(barroco, tuleski, facci, 2013) psicologia histórico-cultural, marxismo e educação

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Teoría y crítica de la psicología 3, 281-301 (2013). ISSN: 2116-3480 281 Psicologia Histórico-Cultural, marxismo e educação Historical-Cultural Psychology, Marxism and Education Silvana Calvo Tuleski, Marilda Gonçalves Dias Facci e Sônia Mari Shima Barroco Universidade Estadual de Maringá (Paraná, Brasil) Resumo. Todos os trabalhos desenvolvidos pelos professores pesquisadores brasileiros integrantes deste grupo que envolve alunos da graduação e pós-graduação em Psicologiapossuem como características básicas os seguintes aspectos: 1) neles, a Psicologia Histórico-Cultural, analisada a partir de seus fundamentos filosóficos marxistas, é tomada como uma das vertentes da Psicologia Crítica; 2) eles discutem possibilidades teóricas e práticas para enfrentamentos da Psicologia hegemônica, que toma os fenômenos humanos pelo viés biologizante ou naturalizante, negando as múltiplas determinações que os geram e os fazem perpetuar; 3) afirmam reiteradamente que o desenvolvimento humano (normal e especial) é histórico-social e, em decorrência, defendem rigorosamente propostas de humanização e transformação de práticas sociais com vistas ao pleno desenvolvimento das funções psicológicas superiores que compõem a consciência; 4) discutem e analisam a constituição histórica do sujeito e sua vinculação com o processo de escolarização, tendo como norte a defesa da apropriação dos conhecimentos científicos como instrumentos para a análise da realidade objetiva; 5) comprometem-se com uma Psicologia que busque a transformação e superação do atual modo de produção capitalista, organicamente excludente. Deste modo, as pesquisas se voltam para uma leitura crítica da realidade, pautada nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural elaborada por L. S. Vigotski, A. R. Luria e A. N. Leontiev, objetivando criar condições para a transformação da práxis psicológica e pedagógica e, consequentemente, da sociedade. Palavras-chave: Psicologia Histórico-Cultural; Psicologia marxista; práxis psicológica; educação para a humanização. Abstract. All work done by Brazilian teachers researchers, involving students in the Undergraduate and Postgraduate Diploma in Psychology whose founding characteristics are the following: 1. The Historical-Cultural Psychology, analyzed from its Marxists philosophical foundations, is taken as one element of Critical Psychology; 2. Discussion of theoretical and practical possibilities for coping Hegemonic Psychology, which naturalizes human phenomena by biologizing bias; 3. Repeated affirmation of human development (normal and special) as socio-historical and statement of proposals for humanization and transformation of social practices with a view to the full development of higher psychological functions that make up the conscience; 4. Discussion and analysis of the historical constitution of the subject and its relationship with the schooling process, with

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  • Teora y crtica de la psicologa 3, 281-301 (2013). ISSN: 2116-3480

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    Psicologia Histrico-Cultural, marxismo e educao

    Historical-Cultural Psychology, Marxism and Education

    Silvana Calvo Tuleski, Marilda Gonalves Dias Facci e

    Snia Mari Shima Barroco

    Universidade Estadual de Maring (Paran, Brasil)

    Resumo. Todos os trabalhos desenvolvidos pelos professores pesquisadores brasileiros

    integrantes deste grupo que envolve alunos da graduao e ps-graduao em Psicologia possuem como caractersticas bsicas os seguintes aspectos: 1) neles, a Psicologia

    Histrico-Cultural, analisada a partir de seus fundamentos filosficos marxistas, tomada

    como uma das vertentes da Psicologia Crtica; 2) eles discutem possibilidades tericas e

    prticas para enfrentamentos da Psicologia hegemnica, que toma os fenmenos humanos

    pelo vis biologizante ou naturalizante, negando as mltiplas determinaes que os geram

    e os fazem perpetuar; 3) afirmam reiteradamente que o desenvolvimento humano (normal e

    especial) histrico-social e, em decorrncia, defendem rigorosamente propostas de

    humanizao e transformao de prticas sociais com vistas ao pleno desenvolvimento das

    funes psicolgicas superiores que compem a conscincia; 4) discutem e analisam a

    constituio histrica do sujeito e sua vinculao com o processo de escolarizao, tendo

    como norte a defesa da apropriao dos conhecimentos cientficos como instrumentos para

    a anlise da realidade objetiva; 5) comprometem-se com uma Psicologia que busque a

    transformao e superao do atual modo de produo capitalista, organicamente

    excludente. Deste modo, as pesquisas se voltam para uma leitura crtica da realidade,

    pautada nos pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural elaborada por L. S. Vigotski, A.

    R. Luria e A. N. Leontiev, objetivando criar condies para a transformao da prxis

    psicolgica e pedaggica e, consequentemente, da sociedade.

    Palavras-chave: Psicologia Histrico-Cultural; Psicologia marxista; prxis psicolgica;

    educao para a humanizao.

    Abstract. All work done by Brazilian teachers researchers, involving students in the

    Undergraduate and Postgraduate Diploma in Psychology whose founding characteristics

    are the following: 1. The Historical-Cultural Psychology, analyzed from its Marxists

    philosophical foundations, is taken as one element of Critical Psychology; 2. Discussion of

    theoretical and practical possibilities for coping Hegemonic Psychology, which naturalizes

    human phenomena by biologizing bias; 3. Repeated affirmation of human development

    (normal and special) as socio-historical and statement of proposals for humanization and

    transformation of social practices with a view to the full development of higher

    psychological functions that make up the conscience; 4. Discussion and analysis of the

    historical constitution of the subject and its relationship with the schooling process, with

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    the north to defend the appropriation of scientific knowledge as tools for the analysis of

    objective reality. 5. The commitment to a psychology that seeks to transform and overcome

    the current capitalist mode of production, organically exclusionary. Thus, researches are

    turning to a critical reading of reality, based on the assumptions of Historical-Cultural

    Psychology developed by Vigotski, Luria and Leontiev, aimed at creating conditions for the

    transformation of psychological and pedagogical praxis.

    Keywords: Historical-Cultural Psychology, Marxist Psychology, psychological praxis,

    education for humanization

    Introduo: Por que a Psicologia Histrico-Cultural pode ser considerada uma

    vertente da Psicologia Crtica?

    Iniciaremos este texto buscando elementos que explicitem a base terica sobre a qual se

    assentam os trabalhos de autores da Psicologia Histrico-Cultural, ou seja, o materialismo

    histrico-dialtico e o conceito de crtica nesta vertente terica, para, em seguida, expor os

    pressupostos fundantes das prticas em psicologia educacional encaminhadas.

    De acordo com Duarte (2000), o mtodo adotado por Vigotski dialtico porque a

    apreenso da realidade no ocorre de forma imediata, no nvel da aparncia; o

    conhecimento se d pela mediao do abstrato, buscando a essncia dos fenmenos, e no

    sua aparncia. Neste sentido, cabe retomar as ideias de Vigotski (1996) quando ele afirma

    que [...] o conhecimento cientfico tem que se libertar da percepo direta (p. 285) e ainda que [...] a base do conhecimento cientfico consiste em sair dos limites do visvel e buscar seu significado, que no pode ser observado (p. 289) de modo direto e sem mediaes que explicitem as mltiplas determinaes que geram e mantm os fatos ou

    fenmenos (tomados como objetos). Cabe, portanto, ir essncia dos fatos estudados, como

    afirma Duarte (2000), o que implica em ir essncia da prpria realidade objetiva, s

    relaes sociais.

    Esse entendimento tem subsidiado o nosso trabalho na formao de psiclogos no

    curso de graduao em Psicologia na Universidade Estadual de Maring (Estado do

    Paran/Brasil), as atividades voltadas formao continuada de professores (da educao

    regular e especial) e de outros profissionais das reas da educao e da sade, por meio de

    cursos e de assessorias vinculados ao governo federal do Brasil1, ao governo do Estado do

    Paran e aos governos de vrios municpios deste estado (como Maring, Cascavel,

    Cianorte, Campo Mouro, Lobato, Paiandu, entre outros). Tambm tem norteado nossa

    atividade de docncia em nvel de ps-graduao, seja junto ao Programa de Ps-

    Graduao em Psicologia (PPI/UEM Mestrado) 2, como em curso de especializao latu sensu intitulado Especializao em Teoria Histrico-Cultural, ofertada pelo Departamento

    de Psicologia (DPI/UEM), que j conta com seis turmas concludas e at o momento parece

    ser o nico no pas.

