benevides, maria victoria.miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in violência,...

7
7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 1/7 I , I 11 I I I I ri I, Ir II li t i 1 J f * fi ti 5 ,I Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos? 'J "Também nos meios ricos a violência é um a constante atual. Mas ela deriva de outras causas, trata-se da vio- lência determinada pela impunidade. No caso brasileiro, a população carcerária é totalmente constituída de pobres, como se no país ninguém acima da pequena classe média cometesse crime algum. No caso da criminalidade nos midos ricos são as facilidades da vida que o alimentam: o desa preço pelos valores constituídos, o tóxico largamente difun dido e também esta reação muito brasileira do 'sabe com quem estáfalando' .. (Entrevista, ao JB, do ministro da Justiça, lbrahim Abi Ackel, dezembro de 1979.) "Nestas novecentas favelas de São Paulo, existem mais de J um milhão de pessoas. Se fossem todos bandidos, margi nais, como costumam dizer po r aí, teríamos tomado o poder muito tempo .... (Manoel Francisco Espínola, "prefeito" da favela de Vila Prudente, FSP, 3.2.1983.) A distância entre as duas declarações acima supera qualquer esforço de imaginação: a denúncia do ministro da Justiça e a constatação, de um a lógica política irretorquível, de um cidadão favelado, que tem a seu favor não apenas a experiência viva como o fato de ter sido sempre eleito, po r voto direto, "prefeito" de su a comunidade desde 1957. Mais de três anos separam as duas declarações. A denúncia

Upload: diogo-mattiello

Post on 14-Apr-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense,

7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf

http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 1/7

I, I11IIIIriI,Ir

IIli•t

i

1Jf*

fiti5

,I

Miséria gera violência

ou os pobressão sempre suspeitos?

'J"Também nos meios ricos a violência é um a constante

atual. Mas aí ela deriva de outras causas, trata-se da vio-

lência determinada pela impunidade. No caso brasileiro, a

população carcerária é totalmente constituída de pobres,

como se no país ninguém acima da pequena classe média

cometesse crime algum. No caso da criminalidade nos midos

ricos são as facilidades da vida que o alimentam: o desa

preço pelos valores constituídos, o tóxico largamente difun

dido e também esta reação muito brasileira do 'sabe comquem estáfalando' ..

(Entrevista, ao JB, do ministro da Justiça, lbrahim Abi

Ackel, dezembro de 1979.)

"Nestas novecentas favelas de São Paulo, existem mais de Jum milhão de pessoas. Se fossem todos bandidos, margi

nais, como costumam dizer po r aí, já teríamos tomado opoder há muito tempo ....

(Manoel Francisco Espínola, "prefeito" da favela de Vila

Prudente, FSP, 3.2.1983.)

A distância entre as duas declarações acima supera

qualquer esforço de imaginação: a denúncia do ministro da

Justiça e a constatação, de um a lógica política irretorquível,

de um cidadão favelado, que tem a seu favor não apenas aexperiência viva como o fato de ter sido sempre eleito, po r

voto direto, "prefeito" de sua comunidade desde 1957.Mais de três anos separam as duas declarações. A denúncia

Page 2: BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense,

7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf

http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 2/7

44 MARIA VICTORIA BENEVIDES

do ministro não foi seguida, apesar de su a óbvia autori

dade, de qualquer medida concreta para enfrentar os males

denunciados: o problema dos presídios continua insolúvel eo da impunidade dos "ricos" e dos poderosos permanece

integrada à cultura nacional.

Independentemente dessas considerações, o fato é que

a imprensa deu muito destaque ao debate sobre as causas

da violência e a tese mais difundida - no pensamento

oficial, mas também n ~ d i v e r s ; ' s vertentes do pensamento

crítico - ~ E < : l ~ ~ i c ! ~ ! ! . l l i . i ç ª L Y J Q J ê n . c i a e. miséria. Em geral,os seguintes fatores da estrutura sócio-econômica são considerados "geradores" ou "incentivadores" da c r i m i n a l i ~dade: os desequilíbrios regionais, que forçam a migração

desordenada para os centros urbanos (problema da desin

tegração cultural e do menor abandonado); a má distri

buição de renda, responsável tanto pela pobreza absoluta

quanto pela "proletarização" das classes médias; o au

mento nas taxas de desemprego e subemprego; a ausência

ou precariedade de serviços públicos, escola, saúde, edu

cação, etc.

