bizancio visto do ocidente

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DICIONÁRIO TEMÁTICO DO OCIDENTE MEDIEV.\L VOIUMEI Jecqurs LnGopp erJlnx-Cr-nups Scnurrr coordenador da tadução HnÁr:o FnaNco Júrxron liltülËnil IMPRENsÂ1)r'trr^rSP ,o&

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Page 1: Bizancio Visto Do Ocidente

DICIONÁRIOTEMÁTICO DO OCIDENTE

MEDIEV.\LVOIUMEI

Jecqurs Ln Gopp erJlnx-Cr-nups Scnurrr

coordenador da tadução

HnÁr:o FnaNco Júrxron

liltülËnilIMPRENsÂ1)r ' t r r^rSP

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BIZÂNCIO VISTO DO OCIDENTE

"Há centenas e centenas de anos, a ave divina permanece na extremida,de da Europa, perto dos montes de onde saiu e, à sombra de suas ?Lsas saera-das, daí governa o mundo, passando de mão em mão. Numa d.ss", ,rr.drrr-ças, ela pousou sobre a minha. Eu fui Júlio César e sou Justiniano...,, (Dante.A Diuìna Comédia, "Pxaíso", VI, 4-10). Interrogando a alma de Justinianodurante seu percurso pelo Paraíso, Dante demonstra ter consciência da unida-de e da continuidade do Império, simbolizado pela águia que partiu de Tióiapara Roma antes de se fixar em Constantinopla, de onde governaria toda aCristandade. Para o poeta, Bizâncio personifica a idéia de um império regid.osegundo leis, ta1 como sonhava que o Ocidente fosse governado.

A imagem que sugere difere daquela encontrada em crônicas e docu_mentos oficiais de chancelaria. Com efeito, os textos naffaÌivos não se lnteres-sam muito pelo velho império oriental; seus autores substituem de bom era_do pela história-batalha a compreensão profunda de um mundo torrr"do

"r-tranho ao Ocidente. Os documentos oficiais, para uso dos governaltes, pro-põem uma visão mais concreta do Outro, uma visão mais fundamentada narelação de forças e na ideologia que sustenra o exercício do poder. Assim, asoscilaçóes da imagem de Bizâncio ao longo dos séculos resultam de conside_raçóes políticas e estratégicas, de interesses religiosos ou econômicos que le-vam o Ocidente primeiro a respeitar a romanidade cristã e depois a tratar comindiferença e desprezo um mundo que redescobre com simparia apenas norempo do humanismo e do Renascimenro.

O pnosrícro DE BrzÂNCÌo

Até o princípio do século WiI, Bizâncio desfruta de grande prestígio noOcidente. Pelo menos formalmenre, este reconhece a superioridade do sucessorcristão do Império Romano. A divisão de 395 nunca foi vista pelos conrempo-râneos como uma ruptura definitiva; mesmo â invasão dos bárbaros pode serconsiderada fator de renovação do ideal universalista porque resdtui sua cabeçaa um império vitimado até enrão por uma diüsão contra a natureza. Assim, ar€stituição das insígnias imperiais à Constantinopla por Odoacro, em 476, não

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Dicionáio Tì:mático do Ocìdcnte Medìeual

significa para o Ocidente a desapariçáo total da idéia ou mesmo da realidade im-

perial: ela reconhece a eminência e dignidade única do soberano bizantino' Este

recebe a herança de uma noçáo nascida no Ocidente, segundo a qual o imPera-

dor tem preponderância sobre os reinos, isto no momento €m que os povos ger-

mânicos translormaram as províncias do Ìmpério Romano em vários reìnos A

chancelaria bizantina elabora o esquema de toda uma hierarquia de soberanias

sobre a presidência do basìleus, que €stá €m seu Ponto mais alto' Náo é somen-

te uma reivindicação ideológica. O Império intervém na Gália, na Espanha,

acolhe em suas cortes os príncipes provenientes das famílias reais bárharas De

acordo com Gregório deTours, Clóvis orgulhava-se por ter recebido as insígníx

consulares do imperador Anastácio, e Chilperico, medalhas de ouro de Tibério,

enquanto que, por volta de 630, Dagoberto relaciona-se com Heráclio prome-

tendo-lhe a paz perpétua, como fiel servidor.

