brasil_ os frutos da guerra - neill lochery

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Brasil_ Os Frutos Da Guerra - Neill Lochery

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

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    Sobre ns:

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • TRADUO DE LOURDES SETTE

    REVISO TCNICA DE ALEXANDRE LUIS MORELI ROCHACoordenador do Centro de Relaes Internacionais do

    CPDOC-Fundao Getulio Vargas

  • Copyright 2014 by Neill Lochery

    TTULO ORIGINALBrazil: The Fortunes of War World War II and the Making of Modern Brazil

    PREPARAOPaula Diniz

    REVISOCarolina RodriguesLusa Ulhoa

    CAPAAngelo Allevato Bottino

    FOTO DE CAPAArquivo de Cultura Hispnica, Diviso de Cpias & Fotografias, Biblioteca do Congresso, LC-DIG-ds-03921

    REVISO DE EPUBJuliana Pitanga

    GERAO DE EPUBIntrnseca

    E-ISBN978-85-8057-692-4

    Edio digital: 2015

    1a EDIO

    TIPOGRAFIASAdobe Caslon e Helvetica Neue

    Todos os direitos desta edio reservados

    EDITORA INTRNSECA LTDA.Rua Marqus de So Vicente, 99/3o andar22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

  • Para Emma, Benjamin e Hlna

  • SUMRIO

    Introduo PRLOGO: O BOM VIZINHO

    PARTE UM: PRELDIO GUERRA1 A CHAVE2 O OLHO ESQUERDO DE VARGAS

    PARTE DOIS: A NEUTRALIDADE BRASILEIRA3 JOGOS PERIGOSOS4 UM TIRO DE ADVERTNCIA5 ALIADOS DISCORDANTES6 FUGA DO RIO DE JANEIRO7 ESTREITANDO OS LAOS E AMPLIANDO AS DIVISES

    PARTE TRS: RUMO GUERRA8 BEM ATRS DE VOC9 WELLES SAI DE CENA E WELLES ENTRA EM CENA10 A QUESTO DA SUCESSO

    PARTE QUATRO: O BRASIL VAI GUERRA11 A DECISO12 O APAGAR DAS LUZES NO RIO DE JANEIRO13 O JANTAR

    PARTE CINCO: A PARTICIPAO ATIVA DO BRASIL14 CHEGADAS TARDIAS15 A PROMESSA16 ADEUS A ARANHA17 O DESAFIO

    PARTE SEIS: A MELANCOLIA DO PS-GUERRA18 A SADA19 O ATO FINAL EPLOGO: O LEGADO

    Agradecimentos Crditos das fotografias Bibliografia Notas

  • AINTRODUO

    CIDADE DO Rio de Janeiro, conhecida como Cidade Maravilhosa, est situada no sop daSerra do Mar, fronteada pela faixa da praia de Copacabana e banhada pela extenso da baa de

    Guanabara. Fundado no sculo XVI em uma baa da costa atlntica do sudeste brasileiro, o Rio deJaneiro mais do que faz jus a esse ttulo.

    Na cidade, persiste com mais fora a vibrante energia econmica que passou a caracterizar oBrasil. No alvorecer do sculo XXI, o Rio de Janeiro a segunda maior cidade do pas e a sextamaior das Amricas. E, embora sua importncia poltica domstica talvez no esteja mais alturade seu poderio econmico, durante a maior parte dos sculos XVIII, XIX e XX, a cidade foi acapital do Brasil e, portanto, o centro de poder, em sua definio mais completa: primeiro, duranteo perodo colonial, em seguida, durante sua breve elevao condio de reino na monarquiatranscontinental de Portugal e, por fim, nos primeiros 140 anos da existncia do Brasil como umEstado independente.

    Quando Braslia a recm-criada capital federal suplantou o Rio de Janeiro em 1960, aCidade Maravilhosa tinha deixado uma marca indelvel no resto do pas. Nas dcadas anteriores aessa mudana, os lderes federais que governavam o pas da ento capital foram responsveis pelatransio do Brasil de um remanso tropical exuberante, porm descuidado, para uma das naesmais dinmicas da Amrica do Sul e, de fato, do mundo inteiro. Hoje o Brasil est entre os dezmaiores pases do mundo em termos de produto interno bruto (PIB) e, com uma taxa decrescimento que permanece consistentemente elevada, est pronto para subir ainda mais nessaclassificao nas prximas dcadas. No entanto, a histria de como esse milagre econmico ocorreununca foi contada por completo.

    No incio da Segunda Guerra Mundial, o Brasil era um lugar completamente diferente do que hoje. Em 1938, um ano antes de a guerra estourar, ele era a quarta maior nao do planeta e cobriaquase metade da rea total da Amrica do Sul.1 Com quase 8,5 milhes de quilmetrosquadrados, era maior do que os Estados Unidos continental, mas sua populao no incio dadcada de 1940 era de aproximadamente 41 milhes de pessoas cerca de um tero da populaodos Estados Unidos na poca e menos de um quarto do contingente atual de duzentos milhes debrasileiros.2 O pas era dividido, grosso modo, entre as reas desenvolvidas, que incluam as cidadesdo Rio de Janeiro e de So Paulo, e o imenso e subdesenvolvido interior do pas. A infraestruturade boa qualidade era quase ausente, com ligaes rodovirias e ferrovirias precrias, mesmo entreas partes mais povoadas do pas.3

    As ligaes com o mundo exterior tambm eram inadequadas. O servio areo para os EstadosUnidos levava dias, e as conexes com a Europa no estavam plenamente desenvolvidas. O Rio deJaneiro era um porto de atracao frequente para os transatlnticos, mas apenas os brasileiros muitoricos podiam se dar ao luxo de viajar para o exterior. A maioria apenas lia sobre cidades comoLondres, Paris e Nova York nos jornais locais e nunca chegou a visit-las. Em parte como

  • resultado da sua posio geogrfica e tambm devido lngua (ele o nico pas lusfono daAmrica do Sul), o Brasil mantinha-se, em grande medida, isolado do mundo exterior.

    Durante o transcorrer da Segunda Guerra Mundial, tudo isso mudaria. Graas, em grande parte,a uma aliana com os Estados Unidos, a indstria, a infraestrutura de transporte e a posiopoltica do Brasil na Amrica do Sul e no mundo passaram por uma transformao radical nadcada de 1940. A guerra levou ao nascimento do Brasil moderno e sua ascenso como uma daspotncias econmicas mundiais. E o Rio de Janeiro era o eixo do dnamo brasileiro.

    Observadores astutos podiam ter detectado no Rio de Janeiro pr-guerra algo da energiainesgotvel que daria cidade um papel de enorme pioneirismo no futuro do Brasil. Antes daecloso da Segunda Guerra Mundial, a capital brasileira era um lugar belo, extico e um poucocatico, distante dos circuitos habituais para os moradores abastados e os playboys internacionaissuper-ricos que procuravam diverso e aventura. A falta de instalaes porturias de alta qualidadee de um aeroporto internacional decente dificultava o acesso de empresrios estrangeiros e dosturistas menos arrojados ao Rio de Janeiro. No entanto, quando chegavam, esses homens emulheres intrpidos encontravam uma cidade que aspirava claramente a um nvel decosmopolitismo quase indito na Amrica do Sul.

    A cidade, no final da dcada de 1930, era um centro para pessoas sofisticadas, influentes eintelectuais que, fosse por nascimento, escolha ou necessidade, encontravam-se no hemisfrio suldas Amricas. Centrais para a vibrante cena social carioca eram o hotel cinco estrelas CopacabanaPalace, localizado de frente para a praia mais famosa do Rio de Janeiro, e o Jockey Club,construdo em um terreno aterrado da lagoa Rodrigo de Freitas. O Copacabana Palace, inauguradoem 1923, era um dos melhores exemplos de arquitetura art dco na cidade e o lugar frequentadopelos farristas internacionais e membros da alta sociedade carioca. Fred Astaire e Ginger Rogersdanaram em seu magnfico salo de baile. O escritor judeu Stefan Zweig, que fugiu daperseguio nazista na Europa, ficou hospedado no hotel antes de ele e sua mulher se suicidaremem 1942, em Petrpolis, a cerca de setenta quilmetros do Centro do Rio. Durante a SegundaGuerra Mundial, pessoas como Clark Gable, Douglas Fairbanks Jr. e Walt Disney se hospedaramno hotel, todos em misses especiais de guerra para o governo americano.

    Do outro lado da cidade, o Jockey Club era onde a elite da sociedade brasileira se reunia e fazianegcios durante a longa temporada de corridas de cavalo estas eram realizadas em noitesamenas, da primavera ao outono. As cadeiras prximas pista eram dispostas em uma ordem socialrgida, com as damas da sociedade em casacos de pele e vestidos de grifes das principais casasde moda na Europa instaladas na primeira fila. Os scios homens do Jockey Club compareciamaparamentados com esmero, com o cabelo penteado para trs e vestindo ternos brancos, de corteamplo, feitos de linho e algodo, camisas brancas e gravatas largas coloridas, tudo isso combinandocom sapatos bicolores brilhantes.

    Um dos patronos e frequentadores assduos do Jockey Club era o presidente do Brasil, GetlioDornelles Vargas. Fisicamente, ele no era um homem memorvel: baixo e corpulento, adquiriuuma barriga avantajada em seus ltimos anos de vida. Embora sensvel s acusaes de vaidadefeitas por seus oponentes polticos, Vargas no fazia nada para afast-las. Diziam que ele pintava o

  • cabelo e estava sempre bem-vestido; no inverno, muitas vezes usava seu terno favorito azul-acinzentado e, no vero, era visto em ternos de algodo branco e gravatas listradas. No entanto,apesar da falta de imponncia fsica havia uma aura em torno de Vargas. Ele aparentava calma econtentamento, e seus conhecimentos de advocacia Vargas se formara em direito antes de entrarpara a poltica davam-lhe um ar ponderado e prudente. Muitas vezes era encontrado soprandosuavemente a fumaa de um charuto nacional ou promovendo sesses de carteado restritas aosntimos; pquer era seu jogo favorito.

    A chegada de Vargas ao poder, no incio da dcada de 1930, representou uma mudana enormena poltica brasileira e, a princpio, gerou uma grande instabilidade poltica no pas. Antes de1930, o Brasil fora dominado por um poderoso grupo de polticos, industriais e cafeicultoresde So Paulo. Os paulistas governaram o Brasil em aliana com os lderes de Minas Gerais.Juntos, os dois grupos se revezavam no controle da Presidncia e do Congresso.

    Na eleio presidencial de 1930, porm, um grupo poltico conhecido como os gachosdesafiou a junta paulista-mineira. Os novos contestadores vinham do Rio Grande do Sul, estadoconhecido no Brasil como regio dos gachos por causa de suas grandes fazendas, muitas dasquais se estendiam por centenas de quilmetros. Vargas era nativo da regio e presidente do estadona poca e, portanto, um dos membros mais destacados da oposio. Escolhido como o candidatodesta, ele fez uma campanha muito impressionante, mas acabou perdendo a eleio presidencialpara Jlio Prestes, governador do estado de So Paulo. Alegando fraude eleitoral, Vargas serecusou a reconhecer a vitria de Prestes e, com o apoio de uma ampla gama de militares ecidados de classe mdia das cidades, lanou um golpe de Estado sem derramamento de sangueque conseguiu derrubar o governo e instalar Vargas no Rio de Janeiro. Em julho de 1932, SoPaulo tentou reverter a situao montando uma contrarrevoluo, mas, aps trs meses decombate, Vargas e seus seguidores conseguiram acabar com a revolta.

