biologia - pré-vestibular dom bosco - artigo sobre clonagem humana

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Mesmo que funcionasse, a clonagem jamais a traria de volta Este artigo foi escrito por Thomas Murray, publicado no The Washington Post em 8 de março de 2001. Tradução e versão para o Português por Marcia Lachtermacher-Triunfol. Reproduzido com permissão do autor. Onze dias atrás, quando eu esperava minha vez para testemunhar em uma audiência no Congresso sobre clonagem humana, um dos 5 cientistas da lista de testemunhas pegou o microfone. Brigitte Boisselier, uma química que trabalha com casais que desejam utilizar as técnicas de clonagem na criação de bebês, leu em alto tom uma carta de um “pai”. O autor da carta, que inesperadamente se tornou pai aos quase quarenta anos de idade, descreve seu desespero por ter perdido seu filho de 11 meses após uma cirurgia. Na sala o silêncio era total, enquanto Brigitte Boisselier repetia as palavras do autor da carta: “Eu decidi que jamais desistiria de meu filho e não irei parar enquanto não for capaz de proporcionar mais uma chance ao seu DNA”. Eu escutei a recusa do autor em aceitar a morte de seu filho e seu desejo em proporcioná-lo uma outra oportunidade através da clonagem, e fiquei abismado com o perigo e futilidade de tal pensamento. Eu fui requisitado como testemunha porque tenho escrito artigos e lecionado bioética para medicina e ciências por mais de 20 anos, mas devo dizer que também sou um pai sofrido que está de luto. O assassinato, há 4 meses, de minha filha de 20 anos, tem reforçado de modo agonizante o que eu já sabia há anos enquanto bioeticista: a clonagem não é capaz de mudar a fatalidade da morte e de diminuir a dor e o sofrimento. Uma filha não pode ser duplicada O nascimento do primeiro clone de um mamífero (a ovelha Dolly) ocorreu há apenas 4 anos, e a possibilidade de clonagem humana já existe. Se antes a clonagem era motivo de ficção, hoje ela é objeto de pesquisa científica. A comissão presidencial da qual faço parte começou a deliberar sobre a ética na clonagem humana. Os cientistas negaram qualquer interesse na clonagem humana e o Congresso acabou por realizar várias audiências sobre o assunto, mas não aprovou nenhuma lei. Houve então uma moratória sobre o assunto, exceção somente para declarações ocasionais de “futuros clones”, tais como o médico Richard Seed e um grupo liderado por um homem chamado Rael que afirma que somos todos clones descendentes de alienígenas. Recentemente Boisselier, cientista chefe de Rael, e Panos Zavos, um especialista em fertilidade de Ketuncky, atraíram a atenção, da noite para o dia, quando proclamaram que iriam de fato criar um clone humano no futuro próximo. A revelação de que cientistas renegados poderão tentar clonar seres humanos reacendeu a preocupação dos legisladores. Os defensores da clonagem têm tido dificuldades para encontrar argumentos éticos persuasivos. O argumento baseado em narcisismo, de modo que uma pessoa possa criar vários “mini-eus” não tem obtido muito apoio. Outros recorrem para o argumento de que um adulto deve ter o direito de utilizar todas as vias possíveis para ter a criança que desejam. No entanto, esse surto de liberdade não se aplica para outras questões, tais como o bem-estar da criança. Deste modo, a estratégia mais O DNA vai à Escola www.odnavaiaescola.org 5

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Mesmo que funcionasse, a clonagem jamais a traria devoltaEste artigo foi escrito por Thomas Murray, publicado no The Washington Post em 8 de marçode 2001. Tradução e versão para o Português por Marcia Lachtermacher-Triunfol. Reproduzidocom permissão do autor.

Onze dias atrás, quando eu esperava minha vez para testemunhar em umaaudiência no Congresso sobre clonagem humana, um dos 5 cientistas da lista detestemunhas pegou o microfone. Brigitte Boisselier, umaquímica que trabalha com casais que desejam utilizaras técnicas de clonagem na criação de bebês, leu emalto tom uma carta de um “pai”. O autor da carta, queinesperadamente se tornou pai aos quase quarentaanos de idade, descreve seu desespero por terperdido seu filho de 11 meses após uma cirurgia. Nasala o silêncio era total, enquanto Brigitte Boisselierrepetia as palavras do autor da carta: “Eu decidi quejamais desistiria de meu filho e não irei parar enquantonão for capaz de proporcionar mais uma chance aoseu DNA”.

