arranjos, e eu vou criando a levada na hora. Só sei ler cifra. Vou cifrando ou escuto de primeira e de segunda já vou gravando. O estúdio é o lugar onde você se sente mais realizado? Quando eu estou no estúdio, esqueço de tudo. Desligo o telefone e me concentro mesmo. Quando estou aqui fora, é funcionário que te colocou na Justiça, a música que não está tocando, a carreta que não saiu com o equipamento. No estúdio parece que não existem problemas. Pode estar o mundo se acabando que eu estou em paz.

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Entrevista: André Midani por Pedro Alexandre Sanchez e Laura Mattos, Folha de São Paulo, 21 de maio de 2003 Folha - Na indústria fonográfica, é unânime a afirmação de que não existe jabá no Brasil. É verdade? André Midani - Não, o jabá existe. Acho que o jabá sempre existiu. Não é uma coisa nova, nem particular da indústria fonográfica. É uma coisa universal, acho que desde que o homem começou a existir. Sempre se ouve falar "vamos acabar com a prostituição", "vamos acabar com as drogas", "vamos acabar com o jabá" _que é uma corrupção, não é? O mundo nasceu corrupto e acabará um belo dia na miséria da sua corrupção. Tendo dito isso e indo ao mercado musical, o jabá, porquanto eu saiba, já existe desde o século 19, quando o grande astro da música era a ópera. Havia um grande terreno de ensaio dos novos tenores e sopranos que estavam para ser descobertos, em Marselha, na França. Lá, os empresários de novos talentos da época compravam 50, 80, cem lugares dos teatros e davam de graça para as pessoas aplaudirem muito. Era uma forma de jabá. Isso é inerente ao negócio, existe desde o início da música como setor lucrativo. Quando cheguei no Brasil, em 55, o jabá não existia do jeito que possa ser pensado hoje. Mas havia meios de pressão, desde aquela época. Tal como ele é hoje, e em quantidades talvez menores do que agora, o jabá começou, creio, em 70, 71 ou 72. Eu tinha uma parte grande dos artistas importantes daquela época, então não tinha tanta preocupação. Fazia sucesso no rádio porque os artistas genuinamente faziam sucesso. Mas num belo dia um colaborador meu chegou dizendo que estava havendo um movimento segundo o qual o pessoal do rádio gostaria que se reconhecessem seus méritos. Ele foi conversar com eles e voltou me dizendo que tínhamos que tomar certo cuidado, porque se havia formado uma rede entre vários programadores importantes de Rio e São Paulo. Eu disse: "O que me importa?". Tive a precaução de telefonar para alguns artistas e explicar o que estava acontecendo, que eu não estava a fim de entrar naquilo e que estava dando a instrução de não participarmos. Os artistas apoiaram, aplaudiram. Para minha surpresa, uns dias depois a gente saiu de programação. Folha - Saiu literalmente, por completo? Midani - Não me lembro direito mais, mas a imagem que tenho é de que os nossos discos de sucessos naquele momento _havia um de Chico Buarque, por exemplo_ saíram de programação. Aguentei uma semana, duas semanas. Na terceira não deu mais para aguentar, porque os próprios artistas chegaram dizendo: "Pelo amor de Deus, como vai ficar essa história?, a gente está fora do ar". Era uma preocupação legítima deles. Então foi, creio, a primeira vez que isso aconteceu. Dali por diante houve altos e baixos, e o jabá estava instalado. Tomei uma atitude bastante pragmática, dizendo: se esta é a regra do jogo, lá vou eu com a regra do jogo. Folha - Quais eram as regras do jogo? Midani - As regras eram lamentáveis, porque, como em muitas coisas aqui no Brasil, não eram profissionais. Eu tinha vindo em 55 do México, onde o jabá rolava com grande despudor. Mas lá, um dia, estava eu na sala de um diretor de companhia, competidor meu, e tocou o telefone.