    Tendo tomado o controle do pas por meio de uma combinao de subterfgios polticos e forapura, Vargas correu para consolidar seu poder frente s novas ameaas. Em 1934, apresentou umanova Constituio que criou uma Assembleia Constituinte e permitiu sua eleio formal comopresidente. No ano seguinte, houve outro grande desafio para seu governo, vindo, dessa vez, doscomunistas. O governo tomou medidas rpidas contra a revolta, prendendo milhares deles. Vrioslderes da revolta receberam longas sentenas de priso dos tribunais. Os comunistas nodesapareceram do mapa poltico do Brasil aps esse golpe de Estado fracassado, mas o governo deVargas os enfraquecera substancialmente.

    Assim como em 1930, o ano de 1937 tambm foi marcado por um grande drama poltico nopas. Uma eleio presidencial deveria ser realizada naquele ano, nos termos da Constituio de1934; o candidato vencedor teria um mandato de quatro anos, com incio em 1938. AConstituio proibia Vargas de concorrer reeleio. Contudo, ele encontrou uma maneira decontornar esse problema, recusando-se a apoiar qualquer dos candidatos declarados e trabalhandoem segredo com os membros de seu regime para elaborar uma nova Constituio. Em novembrode 1937, Vargas entrou em ao, declarando lei marcial, o cancelamento das eleies e a dissoluodo Congresso, cujas portas os deputados encontraram trancadas ao chegarem. Foi um golpe de

  • Estado sem derramamento de sangue. O presidente Vargas permaneceu no governo, mas era agoraum ditador com poderes concedidos por uma nova Constituio autoritria conhecida comoEstado Novo. De importncia crucial para Vargas, os Estados Unidos continuaram a estreitar laoscom o Brasil como se nada tivesse acontecido.

    O presidente Vargas entendia que o Brasil era uma potncia econmica e militar fraca e que,como seu lder, ele no tinha muitos trunfos na mo. Contudo, suas ambies para o Brasil epara sua prpria carreira poltica permaneciam grandes. Fundamentais para suas polticas eramos objetivos de fortalecer o prprio regime e consolidar as novas estruturas de poder no Brasil, demodo a levar o pas a se tornar uma fora importante na economia e na poltica da regio. Mesmoantes da guerra, Vargas tinha plena conscincia das ferramentas econmicas que poderia usar paraatingir ambos os objetivos. A questo comercial e seu potencial para melhorar a economia do Brasildominavam os telegramas e despachos que chegavam sua mesa no Rio de Janeiro durante aguerra.

    Na poca da ecloso da Segunda Guerra Mundial, o Brasil desfrutava de uma relaorazoavelmente forte e muito lucrativa com a Alemanha. A forma como o comrcio eraorganizado convinha ao Brasil, pois Berlim concordara com condies de pagamento especiais paraos brasileiros. O desejo por parte dos militares brasileiros de comprar armas alems e a disposiode Berlim de vend-las ao Brasil eram centrais para esse comrcio. De fato, mesmo durante ainvaso da Polnia pela Alemanha no incio da guerra, no outono europeu de 1939, e de seusrpidos avanos na Europa Ocidental na primavera e no vero europeus de 1940, Berlim possuaarmas extras em quantidade suficiente para serem vendidas ao Brasil.

    Enquanto isso, os Estados Unidos se preparavam para entrar na guerra contra a Alemanha etramavam incluir o Brasil no grupo dos Aliados. Os americanos acreditavam que o Brasil era oparceiro local mais confivel na misso de deter o crescimento da influncia nazista na regio sobretudo na Argentina, cujo governo pr-nazista transformara o pas em um posto avanadoatraente para os agentes de Hitler. O servio de inteligncia americano advertiu o presidenteRoosevelt de que os alemes queriam estabelecer uma presena poltica e militar forte epermanente na Amrica Latina. Isso era inaceitvel para os americanos, que estavam dispostos ainvestir de forma macia por meio da garantia de concesses comerciais a fim de evitar queos alemes ganhassem um ponto de apoio to perto de seu pas.

    O presidente Vargas entendia a posio dos Estados Unidos de forma muito clara e, comcautela, tentou maximizar os ganhos do Brasil com a guerra. De fato, esse objetivo estava no cernede cada negociao brasileira com os americanos. Vargas tambm entendia que, a fim de ganharsignificativamente com a Segunda Guerra Mundial, o Brasil precisaria sair da sua posio inicialde neutralidade. Em suma, o Brasil tinha primeiro que encerrar formalmente suas relaescomerciais extensas e muito lucrativas com os alemes e, em um momento posterior, aderirformalmente guerra contra os poderes do Eixo.

    Vargas acabou por se juntar aos Aliados, chegando ao ponto de enviar tropas brasileiras Europapara participar na derrocada da Alemanha nos meses finais da guerra. Como previra, sua relaocom Washington, em ltima anlise, melhorou a situao econmica do Brasil, mas isso lhe custou

  • o prprio poder. A aproximao com os Estados Unidos aprofundou as tenses internas eprejudicou tanto sua liderana quanto a continuidade do Estado Novo ao final da guerra. Aindaassim, o Brasil prosperou. Aps a guerra, ele entrou para a lista bastante restrita de pases que sebeneficiaram muito com o conflito as potncias europeias neutras compem o restante desseseleto clube.

    Uma famosa lista dos objetivos de guerra brasileiros preparada pelo ministro das RelaesExteriores pr-Estados Unidos, Oswaldo Aranha (que mais tarde se tornou o primeiro presidenteda Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas), ressalta os enormes ganhos do pasdurante a Segunda Guerra Mundial. Aranha preparou essa lista incrivelmente ambiciosa para umareunio a portas fechadas entre os presidentes Vargas e Roosevelt, que ocorreu no Brasil em janeirode 1943, e o documento pode ser usado como uma espcie de conjunto de indicadores para avaliaro que o Brasil alcanou durante o conflito.

    De acordo com Aranha, os onze objetivos que o Brasil devia perseguir eram:

    1. Uma posio melhor na poltica mundial.2. A consolidao de sua superioridade na Amrica do Sul.3. Relaes mais seguras e estreitas com os Estados Unidos.4. O desenvolvimento de uma influncia maior sobre Portugal e as colnias portuguesas.5. O desenvolvimento do poder martimo (Marinha).6. O desenvolvimento do poder areo (Fora Area).7. O desenvolvimento de indstrias pesadas.8. A criao de um complexo industrial militar.9. A criao de indstrias tais como empreendimentos agrcolas, extrativistas e mineradores

    para complementar as dos Estados Unidos, que seriam essenciais para a reconstruo domundo aps a guerra.

    10. A expanso das ferrovias e estradas brasileiras para fins estratgicos e econmicos.11. A explorao em busca de combustveis essenciais.4

    Tomados em conjunto, os itens da lista de Aranha constituam uma afirmao corajosa do lugarque o Brasil merecia ocupar na ordem internacional. Eles representavam uma tentativa coordenadapara transformar a nao e lev-la ao sculo XX. Esses objetivos eram ainda mais ambiciosos umavez que, no incio da Segunda Guerra Mundial, o Brasil ainda era um pas extremamentesubdesenvolvido. Em 1940, dois teros dos brasileiros eram analfabetos, quase 70% da populaovivia em reas rurais e as comunicaes e os sistemas de transporte muito rudimentares da naodeixavam grandes partes do pas isoladas ao extremo. Alm disso, ao contrrio da maioria dospases desenvolvidos, cujas principais fontes econmicas eram as indstrias, a principal atividadeeconmica do Brasil era a agricultura, com o caf ainda sendo o principal produto de exportao.

    Vargas mudou tudo isso e levou o Brasil firmemente ao cenrio mundial. Sob sua liderana, opas foi modernizado foram construdas uma nova usina siderrgica nacional, novas estradas eferrovias, e melhorias foram feitas no setor agrcola. No entanto, acima de tudo, suas foras

  • armadas se transformaram nas mais poderosas da regio. O Brasil tornou-se uma superpotnciaregional em termos militares, polticos e econmicos.

  • FPRLOGO:O BOM VIZINHO

    OI NO SBADO 4 de maro de 1933, um dia nublado de final de inverno no hemisfrio norteem Washington, D.C., que Franklin D. Roosevelt fez o juramento de posse na presena de

    Charles Evans Hughes, o presidente da Suprema Corte. Aps a cerimnia, o novo presidente dosEstados Unidos fez um discurso de vinte minutos que foi transmitido por rdio para dezenas demilhes de ouvintes em todo o pas. O discurso, hoje mais lembrado por causa da afirmao deRoosevelt de que a nica coisa que temos a temer (...) o prprio medo, concentrou-se quaseinteiramente nos objetivos da poltica domstica, os quais dominaram a campanha e ajudaramRoosevelt a obter uma vitria esmagadora sobre o candidato reeleio, o republicano HerbertHoover. Tudo isso, por uma boa razo: com os Estados Unidos nas profundezas da pior depressoeconmica da histria do pas, a proposta domstica de Roosevelt no podia ter sido maispremente.

    Apenas um curto pargrafo do pronunciamento foi dedicado questo das relaes exteriores.No entanto, essa digresso e a analogia poderosa que continha lanaria um dos programasmais importantes da histria da poltica externa americana. No campo da poltica internacional,disse Roosevelt aos conterrneos, eu dedicaria esta nao poltica de boa vizinhana (...) ovizinho que respeita firmemente a si prprio e, por faz-lo, respeita os direitos dos outros (...) ovizinho que respeita as suas obrigaes e a inviolabilidade de seus compromissos internos e com oconjunto de seus vizinhos.1

    O comentrio breve, porm incisivo, de Roosevelt refletia as mesmas preocupaes domsticasque ele destacara no resto de seu discurso, mas sob um ngulo diferente. No cerne do comentrio e no centro da Poltica de Boa Vizinhana resultante estava o princpio da no interveno eda no interferncia nos assuntos internos dos pases latino-americanos. No entanto, os objetivosde Roosevelt no eram altrustas. No mbito dessa poltica, os Estados Unidos desenvolveramtrocas mutuamente benficas com os pases da Amrica Latina, na esperana de tambm criarnovas oportunidades comerciais entre os americanos e seus vizinhos do sul, aprofundando, assim,sua influncia na regio.

    O secretrio de Estado dos Estados Unidos, Cordell Hull, foi designado para realizar a tarefa detornar a declarao do presidente realidade atravs do desenvolvimento de relaes mais estreitasentre as 21 repblicas das Amricas. Desde o incio, essa empreitada no se mostrou uma tarefafcil. Na maioria dos pases da Amrica Central e do Sul havia uma profunda desconfiana comrelao aos objetivos e s intenes dos Estados Unidos, que at 1933 poderiam ser caracterizadoscomo essencialmente exploradores e interessados sobretudo em dividir e governar toda e qualquerregio que conseguissem. Hull lamentou a herana de m vontade dos Estados Unidos,afirmando que ela foi comprovada por intervenes (...) Atrelado ao antagonismo poltico estava oressentimento econmico. As altas tarifas do governo anterior, juntamente com a quebra da bolsaem 1929, trouxeram graves dificuldades econmicas para os pases da Amrica Latina.2 Os

  • problemas dos Estados Unidos haviam se espalhado para seus vizinhos do sul e agravado os jefervescentes ressentimentos com polticas consideradas paternalistas e egostas.