Oprimeiro grupo de opiniões configura, para quase

todos os casos, um discurso tradicional, "fechado", e basi

camente lógico em relação às premissas assumidas como

válidas. Ou seja, como a premissa estabelece que os agentes

da criminalidade violenta são, em sua maioria, oriundos das

classes mais desfavorecidas da sociedade, logo as causas

principais encontram-se nas distorções da estrutura sócioeconômica. Miséria gera revolta, que produz criminali

dade. Criminalidade sem "recursos" - materiais e intelec

tuais - será necessariamente violenta. E fecha-se o círculo

de destinos, de "fatalidades trágicas". A opinião do repór

ter policial Bartolomeu Brito é, nesse sentido, exemplar:

"Chega um cidadão do Ceará para uma favela brava. Da

qu i a pouco ele traz a mulher e depois vêm os filhos, e todos

vão ser criados naquele submundo. Se ele te m cinco filhos,um vai ser bandido. Pelo menos um!" (JT, 4.2.81).

No pensamento oficial a identificação de causas na

estrutura sócio-econômica é, muitas vezes, rotulada generi

camente como "fome" e "miséria". O discurso mais ela-

V I O L ~ N C I A . povo E POLICIA 4S

borado chega a apontar a necessidade de reformas estrutu

rais, como o ministro Abi-Ackel, da Justiça. Este reconhece

que "o aumento da violência e o surto da criminalidade que

estamos vivendo tem raízes profundas e remotas, como osp r o b l e ~ a s de estrutura fundiária, a ausência de oportuni

dade de ascensão social e econômica de numerosos contin

gentes da população, a lentidão da Justiça e de todo umvasto elenco que exigiria, para sua eliminação, reformas

estruturais em nossa sociedade" (JB, 14.2.80).

No entanto, ao contrário do que caracteriza essencial

mente a posição alternativa, o discurso oficial nã o respon

sabiliza o modelo econômico/ atual ou o próprio sistema

capitalista. Nesse sentido o discurso tradicional mais coe- rrente corresponde, grosso modo, à justificação "realista"

das desigualdades ("sempre haverá ricos e pobres") e dos jdesequilíbrios, mesmo que vistos como injustos, pois seriam·

inerentes a um a determinada fase da evolução capitalista ido país. Trata-se, em outros termos, de compreender a tinevitabilidade de ritmos diferentes do desenvolvimento, do!

progresso, temas constantes na retórica oficial. "O que nós

vivemos é o progresso, e sempre do lado do crescimento está',a anormalidade, mas que, em nosso país, não chega a:

assustar ainda", afirma o general Túlio Chagas Nogueira, \comandant.@. da 2!l Região Militar, São Paulo (ESP, 8.4.81).

Este extremo cuidado em preservar o modelo econô

mico vigente da responsabilidade pelas desigualdades sociais explica, em certos casos, uma posição tão alienada da

realidade a ponto de buscar na Bíblia as causas da violên

cia urbana. O senador Murilo Badaró (PDS-MG), relator

da CPI sobre violência urbana (iniciada em 1980) recusa

toda e qualquer crítica ao modelo econômico atual, conde

nando o que chama de "reducionismo ideológico míope"

para lembrar que "não se pode apontar, unilateral e exclu

sivamente, essa ou aquela causa"; e, embora defenda "con

dições dignas de vida para todos", afirma: "Não há comonão recorrer às luzes da revelação bíblica, que situa na

rebeldia ao Deus Criador, por parte do casal-cabeça da

espécie humana, a origem primeira desses tremendos desequilíbrios" (JT, 3.12.82).

