benevides, m.v.m. o governo jânio quadros

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Maria Victoria de Mesquita Benevides

O Governo Jnio Quadros

NDICEO falso carisma Quem foi Jnio Quadros? 1960: A vitria de Jnio e a quebra do sistema partidrio Acima dos partidos, o bonapartismo janista Do tosto vassoura, o moralismo autoritrio Entre nacionalismo e "entreguismo", as pazes com o FMI Em poltica externa o Brasil no mais satlite A renncia Indicaes para leitura

O FALSO CARISMA

Sete anos e um dia aps o suicdio de Getlio Vargas, outro presidente, igualmente eleito com expressiva votao popular, deixava o poder de forma traumtica. Mas, alm de carecer do sentimento de grandeza, inegvel no gesto de Getlio, a renncia de Jnio Quadros permanece at hoje envolta na polmica que ora enxerga o golpe, ora a insanidade do protagonista. E a crise que provocou, pela tentativa militar de se impedir a investidura constitucional do vice Joo Goulart, quase leva o pas guerra civil. A comparao, por mais superficial, ser inevitvel. Em sua carta-testamento, bandeira do trabalhismo e do nacionalismo, Getlio referia-se a "foras ocultas", porm identificadas com o imperialismo e a direita interna, temerosa do "fantasma popular" e das reformas econmicas e sociais iniciadas pelo presidente que entendera a urgncia da incluso das massas na poltica. Em sua carta-renncia Jnio referia-se a "foras terrveis" que, embora sugerissem frustraes de interesse "de toda a nao", jamais foram apontadas. No seriam, por certo, as mesmas do drama getuliano. Afinal, Quadros candidatara-se com apoio de poderosos grupos econmicos exatamente em oposio aliana partidria PSDPTB, herdeira natural da tradio varguista. Getlio Vargas tinha a marca inconfundvel e duradoura do carisma. Jnio, apesar de insistentemente apresentado como um dos exemplos mais "brasileiros" do poltico carismtico, teve apenas a caricatura do carisma, ou seja, o talento histrinico, a facilidade para a adeso epidrmica, populista no pior sentido da palavra, da manipulao e do autoritarismo. O carisma desprende-se muito mais da personalidade do lder, e menos do "papel" que ele representa. O histrio ter o carisma da mscara; ser, sempre, um falso carisma. Jnio foi, sem dvida, um bom ator. Mas com um papel ultrapassado e mistificador, do ponto de vista do desenvolvimento social e poltico e das reais aspiraes de participao das classes trabalhadoras. No foi um lder de massas, como Getlio, ou menos ainda carismtico como os heris de sua confessada admirao, Lincoln, Tito, Nasser ou De Gaulle. Jnio da Silva Quadros, sucessor de Juscelino Kubitschek, foi o primeiro presidente a tomar posse em Braslia, a 31 de janeiro de 1961. Sua renncia, a 25 de agosto, foi considerada uma "traio" aos quase seis milhes de eleitores que confiaram na ao da vassoura (smbolo de sua campanha contra a corrupo) e nas promessas de redeno nacional. A interpretao deste breve governo de sete meses esbarra, de incio, em dois tipos de dificuldades: a queda no maniquesmo, pela condenao implcita de qualquer poltica populista; e a seduo de uma anlise personalista. Quanto primeira armadilha, trata-se de afirmar, como ponto de partida, algumas diferenas. O populismo expresso nos governos de Vargas (1950-1954) e de Goulart (1961-1964) estava efetivamente vinculado aos movimentos sociais e aos partidos polticos, numa

inequvoca tentativa de poltica de massas. O estilo autoritrio, moralista e extremamente personificado de Jnio Quadros evocava um "populismo de direita"militarista, antiparlamentar e associado ao grande capital , o qual, dirigido "a todas as classes, ao conjunto da nao", terminava por diluir o prprio significado de povo e de massa. Como indica Francisco Weffort que analisou, para o primeiro caso, o "Estado de Compromisso" Jnio Quadros significava no apenas a falncia do sistema partidrio, como o populismo levado sua contradio mais extrema e que se volta contra si prprio. A segunda armadilha mais complicada. Como evitar o enfoque pessoal na anlise de um curtssimo governo, marcado do comeo ao fim pela figura onipresente de um quase-confesso candidato a ditador? Em que pese o exame das caractersticas estruturais e conjunturais da realidade brasileira no perodo, torna-se impossvel separar o governo Quadros da "personalidade" Jnio. Como impossvel ignorar, no ator poltico, o ator teatral. O leitor perceber, no entanto, que a insistncia nos traos pessoais do presidente ser diretamente associada ao processo poltico e aos fatos. Esta a nica sada para a tentao personalista. Tal perspectiva informa, portanto, a breve apresentao: "Quem foi Jnio Quadros?", e as tentativas de anlise sobre o moralismo autoritrio (do tosto vassoura) e sobre o bonapartismo janista (a crena em um governo acima dos partidos). Uma clebre boutade, atribuda a Milton Campos, dizia que "Jnio se elege com seus defeitos e governa com suas qualidades". Os defeitos seriam, para o liberal udenista, os recursos populistas; as qualidades seriam a independncia, a administrao eficiente, a honestidade. Mas a prpria UDN considerar-se-ia trada por seu eleito. Como entender a ascenso janista ao posto de "candidato ideal" de todos, em 1960, tema de outro captulo, enfatizando-se a vitria de Jnio como causa e conseqncia da falncia do sistema partidrio. O governo Quadros transcorreu num perodo marcado pelo prenuncio de grave crise econmica, pela diversificao dos movimentos sociais Ligas Camponesas, transio do sindicalismo populista urbano, intensificao das greves, etc. , alm da crescente interveno, tanto de militares quanto da Igreja, na cena poltica. (No quadro internacional modificava-se o tradicional balano da "guerra fria", entre outras coisas pelos novos rumos impressos Revoluo Cubana.) Tais questes pertencem, claro, problemtica mais ampla da chamada Repblica Populista. No so caractersticas apenas do governo em foco: foram herdadas dos anteriores e continuaram, com intensidade redobrada, no governo Goulart. Neste pequeno livro, dada sua inteno primeira e as bvias limitaes de espao, pretende-se abordar o que foi especfico presidncia Jnio Quadros e, por extenso obrigatria, ao fenmeno do janismo. Alm dos assuntos j referidos, e da prpria evidncia da renncia, dois grandes temas singularizam o governo Quadros: a poltica externa independente (que culminaria com a condecorao do ministro cubano Ernesto "Che" Guevara) e a poltica econmica

de estabilizao ortodoxa, na qual se destaca a "verdade cambial" (instruo 204) e o reatamento com o Fundo Monetrio Internacional. Em toda a discusso transparece uma questo tpica do autoritarismo personalista do governo Quadros: o desprezo do presidente pelas instituies, sobretudo pelo Congresso, em favor de um significativo respeito pelo papel dos militares. Estes se tornariam "sacerdotes de uma santa inquisio, cada vez mais convencidos de que uma corja de trfegos assaltantes civis enlameava a puridade nacional" (Histria do Povo Brasileiro). No se encontrariam a alguns aspectos importantes da crise que "se resolver" em 1964, com a ascenso dos militares e a instalao de um regime autoritrio, repressivo e "vingador"?

QUEM FOI JNIO QUADROS?

Afinal, quem era Jnio Quadros? Sua carreira poltica indica, inegavelmente, o que se convencionou chamar de ascenso meterica. A do modesto advogado e professor de ginsio, de famlia simples, sem fortuna e tradio poltica, que percorre os diversos escales da vida pblica e chega Presidncia da Repblica aos 44 anos de idade. Sempre em so Paulo, este "paulista de Mato Grosso" conquista rapidamente boa parte de um espao poltico at ento partilhado por bacharis, comerciantes e fazendeiros da UDN e do PSD (remanescentes dos antigos Partido Democrtico e Partido Republicano) e por partidrios do ex-interventor Ademar de Barros. Em 1947, suplente de vereador pela legenda do Partido Democrata Cristo, assume o mandato devido cassao dos candidatos do Partido Comunista, ento colocado na ilegalidade. No ano seguinte elege-se deputado estadual tambm pelo PDC. Mas nas eleies municipais de maro de 1953 que Jnio marca a fora de sua escalada populista. A campanha do "tosto contra o milho" ("tem ou no tem razo o homem da rua quando diz que quem rouba um tosto ladro, quem rouba um milho baro?", indagava nos comcios) explode dos limites acanhados do bairro popular de Vila Maria, principal reduto eleitoral janista. Contrariando todas as expectativas, Jnio Quadros chega Prefeitura de So Paulo com apoio de dois pequenos partidos o PDC e o Partido Socialista Brasileiro e derrota uma poderosa coligao partidria que inclua UDN, PSD, PTB, PR, ademaristas e comunistas. Um ano depois, a campanha do tosto recebe o impulso da vassoura (supostamente para "varrer os ratos, os ricos e os reacionrios") e do slogan: "No desespere, Jnio vem a". So as primeiras eleies aps o suicdio de Getlio. Eleito governador de So Paulo, Jnio vence seu mais poderoso adversrio, Ademar de Barros. Nessa ocasio Jnio estava rompido com a cpula do PDC (iniciando uma sucesso de rupturas e renncias que marcariam suas relaes com os partidos polticos pela vida afora), cujo presidente, Antnio Queiroz Filho, pintava o retrato que o futuro confirmaria: "a fantasia delirante do candidato a caudilho, dominado pela magia dos extremos, com a falsa imagem de sua predestinao". Mas Jnio contava com o entusiasmo dos socialistas, de uma ala dissidente do PTB e o apoio de outro pequeno partido, o PTN (Partido Trabalhista Nacional), liderado pelo deputado paulista Emlio Carlos. Alm do recurso demagogia teatral, a atuao de Jnio seria sempre marcada pela alta incidncia de contradies e ambigidades, numa taxa muito acima do "normal" que se concede como inevitvel a qualquer governante. O enrgico candidato que atacava os desmandos do poder pblico e a inrcia da burocracia o mesmo que, governador de So Paulo, probe os professores da USP de criticarem o governo, baseando-se nos Estatutos do Funcionalismo. O estadista altivo que se ope aventura do Presidente Kennedy na invaso a Cuba (Baa dos Porcos, abril de 1961) aceita a imposio de regras rigorosas pelo FMI. O

presidente que condecora o lder revolucionrio Guevara, ordena a represso s manifestaes de estudantes em Recife, por ocasio de conferncia da me do prprio "Che". Empossado na Presidncia, vai televiso e reafirma sua firme defesa da iniciativa privada; no dia seguinte envia um projeto sobre os abusos do poder econmico.