    Os Estados Unidos enfrentavam no apenas o profundo receio das naes latino-americanas,mas tambm as divises entre elas. Muitos pases da regio sentiam uma profunda desconfianamtua. Como consequncia, Hull pretendia fomentar o desenvolvimento da confiana, amizade ecooperao entre as naes da Amrica Latina.3 Esse era um objetivo ambicioso.

    Talvez nenhuma rivalidade nessa regio fosse to intensa quanto aquela entre o Brasil e aArgentina, ambos disputando o predomnio militar, econmico e poltico do continente. Talrivalidade era baseada em conflitos histricos por territrios; os Estados tinham alcanado aindependncia de Portugal e da Espanha, respectivamente, e as tenses coloniais que dominaramas relaes entre esses dois pases europeus tambm contaminaram as relaes argentino-brasileiras. O Brasil, por exemplo, s chegou a um acordo sobre suas disputas de longa data comrelao fronteira entre as duas naes no incio do sculo XX. Os dois Estados passaram toda adcada de 1930 competindo um com o outro, e suas polticas de defesa refletiam a tradicionalsuspeita mtua. Essa desconfiana tambm afetava sua poltica externa e circunscrevia adiplomacia dos Estados Unidos com relao a eles. Qualquer movimento por parte dos americanospara ajudar a Argentina era visto com profunda desconfiana pelo governo brasileiro, que presumiaque a ajuda americana aos argentinos seria prejudicial aos interesses do Brasil. Desnecessrio dizerque o governo argentino nutria as mesmas suposies.

    Um importante relatrio dos servios de inteligncia americanos explicou sucintamente osproblemas do Brasil com a Argentina em 1930. Ele afirmava:

    Nos ltimos anos, os brasileiros manifestaram preocupao com as pretenses argentinas com relao ao seu territrio (...)A Argentina era considerada a mais poderosa das naes latino-americanas. O vasto e subdesenvolvido interior do Brasil esua populao heterognea eram considerados uma fonte de fraqueza, e no de fora. A Argentina era mais rica; seuscentros populacionais e de produo eram mais compactos e imbricados; e seus habitantes, predominantemente brancos,desfrutavam de um padro de vida melhor do que o da maioria dos brasileiros. Muitos observadores consideravam asforas armadas da Argentina, sobretudo a Marinha, de longe, as melhores da Amrica do Sul.4

    O maior medo no Brasil durante os anos anteriores Segunda Guerra Mundial era que aArgentina usasse a crescente influncia nazista no pas como pretexto para fortalecer suas forasarmadas e montar uma campanha militar contra o Brasil. Havia bons motivos para os temoresbrasileiros: a cultura poltica argentina durante esse perodo foi fortemente nacionalista, e as forasarmadas do pas eram pr-Alemanha e buscavam expandir a influncia argentina na regio.Confrontados com a possibilidade de uma agresso militar argentina, variando de escaramuasmilitares ao longo da fronteira argentino-brasileira at uma invaso em larga escala, os lderes doBrasil buscaram maneiras prticas de neutralizar a ameaa argentina. Naturalmente, isso incluaaumentar essa ameaa junto a potncias estrangeiras, sobretudo a Gr-Bretanha e cada vez mais os Estados Unidos.

    O presidente Roosevelt se mostrou receptivo s notcias sobre as rivalidades internas fortes epotencialmente desestabilizadoras entre as repblicas da Amrica, assim como ao que era

  • percebido como a simpatia pr-Alemanha por parte de algumas delas. No dia seguinte ao discursode posse de Roosevelt, o partido nazista conquistou 43,9% dos votos nas eleies parlamentaresalems. A vitria eleitoral ajudou a consolidar Hitler no poder e engendrou uma poltica externaalem mais declaradamente expansionista.5 Entretanto, o impacto da consolidao do poder deHitler no se limitava ao continente europeu. Era conhecida a simpatia da Argentina pelaAlemanha; os britnicos e os americanos estavam preocupados que o Brasil tambm a nutrisse. Oobjetivo central da Poltica de Boa Vizinhana era, portanto, aumentar a segurana dos EstadosUnidos ao salvaguardar a regio das influncias estrangeiras hostis. Essa poltica,consequentemente, era caracterizada sobretudo pelos esforos de Washington para deter osavanos feitos na regio pela Alemanha e pela Itlia. Contudo, nos anos que antecederam aSegunda Guerra Mundial, Cordell Hull e, aps a sua nomeao, em 1937, o subsecretrio deEstado, Sumner Welles, no conseguiram atingir os objetivos ambiciosos do programa. Grandeparte desse fracasso se deveu a fatores que estavam fora do controle dos Estados Unidos.

    A Alemanha estava interessada em desenvolver laos com os pases latino-americanos,principalmente com o Brasil, em quem enxergava grandes oportunidades comerciais. O Brasildesenvolveu com Berlim fortes laos comerciais usando um esquema complexo de compensaoem marcos sem o qual no teria meios suficientes para fazer os pagamentos.6 Tudo isso acabousendo muito frustrante para os Estados Unidos e para a Gr-Bretanha, que at ento tinham sidoos principais parceiros comerciais do Brasil.7 A Alemanha parecia disposta a ir muito mais longedo que os dois no uso dos laos comerciais para ajudar a promover sua influncia poltica no Brasil.

    O programa macio de rearmamento da Alemanha, cujo principal intuito era transformar asforas armadas alems nas mais poderosas da Europa continental, criou a possibilidade da vendade armas de Berlim para o Brasil. Essa era uma perspectiva muito sedutora para os lderes militaresbrasileiros, que estavam ansiosos para desenvolver as foras armadas de seu pas, a fim de combateruma eventual agresso argentina. A Alemanha parecia disposta a abastecer o Brasil com armas dealta qualidade. A Gr-Bretanha manteve-se firmemente contrria a permitir que armas alemschegassem ao Brasil, sobretudo devido aos temores de que carregamentos de armas ajudariam aconsolidar supostos sentimentos pr-nazistas nutridos por oficiais das foras armadas brasileiras.No entanto, a Gr-Bretanha no poderia oferecer armas aos brasileiros. Em Londres, uma polticade manter a paz com os alemes ainda vigorava. Os indivduos que defendiam o rearmamento,como Winston Churchill, eram minoria. Mesmo que a Gr-Bretanha desejasse fornecer armas aoBrasil (e, dadas as preocupaes com as tendncias polticas deste pas, isso era pouco provvel),no tinha sobressalentes para vender.

    Os Estados Unidos, embora no estivessem to preocupados com a questo das armas quanto osbritnicos, ficaram muito apreensivos com as tentativas da Alemanha e da Itlia de fomentar oslaos com as grandes colnias de imigrantes alemes e italianos no Brasil. medida que a situaona Europa se tornava cada vez mais tensa no fim da dcada de 1930, a embaixada americana noRio de Janeiro demonstrava sua preocupao: Os governos italiano e alemo tm feito, nosltimos anos, uma tentativa resoluta de organizar as colnias italiana e alem no Brasil e de inspirara mais ardente lealdade entre os seus compatriotas, no s ptria, mas aos regimes polticos em

  • ao hoje na Itlia e na Alemanha.8 A possibilidade de um segundo poder abertamente pr-Eixona Amrica do Sul comeava a parecer assustadoramente real.

    Em Washington, o Departamento de Estado observou que, em muitos aspectos, as colnias deimigrantes italianos e alemes no Brasil representavam tudo o que estava errado no pas. Osimigrantes viviam em comunidades fechadas no sul do pas, e seus filhos eram educados emalemo ou italiano em muitas escolas.9 No entanto, esses dois grupos eram influentes na economialocal, em particular nos ramos da aviao e do comrcio. Todos os dias, jornais em italiano ealemo traziam notcias locais e internacionais para essas comunidades.10

    Em 1933, Roosevelt comeou a estreitar os laos entre as naes da Amrica Latina e osEstados Unidos. O problema com o Brasil eram as divises internas do pas que, de to fortes,tornavam a meta de Roosevelt quase impossvel. Conforme ilustrado pelo recente golpe de Estadode Getlio Vargas, o poder no Brasil era concentrado nos estados; o governo federal era bastantefraco e a instabilidade poltica, grande. Fragmentado e cambaleando de um lado para outro, oBrasil precisava de um lder capaz de contar com um amplo apoio e que, portanto, tivesse tempo eoportunidade para organizar e transformar o pas.

    Em um esforo para mostrar a mudana na poltica americana em relao ao Brasil desde 1933,o presidente Roosevelt visitou o pas em novembro de 1936. Multides enormes o saudaram emsua chegada ao Rio de Janeiro, onde o presidente Vargas o recebeu com todas as honras. Navios deguerra brasileiros, juntamente com avies de aparncia antiga da fora area, acompanharam aentrada do navio do presidente americano no porto.

    Ao final de sua visita, Roosevelt estava cheio de elogios a Vargas e grande repblica doBrasil. Em um discurso aps um banquete realizado em sua homenagem, ele convidou oscomensais para se juntar a ele em um brinde ao presidente do Brasil, dizendo: Estou deixandovocs esta noite com grande pesar. H uma coisa, porm, que ficar em minha memria. Trata-sedas duas pessoas que inventaram o New Deal, o presidente do Brasil e o presidente dos EstadosUnidos.11

    A associao que Roosevelt fez de Vargas com seu famoso programa econmico foi um toquesimptico e muito apreciado pelo presidente brasileiro. Alm de destacar o trabalho detransformao do Brasil realizado por Vargas desde sua chegada ao poder em 1930, Rooseveltpretendia lisonje-lo e inspir-lo a fazer mais para industrializar o pas. Apesar da prpria ambio e devido, em parte, s profundas divises internas no Brasil , Vargas conseguira realizarapenas transformaes modestas at 1936.

    A visita de Roosevelt foi retratada no Brasil e nos Estados Unidos como um grande sucesso erecebeu o crdito de ter gerado boa vontade mtua entre os pases. Porm, na verdade, a visitapouco mudou a situao vigente. Embora tenha ficado claro que o povo brasileiro nutria umaimensa afeio por Roosevelt, sua gente continuou a alimentar suspeitas profundas com relao sintenes dos Estados Unidos na Amrica Latina.

    Uma anlise mais sombria do Brasil e da Amrica Latina veio de Cordell Hull, que viajou comRoosevelt para o Brasil e, posteriormente, para a Argentina a fim de participar da Conferncia

  • Interamericana de Consolidao da Paz, a qual envolveu todos os pases do continente americano.Hull escreveria mais tarde:

    A Amrica Latina que visitei naquela viagem diferia da Amrica Latina que vi apenas trs anos atrs, porque a penetraodo Eixo fizera um progresso alarmante e veloz sob vrios aspectos. Por muitos meses, recebemos relatrios de nossosrepresentantes nos pases ao sul de nosso territrio, que, somados, criaram uma imagem de tons ameaadores. AAlemanha nazista, em particular, estava empregando esforos intensivos para ganhar ascendncia entre os nossos vizinhos,mas a Itlia e o Japo tambm trabalhavam com ardor.12

    Para um visitante americano como Hull, parecia dolorosamente evidente que os fascistas, nazistase outros simpatizantes do Eixo logo estariam na soleira dos Estados Unidos se nada fosse feito paradet-los.

