saes _democracia e capitalismo no brasil_ balanço e perspectivas

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ARTIGOS DEMOCRACIA E CAPITALISMO NO BRASIL: BALANÇO E PERSPECTIVAS Décio Saes Universidade Estadual de Campinas RESUMO O objetivo deste artigo é apresentar alguns indicadores do déficit democrático brasileiro no período republi- cano; e, a seguir, apontar os elementos determinantes desse déficit. Apoiando-se nesse duplo trabalho, o texto propõe finalmente uma avaliação das perspectivas da democracia no Brasil atual. PALAVRAS-CHAVE: democracia; autoritarismo; bloco no poder; hegemonia. INTRODUÇÃO Pertence quase ao senso comum a idéia de que a experiência republicana brasileira registra um déficit permanente de democracia. São incontáveis as análises que apontam para certas características crônicas da vida político-insti- tucional brasileira no século XX: o caráter sem- pre limitado — para os padrões do capitalismo central — das nossas diversas experiências democráticas; e a instabilidade da democracia no Brasil republicano. Valeria a pena voltar, ainda uma vez, ao assunto? Na verdade, a abor- dagem do déficit democrático brasileiro se cons- titui não apenas numa possibilidade mas tam- bém num imperativo para aqueles analistas que discordam do modo pelo qual a corrente domi- nante da Ciência Política brasileira: a) conceitua aquelas características: limitação, instabilidade; b) procura explicá-las teoricamente. Tais ana - listas, para os quais a metodologia de pesquisa proposta por Florestan Fernandes em A revo- lução burguesa no Brasil deve ser uma refe- rência fundamental1, têm portanto a incum- 1 Referimo-nos, mais especificamente, ao capítulo 7 desse livro: “O modelo autocrático-burguês de transformação capitalista”. Não estamos, aqui, en- dossando as conclusões a que chega Florestan Fer- nandes nesse texto; queremos tão somente proclamar a superioridade da metodologia de análise empregada por Florestan com relação àquela que predomina nos estudos sobre a democracia no Brasil. Ver FER- NANDES, 1975: 289-366. bência de cumprir duas tarefas. Em primeiro lugar, cabe-lhes reconceituar (ao invés de re- jeitar liminarmente) os indicadores de déficit de- mocrático brasileiro. Em segundo lugar, eles de- vem buscar uma explicação teórica, para esse déficit democrático, que se constitua numa efetiva alternativa àquela predominante nos estudos sobre a vida política brasileira. Desem- penhando essas duas tarefas, os analistas políti- cos estarão aptos a examinar por um outro ân- gulo a vida política no Brasil atual; bem como a propor uma nova reflexão sobre as perspectivas da democracia nesse contexto. O texto que se segue apresenta algumas idéias sobre os indica- dores do déficit democrático brasileiro, bem co- mo sobre os elementos determinantes da concre- tização desse déficit. E se serve, a seguir, dessas idéias na avaliação das perspectivas da democra- cia no Brasil. 1. O CARÁTER LIMITADO DAS EXPERIÊN- CIAS DEMOCRÁTICAS NO BRASIL RE- PUBLICANO É quase consensual, entre os analistas, que as duas primeiras experiências democráticas do Brasil republicano — a de 1889-1930 e a de 1945-1964 — tiveram um caráter limitado. Isso quer dizer: a forma de Estado e o regime político não se revestiram, nesses dois períodos, de todos os atributos que podemos detectar nas insti- tuições políticas dos países capitalistas centrais habitualmente qualificadas como “democráti- cas”. A nosso ver, essa observação é justa. O

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  • ARTIGOS

    DEMOCRACIA E CAPITALISMO NO BRASIL: BALANO E PERSPECTIVAS

    Dcio Saes Universidade Estadual de Campinas

    RESUMO

    O objetivo deste artigo apresentar alguns indicadores do dficit democrtico brasileiro no perodo republicano; e, a seguir, apontar os elementos determinantes desse dficit. Apoiando-se nesse duplo trabalho, o texto prope finalmente uma avaliao das perspectivas da democracia no Brasil atual.

    PALAVRAS-CHAVE: democracia; autoritarismo; bloco no poder; hegemonia.

    INTRODUO

    Pertence quase ao senso comum a idia de que a experincia republicana brasileira registra um dficit permanente de democracia. So incontveis as anlises que apontam para certas caractersticas crnicas da vida poltico-insti- tucional brasileira no sculo XX: o carter sempre limitado para os padres do capitalismo central das nossas diversas experincias democrticas; e a instabilidade da democracia no Brasil republicano. Valeria a pena voltar, ainda uma vez, ao assunto? Na verdade, a abordagem do dficit democrtico brasileiro se constitui no apenas numa possibilidade mas tambm num imperativo para aqueles analistas que discordam do modo pelo qual a corrente dominante da Cincia Poltica brasileira: a) conceitua aquelas caractersticas: limitao, instabilidade; b) procura explic-las teoricamente. Tais analistas, para os quais a metodologia de pesquisa proposta por Florestan Fernandes em A revoluo burguesa no Brasil deve ser uma referncia fundam ental1, tm portanto a incum

    1 Referimo-nos, mais especificamente, ao captulo 7 desse livro: O modelo autocrtico-burgus de transformao capitalista. No estamos, aqui, endossando as concluses a que chega Florestan Fernandes nesse texto; queremos to somente proclamar a superioridade da metodologia de anlise empregada por Florestan com relao quela que predomina nos estudos sobre a democracia no Brasil. Ver FERNANDES, 1975: 289-366.

    bncia de cumprir duas tarefas. Em primeiro lugar, cabe-lhes reconceituar (ao invs de rejeitar liminarmente) os indicadores de dficit democrtico brasileiro. Em segundo lugar, eles devem buscar uma explicao terica, para esse dficit democrtico, que se constitua numa efetiva alternativa quela predominante nos estudos sobre a vida poltica brasileira. Desempenhando essas duas tarefas, os analistas polticos estaro aptos a examinar por um outro ngulo a vida poltica no Brasil atual; bem como a propor uma nova reflexo sobre as perspectivas da democracia nesse contexto. O texto que se segue apresenta algumas idias sobre os indicadores do dficit democrtico brasileiro, bem como sobre os elementos determinantes da concretizao desse dficit. E se serve, a seguir, dessas idias na avaliao das perspectivas da democracia no Brasil.

    1. O CARTER LIMITADO DAS EXPERINCIAS DEMOCRTICAS NO BRASIL REPUBLICANO

    quase consensual, entre os analistas, que as duas primeiras experincias democrticas do Brasil republicano a de 1889-1930 e a de 1945-1964 tiveram um carter limitado. Isso quer dizer: a forma de Estado e o regime poltico no se revestiram, nesses dois perodos, de todos os atributos que podemos detectar nas instituies polticas dos pases capitalistas centrais habitualmente qualificadas como democrticas. A nosso ver, essa observao justa. O

  • problema, entretanto, comea quando ela se acopla a uma desconsiderao da diferena existente entre as limitaes registradas num e noutro caso: a democracia de 1889-1930 e a democracia de 1945-1964. Essa desconsiderao no resulta, nos melhores cientistas polticos, de um desconhecimento do processo histrico concreto; na verdade, ela tem uma fundamentao terica precisa. A saber: a suposio de que algum fator transhistrico a fraqueza da sociedade civil diante do Estado, a fora do patrimo- nialismo ou o carter autoritrio da cultura nacional funciona regularmente, no Brasil, como dispositivo limitador de toda e qualquer experincia democrtica. Caso se parta dessa suposio, chegar-se- seguramente concluso de que eventuais diferenas entre as diversas experincias democrticas concernem aos seus aspectos secundrios, sendo o seu aspecto fundamental a filiao comum a um trao permanente da evoluo da sociedade brasileira.

    A nosso ver, a democracia de 1889-1930 e a democracia de 1945-1964 se diferenciam, na sua limitao, pelo fato de se relacionarem, uma a uma, com fases distintas da evoluo da formao social brasileira. Abordemos, em primeiro lugar, a democracia da Primeira Repblica (1889-1930), com vistas a: a) apontar as limitaes a impostas forma de Estado democrtico e ao regime poltico democrtico; b) a- presentar os elementos que determinam a imposio de tais limitaes. Por que se poderia afirmar que essa democracia no por acaso, qualificada por muitos autores como uma democracia oligrquica teve um carter limitado? E visvel que o pluralismo partidrio no se constituiu, a despeito de no estar constitucionalmente proscrito, numa possibilidade poltica concreta nesse perodo. O controle estrito exercido por um nico partido poltico o Partido Republicano sobre os poderes Executivo e Legislativo, tanto no plano nacional quanto no plano regional, inviabilizou a ocorrncia da alternncia de partidos diversos o mais radical indicador da efetividade do pluripar- tidarismo frente do governo, num ou noutro plano.