Eu escutei a recusa do autor em aceitar a mortede seu filho e seu desejo em proporcioná-lo uma outraoportunidade através da clonagem, e fiquei abismado como perigo e futilidade de tal pensamento. Eu fui requisitado como testemunha porquetenho escrito artigos e lecionado bioética para medicina e ciências por mais de 20anos, mas devo dizer que também sou um pai sofrido que está de luto. O assassinato,há 4 meses, de minha filha de 20 anos, tem reforçado de modo agonizante o que eujá sabia há anos enquanto bioeticista: a clonagem não é capaz de mudar a fatalidadeda morte e de diminuir a dor e o sofrimento.

Uma filha não pode ser duplicadaO nascimento do primeiro clone de um mamífero (a ovelha Dolly) ocorreu há

apenas 4 anos, e a possibilidade de clonagem humana já existe. Se antes a clonagemera motivo de ficção, hoje ela é objeto de pesquisa científica. A comissão presidencialda qual faço parte começou a deliberar sobre a ética na clonagem humana. Oscientistas negaram qualquer interesse na clonagem humana e o Congresso acaboupor realizar várias audiências sobre o assunto, mas não aprovou nenhuma lei. Houveentão uma moratória sobre o assunto, exceção somente para declarações ocasionaisde “futuros clones”, tais como o médico Richard Seed e um grupo liderado por umhomem chamado Rael que afirma que somos todos clones descendentes dealienígenas.

Recentemente Boisselier, cientista chefe de Rael, e Panos Zavos, um especialistaem fertilidade de Ketuncky, atraíram a atenção, da noite para o dia, quandoproclamaram que iriam de fato criar um clone humano no futuro próximo. A revelaçãode que cientistas renegados poderão tentar clonar seres humanos reacendeu apreocupação dos legisladores.

Os defensores da clonagem têm tido dificuldades para encontrar argumentoséticos persuasivos. O argumento baseado em narcisismo, de modo que uma pessoapossa criar vários “mini-eus” não tem obtido muito apoio. Outros recorrem para oargumento de que um adulto deve ter o direito de utilizar todas as vias possíveis parater a criança que desejam. No entanto, esse surto de liberdade não se aplica paraoutras questões, tais como o bem-estar da criança. Deste modo, a estratégia mais

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eficiente tem sido a de se mostrar complacente. E quem poderia ser mais complacentedo que alguém que perdeu uma filha?

Infelizmente, eu me encontro na posição para corrigir estes mal-entendidos. Eunão estou sugerindo que minha situação é a mesma daquela do autor da carta. Nemmelhor, nem pior. Simplesmente diferente. O filho do autor viveu com ele por menos de1 ano e a nossa filha viveu perto de nós por 20 anos; o filho dele morreu de uma doençaem um hospital, porém Emily, minha filha com Cynthia, irmã de Kate, Matt, Nicky e Pete,desapareceu no campus da universidade no início de novembro. Seu corpo foiencontrado 5 semanas mais tarde. Ela foi violentada e assassinada com um tiro.

Conforme vou escrevendo estas linhas, ainda tento acreditar que se trata deoutra pessoa, uma história no noticiário das 11 da noite. Eu e Cynthia toda hora nosperguntamos se isso de fato é a nossa vida. E é. E Emily,sua adorável presença física e exuberância não fazemmais parte desta vida. A morte transforma as coisas e,como eu já suspeitava, a morte de um filho causa maistristeza do que qualquer outra. Assim me falaram, assimminha experiência diz.