    1 Houve a participao em cursos de formao docente e de especializao promovidos pelo Ministrio da

    Educao (MEC), sob os ttulos Deficincia Sensorial Auditiva e Educao Escolar Indgena e Atendimento

    Educacional Especializado, respectivamente. 2 Para informes consultar o site www.ppi.uem.br.

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    Temos exposto, portanto, nas atividades formativas que o psiquismo do homem em

    sua singularidade, de acordo com Duarte (2000), s pode ser entendido a partir do conceito

    de totalidade, levando-se em conta as contradies que permeiam as relaes sociais. Neste

    sentido, uma psicologia crtica considera que a questo do mtodo de anlise

    fundamental, pois, como afirma Vigotski (1996, p. 389), a [...] possibilidade da psicologia

    como cincia , antes de mais nada, um problema metodolgico. A dialtica marxista deve guiar a forma de compreender os fatos, pois considera-se que A dialtica abarca a natureza, o pensamento, a histria: a cincia em geral, universal ao mximo. (Vigotski, 1996, p. 393). Por meio deste mtodo possvel negar alguns fatos, buscar sua superao e

    chegar a novas snteses.

    Em outras palavras, situando-nos no campo da Psicologia, procuramos demonstrar

    nas atividades que realizamos que os fatos que se apresentam nas escolas, nas unidades de

    sade, Centros de Referncia de Assistncia Social (CRAS)3 e em outros espaos sociais,

    precisam ser explicados, compreendidos e ter a interveno dos profissionais de modo a

    impactar positivamente desvelando e transformando a prtica instituda. Isso s pode se dar,

    a contento, com o respaldo de uma teoria e um mtodo explicativos de como o ser humano

    se constitui em intrnseca relao com seus pares, com o mundo, em relao dialtica portanto, histrica. Consideramos que essa opo terico-metodolgica para a Psicologia,

    enquanto cincia e profisso, constitui-se como crtica.

    Nesta linha de pensamento, importante destacarmos a historicidade que permeia o

    estudo dos fatos na Psicologia Crtica. Apoiando-nos em Shuare (1990), poderamos

    afirmar que a psiquismo humano tem uma origem histrico-social e todos os fatos devem

    ser estudados levando-se em conta a historicidade. O tempo, nesta perspectiva, tem o

    significado de tempo histrico.

    Para a autora,

    [...] os processos psquicos no se desenvolvem no tempo isolados de suas

    prprias caractersticas intrnsecas, como esse tempo que atua sobre uma

    semente e que constitui a espera, o prazo necessrio para que as estruturas

    internas implcitas se manifestem; no o tempo de maturao, como

    habitualmente se entende, por exemplo, com respeito as estruturas

    fisiolgicas que, aparentemente, contm em seu germem aquilo que sero,

    uma vez que transcorra o tempo correspondente. (Shuare, 1990, p. 59)

    O tempo, por esse modo, refere-se ao processo de desenvolvimento da sociedade.

    Assim, assumir o historicismo, de acordo com Shuare, leva a uma segunda proposio: a

    psique humana possui um desenvolvimento histrico e uma intrnseca relao de

    dependncia essencial para com os fenmenos psquicos, com respeito vida e atividade

    social. Para a autora, o desenvolvimento humano deve ser compreendido a partir da

    atividade produtiva, das relaes que os homens estabelecem entre si e com a natureza. O

    homem se torna, conforme tambm explicita Saviani (2005), com base em Marx, a sntese

    das relaes sociais.

    3 Para maiores informaes ver o site http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/cras .

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    Vigotski (1996, p. 368) afirma que [...] cada pessoa em maior ou menor grau o modelo da sociedade, ou melhor, da classe a que pertence, j que nela se reflete a totalidade

    das relaes sociais., portanto, uma psicologia crtica tem que compreender que o desenvolvimento do psiquismo est atrelado s relaes sociais, que so relaes de classes

    sociais antagnicas e estabelecidas em determinados momentos histricos. Isso nos leva a

    reconhecer que o social, em Vigotski, no implica apenas a reunio de pessoas em interao

    entre si, mas refere-se a indivduos em processo de humanizao em conformidade com as

    condies objetivas postas a cada poca, sociedade e classe social.

    Shuare nos oferece, ainda, uma terceira proposio: a psique humana mediatizada e

    as funes psquicas superiores so o produto da prpria interao mediatizada pelos

    objetos criados pelo homem. Todo comportamento humano mediado por instrumentos e

    signos, conforme veremos no decorrer deste texto.

    O trabalho, compreendido como transformao da natureza, a fonte de mediao

    universal. Segundo Engels (1986), o trabalho foi responsvel pela criao do homem, ele

    a condio fundamental de toda vida humana, da ser tomado como atividade vital. Para

    suprir suas necessidades bsicas e as criadas posteriormente, o homem trabalha, isto ,

    transforma a realidade e, desta forma, tambm se transforma a si mesmo. Ao criar

    processos e meios para retirar da natureza a sua sobrevivncia, ele cria sua prpria

    humanidade e humaniza a natureza. O homem, diferentemente dos animais, no repassa s

    novas geraes apenas as marcas genticas, mas, pelas mediaes estabelecidas, repassa

    tambm experincias e produtos, para dar continuidade ao processo civilizatrio. Ele ,

    pois, ao mesmo tempo sujeito e objeto das relaes sociais que cria e reproduz; sendo

    produto da sociedade, tambm quem a produz. Ser criador e criatura (produto) constitui

    uma relao dialtica e histrica. Enfim, cada progresso adquirido pelo homem significou,

    assim, um avano no domnio da prpria natureza.

    Vigotski compartilha das concepes de Engels sobre o trabalho humano e o uso de

    instrumentos como meios pelos quais o homem, ao transformar a natureza, transforma-se a

    si mesmo, isto , transforma a sua prpria conscincia. Para Marx e Engels (1846), a

    conscincia do homem est determinada pelas condies materiais de vida e pelas relaes

    sociais de produo. Desta forma, mudanas histricas na sociedade e na vida material

    produzem modificaes na natureza humana, isto , na conscincia e no comportamento

    dos homens.

    Marx, assim como Engels, concebe o trabalho como a caracterstica fundamental do

    homem. De acordo com Vigotski (2001b, p. 43), desde que se tornou possvel o trabalho

    na acepo humana da palavra, ou seja, a interveno planejada e racional do homem nos processos naturais com o fim de reagir e controlar os processos vitais do homem e a

    natureza, desde ento a humanidade se projetou um novo degrau biolgico [...] que diferencia o ser humano dos animais. a partir do trabalho que o ser humano, ao

    transformar a natureza, constitui-se como tal, construindo a sociedade e fazendo a histria.

    Para Marx & Engels (1846, p. 39),

    [...] o primeiro pressuposto de toda existncia humana e, portanto, de toda

    histria, que os homens devem estar em condies de viver para poder fazer histria. Mas para viver, preciso antes de tudo comer, beber, ter

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    habitao, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histrico ,

    portanto, a produo dos meios que permitam a satisfao das necessidades,

    a produo da prpria vida material.

    De acordo com Facci (2004), no processo de trabalho o homem tem produzido sua

    histria. Quando se satisfaz a necessidade de subsistncia por meio de instrumentos

    elaborados pelos prprios homens, essa satisfao conduz a novas necessidades. Desta

    forma, para a autora, o homem est em processo constante de transformao da natureza e

    de si prprio, sempre com carncia de suprir necessidades materiais e intelectuais, e a

    formao do psiquismo humano ocorre na coletividade, por meio da apropriao da cultura.

    A apropriao dos bens culturais e materiais provoca a superao das limitaes

    postas pelo desenvolvimento biolgico. O processo de humanizao ocorre quando o

    homem desenvolve as funes psicolgicas superiores tipicamente humanas, tais como abstrao, planejamento, memria lgica, entre outras que o diferenciam dos animais.

    Leontiev (1978, p. 70) afirma que o aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, condio primeira e fundamental da existncia do homem, acarretaram a transformao e a

    humanizao do crebro, dos rgos de atividade externa e dos rgos do sentido. O trabalho, para esse autor, caracterizado pelo uso e fabrico de instrumentos e por se efetuar

    em condies de atividade coletiva. De acordo com Vigotski (1995, p. 85), a cada etapa determinada do domnio das foras da natureza, corresponde sempre uma determinada

    etapa do domnio da conduta, na subordinao dos processos psquicos ao poder do

    homem.