    Estamos portanto diante de uma democracia (j que a forma de Estado e o regime poltico implicam, a, o funcionamento do Parlamento e

    a realizao regular de eleies para o Executivo e o Legislativo, em todos os nveis). Tal democracia tem, porm, um carter limitado, j que ela jamais viabiliza o estabelecimento de uma efetiva alternncia partidria e, conseqentemente, de um pluripartidarismo de fato. Diante desse quadro, seria em princpio tentador recorrer a um conhecido conceito de Maurice Duverger: a democracia da Primeira Repblica brasileira seria uma democracia fundada, no num sistema efetivamente pluripartidrio, e sim num sistema de partido dominante (isto , um sistema que implicaria a hegemonia nacional de um partido sobre os demais, ao longo de todo um perodo histrico; uma situao obviamente diferente da excluso coercitiva do conjunto dos partidos por um partido dirigente, controlador do aparelho de Estado). Todavia, quando se a- profunda a anlise do processo poltico desse perodo, pode-se constatar que o funcionamento de um sistema de partido dominante foi, a, mais aparente que real. Na verdade, as caractersticas do sistema partidrio da Primeira Repblica brasileira so relativamente diferentes daquelas presentes em sistemas partidrios aos quais se poderia atribuir com mais propriedade a qualidade de sistemas de partido dominante como os do M xico ps-revolu- cionrio e dos recm-formados Estados africanos do perodo ps-colonial. O fato de um nico partido poltico o Partido Republicano ter exercido uma duradoura hegemonia nacional ao longo da Primeira Repblica brasileira poderia nos fazer atribuir ao sistema partidrio, assim caracterizado, um lugar central dentro do processo poltico do perodo em questo. Ou seja: a durabilidade do predomnio nacional do Partido Republicano poderia nos levar concluso de que a instabilidade partidria teria exercido um controle estrito sobre o aparelho de Estado e, conseqentemente, sobre o processo decisrio estatal. Ocorre, entretanto, que o processo poltico da Primeira Repblica brasileira teve uma configurao distinta. Os diversos segmentos regionais da frao hegemnica da classe dominante a burguesia comercial ligada exportao de produtos primrios tenderam, mais que construo de uma organizao partidria de cunho nacional, a se articular politicamente por uma via extra-partidria: a poltica dos governadores . Tal poltica representou um

  • acordo poltico direto entre a Presidncia da Repblica, os governos estaduais, o Congresso e os legislativos estaduais. Esse acordo amplo fixava, na prtica, regras permanentes para o exerccio da hegemonia poltica no seio do bloco no poder. Ao promover a articulao poltica direta sem uma mediao especificamente partidria dos diferentes segmentos regionais da frao hegemnica da classe dominante, a poltica dos governadores enfraqueceu a vida partidria das classes dominantes regionais. Tornou-se assim invivel a formao de um partido dominante de carter nacional; da o artificialismo e a efemeridade de partidos nacionais como o Partido Republicano Federal (PRF) de Francisco Glicrio ou o Partido Republicano Conservador (PRC) de Pinheiro Machado.

    E nos termos acima, portanto, que se deve conceituar a natureza limitada da chamada democracia oligrquica da Primeira Repblica brasileira. Ou seja: tal democracia se mostrou limitada no apenas por inviabilizar a efetiva alternncia de diferentes partidos polticos frente do governo (o que significa: limitada, na comparao com as democracias tpicas dos pases capitalistas centrais). Ela tambm se mostrou limitada por excluir do funcionamento real de um sistema de partido dominante (o que significa: limitada, na comparao at mesmo com uma variante de democracia presente em certos pases perifricos). Seria porm excessivo, no obstante essas limitaes, retirar a forma de Estado e o regime poltico da Primeira Repblica brasileira do rol das democracias do sculo XX, a menos que se considere o que no o nosso caso imprpria a atribuio do qualificativo democrtico a Estados e regimes polticos cujo funcionamento concretiza uma dominao de classe. que o exerccio da dominao de classe implicou, num caso histrico como o que estamos examinando, a vigncia formal do sufrgio universal e a realizao peridica de eleies para o Executivo e o Legislativo. E a especificidade dessa combinao de elementos (coexistncia da dominao de classe e da encenao da representao poltica do Povo-Nao) deve ser levada em conta pelo analista poltico, por mais crtica que seja a sua postura.

    Como explicar essa dupla lim itao da

    democracia em nosso primeiro perodo republicano? Para toda uma corrente do pensamento poltico brasileiro, o carter oligrquico de tal democracia apenas mais uma manifestao histrica, entre muitas, de algum trao permanente da sociedade brasileira: a fraqueza da sociedade civil diante do Estado, a fora do patri- monialismo ou o carter autoritrio da cultura nacional. Aqui, pretendemos apenas indicar, de um modo ainda bastante genrico, um caminho alternativo para a explicao do dficit democrtico agora reconceituado como uma dupla limitao da democracia constatado nesse perodo. A saber: esse dficit democrtico deve ser relacionado, no com algum fator transhistrico, e sim com as caractersticas econmicas e polticas prprias a uma etapa especfica do processo histrico brasileiro de transio para o capitalismo; noutros termos, prprias a uma etapa especfica da revoluo brasileira, em sentido lato2, no Brasil.

    Um aspecto fundamental da primeira etapa do processo global de Revoluo Burguesa no Brasil consiste no fato de que a revoluo poltica burguesa isto , a formao de um Estado burgus no se fez acompanhar de um processo de repartio da terra (reforma agrria) que levasse destruio da grande propriedade fundiria. Nesse sentido, pode-se dizer que a revoluo burguesa, em sentido lato, esteve aqui despida, desde o incio, de uma dimenso democrtica . A primeira etapa do processo global de revoluo burguesa no Brasil apresenta, portanto, duas dimenses distintas. De um lado, a revoluo poltica de 1888-1891 cujos momentos fundam entais foram a Abolio da Escravido, a Proclamao da Repblica e a Assemblia Constituinte determinou a liquidao do escravismo e a destruio do Estado im-

    2 Aqui, concebemos a revoluo burguesa em geral (ou revoluo burguesa num sentido amplo) como o conjunto dos aspectos da passagem ao capitalismo: formao de novas relaes de produo, de uma nova configurao da diviso do trabalho, de novas classes sociais, de uma nova ideologia dominante, de uma nova estrutura jurdico-poltica. Quanto revoluo poltica burguesa (ou revoluo burguesa no sentido estrito): ela aqui concebida, basicamente, como a transformao da estrutura jurdico-poltica; isto , como a formao do Estado burgus.

  • perial-escravista. Esse processo destrutivo significou, num plano afirmativo, a construo de um Estado nacional burgus, cujo funcionamento implicaria: a) a fixao de todos os homens, independentem ente de sua condio socioeconmica, como sujeitos individuais de direito; b) a adoo, na organizao de seu prprio aparelho, de critrios universalistas e formalmente meritocrticos (isto , a decretao da possibilidade de acesso de qualquer indivduo agora declarado cidado ao aparelho de Estado, desde que constatada previamente sua competncia). A formao do Estado Nacional Burgus, na conjuntura poltica de 1888-1891, implicou a instaurao de condies jurdicas e ideolgicas (a libertao de todos os homens sujeitos a trabalho compulsrio, o incentivo imigrao estrangeira) necessrias formao e ao desenvolvimento do mercado de trabalho; e, conseqentemente, ao nascimento da grande indstria moderna. De outro lado, a ausncia de uma Revoluo agrria, concomitante revoluo poltica burguesa, determinou a conservao da grande propriedade fundiria em plena etapa de surgimento da grande indstria moderna. E mais especificamente: o latifndio escravista, nesse momento histrico, nem cedeu lugar pequena propriedade agrria e agricultura familiar; nem foi substitudo pela grande empresa agrcola, fundada na mecanizao e no trabalho assalariado. Na verdade, a plantao escravista se metamorfoseou, por obra da liquidao do escravismo, em latifndio feudal; ou, para recorrer expresso de Jacob Go- render (s.d.), em latifndio apoiado em formas camponesas dependentes (onde o campons detm o uso, porm no a propriedade da terra em que trabalha; envolvendo-se conseqentemente, tanto do ponto de vista econmico quanto do ponto de vista ideolgico, numa relao de dominao e dependncia pessoais com o grande proprietrio que lhe cede o uso da terra).

    Sublinhe-se igualmente que, correspondendo essa etapa inicial da transio para o capitalismo no Brasil ao momento histrico do nascimento da grande indstria moderna, natural que a agricultura, a, domine em mltiplos sentidos a indstria. Como o latifndio apoiado em formas camponesas dependentes ocupa, nessa

    etapa, um lugar central dentro da economia agrria, pode-se concluir que, na Primeira Repblica brasileira, o contingente das classes populares inserido na esfera ideolgica pr-capi- talista sensivelmente superior quele j integrado esfera ideolgica propriamente capitalista. Em termos mais claros: a porcentagem de trabalhadores subjugados pelos sentimentos de lealdade pessoal para com o proprietrio de terras e de conseqente fidelidade aos chefes polticos por ele apoiados bastante superior porcentagem de trabalhadores j tomados pelo sentimento de cidadania (isto , de liberdade civil e de independncia poltica). Esta , a nosso ver, a causa fundamental da primeira limitao ausncia de um pluralismo partidrio efetivo e, conseqentemente, das condies necessrias concretizao da alternncia imposta democracia na Primeira Repblica brasileira. Em 1894 isto , com o fim do perodo republicano militar , o Estado burgus recm-forma- do se articula a instituies polticas de carter democrtico-presidencialista, fundadas em dois princpios: a) realizao regular de eleies para o Executivo e o Legislativo em todos os nveis;b) vigncia do sufrgio universal3. Todavia, as caractersticas econmicas e ideolgicas, acima mencionadas, da formao social brasileira na etapa inicial da transio para o capitalismo inviabilizaram a dinamizao democrtica dessas instituies polticas pela via da operao de um pluripartidarismo efetivo. Estando as classes populares rurais sujeitas, na sua maior parte, dominao pessoal exercida pelos grandes proprietrios de terras, elas se convertem no plano eleitoral em massa de manobra disposio dos coronis (latifundirios e chefes polticos locais). Desse modo, o campesinato da Primeira

    3 Na vigncia desse segundo princpio reside o carter progressista da democracia oligrquica de 1889- 1930. A Constituio brasileira de 1891 no abrigava nenhum sistema, de carter censitrio (por nvel de renda ou de propriedade) ou outro (por gnero ou por raa), de limitao do corpo de eleitores ou de elegveis; e isso num momento histrico em que tais processos de excluso eleitoral vigoravam, isolada ou conjugadamente, na maior parte dos pases capitalistas centrais. Uma exposio minuciosa das limitaes impostas democracia nesses pases se encontra em THERBORN (1977).

  • Repblica se acha colocado por obra da vigncia de relaes de dominao e dependncia pessoais no campo a servio do partido poltico organicamente comprometido com o interesse geral das classes dominantes: o Partido Republicano. Por essa razo, nenhum partido campons se forma ao longo da Primeira Repblica, a despeito de o contingente de trabalhadores rurais ser, nesse perodo, amplamente suprior ao contingente de trabalhadores urbanos. Um partido campons s poderia surgir ali onde o campesinato dependente tivesse sido maciamente substitudo por um campesinato independente (vale dizer, pequeno proprietrio; ou parcelar).