Nunca se definiu claramente acerca de Getlio Vargas; ora getulista, ora antigetulista, passava do PTB para a UDN com a naturalidade que beira o cinismo. Corteja a esquerda e os comunistas para depois consider-los, publicamente, "como irrecuperveis para a democracia". Eleito com forte apoio sindical, tentaria minar exatamente as fontes do poder sindical, atravs do controle "despolitizado" no Ministrio do Trabalho, nos institutos de previdncia e atacando a instituio do "imposto sindical". As campanhas de Jnio Quadros so um captulo parte na histria eleitoral brasileira. Em nenhum outro momento, a nvel de eleio majoritria, as contradies entre desenvolvimento e atraso, autoritarismo e liberalismo, progressismo e reacionarismo, pblico e privado, foram to bem manipuladas. Como em nenhum outro momento o populismo assumiu feies to "pessoais" to marcadas pelo talento histrinico do ator, que se confundia com a marca de uma carisma genuno reunindo, ao mesmo tempo, grupos sociais dspares e at antagnicos. O estilo da campanha para a Prefeitura se repete na campanha para o Governo do Estado e depois para a Presidncia. Os palanques transformavam-se em verdadeiros palcos de tragicomdias: Jnio tomava injees em pblico, simulava desmaios e comia sanduches de mortadela levados nos bolsos. E era carregado nos ombros do povo! Numa esdrxula mistura de radicalismo e Kitsch popularesco (um admirador udenista chegou a identific-lo como um misto de Lnin e Carlitos!) fazia violentos ou pitorescos discursos, num portugus precioso de slabas escandidas, e apoiado num visual que se tornaria tpico: roupas surradas e em desalinho, cabelos compridos e barba por fazer, ombros brilhantes de caspa... um visionrio. Muitos o tomaram como um messias, poucos denunciaram o charlato. Nos comcios Jnio atacava a inrcia dos polticos, o abandono da causa pblica, os desmandos dos governos, a opresso de "Dona Light". Apontava, como plataforma para a "recuperao moral e administrativa", a correta equao dos direitos e deveres dos cidados e do Estado. nesse sentido que se entende o apoio da esquerda ao movimento janista, naquela poca com inegveis razes populares. A campanha contra a corrupo contida na mensagem de Jnio Quadros, segundo depoimento de um socialista, "atacava, por um lado, a base do poder das classes dominantes, atravs das denncias de desigualdades e das injustias da poltica do Estado, e, por outro, acenava com a defesa dos interesses econmicos das classes populares. A luta contra a corrupo, em certa medida, atingia o poder que permitia o excesso de explorao" (depoimento de Flvio Abramo a J. A. Moiss). Na sucesso presidencial de 1955 Jnio apia ostensivamente a campanha de Juarez Tvora (candidato do PDC e da coligao UDN-PL) contra a aliana getulista PSD-PTB que elege Kubitschek e Goulart. Em 1958 consegue fazer seu sucessor ao governo do Estado, Carvalho Pinto, na mesma ocasio em que recebe grande votao para deputado federal pelo Paran, na legenda petebista (jamais poria os ps no Congresso). Dois anos mais tarde eleito presidente da Repblica. Aps a renncia tenta novamente o governo estadual de So Paulo,

nas eleies de 1962 ("renncia denncia"), mas desta vez e derrotado por Ademar, que conseguia reunir at mesmo seus arquiinimigos da UDN. Embora notoriamente hostil ao governo Goulart, e simptico ao movimento militar de 64, Jnio ter seus direitos polticos suspensos, a exemplo do que ocorreu com outros nomes nacionais, como Juscelino, Lacerda e o prprio Ademar. No governo Costa e Silva ser punido com 4 meses de confinamento em Corumb. Com a anistia poltica de 1979 Jnio inicia seu regresso cena poltica, motivado pelas eleies previstas para 1982. No velho estilo joga com o "suspense" de sucessivas aproximaes e recuos com quase todos os partidos, oscilando do extremo de governismo ao extremo de oposio. Ressuscita a vassoura, o anticomunismo, a lealdade e o respeito pela ao das Foras Armadas, a defesa de uma poltica econmica ortodoxa e, acima de tudo, a confirmao de sua crena num regime forte e autoritrio. Esboado esse breve quadro sobre o histrico janista, trata-se de situar a campanha presidencial de 1960 e procurar entender a esmagadora vitria do autodenominado "candidato do inconformismo".

1960: A VITRIA DE JNIO E A QUEBRA DO SISTEMA PARTIDRIO

Os janistas exaltavam a "revoluo pelo voto". Um socilogo chegou a falar de "rebelio do eleitorado". O que significava tal fenmeno, justamente aps um governo marcado pelo desenvolvimento, pelo otimismo generalizado e pela tolerncia poltica? Na realidade, a ascenso de Jnio Quadros, candidato ao mesmo tempo do povo e das elites, evidenciava tanto a falncia do sistema partidrio quanto o "esgotamento das virtualidades" do brilhante governo Kubitschek. O debate entre economistas sobre o colapso do modelo de desenvolvimento capitalista via substituiro de importaes, entrada em massa de capital estrangeiro, recurso inflao e endividamento externo, bem conhecido. Trata-se, aqui, de situar dois aspectos que marcaram o final do governo JK, especialmente relevantes para a compreenso da exploso janista: 1) a crescente insatisfao de vrios setores sociais com a alta do custo de vida, despertados para a participao reivindicatria exatamente pelos frutos do desenvolvimento num governo politicamente aberto; 2) a transformao gradativa do sistema partidrio, com a decadncia dos grandes partidos conservadores Partido Social Democrtico e Unio Democrtica Nacional , o crescimento do Partido Trabalhista Brasileiro e de agremiaes interpartidrias, com o conseqente processo de realinhamento. Estes dois aspectos refletem, claro, um fenmeno mais amplo, relativo crnica debilidade institucional brasileira, patente nas relaes desiguais entre um Estado cada vez mais forte e uma sociedade civil frgil e desarticulada. O desenvolvimento do perodo Kubitschek despertara camadas sociais para demandas que no apenas se exprimiam em obras pblicas ou empregos, mas no alargamento efetivo dos limites da participao econmica, social e poltica. A legitimidade do sistema poltico comeava a ser posta em xeque pelas camadas emergentes na medida em que o governo revelava-se incapaz de as absorver institucionalmente. Jnio Quadros surge com fora total nesse aparente vcuo institucional e caos partidrio, agravados pela crise econmica. Sua postura tradicionalmente suprapartidria ser, ao mesmo tempo, causa e conseqncia do esfacelamento do sistema partidrio. No se trata apenas da famosa "crise do poder", como tambm da crise de representatividade dos partidos polticos. Jnio apresenta-se ostensivamente como o candidato independente, "acima dos partidos", prometendo um governo "sem donos e sem influncias". Nesse sentido a vitria de Jnio em 1960 pode ser entendida como fruto do desmoronamento da aliana PSD-PTB, habilmente articulada por Getlio Vargas desde os prenncios da "democratizao" de 1945. As eleies de 1958 j haviam mostrado a inverso da aliana getulista nos estados e municpios, em favor

de acordos locais muitas vezes com o inimigo da vspera, ou o adversrio do partido em termos nacionais. A coligao com a UDN passa a ser disputada tanto pelo PSD quanto pelo PTB. Um dos fatores mais importantes para o realinhamento refere-se ao crescimento do PTB (de 22 deputados federais em 1945 a 116 em 1962), o que forava a aproximao PSD/UDN, partidos com bases sociais e interesses econmicos semelhantes, porm separados pelo corte profundo da herana getulista. Do ponto de vista do janismo o papel do PTB paulista da maior relevncia, mas em sentido contrrio: a se trata da fragilidade, e no da fora. Por que o PTB no vinga em So Paulo, justamente o estado mais desenvolvido do pas? Ao que parece, no havia interesse do trabalhismo nacional cuja hegemonia permanecia com os gachos no fortalecimento do PTB paulista. Este, deixado sua prpria dinmica, seria, certamente, um partido fortssimo. Ainda uma vez se invocava a temeridade de So Paulo "dominar" a cena poltica nacional... Deve ser lembrado, tambm, que PSD e UDN nunca chegaram a ter fora expressiva em So Paulo (como ocorreu no Rio, em Minas Gerais, na Bahia), onde atuavam com maior eficcia os grupos de presso, os sindicatos, as associaes de comerciantes e de empresrios. Outro fator importante para explicar a falta de um trabalhismo "autntico" em So Paulo consiste na forte presena do ademarismo, atuante no estado desde a dcada de 40. Alm da fragmentao trabalhista em partidos minsculos, como o PTN, ironizados por Getlio como "bijuterias polticas, os partidos da Sloper". No final dos anos 50 o janismo passa a competir favoravelmente com o PTB e seus aliados comunistas na rea sindical. Apoiando o Movimento de Renovao Sindical e depois o dinmico Movimento Jan-Jan (Jnio-Jango), os janistas passam a controlar as negociaes das greves numerosas no final do governo JK e das chapas s eleies sindicais. Combatiam o imposto sindical e a influncia do Ministrio do Trabalho nos sindicatos. 1960, segundo Francisco Weffort, marcaria a transformao do sindicalismo populista, pelo eclipsamento do PUI (Pacto de Unidade Intersindical), com sede em So Paulo, pelo PUA (Pacto de Unidade e Ao), com sede no Rio de Janeiro. No plano parlamentar a situao tambm indica o realinhamento. No Congresso os oradores petebistas eram mais contestados pelos aliados do PSD, enquanto a UDN dividia-se, ora apoiando o PTB, ora as posies mais conservadoras do PSD. O final do governo marcado pela predominncia dos agrupamentos interpartidrios, a Frente Parlamentar Nacionalista, de linha "esquerdizante", e a Ao Democrtica Nacional, onde predominavam os grupos mais reacionrios de todos os partidos, comprometidos com a corrupo eleitoral alimentada pelo IBAD (Instituto Brasileiro de Ao Democrtica) sob a cobertura ideolgica da "defesa contra o comunismo". Apesar dos abalos e de infidelidades mtuas, a aliana PSD/PTB mantm-se formalmente coesa e lana o General Lott para a Presidncia, em chapa conjunta com Joo Goulart. O Ministro da Guerra de Juscelino (equivocadamente considerado "apoltico", quando de sua escolha ainda no governo Caf Filho) surgia como o candidato natural das foras nacionalistas do Exrcito e de toda a

esquerda. Mas o PSD, ainda uma vez, "cristianizaria" seu candidato que, alm de totalmente desprovido de apelo popular, atemorizava os setores mais conservadores do PSD, partidrios da poltica econmica ortodoxa sugerida por Jnio Quadros. Aos radicais do PTB, por outro lado, constrangiam certos aspectos da campanha do General Lott; este, embora defendesse posies progressistas como o voto do analfabeto e restries remessa de lucros, no escondia seu visceral anticomunismo. Jnio Quadros, que centrava sua campanha nos ataques "corrupo do governo anterior", inflao e alta do custo de vida, o desperdcio com as obras "faranicas" de Braslia e as "irresponsabilidades do presidente voador", reunia todos os descontentes e os sem partido. E para a UDN tornava-se o candidato ideal, aquele messias que "conseguia efetuar o encontro do desespero com a esperana pela anteviso de uma nova era de austeridade e reformas sociais" (A. Arinos). verdade que o temrio janista significava a encarnao das teses udenistas anticorrupo, que atraam os setores populares, tradicionalmente hostis UDN, e ainda polarizava o descontentamento dos militares e das camadas mdias atravs das promessas de "limpeza" na administrao e estabilizao da economia. Apesar dessas semelhanas, a UDN dava uma guinada de 180 graus. Abandonava sua austera viso antipopulista e partia para um festival de rua, com as "Caravanas da Liberdade" e o "Caminho do Povo", trocando o leno branco das memorveis campanhas do Brigadeiro pela vassoura janista. No dizer de um de seus lderes, a UDN estava "farta das derrotas gloriosas" e apostava nas eleies (afinal, "o povo no pode errar sempre"...), abandonando sua especial predileo pelas manobras golpistas. Com Jnio Quadros os udenistas acreditavam, enfim, derrotar "aquela coligao maldita" que se achava no poder, conforme anunciavam em nota oficial do partido. Esta crena na vitria de Jnio com ou sem a UDN superou todas as dificuldades que acompanharam o apoio dos udenistas, incluindo a renncia do candidato. Jnio contava com o decisivo apoio de Carlos Lacerda ("haver algo mais udenista neste pas do que a obra de Jnio Quadros em So Paulo?", indagava), dos udenistas histricos que viam com desagrado a aproximao dos "realistas" com o PSD (no perdoavam o acordo no governo Dutra) e do grupo que compunha o "movimento renovador", embrio da futura "Bossa-Nova". O candidato natural da UDN, no entanto, era Juraci Magalhes, antigo tenente, fundador do partido, e que formava, ao mesmo tempo, com o grupo da conciliao e da abertura popular. Contava, ademais, com o discreto apoio do presidente Kubitschek, que preferia a vitria da oposio para garantir, sem desgastes, a sua prpria volta ao governo em 1965. O baiano Aliomar Baleeiro, um dos mais combativos membros da "Banda de Msica", liderava a campanha pr-Juraci, com apoio do grupo nordestino, para quem o paulista Jnio Quadros, por no pertencer a nenhum partido, "no passava de uma bailarina poltica a qual no deveria ser entregue a cabea de Joo Batista" (M. V. Benevides, A UDN e o Udenismo). Assim, a confuso partidria parecia irremedivel. Se os prprios partidos apresentavam divises to intrigantes, o que dizer da disposio do eleitorado