    A confirmao dos temores de Hull pareceu vir no ano seguinte, no Brasil, quando Vargascancelou as eleies programadas, baniu os partidos polticos, suspendeu a Constituio e declarouo Estado Novo. Em um discurso nao em 10 de novembro de 1937, Vargas explicou oraciocnio por trs de suas aes. Argumentou que a situao poltica no Brasil se tornaraincontrolvel e que, aps consultar os membros-chave do Estado brasileiro (uma clara referncia slideranas militares), no tivera outra escolha a no ser agir.13 Vargas reconheceu que era umadeciso excepcional (...) acima das deliberaes ordinrias da atividade governamental, masinsistiu que esse era seu dever como chefe de Estado brasileiro.14 *

    Superficialmente, parecia que o estabelecimento do Estado Novo empurraria o pas ainda maispara a rbita dos alemes. Havia, porm, diferenas ideolgicas marcantes entre os sistemasbrasileiro e alemo. O Estado Novo do Brasil e seu governo resultante se assemelhavam ao EstadoNovo de Portugal, e nenhum dos dois sistemas tinha as fortes caractersticas militaristas dosnazistas. Ainda assim, os Estados Unidos estavam cada vez mais preocupados com a atitude doregime de Vargas em relao aos imigrantes judeus no sul do pas. Crescia o nmero de relatos deataques contra essa comunidade e suas propriedades no Brasil. E, embora talvez no estivessemdiretamente envolvidas, ficou claro que as autoridades brasileiras faziam muito pouco para impedirtais agresses.15

    O governo Roosevelt optou por ignorar o sofrimento dos judeus no Brasil e se concentrar apenasem questes geoestratgicas. A Poltica de Boa Vizinhana, afinal, exigia que os Estados Unidosno interviessem na poltica interna de um Estado da Amrica Latina, e Roosevelt no tinhainteno de descumprir essa promessa. Os Estados Unidos estavam muito mais interessados naorientao da poltica externa do Brasil. Aps o estabelecimento do Estado Novo, figuras-chave dogoverno Vargas garantiram a Washington que o pas no se aproximaria das potncias do Eixo eno se afastaria dos Estados Unidos. Pelo contrrio, o Brasil pretendia continuar a desenvolverlaos comerciais com os Estados Unidos, bem como com as potncias do Eixo. Acreditandocompreender bem o novo regime do Brasil, o Departamento de Estado dos Estados Unidos deixoude lado as preocupaes com a orientao pr-nazista dos principais lderes do Exrcito Brasileiro.

    Enquanto tentava acalmar os americanos, Vargas tambm agia depressa para consolidar seupoder. Em seu discurso nao em 10 de novembro, a maior parte de sua justificativa para a

  • criao do Estado Novo centrou-se na ameaa de um golpe comunista no Brasil. Conhecido comoo Plano Cohen (seu nome, um testemunho do antissemitismo latente na estrutura de poder dopas), a ameaa foi exagerada pelos militares, que forjaram vrios documentos para reforar essaavaliao. Na realidade, aps a fracassada Intentona Comunista de 1935 e a priso dos principaisconspiradores, os comunistas no estavam em posio de armar um segundo golpe. Em vez disso, anova Constituio autoritria de Vargas era uma resposta a uma ameaa diferente e maispreocupante vinda no da extrema esquerda, mas da extrema direita.

    Embora no passado os conservadores tivessem ferrenhamente apoiado Vargas e seu regime, elesagora se revelaram seus adversrios mais perigosos. Vargas precisaria agir com rapidez se quisesseevitar o mesmo tipo de golpe que o alara ao poder. Menos de um ms depois do estabelecimentodo Estado Novo, ele assinou um decreto dissolvendo todos os partidos polticos. Includo nessalista estava o partido fascista, a Ao Integralista Brasileira (AIB), cujos membros eram maisconhecidos como camisas-verdes. Vargas tinha procurado o apoio desse grupo em suascampanhas anteriores, mas, com a proibio de todos os partidos polticos no Estado Novo,voltou-se contra eles.

    Como seria de se esperar, a liderana dos integralistas se sentiu trada e cuidadosamenteconspirou para se vingar do antigo aliado. Entre os partidrios dos integralistas estavam vriosmembros proeminentes das foras armadas, sobretudo da Marinha, onde eram particularmentefortes. Eles tambm mantinham ligaes com a Itlia fascista e a Alemanha nazista, e seus lderesestavam em contato direto com os nazistas em busca de ajuda para tirar Vargas do poder.

    Em uma noite amena, em maio de 1938, os integralistas entraram em ao contra o presidente esua famlia. O drama subsequente, que se desenrolou no lindo jardim do palcio presidencialacabaria sendo importante no apenas para o Brasil como nao, mas tambm para as relaes dopas com os Estados Unidos e para a atitude brasileira diante da prpria guerra mundial que seaproximava a passos largos. De fato, dados os vnculos que a liderana dos integralistas desfrutavacom a Alemanha e a Itlia, os eventos ocorridos no palcio presidencial naquela noite no podiamnunca ter sido confinados poltica interna brasileira. As apostas em jogo no poderiam ter sidomais altas.

    * Sempre que possvel, os trechos de documentos brasileiros foram extrados de suas respectivas fontes originais, tais comodiscursos, decretos de lei etc. (N. da E.)

  • PARTE UM:PRELDIO GUERRA

  • A1

    A CHAVE

    LZIRA VARGAS DO Amaral Peixoto possua uma beleza natural e uma vitalidade to forte queexercia uma poderosa atrao sexual sobre quase todos os homens que conhecia. Assim como o

    pai, no era alta, mas as mas do rosto bem esculpidas, o topete elegante, os lbios carnudos esensuais e os olhos escuros penetrantes mais do que compensavam a falta de altura. Era o sorrisode Alzira, no entanto, que desarmava a maioria dos homens. Ele vinha dos olhos e da boca,iluminando ambientes e animando at os militares e polticos mais srios os do Brasil e aquelesprovenientes de locais distantes de suas praias ensolaradas. Quando estava de bom humor, GetlioVargas, presidente do Brasil, irradiava de volta para ela aquele olhar de alegria absoluta que os paisreservam ao filho favorito.

    Alzira era caseira por natureza e, portanto, a anfitri poltica perfeita. Ela acrescentava um toquepessoal especial s recepes oficiais realizadas nos palcios e retiros presidenciais. Tantos osamigos quanto os inimigos de seu pai percebiam que era calma, esperta em questes jurdicas (foi aprimeira da turma na faculdade de direito) e politicamente calculista. Quando Vargas realizavareunies pessoais, sobretudo as reservadas, Alzira sentava-se de maneira calma mesa, observandocom ateno o convidado. Seu objetivo era avaliar as tendncias gerais e a direo da conversa paracalibrar o resultado e as implicaes para o papai. Ao final de cada reunio, ela acompanhava oconvidado, aparava as arestas da impresso que o pai havia deixado e depois voltava para contar-lhe tudo em detalhes.1

    Extraoficialmente, Alzira servia como antena, conselheira, crtica, secretria, anfitri, guarda-costas e enfermeira do pai. Ela tambm sabia manejar bem um revlver.2 Anos de prtica nafazenda da famlia, no Rio Grande do Sul, fizeram com que ela no tivesse medo de empunharuma arma e fazer bom uso dela. Na noite de 10 de maio de 1938, sua percia seria testada paravaler.

    A noite comeou como de costume para Alzira e o pai. Estavam juntos, como costumavam ficar,na residncia oficial do presidente, o Palcio Guanabara, no Rio de Janeiro. O calor sufocante dosmeses mais quentes do vero janeiro e fevereiro passara havia muito tempo, mas s dez horasda noite o clima ainda estava agradvel o suficiente para que as janelas do andar de cima do palcioficassem entreabertas. O presidente trabalhava sozinho em seu pequeno gabinete no primeiroandar. Era para ser uma noite tranquila para ele, que planejava o futuro econmico e poltico doBrasil usando lpis de vrias cores para diferentes temas relacionados aos seus muitos projetosambiciosos para o desenvolvimento do pas.3

    Um dos principais objetivos da estratgia de Vargas era posicionar o Brasil cuidadosamente nosistema internacional, a fim de maximizar seus ganhos econmicos e militares. O pas obtinha tais

  • ganhos sobretudo com o comrcio: de um lado, com os Estados Unidos e a Gr-Bretanha e, dooutro, com a Alemanha nazista. Vargas queria usar o comrcio com esses pases para ajudar amodernizar setores importantes da economia de modo a diminuir a dependncia do Brasil emrelao s importaes e aumentar sua capacidade de exportar os prprios bens e recursos.

    Vargas no era um visionrio, porm acreditava que o trabalho duro e a disciplina polticapermitiriam que o Brasil se transformasse. Alm disso, se a guerra europeia que Roosevelt lhedissera ser inevitvel se concretizasse, Vargas estava pronto para tirar o melhor proveito dela emaximizar os ganhos brasileiros. Assim, ele espelhava com perfeio a avaliao do Foreign Office,o Ministrio das Relaes Exteriores britnico. Admiradores de longa data de Vargas, osrepresentantes do Foreign Office o descreviam como valente, orador persuasivo e um gnio na artedas manobras polticas, um homenzinho surpreendente, que tem orientado a poltica brasileiracom extrema prudncia.4 John Dulles, o bigrafo americano de Vargas, expressou essa ideia emoutras palavras: Ele um homem calmo em uma terra de pessoas impulsivas, uma pessoadisciplinada em uma terra de indisciplinados, uma pessoa prudente na terra de imprudentes, umapessoa controlada na terra de esbanjadores, uma pessoa calada na terra de papagaios.5

    Nessa noite, Vargas escolhera fazer uma pausa para refletir sobre o progresso do Brasil enquantooutros membros de seu governo celebravam. A nova Constituio brasileira, que instaurou oEstado Novo, comemorava seis meses de existncia e, do outro lado da cidade, ministros e figureslocais celebravam a data ouvindo Francisco Campos, o autor da Constituio, fazer umpronunciamento nao do antigo prdio do Senado. O tema central do discurso era a paz polticae a tranquilidade que o pas poderia esperar agora que os planos para a realizao de eleiespresidenciais tinham sido colocados em compasso de espera. Vargas tornara-se um lderautoritrio, com uma agenda de unificao do Brasil e de fortalecimento do governo central emdetrimento dos governos regionais que haviam dominado o pas por dcadas. Era uma grandeaposta, mas Vargas contava com o apoio tcito dos Estados Unidos, que tinham interesse em verno Brasil um lder forte capaz de tomar providncias contra os interesses alemes e italianos nopas.

    Aps a transmisso do discurso pelo rdio, vrias das figuras mais importantes do Estado Novose juntaram e foram para a residncia de Campos, onde beberam champanhe e colocaram em diaas fofocas locais e diplomticas. O presidente tinha sido convidado para participar da reunio,porm, como de costume, escolhera evitar esse tipo de encontro, preferindo a companhia da famliae dos amigos mais prximos. Para Vargas, as horas seguintes ao jantar eram as mais produtivas pelaoportunidade que tinha de olhar os documentos, acender um grande charuto e refletir sobre asnotcias nacionais e internacionais. Ele tambm costumava organizar um jogo de pquer privadoem seu gabinete. Na noite de 10 de maio, exausto depois de um dia cheio de reunies, ele seretirou cedo e foi para o quarto.6 Boa noite, at amanh, murmurou para Alzira antes de lhe darum beijo no rosto. A ltima tarefa realizada por Vargas antes de dormir era atualizar seu dirio. Eleno era um grande escritor de dirios suas anotaes eram feitas em um estilo banal , maslevava a tarefa a srio, registrando fielmente seus pensamentos triviais dirios e detalhes de tudo oque ocorrera nas reunies importantes.

