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Maria Victoria de Mesquita Benevides

O Governo Jânio Quadros

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ÍNDICE

O falso carisma

Quem foi Jânio Quadros?

1960: A vitória de Jânio e a quebra do sistema partidário

Acima dos partidos, o bonapartismo janista

Do tostão à vassoura, o moralismo autoritário

Entre nacionalismo e "entreguismo", as pazes com o FMI

Em política externa o Brasil não é mais satélite

A renúncia

Indicações para leitura

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O FALSO CARISMA

Sete anos e um dia após o suicídio de Getúlio Vargas, outropresidente, igualmente eleito com expressiva votação popular,

deixava o poder de forma traumática. Mas, além de carecer dosentimento de grandeza, inegável no gesto de Getúlio, a renúnciade Jânio Quadros permanece até hoje envolta na polêmica que oraenxerga o golpe, ora a insanidade do protagonista. E a crise queprovocou, pela tentativa militar de se impedir a investiduraconstitucional do vice João Goulart, quase leva o país à guerracivil.

A comparação, por mais superficial, será inevitável. Em suacarta-testamento, bandeira do trabalhismo e do nacionalismo,Getúlio referia-se a "forças ocultas", porém identificadas com oimperialismo e a direita interna, temerosa do "fantasma popular" e

das reformas econômicas e sociais iniciadas pelo presidente queentendera a urgência da inclusão das massas na política. Em suacarta-renúncia Jânio referia-se a "forças terríveis" que, emborasugerissem frustrações de interesse "de toda a nação", jamaisforam apontadas. Não seriam, por certo, as mesmas do dramagetuliano. Afinal, Quadros candidatara-se com apoio de poderososgrupos econômicos exatamente em oposição à aliança partidária PSD-PTB, herdeira natural da tradição varguista.

Getúlio Vargas tinha a marca inconfundível e duradoura docarisma. Jânio, apesar de insistentemente apresentado como um dosexemplos mais "brasileiros" do político carismático, teve apenas a

caricatura do carisma, ou seja, o talento histriônico, afacilidade para a adesão epidérmica, populista no pior sentido dapalavra, da manipulação e do autoritarismo. O carisma desprende-semuito mais da personalidade do líder, e menos do "papel" que elerepresenta. O histrião terá o carisma da máscara; será, sempre, umfalso carisma. Jânio foi, sem dúvida, um bom ator. Mas com umpapel ultrapassado e mistificador, do ponto de vista dodesenvolvimento social e político e das reais aspirações departicipação das classes trabalhadoras. Não foi um líder de mas-sas, como Getúlio, ou menos ainda carismático como os heróis desua confessada admiração, Lincoln, Tito, Nasser ou De Gaulle.

Jânio da Silva Quadros, sucessor de Juscelino Kubitschek, foio primeiro presidente a tomar posse em Brasília, a 31 de janeirode 1961. Sua renúncia, a 25 de agosto, foi considerada uma"traição" aos quase seis milhões de eleitores que confiaram naação da vassoura (símbolo de sua campanha contra a corrupção) enas promessas de redenção nacional. A interpretação deste brevegoverno de sete meses esbarra, de início, em dois tipos dedificuldades: a queda no maniqueísmo, pela condenação implícita dequalquer política populista; e a sedução de uma análisepersonalista.

Quanto à primeira armadilha, trata-se de afirmar, como pontode partida, algumas diferenças. O populismo expresso nos governosde Vargas (1950-1954) e de Goulart (1961-1964) estava efetivamentevinculado aos movimentos sociais e aos partidos políticos, numa

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inequívoca tentativa de política de massas. O estilo autoritário,moralista e extremamente personificado de Jânio Quadros evocava um"populismo de direita"—militarista, antiparlamentar e associado aogrande capital —, o qual, dirigido "a todas as classes, aoconjunto da nação", terminava por diluir o próprio significado depovo e de massa. Como indica Francisco Weffort — que analisou,

para o primeiro caso, o "Estado de Compromisso" — Jânio Quadrossignificava não apenas a falência do sistema partidário, como opopulismo levado à sua contradição mais extrema e que se voltacontra si próprio.

A segunda armadilha é mais complicada. Como evitar o enfoquepessoal na análise de um curtíssimo governo, marcado do começo aofim pela figura onipresente de um quase-confesso candidato aditador? Em que pese o exame das características estruturais econjunturais da realidade brasileira no período, torna-seimpossível separar o governo Quadros da "personalidade" Jânio.Como é impossível ignorar, no ator político, o ator teatral. O

leitor perceberá, no entanto, que a insistência nos traçospessoais do presidente será diretamente associada ao processopolítico e aos fatos. Esta é a única saída para a tentaçãopersonalista. Tal perspectiva informa, portanto, a breveapresentação: "Quem foi Jânio Quadros?", e as tentativas deanálise sobre o moralismo autoritário (do tostão à vassoura) esobre o bonapartismo janista (a crença em um governo acima dospartidos).

Uma célebre boutade, atribuída a Milton Campos, dizia que"Jânio se elege com seus defeitos e governa com suas qualidades".Os defeitos seriam, para o liberal udenista, os recursos

populistas; as qualidades seriam a independência, a administraçãoeficiente, a honestidade. Mas a própria UDN considerar-se-iatraída por seu eleito. Como entender a ascensão janista ao postode "candidato ideal" de todos, em 1960, é tema de outro capítulo,enfatizando-se a vitória de Jânio como causa e conseqüência dafalência do sistema partidário.

O governo Quadros transcorreu num período marcado peloprenuncio de grave crise econômica, pela diversificação dosmovimentos sociais — Ligas Camponesas, transição do sindicalismopopulista urbano, intensificação das greves, etc. —, além dacrescente intervenção, tanto de militares quanto da Igreja, na

cena política. (No quadro internacional modificava-se otradicional balanço da "guerra fria", entre outras coisas pelosnovos rumos impressos à Revolução Cubana.) Tais questõespertencem, é claro, à problemática mais ampla da chamada RepúblicaPopulista. Não são características apenas do governo em foco:foram herdadas dos anteriores e continuaram, com intensidaderedobrada, no governo Goulart. Neste pequeno livro, dada suaintenção primeira e as óbvias limitações de espaço, pretende-seabordar o que foi específico à presidência Jânio Quadros e, porextensão obrigatória, ao fenômeno do janismo.

Além dos assuntos já referidos, e da própria evidência da

renúncia, dois grandes temas singularizam o governo Quadros: apolítica externa independente (que culminaria com a condecoraçãodo ministro cubano Ernesto "Che" Guevara) e a política econômica

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de estabilização ortodoxa, na qual se destaca a "verdade cambial"(instrução 204) e o reatamento com o Fundo MonetárioInternacional.

Em toda a discussão transparece uma questão típica doautoritarismo personalista do governo Quadros: o desprezo dopresidente pelas instituições, sobretudo pelo Congresso, em favor

de um significativo respeito pelo papel dos militares. Estes setornariam "sacerdotes de uma santa inquisição, cada vez maisconvencidos de que uma corja de trêfegos assaltantes civisenlameava a puridade nacional" (História do Povo Brasileiro). Nãose encontrariam aí alguns aspectos importantes da crise que "seresolverá" em 1964, com a ascensão dos militares e a instalação deum regime autoritário, repressivo e "vingador"?

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QUEM FOI JÂNIO QUADROS?

Afinal, quem era Jânio Quadros? Sua carreira política indica,inegavelmente, o que se convencionou chamar de ascensão meteórica.

A do modesto advogado e professor de ginásio, de família simples,sem fortuna e tradição política, que percorre os diversos escalõesda vida pública e chega à Presidência da República aos 44 anos deidade. Sempre em são Paulo, este "paulista de Mato Grosso"conquista rapidamente boa parte de um espaço político até entãopartilhado por bacharéis, comerciantes e fazendeiros da UDN e doPSD (remanescentes dos antigos Partido Democrático e PartidoRepublicano) e por partidários do ex-interventor Ademar de Barros.

Em 1947, suplente de vereador pela legenda do PartidoDemocrata Cristão, assume o mandato devido à cassação doscandidatos do Partido Comunista, então colocado na ilegalidade. No

ano seguinte elege-se deputado estadual também pelo PDC. Mas é naseleições municipais de março de 1953 que Jânio marca a força desua escalada populista. A campanha do "tostão contra o milhão"("tem ou não tem razão o homem da rua quando diz que quem rouba umtostão é ladrão, quem rouba um milhão é barão?", indagava noscomícios) explode dos limites acanhados do bairro popular de VilaMaria, principal reduto eleitoral janista. Contrariando todas asexpectativas, Jânio Quadros chega à Prefeitura de São Paulo comapoio de dois pequenos partidos — o PDC e o Partido SocialistaBrasileiro — e derrota uma poderosa coligação partidária queincluía UDN, PSD, PTB, PR, ademaristas e comunistas.

Um ano depois, a campanha do tostão recebe o impulso davassoura (supostamente para "varrer os ratos, os ricos e osreacionários") e do slogan: "Não desespere, Jânio vem aí". São asprimeiras eleições após o suicídio de Getúlio. Eleito governadorde São Paulo, Jânio vence seu mais poderoso adversário, Ademar deBarros. Nessa ocasião Jânio estava rompido com a cúpula do PDC(iniciando uma sucessão de rupturas e renúncias que marcariam suasrelações com os partidos políticos pela vida afora), cujo presi-dente, Antônio Queiroz Filho, pintava o retrato que o futuroconfirmaria: "a fantasia delirante do candidato a caudilho,dominado pela magia dos extremos, com a falsa imagem de suapredestinação". Mas Jânio contava com o entusiasmo dossocialistas, de uma ala dissidente do PTB e o apoio de outro pe-queno partido, o PTN (Partido Trabalhista Nacional), liderado pelodeputado paulista Emílio Carlos.

Além do recurso à demagogia teatral, a atuação de Jânio seriasempre marcada pela alta incidência de contradições eambigüidades, numa taxa muito acima do "normal" que se concedecomo inevitável a qualquer governante. O enérgico candidato queatacava os desmandos do poder público e a inércia da burocracia éo mesmo que, governador de São Paulo, proíbe os professores da USPde criticarem o governo, baseando-se nos Estatutos doFuncionalismo. O estadista altivo que se opõe à aventura doPresidente Kennedy na invasão a Cuba (Baía dos Porcos, abril de1961) aceita a imposição de regras rigorosas pelo FMI. O

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presidente que condecora o líder revolucionário Guevara, ordena arepressão às manifestações de estudantes em Recife, por ocasião deconferência da mãe do próprio "Che". Empossado na Presidência, vaià televisão e reafirma sua firme defesa da iniciativa privada; nodia seguinte envia um projeto sobre os abusos do poder econômico.

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Nunca se definiu claramente acerca de Getúlio Vargas; oragetulista, ora antigetulista, passava do PTB para a UDN com anaturalidade que beira o cinismo. Corteja a esquerda e oscomunistas para depois considerá-los, publicamente, "como irrecu-peráveis para a democracia". Eleito com forte apoio sindical,

tentaria minar exatamente as fontes do poder sindical, através docontrole "despolitizado" no Ministério do Trabalho, nos institutosde previdência e atacando a instituição do "imposto sindical".

As campanhas de Jânio Quadros são um capítulo à parte nahistória eleitoral brasileira. Em nenhum outro momento, a nível deeleição majoritária, as contradições entre desenvolvimento eatraso, autoritarismo e liberalismo, progressismo e reacionarismo,público e privado, foram tão bem manipuladas. Como em nenhum outromomento o populismo assumiu feições tão "pessoais" — tão marcadaspelo talento histriônico do ator, que se confundia com a marca deuma carisma genuíno — reunindo, ao mesmo tempo, grupos sociais

díspares e até antagônicos.O estilo da campanha para a Prefeitura se repete na campanha

para o Governo do Estado e depois para a Presidência. Os palanquestransformavam-se em verdadeiros palcos de tragicomédias: Jâniotomava injeções em público, simulava desmaios e comia sanduíchesde mortadela levados nos bolsos. E era carregado nos ombros dopovo! Numa esdrúxula mistura de radicalismo e Kitsch popularesco(um admirador udenista chegou a identificá-lo como um misto deLênin e Carlitos!) fazia violentos ou pitorescos discursos, numportuguês precioso de sílabas escandidas, e apoiado num visual quese tornaria típico: roupas surradas e em desalinho, cabelos com-

pridos e barba por fazer, ombros brilhantes de caspa... umvisionário. Muitos o tomaram como um messias, poucos denunciaram ocharlatão.

Nos comícios Jânio atacava a inércia dos políticos, o abandonoda causa pública, os desmandos dos governos, a opressão de "DonaLight". Apontava, como plataforma para a "recuperação moral eadministrativa", a correta equação dos direitos e deveres doscidadãos e do Estado. É nesse sentido que se entende o apoio daesquerda ao movimento janista, naquela época com inegáveis raízespopulares. A campanha contra a corrupção contida na mensagem deJânio Quadros, segundo depoimento de um socialista, "atacava, por

um lado, a base do poder das classes dominantes, através dasdenúncias de desigualdades e das injustiças da política do Estado,e, por outro, acenava com a defesa dos interesses econômicos dasclasses populares. A luta contra a corrupção, em certa medida,atingia o poder que permitia o excesso de exploração" (depoimentode Fúlvio Abramo a J. A. Moisés).