Page 3: BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense,

7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf

http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 3/7

46 MARIA VICTORIA BENEVIDES

"A identificação imediata entre violência e miséria im

plica, necessariamente, a associação entre criminalidade eclasses baixas, segundo a qual o pobre e marginalizado

tende, inexoravelmente, para o crime. "O que se pode

esperar de um favelado", indaga o delegado Madureira

Pará, de Garulhos (SP), "de uma criança subnutrida, que

não tem acesso à escola e outros meios de formação? Umtrabalhador que percebe no final do mês um salário mínimo?" (ESP, 15.3.81). Esta visão determinista, obviamente criticada pelo discurso alternativo, também é refutada por representantes do pensamento oficial, que enfati

zam; no vasto rol dos fatores sócio-econômicos, a migração

caótica para os centros urbanos. O ministro do Interior

Mário Andreazza aponta o mal causado pela migração

desordenada, mas refuta a insinuação de qu e o migrante

seria um criminoso em potencial: "Trata-se de um a tremenda injustiça para com os migrantes, cujos contingentes

são constituídos, em sua maioria, po r pessoas simples ehonestas, vítimas de um processo econômico social". Ma s

reconhece qu e a cidade grande desarticula os laços pri

mários que caracterizam as comunidades menores, fazendocom que "o migrante se defronte com um ambiente frio,despersonalizado, desumanizado" (ESP, 16.1.81). O ministro Abi-Ackel também afirma ser "u m insulto à pobreza

reduzir o crime a essa causa simplista: a de que o pobre écriminoso po r destino. A razão desta falsa conclusão está

no fato de que as prisões só têm pobres. Acontece que

o braço da Justiça dificilmente alcança o rico" (JB, 19.1.81).

A declaração do ministro, aparentemente "progres

sista", permanece profundamente ambígua, como o de

nuncia o escritor Franklin de Oliveira: "O ministro considera insulto aos pobres dizer-se qu e a impossibilidade de

viver fabrica o crime. Mas não considera insultuoso à Jus

tiça dizer ele próprio qu e ela "dificilmente alcança os ricos". Dificilmente, po r quê? Po r qu e é sensível ao poder

econômico, portanto, corrupta? Po r que, sendo Justiça de

um a sociedade constituída por classes, é conseqüentemente

Justiça de classes? Não há outras conclusões a tirar da s

V I O L ~ N C I A . povo E POLICIA 47

assertivas do ministro, que as reforçou co m a sentença de

que as nossas "prisões só têm pobres" (FSP, 30.1.81).Paulo Sérgio Pinheiro também salienta, em várias oca

siões, a discriminação da Justiça, apontando a existência de

um a "justiça VIP", exclusiva dos cidadãos que têm "direito

a um tratamento excepcional. Os delegados e autoridades

policiais asseguram aos acusados VIP imediata comunicação com seus advogados. E com seus amigos, para esses

usarem livremente seus esquemas de influência. Não im

porta o crime cometido. A prisão preventiva é geralmente

evitada (as clínicas para esgotamento nervoso são um a op

çã o mais chique). Os homicídjos são tratados com generosa

bonomia. Como cristalinamente demonstrou a sentença

que absolveu o sr. Iberê Camargo, condenável seria o mor

to. As vítimas, para a justiça VIP, são sempre culpadas"

(FSP, 4.2.81).

Este aspecto crucial do papel da Justiça é apresentado

adiante. A inserção no discurso oficial de crítica ao papel

da Justiça e da Segurança é um dado novo, que marcou

todo um período de intensos debates divulgados pela im

prensa (principalmente em 1981) sobre mudanças na legislação penal e medidas de combate e prevenção à crimina

lidade.