para, eventualmente, dar provas de "maturidade poltica" e votar partidariamente, acima de nomes e personalismos? "A campanha eleitoral foi, em boa medida, uma comdia de equvocos. Lott, apoiado pela esquerda, pautou seus pronunciamentos por um anticomunismo extremado, que lhe alienava as simpatias das massas urbanas sem lhe granjear apoio nas reas conservadoras. Jnio, candidato da direita, introduziu no debate eleitoral a poltica externa, solidarizando-se com Cuba e propondo uma atitude de independncia face aos dois blocos que dividem o mundo. No final, ganhou o melhor orador, o demagogo talentoso, capaz de entusiasmar as massas operrias com tiradas esquerdistas e, ao mesmo tempo, inspirar confiana burguesia com apelos austeridade e promessas de sobriedade no trato dos dinheiros pblicos" (Paulo Singer, Poltica e Revoluo Social no Brasil). Na realidade Jnio contou com o apoio da CONCLAP (Conselho Nacional das Classes Produtoras), de grupos industriais importantes, como Matarazzo e Votorantim, e associaes paulistas como a FIESP, a FARESP e a Associao Comercial. A plataforma de Lott expressava a ideologia da ala nacionalista que fazia poltica ativa no Clube Militar. Jnio, por sua vez, contava com a simpatia dos militares identificados s candidaturas frustradas do Brigadeiro Eduardo Gomes (1945 e 1950) e do General Juarez Tvora (1955) e que no perdoavam o "contragolpe preventivo" do 11 de Novembro, com o qual Lott garantira a posse de Juscelino e Jango. Alm dos militares da Cruzada Democrtica, de setores influentes da Escola Superior de Guerra, Jnio polarizava, tambm, o engajamento poltico de jovens da Aeronutica fiis pregao radical de Carlos Lacerda. Assim que, em novembro de 1959, os rebeldes de Aragaras (os mesmos oficiais do levante de Jacareacanga de 1956) apontam como um dos motivos de sua rebelio a renncia de Jnio Quadros candidatura para a Presidncia (com esta renncia a UDN ficara em pnico, e Jnio reconsidera a deciso em menos de uma semana). Alm do pequeno PTN, do PDC e da maioria da UDN, a candidatura janista contava com o apoio da Frente Democrtica Gacha (UDN-PSDPL), de setores do Partido Socialista (interessados na proposta progressista e modernizadora) e de alas dissidentes do PR, do PTB e do PSD. Na Conveno Nacional da UDN, em novembro de 1959, a consagrao apotetica: Jnio recebe 205 votos contra 83 dados a Juraci Magalhes. Este, apesar das vaias, faz um discurso premonitrio da renncia, concluindo dramaticamente: "E agora, Jos?". Para a vice-presidncia a UDN recorre, mais uma vez, ao "charme discreto" de um liberal consagrado como Milton Campos, depois do malogro do lanamento da candidatura do ex-governador de Sergipe, Leandro Maciel. A "campanha das mos limpas" do candidato Vice-Presidncia Fernando Ferrari (do Movimento Trabalhista Renovador, dissidncia do PTB gacho), com apoio do PDC, complementava a campanha da vassoura e atraa votos udenistas. Os resultados do pleito indicam no apenas a diviso do eleitorado antijanguista (a unio dos votos de Campos e Ferrari teria garantido, por ampla margem, a derrota de Goulart), como o sucesso dos comits Jan-Jan e do Movimento Popular Jnio Quadros nos grandes centros trabalhistas e

esquerdistas como So Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Nas eleies de 3 de outubro Jnio eleito com 5 636 623 votos, derrotando o General Lott (3 846 825 votos) e Ademar de Barros (2195 709 votos). Convm lembrar, para a correta avaliao dos dados eleitorais, que em relao ao pleito presidencial anterior h um aumento significativo no apenas do eleitorado, em nmeros absolutos, como da proporo do comparecimento s urnas: de 60% em 1955 passa a 80% em 1960. Do total de votos vlidos dados a Jnio, 78% foram obtidos nos estados-chave Guanabara, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e So Paulo. Em 1919 havia mais de cem brasileiros para cada voto dado ao presidente eleito. Em 1960 havia menos de 13 brasileiros para cada voto dado a Jnio Quadros. Jnio obteve substancial votao em todas as camadas sociais, mas uma pesquisa pr-eleitoral feita por Glucio Soares na Guanabara indicou preferncia significativamente maior por Jnio nos estratos scio-econmicos mais elevados, medidos por instruo e ocupao. O perfil do eleitorado janista, em 1960, indicaria, assim, que "Jnio ainda a grande esperana dos deserdados, mas sobretudo o instilador de um novo nimo defensivo classe mdia tradicional, atormentada pela inflao, temerosa das mudanas que se processavam no pas, ansiosa em busca de um messias-estadista para repor as coisas nos seus lugares" (Souza e Lamounier, Isto , n 4, 1976). A vitria de Jnio seria reforada pelo sucesso da oposio nos governos estaduais: Carlos Lacerda, na Guanabara; Magalhes Pinto, em Minas Gerais (derrotou Tancredo Neves); Luiz Cavalcanti, em Alagoas; Pedro Gondim, na Paraba; Alusio Alves, no Rio Grande do Norte; Correia da Costa, em Mato Grosso, e Ney Braga, no Paran. Jnio no conseguira a maioria absoluta dos votos (48,26%), mas em momento algum os radicais da UDN que haviam invocado tal motivo em 50 e 55 manifestaram intenes golpistas. Uma era de confiana, um clima de "democrtica pacificao nacional" parecia transformar os mais renitentes golpistas. Dois importantes fatores, no entanto, j indicavam tempestades futuras: a eleio de Joo Goulart para a Vice-presidncia (com visvel hostilidade das Foras Armadas e das classes conservadoras) e as caractersticas do temperamento personalista, autoritrio e psicologicamente instvel do novo presidente.

ACIMA DOS PARTIDOS, O BONAPARTISMO JANISTA

"As propores da vitria eleitoral de Jnio Quadros por generosa margem de quase dois milhes de votos sobre seu principal adversrio conferiam-lhe considervel quantum de poder especfico em relao s foras que lanaram sua candidatura. Como nenhuma delas poderia reivindicar 'dividendos partidrios', Jnio colocava-se acima da sociedade poltica, verificando-se o quarto do bonapartismo. O bonapartismo suspende a fora poltica das classes sociais e as transforma, por assim dizer, em suplicantes diante do Estado. Ento o povo, partidariamente desorganizado, passa a ser aparente sustentculo do poder. O chefe bonapartista, por cima das classes, por cima dos partidos, busca o apoio direto do povo" (Guerreiro Ramos, A Crise do Poder no Brasil). Pairando acima dos partidos, fugindo ao esquema "esquerda e direita", Jnio significava, para seus defensores, o encontro da ordem com o progresso, a revoluo poltica sem violncia ou ilegalidade. Seria "um governo ao mesmo tempo progressista e conservador, austero e audacioso, amado pelo povo e respeitado pelas elites" (A. Arinos, A Escalada). A realidade seria bem diversa. Atravs da poltica dos "bilhetinhos" Jnio converteria seus ministros em meros executores de determinaes presidenciais; pela criao das Sees Especiais do Gabinete Civil e Militar, e do Servio Nacional de Municpios, tentaria anular qualquer mediao entre a Presidncia e o poder regional e local; pelo tratamento dispensado aos parlamentares e empresrios, revelaria o desprezo implcito por tudo aquilo que no fosse emanao direta de sua prpria autoridade, supervalorizada por um voluntarismo quase mstico, na crena absoluta no "mandato independente". Afinal, este seria o governo que prometera, "sem donos nem influncias". As foras polticas que apoiaram sua candidatura no apenas se revelaram impotentes para reclamarem "dividendos partidrios", como incapazes de defenderem um projeto comum, por serem, em certos casos, francamente antagnicas. O que explica, em parte, as profundas ambigidades e contradies no relacionamento ExecutivoLegislativo. No governo Kubitschek, a euforia desenvolvimentista e o estilo conciliatrio do presidente, aliados eficiente poltica de "administrao paralela" (que mantinha intacta a burocracia tradicional, feudo dos interesses cartoriais e clientelsticos), conseguiram, por um perodo determinado, responder s expectativas de diferentes grupos sociais, com exceo dos marginalizados da terra. O governo Quadros, ao contrrio, acirrou contradies, jogando com foras polticas que se repeliam mutuamente. Todos "pertenciam" ao governo, um caleidoscpio que iluminava ora o moralismo bacharelesco da UDN, ora o conservadorismo burocrtico e o industrialismo do PSD. Ou o trabalhismo do PTB e a crescente participao dos sindicatos. Ora os interesses agrriomodernizantes sulistas, ora os dos coronis do Nordeste. O impulso desenvolvimentista dos herdeiros de JK e a moderao