Na sucessão presidencial de 1955 Jânio apóia ostensivamente acampanha de Juarez Távora (candidato do PDC e da coligação UDN-PL)contra a aliança getulista PSD-PTB que elege Kubitschek e Goulart.Em 1958 consegue fazer seu sucessor ao governo do Estado, CarvalhoPinto, na mesma ocasião em que recebe grande votação para deputado

federal pelo Paraná, na legenda petebista (jamais poria os pés noCongresso). Dois anos mais tarde é eleito presidente da República.Após a renúncia tenta novamente o governo estadual de São Paulo,

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nas eleições de 1962 ("renúncia é denúncia"), mas desta vez ederrotado por Ademar, que conseguia reunir até mesmo seusarquiinimigos da UDN.

Embora notoriamente hostil ao governo Goulart, e simpático aomovimento militar de 64, Jânio terá seus direitos políticossuspensos, a exemplo do que ocorreu com outros nomes nacionais,

como Juscelino, Lacerda e o próprio Ademar. No governo Costa eSilva será punido com 4 meses de confinamento em Corumbá. Com aanistia política de 1979 Jânio inicia seu regresso à cenapolítica, motivado pelas eleições previstas para 1982. No velhoestilo joga com o "suspense" de sucessivas aproximações e recuoscom quase todos os partidos, oscilando do extremo de governismo aoextremo de oposição. Ressuscita a vassoura, o anticomunismo, alealdade e o respeito pela ação das Forças Armadas, a defesa deuma política econômica ortodoxa e, acima de tudo, a confirmação desua crença num regime forte e autoritário.

Esboçado esse breve quadro sobre o histórico janista, trata-se

de situar a campanha presidencial de 1960 e procurar entender aesmagadora vitória do autodenominado "candidato do inconformismo".

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1960: A VITÓRIA DE JÂNIOE A QUEBRA DO SISTEMA PARTIDÁRIO

Os janistas exaltavam a "revolução pelo voto". Um sociólogochegou a falar de "rebelião do eleitorado". O que significava talfenômeno, justamente após um governo marcado pelo desenvolvimento,pelo otimismo generalizado e pela tolerância política? Narealidade, a ascensão de Jânio Quadros, candidato ao mesmo tempodo povo e das elites, evidenciava tanto a falência do sistemapartidário quanto o "esgotamento das virtualidades" do brilhantegoverno Kubitschek.

O debate entre economistas sobre o colapso do modelo dedesenvolvimento capitalista via substituirão de importações,entrada em massa de capital estrangeiro, recurso à inflação eendividamento externo, é bem conhecido. Trata-se, aqui, de situardois aspectos que marcaram o final do governo JK, especialmenterelevantes para a compreensão da explosão janista: 1) a crescenteinsatisfação de vários setores sociais com a alta do custo devida, despertados para a participação reivindicatória exatamentepelos frutos do desenvolvimento num governo politicamente aberto;2) a transformação gradativa do sistema partidário, com adecadência dos grandes partidos conservadores — Partido SocialDemocrático e União Democrática Nacional —, o crescimento doPartido Trabalhista Brasileiro e de agremiações interpartidárias,com o conseqüente processo de realinhamento. Estes dois aspectos

refletem, é claro, um fenômeno mais amplo, relativo à crônicadebilidade institucional brasileira, patente nas relações desi-guais entre um Estado cada vez mais forte e uma sociedade civilfrágil e desarticulada.

O desenvolvimento do período Kubitschek despertara camadassociais para demandas que não apenas se exprimiam em obraspúblicas ou empregos, mas no alargamento efetivo dos limites daparticipação — econômica, social e política. A legitimidade dosistema político começava a ser posta em xeque pelas camadasemergentes na medida em que o governo revelava-se incapaz de asabsorver institucionalmente.

Jânio Quadros surge com força total nesse aparente vácuoinstitucional e caos partidário, agravados pela crise econômica.Sua postura tradicionalmente suprapartidária será, ao mesmo tempo,causa e conseqüência do esfacelamento do sistema partidário.

Não se trata apenas da famosa "crise do poder", como também dacrise de representatividade dos partidos políticos. Jânioapresenta-se ostensivamente como o candidato independente, "acimados partidos", prometendo um governo "sem donos e seminfluências".

Nesse sentido a vitória de Jânio em 1960 pode ser entendidacomo fruto do desmoronamento da aliança PSD-PTB, habilmente

articulada por Getúlio Vargas desde os prenúncios da"democratização" de 1945. As eleições de 1958 já haviam mostrado ainversão da aliança getulista nos estados e municípios, em favor

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de acordos locais — muitas vezes com o inimigo da véspera, ou oadversário do partido em termos nacionais. A coligação com a UDNpassa a ser disputada tanto pelo PSD quanto pelo PTB.

Um dos fatores mais importantes para o realinhamento refere-seao crescimento do PTB (de 22 deputados federais em 1945 a 116 em1962), o que forçava a aproximação PSD/UDN, partidos com bases

sociais e interesses econômicos semelhantes, porém separados pelocorte profundo da herança getulista. Do ponto de vista do janismoo papel do PTB paulista é da maior relevância, mas em sentido con-trário: aí se trata da fragilidade, e não da força. Por que o PTBnão vinga em São Paulo, justamente o estado mais desenvolvido dopaís? Ao que parece, não havia interesse do trabalhismo nacional — cuja hegemonia permanecia com os gaúchos — no fortalecimento doPTB paulista. Este, deixado à sua própria dinâmica, seria,certamente, um partido fortíssimo. Ainda uma vez se invocava atemeridade de São Paulo "dominar" a cena política nacional... Deveser lembrado, também, que PSD e UDN nunca chegaram a ter força

expressiva em São Paulo (como ocorreu no Rio, em Minas Gerais, naBahia), onde atuavam com maior eficácia os grupos de pressão, ossindicatos, as associações de comerciantes e de empresários. Outrofator importante para explicar a falta de um trabalhismo"autêntico" em São Paulo consiste na forte presença do ademarismo,atuante no estado desde a década de 40. Além da fragmentaçãotrabalhista em partidos minúsculos, como o PTN, ironizados porGetúlio como "bijuterias políticas, os partidos da Sloper".

No final dos anos 50 o janismo passa a competir favoravelmentecom o PTB — e seus aliados comunistas — na área sindical. Apoiandoo Movimento de Renovação Sindical e depois o dinâmico Movimento

Jan-Jan (Jânio-Jango), os janistas passam a controlar asnegociações das greves — numerosas no final do governo JK — e daschapas às eleições sindicais. Combatiam o imposto sindical e ainfluência do Ministério do Trabalho nos sindicatos. 1960, segundoFrancisco Weffort, marcaria a transformação do sindicalismopopulista, pelo eclipsamento do PUI (Pacto de UnidadeIntersindical), com sede em São Paulo, pelo PUA (Pacto de Unidadee Ação), com sede no Rio de Janeiro.

No plano parlamentar a situação também indica o realinhamento.No Congresso os oradores petebistas eram mais contestados pelosaliados do PSD, enquanto a UDN dividia-se, ora apoiando o PTB, ora

as posições mais conservadoras do PSD. O final do governo émarcado pela predominância dos agrupamentos interpartidários, aFrente Parlamentar Nacionalista, de linha "esquerdizante", e aAção Democrática Nacional, onde predominavam os grupos maisreacionários de todos os partidos, comprometidos com a corrupçãoeleitoral alimentada pelo IBAD (Instituto Brasileiro de AçãoDemocrática) sob a cobertura ideológica da "defesa contra o comu-nismo".

Apesar dos abalos e de infidelidades mútuas, a aliança PSD/PTBmantém-se formalmente coesa e lança o General Lott para aPresidência, em chapa conjunta com João Goulart. O Ministro da

Guerra de Juscelino (equivocadamente considerado "apolítico",quando de sua escolha ainda no governo Café Filho) surgia como ocandidato natural das forças nacionalistas do Exército e de toda a

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esquerda. Mas o PSD, ainda uma vez, "cristianizaria" seu candidatoque, além de totalmente desprovido de apelo popular, atemorizavaos setores mais conservadores do PSD, partidários da políticaeconômica ortodoxa sugerida por Jânio Quadros. Aos radicais doPTB, por outro lado, constrangiam certos aspectos da campanha doGeneral Lott; este, embora defendesse posições progressistas como

o voto do analfabeto e restrições à remessa de lucros, nãoescondia seu visceral anticomunismo.Jânio Quadros, que centrava sua campanha nos ataques à

"corrupção do governo anterior", à inflação e à alta do custo devida, o desperdício com as obras "faraônicas" de Brasília e as"irresponsabilidades do presidente voador", reunia todos os des-contentes e os sem partido. E para a UDN tornava-se o candidatoideal, aquele messias que "conseguia efetuar o encontro dodesespero com a esperança pela antevisão de uma nova era deausteridade e reformas sociais" (A. Arinos). É verdade que otemário janista significava a encarnação das teses udenistas

anticorrupção, que atraíam os setores populares, tradicionalmentehostis à UDN, e ainda polarizava o descontentamento dos militarese das camadas médias através das promessas de "limpeza" naadministração e estabilização da economia.

Apesar dessas semelhanças, a UDN dava uma guinada de 180graus. Abandonava sua austera visão antipopulista e partia para umfestival de rua, com as "Caravanas da Liberdade" e o "Caminhão doPovo", trocando o lenço branco das memoráveis campanhas doBrigadeiro pela vassoura janista. No dizer de um de seus líderes,a UDN estava "farta das derrotas gloriosas" e apostava naseleições (afinal, "o povo não pode errar sempre"...), abandonando

sua especial predileção pelas manobras golpistas. Com JânioQuadros os udenistas acreditavam, enfim, derrotar "aquelacoligação maldita" que se achava no poder, conforme anunciavam emnota oficial do partido. Esta crença na vitória de Jânio — com ousem a UDN — superou todas as dificuldades que acompanharam o apoiodos udenistas, incluindo a renúncia do candidato.

Jânio contava com o decisivo apoio de Carlos Lacerda ("haveráalgo mais udenista neste país do que a obra de Jânio Quadros emSão Paulo?", indagava), dos udenistas históricos que viam comdesagrado a aproximação dos "realistas" com o PSD (não perdoavam oacordo no governo Dutra) e do grupo que compunha o "movimento

renovador", embrião da futura "Bossa-Nova". O candidato natural daUDN, no entanto, era Juraci Magalhães, antigo tenente, fundador dopartido, e que formava, ao mesmo tempo, com o grupo da conciliaçãoe da abertura popular. Contava, ademais, com o discreto apoio dopresidente Kubitschek, que preferia a vitória da oposição paragarantir, sem desgastes, a sua própria volta ao governo em 1965. Obaiano Aliomar Baleeiro, um dos mais combativos membros da "Bandade Música", liderava a campanha pró-Juraci, com apoio do gruponordestino, para quem o paulista Jânio Quadros, por não pertencera nenhum partido, "não passava de uma bailarina política a qualnão deveria ser entregue a cabeça de João Batista" (M. V.

Benevides, A UDN e o Udenismo). Assim, a confusão partidáriaparecia irremediável. Se os próprios partidos apresentavamdivisões tão intrigantes, o que dizer da disposição do eleitorado

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para, eventualmente, dar provas de "maturidade política" e votarpartidariamente, acima de nomes e personalismos?

"A campanha eleitoral foi, em boa medida, uma comédia deequívocos. Lott, apoiado pela esquerda, pautou seuspronunciamentos por um anticomunismo extremado, que lhe alienavaas simpatias das massas urbanas sem lhe granjear apoio nas áreas

conservadoras. Jânio, candidato da direita, introduziu no debateeleitoral a política externa, solidarizando-se com Cuba e propondouma atitude de independência face aos dois blocos que dividem omundo. No final, ganhou o melhor orador, o demagogo talentoso,capaz de entusiasmar as massas operárias com tiradas esquerdistase, ao mesmo tempo, inspirar confiança à burguesia com apelos àausteridade e promessas de sobriedade no trato dos dinheirospúblicos" (Paulo Singer, Política e Revolução Social no Brasil).Na realidade Jânio contou com o apoio da CONCLAP (ConselhoNacional das Classes Produtoras), de grupos industriais impor-tantes, como Matarazzo e Votorantim, e associações paulistas como

a FIESP, a FARESP e a Associação Comercial.A plataforma de Lott expressava a ideologia da ala

nacionalista que fazia política ativa no Clube Militar. Jânio, porsua vez, contava com a simpatia dos militares identificados àscandidaturas frustradas do Brigadeiro Eduardo Gomes (1945 e 1950)e do General Juarez Távora (1955) e que não perdoavam o"contragolpe preventivo" do 11 de Novembro, com o qual Lottgarantira a posse de Juscelino e Jango. Além dos militares daCruzada Democrática, de setores influentes da Escola Superior deGuerra, Jânio polarizava, também, o engajamento político de jovensda Aeronáutica fiéis à pregação radical de Carlos Lacerda. Assim é

que, em novembro de 1959, os rebeldes de Aragarças (os mesmosoficiais do levante de Jacareacanga de 1956) apontam como um dosmotivos de sua rebelião a renúncia de Jânio Quadros à candidaturapara a Presidência (com esta renúncia a UDN ficara em pânico, eJânio reconsidera a decisão em menos de uma semana).