O discurso não-oficial aponta as condições subumanas

de sobrevivência como fatores (e não causas) da criminali

dade violenta, identificando-as na perversidade do modelo

econômico e do chamado "capitalismo selvagem". As desigualdades sociais decorrem do regime de dominação e exploração. Os mais radicais chegam a adotar a linguagem da

luta de classes e identificam um a nova modalidade de

"guerrilha urbana" e de "lumpesinato" na s origens da cri

minalidade violenta. Um a frase do criminalista José Fer

nando Rocha resume a orientação mais geral: "É a violên-cia econômica que gera diversas outras formas de violên-

cia" (ESP, 10.2.80).Nesse sentido, segundo vários depoimentos, o menor

abandonado (o "trombadinha de hoje é o bandido de ama

nhã") é o principal problema a se r enfrentado pelos que

investigam as causas da criminalidade. Um delegado ca-

Page 4: BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense,

7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf

http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 4/7

48 MARIA VICTORIA BENEVIDES

rioca é explícito: "Uma criança de favelas desde cedo vai-setornando íntima da fome, aprende a resistir à violênciafísica, torna-se cínica diante de si e dos outros. Aprende

que só existe um a lei: a do mais forte. Ser bandido hoje éum a opção sodal. Não pode ser mais nada, a sociedade,

o sistema nã o deixa, então vai se r bandido" (ESP, 1.1.81).

A relação entre migração caótica e violência também édesenvolvida pelo antropólogo Gilberto Velho - qualifi

cando-se a dissolução dos vínculos sociais e dos valores

comunitários e a deficiência nas estruturas de apoio - ecostuma ser apontada em resposta à tese genérica de que

"miséria gera violência". Um a comunidade pobre não pro

duz necessariamente criminosos e marginais. É sua desintegração, a destruição das famílias, é a falta de perspectivas

de vida ordenada através do trabalho, "a falta de esperança

de muita gente" (como diz Dom Paulo Evaristo, cardeal de

São Paulo) que propicia condições de marginalidade e, daí,

eventualmente, de criminalidade.

Em linhas mais ou menos próximas, esta conCepçãO)predomina em várias declarações de representantes da

Igreja Católica (CNBB, Comissão de Justiça e Paz), da IOrdem dos Advogados do Brasil (OAB), assim como de Iarticulistas e cientistas sociais ostensivamente identificados \com a crítica ao modelo econômico vigente. Importa assi- ;nalar, sobretudo, que esta posição, embora enfatize a pre-!

dominância dos fatores essencialmente econômicos, não Inegligencia a dependência estrutural ao sistema político, idenunciando os aspectos da repressão e do arbítrio que'

agravam o conjunto de fatores econômicos apontados. Ou (seja, o discurso alternativo aponta o equívoco na premissa, "lembrando que a criminalidade nã o é reservada às classes'

baixas, be m como a insuficiência do argumento econômico, i

quando apresentado isoladamente. A explicação para aviolência criminosa requer um conjunto de fatores entre os

quais a miséria não será, necessariamente, determinante.

Segundo Francisco Weffort, "falar de violência como

resultado da miséria nos remete para o plano de conside

rações sobre o modele e para as condições de formação da

sociedade brasileira. Isto tem suas vantagens, especial-

V I O L ~ N C I A , povo E POLICIA 49

mente no plano político, mas não nos prepara, pelo menos ra curto prazo, para enfrentar o problema. Considera-se

pelo menos como duvidoso que a miséria, em si mesma,

apartada de outros fatores, tenha uma correlação tão alta

com a violência como se imagina. A grande maioria das

populações periféricasé

constituída de trabalhadorese

só :

um a pequena parcela se deixa atrair por condutas crimi-I

nosas" (JB, 25.4.80).Um dos jornalistas entrevistados confirma o precon-'

ceito e esclarece um dado novo: "Hoje o lugar onde o pobre

mais fica é na favela, e a porântagem de favelados delin

qüentes é ínfima, embora n6s tenhamos em Sã o Paulo

900 favelas. Agora um a outra coisa: o bandido, que é mais

inteligente do que a maioria das pessoas imagina, adquiriu

um a certa sabedoria, ele percebeu como nós somos, per

cebeu como a sociedade é preconceituosa, quem é o sus-

peito clássico. Então o que ele faz? Se ele entra numa casa

ele também rouba roupas. Então ele já vai roubar mais ou

menos bem vestido, com um a maleta 007, que ele fica

'acima de qualquer suspeita'. Tudo bem, passa a Tático

Móvel, ROTA, GARRA, tudo; tudo bem. Eles vão todos

encima dos 'loque', como eles falam. O ' loque', na linguagem deles, é o trouxa, é o burro que fica 'dando sopa'

na esquina, está olhando aquele movimento, esse 'dança' ".1 .

