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MultiTextos CTCH O medo no Ocidente Ano 0 - nº 03 - 2006

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O medo no OcidenteAno 0 - nº 03 - 2006

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REVISTA MULTITEXTOS CTCH nº 03O medo no Ocidente

SUMÁRIO

ApresentaçãoPe. Luís Corrêa Lima

O Medo e a HistóriaLeandro Konder

A história do medo de Jean DelumeauPe. Luís Corrêa Lima

Uma pesquisa histórica sobre o medo: razões, explicações, conclusõesJean Delumeau

O medo do outroMonique Augras

A Igreja deve temer o futuro? Jean Delumeau

A primavera da esperança: um cristianismo para amanhãMárcio Tavares d´Amaral

O jardim das delícias: a saudade do paraíso terrestreJean Delumeau

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APRESENTAÇÃO

Pe. Luís Corrêa Lima1

Jean Delumeau é um dos mais importantes historiadores contemporâneos, com uma vasta obra traduzida em português. Atualmente é membro aposentado do Colêge de France. Seu trabalho mais conhecido é a História do medo no Ocidente, uma obra pioneira em que analisa diversas manifestações sociais deste sentimento nos séculos XIV a XVIII. O seu principal campo de pesquisa é a história das mentalidades, tocando temas do cristianismo.

Esta história das mentalidades pode ser dividida em três partes: 1) os medos externos e internos que deram origem a obras sobre o pecado, a culpabilidade e o medo; 2)

o sentimento de segurança, presente em diversas práticas sacramentais e religiosas; e 3) a representação da felicidade, abrangendo as diversas concepções de paraíso e o milenarismo. Todas abordam o período do final da Idade Média e da Idade Moderna.

Delumeau veio à Puc-Rio em setembro de 2005. A sua primeira conferência foi sobre a história do medo, seguida de debate com a psicóloga Monique Augras, o professor Márcio Tavares, o filósofo Leandro Konder e com esse historiador. A segunda conferência tratou do futuro do cristianismo, abordando a relação entre a Igreja e a modernidade, com seus conflitos e perspectivas. A terceira foi sobre a idéia de paraíso terrestre, da antiguidade até o presente.

Cada conferência corresponde ao resumo de um livro, respectivamente: A história do medo no Ocidente, GUetter l’aurore – um christianisme pour demain2 e Uma história do paraíso – o jardim das delícias. A presença de Delumeau entre nós é uma relevante contribuição para a universidade católica como local de encontro de saberes, de cultivo de reflexão crítica e de formulação de um pensamento cristão à altura de nosso tempo. Com esta publicação, as conferências e os debates tornam-se disponíveis a professores, alunos e todo o público interessado.

1Padre Jesuíta, historiador e professor do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio.2Espreitar a aurora: um cristianismo para o amanhã, a ser traduzido pela Editora Loyola.

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O MEDO E A HISTÓRIA

Leandro Konder1

Vivemos numa época na qual a História marca presença com muita ênfase na nossa existência. As mudanças proliferam e nos dão a impressão de que estão se acelerando. Em alguns casos, os hábitos, as instituições, os costumes, os valores que há um ou dois séculos levavam duas ou três gerações para se modificar vêm se transformando no âmbito de uma mesma geração.

Nossa maneira de apreender essas modificações, que nos parecem vertiginosas, não poderia deixar

de se modificar. Contudo, nem sempre temos conseguido mudar suficientemente nosso modo de encarar as mudanças. O saudoso Helio Pellegrino nos advertia sempre para o fato de que existem matrizes internas para o conservadorismo. Mudar é se arriscar a perder sua identidade, é correr o risco de morrer.

Um dos desafios que aparecem no caminho dos historiadores está na dificuldade de lidar com os

movimentos subjetivos dos homens, com a expressão dos entendimentos, das emoções, dos anseios, dos temores. Se não forem capazes de compreender essas manifestações – subterrâneas ou ostensivas – da subjetividade, os pesquisadores não conseguirão aprofundar o exame do “clima” de cada grupo em cada época.

O bravo historiador Jean Delumeau empreendeu uma investigação de algumas das formas da presença

do medo na história. A expansão e o “adensamento” do medo são sempre significativos. No tempo do barroco, por exemplo, a gente se pergunta o que se passava na cabeça do filósofo Hobbes quando escreveu: “Quando nasci, minha mãe teve gêmeos: eu e o medo”. Ou o que se passava na cabeça do pintor Velazquez quando, ao pintar o rosto de Cristo crucificado, com medo de cometer uma heresia, figurou Jesus com a cabeça pendendo para a frente, com o rosto coberto pelos cabelos.

O medo dá conta da dramatização de uma crise. A crise, conforme a caracterização feita por Gramsci,

é aquilo que acontece quando os antigos padrões estão severamente desgastados e os novos padrões, que deveriam substituí-los, ainda não têm condições para desalojá-los das posições que ocupam.

O veterano Jean Delumeau, apoiado em sua sensibilidade e em sua experiência, debruça-se como historiador sobre as formas do medo, procurando entender o que está por trás de cada uma delas. Suas observações evitam o tom taxativo, peremptório. Não pretendem ser pontos de chegada definitivos. Mas pretendem – e conseguem – dar o que pensar.

Notas

1 Professor do Departamento de Educação da PUC-Rio.

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A HISTÓRIA DO MEDO DE JEAN DELUMEAU

Pe. Luís Corrêa Lima1

Esta interessante história do medo resumidamente apresentada também tem sua própria história. A convocação de Georges Lefebvre e Lucien Febvre de “restituir ao medo seu lugar legítimo na história”, foi assumida com afinco por Jean Delumeau que lhe dedicou longos anos e uma vasta pesquisa até realizar uma obra ampla, original, brilhante e inspiradora.

Como é que na história intelectual francesa foi possível se chegar a uma história cujo tema é o medo? A escrita da história, chamada historiografia, também tem própria história. Em um passado que durou até há poucas décadas, os temas da história eram os acontecimentos importantes, com suas grandes datas, a crônica política e as biografias ilustres, que se voltavam para reis, generais, diplomatas e outras personalidades renomadas. Era a chamada ‘história factual’.

Na França e em outros países, muitos escritores e intelectuais sentiam a necessidade de uma ‘história da sociedade’, que não se limitasse à guerra e à política, mas que se preocupasse com as leis e o comércio, a moral e os costumes. Já no século 18, Voltaire fazia uma contundente crítica à história tradicional. Em seu livro Essai sur les moeurs, ele diz:

Apenas foi feita a história dos reis, mas não foi feita a da nação; parece que durante 1.400 anos houve nas Gálias somente reis, ministros e generais, mas nossos costumes, leis, hábitos, vestuário e espírito não estão lá?2

A grande renovação da historiografia francesa no século 20 se deu em torno da revista Annales, fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch. Inicialmente se chamava Annales d’histoire économique et sociale. Tinha 300 ou 400 exemplares. Era algo marginal e visto como heterodoxo. Os historiadores dos Annales substituíram a história narrativa tradicional pela história-problema, a história que nasce de uma pergunta e de outras correlatas. Esta pergunta pode muito bem ser: quem tem medo de que? Eles ampliaram os objetos da historiografia: não só a política, mas todas as atividades humanas podem ser temas a pesquisar. E também promoveram uma ampla colaboração com outras disciplinas, como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a linguística e a antropologia social, em busca de uma explicação abrangente. L. Febvre se insurge contra os muros que confinavam as ciências nas suas respectivas especialidades.

Novas ênfases ocupavam o lugar da historiografia tradicional, numa espécie de combate intelectual: o pensamento totalizante contra o pensamento segmentado, o homem global contra o homem fracionado, os fundamentos econômicos e sociais contra a fachada política, a longa duração contra o eventual. A ênfase dos Annales será o ‘não factual’ da história: o mundo mais durável, mais estruturado, mais resistente à mudança, que corresponde à vida material econômico-social e à vida mental. Neste campo, o tempo histórico se revela como permanência, constância, resistência e necessidade social. São ações coletivas, repetições dos mesmos gestos eficazes de produção, troca e consumo, comportamentos inconscientes, normas, símbolos e ordens sociais3.

O grupo dos Annales formou um núcleo em Paris, em 1947, a 6a Seção da Escola Prática de Altos Estudos. A idéia de L. Febvre era promover uma espécie de ateliê de história, com a colaboração de economistas, sociólogos e geógrafos. Com a morte de L. Febvre, em 1956, seu discípulo e braço direito Fernand Braudel passa a dirigir a revista e a 6a Seção. Braudel se tornou bastante conhecido por seu livro sobre o Mediterrâneo no tempo de Felipe II.

Nesta obra, há uma divisão em três partes, correspondendo a três velocidades dos movimentos históricos, onde cada uma pretende ser uma tentativa de explicação do conjunto. A primeira trata da história lenta, quase imóvel, das relações do homem com o meio que o rodeia, feita de transformações lentas, muitas vezes com retrocessos, uma história de ciclos sempre recomeçados.

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São ciclos da agricultura, criação de rebanhos, procedimentos técnicos multisseculares, deslocamentos de populações e diversos aspectos da vida material. Acima desta, desenvolve-se uma outra história com um ritmo menos lento, a história social, dos grupos e agrupamentos, onde entram as economias, os Estados e as sociedades. A terceira parte, por fim, é a da história “tradicional”, do indivíduo, uma história de acontecimentos, da “agitação da superfície”, das ondas levantadas pelo poderoso movimento das marés, uma história com oscilações breves, rápidas e nervosas1. As três partes correspondem a temporalidades diversas: a geográfica, a social e a individual, com suas respectivas velocidades.

O Mediterrâneo de Braudel se tornou uma espécie de síntese dos Annales por incorporar diversas perspectivas da historiografia em uma única obra. Foi certamente um dos mais importantes livros de história do século 20. Os grandes acontecimentos tinham seu lugar, como a famosa batalha naval de Lepanto, entre turcos e cristãos no século 16, como também os grupos sociais, as civilizações, as permanências e as mudanças lentas. Delumeau fez sua tese de doutorado com Braudel nos anos 50. Ele foi seu orientador extra-oficial. O tema da tese foi a história econômica e social de Roma na segunda metade do século 16. A ênfase naquela época era a história sócio-econômica. Os estudos de Delumeau no campo das mentalidades sobre o medo, a segurança e a representação do Paraíso só viriam bem depois.

O final dos anos 60 também mexeu com a historiografia dos Annales. Um grupo de discípulos de Braudel assume a direção da revista e da 6a Seção, em meio a fortes atritos com seu mestre. Eles imprimem à revista uma nova direção, privilegiando a história sócio-cultural, as mentalidades, a narrativa, a história política e o papel do indivíduo. Nos anos 70, historiadores dos Annales conseguem uma grande visibilidade na mídia francesa e são bastante difundidos. Le Roy Ladurie, Marc Ferro e Jacques Le Goff ficam bastante conhecidos. A 6a Seção se torna a atual Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, podendo conferir títulos universitários. Dessa forma, eles são plenamente incorporados ao establishment francês.

Os novos rumos dos Annales não agradam Braudel. Aquela história das mentalidades lhe parece um campo desconectado da totalidade que a história social deve abranger e tentar explicar. Soa como uma renúncia à explicação de conjunto, tão cara aos fundadores dos Annales. Certa vez em um debate, ele desabafou:

(...) estou de acordo com Eric Hobsbawn: não existe uma história autônoma das mentalidades. Elas estão ligadas ao resto. Creio que meus sucessores não se dão totalmente conta disto. Eles dão a impressão - na medida em que se voltam para as mentalidades - de estar abandonando este solo econômico que nos facultava uma ligação com nossos colegas marxistas. Eu, que sou a favor de uma história globalizante, como poderia estar de acordo?5.

Braudel ficou em seu caminho. Prosseguiu seu trabalho em uma vasta história mundial da vida material e do capitalismo, a qual dedicou 25 anos. Ela foi concluída em 1979. Um anos antes, Delumeau lançou sua História do medo no Ocidente. Na história das idéias, entretanto, em dois caminhos diferentes pode haver intercâmbios interessantes. O principal instrumento teórico de Braudel era a ‘longa duração’, a identificação de permanências multisseculares ou milenares nos processos históricos. O historiador, ao tratar das mudanças, deveria analisar também aquilo que não muda.

Nos movimentos que afetam a massa da história atual haveria uma herança fantástica do passado. O passado lambuza o tempo presente. Para Braudel, toda sociedade é atingida pelas águas do passado. Este movimento não é uma força consciente, é de certa forma inumana, o inconsciente da história. O passado, sobretudo o passado longínquo, invade o presente e de certa forma toma nossa vida. Por mais que nos esforcemos, somos arrastados pela massa6. O presente em grande parte é a presa de um passado que teima em sobreviver; e o passado, por suas regras, diferenças e semelhanças, é a chave indispensável para qualquer compreensão séria do tempo presente. Em geral, não há mudanças sociais rápidas. As próprias revoluções não são rupturas totais7.

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Nesta história profunda, lenta e quase imóvel das permanências, está presente a longa duração. Segundo Braudel, outros já a haviam estudado, sem lhe darem este nome. L. Febvre dedicou-se a analisar a outillage mental, a ferramenta teórica, do pensamento francês na época de Rabelais, um conjunto de concepções que, bem antes de Rabelais e muito tempo depois dele, comandou as artes de viver, de pensar e de crer, e limitou duramente a aventura intelectual dos espíritos mais livres. A idéia de cruzada, estudada por Alphonse Dupront, permaneceu, atravessou sociedades e tocou os homens desde a Idade Média até o século 19. Pierre Francastel assinala a permanência de um espaço pictural geométrico desde o Renascimento florentino até o cubismo, no início do século 20. O universo aristotélico e sua cosmologia se mantêm quase sem contestação até Galileu8.

A genialidade de Marx, para Braudel, estaria em seus modelos sociais a partir da longa duração histórica. Ela estaria presente também na Reforma protestante e na Contra-reforma católica. A antiga fronteira do Império Romano, o Reno e o Danúbio, tornou-se em grande parte a fronteira do mundo católico e do mundo protestante.

Uma revolução tão profunda quanto a francesa está longe de ter mudado tudo de um dia para outro. A mudança sempre compõe com a não mudança. Assim como as águas de um rio condenado a correr entre duas margens, passando por ilhas, bancos de areia e obstáculo, a mudança é surpreendida numa cilada. Se consegue suprimir uma parte considerável do passado, é necessário que esta parte não tenha uma resistência forte demais e que já esteja desgastada por si mesma. A mudança adere à não-mudança, segue suas fragilidades e utiliza suas linhas de menor resistência. Ao lado de querelas e conflitos, conclui Braudel, há compromissos, coexistências e ajustes9.

Delumeau analisou os medos do Inferno, do demônio e do fim do mundo entre os séculos 14 a 18. Com o progresso das ciências em diversos campos, houve grandes mudanças na teologia católica ao longo do século 20. Foi aceito definitivamente o método histórico-crítico para a compreensão das Sagradas Escrituras. A visão literal, fundamentalista, foi abandonada. Isto traz diversos desdobramentos.

O Inferno, por exemplo, passou a ser visto como uma possibilidade inerente à própria liberdade humana. O ser humano é livre para se fechar definitivamente ao amor de Deus e do próximo, e assim se condenar. Isto não significa que esta possibilidade tenha se concretizado ou vá se concretizar para alguém. O Inferno existe, sim, mas pode estar vazio. Suspeita-se que demônio - o anjo decaído que arrastou consigo uma legião celeste, autor e a própria personificação do mal – não seja de fato um ser pessoal, mas uma forma de representação do mal ligada a determinado contexto histórico-cultural. Também não é preciso se conceber o fim do mundo como o arrebatamento dos fiéis no espaço sideral, seguido da destruição do Planeta atingido pelas estrelas. Mesmo que tudo isto ainda não tenha se tornado doutrina oficial e nem conste no Catecismo, trata-se de séria reflexão teológica com ampla difusão.

Algo bem diferente se passa atualmente na religiosidade popular brasileira. O demônio está vivíssimo. Com a difusão das igrejas pentecostais e neopentecostais, as velhas crenças na ação diabólica se juntam às crenças no mal olhado, no feitiço, na maldição e no ‘encosto’ – perverso espírito da mata da mitologia ameríndia que invisivelmente oprime as pessoas. Contra todos eles se oferece cura eficaz com exorcismos, ‘descarregos’ e vários outros rituais. O fim do mundo continua iminente, como ameaça devastadora pior que um furacão e uma dura advertência. Um outdoor de certa igreja interpela os transeuntes na rua: “você está preparado para o arrebatamento?”

Mesmo na Igreja Católica nem tudo é mudança. O exorcismo voltou, depois de um longo tempo de quase abandono. O rito oficial de expulsão do demônio de 1648 foi refeito e publicado em 1999. Só a Itália já tem cerca de 400 padres exorcistas. Convém ressaltar que há restrições. Somente um sacerdote com licença especial do bispo pode exorcizar e apenas em casos onde houver certeza de que não se trata de doença psíquica, cujo domínio é da ciência médica. O pecado e o medo do Inferno, por sua vez, continuam atormentando as consciências. Novos movimentos religiosos católicos têm obsessão pelo pecado, sobretudo os que dizem respeito ao sexo. Caro professor Delumeau, a velha ‘pastoral do medo’ continua. Em alguns casos, chega a ser ‘pastoral do terror’.