estabilizadora dos ortodoxos. Ou seja, uma amplssima "frente", que tinha em comum os louros da vitria eleitoral; nenhum programa coerente garantia a unidade. Em resumo, os que apoiavam o moralismo, condenavam o trabalhismo; os que defendiam a poltica econmica ortodoxa odiavam a poltica externa independente, e vice-versa. E Jnio teria que enfrentar no apenas os problemas decorrentes da crise econmica herdada, como os inerentes s promessas de "reformas de base". Para tal proeza dificilmente o apoio do Congresso poderia ser menosprezado. Durante os sete meses de governo Jnio conseguiu fazer chegar ao Congresso apenas um projeto importante, o da Lei de Remessas de Lucros, e neste caso com a diviso de seus prprios ministros. A composio diversificada do Ministrio esclarecedora. Na Fazenda, o udenista baiano Clementi Mariani, industrial e banqueiro, ministro da Educao no governo Dutra e presidente do Banco do Brasil no governo Caf Filho poca da famosa instruo 113, que favorecia a entrada de capitais estrangeiros no pas. Na Agricultura Romero Cabral da Costa, um desconhecido na cena partidria nacional, usineiro ligado aos setores mais arcaicos da agricultura nordestina, fora indicado pelo governador de Pernambuco, o udenista Cid Sampaio. Na Viao, outro poltico sem expresso, o pessedista Clvis Pestana; na Sade, Catete Pinheiro, um obscuro paraense do PTN. Na pasta de Minas e Energia, um nome forte: o do paraibano Joo Agripino, que, embora da UDN, defenderia o nacionalismo varguista na rea de minrios e na Petrobrs. Na Indstria e Comrcio, Artur Bernardes Filho, do Partido Republicano, empresrio ligado aos interesses de multinacionais. A pasta do Trabalho seria "despolitizada" pela indicao do paulista Francisco de Castro Neves, apenas formalmente filiado ao PTB, e contrrio poltica janguista nos sindicatos e institutos (o simples fato de querer denominar o Ministrio como "Secretaria da Mo-de-Obra Nacional" j indica as intenes "despolitizantes"). O Ministro da Educao, Brgido Tinoco, era um poltico do antigo Estado do Rio, sem nenhum convvio com os problemas da educao. Jnio convocaria o Professor Ansio Teixeira que lhe entregou, em pouco tempo, um plano de educao; a inrcia burocrtica do Ministrio, no entanto, no combinava com as idias renovadoras e o projeto seria arquivado. Na Pasta da Justia, Oscar Pedroso Horta representava, juntamente com o chefe da Casa Civil, Quintanilha Ribeiro, uma escolha baseada na lealdade pessoal ao ex-governador paulista. E, finalmente, o novo Chanceler, Afonso Arinos de Melo Franco, seria o responsvel pela defesa da poltica externa independente, enfrentando o reacionarismo de seu prprio partido, a UDN. Nos ministrios militares, no entanto, a coerncia foi mantida. O General Odilo Denys permanece no Ministrio da Guerra; apesar de comprometido com o grupo do 11 de novembro, que garantira a posse de Juscelino e Jango, Denys j se afastara definitivamente da ala nacionalista representada pelo General Lott, cujo esquema de posies comeara a desmantelar em todo o pas. Na Marinha, o Almirante Slvio Heck, vinculado aos

lacerdistas e comandante do Cruzador Tamandar em 1955; na Aeronutica, o Brigadeiro Gabriel Grum Moss, da ala mais "brigadeirista" da FAB, e na chefia do Estado-Maior das Foras Armadas o General Oswaldo Cordeiro de Farias. Jnio contava com o apoio dos militares da Escola Superior de Guerra, para quem era "a negao da demagogia" (!). No plano federal, o nico setor organizado e ativo era justamente a Casa Militar, sob a chefia do General Pedro Geraldo de Almeida, identificado com o grupo da ESG ligado ao ento Coronel Golbery do Couto e Silva. Este era chefe de Gabinete da Secretaria Geral do Conselho Nacional, onde se encontravam, tambm, os oficiais Joo Batista Figueiredo, Walter Pires, Heitor de Aquino Ferreira e Mario Andreazza, no Servio Federal de Informaes (Ren Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado). Alis, um dos principais motivos para a hostilidade de setores do Congresso a Jnio foi o espao privilegiado concedido s Foras Armadas. Como, por exemplo, a criao de subchefias militares do gabinete presidencial em vrias regies do pas e a sistemtica designao de oficiais para presidirem as Comisses de Inquritos e sindicncias da cruzada moralizadora. Esta ltima medida provocou violenta reao na Cmara dos Deputados, destacando-se a denncia de Almino Affonso, lder do PTB, que indagava por que os militares passariam a ser fiscais da coisa pblica: "por acaso um militar, por definio, honesto, e h de ser um civil, por definio, um venal?" (Mrio Victor, Cinco Anos que Abalaram o Brasil). No plano civil, a prtica de organizar reunies nos estados com os governadores, criando uma nova instncia decisria de mediao, constituiu-se em rede de apoio regional tambm fora do Congresso. Note-se que pela primeira vez o governo no tinha maioria no Congresso. O Bloco Parlamentar de oposio PSD-PTB-PSP (o Partido Social Progressista era o partido de Ademar de Barros) compunha a maioria na Cmara dos Deputados. Mas era uma maioria fluida, extremamente heterognea, que inclua desde socialistas at radicais de direita. E no se poderia dizer que os unia uma posio constante contra o governo, pois conservadores e progressistas dividiam-se, em cada partido, em relao a quase todas as questes. A poltica progressista de Jnio contava com o apoio das alas rebeldes dos grandes partidos: a ala moa do PSD, a Bossa-Nova da UDN e o Grupo Compacto do PTB. Mas, se os progressistas uniam-se na defesa da poltica externa independente e do controle sobre a remessa de lucros, dividiam-se quanto poltica sindical e a prtica das sindicncias que visava diretamente membros da aliana PSD-PTB. A Bossa-Nova udenista (Jos Aparecido, Jos Sarney, Seixas Dria, Clvis Ferro Costa), adversria dos lacerdistas e da "Banda de Msica", surgira exatamente para dar apoio s propostas reformistas do novo governo. Jnio, por sua vez, procurava apoio na esquerda, a nvel individual somente, cortejando lideranas "no alinhadas", como Miguel Arraes, Leonel Brizola e Francisco Julio. A tentativa de aproximao com o PSD, atravs de polticos paulistas, no logrou resultados graas forte bancada mineira, comprometida com o governo anterior e Paulo Pinheiro Chagas, lder pessedista da

maioria, chegou a nomear uma comisso de deputados para estudar a proposta de impedimento do presidente (o que no ocorreu). E quanto UDN considerada por Jnio "inepta e bacharelesca" a frustrao seria total; suas lideranas parlamentares no eram consultadas pelo presidente e o partido no dispunha de uma margem de manobras para distribuir cargos e vantagens, tpica atribuio de qualquer esquema de poder. Aparentemente vencedora, a UDN no era governo nem era oposio; constrangida a "apoiar um governo que no era seu" (como se queixaria mais tarde o presidente do partido, Herbert Levy), pois no poderia isolar-se na oposio, muito menos renegar o fruto de sua seduo populista, a UDN revelava o lado trgico de sua prpria ambigidade, num processo autofgico de sua nica vitria (M. V. Benevides, A UDN e o Udenismo). E, finalmente, cabe assinalar que, j nos primeiros meses do governo Quadros, os debates no congresso sobre a adoo do sistema parlamentarista recrutavam novos adeptos. Alis, a encarnao viva do projeto, o presidente do Partido Liberdade, Raul Pilla, uma semana apenas antes da renncia, sugeriu a criao de uma Comisso de Poltica Parlamentar para a "defesa da integridade e efetividade das funes parlamentares", a fim de evitar que o Congresso continuasse perdendo prestgio entre o povo, conseqncia da "invaso de sua prpria esfera por outros rgos do poder" (Mrio Victor, op. cit.). Mas o desprezo de Jnio Quadros pelo Congresso "um clube de ociosos" era to grande que chegou a indagar a seu perplexo Chanceler: "Ministro,V. Exa. pegaria em armas para defender este Congresso que a est?" (Afonso Arinos, Planalto). E depois da renncia, ao contestar seus propsitos golpistas, no hesitaria em vangloriar-se: "se quisesse teria fechado o Congresso com um cabo e dois soldados".

DO TOSTO VASSOURA, O MORALISMO AUTORITRIO

Entre as contradies do governo Jnio Quadros destaca-se a intrigante conjugao entre a defesa ativa de uma poltica externa "de grandeza" e a adoo de um estilo provinciano e mesquinho no trato da coisa pblica. No estadista da autodeterminao dos povos disfarava-se, ora mais visvel, ora mais superado, o prefeito dos limites bairristas de Vila Maria. A "poltica dos bilhetinhos" revela o tacanho autoritarismo de um governo que erigiu como norma o controle burocrtico personificado, baixado aos mnimos pormenores, em toda e qualquer rea da administrao pblica, mas tambm nos mais diversos aspectos da vida social. A "eterna vigilncia", referncia emblemtica dos liberais udenistas, revestia-se de especial significado para Jnio. Vigilncia moral, ideolgica, punitiva, corretiva, didtica, gratificadora. Em suma, uma nova "Voz do Brasil", altamente centralizada, porm fragmentada em pequenas ordens, proibies, reclamaes ou simples avisos, carregados da aura onipresente de quem se apresentava, sem o menor pudor, como o messias aps o caos. - E que utilizava, com mestria, recursos publicitrios e dramticos para uma campanha nacional de "recuperao da austeridade e da autoridade". Assim se explicam decises pessoais do presidente da Repblica para questes disparatadas e inslitas, obviamente deslocadas da rbita governamental. Como, por exemplo, os decretos proibindo o funcionamento dos Jqueis Clubes nos dias teis e s brigas de galo em todo o territrio nacional. Ou as proibies de desfiles de misses com mais cavados nos concursos de beleza e do uso de lana-perfume nos bailes carnavalescos. O presidente interferiu diretamente para a soluo dos problemas relativos aos atrasos dos trens urbanos e s filas de abastecimento nas cidades. Passando por cima da competncia do Ministrio da Justia ocupou-se com a instituio da censura moralizadora em defesa da famlia e dos bons costumes na televiso, nas diverses pblicas e na publicidade comercial. Ordenou a suspenso das emisses da Rdio Jornal do Brasil (baseando-se na clebre portaria da Comisso Tcnica do Rdio, utilizada no governo Kubitschek contra Carlos Lacerda e que merecera de Jnio e dos udenistas o mais vivo repdio), acusada de divulgar "notcia inverdica". Na instncia das "amenidades", Jnio preocupou-se em lanar "a moda racional para os trpicos" (inspirado em sua confessada admirao pelos costumes britnicos), inovando o protocolo presidencial ao adotar o terno "safari" cuja uniformizao desejou estender aos demais rgos do governo, aparentemente sem sucesso. A economia com os gastos pblicos chegaria s raias do ridculo com a determinao de que os papis velhos dos escritrios de toda a administrao pblica deveriam ser coletados para venda filantrpica. O suporte ideolgico para esta poltica autoritria e

personalista encontra-se explicitamente no moralismo punitivo e redentor que, aos olhos de Jnio e seguidores, garantiria a originalidade e a autenticidade do que entendiam como "a revoluo pelo voto". Em termos concretos tratava-se de levar a todo o pas a cruzada do saneamento moral, sob a bandeira da austeridade, honestidade e trabalho: "Este ser um governo rude e spero", afirmou no dia da posse. E ao longo do governo seus discursos insistiam na tnica do sacrifcio: "que todos detenham suas ambies, que todos sofreiem seu egosmo, que todos sofreiem sua cupidez. Quero uma reforma de princpios e de fundamentos". O sacrifcio seria de toda a nao para Jnio povo, nao e governo confundiam-se numa s tarefa, mais ainda, eram uma s entidade. Identificava, ademais, sua prpria autoridade com o ethos da nao: "todos aqueles que se voltam contra mim esto-se voltando contra a verdade e a nao". Como salientaram Souza e Lamounier, "esta era a grande alquimia do smbolo janista: o mximo de personalidade jamais praticado em nossa histria poltica como veculo para a extino dos personalismos ou, pelo menos, de 'favores pessoais'. A vassoura, instrumento para a remoo da sujeira; mas sujeira onde, de quem? A sujeira administrativa, a corrupo, na perspectiva dos pobres. A sujeira, quem sabe, representada pelos pobres, pelas reivindicaes, pela nova periferia urbana, na perspectiva dos setores ultraconservadores da classe mdia tradicional que aderiu ao janismo" (op. cit.). O apelo de Jnio ao discurso moralista, sabidamente sedutor para a indigncia poltica das classes mdias mas tambm para o elitismo sutilmente hipcrita dos bacharis vinha de longe, e de xito comprovado. Sua fulgurante ascenso poltica assentara-se no moralismo radical que explorava habilmente o ressentimento daqueles setores mdios temerosos da "proletarizao". A anlise de Weffort sobre as bases sociais do janismo em So Paulo esclarecedora; tratava-se de uma "classe mdia assalariada, proletarizada ou em vias de proletarizao, que j no tem muito a perder com o desenvolvimento capitalista (...) o moralismo que se expressa em Quadros expressa setores sociais que j no podem partilhar a esperana de favores e facilidades pessoais. J no podem acalentar os mitos do patriarcalismo. Seu novo mito a idia de justia, igualdade incondicional perante a lei. evidente que este moralismo ambguo quanto a seus efeitos polticos, e o lder moralista dos homens do 'tosto' nunca viu impedimentos maiores em se associar aos representantes, tambm moralistas, dos homens do 'milho' " (O Populismo na Poltica Brasileira). Esta anlise permite situar o moralismo janista em suas ambigidades e compreender por que a perseguio administrativa surgia como uma "santa inquisio", pois se tratava de "limitar os privilgios". Da o xito da violncia verbal de Quadros e de seus ares de ascetismo rigoroso, implacvel, autoritrio, porm supostamente justo junto massa equivocada na caracterizao dos verdadeiros donos do poder. Trata-se de um radicalismo de tipo pe-queno-burgus que obscurece e mistifica um reformismo de tipo operrio, circunstncia que denota, e at certo ponto explica, a