A ênfase nesta relação entre miséria, criminalidade eviolência responde portanto a preconceitos arraigados sobre

as "classes perigosas", assim como cristaliza a maior im

portância conferida aos crimes contra o patrimônio. É claro

que se trata dos assaltos, roubos, "trombadas" e furtos -pois os "grandes" crimes contra o patrimônio (peculato,

estelionato, ou mesmo os crimes contra a economia popu

lar) são considerados em outra faixa, a da "não-violência".

O colarinho-branco não se iguala ao marginal de favela. Ojornalista Percival de Souza é enfático: "Hoje toda a socie-

........--,'_-. .......

_-.,....--._

(1) As entrevistas foram realizadas no CEDEC, em 1981, po r Fran-

cisco Weffort, Maria Victoria Benevides e Rosa Maria F. Ferreira. A identi-

dade dos entrevistados é omitida por solicitação deles. As respostas são

apresentadas agrupadas por tema, mas as entrevistas foram feitas separa-

damente.

• t

Page 5: BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense,

7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf

http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 5/7

50 MARIA VICTORIA BENEVIDES

dade é del.!_º,-güente, toda eJª: c l ª s ~ ~ A , c ! é l s s ~ B , . s l ª s s ~ _ Ç . - :Agora, com um a diferença, _ ó _ classe pobre é punida.

A c í ~ s s ~ A- c ~ m e t e c r i m e s de tõ-dos os ' tipos: ela frai.J:"da opatrimônio, ela comete o crime do peculato que muita

gente se esquece que também é crime contra o patrimônio,

ela mata, ela trafica, ela pratica estelionato, tudo o que

você pensar, mas não acontece nada. Agora, já o pobrenão. Então você vê que embora o Lombroso 2 tenha morrido

em 1909, na verdade a suposta teoria dele vigora em toda asua forma" .

A ambigüidade dessa associação criminalidade/po

breza tem sido discutida por vários autores e permanece um

tema altamente polêmico. Ma s é necessário salientar um

dos aspectos cruciais da questão - e cujas conseqüências

são dramáticas para a população sócio-economicamente

marginalizada: um a vez que os pobres são, automatica

mente, "o s principais suspeitos", justificam-se os procedi

mentos violentos e arbitrários da polícia. A estigmatização

do pobre corno "marginal" - no sentido pejorativo da

palavra, comum à polícia e à imprensa - é incorporada

po r vastos setores da população, que chegam a apoiarostensivamente a ação brutal das "batidas" nas favelas, nos

bairros miseráveis, bem como os "rondões" urbanos e, evidentemente, as prisões ilegais "para averiguações".

Na época da intensificação de "batidas" no interior

dos ônibus no Rio de Janeiro - quando os PM revistavam

invariavelmente os negros e os jovens mal-vestidos - aclasse média reclamava: "Mas por que não vão proc'!!ªt: QS

bandidos no s morros, nas f a v e i a s ? I T T j B ~ 2 j : T . 8 i ) ~ - - - -. -- N ~ m a batida- dOa Cidade de Deus (Rio), a polícia pren

deu como suspeitas 140 pessoas que não conseguiram pro

var que trabalham. Não encontrou bandidos e todos foram

liberados. Ma s o delegado da 32!l, José dos Santos Guedes,

ficou satisfeito: "Pelo menos a gente fotografa e ficha

(2) Cesare Lombroso (1835-1909), professor de Medicina Legal eAntropologia Cultural na Universidade de Turim. Autor de "O Homem Delinqüente". divulgou uma teoria "científica" relacionando características

genéricas com predisposição para a criminalidade.