    O processo social que acabamos de descrever rapidamente tem, entretanto, implicaes polticas mais amplas. O estrito controle, exercido pelos coronis, sobre o comportamento eleitoral das massas rurais no inviabiliza apenas a e- mergnciade partidos populares rurais; ele tambm bloqueia a constituio de partidos trabalhistas urbanos voltados para a participao no jogo poltico-institucional. As classes trabalhadoras urbanas tm conscincia de sua impo- tnbia eleitoral, decorrente da inviabilidade poltica de alianas eleitorais com as massas rurais (estando estas subjugadas, como j se viu, poltica dos coronis). Por isso, uma poltica independente isto , no controlada pelas classes dominantes ser perseguida pelas classes trabalhadoras urbanas, no atravs da organizao de partidos trabalhistas direcionados para a participao eleitoral, e sim atravs do apoio a outros instrumentos de ao: a greve geral (classe operria), a revolta tenentista (classe mdia).

    A cena poltica da Primeira Repblica Brasileira se revela portanto, em primeiro lugar, carente de partidos populares, rurais ou urbanos. Sublinhe-se, em segundo lugar, que no chega a se constituir, nesse perodo histrico, sequer um pluripartidarismo estrito de classe dominante. Ambos os aspectos do sistema partidrio oligrquico so sobejamente conhecidos. Para os nossos propsitos tericos e metodolgicos, mais vale destacar a relao existente entre o primeiro e o segundo aspectos. Analisando a sociedade capitalista, Umberto Cerroni (1982) sustenta na sua teoria do partido poltico que a tendncia espontnea da classe dom inante

    (burguesia) se fazer representar politicamente pelo Estado, organicamente comprometido com a preservao da ordem social vigente e, conseqentemente, com a defesa dos interesses gerais da classe social que dela se beneficia. Garantida pelo Estado burgus, a classe dominante se torna anti-associativista; ora, isto no pode ocorrer com as classes trabalhadoras, para as quais a construo de uma organizao poltica independente o partido o nico caminho que leva ruptura da ordem social vigente. Por isto, nas sociedades capitalistas concretas, os partidos polticos das classes trabalhadoras tendem a surgir antes dos partidos polticos das classes dominantes. E mais: o surgimento destes tende a se configurar como um processo poltico induzido; vale dizer, como uma resposta poltica direta (sem mediao estatal) das classes dominantes ao surgimento de partidos polticos das classes trabalhadoras. Esta resposta necessria: se os partidos polticos das classes trabalhadoras funcionam objetivamente quaisquer que sejam as intenes da direo partidria como instrumentos de presso sobre o Estado burgus, impe-se que as classes dominantes ocupem o seu lugar dentro do campo de jogo recm- instalado e criem mecanismos institucionais que contrabalancem essa presso4. Aplicando-se essa form ulao terica na anlise da vida partidria na Primeira Repblica brasileira, conclui-se que a ausncia de um partido latifundirio qualidade que, advirta-se, no se pode atribuir ao Partido Republicano relaciona-se diretamente com a inexistncia de qualquer partido campons; e que a ausncia de um partido industrial qualidade que no se poderia atribuir a nenhuma dissidncia do Partido Republicano, nem mesmo ao Partido Democrtico de So Paulo relaciona-se diretamente com a inexistncia de qualquer partido

    4 Ver CERRONI (1982). Cerroni afirma pgina 14: [...] no um acidente o fato de que, em todos os pases evoludos, o partido que primeiro se atribui uma organizao difusa e um programa nacional exatamente o partido operrio-socialista (1982: 14). E, pgina 15, Cerroni pondera, de modo lapidar: Tpica da burguesia moderna a idia de que a sociedade poltica nasce e vive apenas para garantir o livre dinamismo das esferas privadas; tpica do proletariado moderno, ao contrrio, parece ser a instncia

  • trabalhista urbano, de massa e institucional. Em suma: o dficit partidrio das classes dominadas se desdobra em dficit partidrio das classes dominantes.

    Mas a primeira etapa do processo global de Revoluo Burguesa no Brasil apresenta tambm um outro aspecto fundamental: ela implica a preservao da situao de dependncia nos planos econmico, tecnolgico e poltico da formao social brasileira com relao aos pases capitalistas centrais; bem como a configurao de um padro retardatrio de industrializao (cuja evoluo se mostra atrasada, quando comparada evoluo industrial dos pases capitalistas de que a economia brasileira depende). Essa dupla caracterstica natureza dependente da formao social brasileira, natureza retardatria do processo brasileiro de industrializao a nosso ver o fundamento da segunda limitao imposta democracia na Primeira Repblica brasileira: o funcionamento mais aparente que real de um sistema de partido dominante. Para os fins que nos interessam aqui, anote-se que a dependncia se exprime, no plano da composio das classes dominantes e da organizao do bloco no poder, atravs da preponderncia econmica e da hegemonia poltica de uma burguesia-mediadora ou bur- guesia-tampo5 isto , uma burguesia comercial e bancria envolvida na exportao de produtos primrios sobre a classe fundiria e sobre a burguesia industrial nascente. Assim como comissrios, exportadores e banqueiros

    oposta: a instncia da liberdade mediante a associao. Na ausncia de organizao, digamos assim, o burgus ou o proprietrio encontra a expanso da sua liberdade, o proletrio encontra uma trava sua liberdade. Sozinho, o burgus-proprietrio se sente mais forte e seguro; sozinho, o proletrio se sente menos seguro e menos forte. Da a tendncia do mundo burgus a no exprim ir form as de organizao que vo alm do Estado garantidor, de um direito solido (CERRONI, 1982: 15).

    5 Florestan Fernandes, no ensaio j mencionado, que prope a expresso burguesia-tampo para caracterizar a burguesia tpica de economias coloniais e neocoloniais em transio para o capitalismo e para a emancipao nacional, da qual a melhor ilustrao seria a burguesia com pradora ch in esa . Cf. FERNANDES, 1975: 326.

    dominam, atravs dos mecanismos de financiamento, os agricultores, essa frao burguesa, no seu conjunto, controla o aparelho de Estado nos planos nacional e regional (pelo menos nas regies onde o desenvolvimento da agricultura de exportao foi suficiente para provocar a diferenciao da burguesia comercial de mercado externo com relao classe fundiria). Esse controle significa advirta-se logo, para evitar mal-entendidos o alinhamento objetivo das polticas estatais com os interesses econmicos gerais dessa frao. Quanto classe fundiria: sendo ela economicamente dominada pela burguesia comercial-exportadora, acaba tam bm se submetendo politicamente, em ltima instncia, a essa frao burguesa. Vejamos a natureza dessa submisso poltica. A classe fundiria se configura, no obstante os fatos de exercer poder socioeconmico sobre o campesinato dependente e de controlar o chamado poder local (e nesses dois planos reside a sua fora), como o plo subalterno de uma aliana poltica selada com a burguesia comercial-exportadora (e nesse plano especfico reside a sua fraqueza). Obtendo do Estado (controlado pela burguesia comercial-exportadora), nos nveis nacional e regional, garantias quanto preservao do padro vigente de distribuio da propriedade agrria e do controle exercido pelos coronis sobre o poder local, a classe fundiria presta, em troca, um servio poltico de natureza eleitoral burguesia comercial-exportadora. Ou seja: a classe fundiria garante, atravs da organizao do processo eleitoral no campo (o que significa: o exerccio de um controle estrito sobre o voto do campesinato dependente), a vitria eleitoral da burguesia comercial-exportadora e conseqentemente a legitimao (por mais limitada que seja) da hegemonia poltica dessa frao burguesa.

    Agora, devemos refletir sobre a relao existente entre esse quadro a composio das classes dominantes e a organizao do bloco no poder, no contexto de uma formao social dependente iniciando a sua transio para o capitalismo e as caractersticas da vida partidria na Primeira Repblica brasileira. Ainda que ocupando um lugar preponderante dentro da aliana poltica latifundirio-burguesa, a burguesia comercial-exportadora no pode se lanar numa

  • empreitada de estruturao do Partido Republicano como um partido efetivamente dominante, dotado de vida poltica prpria e de carter nacional. Tal empreitada se configuraria como uma operao poltica de alto risco para a preservao de sua hegemonia poltica no seio do bloco no poder. Dados o carter dominantemente agrrio da formao social brasileira e a considervel superioridade numrica da classe fundiria com relao burguesia comercial- exportadora, nesse perodo histrico, qualquer tentativa de dinamizao da vida interna do nico partido institucional o Partido Republicano poderia redundar na criao de um novo espao poltico, potencialmente til para a classe fundiria numa luta eventual pela modificao dos termos de seu relacionamento poltico com a burguesia comercial-exportadora. Em qualquer caso, tal dinamizao seria inconveniente na tica da frao hegemnica, pois ela induziria o reforo da ao partidria diante de um aparelho de Estado j controlado, desde o incio da Repblica, pelo capital comercial-exportador. Por essa razo, tal frao se inclinar, ao longo da Primeira Repblica brasileira, por prticas polticas informais sobretudo a poltica dos governadores , em detrimento de prticas partidrias institucionalizadas (debates internos, convenes amplas etc.). Como ilustrao da atitude reticente da burguesia comercial-exportadora diante de qualquer tentativa de dinamizao da vida partidria, interessante mencionar que, na dcada de 1900, a classe fundiria paulista, ligada cafeicultura, buscava sua incorporao em termos coletivos6 isto , como Partido da Lavoura ao Partido Republicano Paulista. Ora, a Comisso Executiva desse partido controlada por comissrios, exportadores e banqueiros jamais atendeu a essa reivindicao, contestada de resto na sua prpria legitimidade (a poltica partidria seria uma atividade prpria aos homens da cidade dotados dos nveis de cultura e de civilizao indispensveis para tanto , devendo portanto manter

    6 O exem plo mais conspcuo de incorporao coletiva a um partido poltico o do Labour Party britnico, ao qual estavam filiados, na primeira metade da dcada de 1960, 86 sindicatos, bem como cinco sociedades socialistas ou cooperativas. Conferir MABILEAU e MERLE, 1965: 57-86.

    distncia os agricultores ou lavradores; vale dizer, a classe fundiria). A rigor, o nico fator de dinamizao do sistema unipartidrio vigente na Primeira Repblica brasileira foi o processo intermitente de emergncia de dissidncias internas no Partido Republicano, por ocasio das sucesses presidenciais. Mas tais dissidncias tiveram um carter superficial, j que no corresponderam emergncia de novos interesses de frao por exemplo, os interesses industriais no sistema partidrio institucional; consistiram portanto, conforme a expresso gramsci- ana, em movimentos inorgnicos. Esse carter atestado pelo fato de tais dissidncias serem regularmente reabsorvidas no Partido aps cada insucesso eleitoral (processo que, excepcionalmente, no chegou a atingir o Partido Democrtico de So Paulo, j que a reconciliao com o Partido Republicano, bem como a conseqente reabsoro do primeiro no segundo, foram inviabilizadas pela deflagrao de um movimento poltico-miIitar: a Revoluo de Trinta).