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Enfim, na história do medo, há um passado longínquo que teima em sobreviver. A mudança compõe com a não mudança, formando um amplo conjunto de coexistências e ajustes. A longa duração de Braudel muito ajuda a quem quiser estudar o medo e as mentalidades. Ele próprio não o fez, mas ninguém está proibido de fazê-lo e de fazê-lo com grande proveito.

A presença de Jean Delumeau entre nós me motivou a contar um pouco da história intelectual da França. Houve um momento em foi preciso enfrentar fortes barreiras ou até quem sabe vencer o medo para se escrever uma história do medo. Parabéns pela sua obra, professor Delumeau.

Notas

1Padre jesuíta, historiador e professor do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio.

2VOLTAIRE. Carta ao marquês d’ Argenson. 26/1/1740. In: DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à nova história. São Paulo: Ensaio/Campinas; Editora da UNICAMP, 1992, p. 94.

3REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 22.

4BRAUDEL, F. O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Vol. I. São Paulo: Martins Fontes, 1984, p. 25.

5_____________. (1977). In: DAIX, Pierre. Fernand Braudel: uma biografia. Rio de janeiro: Record, 1999, p. 585.

6_____________. Entrevista à J. C. Bringuier In: DAIX, Pierre. Fernand Braudel: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999, pps. 457 e 646.

7_____________. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. Vol. III. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pps. 10 e 50.

8_____________. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1992, pps. 50-51.

9_____________. Reflexões sobre a história. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pps. 356-357.

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UMA PESQUISA HISTÓRICA SOBRE O MEDO:Razões, explicações e conclusões.

Jean Delumeau¹

Apresentação da pesquisa

As razões científicas de uma pesquisa histórica sobre o medo são evidentes, uma vez que esse tema foi, raramente, objeto de estudos sistemáticos de uma parte de historiadores, franceses ou não. Reportando-nos aos cinco séculos que precederam à Revolução Francesa não podíamos, praticamente, citar a obra, remarcável e pontual, de Georges Lefebvre a respeito do Grande medo de 1798 (Grande peur de 1789) (em França), livro surgido em 1932, e um artigo de Lucien Fevbre publicado nos Anais (Annales) de 1956 sobre “o sentimento de segurança”. Estes dois autores convidavam a “restituir o medo ao seu lugar legítimo dentro da história”: o que eu tentarei fazer.

Todavia, no momento de começar esta tarefa, eu prometi a mim mesmo, como historiador, se Deus me desse vida, não me tornar prisioneiro do medo. Eu não desejava ser catalogado unicamente como um “historiador do medo”. Catálogo no qual as publicações de minhas obras confirmariam meu interesse ao tema que vai do medo ao sistema de segurança, porém, sem deixar de abarcar as esperanças de felicidade. Medo, segurança, felicidade: três grandes “objetos históricos”. A série completa foi, então, a seguinte: O medo no ocidente (La peur en Occident, 1978), O pecado e o medo (Le peché et la peur, 1983), Rassurer et protéger [“Tranqüilizar e proteger”], 1989, L’Aveu et le pardon [“A confissão e o perdão”], 1990, enfim três livros agrupados sob o título geral de História do paraíso. O primeiro, O jardim das delícias (Le jardin des délices), foi publicado em 1992; o segundo, Mil anos de felicidade (Mille ans de bonheur), 1995; o terceiro, O que restou do paraíso (Que reste-t-il du paradise?), em fins de 2000. Este caminho me exigiu vinte anos ao total de trabalho.

No início deste percurso, como eu percebi a falta de uma história do medo? Sem dúvida, em razão de vários traumatismos do medo que eu vivi na minha infância. Nos meus livros, as lembranças autobiográficas são raras por opção própria. Mas, no primeiro capítulo de O medo no ocidente (La peur en Occident), eu preferi esquecer um pouco desta regra e dar aos leitores as explicações pessoais que esclareceriam os dois livros que eu escrevera sobre a história do medo. Eu devo também precisar que, para a elaboração da obra, eu obtive informações junto a psiquiatras. Nós realizamos seminários em comum. Depois, quando saiu o livro intitulado Rassurer et protéger [“Tranqüilizar e proteger”], pediram-me que eu apresentasse os temas nos congressos anuais de psiquiatras franceses.

Desta maneia, a questão é posta, por que o silêncio prolongado sobre o medo na história? Sem dúvida a causa de uma tenaz confusão entre medo e covardia, coragem e temeridade também interferem na resposta. Por uma verdadeira hipocrisia, por vezes, o discurso escrito e a língua falada, se influenciam mutuamente, foram, durante o decorrer do tempo, tendendo a camuflar as relações naturais do medo, última das atitudes ruidosamente mascaradas de heróicas. “A palavra ‘o medo’ é carregada de tanta vergonha, escreve um psiquiatra, que nos escondemos. Escondemos no fundo de nós mesmo o medo que nos segura pelas tripas”.

É no momento em que começam a ascender na sociedade ocidental o elemento burguês e seus valores prosaicos que uma literatura épica e narrativa, encorajada pela nobreza ameaçada, reforça a exaltação sem nuance de seu temor. “Como a tocha não pode queimar sem fogo, ensina o cronista Froissart (segunda metade do século XIV), o burguês não pode ter acesso à honra perfeita, nem à glória do mundo sem proeza”. Três quartos de século mais tarde, o mesmo ideal inspira o autor anônimo do romance Jean de Saindré (cerca de 1456). Para ele, o cavalheiro digno deste título deve lutar contra os maiores perigos por amor e a glória de sua Dama. É preciso que se fale do cavalheiro por causa de suas bravuras guerreiras. Segundo o código de cavalaria do fim da Idade Média, adquiri-se mais honra arriscando a vida em combates desiguais.

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Os combates são o sustento do cotidiano de Amadis de Gaule, um herói personagem do romance bretão, que faz mesmo “tremer os mais cruéis animais selvagens”. O romance, no entanto, fora publicado na Espanha, em 1508, e traduzido em francês a pedido de Francisco I. De Amadis de Gaule e os suplementos, no século XVI, foram retiradas mais de 60 edições espanholas e um enorme número de traduções francesas e italianas. Mais impressionante ainda foi a fortuna gerada por Orlando furioso, de Ariosto: cerca de 160 edições entre 1516 e 1600. Orlando – Roland, em francês –, companheiro de Carlos Magno, “paladino inacessível ao medo”, desconhecido naturalmente “das detestáveis tropas dos sarracenos” que o ataca no desfiladeiro de Roncevaux. Graças a sua espada Durandal “os braços, as cabeças, os ombros voam por toda parte”. Quanto aos cavalheiros que Tasso põe em cena em Gerusalemme liberata, 1581 [“Jerusalém libertada”], chegam diante da cidade santa, eles marcham com impaciência, “avançam ao sinal das trombetas e se lançam em diante com altos gritos de alegria”.

Este arquétipo do cavalheiro sem medo, senão sem reprovação, foi constantemente ressaltada pelo contraste com uma massa considerada sem coragem. Montaigne, no século XVI, atribuiu aos humildes, como uma característica evidente, a propensão a medrosos, mesmo quando eles eram soldados: eles percebiam a chegada dos cruzados nos campos, onde eles só tinham um rebanho de ovelhas; eles usavam galhos de pequenos arbustos como lanças. Associando covardia e crueldade, Montaigne chama atenção para o fato de serem “imoralmente vulgar”. No século XVII, o moralista francês La Bruyère aceitou, por seu turno, como uma certeza a idéia de que a massa de camponeses, de artesãos e de servos não era corajosa porque ela não procuravam – e nem pode procurar – o renome. Na obra de Cervantes, a temeridade de Dom Quixote se opõe à maneira clássica da covardia de seu servo Sancho Pança, a quem o medo faz “distorcer tudo o que vê e ouve”. Este discurso da coragem e do medo era uma justificação do poder dos dominantes sobre a massa de pobres.

A partir da Revolução Francesa exaltou-se a valentia dos humildes. Aqueles que conquistaram o direito à coragem. Mas, o novo discurso ideológico copiou, largamente, o antigo e teve, ele também, uma tendência a camuflar o medo e exaltar, desta vez, o heroísmo dos humildes. Só é lentamente que uma descrição e uma aproximação objetiva saída da vergonha começaram a se fazer presentes. De maneira significativa, as primeiras grandes evocações de pânico foram equilibradas em contra-ponto aos elementos grandiosos que chegavam como desculpas para uma ruptura. Para Victor Hugo, é “a derrota, gigante diante da estupidez”, que foi a razão da coragem dos soldados de Napoleão em Waterloo; e “este campo sinistro onde Deus misturou tantas destruições// Treme ainda de ter visto a enorme fuga” (Les châtiments – “a expiação”). No quadro de Goya intitulado O pânico², um colosso no qual os punhos tocam um céu de nuvens, parece justificar o enlouquecimento de uma multidão que se dispersa precipitadamente em todas as direções.

Em seguida, pouco a pouco, a preocupação da verdade psicológico trouxe-o. Em Contos, de Maupassant, em Diálogos das carmelitas, de Bernanos, passando pelo livro Débâcle, de Zola, a literatura deu progressivamente ao medo seu verdadeiro lugar, ao enquanto a psiquiatria agora se volta cada vez mais para ele. Situação inversa da anterior: hoje, perdemos a conta das obras científicas, as autobiográficas, os romances, os filmes e as emissões televisivas que fazem figurar o medo em seu título. O medo é o filão das mídias e vende bem. Mas, curiosamente, a historiografia que, em nosso tempo, promoveu tantos domínios, negligenciou aquele: de onde minha pesquisa que é, sucessivamente, abordada em dois volumes: O medo no Ocidente e O pecado e o medo.

Pesquisa, então, sobre o medo no passado, mas em qual espaço e em que tempo? Surgiam aqui duas tentações: uma muito estreita e outra muito ampla; as duas perigosas: o excesso de concentração e o excesso de dispersão. Eu optei pelas soluções médias. O espaço foi o da civilização ocidental, pois não se pode ser especialista de tudo. Quanto à dimensão cronológica, ela me parece, a título de hipótese de partida para o primeiro dos dois volumes, que o período 1348-1648 oferecia para meus propósitos uma realidade coerente, ainda que não tenha se conformado aos recortes cronológicos tradicionais, pois que ela engloba sob um único olhar o fim da Idade Média, a Renascença e o início da época clássica.

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Mil trezentos e quarenta e oito, na Europa, marcou a entrada com força da peste, cuja existência fora esquecida desde o século VI, ao ponto dela parecer uma doença nova. Ela provocou um traumatismo enorme. Foi chamada de peste negra (mort noire). Matou, em menos de três anos, cerca de um quarto a um terço da população européia. O terreno tinha sido preparado desde os anos 1320, pois, o retorno da peste coincidiu com a conjuntura econômica. Depois o século XIII, as condições climáticas se complicam; em parte por causa do excesso de umidade; as más colheitas se multiplicam; a agricultura oscila.. As revoltas rurais e urbanas, as guerras civis e estrangeiras arruinaram os países europeus, nos séculos XIV e XV, tem-se, assim, um Ocidente mais aberto que antes às epidemias, às penúrias e à violência. A estes infortúnios em cadeias somaram-se as ameaças cada vez mais evidentes do perigo turco e o Grande Cisma (1378-1417), com dois, depois três papas concorrentes. Este evento foi considerado, então, como “o escândalo dos escândalos”. No início do século XV, o teólogo Gerson assegurava que ninguém entraria no paraíso até que o Cisma não tivesse terminado.

Seguramente, a situação demográfica e econômica da Europa se redireciona na segunda metade do século XV, a começar pela Itália. Contudo, a peste e as misérias continuaram a aparecer periodicamente, mantendo as populações em estado de alerta biológico. A peste ficou presente aí ou acolá, em condição endêmica até a epidemia que destruiu Marseille, em 1720; e, sobretudo, na ocasião da Guerra dos Trinta Anos, entre 1630-1632, testemunhou-se um grande retorno da peste, o qual os historiadores atuais bem qualificam de “segunda Peste Negra. Por outro lado, os turcos até a batalha de Lepanto aumentaram sua pressão, enquanto a ruptura do Grande Cisma, por um momento sanada, escancarou-se como nunca no século XVI com o nascimento do protestantismo e as sangrentas guerras de Religião, que só terminam com a Paz de Westphalie em 1648. Eis, então, os limites gerais no cerne dos quais eu desenvolvi minha pesquisa, reservando-me, no entanto, a necessidade de ultrapassar um ou outro ponto em particular. Minha pesquisa começa com O pecado e o medo, no século XIII, porque a decisão tornadas a confissão anual obrigatória remonta ao século IV, Concílio de Latran em 1215.

O medo é ambíguo

A visita freqüência ao passado conduz-me a supor que nossos ancestrais eram mais fatalistas e menos resignados que nós diante do mal. Mas, o que há ou não em nosso tempo é uma sensibilidade maior ao medo, aquela que – minha pesquisa histórica me convenceu disso – é e ficará um componente maior da experiência humana, apesar dos esforços feitos para superá-los e dominá-los. “Não há homens acima do medo, escreve um militar, e que possa se dizer capaz de escapar”. Um guia de alta montanha, nos Alpes, a quem eu faria a pergunta – você chega a ter medo nas montanhas? – me responderia: “Há sempre o medo de raio quando ouvimos o crepitar sobre as rochas; isso arrepia os cabelos dentro do chapéu”. Um capitão do corpo de bombeiros declarava recentemente: “Nós não admitimos em nossa companhia gente que dizem não ter medo”. O título perturbador de Jakov Lind, La peur est ma racine [“O medo é minha origem”], não se aplica somente ao caso de uma criança judia de Viena que, no início do século XX, descobre o anti-semitismo, pois o medo “nasceu com o homem na mais obscuras das eras”. “Ele está em nós... Ele nos acompanha por toda a nossa existência”. O romancista francês Vercors deu esta definição à natureza humana: “os homens trazem amuletos; os animais não trazem”. Marc Oraison, padre e médico desaparecido há alguns anos, citando Vercors, concluía que o homem é por excelência “o ser que tem medo”. No mesmo espírito, Jean-Paul Sartre escreveu: “Todos os homens têm medo. Todos. Aquele que não tem medo não é normal; isso não tem nada a ver com a coragem”.

A necessidade de segurança é, assim, fundamental. Ele é a base da afetividade humana e da moral. A insegurança é símbolo de morte e a segurança, símbolo de vida. O companheiro, o anjo-da-guarda, o amigo, o ser benéfico é sempre aquele que promove a segurança. Também é um erro de Freud não ter “estimulado a análise da angústia e de suas formas patogênicas até aprofundar-se na necessidade da segurança de conservação ameaçada pela previsão da morte. A principal pulção não é a libido, mas a necessidade de segurança”. O animal não antecipa sua morte. O homem, ao contrário, sabe desde muito cedo que morrerá.

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Ele está, então, “só no mundo para conhecer o medo a um grau perigoso e durável”. Roger Caillois observou que o medo das espécies animais é único, idêntico a ele mesmo, imutável: aquele de ser devorado, “mas o medo humano, filho de nossa imaginação, não é um, mais múltiplo; não é fixo, mas perpetuamente mutável”. De onde vem a necessidade de escrever a sua história.

Contudo, o medo é ambíguo. Inerente à nossa natureza, ele é uma reação normal, uma fortaleza essencial, uma garantia contra os perigos e as surpresas ameaçadoras, um reflexo indispensável permitindo ao organismo de se mobilizar e de escapar – provisoriamente – da morte. “Sem o medo, diz-se, nenhuma espécie teria sobrevivido”. Mas se ele ultrapassa uma dose suportável, torna-se patológico e cria bloqueios. Podemos morrer de medo ou, ao menos, sermos paralisados por ele. Maupassant, em Contes de la bécasse (Contos da galinhola), descreveu o medo como “uma sensação atroz, uma decomposição da alma, um espasmo horrível do pensamento e do coração, no qual lembrança só traz a ondas de angústia”.

Simenon declara da mesma maneira que o medo é um “inimigo mais perigoso que todos os outros”. Atualmente, ainda os indígenas, e mesmo os diversos clãs das cidades no interior do México, têm entre seus conceitos aquele da “doença da covardia (espanto ou susto): o doente perde momentaneamente sua alma em razão de uma covardia”. Ter um espanto é “deixar a alma ir para além”. Pensamos, então, que a alma retornou para a terra, ou está em poder de pequenos seres malfeitores chamados chaneques. É preciso urgentemente ir a um “curandeiro” que, graças a uma terapia apropriada, permitirá à alma se reintegrar ao corpo do qual ela escapou. Este comportamento pode estar próximo a certas práticas “supersticiosas” descritas por um pároco francês do século XVII, Jean Baptiste Thiers. Ele nos mostra que certos camponeses, para se proteger contra o medo, carregam consigo os olhos e os dentes de um lobo. O medo pode tornar-se a causa da involução dos indivíduos. Marc Oraison observou que a regressão através do medo é o perigo que espreita, constantemente, o sentimento religioso. Eu tentei mostrá-lo historicamente no meu livro O pecado e o medo.