V I O L ~ N C I A . POVO E POLICIA 51

'eles'" (Jornal da República, 1.12.79). É claro que "eles"

ficam marcados definitivamente, e na próxima batida jáserão considerados "com antecedentes". E enquanto nã o

descobre, a polícia fabrica suspeitos; impunemente fornece

aos jornais os nomes de acusados: porteiros de prédios,

bombeiros hidráulicos, pedreiros, empregadas domésticas.

No dia seguinte a polícia se desdiz, admite estar errada.!Quando suas vítimas, em geral humildes trabalhadores'li

estão estigmatizadas (idem, 26.11. 79).O depoimento de um delegado da Grande São Paulo

revela não apenas o preconceito contra os "pobres" mas,

sobretudo, a terrível ameaça ~ o n t r a o desempregado. Este

passa a ser sinônimo de "vadio" e vadio é bandido em

potencial. Outro dado revelado pelo delegado é a extrema

precariedade do critério para distinguir bandido do traba

lhador: "o aspecto do cidadão", as mãos calosas ..

Pergunta: Delegado, como é possível numa batida de

rua, a polícia saber "quem é quem" e nã o pegar gente

inocente?

Delegado 1: A primeira coisa que se faz é pedir osdocumentos; via de regra quem trabalha anda com os docu

mentos. A segunda coisa é o aspecto do cidadão: o cidadão

está todo cheio de graxa, com a mão desta grossura, vocêpassa até no rosto, é trabalhador! Mas quando pega ovagabundo, ele está ocioso, mãozinha fina, né? Ê um a das

características. Então, aquele que a gente te m dúvida, agente traz para a delegacia, para fazer um a análise mais

demorada, tira as impressões digitais, vai descobrir o nome

certo e tal. Se a polícia _ osse cumprir estritamente a lei nã opodia fazer Isto... -- -- -- ---.",- J ~ r n a l i s t a 3: O que é negativo, do me u ponto de vista,

é a operação pente-fino, por exemplo, porque prendem

operário, prendem trabalhador, o sujeito que está sem do

cumento, não é crime estar sem documento. O "Rondão"sabe quem é quem, porque é tudo tira manjado, tudo cobra

criado e sabe quem é o traficante, o batedor de carteiras,

então cobre sempre o cara certo. Hoje não existe mais, m as

antigamente tinha a delegacia de vadiagem, os negos co-

Page 6: BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense,

7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf

http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 6/7

S2 MARIA VICTORIA BENEVIDES

nheciam OS caras, er a mais fácil para um sargento de ru a

saber quem é quem. Você entra num ônibus - antiga

mente tinha o Penha-Lapa, então no Penha-Lapa, preci

sava descobrir quem é o bolinador, quem é o batedor de

carteiras. Muitas vezes está encostado na mulher, mas não

é pra bater a carteira dela, nem é "pipoqueiro" (pipoqueiro

é apelido, nã o tem nenhuma bolsa de mulher aqui, mas pr aabrir o fechinho fazploc, como se estivesse estourando um a

pipoca, então ficou pipoqueiro). O tira sacava de longe

quando er a bolinador. Hoje em dia não tem mais nada

disso, porque a delegacia aos poucos foi se despersonali

zando, se diluindo, com a descentralização esta equipe

foi-se, quem é que sobrou? Percival Kojak, o crioulo,

grande tira, Daniel, Pacheco que se aposentou, o Camargo

Calamidade que também se aposentou. Er a um a gente

que sabia, só de olhar eles sabiam, eles ia m pra rua esabiam quem é quem. Eles sabiam distinguir o vagabundo

do trabalhador, do desempregado.

Jornalista 2: Qualquer delegado experiente vai prefe

rir ter aqui nas mãos dele vinte investigadores do que du

zentos PM . Isso para quem não está no meio pode parecerum absurdo, mas na prática é isso: é melhor os vinte porque

eles são mais eficientes. Eles sabem quem vão apanhar, ou

quem devem apanhar; quem devem deter ou não deter;

quem é trouxa, quem não é trouxa, na linguagem deles.E a PM não, vai jogando a tarrafa lá e caiu na rede é peixe,

vai levando tudo.