    Para completarmos a caracterizao da segunda limitao imposta democracia na Primeira Repblica brasileira, impe-se ainda exploraras implicaes polticas do carter no s dependente como tambm retardatrio da industrializao no Brasil. Aqui, a grande indstria moderna nasce no no bojo de uma economia j manufatureira, e sim dentro de uma economia primrio-exportadora; vale dizer, uma economia integrada ao mercado mundial enquanto exportadora de produtos primrios e, conseqentemente, votada a se manter numa situao de dependncia dentro da economia mundial, j que liderada pelas economias industriais. Alm disso, h atraso no nascimento da grande indstria moderna no Brasil; ele ocorre aproximadamente 100 anos depois da irrupo do moderno sistema fabril nas economias centrais, com a Inglaterra frente. Tudo isso significa que a burguesia industrial brasileira estar dispensada, na implantao da grande indstria moderna, de revolucionar formas de produo anteriores (artesanais, manufatura) atravs da criao, por iniciativa prpria, de novos instrumentos de trabalho (as mquinas). No h Revoluo industrial no Brasil; e sim, to somente a incorporao dos frutos da Revoluo Industrial deflagrada pelos outros (ou seja: as

  • economias centrais). A tecnologia industrial ser importada dos pases capitalistas centrais pela burguesia brasileira; e os recursos financeiros necessrios para tanto sero as divisas geradas pela exportao de produtos primrios (ou por um outro ngulo: divisas propiciadas pela ao econmica da burguesia comercial-exporta- dora). Ora, a dependncia econmica da burguesia industrial diante da burguesia comercial- exportadora se constitui no fundamento da dependncia poltica da primeira com relao segunda; dependncia essa que se exprime inclusive no plano partidrio. Como j vimos anteriormente, no emergiu na Primeira Repblica nenhum partido trabalhista de massa que induzisse a formao de um Partido industrial destinado ao combate anti-proletrio. Agregue-se agora que, pelas razes acima apontadas, tambm no se delinearam na Primeira Repblica condies polticas capazes de induzir a formao de um Partido industrial votado ao combate anti-agrrio. A burguesia industrial emergente s restou portanto o relacionamento com o Partido Republicano, controlado pela burguesia comercial-exportadora. Mas a dependncia econmica, que explica a incapacidade de a burguesia industrial construir um Partido industrial, tambm o fator determinante da fragilidade do seu relacionamento com aquele partido poltico. Os industriais, vivendo sombra da expanso da econom ia agrcola de exportao, no encontraram nesse perodo histrico razes suficientemente poderosas para justificar a deflagrao de uma luta interna com vistas a retirar das mos da burguesia comercial- exportadora frao preponderante naquela economia o controle do aparelho partidrio republicano. Deixaram portanto de se constituir em fator de dinamizao do nico partido poltico das classes dominantes; e conferiram, pelo seu abstencionismo, ainda mais liberdade burguesia com ercial-exportadora para: a) desvalorizar a instncia partidria; b) fazer poltica, no seio das classes dominantes, atravs de acordos suprapartidrios (ou, no melhor dos casos, extrapartidrios).

    Tambm quase consensual, entre os estudiosos, que a experincia democrtica brasileira de 1945-1964 ainda apresenta um carter limitado. Essa limitao , porm, de natureza dis

    tinta daquela vigente na Primeira Repblica. Se neste perodo histrico vigora e de modo precrio, como procuramos indicar anteriormente um sistema uni-partidrio, j no perodo histrico aberto pela derrubada do Estado Novo entra em operao um sistema pluripar- tidrio, cujo ncleo ocupado por trs legendas: PSD, PTB e UDN. Constatando esse fato inegvel a superao do uni-partidarismo no perodo ps-Estado Novo , poderamos ser induzidos a classificar a democracia brasileira de 1945-1964 no mesmo nvel das democracias vigentes nos pases capitalistas centrais; isto , como democracias onde o pluralismo poltico se desenvolveria at o limite das suas possibilidades dentro do Estado capitalista. Ocorre entretanto e j aqui surge uma limitao que o sistema pluripartidrio de 1 945 -1 9 6 4 ocupa, no processo decisrio estatal (ou seja: na implementao da poltica de Estado), um lugar menos importante que aquele detido pelos sistemas pluripartidrios nos pases capitalistas centrais. Quando se estabelecem correias de transmisso entre os partidos polticos da classe dominante e a burocracia de Estado, pode-se afirmar que o sistema partidrio desempenha, mesmo que indiretamente, um papel importante na implementao da poltica de Estado, no obstante a ascendncia crnica, no seio do Estado capitalista, da burocracia estatal sobre o lugar institucional preferencialmente votado ao partidria: o Parlamento. Ora, na democracia brasileira de 1 9 45-1964 , o sistema partidrio se mantm aqum desse papel. Isto no ocorre entretanto, como na Primeira Repblica, pelo fato de a frao hegemnica da classe dominante: a) governar atravs de acordos polticos extrapartidrios (poltica dos governadores); b) descartar portanto a prtica do governo partidrio;c) desvalorizar conseqentemente a instncia partidria. Tal se d em virtude de ainda subsistir, nesse perodo histrico, uma crise de hegemonia no seio do bloco no poder; crise essa instaurada pela Revoluo de Trinta . No contexto dessa crise (que poderamos caracterizar sumariamente como uma situao poltica em que a burguesia com ercial-exportadora foi derrotada sem que a burguesia industrial emergente tenha conquistado a vitria), a burocracia estatal se converte em fora poltica autnoma\ e conquista a preponderncia absoluta dentro do

  • processo decisrio estatal, mesmo que para promover uma poltica de desenvolvimento capitalista em ltima instncia relacionada com os interesses econmicos a longo prazo da burguesia industrial. Nessa situao, no se estabelecem correias de transmisso entre os partidos polticos da classe dominante e a burocracia de Estado. Ao contrrio, esta que logra ativar de modo controlado a vida partidria, viabilizando desse modo: a) a legitimao em termos democrticos do Estado capitalista; b) a ocultao da centralidade do Partido burocrtico dentro do processo decisrio estatal. Lembre-se, a esse respeito, que partidos polticos como o PSD e o PTB foram praticamente criados pela burocracia de Estado: o PSD nasceu ligado s interventorias do Estado Novo, e o PTB foi uma criao do Ministrio do Trabalho no fim desse mesmo perodo. Consigne-se igualmente que esses dois partidos forneceram continuamente, no Parlamento, base de apoio poltica estatal conduzida substancialmente pela burocracia de Estado. Por essas razes, no se formaram, no perodo 1945- 1964, governos rigorosamente partidrios . Ou seja: a implementao da poltica de Estado no foi, nesse perodo histrico, prioritariamente a expresso de algum programa partidrio; ela obedeceu, antes, s inclinaes ideolgicas e polticas imperantes na alta burocracia de Estado. Podemos portanto concluir que uma limitao especfica, distinta daquela registrada na Primeira Repblica, imps-se democracia no perodo 1945-1964: o sistema partidrio, a despeito de seu carter pluralista, confrontou-se em condies altamente desfavorveis, no terreno do processo decisrio estatal, com a burocracia de Estado, ento organizada como fora poltica autnoma.

    Para explicar a limitao imposta democracia de 1945-1964 pela interveno poltica bonapartista da burocracia estatal, devemos recorrer ao mesmo mtodo de anlise anteriormente empregado. Tal limitao no determinada por nenhum fator transhistrico, como por exemplo a crnica fraqueza da sociedade civil diante do Estado no Brasil. Tambm esta limitao se relaciona com uma caracterstica especfica da transio para o capitalismo no Brasil: a natureza dependente e retardatria do processo brasileiro de industrializao. Esta no se confi

    gura aqui como um processo de evoluo interna das formas de produo industrial; isto , como a trajetria do artesanato manufatura, e desta grande indstria. Como esclarecem os historiadores econmicos, a industrializao brasileira se desenvolveu sobre a base da incorporao de conquistas tecnolgicas realizadas pela indstria dos pases capitalistas centrais. Para os fins que nos movem neste artigo, importante destacar, em primeiro lugar, que a industrializao brasileira, sendo dependente e retardatria, desenvolveu-se em ritmo acelerado\ ou seja, queimando etapas . Essa afirmao pode ser explorada em dois sentidos diversos. De um lado, nossa industrializao se revela acelerada quando comparada com a industrializao dos pases capitalistas centrais; o tempo fsico que medeia entre o surgimento das primeiras unidades produtivas conformes com o tipo grande indstria moderna e a implantao, por exemplo, da indstria automobilstica bem maior no caso destes pases que no caso brasileiro. De outro lado, a industrializao brasileira tambm se mostra acelerada quando ela comparada com o estgio do desenvolvimento interno das foras produtivas; mais natural seria caso inexistisse a articulao dependente com a economia mundial que a economia brasileira, de carter ainda basicamente agrcola no fim do sculo XIX, passasse por um estgio (intermedirio) manufatureiro antes de se converter em economia propriamente industrial.