Quando o medo é coletivo, ele pode conduzir a comportamentos absurdos e suicidas, a partir dos quais a apreciação correta da realidade desapareceu: tais são os pânicos que marcaram a história (bastante recentes) da França desde Waterloo até o êxodo de junho de 1940 que impediu o movimento das tropas. Zola com muita fidelidade descreveu aqueles que, em 1870, que levaram à derrota da França diante da Prússia. Compreende-se porque os antigos viam na morte uma punição dos deuses e porque os gregos divinizaram Deimos (o temor) e Phobos (o medo), se esforçando para os conciliar em tempo de guerra. Os espartanos, nação militar, consagraram um pequeno templo à Phobos, divindade a qual Alexandre ofereceu um sacrifício solene antes da batalha de Arbèles.

Mudemos, voluntária e bruscamente, de tempo e de civilização e mergulhemos por um instante na modernidade econômica. Neste domínio, escreve Alfred Sauvy, “onde tudo é incerto e onde o interesse está constantemente em jogo, o medo é continuo”. Os exemplos que o provam são numerosos, por exemplo, a “quinta-feira negra”, 24 de outubro de 1929, em Wall Street, ou a depreciação dos bilhetes de banco chamados “apólices” (assignats) na Revolução Francesa, ou a queda do marco na Alemanha de 1923. Em todos esses casos, houve pânico irrefletido por contágio de um verdadeiro medo do vazio

O elemento psicológico, isto é, a loucura, extrapolou a sã análise da conjuntura. Mais lucidez e sangue frio, sobretudo em 1929, menos apreensões excessivas do futuro da parte dos detentores do dinheiro e das ações teriam, sem dúvida, permitido conter dentro dos limites racionais da desvalorização respectivas das apólices revolucionárias e do Marco de Weimar e, mais ainda, de melhor controlar, após o craque de 1929, a queda da produção e o aumento do desemprego. Os jogos da Bolsa, dos quais dependem – infelizmente! – tanto destinos humanos, só conheciam uma regra: a alternância de esperanças imoderadas e de medos irrefletidos.

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Posto em alerta por estas lembranças, o historiador descobre, mesmo através de um rápido olhar sobre o espaço e o tempo, o número e a importância das reações coletivas do medo. Não há a pretensão de resolver por si mesmo e sozinho a imensa questão de saber se as causas da violência humanas são antropológicas ou sociológicas e, então, se existe ou não no homem um instinto destrutivo primário. Mas pode trazer a sua contribuição ao debate e mostrar, dossiês em mãos, que a maior parte das insurreições na Europa entre os séculos XIV a XVII foram, fundamentalmente, reações defensivas motivadas pelo medo de um perigo, seja real, seja parcial ou totalmente imaginário (mas percebido como tal). Se esta análise é exata, isso resulta – e vale para hoje – que diminuir o medo na coletividade ou baixar a intranqüilidade, é ao mesmo tempo elevar as cargas explosivas.

Na Europa do antigo Regime, as duas principais causas de insurreições espontâneas eram a temor de faltar pão em caso de miséria e ser vítima da sobrecarga fiscal. Ao nível coletivo, estas duas apreensões conjugar-se-ão. Pois, na época de Luis XIV, podia-se morrer de fome em França. Ou um aumento de imposto – e a França conheceu muito disso no século XVII – podia jogar numerosas famílias na miséria. As revoltas tinham, então, o sentimento constantemente justificado que suas vidas e de seus familiares estavam em perigo. É o que explica o fato, recentemente esclarecido pela historiografia, de que o sinal das revoltas era freqüentemente dado pelas mulheres. Elas eram as primeiras a ter consciência da ameaças que a miséria e a sobrecarga fiscal representava em seus lares.

Apresentar um inventário, mesmo incompleto, dos medos ordinários de tempos anteriores é ser conduzido a medir quanto a ciência, a técnica e, com elas, o espírito crítico nos libetaram, mesmo se, em sentido contrário, nós sabemos de todos os perigos que nos ameaçam hoje em dia, as armas moderna, o terrorismo e a poluição. Porém, a peste não mais dizima em alguns meses a população de uma cidade como era freqüente no passado. Milão em 1630, Nápoles em 1656, Marseille em 1720 perderam cada uma em três meses a metade de sua população por causa da epidemia. A Europa esqueceu o medo do lobo que era antes comum nos campos. Nós não tememos mais os fantasmas e os cometas. Ainda no século XVII, um eclipse do sol espalhou o terror. Quando nós lemos nos “rituais” de outras épocas (mas estas “outras épocas” podem ser ainda no século XIX) as diversas “bênçãos” que a Igreja Católica, a pedido das populações, colocava à disposição para a proteção da existência diária, nós medimos o quanto nossos ancestrais viviam invadidos pelo medo. Em um ritual em latim do século XVII, re-impresso em Veneza em 1779, figura uma boa centena de “absolvições, bênçãos e exorcismos” relacionados à vida cotidiana: bênçãos dos rebanhos, de vinho, do leite, dos ovos, da carne, da seda, das caves do vinho, das granjas, do leito conjugal, do poço novo, do sal que se dará aos animais, do ar para que fique sereno ou traga chuva; conjurações da “tempestade iminente” e do trovão atribuído às forças demoníacas; exorcismo contras os animais selvagens, os ratos, as serpentes e todos os animais nocivos etc. As procissões, ditas de “quatro tempos”, atravessavam os campos com esta função protetora.

De ontem a hoje

Minha pesquisa sobre o medo, estendida por doze anos, conduziu-me a três conclusões principais. A primeira, inspirada pelos dossiês da psiquiatria, ressaltou as concomitâncias que só podiam aparecer por meio de uma exposição sintética e, entretanto, de longa duração. Certo número de medos do fato culminou em conjunto, em particular, o medo de bruxas, de blasfemadores, de heréticos, de Satã, dos judeus, dos turcos e do fim do mundo. Podemos vê-lo, não ao nascer, mas crescendo quase conjuntamente a partir da metade do século XIV, atingindo seu cume no fim do século XVII. Esta progressão no medo se desenvolve, por si mesma, sobre o fundo de pestes, de revoltas, de guerras e de violências de todos os tipos. Inversamente, no Ocidente, medos, revoltas e insegurança declinaram juntos a partir da segunda metade do século XVII. De onde esta constatação, adaptável de outras situações históricas, por exemplo, àquelas de hoje: ao nível coletivo, um medo é raramente isolado. Ele tem outros fatores ligados a si. Juntos, eles tendem a formar um “trem de medos” e a criar uma situação global de “mal-estar”. Em todos os casos, o ponto em evidência da curva ascendente, depois descendente seguido por um grupo de medos ligados entre si, parece-me justificar a posteriori o quadro cronológico (metade do século XIV –metade do século XVII) que eu tinha limitado como hipótese do início, como campo privilegiado da pesquisa para O medo no Ocidente.

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A segunda conclusão foi uma releitura da Renascença. É um ponto que, particularmente, chocou meus leitores japoneses, pois, desde este ano, meus dois livros sobre o medo estão traduzidos para esta língua. A apresentação tradicional da Renascença como um período suntuoso de festas e como um fogo de artifício cultural e artístico só pode ser fortemente matizada quando reunimos sob um mesmo ponto de vista o período que vai do fim do século XIV até o início do século XVII. Pois se constata que a obsessão pela morte tornou-se, então, onipresente nas imagens e nos discursos europeus, no início dos tempos modernos: nas “danças macabras” como no Triomphe de la mort [“Triunfo da morte”], de Brueghel; nos poemas de Ronsard; como nos Ensaios de Montaigne; e no teatro elisabetano. Também é preciso desconfiar de que a palavra “Renascença” refletindo alegria e brilho de falsos de brilhantes. Ela nos faz esquecer do Apocalipse gravado por Dürer, a obra que o torna emblema celebre; o Juízo Final, de Miguelangelo; a predileção de Leonardo da Vinci pelo tema do dilúvio; as guerras de religião e a constante obsessão pela bruxaria que culmina, não na Idade Média, mas entre 1560 e 1630. A palavra “Renascença” tem este outro inconveniente de esconder os fatos de que os contemporâneos de Cristóvão Colombo e de Carlos V não acreditavam, de forma alguma, em um progresso moral e técnico da humanidade – esperança que habitará, ao contrário, os filósofos do Iluminismo e os positivistas do século XIX e início do século XX. Muitas pessoas cultivadas do século XVI julgavam a humanidade envelhecida e o fim do mundo próximo. Eu desenvolvi estes temas não apenas em O medo no Ocidente, mas também em O pecado e o medo, no qual a primeira parte, ou seja, um terço do livro, é intitulada ‘O pessimismo da Renascença’.

A terceira conclusão já anunciada – ela é também adaptável de outros tempos e de outros lugares – é que, na Europa ocidental e central do início dos tempos modernos, certos medos dos dirigentes foram maiores que os das massas. Esta constatação constituiu grande surpresa para mim. Três exemplos são esclarecedores para esta questão:

1º: Os recentes estudos de etno-história mostram que o demônio popular era muito menos inquietante que o diabo da Igreja. Ele tinha um aspecto “familiar”, por vezes, tinha atitudes benfeitoras e aparência de camponês – os contos testemunham isso em toda Europa – sendo facilmente ludibriado. No entanto, a Igreja ensinava que Satã é terrível e que ele só pode ser vencido com a ajuda de Deus;

2º: Os processos de bruxaria, tão numerosos nos séculos XVI e XVII, prenunciam que o mundo rural não via as bruxas e os bruxos com o mesmo olhar que os juizes civis ou eclesiásticos. Os aldeões temiam, seguramente, as cartomantes e os adivinhos e os malefícios que, acreditavam, estas pessoas podiam enviar; os aldeões, então, não hesitavam em denunciá-los aos tribunais. Todavia, para os juizes, estes maléficos eram menos importantes do que a confissões dos videntes, já que tinham feito pacto com Satã e participavam de cultos diabólicos. Munidos de obras de demonologia, que se multiplicaram do século XV ao XVII, os juízes atribuíram aos bruxos e bruxas um status assustador: eles eram os agentes privilegiados de Satã.

3º: E, sobretudo, pareceu-me indispensável consagrar um livro inteiro, O pecado e o medo, a um discurso de medo típico das elites religiosas e disseminado por ela: aquele a respeito dos castigos aos vindouros pecados cometidos na terra. Contrariamente ao que por vezes atribuem dizer, eu não penso que se trate neste caso de uma tática aterrorizante destinada a ter os fiéis sob o poder da Igreja. De acordo com minhas conclusões, os pregadores e os moralistas eram os primeiros convencidos do que diziam e escreviam sobre o inferno e o purgatório. Eles levavam ao pé da letra a fórmula “muitos chamados e poucos escolhidos” que, à época de Jesus, era apenas um provérbio. Sobretudo, eles aceitavam sem discussão a noção de “massa de perdição” formulada por Santo Agostinho. Daí a origem a uma pastoral do medo que marcou profundamente a história do Ocidente e que deveria então, logicamente, constituir um objeto de pesquisa histórica.

A questão “quem tinha medo de quê?”, subjacente em toda minha pesquisa, conduziu-me afinal a traçar algumas linhas da evolução que não podem nos deixar indiferentes. Uma delas diz respeito à insegurança urbana. Não sabemos o bastante, talvez, de que se trata aqui de uma situação inversa da anterior. No Ocidente tradicional, a cidade era mais segura que o campo. Ela era protegida por muralhas. Ela era o lugar do poder político e judiciário; ela dispunha de forças policiais que estavam ausentes no interior do país.

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A partir do século XVII, ela dispôs de iluminação pública quando o mundo rural ficava ainda mergulhado na escuridão. Ela tinha os hospitais, as autoridades que abasteciam os mercados, os meios financeiros para provisão em épocas de penúria. Ela era globalmente uma ilha de civilização em meio ao oceano mal controlado da barbárie campesina. Descartes escrevia que ele não se encontrava em parte alguma mais protegido que em Amsterdã. As cidades eram relativamente pequenas e a grande maioria das pessoas vivia fora delas. Lembrar esta verdade histórica é imediatamente fazer reaparecer os efeitos produzidos, principalmente desde há um século, pelo aumento demográfico e urbanístico anárquico que fez com que a maior parte da população viva agora nas cidades e, cada vez mais, em imensas megalópoles de difícil controle. Insegurança e urbanização estão, de agora em diante, ligadas, e isso de maneira nova na história da humanidade.

É preciso ainda, e para fechar esta exposição, sublinhar um outro grande efeito ressaltado pela história do medo. Durante muito tempo, os principais perigos que ameaçaram a humanidade vieram da natureza: as epidemias, em especial a peste e a cólera; as más colheitas que produziram miséria e fome; os incêndios provocados em particular por raios; os tremores de terra; etc. Porém, ao curso dos séculos, a guerra teve no conjunto dos perigos um lugar de destaque, que continua aumentando a partir da invenção das armas de fogo no final da Idade Média. Em seguida, os atenuantes desapareceram com o “levante em massa” decretada pela Revolução Francesa; as centenas de milhares de soldados chamados ao combate durante as guerras napoleônicas; a passagem aos “milhões de homens” armados durante a guerra de Secessão e durante a Primeira Guerra Mundial. Chegamos ao século XX com 40 milhões de mortes no segundo conflito mundial e a utilização de armas atômicas em 1945. O resultado hoje em dia é que as grandes guerras fazem cada vez mais vítimas e, cada vez mais, vítimas civis. O terrorismo hoje, forma inédita da guerra, vale-se de civis. Situação impensável há duzentos anos. Assim, apesar das catástrofes provocadas pela Aids, as secas e as tsunamis, os perigos vindos da natureza tornaram-se, relativamente, digamos, menos importante do que aqueles que provêm da maldade dos homens. Estes se tornaram as maiores ameaças sobre a terra para seus semelhantes. E isso mesmo independente das ações armadas. O consumo de drogas aumenta de maneira perigosa, enquanto a técnica, na medida em que ela não respeita a natureza, arrisca prejudicá-la irremediavelmente. As poluições em todas suas formas, o esgotamento acelerado dos recursos do subsolo, o desflorestamento, o acúmulo de dejetos etc podem comprometer o futuro do planeta. Revela-se, então, paradoxalmente, que nós não detemos suficiente medo desta degradação acelerada. É o momento de nos lembrarmos que o medo é fundamentalmente uma sã reação de alarme diante de um perigo e de que podemos e devemos fazer uso racional e controlado do medo quando o destino da humanidade está em jogo.

Notas

¹ Jean Delumeau é um dos principais historiadores europeus contemporâneos, especialista no passado do cristianismo. É autor de O pecado e o medo (Editora da UNiversidade do Sagrado Coração), História do medo no Ocidente (Companhia das Letras), Mil Anos de Felicidade (Companha das Letras), O que sobrou do paraíso (Companhia da Letras) e De Religiões e de Homens (Loyola). É tambpem professor da Universidade de Rennes.

² Exposto no Museu do Prado. Perfil da tradução espanhola de O medo no Ocidente.

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O MEDO DO OUTRO

Monique Augras

É grande a minha alegria de, ao tomar parte neste debate, ter a oportunidade de conhecer pessoalmente o professor Jean Delumeau, que ocupa um lugar muito especial entre os historiadores e pensadores de nosso tempo.

Ele fala dos nossos grandes medos, ao longo da história do ocidente, mas também sabe falar de esperança. Como não citar a frase que, para mim, é o ponto mais alto da conclusão de Que reste-t-il du Paradis?: “Le paradis, ce sera les autres” [O paraíso, serão os outros].

Ora, há muito tempo, fomos acostumados a creditar os outros do peso do inferno – L’enfer, c’est les autres. Parece-me que Delumeau, ao “quebrar essa escrita”, como se diz, nos chama a refletir sobre a dimensão enriquecedora da alteridade. Pensar o outro como futuro da humanidade, o outro como complemento, nestes tempos dominados pelo medo do outro.

No recorte que a sua pesquisa delimitou, de 1348 a 1648, medo da fome, medo da peste, medo dos Turcos, dominam uma sociedade entregue a uma crise interna de valores. Males de origem natural combinam-se com ameaças políticas e religiosas, cujo controle se afigura impossível ou precário. A época contemporânea compartilha dessa impotência, e se afunda em pânicos semelhantes: epidemias de Aids ou de gripe aviária, tsunamis, furacões, e terremotos devastadores nos obrigam a encarar, de frente, as nossas fragilidades. E o medo antigo dos Turcos ressurge, diante do estereótipo constantemente reforçado pela mídia, do “terrorismo islâmico”.