Além do pequeno PTN, do PDC e da maioria da UDN, a candidaturajanista contava com o apoio da Frente Democrática Gaúcha (UDN-PSD-PL), de setores do Partido Socialista (interessados na propostaprogressista e modernizadora) e de alas dissidentes do PR, do PTBe do PSD. Na Convenção Nacional da UDN, em novembro de 1959, aconsagração é apoteótica: Jânio recebe 205 votos contra 83 dados a

Juraci Magalhães. Este, apesar das vaias, faz um discursopremonitório da renúncia, concluindo dramaticamente: "E agora,José?". Para a vice-presidência a UDN recorre, mais uma vez, ao"charme discreto" de um liberal consagrado como Milton Campos,depois do malogro do lançamento da candidatura do ex-governador deSergipe, Leandro Maciel.

A "campanha das mãos limpas" do candidato à Vice-PresidênciaFernando Ferrari (do Movimento Trabalhista Renovador, dissidênciado PTB gaúcho), com apoio do PDC, complementava a campanha davassoura e atraía votos udenistas. Os resultados do pleito indicamnão apenas a divisão do eleitorado antijanguista (a união dos

votos de Campos e Ferrari teria garantido, por ampla margem, aderrota de Goulart), como o sucesso dos comitês Jan-Jan e doMovimento Popular Jânio Quadros nos grandes centros trabalhistas e

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esquerdistas como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.Nas eleições de 3 de outubro Jânio é eleito com 5 636 623

votos, derrotando o General Lott (3 846 825 votos) e Ademar deBarros (2195 709 votos). Convém lembrar, para a correta avaliaçãodos dados eleitorais, que em relação ao pleito presidencialanterior há um aumento significativo não apenas do eleitorado, em

números absolutos, como da proporção do comparecimento às urnas:de 60% em 1955 passa a 80% em 1960. Do total de votos válidosdados a Jânio, 78% foram obtidos nos estados-chave Guanabara, RioGrande do Sul, Minas Gerais e São Paulo. Em 1919 havia mais de cembrasileiros para cada voto dado ao presidente eleito. Em 1960havia menos de 13 brasileiros para cada voto dado a Jânio Quadros.

Jânio obteve substancial votação em todas as camadas sociais,mas uma pesquisa pré-eleitoral feita por Gláucio Soares naGuanabara indicou preferência significativamente maior por Jânionos estratos sócio-econômicos mais elevados, medidos por instruçãoe ocupação. O perfil do eleitorado janista, em 1960, indicaria,

assim, que "Jânio ainda é a grande esperança dos deserdados, mas ésobretudo o instilador de um novo ânimo defensivo à classe médiatradicional, atormentada pela inflação, temerosa das mudanças quese processavam no país, ansiosa em busca de um messias-estadistapara repor as coisas nos seus lugares" (Souza e Lamounier, Isto É ,nº 4, 1976).

A vitória de Jânio seria reforçada pelo sucesso da oposiçãonos governos estaduais: Carlos Lacerda, na Guanabara; MagalhãesPinto, em Minas Gerais (derrotou Tancredo Neves); Luiz Cavalcanti,em Alagoas; Pedro Gondim, na Paraíba; Aluísio Alves, no Rio Grandedo Norte; Correia da Costa, em Mato Grosso, e Ney Braga, no

Paraná. Jânio não conseguira a maioria absoluta dos votos(48,26%), mas em momento algum os radicais da UDN — que haviaminvocado tal motivo em 50 e 55 — manifestaram intenções golpistas.Uma era de confiança, um clima de "democrática pacificaçãonacional" parecia transformar os mais renitentes golpistas. Doisimportantes fatores, no entanto, já indicavam tempestades futuras:a eleição de João Goulart para a Vice-presidência (com visívelhostilidade das Forças Armadas e das classes conservadoras) e ascaracterísticas do temperamento personalista, autoritário epsicologicamente instável do novo presidente.

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ACIMA DOS PARTIDOS, O BONAPARTISMO JANISTA

"As proporções da vitória eleitoral de Jânio Quadros — porgenerosa margem de quase dois milhões de votos sobre seu principal

adversário — conferiam-lhe considerável quantum de poderespecífico em relação às forças que lançaram sua candidatura. Comonenhuma delas poderia reivindicar 'dividendos partidários', Jâniocolocava-se acima da sociedade política, verificando-se o quartodo bonapartismo. O bonapartismo suspende a força política dasclasses sociais e as transforma, por assim dizer, em suplicantesdiante do Estado. Então o povo, partidariamente desorganizado,passa a ser aparente sustentáculo do poder. O chefe bonapartista,por cima das classes, por cima dos partidos, busca o apoio diretodo povo" (Guerreiro Ramos, A Crise do Poder no Brasil). Pairandoacima dos partidos, fugindo ao esquema "esquerda e direita", Jânio

significava, para seus defensores, o encontro da ordem com o pro-gresso, a revolução política sem violência ou ilegalidade. Seria"um governo ao mesmo tempo progressista e conservador, austero eaudacioso, amado pelo povo e respeitado pelas elites" (A. Arinos,A Escalada).

A realidade seria bem diversa. Através da política dos"bilhetinhos" Jânio converteria seus ministros em meros executoresde determinações presidenciais; pela criação das Seções Especiaisdo Gabinete Civil e Militar, e do Serviço Nacional de Municípios,tentaria anular qualquer mediação entre a Presidência e o poderregional e local; pelo tratamento dispensado aos parlamentares e

empresários, revelaria o desprezo implícito por tudo aquilo quenão fosse emanação direta de sua própria autoridade,supervalorizada por um voluntarismo quase místico, na crençaabsoluta no "mandato independente". Afinal, este seria o governoque prometera, "sem donos nem influências".

As forças políticas que apoiaram sua candidatura não apenas serevelaram impotentes para reclamarem "dividendos partidários",como incapazes de defenderem um projeto comum, por serem, em cer-tos casos, francamente antagônicas. O que explica, em parte, asprofundas ambigüidades e contradições no relacionamento Executivo-Legislativo. No governo Kubitschek, a euforia desenvolvimentista eo estilo conciliatório do presidente, aliados à eficiente políticade "administração paralela" (que mantinha intacta a burocraciatradicional, feudo dos interesses cartoriais e clientelísticos),conseguiram, por um período determinado, responder às expectativasde diferentes grupos sociais, com exceção dos marginalizados daterra.

O governo Quadros, ao contrário, acirrou contradições, jogandocom forças políticas que se repeliam mutuamente. Todos"pertenciam" ao governo, um caleidoscópio que iluminava ora omoralismo bacharelesco da UDN, ora o conservadorismo burocrático eo industrialismo do PSD. Ou o trabalhismo do PTB e a crescenteparticipação dos sindicatos. Ora os interesses agrário-modernizantes sulistas, ora os dos coronéis do Nordeste. O impulsodesenvolvimentista dos herdeiros de JK e a moderação

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estabilizadora dos ortodoxos. Ou seja, uma amplíssima "frente",que tinha em comum os louros da vitória eleitoral; nenhum programacoerente garantia a unidade. Em resumo, os que apoiavam omoralismo, condenavam o trabalhismo; os que defendiam a políticaeconômica ortodoxa odiavam a política externa independente, evice-versa.

E Jânio teria que enfrentar não apenas os problemasdecorrentes da crise econômica herdada, como os inerentes àspromessas de "reformas de base". Para tal proeza dificilmente oapoio do Congresso poderia ser menosprezado. Durante os sete mesesde governo Jânio conseguiu fazer chegar ao Congresso apenas umprojeto importante, o da Lei de Remessas de Lucros, e neste casocom a divisão de seus próprios ministros.

A composição diversificada do Ministério é esclarecedora. NaFazenda, o udenista baiano Clementi Mariani, industrial ebanqueiro, ministro da Educação no governo Dutra e presidente doBanco do Brasil no governo Café Filho à época da famosa instrução

113, que favorecia a entrada de capitais estrangeiros no país. NaAgricultura Romero Cabral da Costa, um desconhecido na cenapartidária nacional, usineiro ligado aos setores mais arcaicos daagricultura nordestina, fora indicado pelo governador dePernambuco, o udenista Cid Sampaio. Na Viação, outro político semexpressão, o pessedista Clóvis Pestana; na Saúde, Catete Pinheiro,um obscuro paraense do PTN.

Na pasta de Minas e Energia, um nome forte: o do paraibanoJoão Agripino, que, embora da UDN, defenderia o nacionalismovarguista na área de minérios e na Petrobrás. Na Indústria eComércio, Artur Bernardes Filho, do Partido Republicano, empre-

sário ligado aos interesses de multinacionais. A pasta do Trabalhoseria "despolitizada" pela indicação do paulista Francisco deCastro Neves, apenas formalmente filiado ao PTB, e contrário àpolítica janguista nos sindicatos e institutos (o simples fato dequerer denominar o Ministério como "Secretaria da Mão-de-ObraNacional" já indica as intenções "despolitizantes").

O Ministro da Educação, Brígido Tinoco, era um político doantigo Estado do Rio, sem nenhum convívio com os problemas daeducação. Jânio convocaria o Professor Anísio Teixeira que lheentregou, em pouco tempo, um plano de educação; a inérciaburocrática do Ministério, no entanto, não combinava com as idéias

renovadoras e o projeto seria arquivado. Na Pasta da Justiça,Oscar Pedroso Horta representava, juntamente com o chefe da CasaCivil, Quintanilha Ribeiro, uma escolha baseada na lealdadepessoal ao ex-governador paulista. E, finalmente, o novoChanceler, Afonso Arinos de Melo Franco, seria o responsável peladefesa da política externa independente, enfrentando oreacionarismo de seu próprio partido, a UDN.

Nos ministérios militares, no entanto, a coerência foimantida. O General Odilo Denys permanece no Ministério da Guerra;apesar de comprometido com o grupo do 11 de novembro, quegarantira a posse de Juscelino e Jango, Denys já se afastara

definitivamente da ala nacionalista representada pelo GeneralLott, cujo esquema de posições começara a desmantelar em todo opaís. Na Marinha, o Almirante Sílvio Heck, vinculado aos

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lacerdistas e comandante do Cruzador Tamandaré em 1955; na Aero-náutica, o Brigadeiro Gabriel Grum Moss, da ala mais"brigadeirista" da FAB, e na chefia do Estado-Maior das ForçasArmadas o General Oswaldo Cordeiro de Farias. Jânio contava com oapoio dos militares da Escola Superior de Guerra, para quem era "anegação da demagogia" (!). No plano federal, o único setor

organizado e ativo era justamente a Casa Militar, sob a chefia doGeneral Pedro Geraldo de Almeida, identificado com o grupo da ESGligado ao então Coronel Golbery do Couto e Silva. Este era chefede Gabinete da Secretaria Geral do Conselho Nacional, onde seencontravam, também, os oficiais João Batista Figueiredo, WalterPires, Heitor de Aquino Ferreira e Mario Andreazza, no Serviço Fe-deral de Informações (René Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado).

Aliás, um dos principais motivos para a hostilidade de setoresdo Congresso a Jânio foi o espaço privilegiado concedido às ForçasArmadas. Como, por exemplo, a criação de subchefias militares dogabinete presidencial em várias regiões do país e a sistemática

designação de oficiais para presidirem as Comissões de Inquéritose sindicâncias da cruzada moralizadora. Esta última medidaprovocou violenta reação na Câmara dos Deputados, destacando-se adenúncia de Almino Affonso, líder do PTB, que indagava por que osmilitares passariam a ser fiscais da coisa pública: "por acaso ummilitar, por definição, é honesto, e há de ser um civil, pordefinição, um venal?" (Mário Victor, Cinco Anos que Abalaram oBrasil).

No plano civil, a prática de organizar reuniões nos estadoscom os governadores, criando uma nova instância decisória demediação, constituiu-se em rede de apoio regional também fora do

Congresso. Note-se que pela primeira vez o governo não tinhamaioria no Congresso. O Bloco Parlamentar de oposição PSD-PTB-PSP(o Partido Social Progressista era o partido de Ademar de Barros)compunha a maioria na Câmara dos Deputados. Mas era uma maioriafluida, extremamente heterogênea, que incluía desde socialistasaté radicais de direita. E não se poderia dizer que os unia umaposição constante contra o governo, pois conservadores eprogressistas dividiam-se, em cada partido, em relação a quasetodas as questões.

A política progressista de Jânio contava com o apoio das alasrebeldes dos grandes partidos: a ala moça do PSD, a Bossa-Nova da

UDN e o Grupo Compacto do PTB. Mas, se os progressistas uniam-sena defesa da política externa independente e do controle sobre aremessa de lucros, dividiam-se quanto à política sindical e aprática das sindicâncias que visava diretamente membros da aliançaPSD-PTB. A Bossa-Nova udenista (José Aparecido, José Sarney,Seixas Dória, Clóvis Ferro Costa), adversária dos lacerdistas e da"Banda de Música", surgira exatamente para dar apoio às propostasreformistas do novo governo.

Jânio, por sua vez, procurava apoio na esquerda, a nívelindividual somente, cortejando lideranças "não alinhadas", comoMiguel Arraes, Leonel Brizola e Francisco Julião. A tentativa de

aproximação com o PSD, através de políticos paulistas, não logrouresultados — graças à forte bancada mineira, comprometida com ogoverno anterior — e Paulo Pinheiro Chagas, líder pessedista da

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maioria, chegou a nomear uma comissão de deputados para estudar aproposta de impedimento do presidente (o que não ocorreu). Equanto à UDN — considerada por Jânio "inepta e bacharelesca" — afrustração seria total; suas lideranças parlamentares não eramconsultadas pelo presidente e o partido não dispunha de uma margemde manobras para distribuir cargos e vantagens, típica atribuição

de qualquer esquema de poder. Aparentemente vencedora, a UDN nãoera governo nem era oposição; constrangida a "apoiar um governoque não era seu" (como se queixaria mais tarde o presidente dopartido, Herbert Levy), pois não poderia isolar-se na oposição,muito menos renegar o fruto de sua sedução populista, a UDNrevelava o lado trágico de sua própria ambigüidade, num processoautofágico de sua única vitória (M. V. Benevides, A UDN e oUdenismo).