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Era um jabazeiro, e meu colega disse, com o palavreado mais vulgar: "Dei meu compromisso com você de tocar X vezes por dia e você não está tocando. Ou você toca ou você sai do rádio, porque eu vou lhe colocar para fora". No México, pelo menos, havia uma regra (ri): toco cinco vezes por dia, lhe pago tanto e agora você tem que tocar. No Brasil se tentou várias vezes negociar isso, de as rádios tocarem o que as gravadoras queriam, o que seria justo dentro desse esquema injusto. Mas aí sempre se deu um jeitinho aqui, outro lá, e o fato é que a indústria perdeu muito rapidamente o controle sobre o que se tocava. Pagava e não sabia se ia tocar. Folha - É o que acontece até hoje? Midani - Não, piorou. Hoje não estou muito a par, mas piorou. Não me lembro direito, mas devo ter tido várias interferências dentro da indústria, no sentido de dizer "vamos parar com esse negócio". Minha próxima interferência formal já foi mais tarde, acho que em 78 ou 79, já na Warner. Estava lançando Baby Consuelo e Pepeu Gomes, que como integrantes dos Novos Baianos haviam sido os protegidos e queridos do Chacrinha. De repente recebo a notícia de que o Chacrinha disse que, se não pagássemos, Baby e Pepeu não apareceriam em seu programa. A coisa mais inteligente que achei por bem fazer foi denunciar isso nos jornais. Em termos de companhia, isso me custou caro. Fui aos jornais, dizendo factualmente que Chacrinha queria cobrar dinheiro para passar os artistas no programa _jabaculê. Isso me custou a adesão à causa do Chacrinha de outros meios de comunicação. Rádios e outros programas de TV passaram a cobrar também. Agora, como é que a indústria se manifesta nessa história? Vamos dizer que existem cinco importantes companhias na indústria. Várias vezes os presidentes das companhias de discos foram se reunir para tentar chegar a um acordo. Essas coisas acontecem em momentos de crise do mercado ou de crise financeira, quando você vê que o orçamento para o jabá é tão grande que realmente desestabiliza um pouco sua economia interna. Folha - Você pode quantificar o peso dos orçamentos das gravadoras destinados ao jabá? Midani - Gostaria de dar uma porcentagem, mas o conceito de publicidade mudou muito no decorrer dos anos. Na época em que isso começou, a verba publicitária era 5% das vendas, em geral. Na época do Chacrinha, com certeza era alguma coisa como 10%. Até o momento em que eu estava militando, ou seja, até dois anos atrás, os orçamentos publicitários variavam entre 12% e 16%. E na última vez que vi ou ouvi falar de números, entre o jabá que você dava e alguma regalia, podia chegar a representar 70% das verbas de publicidade. Folha - O jabá então é a principal fatia da publicidade? Midani - É, e asfixia a indústria. Na minha época brasileira não chegava a asfixiar, era mais uma questão moral: o que é isso, o cara já ganha seu dinheiro e ainda quer ganhar para tocar disco meu? Se não houvesse meu disco ele não teria uma estação de rádio, o ponto de partida é esse, o absurdo. Pensava que se as cinco companhias se levantassem juntas, em um ano, sem grandes prejuízos, botavam as rádios que praticavam jabá fora do mercado. Folha - Isso não acontecia por falta de capacidade de articulação da indústria fonográfica? Midani - Pode-se dizer exatamente isso. No sentido do jabá e das pressões, a indústria fonográfica, mais no Brasil que em outros lugares, é uma indústria muito frágil. Folha - É refém das rádios?