    Para efetivar este domnio sobre a natureza, o homem no s produz ferramentas, mas

    tambm introduz neste processo estmulos artificiais, como, por exemplo, os signos. Estes,

    num primeiro momento, atuam em nvel externo, mas com a gradativa internalizao,

    produzem novas conexes no crebro.

    Nesta mesma linha, Markus (1974) tambm esclarece que o carter da conscincia e

    do conhecimento humano s pode ser compreendido a partir do trabalho, que conduz

    satisfao das necessidades no de um modo direto ou imediato, como o faz nos animais,

    mas sim, de forma mediada. Esta mediao se apresenta em Marx, segundo o autor, de duas

    formas: 1) como instrumento de trabalho que o homem insere entre ele mesmo e o objeto

    de sua necessidade; e 2) como atividade de mediao, o prprio trabalho, que antecede e torna possvel a utilizao do objeto (p. 51). Assim, para o homem, a atividade produtiva pressupe um instrumento de trabalho elaborado, que transforma gradativamente o

    ambiente natural em ambiente humano ou civilizado, um ambiente no qual se objetivaram as necessidades e capacidades do homem (p. 52). Segundo esse autor, ao nascer, o homem

    [...] j encontra objetivadas aquelas necessidades e capacidades que se

    manifestaram no passado, podendo assim dispor materialmente dos

    resultados de todo o desenvolvimento social que lhe antecedeu, to-somente

    por isso torna-se possvel que o processo de desenvolvimento no se veja

    obrigado a recomear sempre do incio, mas possa partir do ponto em que se

    deteve a atividade das geraes anteriores. Apenas o trabalho, enquanto

    objetivao da essncia humana, configura de modo geral a possibilidade da

    histria. (Markus, 1974, p. 52).

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    Como exposto, os estudiosos soviticos Vigotski, Luria e Leontiev buscavam

    fundamentos no marxismo para explicar o desenvolvimento do psiquismo, estabelecendo,

    como apresentamos na citao de Markus (1974), que o ser humano nasce em uma

    sociedade em desenvolvimento, na qual vrios conhecimentos j foram elaborados e devem

    ser apropriados pelas novas geraes. A transformao do comportamento e desejo animal

    em comportamento e desejo humano (processo de humanizao) se d com base e no

    processo de trabalho, o que se apresenta de forma ora explcita ora implcita em toda a obra

    desses autores soviticos.

    A tese marxista de que o homem, ao transformar a natureza, no s a humaniza, mas

    neste processo ele prprio se humaniza - constitui o mundo humano, objetivamente e

    subjetivamente a base de toda a formao e desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, conforme Vigotski, Luria e Leontiev; mas para que essas funes se

    desenvolvam plenamente, no basta a insero de cada novo membro na sociedade, pois, a

    partir do momento em que as sociedades humanas tornaram mais complexas suas

    atividades produtivas, tornaram-se igualmente mais complexos seus mecanismos e

    ferramentas simblicas que permitem a compreenso da realidade em que os homens esto

    inseridos. O desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, como veremos a seguir,

    ocorre na coletividade e demanda a mediao instrumental.

    Psicologia Histrico-Cultural e o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores

    como base para a humanizao

    Luria (1981), na tentativa de compreender a estrutura da atividade mental, isto , o

    funcionamento do crebro, procurou superar duas vertentes explicativas vigentes na sua

    poca: o localizacionismo estreito (pautado na possibilidade de localizar de forma estrita os

    mecanismos mentais mais complexos) e a viso holstica. Opunha-se firmemente

    compreenso do crebro como um conjunto de sistemas reativos ou esquemas elementares

    que incorporam estmulos recebidos do mundo exterior e produzem respostas a estes

    estmulos. Tal abordagem, considerada por ele como uma viso mecnica e passiva do

    funcionamento cerebral, que tornaria esse funcionamento totalmente determinado pela

    experincia pregressa do indivduo, seria inadequada para explicar as funes psicolgicas

    superiores, de origem sociocultural.

    Luria (1981) prope uma nova abordagem das funes corticais superiores. Por

    terem sido formadas ao longo do desenvolvimento histrico e serem sociais em sua origem

    e complexas e hierrquicas em sua estrutura, e por estarem baseadas em um sistema de

    mtodos e meios culturais, implicando nas formas fundamentais da atividade consciente,

    estas formas complexas de atividade devem ser tomadas como sistemas funcionais, o que

    altera radicalmente a abordagem do problema da localizao de funes no crtex cerebral.

    Para ele, os sistemas funcionais distinguem-se no somente pela complexidade de sua

    estrutura, mas tambm pela mobilidade de suas partes constituintes. Alm disso, sua

    estrutura sistmica caracterstica das formas complexas de atividade mental, que no

    podem ser consideradas faculdades isoladas ou localizadas em reas estritas do crtex.

    Luria (1981, p. 16) explicita que as formas superiores da atividade consciente so

    sempre baseadas em certos mecanismos externos, apoios ou artifcios historicamente

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    gerados, que atuam como elementos essenciais no estabelecimento de conexes funcionais entre partes individuais do crebro, e que por meio de sua ajuda reas do crebro que eram

    previamente independentes tornam-se os componentes de um sistema funcional nico. A presena desses vnculos funcionais diferencia o crebro humano do animal, pois eles so

    meios historicamente gerados pelos homens para a organizao de seu comportamento que

    vo determinar novas relaes entre as partes responsveis pela atividade cortical.

    A principal caracterstica que diferencia a regulao da atividade consciente humana

    que esta ocorre com a ntima participao da fala. De acordo com Luria (1981), enquanto

    as formas elementares de regulao de processos orgnicos e as formas mais simples de

    comportamento podem ocorrer sem o auxlio da fala, os processos mentais superiores se

    formam e ocorrem com base na atividade de falar, que expandida nos estgios iniciais de

    desenvolvimento, mas depois se torna cada vez mais contrada ou internalizada. Assim, a

    ao programadora e verificadora do crebro humano realizam-se naquelas formas de

    atividade consciente cuja regulao ocorre pela ntima participao da fala como

    controladora do comportamento.

    Nesse mesmo sentido, Engels (1986, p. 272) afirma que a fala e o trabalho foram os dois estmulos principais sob cuja influncia o crebro do macaco foi-se transformando

    gradualmente em crebro humano que, apesar de toda sua semelhana, supera-o consideravelmente em tamanho e em perfeio. Para esse autor, de acordo com cada nova etapa de desenvolvimento da humanidade, do domnio do homem sobre a natureza, que

    tivera incio com o desenvolvimento da mo, com o trabalho, ia ampliando os horizontes do

    homem, levando-o a descobrir constantemente nos objetos novas propriedades at ento

    desconhecidas. Ele afirma que

    [...] o desenvolvimento do crebro e dos sentidos a seu servio, a crescente

    clareza de conscincia, a capacidade de abstrao e discernimento cada vez

    maiores, reagiram por sua vez sobre o trabalho e a palavra, estimulando mais

    e mais o seu desenvolvimento (Engels, 1986, p. 273).

    Os instrumentos ou ferramentas utilizados para transformar a natureza, produto da

    prtica social, provocaram e provocam o desenvolvimento do funcionamento mental. Luria

    (1994), portanto, coerente com a filosofia marxista, considera que as ferramentas no s

    geram mudanas radicais nas condies de existncia do homem, mas agem sobre ele

    efetuando uma mudana em sua condio psquica. Nas inter-relaes complexas com o

    ambiente, sua organizao est sendo refinada e diferenciada: a mo e o crebro assumem

    formas definidas e esto em processo de evoluo sries de mtodos complexos de conduta,

    objetivando uma adaptao do homem ao mundo circundante e deste ltimo a ele, o

    homem.

    Neste sentido, para ele, nenhum desenvolvimento, nem mesmo o da criana, nas

    condies da sociedade civilizada moderna pode ser reduzido ao desenvolvimento de

    processos inatos naturais e a mudanas morfolgicas por eles condicionadas, mas em todo

    processo de desenvolvimento incluem-se as mudanas efetuadas nos grupos sociais, nas

    formas civilizadas e nos mtodos que ajudam a criana a se adaptar s condies da

    comunidade que a cerca. Tais formas de autoadaptao cultural da criana so mais

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    dependentes das condies do ambiente no qual a criana foi inserida do que propriamente

    de fatores constitucionais.