    Qual a implicao poltica fundamental do carter acelerado da industrializao brasileira? Os estudiosos do populismo abordaram-na, de modo mais ou menos rigoroso: ela diz respeito posio poltica das classes trabalhadoras urbanas na formao social brasileira em transio para o capitalismo. A outra face do carter acelerado da industrializao brasileira a rapidez do processo de formao das classes trabalhadoras urbanas. Os trabalhadores manuais da indstria e dos servios no so aqui recrutados, como no arranque industrial do pases capitalistas centrais, entre artesos e trabalhadores manufatureiros. Caso a formao das classes trabalhadoras urbanas tivesse se dado no Brasil por essa via gradualista, as massas inseridas nas esferas industrial e de servios teriam passado por uma experincia associativa e reivindicativa

  • prvia (em corporaes de ofcio, em ligas etc.), ainda que limitada. E essa experincia teria constitudo um suporte valioso para a sua escalada at o terreno da vida propriamente partidria. Ora, os trabalhadores manuais urbanos so maciamente oriundos, no Brasil ps-trinta, do campesinato dependente, envolvido em relaes sociais pr-capitalistas. Portanto, trazem consigo, ao adentrarem o mundo urbano-industrial, uma postura ideolgica centrada na lealdade pessoal para com o senhor (que, na esfera urbana, tende a se transformar em lealdade pessoal para com o patro) e na fidelidade pessoal ao chefe poltico (que, na esfera urbana, tende a se transformar em fidelidade pessoal autoridade estatal nacional). A sobrevivncia viabilizada pela continuidade do fluxo migratrio rural-urbano dessa postura ideolgica no mundo urbano-industrial se constituir num obstculo poderoso ao envolvimento das massas urbanas em experincias partidrias de envergadura.

    Mas o carter acelerado da industrializao brasileira tem tambm uma outra implicao poltica. Nesse padro dependente, retardatrio e acelerado de industrializao, as exigncias do aparelho de produo e de servios quanto reproduo da fora de trabalho (isto , quanto aos padres de habitao, transporte, educao, sade, cultura etc.) so ditadas de fora. Vale dizer, elas decorrem de padres tecnolgicos instaurados pelos pases capitalistas centrais e sucessivamente incorporados pela economia brasileira. Tais exigncias esto portanto continuamente aqum do nvel alcanado de urbanizao dos custos de reproduo da fora de trabalho. Ora, a superao dessa de- fasagem se coloca como uma questo material crucial e urgente para as massas urbanas. No contexto da industrializao dependente, retardatria e acelerada, as massas urbanas no podem se acomodar a uma evoluo natural e espontnea isto , comandada por imperativos de mercado do seu padro material de vida; caso o fizessem, estariam colocando em risco a prpria reproduo de sua condio de trabalhadores urbanos. Essa urgncia material acabar enfim por se traduzir em urgncia poltica; as massas urbanas se dirigiro diretamente isto , sem a mediao da esfera parti

    dria ao Estado para dele obter uma interveno compensatria que liquide a defasa- gem entre o seu padro material de vida e as exigncias capitalsticas de reproduo da fora de trabalho. Pouco propensas ideologicamente ao poltica organizada e independente, e envolvidas no exerccio de uma presso difusa sobre o Estado, as massas urbanas daro uma contribuio objetiva ao estabelecimento, a partir de 1945, de um jogo poltico democrtico do tipo populista . Na democracia de 1945-1964, falta de um autntico partido trabalhista de massa, as classes trabalhadoras urbanas sero politicamente controladas pelo Estado, seja atravs de um partido trabalhista artificial e de origem burocrtica (o PTB), seja atravs de sindicatos oficiais, diretamente subordinados ao Ministrio do Trabalho (os chamados sindicatos de Estado).

    Inexistindo um partido trabalhista de massa, no poderia emergir nesse perodo, atravs de um processo induzido, um Partido industrial votado ao combate anti-proletrio . Mas de se perguntar, neste ponto, se a derrota poltica imposta pela Revoluo de Trinta burguesia com ercial-exportadora no teria instaurado condies polticas favorveis formao de um Partido industrial direcionado para a luta anti-agrria e para a defesa de um progresso industrial contnuo, capaz de reduzir drasticamente a defasagem entre a economia perifrica brasileira e as economias capitalistas centrais. A resposta a tal questo pode parecer paradoxal, se no se leva em conta o carter dependente e retardatrio do processo brasileiro de industrializao. Neste padro de industrializao, a burguesia industrial no almeja o aprofundamento da industrializao. Favorecida pela disponibilidade de recursos financeiros (engendrados na economia primrio-exportadora) para importao e pela contnua oferta internacional de novas tecnologias industriais, essa classe prefere se manter na condio de consumidora dos meios de produo fabricados noutro lugar a internalizar, com altos custos, o departamento econmico produtor de meios de produo. Ora, uma burguesia industrial que abdica da direo do processo de industrializao est, ao mesmo tempo, renunciando luta pela conquista da hegemonia poltica no seio do bloco no poder.

  • Nessas condies, dificilmente essa classe social se lanaria na construo de um Partido industrial, salvo se fosse induzida a isso por um movimento contrrio de auto-organizao poltica das classes trabalhadoras urbanas.

    Essas ponderaes tericas nos permitem indicar uma outra dimenso da democracia populista de 1945-1964 . E a burocracia de Estado, traduzindo a aspirao das cLsses populares urbanas (parte da classe mdia, trabalhadores da indstria e dos servios), quem dirige politicamente o processo de industrializao. O sistema pluripartidrio que fornece uma base de apoio parlamentar poltica de industrializao chega a tanto pelo fato de estar em ltima instncia controlado pela burocracia estatal; e no pelo fato de se submeter ao predomnio de um Partido industrial . Um nico partido poltico da classe dominante denunciar, ao longo do perodo 1 9 4 5 -1 9 6 4 , a fraqueza do sistema partidrio diante da burocracia de Estado; denncia essa que se manifesta, no plano do discurso poltico, como crtica ao carter populista do sistema poltico. Tal partido poltico a UDN, representante do ponto de vista da burguesia- tampo, em todas as suas dimenses (comrcio importador ou exportador, atividade financeira etc.), sobre a via mais adequada para o desenvolvimento econmico do Brasil. O vigor da ao poltica (agitao anti-populista, golpismo etc.) implementada por essa organizao partidria no ocasional; ele se relaciona com o fato de a burguesia-tampo se constituir, nesse perodo histrico, na nica frao da classe dominante efetivamente disposta a lutar pela conquista no seu caso, uma reconquista da hegemonia poltica no seio do bloco no poder. J a burguesia industrial e a propriedade fundiria aceitam, ambas, a fragilidade do sistema partidrio diante do aparelho de Estado, mas por motivos diversos: a burguesia industrial, porque vacila para dizer o mnimo diante do projeto poltico de industrializao; a propriedade fundiria, porque est confinada, em plena fase de transio para o capitalismo, numa posio puramente defensiva dentro do bloco no poder (defesa da grande propriedade rural, bloqueio reforma agrria).

    II. A INSTABILIDADE DA DEMOCRACIANO BRASIL REPUBLICANO

    Passemos agora a analisar o segundo indi

    cador usual do dficit democrtico brasileiro no sculo XX: a instabilidade da democracia no Brasil republicano. Essa caracterstica se manifesta em dois nveis. Em primeiro lugar: se tomarmos como padro de medida a vida poltica dos pases capitalistas centrais, concluiremos que a durao das experincias democrticas brasileiras (Primeira Repblica, 1945-1964) relativamente curta (de duas a quatro dcadas, no mximo). Em segundo lugar: os movimentos polticos extra-institucionais que interromperam tais experincias no produziram apenas efeitos efmeros, como a excluso de certas lideranas ou correntes partidrias da vida poltico-ins- titucional (isto , o chamado saneamento temporrio da vida democrtica). Na verdade, a- queles movimentos ultrapassaram esse limite e desaguaram na implantao de formas de Estado e regimes polticos autocrticos, cuja existncia se prolongou por quase uma ou duas dcadas: o Estado Novo (1937-1945) no primeiro caso, a ditadura militar de 1964 no segundo caso. Na verdade, a instabilidade da democracia, evidenciada nos dois nveis apontados, faz com que a histria do Brasil republicano se configure como uma sucesso de sub-perodos polticos democrticos e autocrticos.

    O tema da instabilidade da democracia no Brasil republicano sobejamente conhecido. Convm entretanto que voltemos a ele, com vistas a abord-lo segundo a metodologia de anlise anteriormente apresentada. Essa metodologia exclui a possibilidade de se interpretar a instabilidade da democracia do mesmo modo que o carter limitado das experincias democrticas como a expresso de elementos transhis- tricos como o carter nacional brasileiro ou, mais modestamente, a cultura poltica brasileira.

    Na verdade, uma explicao menos superficial da instabilidade da democracia no Brasil republicano deve passar pela explorao das suas conexes com uma caracterstica central do processo de transio para o capitalismo no Brasil: o seu ritmo acelerado. J havamos indicado anteriormente que a industrializao brasileira se configura, na sua primeira fase, como uma industrializao no s dependente e retardatria como tambm acelerada. Ora, tais caractersticas conferem uma configurao particular ao processo de transio para o capitalismo no

  • Brasil: este se delinea, na comparao com processos anlogos registrados na Europa ocidental, como um processo relativamente curto e concentrado no tempo. Isso se explica sem dificuldade. Os ltimos pases a transitarem para o capitalismo convertero o seu atraso numa vantagem; isto , podero incorporar, atravs de importaes, as novas tecnologias engendradas pelas economias j capitalistas. Nos pases retardatrios criam-se, portanto, condies para o estabelecimento rpido da predominncia da indstria sobre a agricultura; o que tambm significa, num plano mais geral, uma transio rpida para o capitalismo.