  • A tranquilidade reinava no palcio, que, apesar de sua localizao central no Rio de Janeiro,ficava afastado da rua e era cercado por rvores nas laterais e nos fundos. Vargas gostava detrabalhar em um pequeno gabinete no andar de cima, onde sua papelada era disposta com esmerona mesa e onde no havia quase nenhum rudo exterior ou distraes.7 Era por essa razo que elegostava de passar o mximo de tempo possvel no Palcio Guanabara, em vez de no gabineteoficial da Presidncia, o Palcio do Catete, que servira como palcio presidencial do Brasil desde1894. Apesar de relativamente modestos em tamanho, os cmodos do Palcio Guanabaracontinham uma seleo do que havia de melhor na arte da cidade, e seus jardins grandes, isolados ebem projetados forneciam o lugar perfeito para Vargas caminhar e meditar sobre questesimportantes. Muitas das decises mais significativas da histria brasileira, como a resoluo departicipar da Primeira Guerra Mundial (o Brasil acabou se juntando aos opositores das PotnciasCentrais), foram tomadas no salo de baile do palcio, comprido e majestoso, que tambm serviade sala de reunio para o gabinete. O presidente Vargas considerava o Palcio do Catete seuescritrio, e o Palcio Guanabara, sua residncia. Ele preferia usar o Palcio do Catete pela manhe, noite, o Guanabara.

    Na noite de 10 de maio, havia pouca atividade fora dos portes do Palcio Guanabara, e apenasum punhado de guardas, secretrias e empregados domsticos se encontrava no interior do prdio.Era uma noite tipicamente serena. Vargas estava se preparando para deitar quando, de repente, umbarulho quebrou o silncio.

    O que foi isso?, gritou Alzira. Seu primeiro instinto foi achar que a arma de um dos guardashavia disparado por acidente.8 Depois de alguns minutos, houve um segundo rudo, dessa vezacompanhado pelo som de um ricochete e de gesso caindo. Alzira percebeu que o palcio estavasendo atacado, mas no tinha certeza de por quem. Onde est papai?, gritou ela para o secretrioparticular de Vargas. Em pouco tempo, o presidente estava na sala com Alzira, de pijama ebrandindo um revlver. Assim que ele apareceu, a luz foi cortada, mergulhando tanto o palcioquanto seus jardins na escurido.

    Os golpistas tinham conseguido surpreender a todos. Os tiros aumentavam em frequncia epreciso enquanto os ocupantes do palcio corriam para todos os lados em busca de armas.9 Alziracalculou que os invasores estavam no porto dianteiro, mas ainda no tinham entrado nos jardins.Ela falou de forma rpida e nervosa para o pai:

    Papai implorou , precisamos tir-lo daqui e pedir ajuda.No que Vargas respondeu: Eu no vou a lugar algum, mas veja se os telefones esto funcionando, ligue para todo mundo

    e diga a eles que o presidente da Repblica foi feito prisioneiro no palcio.10Alzira verificou o telefone no gabinete presidencial. Para sua grande surpresa, ele ainda

    funcionava. Ela gritou para o pai: Os telefones no foram cortados. Para quem devo ligar? Para todos que conhecemos respondeu Vargas.11Alzira fez uma lista dos nomes de cabea. Enquanto dava o primeiro telefonema, o tiroteio se

    intensificou.

  • Ao menos sente-se e no haja como um alvo, andando em frente janela instruiu ela.12Enquanto balas continuavam a voar para dentro do palcio, Alzira telefonou para o chefe de polciae para o chefe do Estado-Maior do Exrcito. Ambos prometeram ajudar, mas primeiro precisavamreunir suas foras.

    Logo ficou claro para Alzira e seu pai que o ataque ao Palcio Guanabara no era um incidenteisolado. Os conspiradores tinham cercado as casas das principais figuras do regime Vargas.13 Eleshaviam atacado as residncias do chefe de polcia e do chefe do Estado-Maior do Exrcito, assimcomo as de dois generais graduados. Outros grupos de conspiradores haviam tomado o controle deduas estaes de rdio e do ministrio da Marinha.14

    Milagrosamente, a linha telefnica do palcio permanecia operante, e Alzira continuou a pedirajuda. Quando conseguiu falar com o irmo Lutero, gritou para ele ir buscar ajuda e voltar logoou morreremos todos.15 Os invasores, ela sentia, se preparavam para o ataque final ao palcio.Alzira ouviu o som de pistolas sendo disparadas de dentro do prdio: o presidente e sua equiperevidavam os tiros na direo do porto principal.16

    Um carro da Presidncia chegou de repente freando na entrada do palcio; ele transportava oirmo mais novo de Getlio, Benjamim, que logo foi despachado para obter reforos. Enquantoseu carro acelerava deixando os jardins do palcio, os conspiradores dispararam contra ele, queconseguiu fugir e se dirigiu a toda velocidade ao Centro da cidade.

    Fora do palcio, os lderes da tentativa de golpe enfrentavam seus prprios problemas. A maioriados voluntrios com os quais eles contavam naquela noite no tinha aparecido no ponto deencontro, na Zona Sul da cidade. Mais tarde, soube-se que muitos dos homens que noapareceram para lutar tinham ficado em casa, acreditando que, como um dos conspiradores maistarde declarou, o golpe fracassara antes mesmo de comear.17 Os 45 homens que cumpriram apromessa se reuniram no quartel-general dos golpistas na avenida Niemeyer, 550, onde nove delesforam considerados velhos demais para o combate e enviados de volta para casa.18 O restante tinhapouca experincia em combate ou treinamento com armas de fogo, e a aula de ltima hora com osfuzis que receberam pouco contribuiu para inspirar confiana. Para piorar a situao, osconspiradores vestiam uniformes da Marinha, mas, devido falta de coturnos, usavam os prpriossapatos e meias civis. Um leno branco, adornado com letras verdes e o lema Avante, completava ouniforme.

    Quando chegaram aos portes do palcio, os insurgentes foram percebidos de imediato por causados uniformes.19 Eles trocaram tiros com os guardas do palcio, mas o elemento surpresa e umtraidor entre os guardas permitiu que os invasores a princpio dominassem os defensores,matando um deles e trancafiando os outros.20 Em seguida, muitos dos conspiradores seesconderam nos jardins. Em vez de seguirem seu lema, Avante, eles se contentaram em disparartiros ocasionais e esperar para ver.21 Na verdade, a maioria dos insurgentes estava aterrorizada comos eventos da noite e esperava fugir para casa quando chegasse a hora certa. Para piorar tudo, osinsurgentes mal treinados encontravam-se tambm lamentavelmente mal equipados. Os doiscaminhes que os levaram ao palcio partiram logo aps deix-los. Na pressa para fugir do local, os

  • motoristas foram embora sem descarregar as metralhadoras pesadas e as bombas caseiras dosconspiradores, de modo que os homens foram confrontados com a perspectiva de preparar umataque ao palcio apenas com armas leves e uma nica metralhadora leve. A maioria dos invasores,alis, parecia pouco interessada em fazer uso da nica metralhadora; por isso foi deixada para older no local, tenente Severo Fournier, a tarefa de tomar conta da arma. Este disse aosconspiradores: Atirem no escritrio no andar de cima, onde com certeza Vargas est escondido.No esmoream. Ele disparou uma rpida rajada de metralhadora, tanto para inspirar seushomens como para intimidar as pessoas no interior do prdio.

    No mesmo instante em que Alzira Vargas freneticamente pedia ajuda e reforos, Fournierdespachava um homem para fazer o mesmo em nome dos insurgentes e para verificar o progressodo golpe na cidade e no resto do pas. Descubra quem controla o rdio e a polcia e verifique ondeest a fora designada para sequestrar o presidente, instruiu Fournier. Por precauo, acrescentou:Retorne apenas quando tiver reforos e armas. No fundo, o tenente sabia que nunca mais veria omensageiro de novo: o homem simplesmente fugiu, voltando para casa.22

    O ataque ao palcio chegara a um impasse, com os dois lados esperando notcias e reforos.Dentro do prdio, Alzira se desesperava. Ela suspeitava que os invasores queriam matar seu pai eno conseguia fazer contato com a maioria das figuras mais importantes do Estado Novo, queenfrentavam seus prprios problemas e intrigas.23 Parecia cada vez mais provvel que os reforosprometidos no chegassem a tempo.

    De repente, Alzira teve uma ideia: Papai, por que no tentamos o tnel que liga o palcio sdependncias do Fluminense? O tnel secreto passava por baixo dos jardins do palcio edesembocava no estdio do clube, onde Alzira supunha que os reforos esperados estivessem apostos talvez at j tivessem entrado por l e se aproximassem do prdio.

    Vargas aprovou o plano, mas logo descobriu que a porta para o tnel estava trancada. Opresidente mandou que encontrassem a chave e tentou acalmar a todos. Vamos sentar e esperar,ordenou Vargas antes de voltar para seu gabinete. Alzira, diga ao chefe de polcia para pegar seushomens e tentar chegar ao tnel pelo lado do estdio.

    Vargas andava pelo gabinete de um lado para o outro com o revlver na mo, cada vez maisagitado. Sua vida corria perigo, uma fora de resgate ainda no havia chegado e ele teria no diaseguinte uma manh repleta de compromissos oficiais e reunies; ele queria dormir.24 Comoocorre na maioria dos golpes, era muito difcil obter informaes confiveis, e ainda mais difcilsaber quem estava envolvido na conspirao. Com o corte de energia no palcio, nem Alzira nem opai ouviram a transmisso feita pelos insurgentes na estao de rdio tomada por eles, que davanotcias sobre o golpe.25 Ainda assim, Vargas sabia qual grupo poltico estava por trs daquilo.

    Uma das grandes qualidades de Vargas talvez fosse sua astcia em avaliar a fora de seusinimigos polticos, e havia muitos deles. esquerda do espectro poltico estavam os comunistas; direita, os fascistas camisas-verdes os integralistas , que eram membros da Ao IntegralistaBrasileira. Ele tambm sofria uma oposio substancial vinda de dentro das fileiras de seu prpriogoverno. Todos os ministros e governadores locais precisavam ser observados com cuidado, eVargas muitas vezes tinha que lanar mo de toda a sua habilidade poltica para sufocar motins,

  • conflitos de personalidade e disputas ideolgicas que poderiam rachar seu governo. Agora, presoem seu gabinete, com seu mandato e sua vida em risco, o presidente teve frieza suficiente paraentender quem estava por trs do ataque. Os integralistas vo pagar por isso, informou filha emum tom seco.

    Dados os acontecimentos dos ltimos meses, no foi difcil para o presidente chegar a talconcluso. Desde que o Estado Novo banira todos os partidos polticos uns seis meses antes, osex-aliados fascistas de Vargas ansiavam por vingana. Isso Vargas poderia ter antecipado noentanto, ele no havia percebido o grau de sucesso dos conspiradores em obter apoio dentro dasforas armadas brasileiras, sobretudo da Marinha. Simpatizantes entre os militares tinhamdesempenhado um papel fundamental ajudando a organizar e a equipar os insurgentes que agoracercavam o Palcio Guanabara e ameaavam derrubar o jovem Estado Novo.

    Alzira deu pouca ateno ao pai; estava mais preocupada em organizar a possvel fuga dele pelotnel at o estdio de futebol. Com a chave ainda desaparecida, as pessoas presas no palciopensaram em arrombar a porta, mas essa no teria sido uma tarefa fcil j que ela era feita demadeira macia e tinha dobradias antigas muito fortes. Por um momento, o grupo cogitou atirarna fechadura, mas rejeitou a ideia to rpido quanto a concebeu. Nenhuma das armas no palcioera de calibre grande o suficiente, e o som dos disparos poderia alertar os invasores do lado de forasobre a existncia de um tnel. Por enquanto, o impasse perdurava.