E, finalmente, cabe assinalar que, já nos primeiros meses dogoverno Quadros, os debates no congresso sobre a adoção do sistemaparlamentarista recrutavam novos adeptos. Aliás, a encarnação viva

do projeto, o presidente do Partido Liberdade, Raul Pilla, umasemana apenas antes da renúncia, sugeriu a criação de uma Comissãode Política Parlamentar para a "defesa da integridade eefetividade das funções parlamentares", a fim de evitar que oCongresso continuasse perdendo prestígio entre o povo,conseqüência da "invasão de sua própria esfera por outros órgãosdo poder" (Mário Victor, op. cit.).

Mas o desprezo de Jânio Quadros pelo Congresso — "um clube deociosos" — era tão grande que chegou a indagar a seu perplexoChanceler: "Ministro,V. Exa. pegaria em armas para defender esteCongresso que aí está?" (Afonso Arinos, Planalto). E depois da

renúncia, ao contestar seus propósitos golpistas, não hesitaria emvangloriar-se: "se quisesse teria fechado o Congresso com um caboe dois soldados".

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DO TOSTÃO À VASSOURA,O MORALISMO AUTORITÁRIO

Entre as contradições do governo Jânio Quadros destaca-se aintrigante conjugação entre a defesa ativa de uma política externa"de grandeza" e a adoção de um estilo provinciano e mesquinho notrato da coisa pública. No estadista da autodeterminação dos povosdisfarçava-se, ora mais visível, ora mais superado, o prefeito doslimites bairristas de Vila Maria. A "política dos bilhetinhos"revela o tacanho autoritarismo de um governo que erigiu como normao controle burocrático personificado, baixado aos mínimospormenores, em toda e qualquer área da administração pública, mastambém nos mais diversos aspectos da vida social.

A "eterna vigilância", referência emblemática dos liberaisudenistas, revestia-se de especial significado para Jânio.Vigilância moral, ideológica, punitiva, corretiva, didática,gratificadora. Em suma, uma nova "Voz do Brasil", altamentecentralizada, porém fragmentada em pequenas ordens, proibições,reclamações ou simples avisos, carregados da aura onipresente dequem se apresentava, sem o menor pudor, como o messias após ocaos. - E que utilizava, com mestria, recursos publicitários edramáticos para uma campanha nacional de "recuperação daausteridade e da autoridade".

Assim se explicam decisões pessoais do presidente da Repúblicapara questões disparatadas e insólitas, obviamente deslocadas da

órbita governamental. Como, por exemplo, os decretos proibindo ofuncionamento dos Jóqueis Clubes nos dias úteis e às brigas degalo em todo o território nacional. Ou as proibições de desfilesde misses com maiôs cavados nos concursos de beleza e do uso delança-perfume nos bailes carnavalescos. O presidente interferiudiretamente para a solução dos problemas relativos aos atrasos dostrens urbanos e às filas de abastecimento nas cidades. Passandopor cima da competência do Ministério da Justiça ocupou-se com ainstituição da censura moralizadora — em defesa da família e dosbons costumes — na televisão, nas diversões públicas e napublicidade comercial. Ordenou a suspensão das emissões da Rádio

Jornal do Brasil (baseando-se na célebre portaria da ComissãoTécnica do Rádio, utilizada no governo Kubitschek contra CarlosLacerda e que merecera de Jânio e dos udenistas o mais vivorepúdio), acusada de divulgar "notícia inverídica".

Na instância das "amenidades", Jânio preocupou-se em lançar "amoda racional para os trópicos" (inspirado em sua confessadaadmiração pelos costumes britânicos), inovando o protocolopresidencial ao adotar o terno "safari" — cuja uniformizaçãodesejou estender aos demais órgãos do governo, aparentemente semsucesso. A economia com os gastos públicos chegaria às raias doridículo com a determinação de que os papéis velhos dos

escritórios de toda a administração pública deveriam ser coletadospara venda filantrópica.O suporte ideológico para esta política autoritária e

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personalista encontra-se explicitamente no moralismo punitivo eredentor que, aos olhos de Jânio e seguidores, garantiria aoriginalidade e a autenticidade do que entendiam como "a revoluçãopelo voto". Em termos concretos tratava-se de levar a todo o paísa cruzada do saneamento moral, sob a bandeira da austeridade,honestidade e trabalho: "Este será um governo rude e áspero",

afirmou no dia da posse. E ao longo do governo seus discursosinsistiam na tônica do sacrifício: "que todos detenham suasambições, que todos sofreiem seu egoísmo, que todos sofreiem suacupidez. Quero uma reforma de princípios e de fundamentos". Osacrifício seria de toda a nação — para Jânio povo, nação egoverno confundiam-se numa só tarefa, mais ainda, eram uma sóentidade. Identificava, ademais, sua própria autoridade com oethos da nação: "todos aqueles que se voltam contra mim estão-sevoltando contra a verdade e a nação".

Como salientaram Souza e Lamounier, "esta era a grandealquimia do símbolo janista: o máximo de personalidade jamais

praticado em nossa história política como veículo para a extinçãodos personalismos ou, pelo menos, de 'favores pessoais'. Avassoura, instrumento para a remoção da sujeira; mas sujeira onde,de quem? A sujeira administrativa, a corrupção, na perspectiva dospobres. A sujeira, quem sabe, representada pelos pobres, pelasreivindicações, pela nova periferia urbana, na perspectiva dossetores ultraconservadores da classe média tradicional que aderiuao janismo" (op. cit.).

O apelo de Jânio ao discurso moralista, sabidamente sedutorpara a indigência política das classes médias — mas também para oelitismo sutilmente hipócrita dos bacharéis — vinha de longe, e de

êxito comprovado. Sua fulgurante ascensão política assentara-se nomoralismo radical que explorava habilmente o ressentimentodaqueles setores médios temerosos da "proletarização". A análisede Weffort sobre as bases sociais do janismo em São Paulo éesclarecedora; tratava-se de uma "classe média assalariada,proletarizada ou em vias de proletarização, que já não tem muito aperder com o desenvolvimento capitalista (...) o moralismo que seexpressa em Quadros expressa setores sociais que já não podempartilhar a esperança de favores e facilidades pessoais. Já nãopodem acalentar os mitos do patriarcalismo. Seu novo mito é aidéia de justiça, igualdade incondicional perante a lei. É

evidente que este moralismo é ambíguo quanto a seus efeitospolíticos, e o líder moralista dos homens do 'tostão' nunca viuimpedimentos maiores em se associar aos representantes, tambémmoralistas, dos homens do 'milhão' " (O Populismo na Política Bra-sileira).

Esta análise permite situar o moralismo janista em suasambigüidades e compreender por que a perseguição administrativasurgia como uma "santa inquisição", pois se tratava de "limitar osprivilégios". Daí o êxito da violência verbal de Quadros — e deseus ares de ascetismo rigoroso, implacável, autoritário, porémsupostamente justo — junto à massa equivocada na caracterização

dos verdadeiros donos do poder. Trata-se de um radicalismo de tipope-queno-burguês que obscurece e mistifica um reformismo de tipooperário, circunstância que denota, e até certo ponto explica, a

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enorme ineficiência dos grupos de esquerda junto à classe operáriade São Paulo(Weffort, op. cit.).

Já nos primeiros dias de seu governo Jânio Quadros inaugura umestilo inquisitorial na denúncia da "crise moral" identificada coma corrupção e a irresponsabilidade do governo anterior. Seria umanova "caça aos escândalos", à moda da agressiva "Banda de Música"

udenista que atormentara os líderes de Getúlio e Kubitschek noCongresso. Para Jânio a corrupção aparece como "o filhotismo, ocompadrio, o favoritismo sugando a seiva da Nação e obstando ocaminho dos mais capazes. Não haverá ninguém, a começar dos maisaltos escalões administrativos, que possa situar-se fora dasnormas da exação, compostura e integridade que caracterizarão osnegócios públicos nesse qüinqüênio".

E nesse sentido, ao identificar o empreguismo com a base dacorrupção, que Jânio inscreve em seu programa de governo anecessidade de "despolitizar a administração em geral".Despolitizar significava acabar com o sistema de nomeações feitas

por injunções políticas, ou seja, extinguir a principal fonte doclientelismo urbano. E a retórica do sacrifício será sempreinvocada, apoiada nos valores morais com os quais o discursojanista identifica o povo: "um povo generoso, um povo bom, um povoexcepcional, trabalhador e honesto". Daí, os reiterados apelos à"compreensão de todos" ("e não quero nada que eu mesmo não faça!")para a contenção de consumo, de reivindicações salariais, etc.

Assim é que a varredura da corrupção passa a significar ainstrução de dezenas de inquéritos administrativos (em grandemaioria presididos por oficiais militares) que tendiam acomprometer medidas, pessoas ou grupos vinculados ao governo

Kubitschek. Assim ocorreu com as sindicâncias da COFAP (ComissãoFederal de Abastecimento e Preços), no Instituto Brasileiro doCafé, no IBGE, na SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito),no Conselho Nacional de Pesquisas, na SPVEA (Superintendência pelaValorização da Amazônia), Rede Ferroviária Federal, na Cia.Siderúrgica Nacional, na Cia. Vale do Rio Doce, no DepartamentoNacional de Obras contra as Secas, entre outros. Os diversosInstitutos da Previdência Social foram os mais atingidos pelaânsia das delações e devassas. Os relatórios finais, divulgadospela imprensa, chegaram a envolver o nome do vice-presidente(notoriamente comprometido com a política trabalhista e

previdenciária dos governos anteriores), o que provocou umavirtual ruptura entre Goulart e o presidente, o qual lhe devolveuuma carta por julgá-la "descortês". Na maior parte dos casos assérias denúncias aos suspeitos eram publicadas sem se asseguraremos direitos de um processo competente.

O funcionalismo público foi o alvo privilegiado da açãomoralizadora. Entre as principais medidas diretamente inspiradaspelo presidente destacam-se as que maior impacto causaram naopinião pública (intensos noticiários na imprensa) e nos debatesparlamentares: a instituição do horário corrido para o funcionáriofederal, o controle do "ponto" e o corte de 30% nas despesas com

pessoal. Outras medidas altamente criticadas referem-se à reduçãode vencimentos ou de "mordomia" para funcionários em missão noexterior, ao veto ao projeto que dava estabilidade aos empregados

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da NOVACAP (o veto presidencial foi derrubado na Câmara dosDeputados), à criação de um Grupo de Trabalho para investigar oContrabando, etc. (Mário Victor, op. cit.).

Tais medidas, a nível da Presidência, revelavam a continuidadedo moralismo autoritário do governador paulista que marcara suaeficiente administração pelo controle absurdamente minudente sobre

a "moralidade pública": visitas "incertas" a órgãos de atendimentopúblico, fiscalização do uso de carros oficiais nos fins desemana, acompanhamento das provas dos concursos para simplesescriturário, etc. Ainda na Prefeitura de São Paulo tomaria umadrástica medida para "servir de exemplo perante a nação, do que sedevia fazer, doesse a quem doesse, em defesa do patrimôniopúblico". Puniu o atleta Ademar Ferreira da Silva, campeãoolímpico de salto triplo, por se ter afastado do cargo para aprática esportista, justificando-se: "infelizmente era um fun-cionário relapso e a Prefeitura não é clube de atletismo" (Viriatode Castro, O Fenômeno Jânio Quadros).

É evidente que a cruzada moralizadora servia aos interessesideológicos da manipulação janista, visando a reforçar seuprestígio popular ("o povo será a um tempo minha bússola e o meudestino"), mas também ao cálculo político que impunha a derrocadafinal da herança getulista. Isso porque a devassa nos setores daadministração pública minava diretamente o controle clientelísticodos representantes da aliança PSD-PTB. É bem verdade, também, que,apesar da derrota eleitoral em 1960, esta aliança continuavamajoritária nas duas casas do Congresso; pouco a pouco os excessosda "campanha saneadora" passaram a corroer as já frágeispossibilidades de diálogo do presidente com a oposição. Nas pala-

vras de Mário Victor, Jânio Quadros prosseguia a sua ação contraas ratazanas do Tesouro, como as apelidava Rui Barbosa. "Eucontinuarei. Custe o que custar. Nada me deterá. Não olharei nomesnem posições" (op. cit., p. 162).

É interessante considerar, no plano da ideologia, o parentescoentre esse moralismo (falso ou verdadeiro, não importa) e oidealismo decorrente da crença de que os fenômenos políticos sãoregidos prioritariamente por expressões da vontade individual.Trata-se, é claro, de uma visão maniqueísta, apoiada na divisãoentre o "mal" e o "bem" absolutos; e as "forças do mal", paraJânio e os moralistas da UDN, encarnavam-se nas práticas

explícitas e "personificadas" da corrupção no poder público, semjamais questionar as fontes, os interesses econômicos e averdadeira correlação de forças sociais no sistema capitalista quesustentava aquele mesmo poder. Já em sua análise sobre o golpismoe a oposição moralista, que levaram ao suicídio de Getúlio, HélioJaguaribe assinala que "todo esse moralismo manipulado, todo essearsenal de velhas paixões puritanas exercidas por todos os meiosde difusão, não tem outro valor que não seja o de instrumento útilna aglutinação das frustrações da classe média" (Cadernos de NossoTempo, 1955, nº 3). Este moralismo, em última instância, apelarápara a solução golpista como a alternativa radical da

"purificação" e da vitória do "bem".