O jornalista sugere que a polícia civil estaria mais pre

parada para distinguir o bandido do trabalhador - reivindicação, aliás, explicitada em todas as reuniões e debates

sobre violência que incluem representantes dos movimentos

populares. Ê possível qu e este maior "prepar-o" da polícia

civil em relação aos policiais militares seja real, e as esta

tísticas comprovam que a PM mata muito mais do qu e apolícia civil, embora esta seja também responsável po r

mortes e, sobretudo, torturas nos interrogatórios. Mas oque importa é salientar que ambos, civis e militares, cul

tivam e multiplicam, entre seus subordinados, a crença na

VIOLfNCIA, povo E POLICIA S3

relação obrigatória entre "vadiagem" e "criminalidade". Oentão secretário de Segurança Pública de São Paulo, Eras

mo Dias, declarava ser suficiente o "bom senso" para distinguir o bandido do trabalhador: "o bandido tupiniquim,

o nosso bandido, tem tipologia definida: está sempre abaixo

da média. Ê subnutrido, mal-vestido, subempregado, en

fim, tem psicossomática definida. A aparência dos bandidos é idêntica" (Última Hora, 22.S.76). A "descrição" cor

responde, como é sabido, à grande parte da populaçãobrasileira. 3

A posição do delegado da êidade de Assis, no interior

de São Paulo, João Queiroz Néto, é um exemplo concreto

da persistência de um a verdadeira "ideologia da vadiagem"

- que se refere apenas aos pobres - dos tempos do Brasil

Colônia aos dias atuais.4

Su a proposta para combater acriminalidade em sua jurisdição é decorrência natural de

sua convicção de que "n a maioria das vezes o indivíduo sem

ocupação definida acaba praticando crimes e contraven

ções". E propõe que, em Assis, os "vadios" ficariam com

três opções: encontrar ocupação sadia e lícita; mudar-se da

cidade; ser preso e ficar à disposição da justiça. Tê m 30

dias para encontrar ocupação: devem assinar um "termo de

ocupação" e aquele que insistir em não trabalhar será au-tuado em flagrante e recolhido à cadeia pública" (FSP,17.1.81). A brilhante proposta do delegado João Queiroz

Neto, feita dois anos atrás, talvez não fosse renovada hoje.

Com as altíssimas taxas de desemprego, teriam os cofres

públicos condições de sustentar na cadeia tantos "vadios"

'que "insistissem" em não trabalhar? Em 1983 o juiz da

(3) Lúcio Kowarick e Clara An t discutem esse tema da "tipificação"

do bandido em Violência e Cidade, vários autores, Rio de Janeiro, Zahar,

1982, Ver, também, a pesquisa de Alba Zaluar sobre violência no condo-

mínio "Cidade de Deus" (Rio), parcialmente publicada em Violência, Crime

e Poder, vários autores, São Paulo, Brasiliense, 1983.(4) Ver o excelente livro de Laura de Mello e Souza, Desclassifica- t

dos do Ouro, Rio de Janeiro, Graal, 1983, onde são discutidas, no Brasil J"

Colônia, a "ideologia da vadiagem" e as várias formas da "util idade dosvadios" no processo econômico. .

Page 7: BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense,

7/30/2019 BENEVIDES, Maria Victoria.Miséria gera violência ou os pobres são sempre suspeitos in Violência, povo e polícia violência urbana no noticiário de imprensa. São Paulo Brasiliense, 1983..pdf

http://slidepdf.com/reader/full/benevides-maria-victoriamiseria-gera-violencia-ou-os-pobres-sao-sempre 7/7

S4 MARIA VICTORIA BENEVIDES

5:'- Vara Criminal de São Paulo, Fábio Poças Leitão, absolveu Eduardo Jorge de Souza, 19 anos, preso po r vadiagem eencaminhado à Casa de Detenção. "Fosse a polícia prendertodos aqueles que estão desempregados e não haveria lugarnas cadeias públicas, ne m mesmo nos distritos policiais"(FSP, 30.4.83).