    A falta de informaes sobre a situao no resto da cidade ainda era uma grande fonte de afliopara Alzira. Havia rumores no palcio de que os insurgentes tinham tomado o controle de estaesde rdio importantes de todo o pas e transmitiam mensagens contra o Estado Novo. Alziratambm fora informada de que havia um traidor na guarda presidencial e que ao menos um dosguardas leais tinha sido morto. Tais notcias aumentaram a tenso no palcio.

    De repente, um tiroteio prolongado irrompeu das imediaes do porto dianteiro. Contudo,dessa vez os disparos no eram dirigidos ao prdio. Os reforos enfim tinham chegado, embora nofossem do tipo que Alzira e seu pai esperavam.

    Eurico Gaspar Dutra, ministro da Guerra, tivera sorte. No ltimo instante, os conspiradoresdesignados para det-lo e lev-lo a um local seguro no Centro da cidade tinham perdido acoragem, deixando de cercar seu domiclio no bairro e poupando-o do destino que se abatera sobreoutras lideranas do Estado Novo. Aps uma ligao urgente do palcio para a sua casa uma damanh, Dutra partira a p para convocar reforos, passando por um bar dentro do qual havia umadzia de conspiradores sem lder bebendo. Ao enfim chegar ao forte do Leme, Dutra encontrarauma dzia de soldados e os trouxera para o palcio em um nico caminho.26 Os homens foramrecebidos no porto com uma rajada de tiros dos insurgentes que cercavam o edifcio. Durante oprimeiro fogo cruzado, dois dos homens de Dutra foram feridos e uma bala atingiu de raspo aorelha do ministro. Em vez de enfrentar os invasores em um tiroteio prolongado, Dutra pareceuperder a coragem e pediu instrues a Alzira sobre como proceder.27 Quando nenhum conselho foiapresentado, Dutra saiu em disparada em uma motocicleta com carro lateral para buscar maisreforos.

    Apesar de no ser exatamente a salvao que Vargas e Alzira esperavam, a interveno de Dutra

  • Apesar de no ser exatamente a salvao que Vargas e Alzira esperavam, a interveno de Dutrateve um efeito salutar. A presena de seu pequeno contingente de soldados fez com que a maioriados invasores abandonasse suas posies ao redor do porto dianteiro e fugisse para os bosques quecercavam o palcio. O prprio Dutra, nesse nterim, chegou ao quartel da polcia e encontrououtros membros do Estado Novo tentando organizar um grupo da polcia de elite (PE) para ir aopalcio o que se mostrava bastante difcil, pois os comandantes tinham dado folga para a maiorparte da fora por causa da comemorao de seis meses do governo. Por fim, a pedido de Dutra, ochefe de polcia despachou um nico caminho de policiais vestidos em trajes civis para se juntar luta no palcio.

    L, o perigo ainda era grande. Embora tivessem expulsado muitos invasores para o mato, oprimeiro grupo de soldados no conseguira capturar ou matar sequer um deles, muito menoslibertar as pessoas presas dentro do prdio. A situao ainda era considerada arriscada demais paraVargas tentar sair pelo porto da frente, de modo que o tnel e a porta trancada eram os nicosfocos de ateno para aqueles que tentavam salvar o presidente. Os policiais chegaram ao estdioseguindo as ordens de Dutra e entraram no tnel, encaminhando-se at a porta trancada sob oPalcio Guanabara. Estavam prximos o suficiente para se comunicarem com as pessoas do outrolado da porta, no palcio, e, juntos, os dois grupos arquitetaram um plano para explodi-la.Felizmente, talvez, para os que estavam dos dois lados da porta, esse plano desesperado foiabandonado na ltima hora.

    Logo quando o relgio do gabinete do presidente estava prestes a marcar cinco horas da manh,o secretrio de Getlio localizou um porteiro que tinha a chave. A porta foi aberta, e a polcia eoutras autoridades invadiram o prdio, acabando com o cerco. Alzira informou ao pai: A polciaest aqui e tudo acabou, mas ainda h muito a ser feito para salvaguardar os jardins do palcio e acidade. Na verdade, porm, a chegada da polcia fez com que muitos dos milicianos que estavamno porto da frente e nos jardins do palcio abandonassem suas posies. A maioria simplesmentetirou o uniforme, que usava por cima de suas roupas civis, e tentou voltar sorrateiramente ZonaSul da cidade. Grande parte dos insurgentes foi logo detida enquanto deixava o palcio ouatravessava a avenida que levava Zona Sul. No Palcio Guanabara, a polcia retirou os corpos desete invasores mortos no tiroteio. Quando a notcia sobre o fracasso do golpe ao palcio seespalhou, os conspiradores que haviam tomado as emissoras de rdio e as residncias dos lderes doEstado Novo se misturaram s multides.28 s sete horas, a revolta acabara, a no ser pelo som detiros espordicos quando a polcia encontrava insurgentes isolados ou pequenos grupos decombatentes que ainda no tinham ouvido as notcias sobre o fracasso total do golpe.29

    Aps a libertao do palcio, o clima tenso do cerco deu lugar a um ambiente festivo, enquantoas principais figuras do Estado Novo trocavam histrias sobre o que acontecera naquela noite dolado de fora de seus gabinetes e casas. Alzira observou, porm, que, embora todos estivessem debom humor, seu pai falava pouco e parecia introspectivo. Ele j planejava sua resposta ao golpe eaos conspiradores.

    As reaes ao drama da noite foram rpidas e variadas. O golpe fora to amador que algunscrticos de Vargas afirmaram que tinha sido encenado pelo presidente e por seus partidrios na

  • tentativa de justificar o estabelecimento do Estado Novo autoritrio.30 No entanto, eventossubsequentes revelaram a extenso da trama e quem estava por trs de seu planejamento eexecuo. Quanto ao modus operandi tpico de Vargas, um amigo e conselheiro comentou com oembaixador britnico no Rio de Janeiro: O sr. Vargas no gosta de recorrer ao derramamento desangue quando elimina seus inimigos. Ele prefere conquist-los pela persuaso ou colocar umacasca de banana com tanta habilidade que eles acabem quebrando o prprio pescoo. Isso exigemuita pacincia.31

    Mais tarde, naquela mesma manh, enquanto a polcia ainda prendia o restante dos invasoresescondidos nos jardins do palcio, o presidente Vargas fez sua caminhada habitual at o gabinetepresidencial no Palcio do Catete, acompanhado como de costume por um nicoajudante.32 Ele estava preparado para tomar qualquer medida draconiana necessria para assegurarque os conspiradores fossem identificados e levados justia. A investigao inicial sobre a revoltafoi realizada cirrgica e rapidamente, duas palavras que em geral no eram associadas sautoridades brasileiras da poca.

    Enquanto ele se preparava para revidar o ataque de seus pretensos assassinos, Alzira e Benjamimtentavam reestruturar o esquema de segurana do presidente. Os familiares de Vargas, sobretudoAlzira, tinham dificuldade em entender como poderia ter demorado tanto para os reforoschegarem ao palcio. Eles especularam que muitos seguranas tinham esperado para ver que ladoprevaleceria, e essa ambivalncia deixara o presidente isolado e vulnervel. Alm disso, emboraDutra tivesse enfim cumprido seu dever, Alzira notara sua hesitao inicial para atacar com vigoros conspiradores durante a tentativa de golpe. Mais tarde, ela sugeriu que Dutra hesitara porquetambm tinha pensado em se unir aos integralistas.33 Seu pai foi menos crtico e escreveu no dirioque o ministro da Guerra [foi] o nico integrante eminente do governo que arriscou a prpria vidapara me salvar durante o ataque. Os outros fugiram para se protegerem em primeiro lugar.34

    Aps a tentativa de golpe, Benjamim decidiu que o presidente precisava de uma equipe desegurana pessoal que se reportasse diretamente a ele. Os guardas deveriam ser recrutados entre osgachos de So Borja, homens com quem Benjamim j servira no Exrcito e cuja lealdade elepoderia atestar. Eles sero fiis a voc, assegurou ele ao irmo, guardaro o palcio enquantovoc dorme ou trabalha e o acompanharo aonde quer que voc v.35 Os homens andavamfortemente armados e Alzira jurou no confiariam em ningum, como era o costume emsua regio. Esses vaqueiros eram dures, desprezavam as sutilezas da vida urbana, mais ainda oprotocolo presidencial, mas receberam algum treinamento e ternos para vestir. A nomeao delescomo guarda-costas presidenciais se mostrou uma catstrofe para o presidente dezesseis anos maistarde, porm, logo aps a revolta, eles sem dvida trouxeram conforto para ele e para o resto dafamlia presidencial abalada.

    No entanto, sua equipe de segurana reforada no protegeria Vargas de futuros desafiospolticos sobretudo daqueles que, como essa revolta, tinham se originado parcialmente nointerior de seu regime. Enquanto ele agora voltava sua ateno para se certificar de que o golpe nose repetiria, sua filha mantinha vigilncia rigorosa sobre qualquer ministro que ela acreditava

  • representar uma ameaa interna ao pai. Esse zelo conferiria a Alzira, em seu devido tempo, oapelido de o olho direito de Vargas.36

  • O2

    O OLHO ESQUERDO DE VARGAS

    PRESIDENTE VARGAS estava ansioso para voltar ao ritmo de trabalho normal aps o levante.Queria, principalmente, evitar qualquer demonstrao de fraqueza ou instabilidade, fosse em

    nvel nacional ou internacional, e tomou cuidado para projetar uma imagem de calma e fora,apesar de sua provao recente. O pas est absolutamente tranquilo, e o presidente da Repblicacontinua a receber o apoio de todas as foras organizadas da nao, proclamou o Ministrio dasRelaes Exteriores brasileiro no dia seguinte tentativa de golpe de Estado.1 Um comunicadoenviado ao corpo diplomtico estrangeiro sediado no Rio de Janeiro vangloriou-se de centenas deprises e afirmou que os culpados seriam julgados com rapidez e de forma justa.

    Em 18 de maio de 1938, foi promulgado o decreto presidencial no 431 como resultado direto dainsurreio.2 Ele impunha a pena de morte a qualquer condenado por atacar o presidente oucercear sua liberdade. A nova lei no ser usada de forma retroativa contra os conspiradores de 11de maio, informou Getlio Vargas aos presentes.3 Na verdade, no havia qualquer disposio deusar a pena de morte, mas o presidente esperava que o decreto-lei pudesse servir para inibirconspiraes futuras. A norma tambm permitia ao governo demitir funcionrios civis ou militarespor razes que fossem de interesse pblico conforme definidas pelo regime por um perodoindefinido.4

    No Rio de Janeiro, policiais graduados ansiosos por compensar sua participao pfia em 11 demaio agiram depressa contra aqueles que suspeitavam ter qualquer envolvimento na trama. Antesque a polcia tivesse terminado de prender os suspeitos de praxe, a investigao teve um grandeavano quando policiais localizaram um carro usado por Severo Fournier, o lder desafortunado doataque ao Palcio Guanabara. A polcia encontrou no veculo planos detalhados para a ao,incluindo muitos nomes de insurgentes envolvidos. Tais planos confirmaram a intuio de Alziracom relao tentativa de golpe; os conspiradores planejavam sequestrar, ou matar, seu pai e vriosoutros integrantes do regime. Embora os planos encontrados no carro de Fournier tenham provadoque os integralistas estavam por trs da trama, eles tambm revelaram que alguns militares nointegralistas descontentes, como Fournier, tiveram participao na tentativa de golpe. Osdocumentos tambm revelaram a extenso do papel da Marinha brasileira na conspirao. Empoucos dias, a polcia tinha prendido cerca de 1.500 pessoas, entre civis e militares, a maioria daMarinha.5

    No final do cerco ao Palcio Guanabara em 11 de maio, Fournier tinha ido emboradiscretamente, evitando ser capturado. Refugiou-se com amigos na cidade, mas sua foto foipublicada em todos os jornais, e uma recompensa considervel foi oferecida com o intuito de obter

  • informaes que levassem sua priso.6 Seus amigos ficavam cada vez mais ansiosos medida queo tempo passava e eles ainda o escondiam. Por fim, arquitetaram um plano.