Eu quero então falar para o autor da carta, de paipara pai, de pai sofrido para pai sofrido, e também paratodos que acreditam, sem fundamento, que a clonagempode de algum modo ser capaz de reparar aarbitrariedade de uma doença, a infelicidade ou a morte.Eu não tenho nada a ganhar com isso, eu não quero seudinheiro e eu com certeza também não quero ser cruel.Mas há duras verdades aqui que algumas pessoas, porignorância ou interesse próprio, não estão revelando.

A primeira verdade é que a clonagem não produz indivíduos normais e sadios. Osdois especialistas em clonagem animal que compartilharam a audiência com Boisselierrelataram os resultados obtidos até então com vacas, camundongos e outros mamíferos.Estes animais têm apresentado várias anormalidades e altas taxas de morte e muitas dasfêmeas que carregavam fetos-clones morreram ou ficaram doentes. Rudolf Jaenisch,especialista em clonagem em camundongos do MIT (Massachuset’s Institute ofTechnology), falou ao subcomitê que ele não acreditava que existisse nenhum clonesaudável, nem mesmo Dolly, a ovelha pioneira, que é muito obesa.

Os cientistas não sabem dizer por que a clonagem falha tanto. Uma explicaçãoplausível inicial está no fato de que, quando as células de um embrião se dividem,iniciando o processo que resulta na formação dos vários tecidos que constituem nossocorpo, a maioria dos genes é desligada, estando ativos apenas aqueles necessáriospara que a célula em questão possa realizar suas funções. Uma célula das ilhotaspancreáticas, por exemplo, precisa de todos os genes que reconhecem quando umapessoa necessita de insulina, ativos.

Todos os outros genes dos indivíduos também podem ser encontrados nesta célula,no entanto, a maioria está quimicamente bloqueada, como um carro parado ilegalmenteque teve seus pneus imobilizados *. Para produzir um clone sadio, os cientistas necessitamdestravar todos os genes presentes na célula que será utilizada na clonagem. Não bastaapenas ter os genes necessários às ilhotas do pâncreas; todos os genes serão necessáriosem algum momento, em alguma célula do novo organismo. A menos que os cientistasdescubram como destravar todos os genes e restaurá-los a seu estado original, nóscontinuaremos a ver clones mortos ou deformados.

Você não precisa ser um bioeticista profissional para perceber que tentar criaruma criança através da clonagem com os recursos tecnológicos do momento seria

Eu quero então falarpara o autor da carta, depai para pai, de paisofrido para pai sofrido,e também para todosque acreditam, semfundamento, que aclonagem pode dealgum modo ser capazde reparar aarbitrariedade de umadoença, a infelicidade oua morte.

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uma violação grosseira dos padrões internacionais de proteção aos seres humanos e umexemplo de experimentação humana imoral. Alguns cientistas argumentam que podemevitar estes problemas. Zavos, que falou na audiência, prometeu que só selecionaria eimplantaria os fetos saudáveis. Mas Zavos não forneceu sequer uma razão plausível queele poderia distinguir os clones saudáveis dos não saudáveis.

Agora, a segunda verdade: mesmo que a clonagem pudesse produzir umembrião saudável, não resultaria na mesma pessoa da qual o material genético foiadquirido. Cada um de nós é fruto do complexo amálgama que envolve sorte, experiênciae hereditariedade. O útero onde o feto se desenvolve, o que a mãe come ou bebe, oestresse pelo qual passa, sua idade, todos estes fatoresmoldam o feto em desenvolvimento. Mesmo os genesconduzem uma intrincada coreografia de liga e desligae instruem outros genes a fazerem o mesmo em respostaaos estímulos internos, assim como aos do mundo no ladode fora. Como nos transformamos em quem somospermanece ainda um mistério.

A única coisa que podemos ter certeza é de que somos muito mais do que umpunhado de genes. Assim como falei em meu testemunho, talvez a melhor maneira dedesestimular a clonagem humana seria através da clonagem de Michael Jordan. MichaelII pode vir a ter nenhum interesse em jogar basketball, tornando-se, por outro lado, umcontador. O que faz Michael I genial não são apenas seus dotes físicos, mas sim suacompetitividade, determinação e desejo de vencer.