    Vejamos agora uma implicao poltica crucial dessa rapidez. Os processos de redefinio da hegemonia poltica no seio da classe dominante processos esses inevitveis no curso da transio de uma formao social qualquer para o capitalismo7 tendem a se suceder, nesse caso, em espaos de tempo tambm mais curtos. Ora, a redefinio da hegemonia poltica no seio do bloco no poder supe usualmente a transformao da forma de Estado e do regime poltico; isso ocorre porque a frao de classe anteriormente hegemnica se apoia na forma de Estado e no regime poltico vigentes para preservar a sua hegemonia poltica (por exemplo, alimentando no mnimo a subordinao ideolgica das Foras Armadas, no caso de uma ditadura militar; ou manipulando o processo eleitoral, no caso de uma democracia representativa). Conseqentemente, a frao de classe dominante que aspirar conquista da hegemonia poltica no seio do bloco no poder ter de interromper o funcionamento das instituies polticas vigentes e de promover a sua substituio forada (sejam elas ditatoriais ou democr-

    7 Dizemos inevitveis porque toda transio para o capitalismo implica constantes remanejamentos envolvendo capital com ercial, capital industrial, capital bancrio, capital financeiro da preponderncia econmica no seio da classe dominante. Ora, toda frao de classe dominante que chega preponderncia econmica passa a se sentir estimulada, por essa mesma vantagem, a lutar pela conquista da hegemonia propriamente poltica (isto , o exerccio de uma influncia sobre o Estado capaz de levar a poltica estatal a se alinhar com os seus interesses especficos de frao).

    ticas)8. Nessa perspectiva, pode-se concluir que, nas democracias capitalistas, as crises de hegemonia no seio do bloco no poder abrem o caminho na medida em que culminam num processo de redefinio dessa hegemonia para a revogao das instituies polticas democrticas.

    Voltemos, agora munidos desse esquema terico, anlise do Brasil republicano. As nossas duas primeiras experincias democrticas entraram rapidamente em colapso por obra da emergncia de crises de hegemonia dentro do bloco no poder, bem como de processos subseqentes de redefinio dessa hegemonia. Em 1930, as foras polticas que se opunham hegemonia poltica da burguesia comercial- exportadora derrubaram a chamada democracia oligrquica. Fizeram-no por entenderem que essa democracia limitada era um instrumento bsico de preservao dessa hegemonia; e, enquanto tal, um obstculo deflagrao de uma poltica estatal favorvel ao progresso industrial e integrao poltica das classes trabalhadoras urbanas. Liquidar essa democracia aparecia portanto, aos revolucionrios de 1930, como uma providncia indispensvel para: a) desalojar a burguesia comercial-exportadora os pluto- cratas urbanos do aparelho central de Estado; b) dar incio a uma reforma progressista e modernizante do Estado. Em 1964, um golpe militar derrubou a chamada democracia populista . Num contexto histrico marcado por uma ausncia crnica de hegemonia poltica no seio do bloco no poder, os segmentos monopolistas da classe dominante que aspiravam a conquist- la (a sub-frao monopolista do capital indus

    8 Esclarea-se desde logo que se a redefinio da hegemonia poltica no seio do bloco no poder implica, em geral, a transformao da forma de Estado e do regime poltico, a relao em sentido inverso no pode ser estabelecida. Ou seja: nem toda transformao da forma de Estado e do regime poltico resulta de uma redefinio da hegemonia poltica no seio do bloco no poder. A rigor, ela pode tambm resultar da presso popular. Nesse caso, a frao hegemnica da classe dominante ter de se adaptar s novas condies imperantes no aparelho de Estado e no processo de luta poltico-institucional a fim de no perder a hegemonia poltica para qualquer outra frao da classe dominante.

  • trial, comandada pelo capital monopolista bancrio) entenderam que a reorganizao do bloco no poder passava pela destruio das instituies polticas democrticas, no obstante o seu carter limitado. No difcil explic-lo. O funcionamento da democracia limitada e populista viabilizava a implementao de uma poltica de industrializao nem sempre compatibilizada dado o seu peso, a, das ideologias estatista e nacionalista com os desgnios do bloco monopolista; bem como a concretizao de um processo de integrao poltica das classes trabalhadoras urbanas que em tudo se chocava com a perspectiva do capital monopolista.

    Tudo o que foi colocado anteriormente sugere que nenhum modelo geral de instabilidade da democracia aplicvel na anlise do colapso de cada experincia democrtica do Brasi 1 repu- blicano. Mais claramente: no se deve trabalhar com a hiptese de que todos os processos de desestabilizao da democracia tm, no Brasil republicano, o mesmo significado histrico, o que se deveria ao fato de esses processos serem, todos, igualmente determinados por um fator transhistrico, como a crnica fraqueza da sociedade civil diante do Estado. Na fase de transio para o capitalismo no Brasil, cada processo de redefinio da hegemonia poltica no seio do bloco no poder tem um contedo especfico, o que faz com que cada interrupo de uma experincia democrtica que tenha na medida em que resulte de uma crise de hegemonia um significado histrico igualmente especfico. Um dos mais abalizados analistas de nossa vida militar Nelson Werneck Sodr tem de resto alertado os pesquisadores sobre o erro de se atribuir a todas as intervenes do grupo militar no processo poltico brasileiro um mesmo significado histrico (por exemplo, o de serem manifestaes de uma tendncia permanente da vida social brasileira militarizao). Para Sodr, o conjunto dessas intervenes segue uma trajetria antes pendular: alternncia histrica de modo no obrigatoriamente simtrico de intervenes progressistas (exemplo: a Abolio da escravido e a Proclamao da Repblica em 1888-1889, a Revoluo de Trinta) e intervenes conservadoras (exemplos: a instaurao do Estado Novo em 1937, o golpe de Estado de 1964). Ora, essa diversidade de significa

    dos histricos tambm nos pode ser restituda pela anlise dos dois processos j mencionados de desestabilizao da democracia no Brasil republicano. A destruio da democracia oligr- quica de 1 8 8 9 -1 9 3 0 representou a superao revolucionria de uma forma de Estado e de um regime poltico cujo funcionamento concreto favorecia os interesses das classes dominantes arcaicas (mormente os da burguesia comer- cial-exportadora); bem como bloqueava a acelerao do processo de industrializao e a integrao poltica das classes trabalhadoras urbanas. Inversamente, a destruio da democracia populista de 194 5 -1 9 6 4 se configurou como um processo contra-r evolucionrio, amplamente favorvel aos desgnios do capital monopolista e do imperialismo, de conteno poltica das massas brasileiras, objetivamente envolvidas, desde 1961, num processo de dinamizao pela esquerda da democracia vigente. Pode-se portanto concluir que, assim como as limitaes impostas dem ocracia respectivamente na Primeira Repblica e no perodo 1945-1964 foram de natureza diversa, a instabilidade da democracia teve um significado histrico especfico em cada um desses perodos.

    111. PERSPECTIVAS DA DEMOCRACIA NO CAPITALISMO BRASILEIRO ATUAL

    Tambm a forma de Estado e o regime poltico que emergiram do processo constituinte de 1988 merecem ser inscritas no rol das democracias limitadas. Todavia, as suas limitaes so de natureza diversa daquelas impostas democracia na Primeira Repblica e no perodo 1 945-1964 . Em primeiro lugar, algumas dessas limitaes so sobrevivncias do processo de militarizao deflagrado a partir do golpe de 1964 do aparelho de Estado brasileiro. A Constituio de 1988 continua f-Io atravs do artigo 142 a super-dimensionar o papel poltico das Foras Armadas; o texto constitucional confere a estas a prerrogativa de intervir politicamente a favor da manuteno da ordem, genericamente definida, sem que seja necessria a autorizao prvia do Congresso. E desnecessrio destacar que essa orientao constitucional implica legitimar a converso das Foras Armadas em "partido poltico", o que destoa do "padro democrtico" vigente nos pases capitalistas centrais.

  • Alm disso, as Foras Armadas mantm importante presena no conjunto do aparelho de Estado brasileiro, e no apenas nos seus ramos especificamente militares; continuam portanto, no obstante as sucessivas metamorfoses (SAE e outros) do extinto SNI, a agir como uma rede estatal p a ra le la 9 que cruza horizontalmente os diversos ramos do aparelho de Estado. Essa modalidade especfica da presena, inusual nas grandes democracias capitalistas ocidentais10, permite de resto que as Foras Armadas exeram controle sobre o tratamento estatal de temas e matrias que, naquelas democracias, estariam inseridos na esfera de competncia do Parlamento: questo nuclear, poltica de fronteiras etc.

    Uma segunda limitao da nova democracia brasileira advm do fato de que o processo constituinte de 1988 reforou a posio do Executivo, formalmente j devolvido s foras polticas civis, diante do Parlamento, ao dotar o governo de um instrumento de ao legiferante mais poderoso porque sujeito a condies menos rigorosas que o antigo decreto-lei: a m edida provisria . As decises fundamentais dos dois ltimos governos foram basicamente implementadas atravs dessa figura jurdica, e no de uma tramitao congressual1 K Desse modo, a nova

    9 Essa expresso empregada por Nicos Poulantzas (1978). Ver especialmente o captulo 5 uOs aparelhos de Estado.

    10 Nos anos 50/60, desenvolvia-se entre os analistas polticos radicais (como Wright Mills, Fred Cook, John Gerassi) a perigosa tendncia a encarar a implementao de uma poltica estatal imperialista e expan- sionista como a expresso de um processo de militarizao do Estado. Na verdade, a poltica estatal imperialista e expansionista de potncias como os Estados Unidos e a Frana foi implementada num quadro poltico democrtico e conduzida por foras polticas civis; no exigiu portanto a militarizao do Estado e a colocao da poltica estatal nas mos das altas patentes militares. Inversamente, Estados militarizados como os da Amrica Latina (por exemplo, o Chile, a Argentina ou o Brasil) no chegaram a dispor das condies mnimas necessrias a uma escalada expansionista (da a fragorosa derrota das Foras Armadas argentinas na guerra das Malvinas).