    Podemos levar voc para a embaixada italiana, e depois voc se vira sozinho informou umdos homens.

    L, voc pode pedir asilo poltico acrescentou outro.Como o governo italiano apoiara tacitamente os integralistas antes do golpe, havia uma chance

    embora pequena de que agora daria abrigo a um dos lderes dos insurgentes.Foi uma aposta desesperada, mas Fournier sentia a mesma presso que seus amigos. Ele ouvira

    relatos de que a polcia estava torturando pessoas detidas durante as buscas aps o 11 de maio, e aperspectiva de compartilhar o destino delas combinada com a falta de qualquer alternativavivel o levou a concordar com o plano.7

    Em 25 de junho de 1938, um carro velho se arrastou devagar pelas ruas do Centro, morrendo devez em quando e fazendo o que podia para no atrair a ateno da polcia. Tanto o motoristaquanto o passageiro usavam uniformes militares; as lapelas em seus ombros indicavam que tinhama patente de capito. Os oficiais tentavam no demonstrar ansiedade, fosse com relao um aooutro ou aos pedestres que passavam quando o carro parava nos cruzamentos das ruas. A polciaest por todo lado, informou o motorista ao passageiro, que podia ver perfeitamente bem por simesmo.

    Na verdade, a presena da polcia no Centro no era maior do que a habitual. A grande operaopolicial para capturar os membros da revolta de 11 de maio fora reduzida havia muito, e a maioriados detidos j tinha sido acusada e julgada. Vargas acelerara o processo judicial do Brasil, em geralmoroso; sob novos poderes extraordinrios, os acusados do levante de 11 de maio tiveram apenascinco minutos para preparar sua defesa, e as decises e sentenas foram proferidas em trintaminutos por juzes sobrecarregados e cada vez mais mal-humorados.8 Em 25 de junho, a polciado Centro do Rio de Janeiro estava mais interessada em flagrar infraes de trnsito e reprimir ataxa crescente de criminalidade na cidade do que em procurar insurgentes que talvez aindaestivessem em liberdade. No entanto, o motorista suava em bicas e optava pelas ruas secundriassempre que possvel, evitando as longas avenidas arborizadas repletas de guardas de trnsito.

    Na escurido do porta-malas, encontrava-se Severo Fournier. Quando o veculo se aproximou daembaixada italiana, o motorista se recusou a parar, passando direto pelos policiais que estavam deguarda e entrando nas dependncias da embaixada.9 L, os homens retiraram Fournier da mala docarro e voltaram a passar pelos guardas, batendo continncia para eles no caminho. Nodemoraram mais de vinte minutos para se livrar de sua explosiva carga humana.

    O embaixador Lojacono sentiu algo parecido com um ataque de pnico quando sua secretriainterrompeu calmamente a reunio e sussurrou ao seu ouvido: Severo Fournier est no terreno daembaixada e deseja pedir asilo poltico.10 Depois que se acalmou, o embaixador enviou umtelegrama para Roma e esperou ansiosamente por instrues. Como a notcia da chegada deFournier embaixada se espalhara depressa pela cidade, Eurico Gaspar Dutra, o ministro daGuerra brasileiro, enviou dois militares de alta patente para negociar com Lojacono. Os oficiais

  • relataram a Dutra: Lojacono foi teimoso e arrogante e relutou em entregar Fournier e, assim,violar o princpio do asilo poltico. Dutra mal conseguiu conter a raiva.

    Depois de muitas manobras diplomticas, presses e ameaas por parte do governo brasileiro alm da interveno pessoal do pai de Fournier e do ministro das Relaes Exteriores italiano,Galeazzo Ciano , o lder da revolta acabou sendo convencido a deixar a embaixada em 7 dejulho. Foi-lhe dada a opo de ser preso pela polcia militar ou civil; ele escolheu a militar naesperana de receber um tratamento melhor.11 Fournier foi condenado e recebeu uma longasentena, porm escapou da pena de morte.12 Sua deteno e condenao acabaram oficialmentecom a tentativa de golpe, que ficou conhecida no Brasil como a revoluo dos covardes.13

    A expulso gradual de Fournier da embaixada deveria sinalizar uma renovao da amizade entrebrasileiros e italianos, que passava por uma fase tensa antes mesmo dos acontecimentos de 25 dejunho, quando o Brasil congelara os fundos italianos no pas. Embora o dilema Fournier tenha sidouma fonte potencial de deteriorao ainda maior das relaes entre as duas naes, o caso, emltima anlise, serviu para reconcili-las. Fournier foi incentivado a escrever uma carta em queagradecia a Lojacono por sua hospitalidade e afirmava explicitamente que deixaria a embaixada porlivre e espontnea vontade. Por sua parte, foi solicitado a Lojacono que escrevesse uma cartapessoal a Dutra expressando seus mais sinceros agradecimentos por este ter compreendido o dilemamoral em que o embaixador italiano se encontrou ao receber o pedido de asilo poltico. Depois,Lojacono foi chamado de volta a Roma como recompensa pelos seus esforos.

    Todo esse drama poltico interno teve implicaes importantes para o futuro da poltica externabrasileira. Logo se descobriria que uma das pessoas envolvidas na ida de Fournier s escondidaspara a embaixada foi um certo capito Manuel Aranha, irmo de Oswaldo Aranha, o ministro dasRelaes Exteriores do Brasil. Dutra quis logo demitir Manuel Aranha bem como seuscmplices no incidente da embaixada do Exrcito sem uma audincia. Use os novos poderesque lhe foram atribudos pelo decreto-lei para demitir os oficiais imediatamente, solicitou Dutraao presidente.

    Contudo, Vargas hesitou, como sempre fazia em disputas envolvendo Aranha, seu aliadopoltico mais antigo e mais prximo. Mais tarde, um Dutra ofendido pediu demisso por causa daquesto e s voltou atrs quando o presidente cedeu sua demanda e demitiu Manuel e os outrosmilitares culpados. Essa deciso, por sua vez, fez com que Oswaldo Aranha renunciasse, e, por umtempo, pareceu que Vargas no conseguiria manter os dois ministros no gabinete. Oswaldo disse aVargas que ele agira de forma precipitada ao afastar seu irmo, que o presidente no entenderatodos os fatos do caso e devia, no mnimo, por considerao a Oswaldo, conceder a Manuel umaaudincia particular.14

    O presidente, Alzira observou, estava entre a cruz e a caldeirinha. Vargas comentou sobre ocaso em seu dirio em 26 de junho de 1938, o dia seguinte ao incidente da embaixada: Fuichamado com urgncia para lidar com uma crise (...) O mais grave que o ministro da Guerra,minha principal fonte de apoio [na tentativa de golpe no Palcio Guanabara], quer renunciar.Dormi com a sensao de que este pode ser o incio do colapso do novo regime.15

    A famlia Aranha manteve firme sua posio, e o presidente Vargas se sentiu cada vez mais

  • A famlia Aranha manteve firme sua posio, e o presidente Vargas se sentiu cada vez maisfrustrado com o impasse ao longo da primeira semana de julho. Ao mesmo tempo, ele enfrentavauma crise em sua relao com a Itlia. O problema Aranha se tornou ainda mais complexo eperigoso para Vargas quando o poderoso chefe do Estado-Maior do Exrcito, general GesMonteiro, tambm ameaou renunciar ao cargo.16 Vargas se recusou a aceitar a demisso,instruindo o general, em termos inequvocos, a prosseguir com seu trabalho. No dia 6 de julho,Vargas acrescentou que a crise est complicada (...) o ministro da Guerra est cansado enervoso.17 O presidente trabalhava com muito afinco para encontrar uma soluo, mas se sentiacada vez mais pessimista quanto possibilidade de manter esses dois homens-chave em seugoverno.

    Nessa altura, o presidente decidiu falar com alguns familiares de Aranha. Os dois eram velhosamigos e companheiros na luta armada, e as duas famlias tradicionais do Rio Grande do Sulcompartilhavam uma histria comum; aproximar-se dos membros mais velhos da famlia Aranhaera uma ttica sensata. Alzira tambm sugeriu que sua me, Darci, esposa do presidente,conversasse com a me de Oswaldo e intermediasse um acordo com ele. Acrescentou: Oswaldovai ouvi-la. Alzira sabia muito bem que a me de Aranha exercia grande influncia sobre o filho eque era a lder de fato da poderosa famlia.18

    O argumento que Darci transmitiu me de Oswaldo veio diretamente do presidente. Os doisgachos, afirmou ela, devem permanecer unidos. Oswaldo respondeu favoravelmente mensagem, e mais tarde ele e Vargas acabaram chegando a um tipo de acordo, que permitiu que osdois ministros permanecessem em suas respectivas posies no gabinete, ao menos por aquelemomento. O episdio e sua resoluo foi uma amostra da natureza imbricada etradicionalista da poltica brasileira. Os velhos laos de famlia ainda eram uma caracterstica forteda poltica e da economia na poca do Estado Novo, e tanto Alzira quanto o irmo mais jovem deGetlio, Benjamim, eram especialistas em saber quando e como usar a poltica familiar paraconseguir apoio para o presidente ou, como nesse caso, resolver uma crise poltica grave.

    No entanto, os laos familiares no ligavam todos os polticos, nem podiam ajudar a solucionaras grandes questes que o Brasil enfrentava. O conflito entre Dutra e Aranha era muito maior doque uma simples disputa pelo poder ou um choque de personalidades. Os dois ministros tinhampontos de vista muito conflitantes no que se referia ao lugar do Brasil na cada vez mais polarizadaordem mundial. Oswaldo Aranha era, no fundo, um defensor ferrenho da democracia. Acreditavaque ela venceria qualquer guerra futura contra o fascismo, embora a vitria talvez no fosseabsoluta. Para Aranha, o parceiro e aliado natural do Brasil eram os Estados Unidos, e ele queriaestreitar ainda mais as relaes com Washington.

    Eurico Dutra, por outro lado, era conhecido por sua admirao pela Alemanha nazista. Ficaraespecialmente impressionado com a capacidade militar daquele pas e estava interessado emdesenvolver laos militares e econmicos mais estreitos entre as duas naes. Desnecessrio dizerque Dutra encontrou um parceiro disposto em Berlim. Dutra era um homem poderoso e desfrutavade forte simpatia por parte dos militares brasileiros. Suas aes para ajudar a salvar o presidente em11 de maio tornaram-no ainda mais forte politicamente dentro do regime do Estado Novo. As

  • desavenas entre ele e Aranha seriam uma pedra no sapato do regime de Vargas, sobretudo no quetangia geopoltica.

    O judeu americano Waldo Frank, intelectual que apelidara Alzira de o olho direito dopresidente, chamava Oswaldo Aranha de o olho esquerdo de Vargas. Getlio Vargas e OswaldoAranha formavam uma parceria poltica ideal e pareciam se complementar perfeio. Suassemelhanas comeavam e terminavam por serem gachos.