Mil anos decorridos desde a primeira cruzada [1096] não foram suficientes para esmaecer a violência que, desde então, opõe mouros e cristãos. O estereótipo começa com a Chanson de Roland [circa 1080] que, ao relatar uma emboscada sofrida pelos exércitos de Carlos Magno, substitui os Bascos – os verdadeiros agressores – pelos Sarracenos, no provável intuito de legitimar a Reconquista na Espanha e o empreendimento das cruzadas [Bédier, 1929]. O “ciclo de Carlos Magno” tornar-se-á um poderoso instrumento de reforço do clichê, ao alimentar um sem número de publicações e folhetos populares , na França do Antigo Regime, como bem destaca Robert Mandrou [1964, p.46]: “a guerra santa é uma luta sem fim contra um inimigo inesgotável: apesar dos extermínios e das conversões, a hidra muçulmana sem cessar renasce”. Seria apenas um aspecto curioso da “história lendária”, se o tema não fosse agora retomado pelos mais poderosos países ocidentais, quase nos mesmos termos. Hoje, a hidra se chama Al Qaeda... O lado oposto, obviamente, não é melhor, e também fala em guerra santa . As mensagens de caridade e de amor, presentes nas páginas do Evangelho ou do Alcorão, são cuidadosamente esquecidas. Para termos pavor do outro, é preciso ignorar que o seu rosto é o espelho do nosso.

Mas será que não temos medo de olhar no espelho? Será que o medo do outro do lado de fora não se fundamenta no medo do outro que está dentro de nós? Isto é, daquele irredutível núcleo de alteridade que é a promessa de nossa morte, inscrita em cada uma das células do nosso corpo? Como será possível aceitar o outro exterior a nós, com toda a sua estranheza, se temos tanto receio de reconhecer a presença, em nós, deste Outro absoluto, e de nomeá-lo?

Acredito que toda a dificuldade de lidar com qualquer estranheza que seja provém, em nível existencial, da inescapável presença, intima, de nossa futura morte. Ou, melhor dizendo, de minha morte. Pois a morte dos outros, por dolorosa que seja, em nada se compara ao terror da finitude própria. Se, no espelho, o que diviso é, como dizia o poeta, “the skull beneath the skin”, a caveira por debaixo do rosto, como posso aceitar a minha imagem, ou a imagem do outro?

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Em toda parte, esbarramos em imagens aterrorizantes. Nos tempos estudados por Jean Delumeau, os grandes medos se espalhavam pela disseminação de rumores, passados de boca a boca, em uma modalidade predominantemente oral. Hoje, a mídia nos agride com imagens de corpos despedaçados. Além de matar, o terror desmembra, espalha fragmentos, nos quais se receia identificar algo que ainda seja humano. Será que estamos agora inaugurando um novo regime do medo, em nível planetário?

Nenhum tema é mais próximo, para nós que moramos no Rio de Janeiro, que o da “insegurança urbana”, na qual Delumeau identifica uma das marcas da contemporaneidade. Estamos muito longe do sossego de Descartes em Amsterdam! A cidade, que nos deveria amparar, nos ameaça. Nunca a oposição entre “a casa e a rua”, detectada por Roberto Da Matta [1985], foi tão reforçada. Fechamo-nos, isolamo-nos, e, a qualquer hora que seja, evitamos sair à rua.

A rua tornou-se o símbolo de tudo aquilo que não presta, território do bandido, das “crianças de rua”, e desse objeto mítico, presente em qualquer lugar: a “bala perdida”. É o signo de uma violência sem rumo. A bala perdida é cega. Não tem mira. Mas ela é a mensageira de minha possível morte. Pior ainda: ela vem da rua, e penetra em minha casa. Fura a janela, invade o quintal, irrompe na escola. Ninguém pode escapar.

Na rua, porque, mesmo assim, é preciso sair à rua, para trabalhar, um sucedâneo de casa oferece um abrigo ilusório: é o carro, cujos vidros escurecidos se propõem impedir a visão de fora. Mas também prejudicam a visão de dentro. São dois rostos, o do automobilista e o do transeunte, mas nosso medo diz: da vítima e do bandido. Dois rostos que tentam mascarar-se, mas cada um é o espelho do outro, e se resumem a uma só máscara, a do terror.

O que fazer? Seguramente, aquilo que está ocorrendo na cidade do Rio de Janeiro não pode ser descrito como “uso sensato” do medo, definido como “saudável reação de alarme frente a um perigo”. Como aceitar o outro, com todo o medo que traz?

Não deve ser por acaso que o tema do medo quase havia sido esquecido pelos historiadores, até as

pesquisas de Delumeau. E os resultados do seu trabalho evidenciam que o medo é um constante componente da história coletiva, permitindo que entendamos melhor as preocupações que hoje se afirmam, em todos os cantos do planeta. Mas, para ajudar-nos a superar esse grande medo do outro, ligado ao nosso pavor mais íntimo, é preciso meditar a preciosa mensagem de Que reste-t-il du Paradis?: o outro como promessa de convivência e completude.

Referências bibliográficas

AUGRAS, Monique. Imaginaire et altérité: rois et héros de l’histoire de France dans les cultes populaires brésiliens. Bull. de liaison des Centres de Recherches sur l’Imaginaire. Hors série nº 1: 12-23, 1998.BÉDIER, J. Les légendes épiques: recherches sur la formation des Chansons de Geste. Paris: Edouard Champion, 1999.DaMATTA, Roberto. A casa e a rua. São Paulo: Brasiliense, 1985.DELUMEAU, Jean. La peur e Occident. Paris: Fayard, 1978.___________. Que reste-t-il du paradis ? Paris: Fayard, 2000.La Chanson de Roland. Paris: Librairie Générale Française, 1990.MAALOUF, A. Les croisades vues par les arabes. Paris: Jean-Claude Lattes, 1983.MANDROU, R. De la culture populaire aux XVIIe et XVIIe siècles. La bibliothèque Bleue de Troyes. Paris: Stock, 1964.

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Notas

1 Professora do Departamento de Psicologia da PUC-Rio2 Expressão famosa de Jean-Paul Sartre, retirada de sua peça Huis Clos (entre quatro paredes)3 Que, aliás, foram algumas das fontes, via a Península Ibérica, de nossa “literatura de cordel” (cf. Augras, 1998, op. Cit.).4 Aamin Maalouf (1983, op. Cit.), que dedicou um livro ao tema das “cruzadas vistas pelos árabes”, sublinhas o quanto o ideário das cruzadas permanece vigente, na imagem que os muçulmanos têm do ocidente.

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A IGREJA DEVE TEMER O FUTURO?

Jean Delumeau

Em 1977 eu publiquei o ensaio intitulado O Cristianismo vai morrer? Depois disso, em 1985, publiquei um livro da série O Que Eu Acredito, iniciada na Editora Grasset por Mauriac. Este mesmo editor desejou que eu escrevesse um novo livro cuja abordagem seria a crise que atravessa o cristianismo, sobretudo na Europa. Eu pensei que eu não poderia fugir a esta questão, sobre a qual escrevi uma nova obra intitulada Espreitar a aurora: Um cristianismo para o futuro. Meu objetivo neste livro e de minha exposição de hoje, é mostrar que existem sempre fortes razões para tornar-se cristão, mas o cristianismo deve se encarnar na civilização de nosso tempo – uma civilização radicalmente nova, tal qual nunca houve semelhante na história. Eu tomei, assim, a decisão de enfrentar o assunto, não através de um espírito polêmico, mas construtivamente, apontando os princípios críticos e objeções opostas hoje ao cristianismo. Eu quero evitar a agressividade e a linguagem dura. Eu desejo conjugar lucidez e esperança. Bem entendido, essas propostas são de minha parte apenas.

E, antes de tudo – questão capital para nossa época – o cristianismo deve ter medo da ciência? Eu acredito que não. Mas ele confrontou uma ofensiva neopositivista proveniente, sobretudo, de biologistas que continuam afirmando, depois de Jacques Monod, que o nascimento da vida e a aparição do homem são resultado do acaso. Ao contrário, Einstein afirmara que “Deus não joga dados” e que o mundo “é banhado pela inteligência”. Por outro lado, Jean Rostand, embora agnóstico, respondeu a Jacques Monod: “O acaso? É preciso achar uma outra coisa”. Certos, a ciência atual não permite mais manter a noção de um Deus relojoeiro que teria programado detalhadamente todas as etapas da evolução. Ela conheceu algumas incertezas e erros. Porém, não se deve confundir acaso com contingência. Eu queria, então, propor aqui quatro pontos para reflexão.

1ª: É verdade que a ciência não tem os instrumentos necessários para reaver todo o tempo já passado e, assim, ela não pode definir o ponto zero da “criação” – termo, aliás, cada vez mais difícil de empregar. No entanto, nada impede de pensar que o cosmo teve a sua “origem” em um Deus que estava “lá” antes da emergência do tempo, do espaço e da matéria.

2ª: As condições necessárias para o nascimento da vida e a sua manutenção são tão precisas que seja pouco provável ainda encontrá-las reunidas por acaso e que seja por acaso que continuam a se associarem.

3ª: O rio da vida acolheu em seu leito as múltiplas contingências. Este rio não circulou entre as altas paragens enquadrando seu curso em uma pequena moldura. Mas os desdobramentos “possíveis” não são ilimitados.Existem “fontes do acaso”. Ele não chega em qualquer lugar.

4ª: A ciência constata a unidade da matéria, das galáxias às bactérias. Ela constata também a correspondência entre o funcionamento do universo e os instrumentos matemáticos com os quais o espírito humano faz suas interrogações. Ela constata, enfim, a complexidade crescente que conduziu o mundo ao seu estado atual. Temos aqui muitos elementos que permitem pensar que o universo e o homem não são produtos do acaso. Uma leitura me fez conhecer a fórmula seguinte, que diria também Einstein: “O acaso é o veículo que Deus empresta quando ele quer viajar incógnito”.

Se o homem fosse produto do acaso, ele não possuiria nenhuma singularidade e sua vida, fundamentalmente, não teria sentido. É dentro deste espírito que, há três anos, o serviço cultural do metrô de Paris acreditou que deveria afixar nos ramais dos trens esta fórmula lapidar e desestimulante do poeta Leon-Paul Fargues; “A vida é o cabaré do nada”. Um biólogo americano, St. J. Gould, recentemente falecido, afirmava, para “relativizar a arrogância humana”:

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As bactérias nos deixam acreditar que nós dominamos o mundo, mas elas estão aqui bem antes de nós, elas sobreviverão certamente... Se valorizais a consciência, fazeis do homem o mestre do mundo. Se valorizais a longa duração e os grandes números, as bactérias nos dominam incontestavelmente. [E], entre os mamíferos, as espécies mais prósperas são atualmente os antílopes, os ratos e os camundongos.

Quantitativamente, o homem não pesa muito no universo. “O ser humano, segundo St. J. Gould, não tem benefício de qualquer status privilegiado e não constitui em nada o apogeu da evolução”. A que se pode acrescentar que o homem possui 99% de seus genes em comum com o chimpanzé. St. J. Gould admite que “a aparição da consciência humana é... a mais sensacional invenção da história da evolução”. Mas, ele sustenta que a invenção da consciência foi “imprevisível”, que “nenhuma direção particular” se revela ao curso da história. “O que quer nós sejamos, nós devemos a existência a uma série de acasos... Eu reconheço, escreve ele, que a criatura mais complexa (o homem) manifestou uma tendência progressiva em sofisticação ao longo do tempo, mas eu nego que esta espécie extremamente reduzida, comporte a existência a uma dinâmica geral do progresso na história da vida”.

Assim se encontra, expressa em algumas frases peremptórias, a prodigalidade dinâmica que, apesar dos incidentes de percurso, conduziu da bactéria ao homem graças a uma complexidade crescente. Porém, se não queremos seguir esta trajetória, vê-se progredir a autonomia em relação ao meio, nascer e evoluir o sistema nervoso e se desenvolver a cefalização até a prodigiosa organização neural de nosso cérebro. Ressaltando-se a insignificância quantitativa do homem, pode-se descartar de vez a hipótese mais verossímil, que o homem é fruto de um projeto? E se esta hipótese tem a seu favor a verossimilhança, quem pode, senão Deus, ter concebido um projeto tão surpreendente?

A outra situação – uma escolha feita ao acaso pela natureza tem conseqüências inevitáveis – conduz aos impasses e à afirmação de um determinismo categórico, segundo o qual toda conduta humana terá um dia uma explicação psico-química. Pois, ou bem o homem fundamentalmente não existe e não tem originalidade “essencial” entre os seres vivos, e a música de Bach é então reduzível a um conjunto de vibrações e um quadro de Rembrandt a “uma coleção de toques de pincéis de uma certa composição química”; ou bem o gênio de Bach e de Rembrandt é um domínio da liberdade e esta liberdade ultrapassa a competência da ciência. O doutor Jean Bernard, da Academia das Ciências de Paris, respondeu muito bem aos neopositivistas, dizendo: “não foi nenhum animal Shakespeare e nenhum animal pinta a Monalisa”. Jean Rostand definiu o homem como “um sobrinho-neto da ameba que inventou o cálculo integral e que sonha com a justiça”: maneira surpreendente de marcar a descontinuidade entre o homem e o animal apesar de tudo o que os aproxima. O matemático André Lichnerowicz, que ensinava no College de France, tinha costume de dizer: “Não podemos confundir o fio do telefone com a mensagem que passa por ele”.

A questão do sentido atormenta nossa época. Se o universo é fruto do acaso, se o homem não foi desejado por um Ser que transcende a história, se nossa liberdade é ilusória, nada tem sentido e nossa vida é, como proclamava Leon-Paul Fargues “o cabaré do nada”. Quantas vezes, ultimamente, não se tem repetido Cammus: “o mundo é absurdo”. Um dos aspectos da reflexão filosófica atual consiste em tentar construir as bases de uma ética, de um direito e de uma justiça que não tenham mais fundamentos absolutos. Mas esta tentativa me parece sem futuro. Se nenhum Deus não desejou o homem, ele ficará frágil. Ele está sem defensor e os esforços para definir um humanismo imanente poderão sempre ser contestados. Com pertinência Jean Bernard propõe, após Bernanos, a seguinte questão: “Se teus atos, teus sentimentos, tuas idéias mesmos são apenas simples mudanças moleculares, um trabalho químico e mecânico comparável àquele da digestão, em nome de quem e de que você quer que eu te respeite?”. Jean Guitton escreveu: “A absurdidade do absurdo me conduz em direção ao mistério”. Eu me associo a esta formulação profunda. A ciência deve continuar seu grandioso trabalho de pesquisa que honra o homem, mas tendo consciência que ela não esgotará o mistério que está no fundo do universo e de nós mesmos. Shakespeare disse através de Hamlet: “Tem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a vossa vã filosofia”. Dito de outra maneira dito, o enigma do mundo nos ultrapassará sempre.

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Eu queria agora abordar de frente, porém com modéstia, uma objeção muito comum, formulada atualmente contra a crença em Deus: se Deus existe, por que ele tolera o mal que nós vemos? O Figaro encomendou em 1997 uma pesquisa a respeito da questão “O que é que te faria desistir de acreditar em Deus?”. Quarenta e sete por cento das pessoas interrogadas responderam: Ruanda, os massacres, os genocídios. Hoje, poder-se-ia juntar o terrorismo a esta lista.

No leque de maldades que se abatem sobre a humanidade, uns vêm da natureza, outros de nossos semelhantes. E estes últimos tornam-se mais e mais destruidores à medida que a técnica se aperfeiçoa. Também perguntamos com maior insistência e contundência que de outras vezes sobre a questão da responsabilidade de Deus no mal-estar do mundo. Para Santo Agostinho – e toda a teologia que o seguiu – a condição infeliz da humanidade tinha uma explicação simples: ela era em razão “do pecado excessivamente abominável que foi cometido no paraíso (terrestre)”. Contudo esta explicação é ainda aceita por nossos contemporâneos? Muitos anos antes dos homens, os animais se devoravam entre si, a grande “lei natural” quer que eles sejam assim. Não se vê como os diferentes ecossistemas funcionariam e poderiam se prolongar sem esta lei impiedosa anterior a toda moral.

Seguramente os homens foram distanciados da violência animal e, em conseqüência, obtiveram a responsabilidade por sua liberdade. Mas por que Deus permitiu Auschwitz e os massacres perpetrados pelos Kramers vermelhos? Em A terceira morte de Deus, o filósofo André Glucksmann fecha Deus em um círculo acusador no qual, crê o escritor, ele não pode sair. “Quando o horror surge, escreve Glucksmann, se o Senhor é onipotência, ou bem ele não é todo sabedoria, ou ele não é toda bondade. Se o Senhor é onisciente e é generoso, é preciso acreditar que ele é impotente”. Antes de Glucksmann, o protestante Pierre Bayle, no século XVII, escrevera: “A maneira pela qual o mal se introduz no império de um ser infinitamente bom, infinitamente santo, infinitamente poderoso é não somente inexplicável, mas mesmo incompreensível”.