O respeito por Bizâncio não era menor na península italiana Aspirando

assumir a direçáo dos povos germânicos espalhados na România, Tèodorico pa-

rece ter desempenhado este papel como delegado do poder imperial único' Ele

aceita o título áulico de "mestre das milícias" e manifesta o desejo de reconquis-

tar a ltáÌia e governá-la em nome do imperador O fiacasso sem dúvida deve-

se à recusa dos ostrogodos por Parte da população italiana, profundamente Ìi-

sada à ortodoxia conciliar. Daí a relativa facilidade da reconquista levada a cabo

por Justiniano (535-554), que sabe se aproveitar da fraqueza do reino ostrogo-

do. Mas o prestígio de Bizâncio na Itália é rapidamente abalado pela conquis-

ta lombarda, desde 568. Seria entretanto errôneo considerar os invasores como

adversários irredutíveis do Império Bizantino. A maioria dos duques lombar-

dos, mais ou menos seduzida pelo ouro de Bizâncio, exPressa seu grande res-

peito pelo Império: alguns deles aí encontram refúgio e proteção quando a

sorte muda; outros colocam-se a seu se wïço e, até751, data da tomada do exar-

cado pelo rei lombardo Astulfo, Ravena e Pentápole permanecem símbolos vi-

vos de que toda a península pertence ao Império.

Com efeito, embora três quartos de seu território tenham sido invadidos

pelos lombardos, a Itália continua oficialmente imperiaL e as ptetensões "ro-

manas" de Bizâncio continuam muito vivas. O papado e os bispos do Ociden-

te reconhecem a posição eminente de um imperador que preside os concílios

ecumênicos e transforma seus cânones em leis do Império' Gregório Magno

(590-604), obrigado a lidar com os lombardos, continua profrrndamente liga-

do ao Império. Na querela com o papado em 590-59I, os bispos da região

veneziana pedem para ser julgados pelo tribunal de Consrantinopla, fazendo

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Bizâncio visto do Ocidente

vaÌer o direito de todo súdito do Império apelar perânte ajustiça suprema doimperador Todavia, a idéia de uma romanidade cristã englobando Oriente eOcidente e unida sob a autoridade do soberano de Con.rãnrinooÍa nao resrs-te ao choque das invasóes muçulmanas no Orìente, lombardas e deoois ca_rolíngias na Itália -, às evoluçóes culturais divergentes, aos sobressaltos das he-resias orientais em face das quais o papa aparece como o mais iruportanreguardião da ortodoxia de Nicéia. Na primeira rnetade do século VIIÌ, Bizân-cio deixa de ser para o Ocidente um poder tutelar, salvo em raras regióes daItália mantidas sob sua dominaçáo direta.

DrscourreNçe E TNcoMpREENSÃo

Vários fatores políticos e religiosos concorreram para tornar o ImpérioBizantino cada vez mais estranho ao mundo ocidental. Do ponto de vista po_lítico, o acontecimento decisivo é a intervenção carolíngi" rr" káIi". Com efei-to, depois da queda de Ravena o papa Esrevão II nao obreve do imperadorConstantino V o apoio que pedia contra os lombardos. Ele voÌta-se oara Pe_pino, o Breve, que oferece ao papado o reconquistado exarcado de Ravena,fundamento do futuro patrimônio de São pedro. Bizâncio considera-se rrarooe rompe com o papado. Em Roma é enrão elâborada uma célebre falsificacão.a "Doação de Constantino", segundo a qual, no momento em que paruu parâfundar Constantinopla, Constantino teria transferido ao papa Silvestre todoo poder sobre Roma e a ItríIia. A idéia essencial do do.uro.nro (correnremen-te usado na Ìdade Média) é excluir os bizantinos da península e estabelecer osdireitos do papa à sua sucessão, fazendo do pontífice o receptoÌ das insígniasimperiais, pradcamente idenrificando-o com o imperador.

fJm novo motivo de discórdia ocorre em 800, com a coroação imperialde Carlos Magno, considerada por Bizâncio um ato de rebelião, como a rnsu-portável prerensão da Velha Roma de retomar para si o direito de fazer o im_perador. Confrontado com uma violenta reação antiocidental em Bizâncio,CarÌos Magno contemporiza. Em vez de se intitular imperator Romanorum,qualificação que Constantinopla não podia admitir, contenta-se em ser cha_mado "governador do Império Romano" e em 812 negocia um compromrssocom o basileus Mieuel Rangabe: a unidade política do mundo romano é res_taurada sob a forma de dois impérios irmãos, Bizâncio abandonando o norreda ÌtáÌia, a Ístria e a Da.lmácia, Carlos Magno renunciando ao dtulo de impe_rador dos romanos. O universalismo do Ìmpério do Oriente resta em reoria

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Diiorulrìo Temátìco do Ocidente Merlieual

intacto. Luís II, em sua carta a Basílio I (871), procum voltar atrás nestas con-

cessões e nega ao basileus seu título de imperador dos romanos, situando na

Ìgreja-máe de Roma a fonte do poder imperial. Basílio I respondeJhe ponto

por ponto, mas depois a querela se apazigua em razáo do enfraquecimento e

desaparecimento do Império Carolíngio.