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ENTRE NACIONALISMO E "ENTREGUISMO",AS PAZES COM O FMI

Um certo fascínio, alimentado por boa dose de publicidade,cercava a fama de Jânio Quadros como o eficiente administrador dasfinanças públicas na Prefeitura e no Governo de São Paulo. Mas apolítica econômica a ser posta em prática na Presidência daRepública permanecia uma incógnita. As propostas do candidatodissolviam-se no discurso geral de defesa da iniciativa privada,prudência quanto ao capital estrangeiro e sobretudo — a grandeatração! — o combate à inflação, o saneamento dos gastos públicose a defesa dos interesses das classes médias "empobrecidas".Nenhum plano foi apresentado. A confiança expressa na campanha"Jânio vem aí" parecia suficiente. Para o setor privado era,talvez, "suficiente" a lembrança do pronunciamento do governadorpaulista, a respeito da polêmica sobre a Petrobrás, de que "oEstado é mau patrão" (esta famosa frase de Jânio seria seguida danão menos famosa frase do General Lott: "a Petrobrás éintocável").

A expectativa em torno do novo governo expressava, também, osinteresses daqueles grupos econômicos que, beneficiados pelaeuforia desenvolvimentista de Kubitschek, temiam, agora, a"explosão social". Defendiam uma "modernização conservadora",através do desenvolvimento com medidas deflacionárias. Logo depoisde empossado, Jânio pronuncia um discurso demolidor sobre "as

irresponsabilidades" do governo precedente, prometendo o maiorrigor para enfrentar a "terrível situação financeira do Brasil",com a herança de uma dívida externa de cerca de dois bilhões dedólares. Sua política econômica apresentava-se, portanto, como aretomada das teses de estabilização, incluindo certas práticaspreconizadas pelo Fundo Monetário Internacional. O que não poderiaser feito sem muita polêmica. E também não pode ser entendido semuma breve alusão à crise que marcou o final do governo Kubitschek.

É em 1959 que Juscelino enfrenta a fase mais difícil do"desenvolvimentismo", pressionado externamente pelo FMI einternamente pelas oposições, que atacavam tanto a inflação quanto

os remédios para contê-la. Entre os fatores inflacionários maisimportantes destacam-se os gastos com o ritmo acelerado doPrograma de Metas e a construção de Brasília, além dos aumentossalariais superiores ao custo de vida, e a política de empréstimosao setor Privado, através do Banco do Brasil. Acrescente-se odeclínio persistente dos preços, em dólares, dos produtos deexportação e a superprodução do café.

O debate econômico no governo JK polariza-se em torno dosistema de taxas de câmbio múltiplas, com a constante pressão dosexportadores. A polêmica estabilização-desenvolvimentismo põe emconfronto a política ortodoxa defendida por Eugênio Gudin, Octavio

Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos (o "Bob Fields", cujo enterrosimbólico seria comemorado pelos estudantes da UNE) e os interes-ses dos grupos que entendiam "o recurso à inflação como

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indispensável para o desenvolvimento".O rompimento de Juscelino com o FMI significava a renúncia ao

Plano de Estabilização Monetária, proposto pelo Ministro LucasLopes, e cujas medidas seriam praticamente as mesmas do governoQuadros: limitação de créditos, controle operacional sobre bancosparticulares, eliminação dos subsídios cambiais, revisão do

salário mínimo, etc. Além de esbarrar nos interesses dosustentáculo político-partidário e social do governo, aestabilização proposta significaria a negação do Programa deMetas, e, acima de tudo, renunciar à construção de Brasília noprazo previsto.

O poder do FMI não deve ser subestimado. De seu aval dependiaa concessão de empréstimos de capitais privados estrangeiros. Emresumo, a tese do FMI apontava a necessidade de "se pôr a casa emordem" como pré-requisito para receber a ajuda financeira. A"ordem" significava taxa de inflação a menos de 10% ao ano, câmbiounificado, abolição de incentivos a cafeicultores e restrição

salarial.Um mês apenas após a posse, um grupo de empresários da CONCLAP

encaminha ao presidente um documento intitulado "Sugestões parauma Política Nacional de Desenvolvimento". Jânio reageagressivamente, como se entendesse sua autoridade solapada porpressões indevidas: "Tenho de aplicar medidas drásticas e ásperas,a fim de conduzir este país à sanidade. São-me indiferentes osaplausos e os apupos (...) Homens poderosos já me procuraram paraexpressar sua insatisfação com o meu governo. Expliquei-lhes quesó há dois meios de tolher os meus passos: depor-me, ouassassinar-me, o que não me parece fácil" (M. Victor, op. cit.). O

impacto negativo foi grande para a comunidade empresarial, assimrefletida em editoriais da imprensa: "Não combina com o cargo e opoder do Presidente da República jogar com palavras ameaçadoras".

Jânio recorria a gestos e retórica de uma austeraindependência, mas a simples escolha de seu Ministro da Fazenda,Clemente Mariani — notório defensor dos interesses do grandecapital, nacional e estrangeiro —, indicaria que certasprovidências sugeridas no memorial da CONCLAP seriam adotadas pelogoverno. A reafirmação da empresa privada (contra a ação doEstado) com franca entrada do capital estrangeiro; incentivo àexportação com "supressão de quaisquer controles", e com regime

cambial favorável; redução de gastos públicos; capitalização daagricultura contra os "extremismos expropriativistas";restabelecimento da livre concorrência no setor de preços ealuguéis; e, finalmente, "ação moralizadora" na Previdência Sociale nos sindicatos contra o "peleguismo dos agentes infiltrados noMinistério do Trabalho".

A medida econômico-financeira mais importante do período foi ainstrução 204 da SUMOC, que pretendia restabelecer a chamada"verdade cambial". Isto é, ficavam extintas as taxas múltiplas decâmbio (com cortes radicais aos subsídios para produtosimportados) e decretava-se a desvalorização do cruzeiro em 100%.

Os dispositivos da 204 — cujo objetivo essencial era diminuir ainflação e corresponder à "ordem" esperada do FMI —, além doevidente reforço às finanças do governo, favoreciam os interesses

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da burguesia agrário-exportadora e dos investidores estrangeiros.Mas teriam efeitos devastadores para a grande maioria dapopulação: aumento no preço dos gêneros de primeira necessidade(pelo corte aos subsídios ao trigo), nos transportes (corte aossubsídios a óleo e combustíveis), além de medidas que incidiriamsobre o congelamento parcial dos salários.

"A elevação do câmbio de custo de Cr$ 100,00 para Cr$ 200,00,pela instrução 204, encarece os custos de produção da indústria,uma vez que diversas matérias-primas e equipamentos eramadquiridos no exterior por câmbio favorecido. As indústrias insta-ladas nas áreas subdesenvolvidas são ainda duplamenteprejudicadas, por dependerem de suprimentos oriundos do exteriorou do parque manufatureiro do Centro-Sul. A cláusula V dainstrução parece destinada a proteger certas empresasestrangeiras, pois assegura não lhes será aplicada a majoração docusto do câmbio, senão quando reajustarem as suas tarifas; emoutras palavras, senão quando transferirem para o consumidor os

ônus da providência" (Guerreiro Ramos, op. cit.).O Jornal do Brasil assim condenava o aspecto drástico da

instrução: "De 1958 a 1959 o reajustamento do custo de câmbio de50 a 100 cruzeiros foi realizado em três etapas e, ainda assim,ocasionou um impacto de 50% no custo de vida. Sua Exa. cobra aopresente um preço que não só está muito acima das possibilidadesimediatas do responsável final, que é o povo, como discutíveltambém seria admitir a justeza da cobrança que se exige de uma sóvez" (Mário Victor, op. cit.). Aos que atacavam a medida, Jâniolembrava que prometera mesmo um governo "duro, duríssimo", paracombater o "ciclo de insânias" precedente, e acrescentava: "e há

ainda quem fala na 204, merecendo ser posto sobre os joelhos, terdeterminada parte mais carnuda que Deus todo-poderoso fez, muito apropósito mais descoberta, para receber vigorosas palmadas"(Jornal do Brasil, 5/4/61).

E, aos nacionalistas que apontavam o golpe da 204 contra aPetrobrás, respondia Jânio: "Encontrei a Petrobrás de joelhos, oude rastros, sobre a barriga, pedindo um bilhão de cruzeiros aoBanco do Brasil. Quebrada, falida. E eu, que fui acusado deentreguista, sou quem a sustenta, quem a defende... Hoje, com a204, deve ser feliz possuidora de alguns bilhões, pagos pelo nossopovo" (idem). Afinal, era ele ou o "povo" que sustentava a

Petrobrás com a 204? O Ministro de Minas e Energia, João Agripino,era contra a medida, pois "a verdade cambial num país como oBrasil, em que a legislação favorece lucros fabulosos, podesignificar o maior enriquecimento de poucos à custa do sacrifíciodo restante da população". "A reforma cambial só se justificariase viesse realmente associada às outras reformas prometidas: a leiantitruste, a reforma do imposto de renda, a reforma bancária, ade remessa de lucros para o exterior e a de lucros extraordinários(...) Sem essa legislação, a verdade cambial significa umapolítica de formação de capitais que muito interessou aos gruposeconômicos do Brasil. Tanto que as classes produtoras e a imprensa

tida de direita a louvou, aplaudiu e defendeu" (depoimento a O Cruzeiro, 16/11/61).

Apesar das polêmicas internas e da impopularidade das medidas,

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o objetivo principal foi atingido: a apresentação de um perfil"saudável" ao FMI, na mira de novos empréstimos e renegociação dadívida externa. Os embaixadores Walter Moreira Salles, nos EstadosUnidos, e Roberto Campos, na França, conseguiram vender a imagemda "estabilização ortodoxa" (imagem seriamente abalada desde orompimento de Juscelino com o FMI) e contratar um empréstimo de 2

milhões de dólares.Outra polêmica importante refere-se aos projetos da LeiAntitruste e da Lei sobre a Remessa de Lucros. O governo dividia-se em duas correntes: a nacionalista, liderada pelo Ministro JoãoAgripino, e a "entreguista", do Ministro Clemente Mariani (éinteressante lembrar que ambos eram udenistas e que o nacionalismonunca foi levado a sério na UDN pois, entre outras coisas, eramuito identificado com posições "getulistas"). Pela Lei Antitrusteseriam considerados abusos do poder econômico "embaraçar a criaçãoou funcionamento de empresas ou monopolizar certa atividade, ouestabelecer a exclusividade de determinada produção, ou

distribuição de mercadorias, com o objetivo de controlar o mercadointerno". E assim prejudicaria os interesses de muitas empresasestrangeiras (M. Victor, op. cit.).

O projeto defendido por João Agripino (elaborado pelosdeputados Oliveira Brito e Daniel Faraco) previa a intervenção nasempresas somente por solicitação do Poder Judiciário e sob seucontrole. Intervenção que existia no projeto Agamenon Magalhães(apresentado em 1948, baseado na famosa "Lei Malaia", tãocombatida pelos adversários de Getulio em 1945) e no substitutivoAdaucto Cardoso, que tramitava na Câmara. O projeto, no entanto, éredefinido na conceituação de delitos e sanções e substitui o

órgão autônomo pela CADEC (Comissão Administrativa de DefesaEconômica), constituída na base de representações de Ministérios;o novo órgão, sem nenhuma estabilidade, terminaria por agir sempreem função do poder dominante — ou para proteger ou para destruiras empresas (João Agripino, op. cit.).

A Lei Antitruste seria aprovada no governo João Goulart emsetembro de 1962, no gabinete parlamentarista de Brochado daRocha.

Quanto ao projeto de lei regulamentando a remessa de lucrospara o exterior, a divisão no governo era mais radical. A propostade João Agripino (elaborada pelo professor mineiro Darcy Bessone)

fixava em 10% da moeda de origem a remessa como remuneração decapital e que os lucros restantes, reinvestidos, fossemconsiderados capital nacional, decorrente de fatores internos. Oprojeto denunciava, também, a vinda de capital estrangeiro paraatividades secundárias ou competitivas desigualmente com nossocapital. O Ministro da Fazenda defendia uma linha políticadiferente, que significava tributar fortemente a remessa de lucrose liberar o reinvestimento. Tal política significaria, a longoprazo, o fortalecimento de poderosos grupos estrangeiros no país."Pelo projeto Mariani, o capital estrangeiro ingressa livremente,retorna livremente, se estabelece na atividade que lhe convier,

remete os lucros sujeito apenas à tributação" (João Agripino, op.cit.).

No governo Goulart a linha nacionalista predomina e resulta na

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lei aprovada em setembro de 1962. No entanto, em agosto de 1964,em pleno governo "revolucionário" do General Castello Branco, aproposta "entreguista" de Mariani é vitoriosa na nova Lei deRemessa de Lucros, inaugurando-se uma política frente ao capitalestrangeiro definida por Aliomar Baleeiro como a "portaescancarada".