Nem o pecado original, nem a colocação da acusação da liberdade humana podem responder satisfatoriamente ao enigma do mal que é maior que o mistério ao qual nós somos confrontados. Então, como cristãos, que podemos dizer àqueles que nos questionam sobre a violência e a onipresença do mal? De início não temos respostas exatas. Jesus nunca falou do pecado original e ele não se pronunciou sobre a origem do mal. Nós devemos, me parece, imitá-lo neste silêncio. Claudel escreveu: “Deus não veio explicar o sofrimento; ele veio inundá-los com sua presença”. Um teólogo de nosso tempo, o P. Rey-Mermet, reconheceu que “todas as explicações caem por terra diante do sofrimento de uma criança”. Paul Ricouer bem afirma: “A religião não tem resposta para tudo”. Mas, isso não significa que ela não tenha nada a dizer sobre a questão.

Impõe-se, então, retornar ao livro de Jó. Suportando inúmeras infelicidades e acusado por seus vizinhos e amigos de “grande crueldade” e de ter cometido “faltas enormes”, causas supostas das calamidades que se abatem sobre ele, Jó clama sua inocência diante de Deus e lhe pede respostas: “Eu grito com toda a força para Ti, e Tu não responde... Quem me dará alguém que me escute?... Com poder de me responder”. Porém, Deus lhe faz perguntas embaraçantes:

Aquele que discute com o poderoso, o que tem a questionar?...Onde tu estavas quando eu fundava a terra?Diga-me, pois que tu és o sabedor...Tu tens um só dia comandado amanhãE assinalado para a aurora o seu lugar?...Queres tu verdadeiramente quebrar meu julgamento,Comandar-me para te justificar?

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No decorrer de seu diálogo com Deus, Jó vai compreender mais e mais claramente que seu erro é de ter querido julgar o Criador:

Eu não te faço objeção, como te replicarei?Eu coloco a mão sobre a minha boca...Eh sim! Eu toquei sem saber,Mistérios que me confundem.

Por que o mal existe? Não há resposta ao nosso alcance. Mas a fé cristã esclarece e relativisa todo este imenso enigma por duas fortes afirmações:

1ª: Deus veio entre nós para sofrer a violência do mal e ele morreu no total abandono;2ª: na Jerusalém definitiva o mal terá desaparecido.

Explicitemos estes dois pontos.

A encarnação implica que Deus colocou entre parênteses sua “onipotência” durante o tempo da história. O cristão afirma, então, ao mesmo tempo, duas proposições aparentemente contraditórias: Deus é o Todo-Poderoso quanto à origem do céu e da terra e o não poderoso dos textos evangélicos, aquele que morreu retomando a palavra do salmo 22: “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Nós podemos, então, afirmar, como Pascal que o Cristo “estará em agonia até o fim do mundo”. O Todo-Poderoso só se manifestará verdadeiramente quando a história humana chegar ao seu termo. Neste momento, e somente neste momento, sua vontade será feita “tanto na terra como no céu”.

O historiador deve constatar objetivamente que a teologia cristã de nosso tempo tem, mais que outras dos séculos anteriores, insistido na fraqueza de Deus – doutrina única nos anais religiosos da humanidade. O P. Varillon, em França, foi um dos estimuladores desta teologia, que chamou a atenção para a nova “humildade” de Deus. Outros têm exprimido um pensamento concordante. O suíço Maurice Zundel declarou um dia: “O centro da revelação de Deus em Jesus Cristo... não é a força de Deus, mais sua impotência”. O Pe. Moingt constata por sua vez: “Nós estamos hoje... atentos a todas essas fraquezas que trazem Deus para mais próximo de nós, mais desarmado, menos poderoso do que nós acreditamos”. Em A obra em negro, Marguerite Yourcenar faz ao orante dizer: “Quantos infelizes que indignam a noção de sua Onipotência (a Deus) acorreriam do fundo de sua solidão se lhes pedisse para vir em socorro à fraqueza de Deus!”. Saber que o Homem-Deus acaba veio sofrer, conosco e como nós, do mal e do sofrimento psíquico constitui para o cristão não uma explicação, mais um reconforto, na medida em que ele sabe que a presença divina não cessa de acompanhá-lo – a presença de alguém que passou e que passa pelas mesmas angústias que ele.

Por outro lado, a revelação cristã, sem trazer toda a luz que, como Jó, nós desejaremos projetar sobre as causas do mal e da infelicidade, não nos deixa sem esperança. Pois o Apocalipse anuncia que um dia o Cordeiro “enxugará todas as lágrimas”. “A morte, ela não mais existirá; os medos, os gritos e as penas não existirão mais... a noite, eles não mais existirão”.

À esta abertura sobre a esperança eu queria acrescentar uma constatação à contra-corrente do pessimismo atual e da fixação filosófica e midiático que nós temos sobre o mal. O bem existe. Cada um pode observá-lo em torno de si, na condição de estar com bons óculos. Porque o bem é discreto. Aplica-se em relação ao mal e ao bem o provérbio bem conhecido: “Ouve-se o barulho da árvore que é abatida, mas não se ouve a floresta que cresce”. A floresta que cresce em silêncio é o bem que se realiza cada dia em torno de nós e também – por que não? – através de nós. Nós herdamos tanto o mal quanto o bem que no passado foram cometidos e realizados. Não manter o bem em uma análise da condição humana e nas reflexões histórica, filosófica e religiosa da existência é cometer uma subtração ilegítima.

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O P. Valadier reagiu com razão com “a obturação da esperança” e à “supervalorização do mal” nas quais se compraz a reflexão filosófica contemporânea. Ela confere ao mal, diz ele, “uma espécie de primado sobre o bem... A capa de chumbo do mal nos aprisiona desde já, sem resistência”.

Paul Ricouer, que durante muito tempo se preocupou com o problema do mal, escreveu após sua estada em Taizé, “(Há no cristianismo) uma espécie de fixação e de confinamento sobre a culpa e sobre o mal... Ora, em Taizé, eu encontro jovens que têm um tropismo em direção à bondade... A bondade é mais profunda que o mal. É preciso libertar esta certeza”. Eu agradeço ao Ir. Roger nos ter dirigido esta mensagem de confiança no homem.

A propósito do mistério do mal, eu fiz alusão à doutrina do pecado original, totalmente ausente dos Evangelhos, do Credo de Nicée e do Símbolo dos apóstolos. Os Evangelhos mostram Jesus perdoando os pecados pessoais e dando como modelo a seus discípulos as crianças que batismo havia lavado do pecado original: “Se vós não vos tornades como elas, vós não entrareis no Reino dos Céus”. Eu lembro, além disso, que o judaísmo e o Islã não dão importância teológica à falta de Adão e Eva e que as religiões da Ásia são refratárias a esta noção de pecado original.

Bem, é evidente que não nego a importância do problema do mal. Acabo de insistir nisso. Porém me parece urgente que as Igrejas cristãs façam um “aggiornamento” sobre três pontos concernentes à doutrina tradicional sobre o pecado original:

1º: A suposta enormidade do primeiro erro;2º: A condenação à morte;3º A culpabilidade hereditária que teria resultado do pecado de Adão e Eva.

O que a ciência nos ensina hoje do passado da humanidade não permite mais manter a crença em um primeiro casal humano dotado de privilégios extraordinários, livre da morte, vivendo em um paraíso terrestre do qual nós não temos vestígios, e capaz de cometer, em toda liberdade e em plena consciência, uma falha enorme merecedora de punição exemplar. Nós entrevemos, ao contrário, a humanidade das origens evoluindo com dificuldades, como os animal, aprendendo progressivamente a se pôr de pé e a falar, desenvolvendo pouco a pouco os usos de sua liberdade. Face à evidência científica da evolução, vamos ter outro caso Galileu?

Acerca do segundo ponto, está claro que a morte não é uma condenação, mas um processo natural ligado à aparição da reprodução sexual. “Pois de nada serve produzir indivíduos diferentes dos pais se estes permacem e ocupam o lugar. É preciso que eles partam”, escreve o grande geólogo Xavier Le Pichon, aliás, um dos fundadores com, Jean Vanier, da Comunidade do Arco, que se ocupa de deficientes mentais.

Enfim, a noção de pecado original, tal qual ela foi ensinada e veiculada no cristianismo latino a partir de Santo Agostinho, incluiu a idéia de culpabilidade hereditária: somos culpados dos pecados de nossos familiares e é desta culpabilidade que o batismo estava habilitado a nos livrar, por meio de exorcismo. Não obstante, questionado sobre a cegueira de nascença – “Quem pecou para que ele seja cego, ele ou seus pais?” – Jesus responde: “Nem ele, nem seus pais”. Já Ezequiel (18, 1-20) pôs na boca de Javé estas palavras, para nós cheias de justiça e de bom senso: “Um filho não trará a falta de seu pai e nem um pai a falta de seu filho. Ao justo será imputada sua justiça e ao injusto, sua injustiça”. A Igreja católica renunciou à afirmação da culpabilidade hereditária no caso do povo que ela no passado considerava de “deicida”. Todas as nações rejeitam hoje, conforme o seu direito, a noção da culpabilidade hereditária. Parece-me, então, necessária e urgente que as igrejas cristãs dissipem toda a ambigüidade deste assunto, e não ensinem mais que a falta de nossos primeiros antepassados teria desencadeado a condenação de toda a humanidade ao inferno, não fosse a redenção. Eu acrescento que o cristianismo oriental não assimilou esta noção de culpabilidade hereditária.

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O P. Rey-Mermet, um amigo que se tornou referência para mim, dedicou parte de tomo I de seu livro Croire, aos primeiro capítulos do Gênesis como uma profecia escrita no passado: Eu o cito:

Não, a humanidade não nasceu em um paraíso terrestre. Este céu de felicidade e de divina amizade descrito pelo Gênesis 3, é a maquete da criação: não é passado, é futuro; não está atrás de nós, está diante de nós. É o desígnio de Deus para o fim dos tempos. É posto no início da Bíblia porque começamos sempre por estabelecer o modelo. Mas, na execução, a humanidade não começou pelos seres perfeitos, depois caídos, mais por humildes criaturas amorosamente aperfeiçoadas por Deus, segundo as leis de um longo desenvolvimento.

O livro do qual este texto é tirado obteve o nihil obstat da Arquidiocese de Paris, em 1976. Se retivermos esta interpretação do paraíso terrestre do Gênesis como “modelo” do futuro projetado por Deus para a humanidade, a noção de culpabilidade hereditária desaparece. No entanto, os homens, se multiplicando e desenvolvendo sua liberdade, deram uma dimensão dramática ao “pecado do mundo”. Então, como não estar impressionado pelo abismo que separa o projeto da realidade? Como não aspirar por um perdão no qual todos nós temos necessidade? Nesta perspectiva, a palavra “Redenção” não está fora de moda. Ela significa o amor inesgotável de Deus que se derrama sobre a nossa miséria, recusa a se desesperar de nós e mantém sua aliança conosco.

O texto do Gênesis relativo a Adão e Eva não deveria ser lido de maneira literal. Da mesma forma os cristãos não devem se alarmar de não mais poder ler “ingenuamente” os evangelhos, como o faziam no passado. Falta dar-se conta das luzes que trazem a exegese contemporânea. Nós sabemos hoje em dia que os evangelhos foram uma reconstrução didática do ensinamento de Jesus a partir da certeza da Ressurreição. Eles usaram uma pedagogia iluminada por esta convicção e destinada aos catecúmenos e aos neófitos. O grande historiador católico que foi Henri-Irénée Marrou escrevia o seguinte.

Um evangelho não é um registro de processos verbais, uma constatação de eventos mais ou menos exata ou tendenciosa, mais ou menos fielmente transmitidos... O autor queria transmitir a seus leitores o conhecimento de Cristo necessário à salvação. Para chegar a esta imagem, ele foi levado a toda manipulação de fontes que nos desconcertam talvez (por sua indiferença, por exemplo, à cronologia), mas que seria ingênuo se qualificar de falsificação ou mentira...

Uma conversão intelectual devida ao progresso da exegese nos é indispensável para compreender que os evangelistas, ao contrários de nós, não colocavam fronteiras precisas entre história, teologia, relato simbólico e poesia. Jesus tendo ressuscitado – o que foi uma evidência para eles – o objetivo deles era mostrar, da maneira mais convincente possível, que o passado povo da Aliança e os acontecimentos da vida de Jesus convergiam para a ressurreição do Messias. Não nos surpreendamos, então, se lemos nas obras exagéticas mais ou menos recentes ensinadas nas faculdades católicas, por exemplo, Charles Perrot em Paris e Jacques Schlosser em Strasbourg, que Jesus é provavelmente nascido não em Belém, mas em Nazaré, e que o massacre dos inocentes não pode ser considerado um fato histórico.

Estes dois autores, que são autorizados, pensam também que Jesus teve “irmãos” e “irmãs” no sentido comum, embora a tradição católica continua interpretando por “primos” e “primas” quando se trata da família de Jesus. Mateus, foi preciso ao escrever: “José recebeu sua esposa, mas ele não a conheceu até que ela teve um filho ao qual ele deu o nome de Jesus” (Mt 1, 25). O dogma da Encarnação não postula que Jesus, “filho primogênito de Maria” (Lc 2, 7) não tenha sido o primogênito de uma família numerosa, como existiam várias na época; e o dogma da Imaculada Conceição significa que Maria foi preservada do pecado do início ao fim de sua vida...

Sendo assim, eu me alio à doutrina da concepção virginal de Jesus por uma exceção “miraculosa” – doutrina presente nas primeiras profissões da fé cristã. Mas, eu queria recolocá-la no panorama inteiro da

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da vida e dos milagres de Jesus. Em uma perspectiva cristã, não me parece insensato pensar que a curta passagem pela terra de Deus feito homem produziu uma espécie de parêntese sobrenatural no desenvolvimento ordinário das leis do universo desde a sua concepção no seio da “Virgem Maria” até a glorificação final da Ressurreição. Episódio único dentro da história, a transcendência teria, durante uma breve seqüência, feito uma irrupção de maneira excepcional e inédita na cronologia ordinária e nas leis habituais do mundo. Este teria sido o espaço de uma breve vida humana penetrada de presença divina, anúncio, ela mesma, de um “reino” onde a humanidade conhecerá enfim a paz no amor.

Esta esperança do “Reino” é comum a todos os cristãos. Por que é necessário, então – outro assunto delicado –, que nós ofereçamos ao mundo o espetáculo de divisões que, evidentemente, prejudicam a credibilidade de nossa mensagem? Em uma época onde o cristianismo é contestado de múltiplas maneiras, este espetáculo é contrário, por vezes, ao bom senso e à caridade de não restabelecer entre nós os laços sólidos que permitam ações comuns em escada mundial. Diante dos jovens reunidos em Milão, em 1999, Ir. Roger de Taizé não escondeu sua inquietude quanto ao tema do futuro do ecumenismo: “E se nos perdemos na hora da reconciliação? Sem reconciliação qual futuro terá esta comunhão de amor que se chama Igreja?”.

Um protestante francês do século XVI, Jean de Serres, constatava com tristeza um grave erro de método nos encontros de seu tempo entre católicos e protestantes. “Falha-se no procedimento, escrevia ele, pois começamos por onde se devíamos terminar. Em todas as conferencias e discussões, começamos pela divergência da qual deveríamos tratar, [sem antes] esclarecer o que podíamos estar de acordo”. Certo, é bom assinalar hoje um texto de entendimento entre católicos e luteranos sobre a justificação pela fé, mas eu clamo por um dia no qual as principais confissões cristãs decidam se colocar ao redor de uma mesma mesa para estabelecer a lista de tudo o que os cristãos estão em acordo. Em uma viagem, já há muito tempo, à Alemanha, em 1980, João Paulo II, dirigindo-se aos protestantes deste país, declarou: “O que nos uni é mais forte do que nos separa”.

Todos os obstáculos ao progresso do ecumenismo não vêm de um só lugar. A fragmentação da autoridade nas igrejas ortodoxas e protestantes, as graves dissensões no interior do Conselho Mundial das Igrejas, a confusão nos vários países ortodoxos entre religião e sentimento nacional, a suspeita, nestes mesmos países, de “proselitismo” da parte de outras confissões cristãs – Católica e Batista –, e a agressividade de certos grupos evangélicos para com a Igreja Romana não facilitam o diálogo ecumênico.

Porém, é preciso abordar lucidamente uma dificuldade maior: a unidade cristã deve se fazer por uma entrada na Igreja mãe que fará, assim, as concessões de detalhes? Os textos recentes da Cúria recusaram o qualificativo de “Igrejas irmãs”, adotado desde o Vaticano II, às confissões cristãs separadas de Roma. No entanto, dando conta do tempo que se esvai e das diferenças que são apontadas desde as separações, não há grande evidência que possa se encaminhar para uma solução de reintegração na Igreja mãe. A outra possibilidade seria uma “comunhão de comunidades”. Jean Comby, que foi professor na Faculdade de Teologia de Lyon, estima que “o ecumenismo só tem sentido se as diversas Igrejas preservarem sua personalidade”. No mesmo espírito, Enzo Bianchi, prior da comunidade monástica ecumênica de Bose, na Itália, declara: “O futuro não é a unidade dos cristãos em uniformidade. A unidade se fará entre Igrejas irmãs. Roma não é a Igreja mãe, pois que o cristianismo não é Jerusalém”. Jean-Marie Tillard, recentemente falecido, discípulo e amigo de P. Congar, desejava que o bispo de Roma se tornasse um “árbitro”, “um domicílio de comunhão presidindo na caridade”. Ele reconhecia em “todas as Igrejas dispersas pelo mundo e se espalhando ao longo da história a única e mesma Igreja”, da qual o Papa deveria ser o símbolo. Eu me uno a esta percepção que pode, somente ela, segundo minha opinião, permitir a recomposição do cristianismo.