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Midani - É refém de muitas coisas, mas, nesse sentido, é refém do jabá. Folha - O esquema montado pelos programadores no início não tinha a participação dos donos das emissoras? Midani - Não. O que aconteceu é que os funcionários de rádio não ganhavam e não ganham muito dinheiro. São salários modestos. Então no início o disc-jóquei encontrou nessa manobra um meio de ganhar um pouco mais. Isso foi cegamente apadrinhado pelos donos das rádios. Eles ficavam contentes, pois não tinham que aumentar os salários. Começaram a fechar os olhos, porque era conveniente para eles. Mas, na medida em que a soma de dinheiro foi ficando maior, os donos começaram a pensar: "Mas e eu nessa história?". Então houve decisões, por certos donos de rádio, de dizer: "Tudo bem, mas o dinheiro é meu". Entraram em contato com as companhias de disco e disseram: "A partir de agora quem manda na programação da rádio não é meu programador ou meu disc-jóquei. Sou eu". Passaram acordos que, no início pelo menos, foram acordos comerciais. Aí, sim, era uma relação profissional. Tutinha, da Jovem Pan, por exemplo, gostava do disco ou não. Se ele não gostasse do disco não pegava acordo financeiro com a companhia, não havia jeito. Já não se pode chamar isso de jabá, é uma relação comercial como outra. Tutinha, pelo menos, era um grande profissional. Não sei como está hoje, mas era. Se não gostava do disco dizia: "Não toco". Se gostava, então se sentava lá para uma negociação. E ele fazia isso de uma forma profissional: "Vou tocar tantas vezes por dia, vou fazer um especial". Armava-se quase que uma operação de marketing genuína. Folha - Então você tinha que agradar e também pagar? Midani - Mas a regra desta vida tem sido essa. Evidentemente há um lado obscuro nessa história, do porquê da fragilidade das companhias de disco. O óbvio é o resultado comercial, o resultado promocional. Mas, se pelo lado dos presidentes e diretores havia grandes ressalvas sobre a prática, o jabá representava para muitas pessoas dos departamentos de promoção com rádio uma possibilidade de dizer: "Toma dez, mas eu fico com dez". Você se reencontra com um câncer estabelecido dentro da companhia. Isso lutava contra qualquer política encontrada por qualquer companhia para eliminar o jabá. Folha - Então havia gente dentro das gravadoras fazendo acordos clandestinos com gente das rádios? Midani - Até um momento houve o pagamento em espécie. Não havia recibo, nada. Então certos divulgadores na segunda-feira pegavam uma bolada de dinheiro lá e iam distribuir. E guardavam uma parte para eles. Se estabelecia uma cumplicidade entre representante da gravadora e representante da rádio. Aí veio um outro elemento. Até os anos 80 _vamos colocar 85 como uma data hipotética_, a lucratividade de uma companhia de discos era uma coisa desejada, como em qualquer negócio. Mas me refiro agora às relações entre os presidentes das companhias e as matrizes das multinacionais. Nos anos em que trabalhei na Philips, uma vez por ano ia à Holanda e dizia: "O ano foi assim". Quando muito a cada três meses a gente mandava um relatório. As companhias naquela época eram uma brincadeira gostosa do dono de cada conglomerado. Folha - Por que isso se modificou nos anos 80? Midani - A coisa começou a degringolar quando as companhias de discos e seus conglomerados foram comprados por megainvestidores que tinham suas ações no mercado de Wall Street. Paulatinamente a indústria fonográfica, que era talvez uma indústria de relações públicas, de imagem, passou a ser um centro de lucro completo.

