andreiagalvao o marxismo

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32º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT 24 - MARXISMO E CIÊNCIAS SOCIAIS O MARXISMO IMPORTA NA ANÁLISE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS? ANDRÉIA GALVÃO – UNIFESP/GUARULHOS CAXAMBU, 27 A 30 DE OUTUBRO DE 2008

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O marxismo

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  • 32 ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS

    GT 24 - MARXISMO E CINCIAS SOCIAIS

    O MARXISMO IMPORTA NA ANLISE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS? ANDRIA GALVO UNIFESP/GUARULHOS

    CAXAMBU, 27 A 30 DE OUTUBRO DE 2008

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    O marxismo importa na anlise dos movimentos sociais?

    Andria Galvo1

    A Amrica Latina tem sido, no perodo recente, palco de diferentes movimentos sociais: movimentos rurais, como o MST no Brasil; urbanos, como os piqueteiros na Argentina; de carter tnico, como os movimentos indgenas na Bolvia, Peru, Equador e Mxico. Esses movimentos tm sido analisados por perspectivas tericas distintas, que destacam, sobretudo, sua composio social e sua plataforma reivindicativa, especialmente no que concerne a demandas de participao popular e ampliao da cidadania. Diversamente, a presente comunicao se prope a analisar esses movimentos a partir de seu carter de classe, partindo do pressuposto terico de as classes no desapareceram e importam na anlise dos movimentos sociais.

    Para tanto, discutiremos como o marxismo analisa os movimentos sociais e quais as especificidades de uma anlise marxista dos movimentos sociais contemporneos. Isso requer, de um lado, tratar criticamente perspectivas como a dos novos movimentos sociais, da mobilizao de recursos, da mobilizao poltica, do reconhecimento; de outro, distinguir a anlise marxista de classes de outras anlises que, embora se valendo de um conceito de classes, no se inserem na perspectiva marxista.

    O presente texto est dividido em trs partes. Na primeira, tecemos algumas consideraes crticas s abordagens supra-mencionadas. No se trata, aqui, de apresent-las de forma pormenorizada, mas to somente de apontar seus limites. Na segunda parte, buscamos indicar os elementos que nos parecem fundamentais para uma anlise marxista dos movimentos sociais. Por fim, empreendemos uma breve anlise dos movimentos sociais na Amrica Latina hoje luz dos elementos que, a nosso ver, caracterizam uma abordagem marxista.

    1 Professora de Sociologia da Unifesp/Guarulhos. Este artigo foi elaborado a partir das discusses do

    grupo de pesquisa Neoliberalismo e classes sociais, vinculado ao Cemarx/Unicamp, ao qual sou grata. Entretanto, sempre bom lembrar que os problemas presentes neste texto so de minha inteira responsabilidade.

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    1. Algumas polmicas com a bibliografia

    As teorias dos novos movimentos sociais e a da mobilizao de recursos, desenvolvidas, respectivamente, na Europa e nos EUA, constituem-se em contraposio ao marxismo. Touraine, um dos mais profcuos e controversos estudiosos dos movimentos sociais, aponta para o carter histrico, datado do conceito (Touraine, 1985). O autor possui uma vasta obra dedicada ao exame desse tema, obra em que possvel distinguir trs momentos: numa primeira etapa, nos escritos que vo at o fim dos anos 60, a classe operria aparece como um dos atores centrais da sociedade industrial; a partir de 1969, diante da institucionalizao do movimento operrio e da aposta na emergncia da sociedade ps-industrial, novos atores assumem o lugar central no conflito social (tornando-se os nicos capazes de mudar o curso da histria); em meados dos anos 80, inaugura uma nova fase em que conclui pela impossibilidade de que um outro movimento social ocupe o lugar que outrora pertencera ao movimento operrio: nem trabalhador, nem cidado, o ator passa a ser o indivduo. A coerncia das 3 etapas assegurada pela idia de que a ao prevalece sobre a estrutura (Broud et al, 1998).

    Touraine define movimento social como a combinao de um princpio de identidade (lutamos em nome de quem?), de um princpio de oposio (contra quem?) e de um princpio de totalidade (que designa a dinmica societria) (Touraine, 1978, p. 109). A partir dessa definio geral, o autor identifica uma sucesso de formas de conflito que portam a historicidade2, o sentido da sociedade, fazendo uma srie de exigncias (que variam de uma obra a outra) para que um movimento possa ser qualificado de movimento social.