    11 Dados relevantes sobre o uso governamental de

    democracia brasileira se v limitada por uma combinao complexa de sobrevivncias da dita-dura militar e de dispositivos constitucionais (como a medida provisria) que, no co n texto b ra s ile iro12, contribuem para a implantao de um hiperpresidencialismo.

    A terceira limitao da democracia brasileira de 1988 parece primeira vista ser uma mera reiterao de uma limitao j presente na democracia populista de 1945-1964. Ou seja: no se constituem, num e noutro caso, governos rigorosamente partidrios, o que evidencia a ascendncia da burocracia de Estado, genericamente considerada, sobre o processo decisrio estatal. Ocorre entretanto que as razes desse dficit democrtico no so exatamente as mesmas nos dois casos. Se, no caso da democracia populista de 1945-1964, esse dficit exprime a reproduo de uma crise de hegem onia no seio do bloco no poder, tal no se verifica na nova democracia de 1988. A, so as sobrevivncias institucionais da ditadura militar e o novo presidencialismo invulgarmente forte, para os padres democrticos do Primeiro Mundo que se conjugam para dificultar: a) o estrito alinhamento dos governos (veja-se o caso dos governos Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso) com algum programa partidrio; b) o estrito alinhamento de algum partido com cada governo (veja-se a freqncia da infidelidade dos membros de um partido ao seu governo). E mais: essa combinao institucional, ao invs de abrir espao para uma interveno bonapar- tista da burocracia estatal no processo poltico, instrumentalizada pelos segmentos da classe dominante que organizam ativamente a sua hegemonia poltica no seio do bloco no poder.

    Estamos portanto no Brasil, desde 1988, diante de mais um exemplar histrico de d em o cracia lim itada; isto , diante de uma experin-

    medidas provisrias foram apresentados no artigo O entulho provisrio, publicado pela revista Veja de 8 de maio de 1996, pp. 30-32.

    12 A medida provisria tambm pode existir noutros contextos; como, por exemplo, num sistema de governo parlamentarista. o caso da Itlia atual, onde a medida provisria prerrogativa do rgo colegia- do: o Conselho de Ministros.

  • cia democrtica que se revela pouco desenvolvida quando comparada com o padro democrtico vigente nos pases capitalistas centrais. Neste ponto, impe-se refletir sobre as perspectivas dessa democracia limitada no Brasil atual. Essa variante especfica de democracia capitalista tende a: a) estabilizar-se, garantindo a sua sobrevivncia no mdio prazo; b) evoluir a mdio prazo para uma democracia capitalista ampliada, situada em nvel prximo ao das democracias capitalistas centrais; c) degradar-se, retrocedendo a mdio prazo para alguma forma de autoritarismo?

    Do elenco de hipteses acima apresentado, est visivelmente excluda a hiptese extrema: a superao de qualquer modalidade de democracia representativa (limitada ou ampliada), no Brasil das dcadas vindouras, por um modelo democrtico qualitativamente diverso, a democracia participativa . Em nosso entendimento, a efetiva participao do povo no processo ma- cro-decisrio no possvel dentro dos limites do Estado capitalista; ao contrrio, tal participao a prpria essncia do Estado socialista, j que este s pode existir como materializao do poder poltico de fa to dos trabalhadores13. Assim sendo, a implantao de uma democracia participativa dependeria da derrubada do Estado capitalista no Brasil; e configurar-se-ia como um dos aspectos centrais do processo de transio para o socialismo na formao social brasileira. Ora, o atual estgio do desenvolvimento ideolgico e poltico das massas brasileiras (no seio das quais ainda so fracas as tendncias anti-capitalistas), bem como das tenses no seio do bloco das classes dominantes do Brasil (onde ainda no se esboa uma crise de hegemonia), no permite prever uma acumulao rpida de contradies que desage, a mdio prazo, num processo de ruptura da ordem poltica capitalista. Por isso, pensamos a despeito de

    13 Contrariamente a uma parte da esquerda ocidental, que nutre a esperana de ver implantada uma democracia radical nas prprias sociedades capitalistas, pensamos que s a destruio do poder poltico da classe capitalista abre o caminho para a formao de uma democracia participativa. Abordaremos essa questo em outro ensaio, que ora estamos redigindo: Democracia participativa e democracia socialista.

    estarmos conscientes da sumariedade das observaes precedentes que a formao de uma democracia participativa no um dos cenrios viveis para o Brasil atual.

    Voltemos, ento, s trs hipteses anteriormente apresentadas (as da estabilizao, da evoluo e da degradao da democracia vigente). Qual delas nos parece mais provvel a mdio prazo? Na abordagem dessa questo, recorremos, ainda uma vez, metodologia de anlise proposta no incio deste artigo. Vale dizer: para especularmos sobre tais hipteses, teremos de nos apoiar no conhecimento das caractersticas: a) da atual fase do desenvolvimento capitalista brasileiro; b) da atual configurao, no Brasil, do bloco no poder; c) da orientao ideolgica e poltica predominante no seio das classes populares.

    A dcada de 1990 marca a passagem da economia brasileira a uma nova fase. Nesta fase, reiteram-se, por um lado, as suas caractersticas de economia capitalista, monopolista e dependente. Por outro lado, nela se processa uma redefinio do peso econmico dos diferentes setores capitalsticos: o capital monopolista estatal e o capital monopolista privado nacional tendem a perder peso econmico (o primeiro, atravs da privatizao; o segundo, atravs da desnacionalizao) em benefcio do capital monopolista estrangeiro (mormente industrial ou financeiro).

    Redefine-se portanto, na dcada de 1990, a direo do desenvolvimento capitalista no Brasil. A essa redefinio, corresponde, no plano poltico, uma nova organizao interna do sistema de interesses capitalistas que exerce, desde 1964, a hegemonia no seio do bloco no poder. O golpe militar de 1964 abriu caminho para o estabelecimento da hegemonia, no seio do bloco no poder, de uma rede de mltiplos interesses monopolistas. Tal rede representava duas caractersticas fundamentais: a) ela era dirigida pelo capital bancrio (o segmento monopolista que obtinha, proporcionalmente, maiores vantagens com a poltica pr-monopolista implementada pelos sucessivos governos militares)14; b) ela

    14 Num texto anterior, indiquei sem entretanto caracteriz-la de modo teoricamente preciso a preponderncia poltica do capital bancrio no seio do

  • articulava trs segmentos monopolistas: a empresa estatal, o capital monopolista privado nacional e o capital monopolista privado estrangeiro (o chamado trip, cujos interesses fundamentais teriam inspirado a poltica econmica da dita-dura militar). Ora, j na segunda metade da dcada de 1980 isto , durante a Nova Repblica vai se definindo progressivamente a tendncia ao estabelecimento de um novo arranjo interno no sistema hegemnico de interesses monopolistas15. Esse novo arranjo interno apresenta duas caractersticas fundamentais: a) agora, o capital financeiro internacional e no mais o capital puramente bancrio,, at ento de origem em grande parte nacional quem dirige o sistema de interesses monopolistas; b) o trip fundamental da economia brasileira ps-64 se desfaz: os interesses ligados preservao da empresa estatal e da empresa monopolista privada nacional passam a ser cada vez menos levados em conta no terreno do processo decisrio estatal. O estabelecimento desse novo arranjo que, por corresponder a uma reorganizao interna de um subsistema hegemnico e no a uma redefinio radical da hegemonia no seio do bloco no poder, dispensou uma ruptura institucional j est concludo desde o incio da dcada de 1990. A- testa-o a ausncia da defesa do setor pblico e da empresa nacional entre os objetivos proclamados e efetivamente perseguidos pelos sucessivos governos brasileiros da dcada atual.

    Ora, a democracia limitada de 1988 serve concretamente a esse novo arranjo do sistema de interesses monopolistas. Isso significa especificamente que tal formato institucional no se constituiu, at agora, em obstculo formao

    sistema de interesses monopolistas, a partir de 1964. VerSAES, 1990.

    15 Muitos analistas econmicos definem de resto, com um certo fundamento o afastamento de Dil- son Funaro do quadro ministerial da Nova Repblica como o marco de uma ruptura na orientao da poltica econmica estatal; a reforma ministerial exprimiria o crescimento da influncia, no seio do governo Sarney, da ideologia neoliberal da modernizao, difundida pelos lobbys empresariais e por certos segmentos tecnocrticos.

    de governos (como os de Collor e de Fernando Henrique Cardoso) cuja poltica privatizaes, desregulamentao, abertura econmica etc. prioritariamente orientada pelos interesses do capital financeiro internacional. Num contexto histrico em que a subordinao ideolgica das massas brasileiras e no apenas destas chega ao extremo da aceitao do programa poltico neoliberal (hostil, como se sabe, a qualquer proposta de preservao ou construo de um Welfare State), a adequao prtica da democracia limitada de 1988 aos desgnios do capital financeiro internacional parece, primeira vista, garantir a estabilidade dessa variante de democracia capitalista no mdio prazo.

    Ocorre entretanto que, a despeito da ausncia de uma poderosa oposio popular s polticas neoliberais, o papel dirigente do capital financeiro internacional no se exerce sem tenses. Estas se manifestam no s no seio do bloco no poder (onde certas fraes no-financeiras do capital monopolista se submetem ao capital financeiro internacional); para no falar daquelas tenses que se insinuam na base popular de apoio ao programa poltico neoliberal. A emergncia de tais tenses se deve ao fato de que s o capital financeiro internacional apoia o conjunto da poltica neoliberal; o efeito conjugado de todo o elenco de medidas neoliberais que determina um salto qualitativo nas suas oportunidades de ganho e nas suas possibilidades de ancoragem na esfera produtiva interna. Quanto s demais fraes integrantes do bloco no poder e aos demais segmentos componentes do sistema de interesses monopolistas: ainda que, no plano poltico, tais setores se submetam (10 caso) ou apoiem (2o caso) o projeto neoliberal, eles se mostram reticentes quanto poltica estatal neoliberal, quando esta fere os seus interesses especficos. Os grandes proprietrios fundirios se manifestam a favor do programa neoliberal, desde que este no implique o fim da interveno estatal a favor da agricultura (subsdios, crditos especiais, suspenso de dvidas etc.). A grande burguesia industrial apoia o programa neoliberal, desde que este no implique a abertura do seu setor ao capital internacional. Os grandes bancos nacionais um capital de natureza financeira querem a execuo de uma poltica estatal neoliberal, desde que esta no

  • contemple uma abertura incondicional do setor financeiro ao capital estrangeiro. Este modelo de comportamento apoio poltico ao projeto neoliberal, conjugado a uma postura reticente quanto concretizao de um tpico especfico desse programa pode ser igualmente detectado na base popular de apoio ao projeto neoliberal. Amplos setores da classe mdia e das classes trabalhadoras se identificam com o programa neoliberal pelo fato de o verem como a arma mais eficaz na luta pela liquidao do E stado p a ra sit rio (praticante do cartorialismo, do cli- entelismo e das formas mais variadas de corrupo). Contudo, esses mesmos setores rejeitam a poltica neoliberal de modernizao, quando esta significa a liquidao de direitos trabalhistas que os beneficiam16.