Outra verdade: criar uma criança para tomar o lugar de outra criança morta éinjusto. Nenhuma criança deve ser obrigada a aceitar a opressão de que a mesma iráviver a encarnação de um padrão genético idealizado à qual a vida lhe foi negada. Ospais podem fazer graça em relação aos planos e o futuro de suas crianças, no entanto euacredito que as crianças não acham esses planos tão interessantes. É claro que temosexpectativas para nossos filhos, esperamos que eles sejam honestos, justos, corretos etc. Mas nósnão podemos ditar o temperamento, talento ou interesses. Clonar uma criança para reencarnaroutra, nada mais é do que uma distorção grotesca das expectativas paternas.

O que me traz à dura verdade final: não há como se evitar o sofrimento. Cynthia e eutemos fantasiado e feito o tempo voltar para trás de modo que possamos desfazer o assassinatode Emily. Nós daríamos nossos órgãos, ou mesmo nossas vidas para trazê-la de volta e proporcionar-lhe a oportunidade de realizar seu sonho de se tornar uma sacerdotisa episcopal e uma velhaaposentada resmungona, sentada em sua varanda em Cap Cod, rodeada por seus netos epoodles.

Mas tentar recriar Emily a partir de seu DNA seria como buscar uma ilusão. Ondas massivasde tristeza nos põem para baixo, nos tiram o fôlego e as forças e,ainda, nós temos que aprender a viver assim. Quando retomarmosnossas forças, fazemos de tudo que podemos e o que precisa serfeito. Na maior parte das vezes nós tentamos segurar um ao outro.

Então eu me vejo querendo dizer ao autor da carta e aoscientistas que oferecem falsas esperanças ao referido autor e atantas outras famílias: não há tecnologia capaz de consertar oureverter o sofrimento. A clonagem de seu querido filho morto não

irá tapar o buraco que esta falta lhe faz em sua vida. Sua carta me encheu de tristeza, porvocê e por sua esposa, não somente pela perda de seu filho, mas também pelo apeloinútil de tentar substituir sua dor por uma réplica do filho que você perdeu. Mesmo quevocê pudesse criar uma duplicata biológica saudável, seu apelo seria inútil.

Emily viveu até quase completar 21 anos. Durante estes anos nossas vidas setornaram tão entrelaçadas que eu tento achar as palavras para descrever como Cynthiae eu nos sentimos agora. Nós fomos afortunados por tê-la conosco por tempo suficiente,

Cada um de nós é fruto docomplexo amálgama queenvolve sorte, experiência ehereditariedade.

A clonagem de seuquerido filho mortonão irá tapar oburaco que estafalta lhe faz em suavida.

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de modo que pudemos vê-la se transformar num indivíduo próprio, pudemos amá-la comtodo nosso coração e sem qualquer dúvida saber que ela também nos amou. A sua perdanos transformou para sempre. A vida segue em uma direção, a ciência não pode revertera corrente ou reencarnar a morte.

A Emily que nós conhecemos e amamos gostaria que nós continuássemos a fazeraquilo que é importante para nossas vidas: amarmos um ao outro, trabalhar sério e buscaro sentido das coisas. E não esquecê-la, jamais. Nós somos incapazes. Por que iríamos fazertal coisa? Ela foi uma presença luminosa em nossa família, uma amiga extraordinária, umapromissora filósofa. E nós a honramos quando mantemos sua memória viva, e nãoquando pensamos em fabricar uma cópia genética. E este pensamento me direcionaao autor da carta mais uma vez: tenho de acreditar que seu filho, se pudesse lhe falar,desejaria que você fizesse o mesmo.

* Nota do tradutor: Um dos fenômenos responsáveis por esta inativação dos genes chama-se metilação. Peloprocesso de metilação, os diferentes genes de uma célula são inativados através da adição de radicais demetila à dupla fita de DNA. Uma vez presentes, estes radicais metila impedem que as enzimas responsáveispela transcrição do DNA tenham acesso à fita de DNA e, deste modo, estes genes específicos não sãotranscritos, não havendo conseqüentemente a produção do RNA correspondente assim como da proteína.Enzimas específicas chamadas de metilase são responsáveis pela adição dos radicais metila.

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