A restauração do Império em 962 náo teve na origem um caráter antibi-

zantino. Fiel à tradição franca, Oto I pretende apenas a paridade entre os dois

impérios. Porém, diante da oposição de Bizâncio à sua atuação na ÌtáÌia do Sul,

e à recusa de Nicéforo Focas em reconhecer seu título imperial, ele acentua o

caráter romano do seu poder, como se pode ver na narração da infrutífera

embaixada de seu enviado Liutprando de Cremona a Constantinopla (968)

Pela primeira vez são lançadas invectivas contra Bizâncio, que nada teria feito

pâÍa socorrer o papado; só Oto I é autêntico imperador dos romanos. Então,

no auge de seu poder, Bizâncio replica, manifestando seu desprezo em relação

ao embaixador de Oto e defendendo com vigor suas possessóes da Itália do Sul.

O conftlito de interesses, concÍetos e antagônicos, leva desta forma gralde par-

te do Ocidente a se opor ao universaÌismo imperiaÌ bizantino.

No plano religioso, diversas crises abalam a romanidade crisú e distanciam

progressivamente o catolicismo romano da ortodoxia de Constantinopla. Em

primeiro lugar, nota-se uma incompreensão ctescente entre as duas partes da

Cristandade, cada uma passando a ignorar a língua da outra. Em Roma, só aÌ-

guns especialistas da chancelaria pontiffcia conhecem algo do grego; em Bizân-

cio, não se faz muito esforço para aprender o latim. As divergências de menta-

lidade arrrltam por ocasião da crise iconoclasta. O papa Gregório II (7I5-73I)

excomunga o imperador kão III Isáurico, enquanto seu sucessor Gregório III

condena o iconoclasmo. Como bem sublinha mais tarde o cronista venezrano

Ándré Dândolo, os editos iconoclastâs sepaÍam as populaçóes italianas do Im-

pério e justificam a atribuição da coroa imperial a Carlos Magno. Desde o prin-

cípio do século lX os francos começam a desconfiar da reddão dos gregos: estes

são cristãos duvidosos e de uma espiritualidade estranha. Ao respeito iniciaÌ so-

brevém a desconfiança, que alimenta uma incompreensão crescente.

Rweuoales E RUPTURAS

Esta incompreensão mútua acentua-se no século ÌX, devido às rivalida-

des pela dominação espiritual e política das popuÌaçóes ainda pagãs, em vias

de conversão, quer dizer, os eslavos. Duas concepçóes de missáo se opoem: no

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Bizâncio visto do Ocidence

Ocidente, onde a Igrejâ é relativamente independente do poder imperial, amissáo é concebida como defesa da lgreja Romana e depende antes de tudoda iniciativa do trono romano. Em Bizâncio, a colaboração entre os dois po-deres - Igreja e Estado - para a gestão do Império e sua expansão no exterioré taÌ que a cristianização equivale à helenização e ao crescimento do corpo po-Ìítico. Daí as tensóes entre as duas partes da Cristandade para assegurar a do-minação dos novos convertidos. Roma domina a Croácia-Dalmácia e fixa du-ravelmente as fronteiras da ortodoxia nos limites sérvio-croatas - corÌo scpode ver ainda hoje. Na Bulgária, o hhanBóris de início aproxima-se de Romamas pende finalmente para o lado de Bizâncio, enquanto a Morávia, inicial-mente evangelizada pela missão dos irmãos Constantino-Cirilo e Metódio,liga-se ao domínio Franco. O choque das duas correntes missionárias é o panode fundo das primeiras fraturas entre as duas lgrejas.