enorme ineficincia dos grupos de esquerda junto classe operria de So Paulo(Weffort, op. cit.). J nos primeiros dias de seu governo Jnio Quadros inaugura um estilo inquisitorial na denncia da "crise moral" identificada com a corrupo e a irresponsabilidade do governo anterior. Seria uma nova "caa aos escndalos", moda da agressiva "Banda de Msica" udenista que atormentara os lderes de Getlio e Kubitschek no Congresso. Para Jnio a corrupo aparece como "o filhotismo, o compadrio, o favoritismo sugando a seiva da Nao e obstando o caminho dos mais capazes. No haver ningum, a comear dos mais altos escales administrativos, que possa situar-se fora das normas da exao, compostura e integridade que caracterizaro os negcios pblicos nesse qinqnio". E nesse sentido, ao identificar o empreguismo com a base da corrupo, que Jnio inscreve em seu programa de governo a necessidade de "despolitizar a administrao em geral". Despolitizar significava acabar com o sistema de nomeaes feitas por injunes polticas, ou seja, extinguir a principal fonte do clientelismo urbano. E a retrica do sacrifcio ser sempre invocada, apoiada nos valores morais com os quais o discurso janista identifica o povo: "um povo generoso, um povo bom, um povo excepcional, trabalhador e honesto". Da, os reiterados apelos "compreenso de todos" ("e no quero nada que eu mesmo no faa!") para a conteno de consumo, de reivindicaes salariais, etc. Assim que a varredura da corrupo passa a significar a instruo de dezenas de inquritos administrativos (em grande maioria presididos por oficiais militares) que tendiam a comprometer medidas, pessoas ou grupos vinculados ao governo Kubitschek. Assim ocorreu com as sindicncias da COFAP (Comisso Federal de Abastecimento e Preos), no Instituto Brasileiro do Caf, no IBGE, na SUMOC (Superintendncia da Moeda e do Crdito), no Conselho Nacional de Pesquisas, na SPVEA (Superintendncia pela Valorizao da Amaznia), Rede Ferroviria Federal, na Cia. Siderrgica Nacional, na Cia. Vale do Rio Doce, no Departamento Nacional de Obras contra as Secas, entre outros. Os diversos Institutos da Previdncia Social foram os mais atingidos pela nsia das delaes e devassas. Os relatrios finais, divulgados pela imprensa, chegaram a envolver o nome do vice-presidente (notoriamente comprometido com a poltica trabalhista e previdenciria dos governos anteriores), o que provocou uma virtual ruptura entre Goulart e o presidente, o qual lhe devolveu uma carta por julg-la "descorts". Na maior parte dos casos as srias denncias aos suspeitos eram publicadas sem se assegurarem os direitos de um processo competente. O funcionalismo pblico foi o alvo privilegiado da ao moralizadora. Entre as principais medidas diretamente inspiradas pelo presidente destacam-se as que maior impacto causaram na opinio pblica (intensos noticirios na imprensa) e nos debates parlamentares: a instituio do horrio corrido para o funcionrio federal, o controle do "ponto" e o corte de 30% nas despesas com pessoal. Outras medidas altamente criticadas referem-se reduo de vencimentos ou de "mordomia" para funcionrios em misso no exterior, ao veto ao projeto que dava estabilidade aos empregados

da NOVACAP (o veto presidencial foi derrubado na Cmara dos Deputados), criao de um Grupo de Trabalho para investigar o Contrabando, etc. (Mrio Victor, op. cit.). Tais medidas, a nvel da Presidncia, revelavam a continuidade do moralismo autoritrio do governador paulista que marcara sua eficiente administrao pelo controle absurdamente minudente sobre a "moralidade pblica": visitas "incertas" a rgos de atendimento pblico, fiscalizao do uso de carros oficiais nos fins de semana, acompanhamento das provas dos concursos para simples escriturrio, etc. Ainda na Prefeitura de So Paulo tomaria uma drstica medida para "servir de exemplo perante a nao, do que se devia fazer, doesse a quem doesse, em defesa do patrimnio pblico". Puniu o atleta Ademar Ferreira da Silva, campeo olmpico de salto triplo, por se ter afastado do cargo para a prtica esportista, justificando-se: "infelizmente era um funcionrio relapso e a Prefeitura no clube de atletismo" (Viriato de Castro, O Fenmeno Jnio Quadros). evidente que a cruzada moralizadora servia aos interesses ideolgicos da manipulao janista, visando a reforar seu prestgio popular ("o povo ser a um tempo minha bssola e o meu destino"), mas tambm ao clculo poltico que impunha a derrocada final da herana getulista. Isso porque a devassa nos setores da administrao pblica minava diretamente o controle clientelstico dos representantes da aliana PSD-PTB. bem verdade, tambm, que, apesar da derrota eleitoral em 1960, esta aliana continuava majoritria nas duas casas do Congresso; pouco a pouco os excessos da "campanha saneadora" passaram a corroer as j frgeis possibilidades de dilogo do presidente com a oposio. Nas palavras de Mrio Victor, Jnio Quadros prosseguia a sua ao contra as ratazanas do Tesouro, como as apelidava Rui Barbosa. "Eu continuarei. Custe o que custar. Nada me deter. No olharei nomes nem posies" (op. cit., p. 162). interessante considerar, no plano da ideologia, o parentesco entre esse moralismo (falso ou verdadeiro, no importa) e o idealismo decorrente da crena de que os fenmenos polticos so regidos prioritariamente por expresses da vontade individual. Trata-se, claro, de uma viso maniquesta, apoiada na diviso entre o "mal" e o "bem" absolutos; e as "foras do mal", para Jnio e os moralistas da UDN, encarnavam-se nas prticas explcitas e "personificadas" da corrupo no poder pblico, sem jamais questionar as fontes, os interesses econmicos e a verdadeira correlao de foras sociais no sistema capitalista que sustentava aquele mesmo poder. J em sua anlise sobre o golpismo e a oposio moralista, que levaram ao suicdio de Getlio, Hlio Jaguaribe assinala que "todo esse moralismo manipulado, todo esse arsenal de velhas paixes puritanas exercidas por todos os meios de difuso, no tem outro valor que no seja o de instrumento til na aglutinao das frustraes da classe mdia" (Cadernos de Nosso Tempo, 1955, n 3). Este moralismo, em ltima instncia, apelar para a soluo golpista como a alternativa radical da "purificao" e da vitria do "bem".

ENTRE NACIONALISMO E "ENTREGUISMO", AS PAZES COM O FMI

Um certo fascnio, alimentado por boa dose de publicidade, cercava a fama de Jnio Quadros como o eficiente administrador das finanas pblicas na Prefeitura e no Governo de So Paulo. Mas a poltica econmica a ser posta em prtica na Presidncia da Repblica permanecia uma incgnita. As propostas do candidato dissolviam-se no discurso geral de defesa da iniciativa privada, prudncia quanto ao capital estrangeiro e sobretudo a grande atrao! o combate inflao, o saneamento dos gastos pblicos e a defesa dos interesses das classes mdias "empobrecidas". Nenhum plano foi apresentado. A confiana expressa na campanha "Jnio vem a" parecia suficiente. Para o setor privado era, talvez, "suficiente" a lembrana do pronunciamento do governador paulista, a respeito da polmica sobre a Petrobrs, de que "o Estado mau patro" (esta famosa frase de Jnio seria seguida da no menos famosa frase do General Lott: "a Petrobrs intocvel"). A expectativa em torno do novo governo expressava, tambm, os interesses daqueles grupos econmicos que, beneficiados pela euforia desenvolvimentista de Kubitschek, temiam, agora, a "exploso social". Defendiam uma "modernizao conservadora", atravs do desenvolvimento com medidas deflacionrias. Logo depois de empossado, Jnio pronuncia um discurso demolidor sobre "as irresponsabilidades" do governo precedente, prometendo o maior rigor para enfrentar a "terrvel situao financeira do Brasil", com a herana de uma dvida externa de cerca de dois bilhes de dlares. Sua poltica econmica apresentava-se, portanto, como a retomada das teses de estabilizao, incluindo certas prticas preconizadas pelo Fundo Monetrio Internacional. O que no poderia ser feito sem muita polmica. E tambm no pode ser entendido sem uma breve aluso crise que marcou o final do governo Kubitschek. em 1959 que Juscelino enfrenta a fase mais difcil do "desenvolvimentismo", pressionado externamente pelo FMI e internamente pelas oposies, que atacavam tanto a inflao quanto os remdios para cont-la. Entre os fatores inflacionrios mais importantes destacam-se os gastos com o ritmo acelerado do Programa de Metas e a construo de Braslia, alm dos aumentos salariais superiores ao custo de vida, e a poltica de emprstimos ao setor Privado, atravs do Banco do Brasil. Acrescente-se o declnio persistente dos preos, em dlares, dos produtos de exportao e a superproduo do caf. O debate econmico no governo JK polariza-se em torno do sistema de taxas de cmbio mltiplas, com a constante presso dos exportadores. A polmica estabilizao-desenvolvimentismo pe em confronto a poltica ortodoxa defendida por Eugnio Gudin, Octavio Gouva de Bulhes e Roberto Campos (o "Bob Fields", cujo enterro simblico seria comemorado pelos estudantes da UNE) e os interesses dos grupos que entendiam "o recurso inflao como