    A despeito das diversas formulaes encontradas em sua obra, possvel identificar algumas idias centrais. A primeira delas que as mudanas verificadas na sociedade levariam a uma oposio entre novos e velhos movimentos sociais. Os novos se definiriam por aspectos sociais e culturais: se situam no campo da cultura, da sociabilidade, do modo de vida, dos valores, da identidade de minorias; no se caracterizam pela luta pela igualdade, mas pelo direito diferena. Nesse sentido, no concernem mais diretamente os problemas da produo, da economia, nem dizem respeito a um conflito estrutural: o conflito no est mais associado a um setor

    2 Para Touraine h, no seio de cada sociedade, um s movimento social situado no centro das

    contradies sociais, que encarna um projeto de mudana social, de direo da historicidade.

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    fundamental da atividade social, infraestrutura da sociedade, ao trabalho em particular; ele est em toda a parte (Touraine, 1989, p. 13). A consequncia dessa formulao que os conflitos de classe teriam sido ultrapassados e a luta de classes no seria mais uma categoria analtica relevante: Descobrimos que os conflitos de classes no representam mais os instrumentos de mudanas histricas (Touraine, 1989, p. 15). O conflito portanto deve ser introduzido e reconhecido em todos os domnios da vida social e particularmente ao nvel da organizao social e cultural, portanto, da ordem estabelecida. Onde exista uma ordem, deve existir uma contestao da ordem (Touraine, 1989, p. 16). A respeito dessa primeira idia, possvel afirmar que Touraine, como veremos a seguir, negligencia as continuidades e supervaloriza as mudanas. Uma das maneiras de faz-lo dissociar os movimentos sociais dos processos de explorao e de dominao capitalistas.

    O segundo aspecto enfatizado pelo autor que o conflito s dinmico se no se institucionaliza; se se dirige ao Estado, deixa de ser movimento social. Por isso no considera mais o sindicalismo um movimento social (Touraine, 1989, p. 11) pois, na medida em que este aceita se integrar ao aparelho de Estado, acaba funcionando apenas como uma agncia de regulao (Galvo, 2002, p. 161). Nesse sentido, maio de 1968 exprimiria a crise do movimento operrio e o ingresso na sociedade ps-industrial. Ao se institucionalizar, o movimento operrio deixa de ser um ator social para ser um ator poltico (Mouriaux, 2003, p. 18). Assim, acaba decretando o fim dos conflitos capital/trabalho, sustentando que so outros atores, como as mulheres, os ecologistas, os verdadeiros promotores de mudana nessa nova sociedade.

    O terceiro aspecto que o autor no se coloca a questo da unidade do movimento social: cada movimento social nico, no havendo um princpio poltico que unifique os diferentes movimentos sociais (Touraine, 1985, p. 777).

    Formulaes semelhantes podem ser encontradas na obra de outros estudiosos dos novos movimentos sociais. Para Melucci (1980, p. 200), o marxismo carece de instrumental analtico para compreender os novos atores sociais, j que estes renem coletivos distintos das classes. Os novos conflitos sociais se do em nome da defesa da identidade, da busca do reconhecimento enquanto indivduo, e no se restringem a uma nica classe. Numa abordagem parecida, Evers (1984) enfatiza que a identidade construda pelos indivduos, descartando o conceito de classe por consider-lo um conceito rgido, cuja identidade e papel seriam pr-estabelecidos.

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    Outro elemento encontrado nas teorias dos novos movimentos sociais diz respeito relao entre movimentos sociais e poltica. Para Evers, os novos movimentos

    sociais no diz[em] respeito principalmente ao poder, e sim renovao de padres scio-culturais e scio-psquicos do quotidiano (Evers, 1984, p. 12). Seu potencial de transformao no poltico, mas constituem novas formas de fazer poltica: no so secundrios em relao aos partidos, nem subordinados a eles. Para Offe (1985, p. 819), os novos movimentos sociais seriam afastados em relao ao Estado e regulao poltica ou, conforme Melucci (1980, p. 220), no so focados no sistema poltico. Nesse sentido, exprimiriam a politizao da sociedade civil e a tentativa de emancip-la do Estado, buscando se afastar da poltica institucional (Offe, 1985, p. 820)3. Esta , segundo Vakaloulis (2005), uma abordagem essencialista, na medida em que o movimento social representa a poltica autntica (a valorizao da sociedade civil contra o Estado).