    Estes mtodos e formas de conduta na criana so constitudos, em primeiro lugar,

    pelas demandas que lhe faz o ambiente. Estas demandas e condies so precisamente os

    fatores que podem ou estancar ou estimular o seu desenvolvimento, pois, ao se exigir da

    criana que trabalhe formas novas de adaptao, provocam-se nela sbitas transformaes,

    obtendo-se "formaes indubitavelmente culturais", cujo papel fundamental em seu

    desenvolvimento (Luria, 1994, p.46). Assim, o comportamento da criana e do adulto em

    relao ao uso prtico de ferramentas e as formas simblicas de atividade conectadas com a

    fala no so duas ligaes paralelas de ao. A partir da mediao instrumental se forma

    uma entidade psicolgica complexa, na qual a atividade simblica dirigida para organizar

    operaes prticas por meio da criao de estmulos de ordem secundria e o planejamento

    do prprio comportamento. Ao contrrio dos animais superiores, no homem acontece uma

    conexo funcional complexa entre a fala, o uso de ferramentas e o campo visual natural, e

    sem a anlise desta ligao a psicologia das atividades prticas do homem seria

    incompreensvel. A formao da unidade humana complexa de fala e operaes prticas produto de um processo profundamente arraigado de desenvolvimento no qual a histria

    individual unida histria social (Vigotski & Luria, 1934, p. 113).

    A criana, ao falar como resolve determinada tarefa prtica com o uso de ferramentas,

    passa a combinar fala e ao em uma estrutura, e deste modo introduz um elemento social

    em sua ao e assim determina o destino da ao e o caminho futuro de desenvolvimento

    do seu comportamento. O comportamento da criana ento transferido pela primeira vez a

    um nvel absolutamente novo, guiado por fatores que levam ao aparecimento de estruturas

    sociais na vida psquica da criana. Assim, a histria inteira do desenvolvimento

    psicolgico da criana mostra que, dos primeiros dias de desenvolvimento, sua adaptao

    ao ambiente alcanada por meios sociais, ou seja, pelas pessoas que a cercam: o caminho

    do objeto para criana e da criana para sua mente passa por outra pessoa (Vigotski &

    Luria, 1934).

    De acordo com Vigotski & Luria (1934), separando a descrio verbal da ao

    (enunciado) antes da prpria ao, a criana socializa seu pensamento prtico, compartilha

    sua ao com outra pessoa e por isso a sua atividade entra em relaes novas com a fala.

    Ao introduzir conscientemente a ao de outra pessoa em suas tentativas de resoluo de

    um problema, ela comea no s a planejar mentalmente sua atividade, mas tambm a

    organizar o comportamento da outra pessoa conforme as exigncias do problema, criando

    condies seguras para sua soluo. Depois este processo deslocado para seu prprio

    comportamento, significando no s a transferncia temporria da fala relacionada com a

    ao, mas tambm a transferncia do centro funcional do sistema inteiro. Assim, se em uma

    primeira fase a fala segue a ao, refletindo-a, fortalecendo seus resultados e permanecendo

    estruturalmente sujeita a ela e provocada por ela, na segunda fase o ponto de partida do

    processo se transfere para a fala, que comea a dominar a ao, gui-la e determinar o curso

    de seu desenvolvimento, constituindo a funo planejadora da fala, que fixa a direo das

    operaes futuras. Destarte, os estmulos autodirigidos de fala mudam no processo de

    evoluo de uns meios de excitao de outra pessoa para autoestmulos, reconstruindo

    radicalmente o comportamento inteiro da criana (Vigotski & Luria, 1934).

  • Teora y crtica de la psicologa 3, 281-301 (2013). ISSN: 2116-3480

    289

    Estas funes, que, do ponto de vista da filognese, no so produto da evoluo

    biolgica do comportamento, e sim, do desenvolvimento histrico da personalidade

    humana, so denominadas por Vigotski & Luria (1934) de funes superiores. Isso se deve

    ao seu lugar no plano de desenvolvimento: sua histria distinta da biognese das funes

    inferiores, sendo considerada sociognese das funes psicolgicas superiores, pela

    natureza social de sua gnese. A histria das funes psicolgicas superiores definida

    como a histria da transformao de meios de comportamento social em meios de

    organizao psicolgica individual.

    Durante este processo de "interiorizao", isto , de transferncia interna de funes,

    no somente acontece uma reconstruo complexa de sua estrutura e o aperfeioando de

    funes separadas no processo de desenvolvimento psicolgico da criana, mas tambm

    so alteradas as ligaes intrafuncionais e suas relaes de modo radical. Como resultado

    destas mudanas surgem sistemas psicolgicos novos que se unem em cooperao e

    combinaes complexas de vrias funes elementares antes separadas. Este conceito de

    funes psicolgicas superiores inclui a combinao complexa de atividades simblicas e

    prticas, isto , a correlao nova de funes, caracterstica do intelecto humano.

    justamente por isso que a atividade humana considerada uma atividade livre, no

    dependente de necessidades diretas e da situao imediatamente percebida - ou seja, uma

    atividade engrenada para o futuro.

    Importncia do Ensino Regular e/ou Especial para a constituio e desenvolvimento

    das funes psicolgicas superiores

    Ao discutirmos a formao das funes psicolgicos superiores numa perspectiva que

    reposiciona o biolgico e o social de modo diferenciado daquele que recorrente nas

    concepes hegemnicas na Psicologia as quais criticamos uma questo se apresenta: que relao existe entre a constituio dessas funes e o processo de escolarizao?

    Para as concepes que tomam a atividade humana como resultante da herana

    biolgica e do processo educacional familiar, a escola se torna espao para expresso do j

    existente, daquilo que o indivduo j possui ou do que, lamentavelmente, no possui. Ao

    contrrio, ante o posicionamento terico aqui defendido, consideramos que a escola se

    constitui em espao para a formao daquilo que no existe mas pode vir a existir, visto que

    o contedo escolar provoca a emergncia e o desenvolvimento das funes propriamente

    humanas: as funes psicolgicas superiores. A escola, alm de ensinar o contedo

    curricular, provoca o desenvolvimento daqueles que por ela passam ou que nela atuam

    (com e sem deficincias); ou seja, ela (ou deveria ser) uma instituio provocadora do

    processo de humanizao. Ela, obviamente, no a nica instituio promotora deste

    processo, porm, como veremos, sua atividade clssica de ensinar assume nele importncia

    fundamental.

    A escola fundamental para o desenvolvimento humano porque, da mesma forma

    que a ao produtiva do homem altera sua constituio biolgica pela criao e uso de

    ferramentas, a apropriao de conhecimentos gera processos de raciocnio completamente

    novos, bem como novas necessidades de conhecer e raciocinar. Para argumentarmos a esse

    respeito preciso, primeiramente, retomar as modificaes que ocorrem do ponto de vista

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    290

    do sujeito, a partir da atividade do trabalho humano. Markus (1974) expe trs

    modificaes: 1) o mundo objetivo estabelece-se como uma realidade estvel,

    independentemente da relao momentnea que se tenha com ele, desaparecendo a fuso

    entre sujeito e objeto existente nos animais; 2) a conscincia humana se constitui na

    apropriao da experincia histrica da sociedade, visto que os traos essenciais do mundo

    objetivo podem ser comunicados a outros indivduos, colocando-os em condio no s de

    compreend-lo, mas tambm de utilizar formas comuns de comunicao; 3) a

    universalidade da conscincia humana, fixada na linguagem (verbal escrita, oralizada,

    sinalizada ou gestualizada), permite a apropriao do mundo em sua atividade material e

    tambm espiritual, modificando a sensibilidade humana, lapidando, aperfeioando e

    humanizando os sentidos4, ou ainda, formando vias colaterais de desenvolvimento diante de

    estados diferenciados pelas deficincias.

    Esse processo de apropriao do mundo humanizado est presente no

    desenvolvimento ontogentico. Markus (1974, p. 54), afirma:

    [...] para a criana, o ambiente humano algo dado, mas no os objetos em sua qualidade humana: esses, enquanto objetos humanos, so apenas

    indicados como uma tarefa a levar a cabo. Para que o menino possa entrar

    em relao com esses objetos enquanto objetivaes das foras essenciais do

    homem, para que possa, portanto, utiliz-los de um modo humano, deve

    desenvolver tambm em si prprio as mesmas faculdades e as mesmas

    foras. Naturalmente, nesse caso, ocorre um processo que j no mais

    espontneo, pois se realiza apenas pela mediao dos adultos e, por

    conseguinte, da sociedade, o que explica o tempo inacreditavelmente breve

    no qual esse processo pode ocorrer.