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Na medida em que o mercado de Wall Street começou a encurtar os prazos, os investidores começaram a ficar mais sedentos. Isso impossibilitou aos presidentes dos conglomerados de terem políticas de compaixão com seus negócios. Cada vez Wall Street foi mais nervosa quanto aos resultados semestrais, depois trimestrais, depois mensais. Se deu uma variação, por pequena que fosse, as ações já ficavam nervosas. Dali então foi: "Dá lucro! E já!". Na medida que isso foi penetrando na indústria fonográfica se instalou uma pressão sobre os dirigentes locais, daqui e do resto do mundo, cada vez mais feroz. O cara que está sentado aqui recebe telefonemas a cada três dias: "Como é que está esta semana?". Ele pira daqui. É "não quero saber, eu quero os números". Eu estive do outro lado, sei bem como é esse negócio (ri). Folha - Ou seja, a indústria foi sendo cada vez mais pressionada, por um lado por Wall Street e por outro pelas rádios locais? Midani - A situação é hoje tão incompreensível como era então. Como é possível que cinco companhias poderosas não possam se sentar e dizer: "Acabou", e acabou? Várias vezes tentei isso, e sempre me dei mal. Eu ia lá, propunha o acordo. Uma semana depois, tal pessoa furava o acordo. Aí outros todos furavam também, eu continuava e me dava mal a cada vez. Houve uma vez, por exemplo em que não fui eu que liderei o movimento. Quando a corda roeu, todo mundo disse: "Foi o Midani". Paguei pelo pecado que fiz e outras vezes paguei pelo pecado que não fiz. Um dia vi que não tinha nenhum talento para ser um crucificado, então fui tentar organizar isso dentro da companhia para que pelo menos fosse uma coisa mais objetiva e profissional. Folha - Por que esses acordos nunca deram certo? Midani - Só posso entender que em determinado momento uma determinada companhia está numa situação de fragilidade orçamentária, e então a tentação do diabo é muito grande. Sempre há um nessa situação. Há, por exemplo, o caso recente da Abril Music. Essa companhia entra no mercado, paga o que tiver que pagar para poder tocar e desestabiliza as outras companhias. O prejuízo da Abril foi de milhões e milhões de reais em cinco anos. Evidentemente, esse dinheiro foi para a contratação de artistas em demasia, para formar um catálogo, o que é compreensível. Mas a sede de ter sucesso imediatamente fez com que a companhia fosse uma grande catalisadora da tormenta jabazeira. Mas uma vez é a Abril, outra vez é outra empresa que está em situação complicada, outra é uma mudança de gerência... Sempre há um acidente que impossibilita a tranquilidade do trabalho. Folha - Também por pressão do esquema organizado, dos divulgadores? Midani - Não, porque se as cinco companhias se entendessem e aguentassem um tempo eu suponho que a situação se tranquilizaria. Se não toda, porque toda corrupção é impossível, pelo menos parcialmente, que não seja um câncer como o de que todo mundo se queixa hoje. Folha - Marcos Maynard sempre negou que fizesse jabá na Abril. Midani - Essas pessoas sempre dizem que não é jabá, mas é simplesmente um jogo de palavras. Folha - O sucesso ficou necessariamente condicionado a esse esquema? Midani - Temo dizer que sim. A gente não sabe se é a galinha ou se são os ovos, mas isso veio a ser agravado pelo que poderia se dizer uma falta de novos talentos genuínos. Não sei se é verdade ou não, mas se poderia dizer que, na visão da indústria, isso foi agravado por uma certa falta de talentos novos, pouco preparados ainda. Então veio um novo tipo de executivo, o cara que faz o artista, escolhe as músicas, bota dentro do estúdio. É música pré-