A posição de Jânio, na questão, era também marcada pelaconcepção moralista. Em maio de 1960, ao receber um grupo desindicalistas que apoiavam sua candidatura, declarava-se a favorde uma lei de remessa de lucros, porém "prudente para não assustaros capitais estrangeiros, e firme para não encorajar o capitalestrangeiro desonesto" (M. Victor, op. cit.).

Além da própria complexidade das questões envolvidas, uma dasprincipais razões para o desencontro das políticas econômicas dogoverno era a total indiferença de Jânio pelas virtudes do plane-jamento. Seu personalismo extremado, aliado a um certoprovincianismo de quem ainda raciocina em termos de Prefeitura e

Governo Estadual, favorecia a situação de isolamento em quepassara a governar, estranho aos complexos meandros da "máquinafederal". Nunca trabalhou seriamente em conjunto com os membrosdos ministérios — preferia multiplicar os bilhetinhos — e nãoconseguiu consolidar equipes de assessoria técnica, ou grupo detrabalho, como seu antecessor. Em suas campanhas, desde a CâmaraMunicipal paulista, o poder público, a burocracia emperrada,sempre fora o alvo principal dos ataques e denúncias. NaPresidência, via-se despreparado para enfrentar a questão comeficácia.

O Conselho de Desenvolvimento, do governo JK, foi substituído

por uma Comissão Nacional de Planejamento (COPLAN), que não chegousequer a estudar os primeiros projetos de um novo planoqüinqüenal, pois foi nomeada às vésperas da renúncia. UmaAssessoria Técnica, solicitada a apresentar um programa preliminarde planejamento, seria inteiramente esvaziada pela ausência dequalquer diretriz do Poder Executivo. A linha administrativa dogoverno nunca foi definida. Conta o Ministro João Agripino queJânio lhe confessara que, "se fosse esperar estudos para tomardecisões, nada decidiria; ao passo que, decidindo de qualquerforma, se a solução fosse errada, dentro de pouco tempo seuMinistro teria estudos para convencê-lo do erro".

Esta ação empírica, isolada, assistemática, impetuosa, sem umavisão global das medidas, contribuiria não apenas para umaparalisia administrativa (frente às crises e ao acúmulo dedemandas) como também para aguçar a instabilidade emocional dopresidente.

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EM POLÍTICA EXTERNAO BRASIL NÃO É MAIS SATÉLITE

"O Brasil está fadado a ser, por tempo indefinido, um satélitedos Estados Unidos." Esta declaração do jurista Raul Fernandes,então Ministro das Relações Exteriores, dá o tom da diplomaciabrasileira na década de cinqüenta. E a recusa dessa estranha noçãode soberania explicaria o sucesso da política externa do governoQuadros junto aos setores nacionalistas e de esquerda. Assim comoexplicaria, no outro lado, a carga de pressões dos grupospolíticos e econômicos mais conservadores. Pois a mudança natradicional "satelização" significava não apenas reformular oalinhamento incondicional com os Estados Unidos em questõesinternacionais, como também admitir que havia áreas de atritoentre interesses brasileiros e norte-americanos. Significava,igualmente, a defesa de uma posição "independente" entre as duasgrandes potências mundiais, e uma tentativa de aproximação com ochamado Terceiro Mundo. Tudo isso não poderia se dar impunemente,num governo marcado por tantas contradições na área econômica eapoiado por forças políticas antagônicas.

O ponto alto da plataforma janista na campanha de 1960 era aproposta de abertura na política externa, sobretudo em relação aospaíses socialistas: "no meu governo tudo se fará, abrindo asportas do comércio para o mundo, sem distinção de credo políticoou ideológico". Era esta, sem dúvida, a fonte de perplexidades

para os articuladores das candidaturas Lott e Jânio, obrigando-osa um jogo ambíguo entre posições de "esquerda" e de "direita"(lembre-se que, ainda como candidato, Jânio visitara Cuba aconvite de Fidel Castro, convite recusado por Lott).

Em linhas gerais, o programa da política externa independenteincluía os seguintes pontos:

 — estabelecimento ou fortalecimento de vínculos comerciais ediplomáticos com os países socialistas, sobretudo a UniãoSoviética; — estabelecimento de relações cordiais com Cuba, e uma posição

de apoio à autodeterminação do povo cubano; — redefinição do apoio tradicional à política salazaristaquanto às "províncias ultramarinas" (Goa, Damão, Timor eMacau, na Ásia, e Guiné, Angola e Moçambique, na África); — solidariedade aos movimentos de emancipação do TerceiroMundo, incluindo a soberania da Argélia e o movimento dePatrice Lumumba.

Conseqüências diretas dessas posições resultariam na aberturade novas embaixadas (Senegal, Gana, Nigéria, Etiópia, CongoKinshasa) e na perspectiva de o Brasil apoiar a discussão sobre o

ingresso da China na ONU. Quanto à América Latina, tratava-se demanter os princípios da OPA (Operação Pan-Americana, inaugurada nogoverno JK) e fortalecer os laços com os países da ALALC (Asso-

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ciação Latino-Americana de Livre Comércio). Tratava-se, emespecial, de firmar um acordo privilegiado com a Argentina paraenfrentar a hegemonia norte-americana no continente (lembre-se quedata do início do governo Quadros o lançamento dos planos da"Aliança para o Progresso" pelo presidente Kennedy).

"Ao lado das forças progressistas da História", no dizer do

chanceler Afonso Arinos, a política independente do Brasilsignificava, ao invés da propalada "comunização", o respeitointegral aos princípios do Direito Internacional Americano: nãointervenção; autodeterminação; solidariedade coletiva;antitotalitarismo em geral e anticomunismo em particular. Tratava-se, enfim, de manter o equilíbrio entre a luta pelaautodeterminação dos povos e a luta contra a infiltração docomunismo internacional na América" (Planalto).

Tais ressalvas do liberal udenista não seriam suficientes paraenfrentar a oposição reacionária e, principalmente, entrosar umapolítica externa independente com um governo conservador. Assim é

que a política externa tomar-se-ia o alvo privilegiado dos ataquesdos setores mais reacionários das Forças Armadas, da Igreja, dasFinanças e dos partidos políticos. Como depõe Afonso Arinos, oirredutível reacionarismo da UDN, com sua visão belle époque dadiplomacia, reivindicava a volta "às normas do Itamarati", desermos instrumentos de decisões alheias.

A política externa transforma-se, ainda, no principal elementomobilizador do "novo golpismo", pelo qual Carlos Lacerda eseguidores (com amplo apoio em seu jornal Tribuna da Imprensa e emO Globo e O Estado de S. Paulo) tentariam acirrar o anticomunismovisceral dos militares, as suspeitas dos católicos e o temor das

classes médias. Estavam em questão, evidentemente, os interesseseconômicos do capital associado, da grande imprensa, da influentecomunidade de portugueses no Rio e em São Paulo, que não poderiamaceitar, entre outras, a política anticolonialista na África e aagressiva independência em relação aos Estados Unidos.

As medidas concretas para a "abertura" iniciaram-se com asmissões especiais, incumbidas de ampliar ou planejar o intercâmbioeconômico com os países socialistas. A Missão chefiada pelojornalista João Dantas (que acompanhara Jânio em sua viagem àUnião Soviética em 1959) visitou, de abril a junho, os seguintespaíses: Albânia, Bulgária, Romênia, Iugoslávia e Hungria, onde

foram firmados acordos bilaterais de comércio e pagamento. AMissão Leão de Moura destinou-se à União Soviética e, finalmente,a Missão chefiada pelo vice-presidente João Goulart, para a China,seria interrompida com a renúncia de Jânio. É importante assinalarque desde o governo Vargas vigoravam acordos comerciais com paísesdo Leste europeu, reforçados e ampliados no governo Kubitschek. Ainovação dar-se-ia, com Jânio, na ênfase à ampliação dointercâmbio e na proposta de reatamento de relações diplomáticas,assim como na inclusão da China no roteiro.

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Importa assinalar, também, que, ao mesmo tempo que seguia parao Leste a Missão Dantas, o embaixador Roberto Campos percorria ospaíses do "Oeste Europeu" (Clube de Haia) e o embaixador WalterMoreira Salles os Estados Unidos, para negociar as dívidas elevantar novos empréstimos. E, também, é claro, tranqüilizar os

tradicionais aliados quanto à permanência do Brasil no blocoocidental capitalista cristão. A imprensa divulgaria com grandedestaque os resultados dessas duas missões, em termos das "boasintenções" dos americanos e dos europeus. Lembre-se que tais"bondades" foram feitas justamente após a fracassada tentativa deinvasão americana em Cuba.

A maior dificuldade encontrada pela Missão Dantas se refereaos problemas diplomáticos provocados pela aproximação do Brasilcom a República Democrática Alemã. Para os alemães ocidentaisqualquer acordo, de governo a governo, representaria uminadmissível reconhecimento da Alemanha da "cortina de ferro". O

acordo comercial sairia, portanto, "sem nível governamental",resolvendo-se, no plano externo, o incidente diplomático. No planointerno a crise culmina com a demissão do Secretário-geral doItamarati, Vasco Leitão da Cunha, que, motivado por informaçõesalarmantes de Roberto Campos, desautorizara a Missão Dantas juntoao governo de Pankov.

A invasão de Cuba patrocinada por grupos econômicos emilitares norte-americanos, e com ampla cobertura do presidenteJohn Kennedy, agravaria a polêmica sobre os rumos "comunizantes"da política externa. A posição brasileira contra a invasão, e afavor da autodeterminação do povo cubano, seria violentamente

atacada por Carlos Lacerda e demais setores da direita organizada.Em entrevista à televisão americana, Lacerda declarou-seenfaticamente favorável à intervenção militar em Cuba. Natelevisão brasileira diria: "No momento o Brasil apóia uma dasmais sanguinárias, uma das mais torpes, uma das mais sujasditaduras do mundo, pois, no momento, é a nação que fortifica atirania de Fidel Castro no continente". O Embaixador americanoJohn Moors Cabot acrescentaria que o Brasil estava "comprometido"com Cuba, o que desapontava os Estados Unidos. O jornal O Estadode S. Paulo sintetizava a polêmica: "O Sr. Jânio Quadros decidiuimprimir à rota de seu governo uma guinada para a esquerda" (Mário

Victor, op. cit.).Toda medida entendida como essa "guinada para a esquerda"

repercutia na imprensa norte-americana, para a qual "o colosso doNorte" (expressão local deles) não se conformaria com o desvio deórbita de um de seus mais fiéis e importantes satélites.

Um exemplo é elucidativo. O Itamarati anuncia que votaria, naONU, a favor da discussão da entrada da China; não se tratava deapoiar a entrada, mas simplesmente de admitir a discussão damatéria em Assembléia. Jornalistas americanos consideraram aposição brasileira "uma bofetada direta nos Estados Unidos" (A.Arinos, Planalto).

Outra medida de intensa repercussão nacional foi a divulgaçãodas providências tomadas pelo governo para o restabelecimento dasrelações diplomáticas com a União Soviética. A Cruzada Brasileira

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Anticomunista pichou muros, a grande imprensa acompanhou avirulência lacerdista e associações de classe, como a CONCLAP,vieram a público manifestar seu desacordo. Pelas palavras dodeputado pedecista, Monsenhor Arruda Câmara, expressava-se a"maioria silenciosa" dos católicos tradicionais, "apontando oinconveniente de se criar esta cabeça de ponte, este ninho de

serpentes dentro do Brasil". A defesa de Afonso Arinos — além deinvocar o exemplo de Roma, com sua embaixada soviética — baseava-se nos critérios obrigatórios do intercâmbio econômico, poistratava-se de "vencer a etapa dos mercados tradicionais, cujasaturação na absorção dos nossos produtos é evidente" (MárioVictor, op. cit.). As relações diplomáticas com a União Soviética,no entanto, só seriam restabelecidas no governo Goulart.

Os interesses econômicos que sustentavam a política externaindependente seriam sempre, aliás, enfatizados pelo presidenteQuadros. Se, por um lado, ele insiste no "dever de formar umafrente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as

formas de opressão", reafirma, por outro, que "a rejeição docolonialismo não implica numa solidariedade platônica, masconsoante os interesses nacionais (...) A exploração dos africanospelo capital europeu é prejudicial à economia brasileira (...) Aidéia por trás da política externa do Brasil tornara-se agora oinstrumento para uma política de desenvolvimento nacional" (Jornaldo Brasil, 27/9/61). E, finalmente, concluía Jânio que "osinteresses materiais não conhecem doutrina".

Essas declarações são significativas. Pois já se tornou lugarcomum apontar, como principal causa para o malogro do governoQuadros, o acúmulo de tensões divergentes, provocadas pela defesa

simultânea de uma política externa progressista e uma políticainterna conservadora. Se a afirmação contém sua dose de verdade — aliás confirmada pelos fatos e pela confissão de "esmagamento" dopresidente renunciante —, é preciso adiantar a análise levando emconta argumentos da "lógica de interesses", entre o progressismopara fora e o conservadorismo para dentro... Não estão em causa, éclaro, a sinceridade dos formuladores da nova diplomacia; nãoimporta, igualmente, o grau de lealdade com que Jânio tratou osnovos parceiros. O que deve ser questionado é, exatamente, oaparente paradoxo. Até que ponto não haveria razões objetivas parajustificar uma agressividade diplomática justamente em nome dos

interesses de uma política econômica conservadora?O sociólogo Octavio Ianni entende a abertura para o Leste como

uma política de resultados políticos e econômicos de amploalcance. Politicamente o Brasil escapava à chantagem da "guerrafria" ao mesmo tempo em que reduzia sua dependência frente aosEstados Unidos, abandonando a "diplomacia subsidiária", e seaproximando do Terceiro Mundo. No plano econômico era uma saídasatisfatória para o tipo de industrialização vigente, resultado dodesenvolvimento acelerado do qüinqüênio precedente, que levara àalta taxa de capacidade ociosa.