A afirmação do delegado paulista de que "via de regraquem trabalha anda com documentos" não corresponde àrealidade, e menos ainda a identificação por "mãos calosas echeias de graxa". Os que trabalham em comércio, bancos eserviços em geral nã o andam necessariamente sujos degraxa ou tê m mãos calosas .. A carteira de trabalho é igualmente inexistente para muitos que trabalham como autônomos, ou menores e at é mesmo donas-de-casa. O presidente da OAB mineira, Aristóteles Atheniense, defendeu arevogação do a.rtigo 59 da Lei de Contravenções Penais qu eestabelece penas de prisão de 15 dias a três meses ao sconsiderados vadios: "É evidente que a lei só pune ospobres, já que define como vadios os que se entregam habitualmente à ociosidade se m renda que lhes assegure a subsistência, ou os que provem a própria subsistência medianteocupação ilícita" (JB, 14.4.81).

Para o jornalista Percival de Souza a estigmatizaçãodo pobre como "bandido típico" está perfeitamente entrosada com os métodos da polícia mas também reforçada pela

própria Justiça. Afinal, afirma, "não só a prisão para averiguações como a inominável prisão po r vadiagem vitimiza m o pobre, o operário, o migrante recém-chegado àsgrandes cidades. E fazem da polícia, queira ou não, ummecanismo de pressão ou repressão social" (JT, 29.2.80).Para concluir este tópico da discriminação social quanto à"suspeição" e a "punição" dos possíveis delinqüentes, um adeclaração do delegado Ruy Lisboa Dourado, da 12:'- DP doRio de Janeiro: "E u já disse qu e um tapa em Copacabana

ressoa como um tiro de canhão, e um tiro de canhão, nosubúrbio, como um a bombinha de São João" (JB, 23.1.81).

Em 1982 um a chocante ocorrência no Rio de Janeiroseria documentada n;1S primeiras páginas dos jornais, revelando "u m sinal trágico da transformação das PM em SS",

VIOLfNCIA. POVO E POLÍCIA SS

em brutal atentado aos mais elementares direitos do homem. "Atados pelo pescoço, 7 homens são levados pelamã o de um policial que segura a corda. É o retrato darealidade diária. Todos os sete são pretos, todos moradoresnos morros da Coroa e Cachoeira Grande. Todos, portanto,

previamente culpados porque o costume policial é prenderpela aparência, e só na delegacia sã o pedidos os documentos. A apresentação de documentos é um a formalidadesem sentido porque uma carteira de trabalho nã o defendeum cidadão: basta estar desempregado para ser culpado( ... )" "Que restou, no dia segUinte, da operação de exibicionismo policial no morro? A [verificação de que, entre 18detidos po r serem pretos e favelados, só um registravaantecedentes criminais." (JB, 1.10.82).

Coms> denuncia o deputado federal e líder da comunidade negra, Abdias Nascimento, "O negro é o primeiro aser preso, escolhido a dedo em 'batidas' e buscas em geralviolentas. Tal arbitrariedade confirma o dito popular:'branco correndo é atleta; preto correndo é ladrão' " (FSP,13.5.83).

• • •

Em 1983 o delegado Rafael Orlandi, do Serviço deProteção e Previdência do DEGRAN (SP), afirma que "a

mendicância é um a questão de polícia. Mesmo que sejaprovada sua situação de de.;emprego e falta de dinheiropara condução, qualquer pessoa que perambule pelas ruasou durma debaixo de viadutos poderá ser enquadrada po rociosidade ou cupidez. Caso o mendigo esteja fazendo suasnecessidades fisiológicas na rua, por falta de banheiro pú blico, ele também poderá se r autuado po r atentado aopudor" (FSP, 9.5.83).

O texto a seguir trata da associação entre criminalidade e "disposições inatas" para a violência e o crime. Ouseja, do "bandido de nascença" e das soluções que apontam a necessidade da maior repressão - incluindo a penade morte - contra os "irrecuperáveis".