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fabricada para o sucesso. Nos anos 80, os produtores passaram a dizer: "Nós fazemos o artista". É uma coisa completamente antípoda da minha atitude quanto ao artista. Não vou dizer que tenho razão, mas são estilos absolutamente opostos. Telvez, dentro das minhas loucuras, eu tivesse gostado de dizer: "Vou fazer um artista". Mas eu não tinha capacidade nenhuma de fazer, então nunca me meti nisso. Se há uma pessoa que nem canta muito bem nem canta muito mal, nem tem muita personalidade nem tem pouca personalidade, o que eu vou fazer com ela? Não sei trabalhar assim, nunca foi meu estilo. A partir do momento em que um artista é fabricado, necessariamente o investimento em publicidade e marketing começa a tomar uma importância desmedida. Folha - Profissionais de rádio afirmam que não se toca uma música só por causa de jabá. Dizem que é preciso haver um respaldo de audiência. Com dinheiro, qualquer coisa toca no rádio? Midani -Quando surgiu o rock dos anos 80, o rádio estava absolutamente fechado a esse tipo de música. O rádio é um sistema eminentemente conservador. Quando lançamos a bossa nova, o rádio achou que era um absurdo, o mesmo aconteceu com a tropicália. O homem do rádio não vê a música pelo que ela é, vê o anunciante, que vai tirar sua publicidade se a rádio baixar de audiência. No rock dos 80, existiram algumas músicas de Paralamas do Sucesso, Kid Abelha, Titãs e Ultraje a Rigor que furaram o bloqueio natural. Foi uma surpresa. Ficamos com a música "Inútil", do Ultraje, quatro, cinco ou seis meses sem tocar. Um belo dia, começou a tocar. Acho que o rock não sofreu efeitos de jabá para impedi-lo de penetrar. Os programadores devem ter achado que era um sopro novo nas suas programações. Folha - Aí o jabá entrou como elemento para fortalecê-lo? Midani - Com certeza. Se me perguntar quais lembranças eu possa ter do meu jabá, posso dizer: paguei por toda aquela linha de frente que eu tinha. Folha - A geração dos anos 80 contou muito com o programa do Chacrinha para fazer sucesso. Como terminou sua briga com ele? Midani - A gente coloca o Chacrinha, mas ele também foi uma pessoa que fechou os olhos para seu filho, Leleco Barbosa. Leleco era quem fazia a programação do Chacrinha, e foi uma das pessoas mais militantes, se se pode dizer isso, desse caso. Não me lembro direito de como acabou, levou um tempo. Certamente houve a turma do deixa-disso, amigos comuns, artistas dos quais Chacrinha gostava muito e estavam trabalhando na Warner. Um dia, recebi um recado de que ele gostaria de se reconciliar. Creio que a gente almoçou, ele fingiu que não houve nada, eu também fingi que não havia nada. Ficou aquela mútua hipocrisia. Chacrinha me convidou ao programa dele para receber um prêmio, as pazes foram feitas e não tinha mais problema, sempre nos amamos muito. Folha - Os grandes nomes de sucesso pagam jabá? Midani - Até hoje. Hoje estou realmente afastado, mas até um ano atrás era assim. Havia números, que eram estupendos. Nos anos do milagre brasileiro do início do governo FHC, se nos Estados Unidos o custo de lançar uma música no rádio com esse tipo de ajuda promocional era de US$ 300 mil por uma canção, no rádio brasileiro era de R$ 80 mil a R$ 100 mil, na época em que um dólar era um real. Ou recebi informações erradas, ou esses números são reais. Folha - Para uma rádio não seria vantajoso tocar a nova música de artista de grande sucesso?

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Midani - Não hesito em dizer que, a não ser honrosas e poucas exceções, como Roberto Carlos, não importa o tamanho dos artistas. Tem que pagar. A honra e o prazer são coisas que não existem mais. Folha - Mesmo a rádio correndo o risco de prejudicar sua própria audiência? Midani - É, mas a partir do momento em que o sistema funciona dessa maneira, não tem como. Uma toca porque alguém deu dinheiro, outra também toca o mesmo cara, então todo mundo vai. Hoje, a indústria fonográfica vive um momento de crise estrutural (por causa da mudança de tecnologia), criativa (porque raramente se pega um artista que já está pronto no primeiro disco) e econômica (por recessão). Folha - O que você acha de uma lei de criminalização do jabá? Midani - Acho que é indispensável, porque se você paga jabá e não tem recibo você não pode deduzir essa despesa do seu Imposto de Renda. Não pode entrar como despesa operacional. Hoje o meio radiofônico e o meio fonográfico estão cheios de subterfúgios para isso. Se você comprovar que esse dinheiro não foi usado para isso, mas para jabá, não acontece nada, porque não existe uma