indispensvel para o desenvolvimento". O rompimento de Juscelino com o FMI significava a renncia ao Plano de Estabilizao Monetria, proposto pelo Ministro Lucas Lopes, e cujas medidas seriam praticamente as mesmas do governo Quadros: limitao de crditos, controle operacional sobre bancos particulares, eliminao dos subsdios cambiais, reviso do salrio mnimo, etc. Alm de esbarrar nos interesses do sustentculo poltico-partidrio e social do governo, a estabilizao proposta significaria a negao do Programa de Metas, e, acima de tudo, renunciar construo de Braslia no prazo previsto. O poder do FMI no deve ser subestimado. De seu aval dependia a concesso de emprstimos de capitais privados estrangeiros. Em resumo, a tese do FMI apontava a necessidade de "se pr a casa em ordem" como pr-requisito para receber a ajuda financeira. A "ordem" significava taxa de inflao a menos de 10% ao ano, cmbio unificado, abolio de incentivos a cafeicultores e restrio salarial. Um ms apenas aps a posse, um grupo de empresrios da CONCLAP encaminha ao presidente um documento intitulado "Sugestes para uma Poltica Nacional de Desenvolvimento". Jnio reage agressivamente, como se entendesse sua autoridade solapada por presses indevidas: "Tenho de aplicar medidas drsticas e speras, a fim de conduzir este pas sanidade. So-me indiferentes os aplausos e os apupos (...) Homens poderosos j me procuraram para expressar sua insatisfao com o meu governo. Expliquei-lhes que s h dois meios de tolher os meus passos: depor-me, ou assassinar-me, o que no me parece fcil" (M. Victor, op. cit.). O impacto negativo foi grande para a comunidade empresarial, assim refletida em editoriais da imprensa: "No combina com o cargo e o poder do Presidente da Repblica jogar com palavras ameaadoras". Jnio recorria a gestos e retrica de uma austera independncia, mas a simples escolha de seu Ministro da Fazenda, Clemente Mariani notrio defensor dos interesses do grande capital, nacional e estrangeiro , indicaria que certas providncias sugeridas no memorial da CONCLAP seriam adotadas pelo governo. A reafirmao da empresa privada (contra a ao do Estado) com franca entrada do capital estrangeiro; incentivo exportao com "supresso de quaisquer controles", e com regime cambial favorvel; reduo de gastos pblicos; capitalizao da agricultura contra os "extremismos expropriativistas"; restabelecimento da livre concorrncia no setor de preos e aluguis; e, finalmente, "ao moralizadora" na Previdncia Social e nos sindicatos contra o "peleguismo dos agentes infiltrados no Ministrio do Trabalho". A medida econmico-financeira mais importante do perodo foi a instruo 204 da SUMOC, que pretendia restabelecer a chamada "verdade cambial". Isto , ficavam extintas as taxas mltiplas de cmbio (com cortes radicais aos subsdios para produtos importados) e decretava-se a desvalorizao do cruzeiro em 100%. Os dispositivos da 204 cujo objetivo essencial era diminuir a inflao e corresponder "ordem" esperada do FMI , alm do evidente reforo s finanas do governo, favoreciam os interesses

da burguesia agrrio-exportadora e dos investidores estrangeiros. Mas teriam efeitos devastadores para a grande maioria da populao: aumento no preo dos gneros de primeira necessidade (pelo corte aos subsdios ao trigo), nos transportes (corte aos subsdios a leo e combustveis), alm de medidas que incidiriam sobre o congelamento parcial dos salrios. "A elevao do cmbio de custo de Cr$ 100,00 para Cr$ 200,00, pela instruo 204, encarece os custos de produo da indstria, uma vez que diversas matrias-primas e equipamentos eram adquiridos no exterior por cmbio favorecido. As indstrias instaladas nas reas subdesenvolvidas so ainda duplamente prejudicadas, por dependerem de suprimentos oriundos do exterior ou do parque manufatureiro do Centro-Sul. A clusula V da instruo parece destinada a proteger certas empresas estrangeiras, pois assegura no lhes ser aplicada a majorao do custo do cmbio, seno quando reajustarem as suas tarifas; em outras palavras, seno quando transferirem para o consumidor os nus da providncia" (Guerreiro Ramos, op. cit.). O Jornal do Brasil assim condenava o aspecto drstico da instruo: "De 1958 a 1959 o reajustamento do custo de cmbio de 50 a 100 cruzeiros foi realizado em trs etapas e, ainda assim, ocasionou um impacto de 50% no custo de vida. Sua Exa. cobra ao presente um preo que no s est muito acima das possibilidades imediatas do responsvel final, que o povo, como discutvel tambm seria admitir a justeza da cobrana que se exige de uma s vez" (Mrio Victor, op. cit.). Aos que atacavam a medida, Jnio lembrava que prometera mesmo um governo "duro, durssimo", para combater o "ciclo de insnias" precedente, e acrescentava: "e h ainda quem fala na 204, merecendo ser posto sobre os joelhos, ter determinada parte mais carnuda que Deus todo-poderoso fez, muito a propsito mais descoberta, para receber vigorosas palmadas" (Jornal do Brasil, 5/4/61). E, aos nacionalistas que apontavam o golpe da 204 contra a Petrobrs, respondia Jnio: "Encontrei a Petrobrs de joelhos, ou de rastros, sobre a barriga, pedindo um bilho de cruzeiros ao Banco do Brasil. Quebrada, falida. E eu, que fui acusado de entreguista, sou quem a sustenta, quem a defende... Hoje, com a 204, deve ser feliz possuidora de alguns bilhes, pagos pelo nosso povo" (idem). Afinal, era ele ou o "povo" que sustentava a Petrobrs com a 204? O Ministro de Minas e Energia, Joo Agripino, era contra a medida, pois "a verdade cambial num pas como o Brasil, em que a legislao favorece lucros fabulosos, pode significar o maior enriquecimento de poucos custa do sacrifcio do restante da populao". "A reforma cambial s se justificaria se viesse realmente associada s outras reformas prometidas: a lei antitruste, a reforma do imposto de renda, a reforma bancria, a de remessa de lucros para o exterior e a de lucros extraordinrios (...) Sem essa legislao, a verdade cambial significa uma poltica de formao de capitais que muito interessou aos grupos econmicos do Brasil. Tanto que as classes produtoras e a imprensa tida de direita a louvou, aplaudiu e defendeu" (depoimento a O Cruzeiro, 16/11/61). Apesar das polmicas internas e da impopularidade das medidas,

o objetivo principal foi atingido: a apresentao de um perfil "saudvel" ao FMI, na mira de novos emprstimos e renegociao da dvida externa. Os embaixadores Walter Moreira Salles, nos Estados Unidos, e Roberto Campos, na Frana, conseguiram vender a imagem da "estabilizao ortodoxa" (imagem seriamente abalada desde o rompimento de Juscelino com o FMI) e contratar um emprstimo de 2 milhes de dlares. Outra polmica importante refere-se aos projetos da Lei Antitruste e da Lei sobre a Remessa de Lucros. O governo dividiase em duas correntes: a nacionalista, liderada pelo Ministro Joo Agripino, e a "entreguista", do Ministro Clemente Mariani ( interessante lembrar que ambos eram udenistas e que o nacionalismo nunca foi levado a srio na UDN pois, entre outras coisas, era muito identificado com posies "getulistas"). Pela Lei Antitruste seriam considerados abusos do poder econmico "embaraar a criao ou funcionamento de empresas ou monopolizar certa atividade, ou estabelecer a exclusividade de determinada produo, ou distribuio de mercadorias, com o objetivo de controlar o mercado interno". E assim prejudicaria os interesses de muitas empresas estrangeiras (M. Victor, op. cit.). O projeto defendido por Joo Agripino (elaborado pelos deputados Oliveira Brito e Daniel Faraco) previa a interveno nas empresas somente por solicitao do Poder Judicirio e sob seu controle. Interveno que existia no projeto Agamenon Magalhes (apresentado em 1948, baseado na famosa "Lei Malaia", to combatida pelos adversrios de Getulio em 1945) e no substitutivo Adaucto Cardoso, que tramitava na Cmara. O projeto, no entanto, redefinido na conceituao de delitos e sanes e substitui o rgo autnomo pela CADEC (Comisso Administrativa de Defesa Econmica), constituda na base de representaes de Ministrios; o novo rgo, sem nenhuma estabilidade, terminaria por agir sempre em funo do poder dominante ou para proteger ou para destruir as empresas (Joo Agripino, op. cit.). A Lei Antitruste seria aprovada no governo Joo Goulart em setembro de 1962, no gabinete parlamentarista de Brochado da Rocha. Quanto ao projeto de lei regulamentando a remessa de lucros para o exterior, a diviso no governo era mais radical. A proposta de Joo Agripino (elaborada pelo professor mineiro Darcy Bessone) fixava em 10% da moeda de origem a remessa como remunerao de capital e que os lucros restantes, reinvestidos, fossem considerados capital nacional, decorrente de fatores internos. O projeto denunciava, tambm, a vinda de capital estrangeiro para atividades secundrias ou competitivas desigualmente com nosso capital. O Ministro da Fazenda defendia uma linha poltica diferente, que significava tributar fortemente a remessa de lucros e liberar o reinvestimento. Tal poltica significaria, a longo prazo, o fortalecimento de poderosos grupos estrangeiros no pas. "Pelo projeto Mariani, o capital estrangeiro ingressa livremente, retorna livremente, se estabelece na atividade que lhe convier, remete os lucros sujeito apenas tributao" (Joo Agripino, op. cit.). No governo Goulart a linha nacionalista predomina e resulta na

lei aprovada em setembro de 1962. No entanto, em agosto de 1964, em pleno governo "revolucionrio" do General Castello Branco, a proposta "entreguista" de Mariani vitoriosa na nova Lei de Remessa de Lucros, inaugurando-se uma poltica frente ao capital estrangeiro definida por Aliomar Baleeiro como a "porta escancarada". A posio de Jnio, na questo, era tambm marcada pela concepo moralista. Em maio de 1960, ao receber um grupo de sindicalistas que apoiavam sua candidatura, declarava-se a favor de uma lei de remessa de lucros, porm "prudente para no assustar os capitais estrangeiros, e firme para no encorajar o capital estrangeiro desonesto" (M. Victor, op. cit.). Alm da prpria complexidade das questes envolvidas, uma das principais razes para o desencontro das polticas econmicas do governo era a total indiferena de Jnio pelas virtudes do planejamento. Seu personalismo extremado, aliado a um certo provincianismo de quem ainda raciocina em termos de Prefeitura e Governo Estadual, favorecia a situao de isolamento em que passara a governar, estranho aos complexos meandros da "mquina federal". Nunca trabalhou seriamente em conjunto com os membros dos ministrios preferia multiplicar os bilhetinhos e no conseguiu consolidar equipes de assessoria tcnica, ou grupo de trabalho, como seu antecessor. Em suas campanhas, desde a Cmara Municipal paulista, o poder pblico, a burocracia emperrada, sempre fora o alvo principal dos ataques e denncias. Na Presidncia, via-se despreparado para enfrentar a questo com eficcia. O Conselho de Desenvolvimento, do governo JK, foi substitudo por uma Comisso Nacional de Planejamento (COPLAN), que no chegou sequer a estudar os primeiros projetos de um novo plano qinqenal, pois foi nomeada s vsperas da renncia. Uma Assessoria Tcnica, solicitada a apresentar um programa preliminar de planejamento, seria inteiramente esvaziada pela ausncia de qualquer diretriz do Poder Executivo. A linha administrativa do governo nunca foi definida. Conta o Ministro Joo Agripino que Jnio lhe confessara que, "se fosse esperar estudos para tomar decises, nada decidiria; ao passo que, decidindo de qualquer forma, se a soluo fosse errada, dentro de pouco tempo seu Ministro teria estudos para convenc-lo do erro". Esta ao emprica, isolada, assistemtica, impetuosa, sem uma viso global das medidas, contribuiria no apenas para uma paralisia administrativa (frente s crises e ao acmulo de demandas) como tambm para aguar a instabilidade emocional do presidente.