Eu desejo, dessa maneira, que Bento XVI faça progredir as coisas neste sentido, e nutro a esperança que ele assim o fará. Quando do encontro ecumênico, em J. M. J. de Cologne¹, ele declarou: “Antes de tudo, após minha eleição... eu manifestei minha forte intenção de ter como prioridade de meu pontificado o

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retorno da plena e visível unidade dos cristãos”. Mais adiante em seu discurso, ele definiu a “plena catolicidade” como “a unidade na multiplicidade e a multiplicidade na unidade”. O que só pode ser possível com uma profunda descentralização da Igreja Romana.

No mais, é somente graças a esta descentralização que poderá ser revigorado o diálogo inter-religioso que o Vaticano II, depois com João Paulo II, teve coragem de levar adiante: o pedido de perdão do Papa quando da viagem a Israel; suas visitas a países mulçumanos; os encontros de Assis onde ele teve a iniciativa de realizar gestos louváveis e de uma grande importância histórica. Pois a mundialização e o peso crescente dos cristãos não europeus aos poucos deveria, logicamente, conduzir a tomada das espiritualidades, liturgias e originalidades religiosas não ocidentais. Ora, não pode haver esse diálogo inter-religioso sem “igualdade entre os interlocutores” (Claude Geffré). Certamente os cristãos não podem renunciar à crença que Jesus, Filho de Deus, é o salvador de toda a humanidade. Mas, à hora da mundialização, a palavra de Paulo – “Deus quer que todos os homens sejam salvos” – leva a pensar que nós somos todos co-peregrinos no caminho da salvação, que o Espírito, que “sopra onde ele quer”, está presente em todas as tradições religiosas, e que o inter-religioso não é mais uma contradição, e sim uma interdependência. No documento publicado pela Conferencia Episcopal das Igrejas da Ásia, em 1989, pode-se ler: “A pluralidade das religiões é uma conseqüência da riqueza da criação em si mesma e da graça infinita de Deus... Um tal pluralismo não deve de nenhuma maneira ser lamentado, mas acima de tudo, reconhecido como sendo ele mesmo um dom divino”.

Contudo o progresso do ecumenismo e do diálogo inter-religioso implicam, entre outras condições, que a Igreja Romana recoloque em questão a sua centralização atual, que nunca foi tão forte, e, de maneira mais geral, seu funcionamento interno. Eu abordo aqui um ponto sensível e importante, mas que é incontornável. Meu desejo mais forte, concernente ao novo pontificado, é que ele marque uma evolução significativa para dar mais colegialidade e para a criação de estruturas de diálogo no interior da nossa Igreja. Porque encarnar o cristianismo no mundo moderno conduz, necessariamente, a aceitar certos dados de base da nossa civilização. Outrora as sociedades, apesar de revoltas pontuais e localizadas, aceitavam com mais freqüência e docilidade viver na obediência. Agora elas exigem participar das decisões que lhes dizem respeito. Isto constitui um direito recente aplicado a todos os níveis e em todos os domínios de nossa vida coletiva. Ignorá-lo é perigoso. Ora, a Igreja Romana continua sendo, estruturalmente, uma monarquia do Antigo Regime, funcionando sem associar os fiéis às decisões que eles devem pôr em prática em suas vidas privadas.

Se os católicos fossem consultados e suas opiniões levadas em conta, a encíclica Humanae vitae não teria nunca sido promulgada, o celibato obrigatório dos padres teria sido suprimido, a situação dos divorciados recasados teria sido revisto e o lugar da mulher dentro da Igreja reavaliado. Sobre este último ponto, o retardo de Roma é alarmante. Ou, como diz muito bem o Pe. Claude Geffré, “Se não se ameaça a mensagem da cruz, porque não interrogar sobre o sacerdócio feminino?”.

Esta evidência me conduz à ultima parte desta exposição para distinguir o essencial do acessório. Pois o essencial é a mensagem cristã, que tem autonomia em relação às instituições que são, necessariamente, chamadas a mudar com o tempo. Tratando-se, então, do essencial, a questão é a seguinte: em que e por que o cristianismo permanece atual? A dupla resposta, conforme meu entendimento, é que ele traz consigo, de maneira inédita e decisiva, uma nova imagem de Deus e institui novas relações entre Deus e os homens. Jesus era judeu. A religião que nasce de seu ensinamento é oriunda da fusão judaica. Mas – e eu cito aqui Régis Debray – Jesus tem “desterritorilizou a religião... Um divino independente do solo, isso nunca tinha sido visto... (O Deus de Jesus) não é mais um Deus étnico... É um Deus desenraizado, sem pátria... Jesus mundializou Deus... Todas as nações são admitidas na Santa Mesa”. O despatriamento fecundo foi acompanhado pela liberação de uma multidão de ritos, ou seja, de duzentos e quarenta e oito mandamentos e trezentos e sessenta e cinco proibições da Lei judaica.

Também se pode afirmar, legitimamente, que Jesus deu um novo estatuto à liberdade humana. O Primeiro Testamento tinha, sobretudo, insistido nas libertações sucessivas do povo eleito, do Egito, ao

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cativeiro na Babilônia. O cristianismo, ao contrário, compreendeu o ensinamento de Jesus como uma palavra à liberdade dirigida a todos os homens. Paulo a proclama aos Gálatas: “É para que nós sejamos livres que o Cristo nos libertou. Vós fostes chamados à liberdade” (Gal., 5, 1 e 13). E João confirma: “A verdade vos fará livres... Se o Filho (= o Cristo) vos libertou, vós sereis realmente livres”. Segundo o cristianismo, os homens são todos irmãos de Jesus e co-herdeiros com ele do reino de Deus, todos chamados ao mesmo destino de divinização última. Nunca, antes disso, a dignidade do homem – de todos os homens – tinha sido afirmada com tal força e justiça por um tão forte argumento. É porque a atual mundialização dá um novo aspecto ao cristianismo.

Outra característica sem precedente de ensinamento de Jesus é a maneira pela qual ele fala de seu Pai, ao qual ele se dirige dizendo “Abba”, o equivalente a nosso “papai”. A este respeito Régis Debray escreve ainda: “Ao Deus severo das armas, que se vinga e pune (“Tua direita, Ó Eterno, esmaga o inimigo”), sucede um Deus dócil, que perdoa e desarma... Yaweh rosna; Jesus sorri”. Na Boa Nova cristã, Pai e perdão são inseparáveis. O cristianismo não pretende ter o monopólio do gesto do perdão. Mas, historicamente falando, ele o exaltou mais do que qualquer religião ou filosofia. O cristianismo defende, para todos e incansavelmente, o perdão. Assim fazendo, estará ele fora de moda? Se estiver, o pior nos espera.

O chamado dirigido por Jesus a seu Pai – “Papai” – inicia uma doutrina inacreditável, única nos anais religiosos, aquela da Encarnação. A aproximação com os “avatares” de Vishnu só pode ser superficial. Vishnu aparece sucessivamente como peixe, tartaruga, javali, o piedoso guerreiro Rama ou como Krhisna, o amante perfeito etc. Porém, Vishnu não se torna verdadeiramente a forma que adquire. Aquela é apenas uma aparência em favor dos devotos. O cristianismo, ao contrário, afirma que Deus não faz semelhante ao tornar-se homem. “Ele gemeu dentro de um berço, escreve Lutero,... Ele tem a cabeça nos seios da mãe e ele dorme em sua manjedoura: eis aqui o principal artigo de nossa religião”. Ele é, dessa maneira, nosso irmão e a promoção da humanidade se faz graças à Encarnação. Ele está presente entre nós, em particular nos irmãos que sofrem. Mistério seguramente. Mas, mistério que revolucionou a imagem de Deus.

Última inovação cristã, a mais paradoxal de todas, mas que dá sentidos a todas as outras: a proclamação da ressurreição de Jesus, que “ressurgiu dentre os mortos”. Ora, não se trata de uma divindade que morre no outono para renascer na primavera, como nas religiões dos mistérios da Antiguidade, mas do Filho de Deus arrancado definitivamente da morada dos mortos. Nós podemos nos recusar a acreditar nesta “loucura” – é a expressão de Paulo –, porém, é necessário constatar que nunca antes havia sido proposta semelhante doutrina e que ela não está assentada em nenhuma outra religião. Seu corolário é a convicção de que Jesus, ressuscitando, nos abre as portas do reino dos céus, e que nós seremos acolhidos nele. Tais são os sentidos e o desfecho que o cristianismo dá à nossa vida. Assim, finalizando, minha questão: em que e por que uma tal esperança estaria fora de moda?

Notas

¹Jornada Mundial da Juventude

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A PRIMAVERA DA ESPERANÇAum cristianismo para o amanhã

Marcio Tavares d´Amaral¹

VInte e três de setembro. Isto é para nós, ao sul do Equador, o começo da primavera. Um bom dia, talvez, para pensarmos no futuro. Um dia em que, recomeçando todos os ciclos vitais, é bom pensar no amanhã. E se estamos reunidos aqui, cristãos, para pensar no amanhã esta talvez seja uma boa oportunidade para formularmos para nós mesmos esse tema: “Um cristianismo para amanhã”. É dessa forma talvez que possamos dar ao tema a sua vivacidade, a sua qualidade vital. Não é uma questão de livro: é uma questão da existência, nossa, no seu empenho mais radical, e da existência dos outros, esses outros que já vai sendo difícil reconhecermos e incluirmos na nossa própria existência.

Uma pista com a qual talvez se pudesse começar, e já foi oferecida pelo professor Delumeau na sua intervenção, é a da globalização. Nós estamos acostumados a pensar a globalização como essencialmente econômica, portanto a mundialização dos mercados. Mas há também a globalização política, a grande concentração mundial do poder que os franceses adequadamente distinguem da globalização econômica, e chamam especificamente de mundialização. E a globalização social, que em geral nós vemos pelo negativo. Valeria aqui a pena tomar uma dimensão talvez positiva ou positivável que nós podemos aproveitar para o tema que nos reúne nesta tarde. Essa é a dimensão da globalização da pobreza. Nós sabemos que Jesus escolheu os pobres para estar entre eles, para viver entre eles, e para morrer entre eles. Muito antes da famosa opção preferencial pelos pobres feita ou proclamada a partir do Concílio Vaticano II, esta sempre foi a opção cristã, esta é a opção de Jesus. Quando ele mandou os seus discípulos irem até os confins do mundo o que ele estava antevendo era a Igreja peregrina, a Igreja presente em todas as partes do mundo, as missões. As missões já iam, já sempre foram procurar e encontrar os pobres onde eles estão e viver com eles e se necessário morrer com eles. Na globalização que nós vamos vivendo é o contrário que se passa. Agora são os pobres que vêm a nós. O grande movimento de mercados, de mão-de-obra e de exclusão em que a globalização implica, implica também em que os pobres apareçam na sua dimensão global.

Mas uma coisa é virem a nós, outra coisa é que nós efetivamente os vejamos como efetivamente eles são. Porque eles vêm a nós como tudo hoje vem a nós, na obscenidade, no excesso de visibilidade da imagem, da imagem que corre o planeta e já está se tornando autônoma do seu referente, já não diz mais o que é a realidade. Imagem de imagem de imagem: este excesso de visibilidade em que nós vivemos anestesia, produz uma invisibilidade afetiva, de modo que essa presença globalizada dos pobres, a globalização da pobreza implica em palavras de ordem, políticas, não implica tanto em compromisso vital, verdadeiramente religioso. Basta que nós comparemos alguns momentos de intenso sofrimento e de exposição da pobreza, como Biafra, a Etiópia, Ruanda, a Iugoslávia. Vamos nos lembrar de Biafra. Foram poderosas fotografias que chicotearam a face do mundo com a mais extrema pobreza, aquela que está mais próxima da morte. Biafra foi um susto nos inícios da globalização. Foi espetacular, no sentido de que nós recebemos aquelas imagens, aquelas fotografias, como o espetáculo da pobreza, e reagimos a elas como se reage a um espetáculo.

Veio depois a grande fome na Etiópia. Legiões de esquálidos de novo próximos da morte, mulheres, crianças, velhos, negros todos, próximos da morte. A Etiópia nos valeu, além da má consciência, uma bela música que alguns dos grandes cantores pop do mundo entoaram como uma espécie de berceuse da nossa culpa, da nossa vergonha. Foi já uma estetização que se passou ali.

Em relação a Ruanda, o ocidente cristão se pôs a dizer que se tratava de uma luta tribal que nós não podíamos sequer compreender, uma vez que, organizados em estados nacionais, não tínhamos instrumental teórico e instrumentos políticos de intervenção para dar conta da lógica dessa guerra. E de longe vimos aquelas populações, pessoas, nossos irmãos, se entrematando até o fim.

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Depois veio a Iugoslávia. Processos de limpeza étnica, violência, mistura do político com o religioso, e ao final já não se sabia quem era o bem, quem era o mal, naquela relação confusa entre sérvios, croatas, bósnios, muçulmanos, cristãos. A Europa demorou a se mexer, e no entanto era na Europa que isto se passava. Já estávamos aí entrando no reino da indiferença. Espetacularização, estetização, indiferença: é assim talvez que se conte a história de hoje, e é em relação a essa história que precisamos lentamente, delicadamente, mas poderosamente pensar o que é necessário que o cristianismo seja para que chegue ao amanhã, e para que chegue um amanhã.

Nós estávamos sempre muito acostumados a dizer aquilo que vemos – ver e dizer –, acostumados à veredicção, a dizer a verdade, a viver no domínio da verdade. E que a verdade tivesse suas conseqüências éticas. Mas quando a palavra perde a força diante da imagem, que já não mostra, espetaculariza, estetiza, indiferencia, nós só temos um caminho, um lugar onde podemos encontrar o próximo e Deus: é o compromisso do coração, é o amor.

São João nos diz: Deus é amor. Mas onde se encontra o amor, esse amor que é Deus, esse amor de Deus? Em geral nós dizemos: no próximo. Julgamos que esta é a lição que Cristo nos ensinou. E de fato nós partilhamos com os nossos irmãos judeus a sentença “Amai ao próximo como a vós mesmos”. Esta sentença já pôde querer dizer outra coisa, mas hoje significa: “Se não fordes capazes de amar a vós mesmos, não sereis capazes de amar o próximo”. É uma sentença que cai muito bem no hedonismo contemporâneo, no extremo individualismo que nós vamos vivendo. Este si mesmo, este nós mesmos, este vós mesmos, exclui o próximo, volta-se sobre si mesmo. Amar a mim mesmo, sem o que não poderei amar ao próximo; isto se converte em amar a mim mesmo, a minha individualidade, minha subjetividade, o meu corpo que precisa ser construído segundo modelos de gozo, de fruição, modelos hedonísticos. Mas há outra sentença, essa inteiramente cristã: “Amai-vos uns aos outros como o Pai vos amou”. Onde nesta sentença está Deus, e quem é o próximo? Em geral quando nós falamos no próximo nos lembramos da parábola do Bom Samaritano. Todos se lembram: havia um homem ferido, à morte, à beira da estrada entre Jerusalém e Jericó. Passam um sacerdote, um doutor da lei, e não param; passa um Samaritano e pára, cuida daquele homem, empenha-se por ele. Em geral dizemos: ele, este Samaritano, reconheceu no homem ferido à beira da estrada o seu próximo. Thimoty Radcliff, até pouco tempo Mestre mundial da Ordem Predicante, nos dá uma outra lição. Diz ele: na verdade o sacerdote e o doutor da lei não se reconheceram como o próximo daquele homem ferido à beira da estrada; o Samaritano se reconheceu: por isso ele se empenhou pelo outro em si mesmo.

Ser o próximo de todos os nossos irmãos, ser verdadeiramente e até o fim o próximo, isto é o amor, e esta é a força com que nós podemos contar contra a indiferença, contra o princípio do Mal na cultura contemporânea, que pode se anunciar assim: o outro pode perecer, e que talvez hoje já, de maneira sutil, como me sugere Catarina Amaral, esteja em vias de se transformar numa sentença ainda mais terrível, o outro deve perecer! Diante da indiferença, frente a esse princípio do mal, a essa violenta denegação do Outro, não basta, mesmo não vale, reivindicar a sua própria diferença e fechar-se num gueto auto instituído. A indiferença e a reivindicação absoluta da diferença como exclusão auto imposta são duas formas de desamor.

O amor ativo é aquele que encontra os pobres com um espírito de pobreza, não portanto como um Outro irredutível, mas como aquele diante do qual eu sou capaz de me reconhecer o próximo.