    Desta forma, apropriar-se de um instrumento significa assimilar uma forma

    determinada de agir que contm instrumento e objeto e transforma ou realiza a conexo

    entre ambos, fazendo do objeto um instrumento para a satisfao de determinadas

    necessidades. Leontiev (1978) afirma, nesse sentido, que o resultado do processo de

    apropriao a reproduo, pelo indivduo, das aptides e funes humanas, historicamente formadas. Neste processo em que se transformam as capacidades humanas, so necessrias determinadas conexes e interaes objetivas para que a atividade do

    sujeito chegue a cabo, as quais, embora no alterem concretamente os rgos humanos (no

    criam novas estruturas ou rgos), podem alter-los funcionalmente. Um olho precisa

    deixar de ser apenas um rgo que recebe impulsos eltricos que se transformam em luz,

    para ser um rgo que capture a complexidade do mundo humanizado; o ouvido, do mesmo

    modo, deve superar seu estado biolgico de capturar ondas sonoras para receber a

    linguagem.

    A vida societria impe que se realize essa transformao dos rgos biolgicos em

    rgos sociais. Nela, as necessidades prticas geram, por sua vez, novas necessidades, e o

    processo de humanizao implica justamente o alargamento dessas necessidades,

    4 Leontiev (1978) afirma que a linguagem uma forma da conscincia e do pensamento humano. A conscincia s pode existir nas condies da existncia da linguagem; ela a forma histrica concreta do

    psiquismo humano.

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    complexificando o corpo e a mente. Retomando a questo da escola, esta pode ser

    considerada como o espao de transformao do biolgico em social. Podemos dizer,

    tambm, que uma das suas funes de maior relevncia na sociedade contempornea diz

    respeito possibilidade de apropriao do pensamento terico ou conceitual.

    As necessidades que determinam o conhecimento vo se tornando, assim, cada vez

    mais numerosas e universais, dirigindo-se totalidade do objeto, da natureza e do homem,

    o que conduz constituio do conhecimento cientfico, mas Isto foi possvel devido ao

    desenvolvimento da produo material, objetivao do homem e universalizao do

    processo de transformao da natureza. De acordo com Markus (1974), a atividade

    cognoscitiva do homem resulta de uma complexa atividade de diversos processos parciais.

    Refere esse autor que, segundo Marx,

    [...] a humanizao dos sentidos suprime a alienao, a absolutizao das vrias atividades parciais de conhecimento; mas, ao mesmo tempo,

    aperfeioando as caractersticas das faculdades cognoscitivas humanas,

    possibilita a atuao do processo do conhecimento num mbito de relativa

    autonomia. [...] Das contradies que eventualmente possam surgir nessa

    atividade [...] surgem novos problemas; e a atividade terica e prtica que

    busca a soluo de tais contradies, no curso do desenvolvimento histrico,

    revela-se capaz de descobrir os limites da atuao parcial do indivduo

    singular, de tomar conscincia deles e, portanto, de chegar a conhecer o

    objeto em sua real natureza. (Markus, 1974, pp. 68-69)

    Sendo assim, a atividade cognoscitiva um processo ininterrupto no qual o

    conhecimento vai superando os prprios limites medida que o indivduo toma conscincia

    deles, e o pensamento conceitual o mais importante meio de garantir tal ampliao. O

    meio natural de existncia, no homem, cede lugar a um meio transformado por ele,

    humanizado, produto da atividade humana que o precedeu, e os objetos que o envolvem

    desde o incio so suportes material-objetivos, objetivaes da experincia, das faculdades

    e necessidades de geraes anteriores. Mas esta faculdade que possibilita a utilizao dos

    objetos artificiais no dada na estrutura fisiolgico-biolgica do organismo humano, ela deve ser desenvolvida durante a educao social (Markus, 1974). Assim, pautando-se em Marx, esse autor demonstra que somente o trabalho e a lngua, que exteriorizam os

    resultados da produo intelectual enquanto objetivaes das foras essenciais humanas, podem criar a possibilidade da evoluo humana continuada e contnua, ou seja, a

    prpria histria, e a condio de acesso a tais conhecimentos s pode ser oferecida pela

    escola.

    Seguindo este raciocnio, na escola, conforme menciona Facci (2004), a partir da e

    para a apropriao do conhecimento cientfico, que o professor deve organizar as atividades

    pedaggicas de forma a dirigir o desenvolvimento psicolgico dos alunos. Se as funes

    psquicas superiores tm como trao comum o fato de serem processos mediados pelo

    emprego de signos como meio fundamental de orientao e domnio nos processos

    psquicos, conforme Vigotski (2001), no processo de formao dos conceitos a palavra o

    signo que tem o papel de meio na formao de um conceito, tornando-se, posteriormente,

    seu smbolo.

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    A apropriao dos conceitos cientficos pelo aluno na escola , assim, considerada um

    fator primordial para o seu desenvolvimento. No campo dos conceitos cientficos ocorrem

    nveis elevados de conscincia dos conceitos espontneos. Vigotski (2001, p. 243) afirma:

    O crescimento contnuo desses nveis elevados no pensamento cientfico e o

    rpido crescimento no pensamento espontneo mostram que o acmulo de

    conhecimentos leva invariavelmente ao aumento dos tipos de pensamento

    cientfico, o que, por sua vez, se manifesta no desenvolvimento do

    pensamento espontneo e redunda na tese do papel prevalente da

    aprendizagem no desenvolvimento do aluno escolar.

    O aluno, quando vai para a escola, possui j uma srie de conhecimentos cotidianos

    que precisam ser superados pelos conhecimentos cientficos, e Vigotski (2001) esclarece

    que ocorre, ento, uma colaborao original entre professor e aluno, a qual promove o

    amadurecimento das funes psicolgicas superiores. Essa colaborao o momento

    central do processo educativo, pois o momento em que o professor intervm na zona de

    desenvolvimento prximo do educando, alterando os conhecimentos espontneos mediante

    a apropriao de conhecimentos cientficos transformados em contedos curriculares e

    assim provocando um maior desenvolvimento psicolgico.

    Formar novos conceitos, para Vigotski (2001), no implica somente em fazer uma

    soma de certos vnculos associativos formados pela memria, mas um ato real e complexo de pensamento que no pode ser aprendido por meio de simples memorizao, s

    podendo ser realizado quando o prprio desenvolvimento mental da criana j houver

    atingido o seu nvel mais elevado (p. 246). Formar novos conceitos implica em fazer generalizaes, em se partir daquilo que para aquilo que ainda no ; significa fazer

    transies de uma estrutura de generalizao a outra, partindo de generalizaes

    rudimentares para outras cada vez mais elevadas, processo que culmina na formao de

    verdadeiros conceitos. Se tomarmos como exemplo a questo do uso do conceito de tempo,

    podemos ver a complexidade desse conceito. Se pensarmos na criana pequena que, em sua

    tenra idade, comea a ter a noo do que significa o termo amanh, e que vai tornando mais complexo este conceito conforme vai se desenvolvendo, tendo acesso a informaes

    de fatos histricos, por exemplo, podemos concluir que o conceito se amplia at que na

    adolescncia ou na idade adulta ela possa se perguntar: - O que ser do amanh do Brasil?. Assim, conforme j dito por Markus (1974), as contradies que surgem nas atividades humanas, sejam estas prticas ou terica, vo sendo resolvidas na singularidade

    por meio da apropriao de novos conhecimentos que ao mesmo tempo satisfazem

    determinadas necessidades e criam outras mais elaboradas.