    Vargas era cauteloso e um bom ouvinte; gostava de pesar os dois lados de uma discusso antesde decidir qual apoiar. Suas habilidades oratrias eram razoveis, mas ele contava com aprofundidade e os detalhes do contedo de seus discursos, em vez da extenso vocal, parahipnotizar a plateia. Na maior parte das vezes, ele deixava o entretenimento de dignitriosestrangeiros a cargo de Aranha, preferindo trabalhar at tarde no Palcio do Catete ou no PalcioGuanabara.19 Contudo, havia um aspecto social importante na personalidade de Vargas: elegostava de jogar golfe. Na verdade, ele usava o campo de golfe como um gabinete mvel. Mesmoem tempos de crise nacional ou internacional, ele conseguia encontrar tempo para jogar umapartida toda semana. Embora estivesse longe de ser um jogador talentoso, Vargas registrava quasetodas as rodadas em seu dirio e gostava da paz e da tranquilidade que desfrutava nos campos degolfe.20

    Aranha, por outro lado, era extrovertido, carismtico, com uma aparncia um pouco luntica: otipo de homem que se destacava logo que entrava em qualquer sala. Com relao ao aspecto fsico,ele no poderia ser mais diferente do presidente. Era alto e bonito, com uma vasta cabeleiragrisalha e olhos apaixonados, que ardiam intensamente. Ele adorava ser o centro das atenes egostava da pompa dos jantares formais e banquetes que o Ministrio das Relaes Exterioresorganizava no Palcio Itamaraty para diplomatas e outros convidados estrangeiros. Em 1938,Aranha j se mostrara igualmente confortvel com uma extensa gama de lderes polticos,intelectuais importantes e cones culturais do presidente Franklin D. Roosevelt a Walt Disney.Na verdade, ele se considerava um intelectual ou, no mnimo, equivalente a homens como WaldoFrank. Aps uma reunio com Aranha, Frank definiu-o: Dentro da volubilidade brilhante de seudiscurso esto percepes intuitivas que desarmam. Ele um homem alegre, um amante da boavida, dos cavalos e, suspeito (como todos os brasileiros), das mulheres. D a impresso de possuiruma loucura bem ordenada: de uma energia insana em um trilho.21

    Como vrios outros intelectuais, Frank foi seduzido pela energia e pelo entusiasmo de Aranha,embora tenha entendido muito bem que o homem tinha um qu de patife e manipulador. Elesabia como fazer as pessoas se sentirem importantes. Quando Frank visitou o Rio de Janeiro em1942, Aranha providenciou que seu avio fosse recebido no aeroporto Santos Dumont por umagrande delegao de jornalistas, fotgrafos, intelectuais e representantes do Ministrio dasRelaes Exteriores. O chefe do escritrio internacional do ministrio informou a Frank, na pista,que ele era convidado de honra do Brasil.22 Muitos americanos importantes receberam o mesmotratamento privilegiado quando chegaram cidade durante a Segunda Guerra Mundial, e cadarecepo foi cuidadosamente coreografada pelo Ministrio das Relaes Exteriores brasileiro. Oprodutor cinematogrfico e ator americano Orson Welles, com quem Aranha fez amizade

  • enquanto Welles filmava no Brasil durante a guerra, escreveu um tributo muito detalhado everborrgico ao ministro das Relaes Exteriores como parte de sua apresentao para umatransmisso de rdio sobre o Dia de Ao de Graas veiculado em rede nacional nos EstadosUnidos:

    Eis um poltico apaixonadamente honesto, um diplomata indiscreto que encara voc de forma eloquente e fala semrodeios (...) um grande representante das Amricas que assume com tranquilidade e com estilo a magnificnciaautntica daquele que faz histria. Ento voc sabe como ele aqueles olhos astutos cintilantes saltam das pginas derevistas e dos jornais, olhos honestos que avaliam e apreciam.

    O dr. Aranha a mais rara das figuras pblicas, um homem bonito que parece confivel. Sem dvida confiam nele emWashington, e voc j deve ter ouvido tudo sobre sua popularidade l quando ele era o embaixador do pas (...)

    Oswaldo Aranha muito mais do que isso. Primeiro, um heri, um verdadeiro heri sado direto da revoluomoderna do Brasil. Sabe-se que as multides j o carregaram pelas ruas do Rio de Janeiro. Ele sabe como usar uma arma etambm o que significa ser alvo de tiros.23

    Orson Welles, um homem que gostava do som da prpria voz, em seguida comeou a falar maisrpido, adotando um sotaque pesado de caubi. Em um crescendo, ele recomendou que osEstados Unidos escutassem esse lder patriota, inteligente e realista. Para muitos americanos queouviram o programa de rdio, essa foi a primeira vez em que se escutou o nome de OswaldoAranha. Welles, apesar de toda a linguagem teatral e as vozes bobas, prestara ao ministro e aoBrasil um grande servio.

    A apresentao radiofnica feita por Welles em tempos de guerra foi certeira se considerarmosum ponto: em Washington, onde Aranha j servira como embaixador do Brasil, ele era consideradoo principal interlocutor dos americanos na Amrica do Sul e podia contar com o apoio direto daCasa Branca. Os britnicos entenderam isso muito claramente. No entanto, em parte devido concorrncia com os Estados Unidos no mbito das relaes comerciais com o Brasil, eleselogiavam menos o carter de Aranha do que as celebridades americanas, tais como Frank eWelles. Nas palavras da embaixada britnica no Rio de Janeiro:

    O sr. Aranha tem charme e muito sagaz, mas o desejo de agradar e o otimismo nativo o levam muitas vezes a fazerpromessas que no devem ser entendidas ao p da letra. Ele manteve muitos contatos valiosos nos Estados Unidos,permanece firmemente dedicado ao desenvolvimento de relaes estreitas com aquele pas e pode ser considerado o maisimportante agente de influncia dos Estados Unidos na Amrica do Sul.24

    Quaisquer que fossem as deficincias que os britnicos pudessem acreditar que ele tivesse, Aranhapossua um dom raro para a poca no Brasil e na Amrica do Sul como um todo: uma viso demundo. No apenas uma ideia vaga, mas um conjunto de metas para seu pas e um plano com amelhor forma de atingi-las. Ele via onde o Brasil se encaixava na Amrica do Sul e no resto domundo naquela poca e queria mudar a posio do pas em ambas as esferas. Nisso, Aranha eranotavelmente diferente de seu velho amigo Vargas, um lder nacional que passava os dias detrabalho tentando desmantelar as antigas e poderosas elites brasileiras e gerenciar as alianasinstveis do pas. Seria um exagero sugerir que a nao era ingovernvel, pois no era. No entanto,govern-la era um trabalho de tempo integral ao qual Vargas se dedicava por inteiro. Ele, assim

  • como Aranha, tinha uma noo de como o Brasil poderia se encaixar nos sistemas regional einternacional. O ministro, contudo, tinha um plano claro de como concretizar melhor essas ideias,enquanto Vargas, atolado em tentativas de equilibrar as coalizes domsticas mutantes do Brasil,no o tinha. Em certo sentido, o presidente estava cego para tudo que no fossem os imperativospolticos imediatos de governar o Brasil; para tudo alm disso, ele confiava muitssimo em Aranhae Alzira, que o ajudavam a identificar ameaas, desafios e possibilidades distantes que ele talvezno percebesse.

    A aliana Vargas-Aranha teve problemas mesmo antes dos acontecimentos de junho e julho de1938. Houve inmeras vezes em que esses dois amigos brigaram e se reconciliaram, admitiuAlzira.25 Havia um sentimento tambm, entre muitos partidrios de Vargas, de que um diaAranha, cujas opinies favorveis democracia estavam esquerda das de Vargas, tentaria tomar opoder. De fato, durante a crise Dutra-Aranha de 1938, alguns partidrios de Vargas suspeitaramque o ministro estava tentando se tornar um ponto focal para os grupos brasileiros pr-democraciainsatisfeitos com o autoritarismo do Estado Novo. Houve uma sensao palpvel de alvio noPalcio Guanabara quando ele concordou em voltar atrs e continuar a frente da poltica externado Brasil.

    O alvio com o retorno de Aranha ao Ministrio das Relaes Exteriores foi compartilhado dooutro lado da cidade, na embaixada americana. O embaixador dos Estados Unidos, JeffersonCaffery, chegara ao Rio de Janeiro em 1937, aps exercer o mesmo cargo em Cuba. Em maio de1938, Caffery estava bastante satisfeito com a vida na cidade, vangloriando-se de que, depois demuito procurar, conseguira encontrar uma excelente casa no to boa quanto a do embaixadorda Argentina, ele reconhecia, mas um lugar cujo proprietrio tinha, pelo menos, se recusado aalug-lo para o embaixador britnico.26 Os comentrios de Caffery revelavam muito do que era ahierarquia diplomtica no Rio de Janeiro. O rival histrico do Brasil, a Argentina, ocupava aprimeira posio, enquanto a delegao americana procurava sobrepujar seus rivais britnicos nacapital.

    Caffery era um cavalheiro sulista, um advogado experiente e um diplomata de carreira que tinhaa confiana e a simpatia do Departamento de Estado.27 Alto, bem-vestido e educado, ele era, noentanto, um choro que reclamava com frequncia das condies inspitas do Rio de Janeiro nosdespachos oficiais ao Departamento de Estado.28 Contudo, apesar de suas queixas, Cafferyconsiderava seu posto o mais importante da Amrica do Sul e entrava em atrito com todos quetentavam minar sua autoridade.

    Os britnicos, muito naturalmente, desconfiavam de Caffery e eram hostis com ele. Na opiniodo Departamento de Estado, ele era incapaz de fazer algo errado,29 queixou-se Sir Noel Charles,o embaixador britnico no Rio de Janeiro, que tambm desgostava das origens irlandesas deCaffery e de sua religio, a catlica. O Foreign Office tinha uma opinio igualmente negativa deCaffery e enviou uma nota para acalmar Charles. Ela foi redigida com cautela; os primeirosrascunhos eram marcados por sentimentos anti-Caffery muito mais fortes, escritos a lpis porfuncionrios que tinham lidado diretamente com ele durante sua passagem por Cuba.Compreendo sua situao em ter como colega uma pessoa com uma personalidade desse tipo, o

  • que s pode complicar as relaes, j um tanto delicadas, entre nossos representantes e os dosEstados Unidos na Amrica Latina, dizia a nota para Charles. Um pensamento consolador que, na opinio de todos, o antecessor dele era ainda mais exasperante.30

    Embora aparentasse desinteresse em melhorar as relaes anglo-americanas durante seu mandatono Brasil, Caffery tomou providncias rpidas para mostrar o apoio dos Estados Unidos a Vargas eAranha. Os eventos de 11 de maio tinham apanhado os americanos um pouco de surpresa, masRoosevelt logo enviou a Vargas aquilo que os arquivos da embaixada descrevem como umtelegrama de felicitao por ter escapado do atentado contra a sua vida.31 As prises deintegralistas e a crise entre Dutra e Aranha, assim como as reaes dos alemes a esses eventos,foram todas monitoradas bem de perto pelos americanos. Caffery pode ter sido precipitado aodescartar os britnicos como srios rivais aos interesses dos Estados Unidos no Brasil, mascertamente no subestimava os alemes ou o desejo de Adolf Hitler de desenvolver laos maisestreitos com o regime brasileiro. O aumento das transaes comerciais brasileiras com a Alemanhae o programa de rearmamento massivo de