    Embora admita que a base dos novos movimentos sociais predominantemente de classe mdia, Offe (1985, p. 833) entende que esta no movida por uma conscincia de classe, porque no age em nome de seus interesses exclusivos, mas sim em nome de demandas e valores universais (como a paz, o meio-ambiente, os direitos humanos...)4.

    Os novos atores, as demandas mais qualitativas (ambientais, tnicas...), levaram Inglehart (1977) a utilizar o termo ps-materialista, para se referir s reivindicaes por mais autonomia e qualidade de vida que caracterizariam os novos movimentos sociais. Essas reivindicaes seriam possibilitadas pelo desenvolvimento capitalista, cuja abundncia material teria gerado uma nova classe mdia.

    A despeito das diferenas entre essas teorias, elas baseiam-se em duas hipteses centrais:

    3 Embora apresente vrios pontos em comum com os tericos dos novos movimentos sociais, a

    abordagem de Santos , neste ponto, distinta: A novidade dos novos movimentos sociais no est na rejeio poltica, pelo contrrio, est na ampliao da poltica para alm do contexto liberal da distncia entre estado e sociedade civil (Santos, 2003, p. 183). Procurando superar a dicotomia novos/velhos, o autor entende que existem novidades nas estruturas organizativas e no estilo da ao poltica, mas tambm continuidades, uma vez que os que os novos movimentos sociais continuam e aprofundam a luta pela cidadania. 4 Santos tambm considera os movimentos ecolgico e pacifista como exemplos de formas de opresso

    que no atingem especialmente uma nica classe social e sim grupos sociais transclassistas ou at mesmo a sociedade como um todo (Santos, 2003, p. 177).

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    1. A existncia de um declnio histrico dos conflitos do trabalho e da greve.

    2. A existncia de uma ciso entre os conflitos do trabalho e as novas formas de conflituosidade.

    Essa perspectiva insatisfatria, entre outros motivos, porque no considera o renascimento dos movimentos sindicais (do trabalho) e desconsidera os elementos de continuidade e de retorno s prticas dos velhos movimentos (como, por ex., a institucionalizao dos verdes). Afinal, a reivindicao da jornada de trabalho de 8 horas pelo movimento operrio do incio do sculo no qualitativa? (Neveu, 1996, p. 71).

    A teoria da mobilizao de recursos, por sua vez, constitui um prolongamento do paradigma olsoniano, que procura mostrar os paradoxos da ao coletiva5. Essa perspectiva, representada por autores como McCarthy e Zald (1977), enfatiza os recursos, principalmente econmicos e coercitivos, que possibilitam a mobilizao coletiva. Nesse sentido, privilegia menos o movimento, a ao coletiva em si, e mais os meios que so mobilizados para se atingir os objetivos pretendidos. Por esse motivo, tende a desconsiderar as razes que levam mobilizao, menosprezando as crenas, as ideologias, as vises de mundo (Chazel, 1995, p. 325).

    Tarrow (1994) busca compatibilizar as duas perspectivas anteriores, procurando mostrar como os contextos polticos ampliam ou diminuem as chances de sucesso do movimento social. Para isso, incorpora, de maneira crtica, os clssicos do marxismo. A despeito de suas contribuies6, nenhum desses autores teria considerado os recursos necessrios para se engajar na ao coletiva e tampouco teria considerado as oportunidades e constrangimentos polticos7. A partir desse elemento, o autor busca

    5 Em linhas gerais, pode-se dizer que Olson (1999) trata dos obstculos mobilizao: ela no uma

    decorrncia direta do pertencimento a um grupo, mas sim fruto de um clculo racional, por meio do qual o militante se mobiliza apenas se considera que pode obter mais ganhos do que prejuzos. Esse clculo leva em considerao os incentivos materiais eventualmente oferecidos pela organizao aos seus membros e os mecanismos de punio destinados aos free riders. 6 Segundo o autor: as clivagens da sociedade capitalista como um potencial de mobilizao (Marx), a

    preocupao com a organizao dos trabalhadores (Lnin), a preocupao com a construo da hegemonia (Gramsci) (Tarrow, 1994, p. 13). 7 Trata-se de uma crtica, a nosso ver, infundada. O conceito leninista de crise revolucionria e o

    gramsciano de crise de hegemonia no indicariam a preocupao dos autores com as oportunidades polticas geradas, de um lado, pelo conflito entre as classes dominantes que, no limite, levariam sua incapacidade em sustentar a velha ordem e, de outro, pelo fortalecimento do projeto poltico dos dominados? A compreenso de Lnin de que a democracia a melhor forma de governo para o proletariado sob o capitalismo, na medida em que possibilita a organizao e a participao das classes