    Como podemos verificar nesse exemplo, os conceitos cientficos no so apenas

    assimilados ou memorizados pelas crianas; muito pelo contrrio, eles constituem um meio

    mais elaborado da atividade do prprio pensamento do aluno. Quando se inicia um novo

    contedo curricular, o aluno apoia-se em um conhecimento espontneo, em princpio, para

    fazer aproximaes e generalizao em relao ao conhecimento que est sendo exposto

    pelo professor. medida que se apropria de conceitos do tipo superior, como so os

    cientficos, estes conceitos influenciaro os prprios conceitos espontneos j

    internalizados, constituindo-se, assim, como dinmica e dialtica a relao entre

    conhecimentos cientficos e espontneos. Vigotski (2001, pp. 261-262) afirma que existem

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    relaes complexas entre os processos de aprendizagem e de desenvolvimento na formao

    de conceitos e que a escola determina todo o destino do desenvolvimento intelectual da criana, inclusive do desenvolvimento dos seus conceitos. Afirma ainda que os conceitos cientficos no podem surgir na cabea da criana seno a partir de tipos de generalizao elementares e inferiores preexistentes, nunca podendo inserir-se de fora da conscincia da

    criana.

    As diversas disciplinas, com os variados contedos curriculares, desenvolvem, de

    forma conjunta, a capacidade intelectual dos alunos. O pensamento abstrato da criana, o

    raciocnio lgico, o planejamento - enfim, as funes psicolgicas superiores - so

    desenvolvidos de forma global, a partir da sistematizao do conhecimento pelo professor,

    conhecimento que apropriado pela criana. Segundo Vigotski (2001, p. 326),

    [...] existe um processo de aprendizagem; ele tem a sua estrutura interior, a

    sua sequncia, a sua lgica de desencadeamento; e no interior, na cabea de

    cada aluno que estuda, existe uma rede subterrnea de processos que so

    desencadeados e se movimentam no curso da aprendizagem escolar e

    possuem a sua lgica de desenvolvimento.

    Na realidade, segundo Vigotski (2001), ocorre uma tomada de conscincia dos

    contedos ministrados que se constituem numa base comum a todas as funes psquicas

    superiores. Para esse autor, todas as funes bsicas envolvidas na aprendizagem escolar

    giram em torno da tomada de conscincia e da arbitrariedade. Ele relata que o

    desenvolvimento dos conceitos cientficos comea no campo da concretude e do empirismo

    e se movimenta no sentido das propriedades superiores dos conceitos, que exigem a tomada

    de conscincia e a arbitrariedade. Se voltarmos ao exemplo do conceito de tempo, exposto

    acima, podemos dizer que o tempo compreendido pela criana, num primeiro momento,

    apenas como uma sucesso de dias: ontem, hoje e amanh. Conforme ela vai tendo acesso

    aos contedos curriculares da Fsica, da Matemtica, da Histria, por exemplo, esse

    conhecimento aprendido cotidianamente vai se tornando mais complexo, exigindo novas

    elaboraes e formando novos conceitos. Para a formao desses novos conceitos, as

    capacidades de abstrao e de planejamento e a memria lgica so desenvolvidas, em um

    processo dialtico no qual a apropriao de conceitos cientficos provoca o

    desenvolvimento psicolgico, e este, por sua vez, propicia uma nova apropriao de

    conhecimento, e assim, sucessivamente.

    Como em nossa sociedade a escola a instituio mais organizada para transmitir

    conhecimento, ela pode provocar o desenvolvimento das funes psicolgicas dos

    indivduos a partir da apropriao espiritual do mundo, de acordo com Markus (1974), e quando ela se prope a conduzir o aluno ao pensamento por conceitos, isso os ajuda a obter

    um maior conhecimento da realidade, porque

    [...] penetra na essncia interna dos objetos, j que a natureza dos mesmos

    no se revela na contemplao direta de um ou outro objeto isolado, seno

    por meio dos nexos e relaes que se manifestam na dinmica do objeto, em

    seu desenvolvimento vinculado a todo o resto da realidade (Vigotski, 1996,

    p. 79).

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    Com isso, reafirmamos a importncia da prpria concepo de cincia. Como

    apresentamos inicialmente, ela deve ir alm daquilo que se apresenta primeira vista ou na

    aparncia: deve explicitar e explicar as mltiplas determinaes que concorrem para que se

    apresente determinado fato ou fenmeno e o modo como isso se d. Por essa viso

    conhecer de fato a realidade no uma questo tranquila em uma sociedade que,

    ideologicamente, reserva a uma pequena parcela da populao o acesso ao conhecimento

    cientfico e maior parte destina meras informaes.

    Duarte (2000) afirma que os homens constroem suas representaes mentais da

    realidade a partir das necessidades objetivamente postas pela existncia social, o que

    significa que a escola deveria sair de contedos que ficam no plano de categorias simples,

    concretas, e elevar o aluno ao plano do pensamento abstrato, organizado, permitindo-lhe

    desvendar e compreender o real. Tambm expe que o conhecimento decorrente do

    pensamento cientfico a partir da mediao do abstrato no uma construo arbitrria da mente, no o que o fenmeno parece ser ao indivduo, esse conhecimento a captao,

    pelo pensamento, da essncia da realidade objetiva (Duarte, 2000, p. 87). Assim sendo, elevar os alunos dos conhecimentos espontneos ao conhecimento cientfico significa

    promover o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores de forma a permitir que

    eles compreendam a essncia da realidade externa e interna e, a partir desta compreenso,

    tenham possibilidade de revolucionar sua prtica social.

    Facci (2004) demonstra que o conhecimento no verdadeiro sentido da palavra, a

    cincia, a arte e as diversas esferas da vida cultural podem ser corretamente assimilados

    somente por meio dos conceitos, pois, como afirma Vigotski (1996, p. 71) [...] o pensamento em conceitos revela as profundas ligaes que subjazem da realidade, d a

    conhecer as leis que a regem, a ordenar o mundo que se percebe com a ajuda de uma rede

    de relaes lgicas. Para Vigotski, o conceito, segundo a lgica dialtica, no inclui somente o geral, mas tambm o particular e o singular. Ele resulta de um conhecimento

    duradouro e profundo do objeto

    Fazendo uma sntese, podemos concluir, com Facci (2004, p. 226), que a funo da

    escola seria contribuir no desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, haja vista que essas se desenvolvem na coletividade, na relao com outros homens, por meio da

    utilizao de instrumentos e signos; levar os alunos a se apropriarem do conhecimento

    cientfico atuando, por meio do ensino desses conhecimentos, na zona de desenvolvimento

    prximo. Assim, atravs da apropriao dos conhecimentos cientficos que o processo de humanizao dos indivduos pode ocorrer de uma forma mais plena, pois d origem a

    formas especiais de conduta, modifica a atividade das funes psquicas, cria novos nveis

    de desenvolvimento humano e possibilita uma compreenso mais articulada da realidade.

    Essas argumentaes revelam a importncia da escola como agncia de ensino de

    contedos cientficos, de filosofia e de artes, para a formao, nos indivduos, da

    genericidade em sua forma mais elaborada, com vista elevao destes de um estgio

    primitivo a um estado cultural de desenvolvimento. Podemos dizer, ainda, que ao fazermos

    esses assinalamentos se evidencia o compromisso tico e poltico de uma Psicologia

    comprometida com os rumos da humanidade. Tambm cabe ressaltarmos que esse

    compromisso se revela na obra de Vigotski (1997) a respeito da Defectologia sovitica,

    quando o autor demonstra que as diferenas biolgicas no impedem os indivduos de

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    aprender desenvolver-se. Isso se mostra da maior importncia num momento histrico em

    que se defende a incluso de pessoas com deficincia na escola regular, embora esta

    continue de m qualidade para todos os alunos de baixa renda. O fator de excluso so as

    barreiras socioculturais, que nem sempre so visveis e identificveis primeira vista. Essas

    barreiras se perpetuam em escolas e profissionais pouco preparados para a funo clssica

    do ensino e se revelam em justificativas e explicaes que remetem ao biolgico ou aos

    prprios indivduos e aos seus grupos prximos as razes do fracasso em alcanar um

    estgio de desenvolvimento mais complexo.

    Em relao a uma boa educao escolar ofertada a todos, a teoria vigotskiana nos

    leva a compreender que tanto a conduta humana a ser desenvolvida pelo ensino quanto a

    valorao atribuda escola so histrica e socialmente datadas. Ela nos leva tambm a

    compreender que os limites podem ser vencidos mediante compensao, isto , pela

    elaborao e emprego de estratgias de substituio das funes comprometidas pelas

    ntegras, estabelecendo vias colaterais de desenvolvimento, de modo que no haja

    obstculos relao do indivduo com o mundo. Sobre o desenvolvimento diferenciado

    pela deficincia, podemos ainda dizer que se um indivduo no tem olhos biolgicos para

    serem transformados em rgos sociais, possui dedos que precisam assumir a funo de

    decifrar a linguagem codificada em Braille bem como os demais estmulos do meio. Desse

    modo eles assumem, alm da funo principal de apontar e de apreender, a de capturar

    sinais pelo tato. Em outras condies, para a teoria em tela, essa atividade de compensao

    se processa do mesmo modo.