EM POLTICA EXTERNA O BRASIL NO MAIS SATLITE

"O Brasil est fadado a ser, por tempo indefinido, um satlite dos Estados Unidos." Esta declarao do jurista Raul Fernandes, ento Ministro das Relaes Exteriores, d o tom da diplomacia brasileira na dcada de cinqenta. E a recusa dessa estranha noo de soberania explicaria o sucesso da poltica externa do governo Quadros junto aos setores nacionalistas e de esquerda. Assim como explicaria, no outro lado, a carga de presses dos grupos polticos e econmicos mais conservadores. Pois a mudana na tradicional "satelizao" significava no apenas reformular o alinhamento incondicional com os Estados Unidos em questes internacionais, como tambm admitir que havia reas de atrito entre interesses brasileiros e norte-americanos. Significava, igualmente, a defesa de uma posio "independente" entre as duas grandes potncias mundiais, e uma tentativa de aproximao com o chamado Terceiro Mundo. Tudo isso no poderia se dar impunemente, num governo marcado por tantas contradies na rea econmica e apoiado por foras polticas antagnicas. O ponto alto da plataforma janista na campanha de 1960 era a proposta de abertura na poltica externa, sobretudo em relao aos pases socialistas: "no meu governo tudo se far, abrindo as portas do comrcio para o mundo, sem distino de credo poltico ou ideolgico". Era esta, sem dvida, a fonte de perplexidades para os articuladores das candidaturas Lott e Jnio, obrigando-os a um jogo ambguo entre posies de "esquerda" e de "direita" (lembre-se que, ainda como candidato, Jnio visitara Cuba a convite de Fidel Castro, convite recusado por Lott). Em linhas gerais, o programa da poltica externa independente inclua os seguintes pontos: estabelecimento ou fortalecimento de vnculos comerciais e diplomticos com os pases socialistas, sobretudo a Unio Sovitica; estabelecimento de relaes cordiais com Cuba, e uma posio de apoio autodeterminao do povo cubano; redefinio do apoio tradicional poltica salazarista quanto s "provncias ultramarinas" (Goa, Damo, Timor e Macau, na sia, e Guin, Angola e Moambique, na frica); solidariedade aos movimentos de emancipao do Terceiro Mundo, incluindo a soberania da Arglia e o movimento de Patrice Lumumba. Conseqncias diretas dessas posies resultariam na abertura de novas embaixadas (Senegal, Gana, Nigria, Etipia, Congo Kinshasa) e na perspectiva de o Brasil apoiar a discusso sobre o ingresso da China na ONU. Quanto Amrica Latina, tratava-se de manter os princpios da OPA (Operao Pan-Americana, inaugurada no governo JK) e fortalecer os laos com os pases da ALALC (Asso-

ciao Latino-Americana de Livre Comrcio). Tratava-se, em especial, de firmar um acordo privilegiado com a Argentina para enfrentar a hegemonia norte-americana no continente (lembre-se que data do incio do governo Quadros o lanamento dos planos da "Aliana para o Progresso" pelo presidente Kennedy). "Ao lado das foras progressistas da Histria", no dizer do chanceler Afonso Arinos, a poltica independente do Brasil significava, ao invs da propalada "comunizao", o respeito integral aos princpios do Direito Internacional Americano: no interveno; autodeterminao; solidariedade coletiva; antitotalitarismo em geral e anticomunismo em particular. Tratavase, enfim, de manter o equilbrio entre a luta pela autodeterminao dos povos e a luta contra a infiltrao do comunismo internacional na Amrica" (Planalto). Tais ressalvas do liberal udenista no seriam suficientes para enfrentar a oposio reacionria e, principalmente, entrosar uma poltica externa independente com um governo conservador. Assim que a poltica externa tomar-se-ia o alvo privilegiado dos ataques dos setores mais reacionrios das Foras Armadas, da Igreja, das Finanas e dos partidos polticos. Como depe Afonso Arinos, o irredutvel reacionarismo da UDN, com sua viso belle poque da diplomacia, reivindicava a volta "s normas do Itamarati", de sermos instrumentos de decises alheias. A poltica externa transforma-se, ainda, no principal elemento mobilizador do "novo golpismo", pelo qual Carlos Lacerda e seguidores (com amplo apoio em seu jornal Tribuna da Imprensa e em O Globo e O Estado de S. Paulo) tentariam acirrar o anticomunismo visceral dos militares, as suspeitas dos catlicos e o temor das classes mdias. Estavam em questo, evidentemente, os interesses econmicos do capital associado, da grande imprensa, da influente comunidade de portugueses no Rio e em So Paulo, que no poderiam aceitar, entre outras, a poltica anticolonialista na frica e a agressiva independncia em relao aos Estados Unidos. As medidas concretas para a "abertura" iniciaram-se com as misses especiais, incumbidas de ampliar ou planejar o intercmbio econmico com os pases socialistas. A Misso chefiada pelo jornalista Joo Dantas (que acompanhara Jnio em sua viagem Unio Sovitica em 1959) visitou, de abril a junho, os seguintes pases: Albnia, Bulgria, Romnia, Iugoslvia e Hungria, onde foram firmados acordos bilaterais de comrcio e pagamento. A Misso Leo de Moura destinou-se Unio Sovitica e, finalmente, a Misso chefiada pelo vice-presidente Joo Goulart, para a China, seria interrompida com a renncia de Jnio. importante assinalar que desde o governo Vargas vigoravam acordos comerciais com pases do Leste europeu, reforados e ampliados no governo Kubitschek. A inovao dar-se-ia, com Jnio, na nfase ampliao do intercmbio e na proposta de reatamento de relaes diplomticas, assim como na incluso da China no roteiro.

Importa assinalar, tambm, que, ao mesmo tempo que seguia para o Leste a Misso Dantas, o embaixador Roberto Campos percorria os pases do "Oeste Europeu" (Clube de Haia) e o embaixador Walter Moreira Salles os Estados Unidos, para negociar as dvidas e levantar novos emprstimos. E, tambm, claro, tranqilizar os tradicionais aliados quanto permanncia do Brasil no bloco ocidental capitalista cristo. A imprensa divulgaria com grande destaque os resultados dessas duas misses, em termos das "boas intenes" dos americanos e dos europeus. Lembre-se que tais "bondades" foram feitas justamente aps a fracassada tentativa de invaso americana em Cuba. A maior dificuldade encontrada pela Misso Dantas se refere aos problemas diplomticos provocados pela aproximao do Brasil com a Repblica Democrtica Alem. Para os alemes ocidentais qualquer acordo, de governo a governo, representaria um inadmissvel reconhecimento da Alemanha da "cortina de ferro". O acordo comercial sairia, portanto, "sem nvel governamental", resolvendo-se, no plano externo, o incidente diplomtico. No plano interno a crise culmina com a demisso do Secretrio-geral do Itamarati, Vasco Leito da Cunha, que, motivado por informaes alarmantes de Roberto Campos, desautorizara a Misso Dantas junto ao governo de Pankov. A invaso de Cuba patrocinada por grupos econmicos e militares norte-americanos, e com ampla cobertura do presidente John Kennedy, agravaria a polmica sobre os rumos "comunizantes" da poltica externa. A posio brasileira contra a invaso, e a favor da autodeterminao do povo cubano, seria violentamente atacada por Carlos Lacerda e demais setores da direita organizada. Em entrevista televiso americana, Lacerda declarou-se enfaticamente favorvel interveno militar em Cuba. Na televiso brasileira diria: "No momento o Brasil apia uma das mais sanguinrias, uma das mais torpes, uma das mais sujas ditaduras do mundo, pois, no momento, a nao que fortifica a tirania de Fidel Castro no continente". O Embaixador americano John Moors Cabot acrescentaria que o Brasil estava "comprometido" com Cuba, o que desapontava os Estados Unidos. O jornal O Estado de S. Paulo sintetizava a polmica: "O Sr. Jnio Quadros decidiu imprimir rota de seu governo uma guinada para a esquerda" (Mrio Victor, op. cit.). Toda medida entendida como essa "guinada para a esquerda" repercutia na imprensa norte-americana, para a qual "o colosso do Norte" (expresso local deles) no se conformaria com o desvio de rbita de um de seus mais fiis e importantes satlites. Um exemplo elucidativo. O Itamarati anuncia que votaria, na ONU, a favor da discusso da entrada da China; no se tratava de apoiar a entrada, mas simplesmente de admitir a discusso da matria em Assemblia. Jornalistas americanos consideraram a posio brasileira "uma bofetada direta nos Estados Unidos" (A. Arinos, Planalto). Outra medida de intensa repercusso nacional foi a divulgao das providncias tomadas pelo governo para o restabelecimento das relaes diplomticas com a Unio Sovitica. A Cruzada Brasileira

Anticomunista pichou muros, a grande imprensa acompanhou a virulncia lacerdista e associaes de classe, como a CONCLAP, vieram a pblico manifestar seu desacordo. Pelas palavras do deputado pedecista, Monsenhor Arruda Cmara, expressava-se a "maioria silenciosa" dos catlicos tradicionais, "apontando o inconveniente de se criar esta cabea de ponte, este ninho de serpentes dentro do Brasil". A defesa de Afonso Arinos alm de invocar o exemplo de Roma, com sua embaixada sovitica baseavase nos critrios obrigatrios do intercmbio econmico, pois tratava-se de "vencer a etapa dos mercados tradicionais, cuja saturao na absoro dos nossos produtos evidente" (Mrio Victor, op. cit.). As relaes diplomticas com a Unio Sovitica, no entanto, s seriam restabelecidas no governo Goulart. Os interesses econmicos que sustentavam a poltica externa independente seriam sempre, alis, enfatizados pelo presidente Quadros. Se, por um lado, ele insiste no "dever de formar uma frente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as formas de opresso", reafirma, por outro, que "a rejeio do colonialismo no implica numa solidariedade platnica, mas consoante os interesses nacionais (...) A explorao dos africanos pelo capital europeu prejudicial economia brasileira (...) A idia por trs da poltica externa do Brasil tornara-se agora o instrumento para uma poltica de desenvolvimento nacional" (Jornal do Brasil, 27/9/61). E, finalmente, conclua Jnio que "os interesses materiais no conhecem doutrina". Essas declaraes so significativas. Pois j se tornou lugar comum apontar, como principal causa para o malogro do governo Quadros, o acmulo de tenses divergentes, provocadas pela defesa simultnea de uma poltica externa progressista e uma poltica interna conservadora. Se a afirmao contm sua dose de verdade alis confirmada pelos fatos e pela confisso de "esmagamento" do presidente renunciante , preciso adiantar a anlise levando em conta argumentos da "lgica de interesses", entre o progressismo para fora e o conservadorismo para dentro... No esto em causa, claro, a sinceridade dos formuladores da nova diplomacia; no importa, igualmente, o grau de lealdade com que Jnio tratou os novos parceiros. O que deve ser questionado , exatamente, o aparente paradoxo. At que ponto no haveria razes objetivas para justificar uma agressividade diplomtica justamente em nome dos interesses de uma poltica econmica conservadora? O socilogo Octavio Ianni entende a abertura para o Leste como uma poltica de resultados polticos e econmicos de amplo alcance. Politicamente o Brasil escapava chantagem da "guerra fria" ao mesmo tempo em que reduzia sua dependncia frente aos Estados Unidos, abandonando a "diplomacia subsidiria", e se aproximando do Terceiro Mundo. No plano econmico era uma sada satisfatria para o tipo de industrializao vigente, resultado do desenvolvimento acelerado do qinqnio precedente, que levara alta taxa de capacidade ociosa. J para Brs Arajo, a poltica externa independente no apenas expe, de maneira clara, as contradies do sistema poltico marcado pelas regras do capitalismo dependente, como se insere numa lgica prpria. Ou seja, a exigncia de novos mercados