    Ora, essas reticncias punctuais, emergentes no prprio campo poltico que apoia o projeto neoliberal, constituem uma ameaa estab ilidade da dem ocracia lim itada de 1988, ainda que esse formato institucional no tenha se constitudo em obstculo formao de governos neo- liberais. Dada a ausncia de uma oposio popular de massa ao projeto neoliberal, os representantes polticos do capital financeiro internacional podem concluir que dispem de margem de manobra suficiente para dar uma resposta institucional s mltiplas manifestaes, emergentes no seu prprio campo poltico, de resistncia parcial ao projeto neoliberal.

    Em que consistiria essa resposta? Basicamente, na adoo de mtodos polticos e procedimentos institucionais que viabilizassem a frustrao das resistncias conservadoras ao projeto neoliberal; vale dizer, que tornassem possvel a concretizao radical, rpida e eficaz da plataforma neoliberal. Tais mtodos e procedimentos contemplariam desde o recrudescimento das prticas repressivas (que poderiam atingir sempre bom lem brar at mesmo aqueles setores do movimento sindical j conquistados pela ideologia neoliberal) at a intensificao acelerada da ao legiferante do Poder Executi

    16 Noutro texto, analisamos as resistncias localizadas e parciais, emergentes no prprio campo poltico conservador, ao programa de ao do governo Fernando Henrique Cardoso. Ver SAES, 1996.

    vo (o que significaria promover a proliferao de medidas provisrias em todos os terrenos do processo decisrio estatal) ou a proposio de uma reforma do Estado que redundasse numa diminuio sensvel da capacidade decisria dos Poderes Legislativo e Judicirio (onde se concentrariam representantes ideolgicos e polticos dos segmentos conservadores reticentes quanto a aspectos especficos do projeto neoliberal). Ora, esses remanejamentos fariam com que a j limitada democracia de 1988 se encaminhasse progressivamente para uma verso reciclada da forma de Estado e do regime poltico autoritrios. Mais especificamente: a dem o cra c ia lim itada de 1988 evoluiria gradativamente no para o velho autoritarismo militar dos anos 60/70; e sim para um novo au toritarism o civil de base p res id en c ia lis ta . Nesse novo autoritarismo, as prerrogativas ditatoriais estariam concentradas no nas mos do alto comando das Foras Armadas; e sim nas mos do presidente da Repblica (a despeito de o chefe do Executivo, como em qualquer Estado capitalista, depender e portanto se submeter a elas nesse terreno especfico das Foras Armadas para garantir a preservao da ordem social capitalista). Essa evoluo gradual sem ruptura radical de um formato institucional {dem ocracia lim itada) para outro {autoritarism o civ il de base p resid en c ia lis ta ) seria vivel no presente contexto poltico, j que: a) no estaria ocorrendo um processo radical de redefinio da hegemonia no seio do bloco no poder; e sim um processo de redefinio do modo de exerccio de uma mesma hegemonia dentro desse bloco;b) essa hegemonia no estaria sendo contestada por um poderoso movimento popular (caso em que seria alta a probabilidade de uma radical ruptura institucional).

    A anlise poltica precedente sugere indiretamente que a emergncia de um novo au toritarism o c iv il (a pior das hipteses), bem como a estabilizao da d e m o c ra c ia lim ita d a (a melhor das hipteses), so p o r ora politicamente mais viveis que a restaurao pura e simples da ditadura militar. Essa restaurao s se tornaria politicamente necessria, para o conjunto da classe dominante ou para o capital financeiro internacional, caso emergisse um poderoso movimento popular de contestao ordem

  • social capitalista ou, mais especificamente, ao projeto neoliberal de modernizao capitalista. Fora dessa situao extrema, a restaurao do autoritarismo militar politicamente arriscada para o capital financeiro internacional, pelo menos por duas razes: a) o compromisso histrico de parte da oficialidade militar com a empresa pblica e o capitalismo de Estado; b) a conseqente ausncia de unidade, nas Foras Armadas, quanto ao projeto neoliberal de modernizao capitalista. No obstante a surpreendente velocidade com que grande parte da alta oficialidade das Foras Armadas antes envolvida num discurso nacionalista de grande potncia adapta-se ideologia da modernizao e se lana relativizao de conceitos como o de soberania nacional, esse risco permanece real; e, como tal, levado permanentemente em conta pelo capital financeiro internacional (o que explica pelo menos em parte propostas como a de Mac Namara: dissoluo das Foras Armadas latino-americanas e atribuio da sua funo de defesa nacional s Foras Armadas norte-americanas).

    A fora da tendncia emergncia, no Brasil atual, de um autoritarismo civil de base presidencialista evidenciada pelo fato de que tal tendncia no um processo isolado, nem puramente brasileiro. Em inmeras sociedades capitalistas dependentes da Amrica Latina, governos neoliberais democraticamente eleitos tm de enfrentar resistncias localizadas empresariais, de classe mdia, sindicais execuo das suas plataformas de ao. Ora, as respostas governamentais a esse tipo de resistncia vo do recrudescimento inusual da ao legiferante do Poder Executivo (caso do presidente Menem, na Argentina) at operaes como a dissoluo do Parlamento e o prolongamento sucessivo do mandato presidencial (caso do presidente Fuji- mori, no Peru), para no falar de certos procedimentos de banalizao do estado de stio (caso do presidente Sanchez de Losada, na Bolvia). Portanto, a emergncia de um autoritarismo civil de base presidencialista um dos cenrios polticos possveis para outras sociedades latino-americanas onde governos liberais democraticamente eleitos deparam com resistncias localizadas e parciais sua plataforma de ao. De resto, a adoo desse formato institucional na

    Amrica Latina conveniente para o governo norte-americano, j que este conta com o apoio das foras polticas civis defensoras do projeto neoliberal ao mesmo tempo em que desconfia da atitude das Foras Armadas locais (potencialmente nacionalistas e estatistas) para manter as suas prprias Foras Armadas nos pases dessa rea, sob pretexto de combater o narcotrfico (caso da Bolvia ou da Colmbia) ou de debelar a crise poltica (caso do Haiti).

    Para finalizar este balano, resta abordar a hiptese da evoluo da democracia limitada, por ora vigente, para uma democracia capitalista ampliada, prxima do padro democrtico ocidental. Essa evoluo dependeria da emergncia, no Brasil, de um projeto poltico de desenvolvimento capitalista alternativo ao projeto poltico neoliberal. Seria desse tipo, por exemplo, um neodesenvolvimentismo de tipo conservador, que, ao invs de contestar a ordem capitalista mundial num perspectiva terceiromundista, buscasse uma nova insero especfica da economia brasileira enquanto economia indus- trial-exportadora especializada nessa ordem. O program a de ao desse neodesenvolvimentismo chamemo-lo, para simplificar, um desenvolvimentismo de tipo coreano implicaria, ao invs de desmantelar o Estado (meta do neoliberalismo), atribuir ao aparelho estatal um papel seletivo, porm ativo (investimentos macios em pesquisa e desenvolvimento, em educao e em segmentos tecnolgicos especficos); bem como realizar reformas numa perspectiva conservadora (por exemplo: uma reforma agrria redistributiva, concebida como um instrumento de estabilizao social do campo e da cidade; e no, como a via para a conquista da democracia agrria ou como uma etapa intermediria de um processo mais amplo de transformaes sociais).

    A luta pela concretizao de um projeto poltico desse tipo poderia resultar na ampliao da democracia capitalista brasileira, caso os segmentos sociais da classe dominante e da burocracia estatal envolvidos nessa luta escolhessem, no a via autoritria militar (como ocorreu no incio da experincia coreana), e sim a via democrtica, como mtodo para chegar ao seu objetivo. Nessa ltima hiptese, tais segmentos de-

  • veriam mobilizar politicamente as massas brasileiras contra a poltica neoliberal e o formato institucional {democracia limitada) que a tem viabilizado.

    A dificuldade de concretizao dessa hiptese no deriva apenas do fato de que o projeto de desenvolvimento capitalista moda coreana s polariza, na fase atual, uma minoria de economistas de oposio, de pequenos e mdios empresrios, ou de militares. Ela tambm se configura como dificuldade de mobilizao poltica das massas brasileiras contra o projeto neoliberal, j que o mau funcionamento para dizer o mnimo do Welfare State e o carter aber

    rante das prticas estatais parasitrias contriburam de modo considervel para o esmaecimento da esperana popular de alcanar um intervencionismo estatal justo e eficaz. Por isso, passando pela experincia de sucessivos governos liberais que as massas brasileiras podero se distanciar do projeto neoliberal, caso avaliem que o resultado histrico das polticas neolibe- rais ter sido, afinal de contas, prejudicial aos seus interesses. Mas nenhum analista poltico deveria assegurar aos seus leitores que uma avaliao poltica desse tipo isto , negativa o nico cenrio possvel aps um ciclo de gestes neoliberais.

    Dcio Saes Professor Titular de Cincia Poltica na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e autor, entre outros, de A Formao do Estado Burgus no Brasil: 1888-1891 (Paz e terra, 1985).

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