    Com o exposto queremos dizer que, ao investigar e teorizar sobre o desenvolvimento

    diferenciado pela deficincia, Vigotski nos oferece mais elementos para considerarmos que

    a escolarizao fundamental para todos e, alm disso, preciso ter como alvo a

    coletividade. Todos precisam alcanar a capacidade de apreender o mundo em sua

    totalidade e de interpret-lo, para nele atuar e com ele contribuir com um trabalho que seja

    socialmente til.

    O que vimos expondo sobre aspectos crticos ou pistas alternativas Psicologia nos

    estimula a continuar nos estudos da Escola de Vigotski, justamente porque ela busca retirar das mos do destino a causalidade que justificaria os homens a serem o que so, e a

    ir para alm do reino das aparncias no propsito de desvendamento do homem social,

    daquilo que ele produz e do modo como se reproduz (Barroco, 2007, pp. 20, 21).

    Consideraes finais: das possibilidades e impossibilidades de afirmao de teorias

    crticas em Psicologia em tempos de ps-modernidade

    O desenvolvimento da sensibilidade humana e das funes psicolgicas superiores em sua

    plenitude que conduz compreenso do objeto (a realidade) do unilateral-abstrato ao concreto torna o homem rico e profundamente sensvel a tudo (Marx, apud Markus, 1974, p. 65), pois este no tem mais uma relao com o objeto fundada apenas em sua

    utilidade; no o v apenas em suas relaes biologicamente significativas, utilitrias, mas

    ao contrrio o objeto no mundo sensvel desse homem passa a ser objeto tal como existe,

    em si e para si (Markus, 1974).

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    Como vimos, nesse processo, novas capacidades intelectuais surgem e se fazem

    acompanhar de novas necessidades histricas, como a curiosidade cientfica, as aspiraes religiosas e estticas, assim como da necessidade de realiz-las, tornando-as

    cada vez mais universais. Assim, as condies sociais dos indivduos, generalizando-se cada vez mais, permitem a cada indivduo mostrar-se cada vez mais apto a aproveitar

    experincias, conhecimentos e riquezas acumulados pela humanidade. (Markus, 1974, p. 88)

    Cumpre observar, por outro lado, que esta ideia de carter social do indivduo posta

    em Marx, na qual se pautam os tericos da Psicologia Histrico-Cultural, no pode ser

    confundida ou compreendida mecanicamente como uma modelao passiva da natureza

    humana pelo meio material e social. As formas de comportamento e as ideias se constituem

    na e com a atividade humana e durante ela so interiorizadas; portanto, as consequncias

    sociais da atividade que modelam e criam o indivduo so definidas mais ou menos

    estritamente pela sua situao histrica, sua condio de classe, etc., pois o homem s pode

    modelar sua existncia a partir dos materiais que a sociedade coloca sua disposio. A

    situao histrica tambm determina em que medida ele poder realizar uma escolha livre e

    consciente, dentro dos limites e possibilidades postos socialmente. Mesmo numa poca da maior generalizao da alienao, e por mais estreitos que sejam os limites entre os quais

    ele est colocado, o homem cria ele mesmo sua vida a partir dessas matrias brutas. (Markus, 1974, p.90)

    Assim, o homem no se submete simplesmente histria, pois a humanidade quem

    cria sua prpria histria e, neste processo, transforma sua prpria natureza. O processo

    histrico no a soma dos processos externos de socializao em oposio aos impulsos

    naturais, mas sim, o processo pelo qual, atravs do trabalho, o homem se forma e se

    transforma. A principal caracterstica humana est nessa atividade que modela sua prpria

    subjetividade e o coloca num estado constante de movimento do vir-a-ser.

    Quando considerada do ponto de vista da sociedade, a histria o crescente processo

    de universalizao e de libertao do homem; entretanto, a histria at aqui conhecida vem

    significando o aparecimento de indivduos cada vez menos livres e universais e cada vez

    mais unilaterais, limitados, abstratos e fortuitos, pois tudo o que o capitalismo moderno realizou com a produo industrial, como o desenvolvimento e ampliao das necessidades

    humanas e o crescimento dos meios para satisfaz-las, para a maioria dos homens tornou-se

    impossvel ou completamente inacessvel. Para Marx, de acordo com Enguita (1993), no

    h nenhum critrio predeterminado de humanidade ou humanizao, mas tal critrio dado

    pelas conquistas alcanadas pelo homem - da ser diferente em cada indivduo a realizao

    da espcie - enquanto na sociedade capitalista a maioria dos homens tem um complexo de

    necessidades no satisfeitas. Segundo o mesmo autor,

    [...] A realizao de que se fala a do ser genrico do homem, e a

    desumanizao sua perda. No h nenhuma natureza humana abstrata,

    natural ou supra-histrica a ser realizada. Trata-se, simplesmente, de

    saber se o homem individual se situa altura alcanada pela espcie

    ou se, pelo contrrio, se v afastado em massa dela, inclusive se

    converte esse afastamento na condio e base dos mais elevados feitos

    de sua espcie. (Enguita, 1993, p.157)

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    Na sociedade atual temos assistido a um empobrecimento dessa capacidade de

    humanizao, pois mesmo a instituio social que tem a funo de transmitir

    conhecimentos a escola - tem se deteriorado na sua tarefa, tem ficando merc de teorias que desvalorizam o trabalho do professor - conforme observa Facci (2004) - e colocam a

    prtica como fonte de reflexo, em detrimento do contedo. Trabalhar na contramo deste

    processo no tarefa fcil, porm, justamente por no s-lo, ainda maior sua importncia

    neste momento histrico.

    Temos, conforme explicita Moraes (2003, p. 153) celebrado o fim da teoria, priorizando a eficincia e a construo de um terreno consensual que toma por base a experincia imediata; e nessa utopia praticista basta o know-how e a teoria considerada perda de tempo ou especulao metafsica. Desta forma, se neste texto vimos afirmando a necessidade de conceitos cientficos para o desenvolvimento psicolgico,

    perguntamo-nos se nossas escolas, quando ficam somente no conhecimento cotidiano, esto

    contribuindo verdadeiramente para o processo de humanizao, para uma frente de

    resistncia barbrie. O que constatamos a necessidade de enfatizar, no trabalho de

    ensino-aprendizagem, a importncia dos conhecimentos mais elaborados (dos conceitos

    cientficos) e da prpria prxis educativa para o rompimento deste processo de

    naturalizao das relaes sociais de produo capitalistas, de modo a assegurar a

    realizao do ser genrico do homem, isto , a constituio plena de suas funes

    psicolgicas superiores.

    Em nossas atividades de formao de psiclogos, professores e de outros

    profissionais, ao adotarmos essa base terica eleita, e diante do exposto e das ideias de

    Vigotski (1930), que afirma serem os seres humanos criados pela sociedade em que vivem,

    perguntamo-nos: como romper com uma viso biologizante da Psicologia e superar o

    divrcio que ainda existe entre uma psicologia objetivista e uma psicologia subjetivista?

    Considerando este questionamento e tomando os pressupostos j apontados

    entendemos que a Psicologia Histrico-Cultural nos fornece subsdios para alcanar este

    objetivo. Como exemplo, todas as atividades encaminhadas na formao continuada dos

    professores de Educao Infantil, Ensino Fundamental e Mdio no Estado do Paran

    diversos temas foram aprofundados, problematizados, buscando-se a sistematizao de

    novas prticas pedaggicas que fujam ao espontanesmo educativo que se respalda em

    concepes biologizantes. Temas como: Educao Especial, relao desenvolvimento e

    aprendizagem, mediao do professor, implicaes da apropriao do conhecimento

    cientfico para o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores; o desenvolvimento

    da escrita e matemtica; dificuldades no processo de escolarizao; compreenso dos

    distrbios de aprendizagem, dentre outros tm sido exaustivamente explorados a cada ano e

    verifica-se a cada novo trabalho um diferencial na atuao dos professores que nos relatam

    avanos significativos no desenvolvimento de seus alunos a partir do emprego de

    estratgias ancoradas nos pressupostos acima apresentados. Todo o trabalho se respalda na

    busca por sistematizar conceitos cientficos abstratos e como estes podem ser instrumentos

    para viabilizar uma ao efetiva com crianas e adolescentes expostas ao fracasso escolar e

    em estado de vulnerabilidade social, inseridos nas escolas e CRAS, ao esta alicerada na

    problematizao da sociedade atual e na busca de meios para transform-la. Alm de

    contribuir para a fundamentao terica do trabalho do professor dos diversos nveis de

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    ensino, criamos espaos de discusso para que alunos e profissionais da psicologia sob

    nossa formao possam analisar o contexto educacional brasileiro, o cotidiano da sala de

    aula e buscar, nos pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural, ferramenta para superar

    uma prtica psicolgica que muitas vezes no contribui para o desenvolvimento cognitivo e

    emocional do aluno, pois enfatiza a patologia.