Trata-se de uma ética da transcendência. Nós vivemos uma época fortemente marcada por um desejo de imanência absoluta, pela afirmação de que nenhum sentido se passa fora das coisas que se passam, que não há Sentido, não há Verdade, não há Fora, não há Deus. A ética do amor ativo, do espírito de pobreza, na época da globalização da pobreza, é aquela que já se contém num mandamento de Jesus, quando ele nos diz: “Cada vez que o fizerdes a um desses pequeninos, a mim o estareis fazendo”.

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O nosso irmão é Jesus: nele nós nos reconhecemos seus irmãos, e reconhecemos os outros nossos irmãos. Ainda aí vigora um princípio de exclusão. Quando nós dizemos nós e nossos, estamos dizendo nós e eles. A nós cabe reconhecer o próximo, e aceitá-lo ou não. Eles são o próximo, e estão fora do nosso campo: é preciso ir buscá-los.

Ora, não é verdade. Se somos todos irmãos em Jesus, todos nós somos o próximo. Esta é a globalização na fraternidade, é a generalização da proximidade contra os fundamentalismos e a espetacularização da fé. Todo fundamentalismo é uma maneira de dizer nós que exclui os outros; toda espetacularização da fé é um modo de dar a ver que já não reconhece aquilo que propriamente é, uma vez que já o transformou em pura imagem, isto é, em espetáculo. A pura imagem, a imaginarização do outro.

Contra os fundamentalismos e a espetacularização da fé, cabe a nós, cristãos, apostarmos profundamente na globalização da fraternidade. O cristianismo de amanhã pode assim ser pensado como o cristianismo das origens. A fraternidade generalizada pode ser entendida segunda essa outra frase de Jesus: “Cada vez que dois de vós vos reunirdes para partir o pão em meu nome, eu estarei presente”.O princípio da fraternidade como o modo, a presença de Deus no humano, nos faz pensar e crer que a Presença é universal e concreta. “Cada vez que dois de vós...” - isto é concreto, e, “Eu estarei presente” -, isto é universal.

E entre este universal e esta concretude a Presença é rigorosamente real.

A presença real de Cristo, este é o ensinamento que deve ser recolhido nas origens da fé cristã e do pensamento do cristianismo, como o princípio da globalização da fraternidade.

E se é assim, nada pode ser mais importante como atitude diante da alteridade do que o diálogo ecumênico verdadeiramente profundo, que não fique na superfície do que nos separa, mas vá até a raiz essencial do que nos irmana: porque é de fraternidade que se trata. E o diálogo inter-religioso, este em que a alteridade se torna aparentemente mais aguda, e maior deve ser portanto a abertura, a receptividade. Nós poderíamos chamar isto de uma globalização doce do Amor.

Como São Paulo nos ensina na 1ª epístola aos Corinthios, e se tornou paradigmático para todos os cristãos: “Temos então a fé, a esperança, e o amor; maior, no entanto é o amor”. Ora, nos nossos dias essa pode ser simplesmente uma sentença de uma antiga sabedoria, a sabedoria cristã nas suas origens.

Se a esperança – temos a fé, a esperança, e o amor – não for ativa (ter esperança não é esperar), o próprio amor não produzirá frutos.

Já se disse muito entre nós: quem tem fome, tem pressa. Isto não é uma sentença, é um mandamento para a ação. É um modo de não ser reativo em relação àqueles que vêm a nós, e nós não vemos e precisamos aprender a ver. Aqueles em relação aos quais nós perdemos a palavra que os nomeia essencialmente, mas precisamos reaprender a dizê-la. Aqueles cuja verdade nós precisamos conhecer para nos reconhecermos próximo desses, os pobres, que, globalizados na sua pobreza, podem nos pedir uma atitude meramente reativa. E ser reativo pode querer dizer fugir da natureza dramática, radical e essencialmente má daquilo que se põe diante de nós como o grande contingente da pobreza que se apresenta às nossas vistas, que se tornaram cegas para a alteridade.

Não sermos, portanto, reativos, mas como o próximo do outro aderirmos a ele firmemente - esse é o espírito da alegria. É necessário que o cristianismo reaprenda a alegria.

Não há talvez mensagem mais profundamente alegre do que a mensagem cristã, porque na sua essência ela se centra na Ressurreição. O que essa mensagem nos diz é: a morte foi vencida, a morte não há mais. Ela nos fala radicalmente da glória, da luz, da alegria em Deus, da alegria de Deus.

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Que seja assim para nós, para os nossos filhos, o Cristianismo de amanhã. Deus estará, nele, sorrindo para nós.

Notas

¹ Professor titular do Departamento de Letras da UFRJ, e pesquisador vinculado ao Programa IDEA - Laboratório de História dos Sistemas de Pensamento.

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O JARDIM DAS DELíCIAS.A saudade do paraíso terrestre

Jean Delumeau

A palavra “paraíso”, pelo intermediário do grego paradeisos, vem do antigo persa, paradeisa. Este termo designava uma vegetação em torno de um muro, protegendo-o contra os ventos quentes e ressecantes do deserto. Pois, nosso paraíso terrestre, – eu não falarei a respeito, por falta de competência, daqueles paraísos que puderam imaginar os africanos, os asiáticos ou os ameríndios – de início, foi o sonho dos povos do deserto que concebiam a felicidade em meio á uma vegetação luxuriante e perfumada se espalhando graças à abundância de água sob temperatura amena e equilibrada, nem quente, nem fria. Pois o texto transmitido aos judeus, aos cristãos e aos mulçumanos através do mito de Adão e Eva, foi concebido por povos que tiveram a cruel experiência do deserto e que asseguraram ter errado por ele durante quarenta anos antes de serem levados à terra onde colheram “o leite e mel”.

Mas, se na nossa civilização estabelecemos uma ligação quase estrutural entre felicidade e jardim, isso se relaciona também com as tradições greco-romanas com as quais se uniram, ao menos parcialmente a partir da era cristã, as evocações bíblicas do jardim do Éden. Três grandes temas, na Antiguidade helênica e latina, deram oportunidade de evocar os lugares de felicidade: a idade de ouro, os Campos Elíseos e as Ilhas Afortunadas.

Hesíodo, Platão e Ovídio descreveram o tempo – a idade do ouro – em que “os homens – eu cito Hesíodo – viviam como deuses, o coração livre de preocupações e ao abrigo dos infortúnios e das misérias... Todos os bens eram deles; o solo fecundo produzia por si mesmo as abundantes e generosas colheitas”. O tema dos Campos Elíseos, Proteu, no Canto IV da Odisséia, anuncia a Menelau: “Os Campos Elíseos, ao fim da terra, os deuses te levarão até o loiro Radhamante, onde a mais doce vida é ofertada aos humanos, onde não há neve, não há rigorosos invernos, nunca chove, e só sopra o zéfiro...”. Horácio, enfim, faz surgir no oceano as Ilhas Afortunadas, “onde a terra, a cada ano, dá aos homens os frutos de Ceres sem trabalho; aonde sempre a vinha floresce sem que seja podada. O urso não ruge próximo aos rebanhos; o solo profundo é livre de víboras...”

OS primeiro escritores cristãos inicialmente rejeitaram esses mitos pagãos. Mas, desde o segundo século eles foram progressivamente cristianizados. São Justino mártir, Tertuliano e São Clemente de Alexandria ensinaram que o que os poetas gregos e latinos escreveram sobre a idade do ouro e os Campos Elíseos vinham na verdade de Moisés, e que eles tinham, de uma maneira ou de outra, conhecimento do Pentateuco. Os mitos pagãos, pensaram eles, vieram então por vias misteriosas, dos relatos hebraicos. Acredita-se ainda nisso, correntemente, no século XVII. Este amálgama fez com que caíssemos antes no “jardim das delícias” – é a expressão que empregavam constantemente os Padres da Igreja – que conjugava todas as belezas da idade do ouro, os Campos Elíseos e da Ilhas Afortunadas.

Durante vários séculos – é preciso dizer durante pelo menos dois mil anos - os judeus, depois os cristãos e os mulçumanos, salvo exceção não duvidavam deste relato, e do caráter histórico do relato do Gênesis (2, 8-17) concernente ao jardim maravilhoso que Deus fizera surgir no Éden. Eu vou lembrar este texto na tradução da recente T.E.B.:

O senhor Deus plantou um jardim em Éden, a Oriente, e ele colocou o homem que tinha criado. O Senhor Deus fez germinar do solo árvore de aspecto atraente e boa para comer, a árvore do conhecimento do que é bom ou mal.Um rio saía do Éden para irrigar o jardim. De lá, ele se dividia para formar quatro braços. O primeiro se chamava Pishôn (“o jorrante”)... O segundo rio se chamava Guihôn (“o saltante”)... O terceiro rio se chamava Tigre, ele corre para o Oriente de Assíria. O quarto rio era o Eufrates.

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Porém, alguns espíritos perspicazes, como o do judeu Philon de Alexandria (50 d.C.) e os cristão Orígenes (252 d.C), propuseram uma interpretação alegórica do texto que acabo de citar. Mas, tanto no Ocidente quanto no Oriente, os teólogos que se inclinaram sobre uma leitura simbólica do relato a respeito do paraíso terrestre foram uma pequena minoria. Santo Agostinho, que de maneira especial tem uma influência imensa na cristandade latina, afirmou: “Devemos estar alerta para não ver uma maneira figurada de falar, mas o relato de fatos reais que aconteceram. Um rio tinha sua fonte dentro do Éden, isto é, em uma lugar de delícias, e banhava o paraíso, ou seja, todas as belas árvores carregadas de frutos que sombreavam todo o solo dessa região”. Para gerações de cristãos ocidentais estas afirmações de Santo Agostinho constituíram declarações infalíveis.

Santo Isidoro de Sevilha (636 d.C.), que é chamado de “o grande mestre da Idade Média”, declarou: “Que os primeiros seres humanos foram colocados em um lugar onde nenhuma criatura podia alimentá-los, onde o fogo não queimava, onde a água não afogava, onde as feras não atacavam, onde os espinhos não machucavam... o que impede de pensar?”. Do mesmo modo, Santo Tomás de Aquino afirmou, tal qual Santo Agostinho: “ O que é dito na Escritura sobre o paraíso (terrestre) se apresenta como um relato histórico... (A árvore da vida) era com certeza uma árvore material, porque seu fruto tinha a virtude de conservar a vida”.

Na época do Renascimento, e ainda até o século XVII, para a maioria dos comentadores do Gênesis, o relato relativo ao paraíso terrestre deveria ser tomado ao pé da letra. Lutero é formal neste ponto de vista e denuncia “as fantasias das Origens...” indignas de um teólogo. Calvino não é menos categórico quando afirma: “Quanto ás alegorias das origens e coisas semelhantes, é preciso rejeitar tudo inteiramente. Porque Satã, por astúcia, se esforça para introduzi-las na Igreja, a fim de que a doutrina da Escritura tenha ambigüidade e não tenha nada de definitivo e nem de certo”. Para os padres do Concílio de Trento, a realidade histórica do jardim do Éden era igualmente evidente. E, no início do século XVII, o grande teólogo jesuíta Suarez não temia declarar: “A doutrina católica é que o paraíso que Deus plantou no início foi um lugar terrestre e que tudo o que foi dito de sua criação deve ser compreendido pelo sentido próprio e literal. Esta afirmação é de fé e é provada pela Escritura...”.

Não somente os judeus, cristãos e mulçumanos permaneceram durante muito tempo convencidos de que o paraíso terrestre tinha realmente existido, mas persistiu também a certeza de que o jardim do Éden não tinha desaparecido da terra, que tinha sido isolado por uma muralha de fogo e a espada de um querubim. Mas, então, onde ele se achava? Isidoro de Sevilha, tratando da geografia da Ásia, escreve: “O paraíso é um lugar no Oriente o qual tem o nome traduzido do grego, em latim é hortus... Aquele que tem árvores frutíferas e que contém também a árvore da vida. Lá, o frio e a canícula não são conhecidos; o ar é sempre temperado”.

Esta convicção atravessou toda a Idade Média. São Tomás de Aquino, no século XIII, abordou, ele também, na questão 102 de sua Súmula teológica, o problema da localização do paraíso terrestre. Ele convida a pensar nisso, que “o lugar é muito longe das investigações humanas... que os rios, dos quais diz-se que as fontes são conhecidas, estão perdidos em alguma parte, nas terras de onde jorram para outros lugares... o lugar é separado de nosso habitat por certos obstáculos, sejam montanhas, sejam mares, seja alguma região que não se pode atravessar”. São Tomás se pergunta, como vários outros autores, se o paraíso se encontra no equador e responde prudentemente: “É preciso que ele se localize em uma região temperada, seja no equador, seja alhures”.

Uma excelente síntese do que acreditavam os povos da Idade Média em relação ao tema do paraíso terrestre é fornecido por Jean de Mandeville, nascido em aproximadamente 1300, em Liège, autor de Viagens (Voyages), livro que teve grande sucesso: restam 250 manuscritos, dos quais 52 em francês, difundidos pela imprensa em 180 edições em uma dezena de línguas. Lê-se, notadamente:

Paraíso terrestre, diz-se que é a mais alta terra do mundo, e é no Oriente, no começo da terra. E é

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tão alto que ele chega bem perto do círculo da luz. Pois ela (a terra) é tão alta que o rio de Noé (o dilúvio) não o inundou, mesmo cobrindo toas as terras do mundo de cima a baixo, deixando de fora apenas o paraíso... E, no topo da terra do paraíso, no meio, está a fonte que jorra os quatro rios que correm pelas diversas regiões... E diz-se que todas as águas doces do mundo, de cima a baixo, têm suas nascentes nesta fonte... E saiba que ninguém pode ir a este paraíso nem por terra e nem por mar.

No início do século XV, o cardeal Pierre d’Ailly (1420) redigiu uma obra de geografia, Imago mundi, que foi mais tarde um dos livros favoritos de Cristóvão Colombo, Pierre d’Ailly assevera neste livro:

O paraíso terrestre... é um lugar agradável, situado em certas regiões do Oriente à longa distância por terra e por mar de nosso mundo habitado. Ele é tão elevado que ele toca a esfera lunar e a água do dilúvio não o percorreram... As águas que descem desta montanha muito elevada formam um lago enorme... Deste lago, como de uma fonte principal, nascem os quatro rios do paraíso: o Pishôn, ou seja, o Gange; o Guihôn, que não é outro senão o Nilo; o Tigre e o Eufrates, é por isso que suas fontes parecem se achar em vários lugares.

Cristóvão Colombo não deixou de registrar sua opinião sobra a localização do paraíso terrestre; e isso no relato que ele escreveu de sua terceira viagem (1498), ao curso da qual ele atingiu o continente americano na região do golfo de Paria e na foz do Orenoco. Nestes lugares descobriu uma enorme quantidade de água doce que se mantinha no meio da água salgada do mar, e Colombo pensou que esta água só podia vir do paraíso terrestre, que ele imaginou na zona equatorial, a uma grande altitude e em alguma parte remontando o Orenoco. Ele especifica: “Eu não pretendo dizer que lá se possa chegar navegando até o ponto onde se acha o pico... mas eu acredito que é lá que se encontra o paraíso terrestre, até onde ninguém pode chegar, se não por vontade divina”. Assim, Cristóvão Colombo, que acreditava ter chegado às portas do Extremo Oriente, afirmava a certeza na existência contínua e atual do paraíso terrestre.

A localização extremo-oriental, durante muito tempo aceita sem discussão, explica o por quê de muitas cartas medievais o localizarem no alto, não ao Norte como nós, mas a Leste. E não somente eles localizavam a Leste, no alto, mas por diversas vezes incluíam ao ponto mais alto da composição gráfica uma representação simplificada do paraíso terrestre, com os quatro rios que saíam e a imagem da árvore do conhecimento do bem e do mal. Ao contrário, no século XVI, as cartas e mapas-mundo são, em imensa maioria, orientadas para o Norte e elas não deixam mais crer que o paraíso terrestre existiria ainda em alguma parte do Oriente.

A convicção tenaz de que o paraíso terrestre subsistia sempre em nosso planeta, em um lugar tornado inacessível por causa do pecado original, se ajunta no decorrer dos anos à durável certeza de que suas proximidades não estavam, fora do alcance humano, e que as terras venturosas conservavam seu clima, suas riquezas naturais, sua fauna e suas flores, vários atrativos e privilégios do jardim do Éden – e isto por razões da proximidade com ele ou da insularidade protetora, às vezes, pelos dois. O mais célebre relato deste país foi aquele a respeito do reino de Prête Jean.