explica a ofensiva diplomtica assim como as "representaes ideolgicas" para justificar a conquista desses novos mercados. As necessidades objetivas do capitalismo brasileiro no dependeriam nem da "vontade" de um Executivo forte, nem mesmo de um "bloco no poder". A dependncia do sistema, no entanto, provocaria a contraofensiva, tambm lgica, do imperialismo americano e europeu (sobretudo alemo) e de seus aliados internos, tanto na burguesia industrial quanto na latifundiria. Carlos Estevam Martins acrescenta um outro aspecto: o peculiar tipo de nacionalismo janista, como principal instrumento de redefinio do processo de desenvolvimento brasileiro. A presso livremente exercida pelos capitais e pelas autoridades brasileiras era considerada como principal obstculo expanso do capitalismo brasileiro; tratava-se, portanto, de recorrer ttica que consistia em explorar os temores suscitados nos Estados Unidos quanto "sovietizao" da Amrica Latina. "Vendo-se forado a atender s exigncias do FMI e estando convencido, por causa da crise cubana, de que Washington s se dispe a atitudes benevolentes quando confrontado com um clima de urgncia internacional, Quadros passou a lanar mo do que havia a seu alcance para criar apreenso e alarme a respeito dos rumos de seu governo e assim fortalecer seu poder de barganha nas mesas de negociao. Tratava-se de elevar o Brasil ao status de aliado privilegiado, de garantir a ajuda norte-americana em condies tais que o processo de acumulao pudesse prosseguir com o mnimo de prejuzo para o capital nacional e o mximo de entusiasmo popular" (Cadernos CEBRAP, n9, 1972). nesse sentido que no se pode aceitar que a abertura para os pases socialistas e o apoio s lutas anticolonialistas conferia ao governo Quadros uma viso de esquerda. A ambigidade de Jnio em relao s esquerdas sempre foi dosada pelo mais visvel oportunismo. Em momento algum demonstrou qualquer compreenso, por exemplo, pela legalizao do Partido Comunista; "os comunistas so irrecuperveis para a democracia", dizia. Ao contrrio, sua aproximao com as esquerdas era feita justamente atravs de contatos com lideranas marginais organizao. Essa poltica de aproximao fragmentada tinha a grande vantagem de conseguir dividendos externos, sem se comprometer com a "subverso" interna. A anlise de Carlos Estevam ainda esclarecedora. "Para evitar o alijamento prematuro de suas bases conservadores, e, ao mesmo tempo, tornar-se palatvel para o gosto americano, o janismo temperou seu radicalismo externo com uma importante concesso direita: o escalonamento de graus de independncia da poltica exterior (...) O governo manter-se-ia aqum da fronteira que separa a posio independente avessa s imposies polticas ou ideolgicas que limitam as relaes comerciais e diplomticas com outros pases da posio neutra, que se recusa a honrar os compromissos internacionais relacionados com a defesa do bloco ocidental, e do continente, em particular, face ameaa da agresso comunista. Concretamente, essa orientao manifestou-se na recusa oficial ao convite para participar da reunio dos neutros em Belgrado" (op. cit.). Esse equilbrio entre "independncia" e "neutralidade" (Afonso

Arinos insistia na diferena entre neutralismo e neutralidade) sugere as ambigidades da posio brasileira. Embora condenando a invaso de Cuba, por exemplo, a delegao brasileira na ONU termina por se abster de votar a proposta mexicana apoiada por Cuba e acompanha os Estados Unidos na resoluo final, vaga e incua, que apenas recomendava aos Estados-Membros procurar intervir com "medidas pacficas". A nota do Itamarati, alis, era muito clara na condenao implcita aos "rumos socialistas" da revoluo cubana, pois insistia que "a no interveno ope-se a toda dominao econmica ou ideolgica" e defendia a democracia representativa. E, apesar dos princpios do anticolonialismo, o Brasil abstmse de votar a favor de Angola (e contra Portugal) nas sesses da ONU de maro-abril de 1961. O embaixador brasileiro chegou a tecer elogios pblicos " obra portuguesa em Angola". E o governo brasileiro no veria inconveniente em reforar suas relaes com a frica do Sul (Brs Arajo). Apesar das ambigidades e contradies, mescladas a um certo oportunismo, a poltica externa janista tornou-se o principal elemento precipitador da ruptura irreversvel entre as foras, j contraditrias, que compunham o governo. Se a esquerda apia a luta antiimperialista e a aproximao com os pases socialistas (na crena implcita de uma "revoluo pelo alto"), a direita passa a temer com mais vigor a ameaa do comunismo internacional. Os dois grandes partidos nacionais, PSD e UDN, mantm-se divididos, restando o apoio unnime da ala mais avanada do PTB e seus aliados comunistas. A condecorao de Ernesto "Che" Guevara, de passagem pelo Brasil vindo da Conferncia de Punta del Leste (onde desmascara a Aliana para o Progresso), foi a chamada gota d'gua. O Ministro de Economia de Cuba condecorado por Jnio Quadros com a Gr-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul a 18 de agosto. A repercusso nos meios militares e na imprensa foi a mais intensa deste governo. No episdio, Jnio revelaria no apenas oportunismo (no caso, mal conduzido), como os traos de seu conhecido estilo personalista e autoritrio. No consultou seu Ministro das Relaes Exteriores nem os ministros militares e membros do Conselho da Ordem. Cortejou as esquerdas com um presente de grego e comprou, sem necessidade e sem "lucros", um casus belli com a Igreja, os militares (alguns devolveram sua condecorao) e os setores mais conservadores do pas, orquestrados na campanha liderada por Carlos Lacerda. Este, em resposta imediata ao ato presidencial, condecora no Palcio das Laranjeiras um poltico cubano em viagem de propaganda anticastrista. A condecorao a Guevara no fez avanar a posio progressista dos grupos polticos j solidrios com a revoluo cubana. Pelo contrrio, o efeito devastador causado pela cerimnia foi negativo para as esquerdas brasileiras. Tratava-se, ento, de justificar o ato do presidente, desvesti-lo do aspecto de "provocao", defend-lo perante a opinio pblica manipulada pela grande imprensa em sua quase unanimidade. Isso significava, alm do bvio desgaste, um desvio da verdadeira luta pelo reconhecimento dos rumos do socialismo cubano. No final das contas

o pas nada ganhou com a bravata de seu presidente e o movimento por uma poltica externa independente, coerente e responsvel, saiu desgastado. Uma semana aps a polmica condecorao, Jnio Quadros renunciava Presidncia da Repblica.

A RENNCIA

"Ningum perturbar a ordem deste pas comigo vivo. Ningum! E eu no aconselharia, quem quer que seja, a tent-lo" (25 de maro de 1961). "Fui vencido pela reao e, assim, deixo o governo (...) Sinto-me, porm, esmagado. Foras terrveis levantam-se contra mim e me intrigam ou me infamam, at com a desculpa da colaborao. Se permanecesse no manteria a confiana e a tranqilidade, ora quebradas, indispensveis ao exerccio da minha autoridade. Creio, mesmo, que no manteria a prpria paz pblica" (25 de agosto de 1961). Cinco meses apenas separam as duas declaraes, expressivas do incio e do fim desse breve governo marcado pelas contradies e ambigidades. Ambigidades tanto decorrentes da personalidade do presidente, quanto das expectativas e posies, reciprocamente contraditrias, dos diversos grupos sociais que o apoiavam (Hlio Jaguaribe). E que teriam efeitos deletrios para o desenvolvimento do sistema democrtico no pas. Por qu? At que ponto correto imputar a um governante to pesada carga de responsabilidade por um sinistro futuro? claro que um homem no faz sozinho a histria. Mas impossvel negar a responsabilidade do presidente, num sistema presidencialista, e sobretudo daquele presidente que quis governar "acima dos partidos" e com forte apoio nos militares. Como difcil esquecer que, pela primeira vez na Repblica de 1946, um presidente civil recebera a faixa presidencial de outro civil, no prazo marcado pela Constituio. O que inspirava grandes esperanas quanto consolidao do regime democrtico. Mas o personalismo autoritrio de Jnio, o bonapartismo, o moralismo que desemboca no golpismo temas da discusso nas pginas precedentes contribuiriam, de maneira inequvoca, para a crise que "se resolve" em 1964. Em primeiro lugar, pela consolidao da interveno militar na cena poltica, graas ao papel privilegiado concedido aos militares, em detrimento das foras civis. Em segundo lugar, pela exacerbao da extrema-direita organizada, que se mobiliza sobretudo pelos aspectos contraditrios da "poltica externa independente". Em terceiro lugar, pela conseqente radicalizao, no outro extremo, dos setores populares e de esquerda. Estes, profundamente lesados pelo no cumprimento das promessas de efetivas transformaes sociais, sobrecarregariam o governo Goulart de demandas insustentveis num sistema poltico ainda dominado pelos interesses das oligarquias, das elites financeiras e do capitalismo internacional, afinal no atingidos pelos raios punitivos do moralismo janista. Cabe lembrar, igualmente, a responsabilidade da UDN e de seu

ambguo liberalismo, ao permitir a ascenso de Carlos Lacerda, que se torna, para a opinio pblica, o lder nacional do partido. Revigorava-se, assim, o golpismo, fugazmente amortecido na segunda metade do governo Kubitschek pela expectativa de vitria nas eleies com Jnio. O novo golpismo, desta vez ideologicamente apoiado no anticomunismo e no antinacionalismo e no mais no antigetulismo dirigia-se contra supostas disposies golpistas do presidente, na reedio dos "contragolpes preventivos". Significava, tambm, o ntido distanciamento entre a ala radical da UDN carioca e o udenismo dos "histricos" (Milton Campos, Afonso Arinos, Adaucto Lcio Cardoso, entre outros). Significava, acima de tudo, que a nova frustrao com uma falsa vitria (os udenistas reclamavam da marginalizao poltica imposta por Jnio) no seria absorvida pela retrica dos bacharis. E assim como a UDN aceitaria, at com certo alvio, a renncia de Jnio, aceitaria tambm o regime militar instalado aps a deposio do presidente Joo Goulart (M. V. Benevides, op. cit.). Carlos Lacerda seria o avesso do autoritarismo janista. E o avesso de seu golpismo. Pois ao golpe de Jnio responderia o golpe de Lacerda, ou vice-versa, clamando, ambos, por um certo tipo de interveno militar (H. Jaguaribe). Os fatos imediatamente precedentes renncia tm, como protagonista, justamente o governador da Guanabara. O pano de fundo compe-se do clima de denncias sobre a "comunizao" do Itamarati e, sobretudo, pelo profundo ressentimento de Lacerda que no era considerado, como o desejava, "o parceiro privilegiado" do governo federal. Num primeiro momento trata-se do famoso "caso da mala". Lacerda sente-se insultado pelo fato de sua bagagem ter sido colocada na portaria do palcio da Alvorada, onde esperava hospedagem "oficial". Num segundo momento, Lacerda (e no por acaso a 24 de agosto) pronuncia um violento discurso na televiso acusando o presidente de intenes golpistas. Declara ter sido duas vezes convidado pelo Ministro da Justia, Oscar Pedroso Horta, para participar do golpe (lembre-se que esta era uma atitude comum a Lacerda; entre outras coisas, denunciara o convite para participar do levante de Aragaras, em fins de 1959, por seus prprios aliados, oficiais da Aeronutica). As denncias de Lacerda causam um grande impa