Já para Brás Araújo, a política externa independente não

apenas expõe, de maneira clara, as contradições do sistemapolítico marcado pelas regras do capitalismo dependente, como seinsere numa lógica própria. Ou seja, a exigência de novos mercados

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explica a ofensiva diplomática assim como as "representaçõesideológicas" para justificar a conquista desses novos mercados. Asnecessidades objetivas do capitalismo brasileiro não dependeriamnem da "vontade" de um Executivo forte, nem mesmo de um "bloco nopoder". A dependência do sistema, no entanto, provocaria a contra-ofensiva, também lógica, do imperialismo americano e europeu

(sobretudo alemão) e de seus aliados internos, tanto na burguesiaindustrial quanto na latifundiária.Carlos Estevam Martins acrescenta um outro aspecto: o peculiar

tipo de nacionalismo janista, como principal instrumento deredefinição do processo de desenvolvimento brasileiro. A pressãolivremente exercida pelos capitais e pelas autoridades brasileirasera considerada como principal obstáculo à expansão do capitalismobrasileiro; tratava-se, portanto, de recorrer à tática queconsistia em explorar os temores suscitados nos Estados Unidosquanto à "sovietização" da América Latina. "Vendo-se forçado aatender às exigências do FMI e estando convencido, por causa da

crise cubana, de que Washington só se dispõe a atitudesbenevolentes quando confrontado com um clima de urgênciainternacional, Quadros passou a lançar mão do que havia a seualcance para criar apreensão e alarme a respeito dos rumos de seugoverno e assim fortalecer seu poder de barganha nas mesas denegociação. Tratava-se de elevar o Brasil ao status de aliadoprivilegiado, de garantir a ajuda norte-americana em condiçõestais que o processo de acumulação pudesse prosseguir com o mínimode prejuízo para o capital nacional e o máximo de entusiasmopopular" (Cadernos CEBRAP , nº9, 1972).

É nesse sentido que não se pode aceitar que a abertura para os

países socialistas e o apoio às lutas anticolonialistas conferiaao governo Quadros uma visão de esquerda. A ambigüidade de Jânioem relação às esquerdas sempre foi dosada pelo mais visíveloportunismo. Em momento algum demonstrou qualquer compreensão, porexemplo, pela legalização do Partido Comunista; "os comunistas sãoirrecuperáveis para a democracia", dizia. Ao contrário, suaaproximação com as esquerdas era feita justamente através decontatos com lideranças marginais à organização. Essa política deaproximação fragmentada tinha a grande vantagem de conseguir divi-dendos externos, sem se comprometer com a "subversão" interna.

A análise de Carlos Estevam é ainda esclarecedora. "Para evitar

o alijamento prematuro de suas bases conservadores, e, ao mesmotempo, tornar-se palatável para o gosto americano, o janismo tempe-rou seu radicalismo externo com uma importante concessão à direita:o escalonamento de graus de independência da política exterior(...) O governo manter-se-ia aquém da fronteira que separa a posi-ção independente — avessa às imposições políticas ou ideológicasque limitam as relações comerciais e diplomáticas com outros países — da posição neutra, que se recusa a honrar os compromissosinternacionais relacionados com a defesa do bloco ocidental, e docontinente, em particular, face à ameaça da agressão comunista.Concretamente, essa orientação manifestou-se na recusa oficial ao

convite para participar da reunião dos neutros em Belgrado" (op.cit.).

Esse equilíbrio entre "independência" e "neutralidade" (Afonso

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Arinos insistia na diferença entre neutralismo e neutralidade)sugere as ambigüidades da posição brasileira. Embora condenando ainvasão de Cuba, por exemplo, a delegação brasileira na ONUtermina por se abster de votar a proposta mexicana — apoiada porCuba — e acompanha os Estados Unidos na resolução final, vaga einócua, que apenas recomendava aos Estados-Membros procurar

intervir com "medidas pacíficas". A nota do Itamarati, aliás, eramuito clara na condenação implícita aos "rumos socialistas" darevolução cubana, pois insistia que "a não intervenção opõe-se atoda dominação econômica ou ideológica" e defendia a democraciarepresentativa.

E, apesar dos princípios do anticolonialismo, o Brasil abstém-se de votar a favor de Angola (e contra Portugal) nas sessões daONU de março-abril de 1961. O embaixador brasileiro chegou a tecerelogios públicos "à obra portuguesa em Angola". E o governobrasileiro não veria inconveniente em reforçar suas relações com aÁfrica do Sul (Brás Araújo).

Apesar das ambigüidades e contradições, mescladas a um certooportunismo, a política externa janista tornou-se o principalelemento precipitador da ruptura irreversível entre as forças, jácontraditórias, que compunham o governo. Se a esquerda apóia aluta antiimperialista e a aproximação com os países socialistas(na crença implícita de uma "revolução pelo alto"), a direitapassa a temer com mais vigor a ameaça do comunismo internacional.Os dois grandes partidos nacionais, PSD e UDN, mantêm-se divi-didos, restando o apoio unânime da ala mais avançada do PTB e seusaliados comunistas.

A condecoração de Ernesto "Che" Guevara, de passagem pelo

Brasil vindo da Conferência de Punta del Leste (onde desmascara aAliança para o Progresso), foi a chamada gota d'água. O Ministrode Economia de Cuba é condecorado por Jânio Quadros com a Grã-Cruzda Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul a 18 de agosto. A repercussãonos meios militares e na imprensa foi a mais intensa destegoverno. No episódio, Jânio revelaria não apenas oportunismo (nocaso, mal conduzido), como os traços de seu conhecido estilopersonalista e autoritário. Não consultou seu Ministro dasRelações Exteriores nem os ministros militares e membros doConselho da Ordem. Cortejou as esquerdas com um presente de gregoe comprou, sem necessidade e sem "lucros", um casus belli com a

Igreja, os militares (alguns devolveram sua condecoração) e ossetores mais conservadores do país, orquestrados na campanhaliderada por Carlos Lacerda. Este, em resposta imediata ao atopresidencial, condecora no Palácio das Laranjeiras um políticocubano em viagem de propaganda anticastrista.

A condecoração a Guevara não fez avançar a posiçãoprogressista dos grupos políticos já solidários com a revoluçãocubana. Pelo contrário, o efeito devastador causado pela cerimôniafoi negativo para as esquerdas brasileiras. Tratava-se, então, dejustificar o ato do presidente, desvesti-lo do aspecto de "provo-cação", defendê-lo perante a opinião pública manipulada pela

grande imprensa em sua quase unanimidade. Isso significava, alémdo óbvio desgaste, um desvio da verdadeira luta peloreconhecimento dos rumos do socialismo cubano. No final das contas

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o país nada ganhou com a bravata de seu presidente — e o movimentopor uma política externa independente, coerente e responsável,saiu desgastado.

Uma semana após a polêmica condecoração, Jânio Quadrosrenunciava à Presidência da República.

A RENÚNCIA

"Ninguém perturbará a ordem deste país comigo vivo. Ninguém! Eeu não aconselharia, quem quer que seja, a tentá-lo" (25 de marçode 1961). "Fui vencido pela reação e, assim, deixo o governo (...)Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mime me intrigam ou me infamam, até com a desculpa da colaboração. Sepermanecesse não manteria a confiança e a tranqüilidade, oraquebradas, indispensáveis ao exercício da minha autoridade. Creio,mesmo, que não manteria a própria paz pública" (25 de agosto de

1961).Cinco meses apenas separam as duas declarações, expressivas do

início e do fim desse breve governo marcado pelas contradições eambigüidades. Ambigüidades tanto decorrentes da personalidade dopresidente, quanto das expectativas e posições, reciprocamentecontraditórias, dos diversos grupos sociais que o apoiavam (HélioJaguaribe). E que teriam efeitos deletérios para o desenvolvimentodo sistema democrático no país. Por quê? Até que ponto é corretoimputar a um governante tão pesada carga de responsabilidade porum sinistro futuro?

É claro que um homem não faz sozinho a história. Mas é

impossível negar a responsabilidade do presidente, num sistemapresidencialista, e sobretudo daquele presidente que quis governar"acima dos partidos" e com forte apoio nos militares. Como édifícil esquecer que, pela primeira vez na República de 1946, umpresidente civil recebera a faixa presidencial de outro civil, noprazo marcado pela Constituição. O que inspirava grandesesperanças quanto à consolidação do regime democrático. Mas opersonalismo autoritário de Jânio, o bonapartismo, o moralismo quedesemboca no golpismo — temas da discussão nas páginas precedentes — contribuiriam, de maneira inequívoca, para a crise que "seresolve" em 1964.

Em primeiro lugar, pela consolidação da intervenção militar nacena política, graças ao papel privilegiado concedido aosmilitares, em detrimento das forças civis. Em segundo lugar, pelaexacerbação da extrema-direita organizada, que se mobiliza sobre-tudo pelos aspectos contraditórios da "política externaindependente". Em terceiro lugar, pela conseqüente radicalização,no outro extremo, dos setores populares e de esquerda. Estes,profundamente lesados pelo não cumprimento das promessas de efe-tivas transformações sociais, sobrecarregariam o governo Goulartde demandas insustentáveis num sistema político ainda dominadopelos interesses das oligarquias, das elites financeiras e docapitalismo internacional, afinal não atingidos pelos raios puni-tivos do moralismo janista.

Cabe lembrar, igualmente, a responsabilidade da UDN e de seu

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ambíguo liberalismo, ao permitir a ascensão de Carlos Lacerda, quese torna, para a opinião pública, o líder nacional do partido.Revigorava-se, assim, o golpismo, fugazmente amortecido na segundametade do governo Kubitschek pela expectativa de vitória naseleições com Jânio. O novo golpismo, desta vez ideologicamenteapoiado no anticomunismo e no antinacionalismo — e não mais no

antigetulismo — dirigia-se contra supostas disposições golpistasdo presidente, na reedição dos "contragolpes preventivos".Significava, também, o nítido distanciamento entre a ala radicalda UDN carioca e o udenismo dos "históricos" (Milton Campos,Afonso Arinos, Adaucto Lúcio Cardoso, entre outros). Significava,acima de tudo, que a nova frustração com uma falsa vitória (osudenistas reclamavam da marginalização política imposta por Jânio)não seria absorvida pela retórica dos bacharéis. E assim como aUDN aceitaria, até com certo alívio, a renúncia de Jânio,aceitaria também o regime militar instalado após a deposição dopresidente João Goulart (M. V. Benevides, op. cit.).

Carlos Lacerda seria o avesso do autoritarismo janista. E oavesso de seu golpismo. Pois ao golpe de Jânio responderia o golpede Lacerda, ou vice-versa, clamando, ambos, por um certo tipo deintervenção militar (H. Jaguaribe).

Os fatos imediatamente precedentes à renúncia têm, comoprotagonista, justamente o governador da Guanabara. O pano defundo compõe-se do clima de denúncias sobre a "comunização" doItamarati e, sobretudo, pelo profundo ressentimento de Lacerda — que não era considerado, como o desejava, "o parceiroprivilegiado" do governo federal. Num primeiro momento trata-se dofamoso "caso da mala". Lacerda sente-se insultado pelo fato de sua

bagagem ter sido colocada na portaria do palácio da Alvorada, ondeesperava hospedagem "oficial". Num segundo momento, Lacerda (e nãopor acaso a 24 de agosto) pronuncia um violento discurso natelevisão acusando o presidente de intenções golpistas. Declarater sido duas vezes convidado pelo Ministro da Justiça, OscarPedroso Horta, para participar do golpe (lembre-se que esta erauma atitude comum a Lacerda; entre outras coisas, denunciara oconvite para participar do levante de Aragarças, em fins de 1959,por seus próprios aliados, oficiais da Aeronáutica).

As denúncias de Lacerda causam um grande impacto e a Câmarados Deputados solicita o comparecimento do Ministro da Justiça. No

dia seguinte, após presidir as solenidades do Dia do Soldado,Jânio envia ao Congresso documento apresentando sua renúncia àpresidência da República.

Aparentemente Jânio esperava voltar "nos braços do povo".Confiava demais na "ignorância das massas" e naquilo que MaxScheller chama "democracia das emoções". Confiava no temor dosmilitares e da direita em geral com a "ameaça" da posse de JoãoGoulart (pois era o herdeiro de Getúlio, de memória associada atemíveis pactos "comunistas" ou "sindicalistas"...). Confiava,também, no temor da esquerda com a possível instalação de umajunta militar no governo, se declarado acéfalo, pois o vice-

presidente encontrava-se em missão oficial na China. E assim,contando otimisticamente com a repercussão na opinião pública(afinal, eram seis milhões de votos!), entre os militares, na

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direita e na esquerda, imaginava, talvez, o ressurgimento de umnovo "queremismo". Um "queremos Jânio" (num pastiche ao queremismogetulista que garantira a volta de Vargas em 1950) que lhe dariarespaldo para reassumir a Presidência com poderes discricionários.Talvez sonhasse mais longe, do exemplo de Getúlio para a históriade De Gaulle.