A primeira delas ocorreu no momento da conversão dos búlgaros. O cis-ma chamado "de Fócio" era de fato uma querela entre as duas correntes quedividiam a igreja bizantina. Mas Roma condena Fócio, um dos maiores sábiosbizantinos, em razão das condições anticanônicas de sua ascensáo ao üono pa-triarcal em 858. A querela, encerrada no concílio de 879-880, dá ocasião deformular as diferenças entre as duas Igrejas, tanto sob o ponto de vista disci-plinar quanto sob o ponto de vistâ dogmático. A interpretação da primazia ro-mana e o problema da 'procedência do Espírito Santo" (Filioque) seriam do-râvante a pedra de toque de uma ortodoxia que Bizâncio reivindica face aoOcidente. A segunda fratura, bem conhecida, é aquela de 1054, o cisma deMiguel Cerulário e a excomunhão recíproca do patriarca e dos legados ponti-fícios. Ela se produz no momento em que as duas Igrejas disputam a jurisdi-

ção sobre a Itália do Sul e em que o papado, por meio da reforma pontifical,começa a afirmar o caráter universal de seu poder

Apenas as repúblicas marítimas italianas, outrora bizantinas, conrmuamaté o século XÌ muito fiéis ao império. Não é o caso de Gênova, que foi logoabsorvida no domínio lombardo, ou de Pisa, mas é o caso sobretudo de Vene-za e Amalfi. A Venécia mantém-se por muito tempo província bizantina e sóse liberta lentamente da tutela de Constantinopla. O passado bizantino dá aVeneza uma legitimidade que ela perderia caso rompesse com o Império. Em-bora os juízos de valor sobre Bizâncio sejam raros nas fontes venezianas da ÁltaIdade Média, sente-se uma relação de amor e ódio, de dependência e progres-sivo distanciamento. A importância de Constantinopla esrá sempre destacada:os doges, os patriarcas e seus parentes vão para lá com freqüência e recebem tí-

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Dicianlrìo Tèmátìco do Ocídente Medieual

tulos áulicos do basileus. O lugar resewado à história bizantina nas crônicas ve-

nezianas testemunha o grande vigor destes laços até peÌo menos o sécuÌo X. O

mesmo ocorr€ com AmaÌfi, onde os duques, agraciados também com títulos

bizantinos, consideram Constantinopla sua segunda pátria. Ìndo além, a famí-

lia Mauro-Pantaleone , solidamente estabelecida na capital imperial, quer fazer

do império uma muralha contra a conquista normanda Até o fim do sécuÌoXI, venezianos e amalfitanos consideram-se aliados fiéis de Bizâncio. São tam-

bém os principais propagadores das obras de arte bizantinas no Ocidente me-

dievaì, com seus tecidos de púrpura e paramentos de altar (muitos conservadosainda hoje nos tesouros de ìgreja$, portas de bronze para a ornamentação de

catedrais e basílicas de Roma e da Itália do Sul, ícones bizantinos introduzidosdesde o século X na península por São Nilo de Rossano. A arte bizantina exer-

ce uma verdadeira seduçáo, que conhece seu apogeu durante o século XI na

Itália normanda (capela Palatina de Palermo, Monrea.Ìe).

A queoe on Cor.rslrelr'tINopLa

As cruzadas destruirão esta imagem ainda favorável de Bizâncio. Os che-

fes da primeira cruzada esperavam ajuda e assistência da parte de AÌeixo I

Comneno, em troca do juramento de fidelidade que quase todos tinham sido

obrigados a lhe prestar. Ora, no sítio de Antioquia, em 1098, ficaram entre-

gues à própria sorte, à espera do socorro imperial. Boemundo, filho de Rober-

to Guiscardo, inimigo irredutível de Bizâncio, espalha a idéia de traiçáo dos

gregos por ocasião de seu retorno triunfal à França e à ltália, onde procura or-

ganizar uma cruzada contra Bizâncio (1106-1 107). O tema ganha maior di-mensão no decurso do século XII: os gregos, claramente contrários a toda

idéia de guerra santa, são suspeitos de querer sabotar os esforços dos ociden-

tais em favor da Terra Santa. Eudes de Deuil, cronista da segunda cruzada, re-

produz a impaciência dos cavaleiros franceses que acompanhavam Luís \4I

quando ele encontÍa o basìleus Manu'el I Comneno. A partir de meados do

século XII, amadurece a idéia de que Constantinopla representava um obstá-culo no itinerário dos cruzados que rumâm para Jerusalém. Isaac IÌ Ar.rgelo

não entra em tratativas com SaÌadino no momento em que â cruzada alemã

conduzida por Frederico Barba-Ruiva penetra no Ìmpério? Ameaçado pela

conquista de sua capital, ele negocia, forçado, o tratado de Andrinopla, que

abre às rropas germánìcas o acesso à Ásia Menor

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Bizâncio visto do Ocidente

Do lado das repúblicas marítimas italianas, a mudança de âtiude em re--:ção a Bizâncio segue vias paralelas. As fontes genovesas do século XII ainda