Este personagem teria uma dupla origem – indiana e etíope. De onde as duas localizações que foram pouco a pouco, ou simultaneamente, aceitas no Ocidente, sendo em todas as vezes ao Leste da África, local correntemente chamado de Índia na Idade Média. É bem verdade que o soberano etíope era cristão. Mas, por outro lado, existiam desde os séculos III e IV as comunidades cristãs dissidentes – nestorianas – nas costas da Índia e na Ásia central. O nome de Jean seria a deformação de Vizan, o filho de um rei, o qual se dizia ter sido convertido pelo apóstolo Tomé. Assegura-se também que a tumba de São Tomé se encontraria em Madras. Enfim, A tradição fazia vir os reis magos de um Oriente fabuloso por suas riquezas. O identificou-se, então, as figuras do imaginário ocidental de um rei cristão reinando em alguma parte do oriente, perto do paraíso terrestre.

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Ora, os latinos, instalados na Ásia Menor desde a primeira cruzada, sentiam a fragilidade de sua situação no centro do mundo mulçumano. Eles estavam, assim, dispostos a acolher tosas a indicação, levando-os a acreditar que um príncipe cristão reinando em alguma parte da Ásia ou na Etiópia, essa região ligada à Índia conforme a geografia da época, poderia pegar de revés os príncipes mulçumanos e, em especial, os da Pérsia. O terreno estava assim preparado para dar credibilidade à “carta” que o teria supostamente endereçado ao imperador bizantino Manuel I Comnène por volta de 1165. Esta carta, que deveria ter sido redigida em grego, foi, no entanto, escrita em latim com “helenismos de araque” e nunca foi enviada ao imperador de Constantinopla. Porém, o importante para nós é nela que se acreditou, verdadeiramente, e que ela teve um imenso sucesso por causa dos detalhes que continha sobre as “maravilhas” do reino. “Eu, lia-se na carta, eu sou soberano dos soberanos e eu supero os reis da terra inteira por riquezas, virtude e força... Nosso território se estende da Índia ulterior, onde repousa o corpo de São Tomé, até o deserto da Babilônia, próximo da torre de Babel”. O rei enumera, em seguida, os seres viventes deste país extraordinário, onde se encontram leões brancos e vermelhos, águias, ciclopes e “o pássaro que se chama fênix”, que renasce das cinzas. Esta terra é cortada por um rio que vem do paraíso terrestre, trazendo todos os tipos de pedras preciosas. Uma floresta produz pimenta em abundância. Ao pé de uma montanha, uma fonte cura todas as doenças e devolve a juventude - a Fonte da Juventude. Neste país bem governado “não conhecemos, escreve Prête Jean, nem roubo, nem a adulação, nem a cupidez, nem as divisões”. Na guerra, as tropas são precedidas de treze cruzes de ouro e de pedras preciosas. Cada uma é seguida de 10.000 cavaleiros 100.000 homens. O telhado do palácio real é cravejado de safiras e topázios. Os pavimentos de cristal. As mesas que servem as refeições da corte são, umas de ouro, as outras em ametistas; as colunas que o sustentam são em marfim. Na torre do edifício encontram-se duas maçãs de ouro em cima, cada uma, de um cristal. Assim, o ouro resplandece durante o dia e os cristais brilham durante a noite”.

É fácil reconstruir, a partir deste documento, o que era, no século XII, o imaginário oriental descritos na literatura do Ocidente. Neste outro lugar asiático mal conhecido e mal localizado, eles situavam desordenadamente um nascente reino cristão junto ao paraíso terrestre que poderia derrotar o Islã; a Fonte da Juventude, da pimenta e das pedras preciosas em abundância; e uma fartura de seres insólitos. Na sua carta – um dos grandes erros da história – Prête Jean figura, às vezes, como o Crésus e o santo, cujo país só tinha lugar para a virtude.

Assim, no decorrer da Idade Média, nossos ancestrais acreditaram na sobrevivência do jardim do Éden, tornado de fato inacessível, e por sua vez, na existência de um país feliz acessível aos audaciosos, conservando os restos ambicionados do paraíso perdido.

Atribuía-se a Ceilão características paradisíacas. Antes que as Ilhas Afortunadas se tornassem as Canárias, continuava-se admitir suas vantagens hiperbólicas. Sonhava-se também com a ilha de São Brendan, terra benéfica, em alguma parte do Atlântico, na qual os habitantes não conheciam nem a fome, nem a sede, nem o frio, nem a canícula, nem as doenças, nem o sofrimento. Procurava-se Ofir e Társis mencionados pela Bíblia, de onde vinham as riquezas de Salomão. No retorno da segunda viagem, Cristóvão Colombo anunciou ao Papa que ele achara Ofir “e nós a chamamos de a Espanhola (Haiti)”. Em 1525, o navegador veneziano Sébastian Cabot recebeu a missão de Carlos V de navegar para o Oeste e de “descobrir as Molucas, Társis, Ofir, Cingapura e Cathay e, em troca, carregar seus navios de ouro, prata, pedras preciosas, pérolas, drogas, especiarias, seda, jóias e outras coisas de valor”.

Esta pesquisa de lugares paradisíacos teve, sem dúvida, papel fundamental para incitar as grandes viagens do Renascimento. E os viajantes, pelo menos em um primeiro momento, acreditaram descobrir, nos países insólitos que se manifestavam a seus olhos, as características das terras benéficas, presentes desde a Antiguidade na imaginação dos ocidentais. Américo Vespúcio descreveu as costas do Suriname e do Brasil com termos emprestados de Ovídio – aqueles da idade do ouro – evocando “aterra amena, coberta de árvores em número infinito e muito altas, que não perdem suas folhas, exalando seus odores suaves e aromáticos, e que são carregadas de frutos saborosos,... os campos recobertos de flores maravilhosas e

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perfumadas; a imensa quantidade de pássaros de espécies variadas, nos quais as plumagens, as cores e os cantos desafiam todas as descrições”. E o navegador acrescenta: “Comigo mesmo, eu pensava estar no paraíso terrestre”. Um religioso escreveu, em 1560, ao rei de Portugal: “Se existe um paraíso sobre a terra, eu diria que ele se encontra agora no Brasil. Só pode viver no Brasil aquele que quer viver no paraíso terrestre”. Lá, os europeus descobriram o maracujá, e os abacaxis que, melhor do que a maçã, poderiam ter tentado Eva. Havia papagaios – estes “pássaros do paraíso” que vivem muitos anos e que falam – e abundância de esmeraldas sendo, assim, consideradas como um símbolo da vida eterna.

Como os grandes viajantes da Renascença foram motivados, de certa maneira, pelo desejo de descobrir as terras paradisíacas abundantes de todos os tipos de riquezas, os homens desta época, ao contrário, demorariam a se dar conta das evidências: eles deram a volta ao mundo, mas não tinham encontrado nenhum índice da sobrevivência do jardim do Éden. A convicção se generalizou, doravante, de que o jardim teria desaparecido, pois teria sido inundado pela águas dilúvio. Lutero, em especial, exprimiu esta opinião, bem aceita pelo conjunto dos protestantes. Os católicos, de início mais reticentes, se conformaram progressivamente.

Mas esta mudança não acarretou uma diminuição do interesse pelo paraíso terrestre. Ao contrário, o paraíso ocupou espaço considerável nas preocupações dos melhores espíritos dos séculos XVI e XVII, mobilizando, desta maneira, os tesouros da erudição e inspirando várias grandes obras poéticas, das quais a mais celebre é o Paraíso perdido, de Milton (1667). Muitos eruditos escreveram acerca do tema, constatava em 1649, em padre siciliano autor de uma História do paraíso, que o número de volumes redigidos a respeito da questão era propriamente “infinito”, se bem que “o paraíso possa ser considerado mais um labirinto que um jardim”.

Contudo, por que o renovado interesse por este relato do Gênesis? Simplesmente porque as duas Reformas religiosas do século XVI debateram apaixonadamente o pecado original. A grande controvérsia lançada por Lutero e Calvino tornava essencial a seguinte questão: o pecado original “apodreceu” totalmente a natureza humana? Lutero e Calvino e aqueles que os seguiram responderam “sim”, de maneira que, desde aí, o homem é incapaz, por ele mesmo, da menor boa ação, se Deus não substituir a vontade do homem pela sua.

O Concílio de Trento estava de acordo com os protestantes em afirmar que o primeiro homem, após a transgressão, perdeu “tanto a sua santidade quanto a justiça”, e incorria ainda “na cólera e na indignação de Deus e, então, na morte... e, com a morte, no cativeiro sob a dominação... do diabo”. Porém, contra Lutero e Calvino, o concílio afirmou que o livre arbítrio não tinha sido “apagado” pelo pecado original, mas somente “diminuído e inclinado ao mal”.

Em razão deste debate, que devia provocar no interior do próprio catolicismo exaustivas discussões sobre a “graça”, o pecado original se achava mais que nunca no centro da cultura, e o paraíso terrestre com ele. Foram histórica e teologicamente ligados um ao outro. Quanto mais se embelezava o jardim do Éden, mais se atribuía a Adão e Eva dons e privilégios extraordinários, e mais, por conseqüência, alimentava-se o pecado original, fonte de todas as infelicidades da humanidade e de todas as aberrações da natureza. Desde o pecado original, afirmou Calvino, “a natureza está de luto”. O grande teólogo jesuíta Suarez escrevia: “O conhecimento do paraíso terrestre é importante para a fé e é necessário quando se trata do que foi o status da humanidade antes do pecado”. Mais longe acrescentava, preocupando-se desta vez, com o local do jardim do Éden, “Eu estimo que esta questão não faz parte de coisas indiferentes, mas que é matéria de fé, ou falta pouco”. O sentimento e a mesma lógica são expressas no Treatise do paradise, de um pastor anglicano do século XVI. Somente considerando, explica ele, “todas as excelências do lugar onde nós estávamos antes do pecado” que nós podemos compreender que um “Deus tão bom e tão misericordioso tenha infligido na humanidade uma punição tão longa e tão grande que durará até o fim dos tempos”.

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Os comentários de Gênesis, tanto católicos quanto protestantes, foram muito abundantes, do início do século XVI ao início do século XVII, e eles queriam – dentro do espírito do tempo, naturalmente – ser tão científicos quanto possível, integrando todos os conhecimentos históricos, geológicos e lingüísticos então disponíveis, mas quase sempre sem questionar o postulado fundamental de que o relato atribuído a Moisés devia ser tomado ao pé da letra.

Lutero, evocando no seu Comentário... do Gênesis as condições maravilhosas do paraíso terrestre, assegura notadamente:

O homem devia (então) beber e comer e os alimentos deviam se transformar em seu corpo, mas de uma maneira que não tinha descanso como é no presente. A árvore da vida nos conservava a juventude eterna e nós jamais tínhamos os incômodos da velhice... fora (também) conservado intacto ao homem o poder de propiciar e de realizar todos os seus trabalhos ate a passagem final da vida corporal à vida espiritual...(Então) o amor de um sexo para outro era sem mistura e puro. Fomos gerados em toda integridade, e pode-se dizer que em obediência. As mães pariam sem dor. E não havua barulho e nem sofrimento para educar as crianças...É certo que a atração do homem e da mulher habita na natureza, do mesmo modo que seu fruto, que é a procriação, mas não sem se misturar os excessos assustadores do desejo e os grandes sofrimentos do parto. As esposas, elas mesmas, experimentam um sentimento de vergonha e de confusão quando praticam as relações usuais lícitas, tal é onipresente o mal imenso do pecado original.

Neste texto, Lutero resumiu de maneira contundente a concepção que a cristandade durante muito tempo fez da vida paradisíaca no jardim do Éden e respondia a uma questão que atiçava há muito a curiosidade dos teólogos: como Adão e Eva, se não tivessem pecado, teriam tido filhos? Teriam eles feito amor? E como a humanidade se multiplicaria se a falta original não tivesse intervido?

Muito cedo este questionamento é enriquecido de uma interrogação suplementar: Adão e Eva, antes do pecado, tinham relações carnais? Resposta unânime: eles não tinham. São João Crisóstomo afirmou sobre este assunto: “Antes da desobediência, Adão e Eva levavam uma vida angélica e não se falava dos prazeres de Vênus”. Mas esta resposta não resolve a questão: se o pecado original não fosse cometido, como seria realizada a procriação, sabendo que no estado paradisíaco havia a nudez sem culpa e o parto sem dor?

São João Crisóstomo, São Gregório de Nysse, São João Damasceno e outros como eles estimaram que a humanidade teria, então, se beneficiado de status angélico e que a multiplicação dos homens se realizava não por conjunção sexual, mas por criação divina. Em A cidade de Deus, Santo Agostinho afirmou: “O esposo fecundaria a esposa sem o estímulo de uma sedutora paixão, na serenidade da alma e na integridade perfeita dos corpos... A semente do homem poderia ser comunicada à esposa, no entanto, a virgindade dela seria preservada, tal como pode acontecer no presente fluxo menstrual”. Mas, a maioria dos comentaristas – Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Suarez, etc – são adeptos de uma opinião menos surpreendente e concluem que o prazer sexual existiria no ato amoroso, mas era totalmente controlado. “O deleite”, assegura Suarez, “teria sido moderado e conforme a medida da razão”.

Se nós saltarmos, agora, de 1667, data da publicação de Paraíso perdido, para 1770, o ano em que Buffon editou Épocas da natureza (Epoques de la nature), podemos medir o quanto o olhar dos intelectuais, mais precisamente, em relação ao jardim do Éden e aos primeiros capítulos do Gênesis, é modificado de um século para o outro. Nos cem anos que se seguem à obra-prima de Milton ocorre uma extinção da produção literária e dos trabalhos de exegese se reportando a Adão e Eva e ao paraíso terrestre. O Iluminismo traz, com efeito, uma desconfiança crescente do conteúdo e da credibilidade histórica do início do Gênesis.

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De início, o melhor conhecimento dos fósseis confere à terra uma idade que não concordava coma cronologia bíblica, que situava criação divina em torno de 4.000 anos antes de nossa era. Buffon assegura que a história da terra era muito mais antiga que a humanidade: o que arruinava a aplicação da cronologia bíblica à história da Terra. Em Épocas da natureza (Epoques de la nature), ele conta 74.832 anos desde a formação de nosso planeta até o tempo presente. Este cálculo nos parece hoje bem tímido, pois sabemos que a Terra tem cerca de quatro bilhões e meio de anos. Todavia Buffon, atacado, aliás, pela Faculdade de Teologia de Paris, soltou um tampão que bloqueava até então os estudos científicos do passado geológico; e este tampão era constituído pela leitura literal dos primeiros capítulos do Gênesis, considerado como uma obra “histórica”. A idade da Terra, a qual se começa a medir a longevidade, tendia a colocar no rol dos mitos, a descrição de uma humanidade primitiva com status quase divino, localizado em um jardim maravilhoso.

Ao mesmo tempo em que esta desconfiança, nascia o evolucionismo, em contradição evidente com o esquema criacionista, que por muito tempo se baseou no Gênesis ao pé da letra. Lacépède, em 1800, caracterizava bem o novo espírito científico quando interrogava “a natureza em nome do tempo”. Lamark, aluno de Buffon, constatou, em 1810, uma tendência fundamental da matéria viva para a complexificação e o aperfeiçoamento. Lamark, frisamos, era deísta.” Tudo, escrevia ele, só existe pela vontade sublime do Autor de todas as coisas. Sua força infinita não pôde criar uma ordem de coisas que deu sucessivamente a existência a tudo o que nós vemos?” . A ciência evolucionista nascente rompia com o relato do Gênesis, aceito como verdade histórica. Ela relegou ao mundo lendário a cena tocante na qual Adão tinha dado “os nomes dos animais domésticos, dos pássaros do céu e de todos os animais selvagens”.

Atualmente, nós devemos constatar com Teilhard de Chardin que não existe “o menor vestígio, a menor cicatriz indicando as ruínas de uma idade de ouro de nossa expulsão de um mundo melhor”. Nós sabemos, agora, que a humanidade remonta um longo tempo – cerca de três milhões de anos. É, pois, impossível imaginar que os primeiros seres humanos, ainda balbuciantes, dispondo somente de um embrião de liberdade, tenham podido cometer uma falta de dimensão verdadeiramente cósmica, tal que Deus os teria imediatamente punido – e até mesmo com eles os seus descendentes – pelo sofrimento, a morte e, também, o inferno. Uma tal doutrina é tornada inaceitável em nossa época. Embora tenha sido ensinada, durante os séculos, a teologia da culpabilidade e da punição hereditária que pascal resumiu em uma fórmula desanimadora: “É preciso que nasçamos culpados, ou Deus seria injusto”. Assim, o pecado original e o paraíso terrestre estiveram estreitamente ligados. A dramática teologia da cristandade ocidental só se explica por um aumento hiperbólico das belezas do jardim do Éden e as vantagens extraordinárias concedidas por deus aos primeiros homens. O mito do paraíso terrestre “entendido como uma reportagem histórica” – diz Karl Rahner – foi transformado em dogma, do qual provém uma imagem degradada tanto do homem quanto de Deus.

Hoje, nós não acreditamos mais que o paraíso terrestre tenha existido. Mas, será um mal se, em conseqüência, não mais penalizamos a humanidade balbuciante das origens, e se o desaparecimento do jardim encantado fez apagar a imagem repulsiva que Deus tinha, um Deus em cólera, que teria criado o homem para puni-lo desde o seu nascimento?