lei que diga que subornar é contra a lei e dá cana. Não se tem nem esse elemento. Quando comecei a trabalhar nos Estados Unidos, a primeira coisa que recebi em minha mesa foi o chamado livro branco. Eram diretrizes de como se deve comportar com ética, e eu tinha que assinar que na minha gerência nenhum país que estava ligado a mim em nenhum momento ia fazer práticas de suborno. Lá é lei. Folha - E lá jabá é considerado uma forma de suborno? Midani - Então, o que é? Aqui não é considerado dessa maneira, mas é claro que é. É uma questão vernacular: eu lhe pago para você falar bem de mim no seu jornal ou na sua rádio, mesmo que você não goste da minha cara, eu aumento o preço e você acaba falando bem de mim. Isso é suborno. Se chama jabá, suborno ou campanha promocional (ri), moralmente é um suborno. Folha - Quais outros prejuízos a prática de jabá pode trazer ao mercado musical? Midani - Hoje em dia eu diria que não tenho nada contra o jabá. Tudo depende do que se faz com esse jabá. É um pouco como a Rifle Association nos Estados Unidos. Eles dizem que o fuzil não mata, que quem mata é quem puxa o gatilho. É um raciocínio incrível, né? Vamos supor que nos idos de 70 a situação fosse como é hoje. Eu teria botado jabá em cima de Caetano, Gil, Chico, desse pessoal todo. E todo mundo teria aplaudido, porque valia a pena. Começa a ficar pior quando você faz uma outra viagem: pega um artista que não tenha nenhuma qualidade que não seja a de ser bonitinho, empurra uma meia dúzia de canções feitas por quilo, e depois coloca dinheiro por cima. Tudo depende do que você faz com o jabá. Se for colocar o famoso jabá em cima do que poderíamos chamar uma causa nobre, graças a Deus poder convencer essas pessoas de tocar uma coisa que é boa. Se era para botar jabá em cima de Raul Seixas, por exemplo, não me lembro, mas botei com muito prazer, porque estava convicto que esse menino era fantástico. Há cores nessa história, não no lado ético, mas do lado empresarial, objetivo. Folha - Se emplacasse, a lei anti-jabá seria boa para quê? Midani - É bom que exista a lei, não só do jabá do disco, mas no geral. Este país está permeado de jabá, não só do fonográfico. É uma sociedade cancerosa com o jabá. O país é jabazeiro.

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Folha - Além de dinheiro vivo, o jabá também incluía "mercadorias"? Midani - O que for. Dinheiro, drogas, prostitutas que eram levadas até o cara no fim-de-semana. Isso já não creio que exista hoje em dia na indústria. Folha - Há quem defenda não a criminalização do jabá, mas sim sua legalização e regulamentação. O que você acha disso? Midani - Mas aí se está violando o que se chama de as forças do mercado. Como se vai fazer isso? Determinar quanto se paga para um artista novo, quanto se paga para um veterano? Folha - Seria mais difícil do que coibir? Midani - É claro. Dali a pouco ia precisar de uma Ecad [órgão responsável pela cobrança de direitos autorais] para controlar isso, uma Ecad do jabá. São coisas ingênuas. Folha - Também não seria ingênuo acreditar numa lei de criminalização? Midani - Mas é assim que se faz. A lei sempre é um suporte, um sofá sobre o qual você pode se sentar quando necessário. Há 10 ou 15 anos, os políticos roubavam muito, mas nem se sabia disso. Aí veio um ciclo em que começou a se saber, estamos entrando num ciclo em que começa a custar caro. Acho que ainda vai ser um grande negócio ser um político honesto. O que a gente pode desejar é que se minimize essas coisas. Acabar com isso não dá. Folha - Gravadoras e rádios em geral são vistas como as vilãs desse esquema todo, enquanto os artistas às vezes aparecem até como vítimas. Mas eles não são coniventes? Midani - Posso dizer que, uma vez que se faça um acordo, muito artista deve saber. No passado, quem pagava o jabá era o empresário do artista. De onde ele recebia a grana? Da gravadora, obviamente. E o artista estava ciente. O artista sempre sabe. O que ele diz é que não quer se meter em briga de gente grande, "não estou aqui para pagar pelas brigas de vocês". É objetivo assim.

Demais anexos (relatórios de mercado e pesquisas) no Cd- Rom.