,ro pouco explícitas. A crônica de Caffaro e seus continuadores menclona:penas a capital do Ìmpério e o imperador de Constantinopla - jamâis quâli-

ìcado de imperador dos romanos. As embaixadas genovesas quer€m se apro-çeitar da crescente fraqueza do Império para obter igualdade de tratamento;om as outras repúblicas marítimas itaÌianas. Em Veneza, os cronistas procu-raÌÌÌ mostrâÍ que sua pátria separa-se do Império contra sua vontâde e aüi-buem a responsabilidade da ruptura a Manuel Comneno. Q:anào o basileuspede apoio da frota veneziana contrâ os normandos de Rogério II, o patriar-ca Henrique Dândolo, ancestraÌ do doge da quata cruzâdâ, opõe-se com fir-meza, recusando socorrer cismáticos contra fiéis à fé romana. A intervençãode tropas bizantinas na Itáìia em nome de um universalismo imperiaÌ deca-dente irrita a Sereníssima. O rancor transforma-se em cólera e ódio quando,em 12 de março de 1171, todos os venezianos estabelecidos no Império sáopresos e seus bens confiscados. Os interesses vitais da república estão em jogo;

as autoridades venezianas náo cessam de reclamar indenizações, sempre con-siderando que a perffdia imperial torna impossível qualquer tentativa de en-tendimento. O caminho encontra-se aberto para o desvio da quarta cruzadarumo â Constantinopla, que a historiografia veneziana justifica com base emexigências religiosas: restabelecer a unidade cristã pela reunião das Igrejas.

Em fins do século XÌI, o Império é visto pelos ocidentais como "o ho-mem doente da Europa". Devastado pelos normandos na efêmera tomãda deTessalônica (1185), depois pelo imperador germânico Henrique M, a tenta-tiva para domináJo completa-se por ocasião da quarta cruzada. As modaÌida-des de uma divisáo que beneficiou principalmente Veneza importam menosque o sentido do acontecimento. Pela primeira vez, Constantinopla é conquis-tada: verdadeiro castigo de Deus, justificado pelos crimes dos gregos e de seuschefes, desgarrados de sua fé. O doge de Veneza intitula-se "dominador de umquarto e meio do império da România", enquanto o imperador ladno deConstantinopla (o único legítimo daí em diante) opõe-se ao intperator Greco-rum que, desde Nicéia, esforça-se por perpetuar as tradiçóes bizantinas. Osocidentais apropriam-se do tesouro de relíquias que abundavam na capital bi-zantina, consid€rando indigno que estivesse guardado por cismáticos. Eles Ên-gem crer na restauração da união das lgrejas, tornada possível em razão daconquista de Constantinopla. Na realidade, a ruptura é total entre as duas par-tes da Cristandade.

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Dicionáio femático do Ocidente Medìeual

Despnrzo E sol-rcrruDn

No decorrer dos dois últimos séculos de sua existência (1261-1,453), Bì-zâncio torna-se para os ocidentais objeto de difamação e de solicitude. Venezamanifesta grande resewa em relação à união das Igrejas, tanto no Concílio deLyon (1274) quanto no de Florença (1439). O doge-cronista André Dândoloexprime com convicção a idéia de que apenas sua pátria está qualificada paracontinuar a obra imperial no Oriente, depois de ter retirado de soberanos cis-máticos e corrompidos o Império herdado de Constantino. Não surpreende queVeneza tenha chegado a achincalhar a autoridade e o prestígio do imperador aomandar prender Joáo V como devedor insolvente , em 1370, no momenro emque ele negava a fe de seus pais a fim de obrer ajuda dos ocidenrais conÍa osturcos. Procurando presewar todos os seus direitos sobre a România e reforçarsuâ âtividade econômica, Veneza contribuiu, tanro quânto Gênova, para o en-fraquecimenro do lmperio.