    Na graduao, no Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maring,

    orientamos os alunos nos estgios curriculares do 5 ano, a desenvolver prticas no

    contexto educativo com fundamentos dos pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural.

    Temas como relao desenvolvimento e aprendizagem, formao de professores, violncia

    na escola, orientao profissional, orientao sexual, trabalho coletivo, indisciplina,

    avaliao psicolgica das queixas escolares so analisados com base em estudos de autores

    da Escola de Vigotski, tais como Vigotski, Luria e Leontiev, assim como autores brasileiros

    que pesquisaram temticas afetas a relao Psicologia e Educao a partir deste referencial

    terico.

    Quanto ao Programa de Mestrado em Psicologia da UEM, nossos orientandos vm

    pesquisando temticas importantes no sentido de realizar enfrentamentos de concepes

    hegemnicas da Psicologia calcadas na naturalizao e biologizao do desenvolvimento

    humano, para serem socializadas e apropriadas tanto por profissionais da rea de educao

    e reas afins como tambm por alunos da graduao e ps-graduao. Vrios temas foram

    pesquisados tais como: desenvolvimento da ateno voluntria e da memria instrumental,

    periodizao do desenvolvimento humano, cegueira, deficincia intelectual, avaliao

    psicolgica, desenvolvimento das funes psicolgicas superiores, queixas escolares,

    atividade do professor, superdotao, alcoolismo entre outros assuntos.

    Sabemos que este esforo deve ser incansvel diante do quadro que se apresenta em

    termos de acirramento da crise econmica mundial e seus desdobramentos na vida de

    milhares de indivduos expostos a condies subhumanas, porm temos procurado explorar

    diversas frentes de atuao, formao de psiclogos, educadores e pesquisadores.

    Como exposto no incio do texto, desde 2004 temos promovido o desenvolvimento

    do Curso de Especializao em Teoria Histrico-Cultural. Vale destacar que o nico

    curso no Brasil que tem a especificidade de estudos dos fundamentos tericos-

    metodolgicos da Psicologia Histrico-Cultural em nvel de ps-graduao. As aulas so

    ministradas utilizando como referncia textos clssicos de Marx e autores marxistas, assim

    como textos elaborados por autores russos tais como Vigotski, Luria e Leontiev. Foram

    formados cerca de 150 alunos no nvel latu sensu, alunos esses com formao em

    Pedagogia, Psicologia, na sua maioria, mas tambm alunos da rea de Histria, Msica,

    Educao Fsica, Filosofia, Matemtica, Letras, Biologia, entre outras reas. Muitos alunos

    que concluram a Especializao vm de cidades da regio de Maring, mas tambm a

    Especializao contribui para alunos que estavam cursando, paralelamente a estes estudos,

    cursos de Mestrado e Doutorado em outras instituies no Brasil. O foco justamente

    oferecer subsdios tericos sobre pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural e sua base

    calcada no mtodo do materialismo histrico e dialtico.

    Para finalizar, respaldando-nos na citao a seguir, consideramos que as diversas

    prticas elencadas visam romper com as amarras ideolgicas da sociedade capitalista e

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    procuram avanar na compreenso do objeto da psicologia o psiquismo humano pois implicam em partir do pressuposto de que,

    [...] durante perodo histrico determinado no se pode dizer que a

    composio das personalidades humanas represente algo homogneo,

    unvoco. [...] O carter de classe, a diviso de classes presentes so responsveis pelos tipos humanos. As vrias contradies internas, as quais

    se encontram nos diferentes sistemas sociais, encontram sua expresso

    acabada tanto no tipo de personalidade, quanto na estrutura do psiquismo

    humano de um perodo histrico determinado. (Vigotski, 1930, p. 3)

    Nesse perodo, repleto de contradies, uma sociedade que j avanou o suficiente

    para suprir as necessidades de sobrevivncia s pode realmente caminhar em direo

    emancipao se as relaes entre homens forem transformadas. No tocante sociedade

    socialista, Vigotski (1930, p. 9) se posicionava da seguinte forma:

    Essa contradio geral entre o desenvolvimento das foras produtivas e a

    ordem social que correspondente ao nvel de desenvolvimento das foras

    sociais de produo [que j no encontra equivalncia entre foras e relaes

    sociais de produo], resolve-se atravs da revoluo socialista e da

    transio para uma nova ordem social, em uma nova forma de organizao

    das relaes sociais.

    O autor ainda elenca algumas mudanas: A coletivizao, a unificao do trabalho fsico e intelectual, uma mudana nas relaes entre os sexos, a abolio da separao entre

    desenvolvimento fsico e intelectual, esses so os aspectos fundamentais da transformao

    do homem (Vigotski, 1930, p. 11).

    Ser que a psicologia est preparada para empreender aes capazes de promover o

    desenvolvimento de um homem realmente preocupado com a coletividade? Ser que os

    psiclogos, diante de tantas contradies e de um movimento que prima pela defesa de uma

    psicologia que naturaliza os fenmenos humanos pelo vis biologizante, medicalizante,

    amparada em avaliaes estticas, tm condies objetivas para adquirir a concepo

    crtica? Essa viso, sintetizada por Meira (2000, p. 40), parte do princpio de que uma

    concepo crtica quando,

    [...] tem condies de transformar o imediato em mediato; negar as

    aparncias sociais e as iluses ideolgicas; apanhar a totalidade do concreto

    em sua mltiplas determinaes e articular essncia/aparncia, parte/todo,

    singular/universal e passado/presente, compreendendo a sociedade como um

    movimento de vir a ser.

    No texto, tentamos trazer pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural que podem

    contribuir para a efetivao de uma psicologia crtica, que, em nosso entendimento, pode

    ser caracterizada como marxista; mas acreditamos que ainda h muito a fazer em prol desta

    concepo. Como contido em Barroco (2007), ao assumirmos um posicionamento crtico

    na Psicologia, no fazemos apologia ao pessimismo, mas nos posicionamos em favor da

    humanizao do homem com e sem deficincia, em favor do desenvolvimento da

    capacidade de anlise do j vivido e de prognstico sobre o devir.

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    Posicionamo-nos em favor da acessibilidade escola e, sobretudo, ao conhecimento.

    Pleiteamos por uma cincia que de fato se vincule rea da sade explicando como os

    homens se humanizam, como as relaes sociais institudas (decorrentes das relaes com a

    produo e com o mundo do trabalho) tm relao direta com a constituio e o

    desenvolvimento do psiquismo.

    Somos, pois, favorveis a uma psicologia que subsidie a escola e outras instituies

    em uma prtica sria de ensinar a cincia, a cultura, as artes, dentre outros contedos,

    firmando valores positivos para a formao do homem cultural e livre, na contramo de um

    movimento mais amplo de negao do pleno desenvolvimento para grande parcela da

    humanidade.

    Terminamos com Kosik (1976), que no escreve sobre Vigotski nem sobre os

    conceitos cientficos, mas afirma que a prxis utilitria imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condies de orientar-se no mundo, de familiarizar-

    se com as coisas, de manej-las, mas no proporcionam a compreenso das coisas e da

    realidade (p. 14). Desse modo, a escolarizao e o ensino dos conceitos cientficos em si no garantem essa compreenso nem o enfrentamento da alienao; mas se somados a uma

    filosofia que seja arma do trabalhador para desvendar a natureza histrica dos fatos,

    contribuem, sim, para a compreenso das coisas e da realidade para alm da forma

    fenomnica e aparente.

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