As intenções do presidente ficariam mais claras com odepoimento de seu secretário de imprensa, Carlos Castello Branco,que lhe atribui as seguintes declarações, ainda na Base Aérea deCumbica, onde se refugiara após a renúncia: "Não farei nada paravoltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de trêsmeses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pelareimplantação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa detrês coisas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e ra-pidez nas decisões. Atrás de mim não fica ninguém, mas ninguém,que reúna esses três requisitos" (Realidade, nov., 1967).

Não houve a esperada comoção popular. Não havia, aliás, nenhum

"dispositivo sindical" — como ocorreria para a posse de Goulart — que pudesse ser mobilizado para neutralizar a renúncia. Jânioincompatibilizara-se com o movimento sindical pela própriapolítica de "despolitizar" o Ministério do Trabalho e aPrevidência Social.

A maioria no Congresso, representada pela aliança PSD-PTB,prontamente aceitou a renúncia. O presidente da Câmara, RanieriMazzili, assume a Presidência, interinamente, e a questão dainvestidura de Goulart passa a dominar o cenário político, numagravíssima conjuntura conspiratória e golpista, a partir domomento em que os ministros militares deixaram clara sua oposição

à posse do vice-presidente. Pela ação legalista liderada pelogovernador gaúcho Leonel Brizola e pelo comando do III Exército,com apoio de amplos setores sociais e políticos, o golpe é evitadoe o parlamentarismo é adotado como solução de compromisso. JoãoGoulart assume a chefia do governo a sete de setembro, iniciandouma breve experiência parlamentarista. Seu governo, marcado porinúmeras crises, porém polarizador da mais intensa mobilizaçãosocial e política da história brasileira contemporânea,contribuiria para acuar a direita em posições cada vez mais gol-pistas e reacionárias.

Se a argumentação que atesta a tentativa de golpe de Jânio tem

sérios respaldos — inclusive pelas suas declarações posteriores — é preciso levar em conta, igualmente, o clima altamente"golpista", alimentado por Lacerda e seguidores. Seria possívelfalar, talvez, de dois golpes em marcha; o de Jânio, pela volta aogoverno com poderes especiais, e o de Lacerda, que certamenteainda acalentava o "estado de exceção" defendido abertamente desdeos tempos de Getúlio Vargas. Seria um golpe da direita militar, amesma que tentaria, em vão, impedir a investidura constitucionaldo vice Goulart. Nesse sentido, o golpe gorado de 1961, paraLacerda ou para Jânio, fora um ensaio de 64.

* * *

Do ponto de vista do desempenho de Jânio, retoma-se o tema da

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campanha contra a corrupção. Parece evidente que há muito maisoportunismo (e nenhuma ingenuidade) neste estilo que pretende fa-zer crer na força intrínseca da austeridade e da honestidade paraimpulsionar o desenvolvimento e consolidar a justiça social. Emmomento algum entram em causa o questionamento do regimecapitalista, as relações de forças, o problema das classes, enfim.

Aliás, o janismo nunca foi um movimento para organizar as massas,mas para manipulá-las, no pior sentido do populismo autoritário e,justamente, desmobilizador no plano da verdadeira participação.

Convém lembrar, ainda, que a vassoura não era o símboloinocente que sua inspiração doméstica pode insinuar. Mesmoapelando para as imagens mais tolas, a vassoura tanto pode servirpara varrer, como para, na superstição popular, afastar visitantesindesejáveis. Na discussão sobre o moralismo janista já se disseque a varredura implicava em diversas versões de "sujeira". Quepodia ser a "sujeira da corrupção", como também a da "plebe" quequer se mostrar — em toda sua "sujeira" — participar, rei-

vindicar... "sujar o palco", enfim (Souza e Lamounier, op. cit.).

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O mais importante é entender que o império da vassourapreparou o caminho para o domínio da espada. A políticaautoritária e mesquinha, inspirada na máxima "governar é punir",transformara o país num imenso quartel de inquisição. O incentivoàs delações, o aplauso às "apurações rigorosas" (em muitos casos

sem direito aos processos competentes de defesa) nas numerosascomissões de sindicâncias, com a responsabilidade centralizada nasmãos dos militares, abriria o caminho para a instalação do esquemaburocrático-punitivo após 64.

Ainda quanto aos militares, observe-se que a impetuosidade e oempirismo do presidente no trato das graves questões econômicas eadministrativas permitia a eclosão das divergências entre seusministros (sobre remessa de lucros, sobre a 204, etc.) e tornavainviável a proposta de uma assessoria técnica para o planejamento.Tal situação levaria os militares aos postos realmente importantesdo governo, especialmente os membros da Casa Militar, que,

organizada e ativa, incumbia-se das grandes tarefas — como, porexemplo, os encontros com os governadores nos estados — e da "lutacontra a corrupção e a subversão". Assim, o governo Quadros teriacontribuído decisivamente para reforçar o papel "avalista" dasForças Armadas, na linha seguida após 64, e na antiga lição dosliberais em descaminho, de que "fora do Exército não há salvação".

O estilo de Jânio e sua renúncia contribuíram, também, para adesmoralização do processo eleitoral e, conseqüentemente, daparticipação democrática. Significa o desprezo, profundamentearraigado no pensamento elitista (do qual o populismo acaba sendoo outro lado da moeda), pela legitimidade da participação popular.

A descrença consagrada de que "o povo não sabe votar" termina porse tornar uma potente arma ideológica da direita, para incutir nopovo a percepção negativa de seus direitos políticos de cidadãos.Se seu voto nada vale, para que votar? É nesse sentido que se podefalar, como o jornalista Mino Carta, que "homens como Jâniocontribuíram para manter o Brasil distante da contemporaneidade".

É nesse sentido que ao janismo não interessa, efetivamente, odesenvolvimento político e social do país. A demagogia teatral, omoralismo maniqueísta, o personalismo arrogante, só podem vingarno atraso decorrente da fragilidade das instituições e da mani-pulação das classes populares.

Como indica Francisco Weffort, "o populismo trás em si ainconsistência que conduz inevitavelmente à traição. Não obstante,o mais hipócrita dos populistas nunca pode ser totalmente infiel àsua massa; ele trairá, mas há limites para a traição além dosquais a imagem do líder começa a se dissolver". Vinte anostranscorridos após a renúncia, o ex-presidente não consegueexplicar o gesto. A traição à massa talvez esteja mais clara numade suas declarações significativas: "O verdadeiro estado democrá-tico é o elitário" (Jornal do Brasil, 29/4/76).

Retomando a análise de Weffort, "donde vem a força que a massailusoriamente atribui ao líder? Dela mesma, evidentemente. Quadros

foi apenas uma expressão do impulso popular, sua ideologia ambíguafoi apenas a expressão mistificada e mistificadora das condiçõesde existência do proletariado, num momento determinado de sua

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formação como classe". Mas o falso carisma e os vícios dopopulismo autoritário são rechaçados, e cada vez com mais vigor, àmedida que os trabalhadores organizam-se. E dirigem seu movimento,a partir das bases e com lideranças autênticas, para a construçãoda democracia.

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Revisão: Argo – www.portaldocriador.org

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INDICAÇÕES PARA LEITURA

1. Não existe, de meu conhecimento, uma obra de históriapolítica específica sobre o desempenho da presidência Jânio

Quadros. O trabalho de maior fôlego, até o momento, ainda é a teseinédita de Brás José de Araújo (Paris, 1970), que analisa operíodo em termos das contradições entre capitalismo dependente epolítica externa independente. A tradução encontra-se no prelo daEditora Graal.

O livro de Mário Victor, Cinco Anos que Abalaram o Brasil,Civilização Brasileira, 1965, constitui útil fonte de consulta comuma abordagem jornalística e interpretação pessoal favorável aJânio Quadros. Igualmente favorável é o livro de Castilho Cabral,Tempos de Jânio e Outros Tempos, Civilização Brasileira, 1962, e ode Viriato de Castro: O Fenômeno Jânio Quadros, edição pessoal,

1959 (este abrange só até o governo estadual, e é muito engra-çado!).

2. As análises de Francisco Weffort são fundamentais para acompreensão do fenômeno janista e o sentido desse novo populismo.Ver, principalmente: "Raízes Sociais do Populismo em São Paulo",Revista Civilização Brasileira, nº 2, 1965; O Populismo naPolítica Brasileira, Paz e Terra, 1978, e "Algumas Questões para aHistória do Período 1945-1964", Revista de Cultura Contemporânea,CEDEC, nºs 1e 2, 1979 e 1980.

O significado do governo Quadros (e as relações com o sistema

partidário), ainda durante sua vigência, é analisado por GuerreiroRamos em A Crise do Poder no Brasil, Zahar, 1961. Ver, também,dois excelentes artigos: o de Hélio Jaguaribe, "A Renúncia doPresidente Quadros e a Crise Política Brasileira", RevistaBrasileira de Ciências Sociais, nº 1, 1961; e o de Maria do CarmoSouza e Bolívar Lamounier: "Jânio, Três Momentos na Vida de umPolítico", Revista Isto É, nº 4, agosto de 1976.

3. Do ponto de vista do janismo, eleições e partidospolíticos, existem vários bons artigos. De Oliveiros Ferreira:"Comportamento Eleitoral em São Paulo", Revista Brasileira deEstudos Políticos, nº 8, abril de 1960. De Gláucio Soares:"Classes Sociais, Strata e as Eleições Presidenciais de 1960",Revista Sociologia, nº 3, 1961. De Bolívar Lamounier e FernandoHenrique Cardoso os capítulos 2 e 3 do livro Os Partidos e asEleições no Brasil, Cebrap/Paz e Terra, 1975. De Paulo Singer, "A Política das Classes Dominantes" in Octavio Ianni e outros,Política e Revolução Social no Brasil, Civilização Brasileira,1965. E uma boa análise do janismo, quando esteve associado aosmovimentos populares em São Paulo (as Sociedades de Amigos deBairros) encontra-se na tese de José Álvaro Moisés: ProtestoUrbano e Democracia, no prelo. Sobre as relações da União Demo-crática Nacional com Jânio e o moralismo, assim como sobre ahistória da campanha presidencial de 1960, ver, de Maria VictoriaBenevides: A UDN e o Udenismo, Paz e Terra, 1981.

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4. As memórias de Afonso Arinos de Melo Franco são importantespara se ter uma "visão de dentro" da política externa e dascontradições no próprio governo: A Escalada (1965) e Planalto(1968), Editora José Olympio. Carlos Estevam Martins, em Brasil— Estados Unidos dos 60 aos 70 (Cadernos CEBRAP nº 9, 1972), aborda

a política externa no âmbito das propostas nacionalista edesenvolvimentista. Um estudo formal da ideologia, através dosdiscursos do presidente Quadros, é feito por Miriam LimoeiroCardoso em Ideologia do Desenvolvimento: Brasil JK, JQ , Paz eTerra, 1978. Para os que desejam compreender melhor a extensão dapolítica externa, nos governos Jânio e Goulart, ver de San TiagoDantas: Política Externa Independente, Civilização Brasileira,1962, e de José Honório Rodrigues: "Uma Política Externa Própria eIndependente", in Política Externa Independente, nº 1, maio 1965.

5. Uma avaliação do governo, incluindo as "razões da renúncia"

 — em versão supostamente oficial, pois avalizada pelo ex-presidente — encontra-se no Vol. VI de História do PovoBrasileiro, de Afonso Arinos e Jânio Quadros, J. Quadros Ed.,1968.

6. O capítulo de Manoel Maurício de Albuquerque em PequenaHistória da Formação Social Brasileira (Graal, 1981) aponta ascontradições e dificuldades do governo Quadros no contexto dasrelações de classes.

O de Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (Paz eTerra, 1970), contém um útil resumo do governo, com boas

referências bibliográficas.

7. Sobre a posição da esquerda frente ao governo ver osnúmeros 36 e 38 da Revista Brasiliense, com artigos, entre outros,de Caio Prado Jr. e Theotônio dos Santos (1961) e a coleção dosemanário Novos Rumos.

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Sobre a Autora

Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares é socióloga, commestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de SâoPaulo. Integra a direção do Centro de Estudos de Cultura Contempo-

rânea, CEDEC, onde participa dos trabalhos de pesquisa (MovimentosSociais e Direitos de Cidadania) e do Setor de Documentação,voltado especificamente para a problemática das classes populares.

É autora de dois livros: Governo Kubitschek, DesenvolvimentoEconômico e Estabilidade Política (1976) e A UDN e o Udenismo,Ambigüidades do Liberalismo Brasileiro (1981), ambos editados pelaPaz e Terra. Com Francisco Weffort e Bolívar Lamounier editou ovolume Direito, Cidadania e Participação (T. A. Queiroz, Ed.,1981), resultado de um seminário nacional, do mesmo nome,realizado sob o patrocínio da Ordem dos Advogados do Brasil, em1979.

Trabalha, atualmente, numa pesquisa do CEDEC sobre ViolênciaUrbana. Neste campo publicou, a partir de uma solicitação da Co-missão de Justiça e Paz de São Paulo: "Linchamentos, Violência e'Justiça' Popular ", in revista Espaço e Debates, nº 3, Ed. Cortez,1981.

É colaboradora do Dicionário Histórico-Biográfico e doDepartamento de História Oral do CPDOC, da Fundação GetúlioVargas, Rio.

Nasceu no Rio de Janeiro em 1942.É mãe de Daniel, André e Marina.