Aliada do basileus na reconquista de Constantinopla em 1261, a comu-na Ìígure adota em seguida uma atitude de desprezo e de orgulho diante dafraqueza imperial bizantina, particularmenre depois do reinado de Andrôni-co II (128I-1J28). Todas as ocasióes são boas para ocupar territórios bizan-tinos - Quios, Focéia, MitiÌene e para intervir nas questões internas do Im-pério. Os cronistas genoveses partilham com o resro do Ocidente o desdéme a indiferença pelo destino trágico de Bizâncio, assaÌtado pelos urcos. Gê-nova acolhe com fausto Manuel IÌ PaÌeólogo quando de sua passagem peloOcidente, mas, diante de sua miséria financeira e milìtar, não lhe dá nadaalém de boas palavras e algumas moedinhas. As únicas exceções sáo o espíri-to çavaleiresco dos defensores genoveses de Constantinopla, depois as tropasreunidas por Boucicaut e Châteaumorânt em 1396, o pequeno grupô de

João Giustiniani em sua luta desesperada contra os otomanos em 1453.A soÌicitude do papado em relação a Bizâncio deve-se ao tema cenrral

da política oriental de Roma: realizar a união das Igrejas em torno do sobe-rano pontífic€. Mas as formas desta união podem ser diversas. Em 1274, opapa Gregório X não se preocupa com as diferenças douminais e obriga osenviados de Miguel WII a uma verdadeira capitulação, aceita pelos gregospara aniquilar o projeto de conquista de Bizâncio por Carlos de Anjou.Compreende-se sem dificuldade que o basileus não tenha podido impor talunião ao seu clero e ao seu povo, resolutamente hostis ao Ocidente. As ne,gociaçóes de Ferrara e de Florença (1438-1439) são marcadas por um maror

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Bizâncio visto do Ocidente

respeito em relaçáo às rradições da lgreja do Oriente, particularmente pelamanurenção de seus ritos. Mas os esforços do papado não tiveram umâ con-trapaÌtida tangível. Desacreditada pelo Grande Cisma e pela crise conciliar,Roma não pôde impor aos governanres a cruzada qu. ,"Ìu".i" Bizâncio. OsEstados do Ocidente recusam-se a realìzar qualquer ação conrrâ os rurcos,antes ou depois da queda de Constantinopla. A cruzada lançada por pio IItermrna com a mone do pontífice, antes mesmo de ter começado. A uniãodas lgrejas, proclamada no Concílio de Florença, esbarra na indiferença doOcidente em relação a Bizâncio e no ódio do povo bizantino _ inqueoranra_veÌ em sua fé -, com exceção de alguns teólogos e intelectuais que Ìentarama aproximação das lgrejas e das culruras.

No momenro em que o poder imperial desaparece, e no quaÌ a herança daortodoxia é assumida por Moscou - a terceira Roma -, o Ocidente descobre a ri-queza da cultura helênica. Os humanistas, como Enéas Sílvio piccolomini (pioIÌ), admiram a primazia intelectual de Consrantinopla e de seu ensino. Os unio-nistas têm grande conribuifo nesta descoberta. Veneza, pádua, Roma, Floren_ça os acolhem para seus estudos. Kydonès, Isidoro de Kiev ou Bessarion são re_conhecidos e admirados. Demétrio Chalkokondylis inaugura em 1463 a cadeirade grego na Universidade de Pádua. Numerosos manuscritos gregos chegam aoOcidente. Ás obras do Pseudo-Dioniso o Areopagita, por exemplo, são ofereci_das em 1408 por Manuel Crisoloras ao mosreiro de Saint-Denis. O esplendoro-so manuscriro das obras de Platão, atualmente conservado na Biblioteca Nacio-nal de França, pertenceu aJúlio Lascaris - emigrado grego na corte dos Médicise depois junto aos Valois, em Paris. Bessarion, feito cardeal da Igreja romana, dei_xou sua biblioteca p araYeneza, onde depois veio a ser fundada a primeira im_pÌessora grega, em 1486 - abrilhantada oito anos mais tarde com o trabalho deAldo Manucio. Em suma, o Ocidente descobre o helenismo, que fecunda o hu,manismo e o Renascimento, quarrdo Bizâncio acaba de desaparecer. Ao contrírio de Voltaire, que mais tarde desprezará a monarquia absolura e a orrodoxia deEstado (em que para ele se resumem onze séculos de história), a Idade Média tar_dia pelo menos compreendeu a missão civilizadora do velho Império Romaro doOriente, a de ter tralsmitido ao mundo a cultura da Antigüidade grega.

Mrcner, BelenoTi,adução de José Riullir Macedo