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    explicar os ciclos de protesto, o que faz com que alguns perodos possam ser marcados pela expanso dos movimentos sociais e outros pelo seu recuo. O autor destaca, entre os aspectos importantes para explicar o surgimento dos movimentos sociais: o funcionamento do sistema econmico, as motivaes individuais, as capacidades organizativas do grupo, a criao ou expanso de oportunidades polticas (considerando que essas mudam ao longo do tempo) e o elemento transnacional (isto , a capacidade das experincias nacionais serem influenciadas por similares estrangeiras ou serem articuladas internacionalmente) (Tarrow, 1999).

    Por fim, uma perspectiva que tem se desenvolvido no perodo recente a da teoria do reconhecimento. Para seu principal expoente, Axel Honneth, os conflitos sociais so decorrncia da infrao das regras do reconhecimento recproco, so uma reao moral ao desrespeito. O autor critica as concepes que vem os conflitos como resultado da disputa de interesses, que devem resultar da distribuio desigual objetiva de oportunidades materiais de vida (Honneth, 2003, p. 255). A despeito dessa crtica, o autor busca apresentar a teoria do reconhecimento como um complemento e uma correo ao modelo de conflitos baseado em interesses, na medida em que permanece sempre uma questo emprica saber at que ponto um conflito social segue a lgica da persecuo de interesses ou a lgica da formao da reao moral (Honneth, 2003, p. 261). Esses dois modelos so, portanto, baseados em lgicas distintas: num caso, a competio por bens escassos ou pelo aumento do poder, tendo em vista a necessidade de preservar as condies de reproduo (perspectiva utilitarista), que elimina o aspecto normativo da luta; no outro, a luta pelas condies intersubjetivas de integridade psquica, pessoal. Apesar dessa distino, acaba subordinando os interesses moral: mesmo os que lutam por interesses o fazem numa perspectiva normativa, pois s a

    aquisio de determinados bens pode conduzir ao reconhecimento e ao respeito.

    Alm do aspecto normativo, a concepo de Honneth fortemente individualista: por luta social entende o processo prtico no qual experincias individuais de desrespeito so interpretadas como experincias cruciais tpicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem influir, como motivos diretores da ao, na exigncia coletiva por relaes ampliadas de reconhecimento (Honneth, 2003, p. 257). A construo de uma identidade coletiva seria possvel a partir de percepes

    dominadas no jogo poltico no constitui, ela tambm, um indcio de sua preocupao com as oportunidades polticas?

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    subjetivas, isto , do reconhecimento de que essa percepo comum a outros indivduos: assim, o desrespeito s leva resistncia coletiva quando o sujeito capaz de articul-los num quadro de interpretao intersubjetivo que os comprova como tpicos de um grupo inteiro (Honneth, 2003, p. 258). O engajamento individual na luta poltica restitui ao indivduo um pouco de seu auto-respeito perdido (Honneth, 2003, p. 259-60).

    Dialogando e, ao mesmo tempo, travando uma polmica com Honneth, Nancy Frazer (2001) busca articular economia e cultura, interesse e reconhecimento. Embora admita que, num dado momento, houve um deslocamento dos movimentos sociais, que assumem bandeiras tpicas do reconhecimento, considera que as questes de redistribuio (ou materialistas) tornaram-se novamente importantes, no que se diferencia de Honneth. Embora a contribuio dessa autora seja importante para a perspectiva marxista, na medida em que revaloriza as demandas econmicas e de classe, seu enfoque se atm ao horizonte da sociedade capitalista, no busca discutir as possibilidades de os movimentos sociais assumirem demandas anti-capitalistas, buscando uma transformao estrutural da sociedade, mesmo que isso no esteja na ordem do dia.

    A reabilitao do conceito de classe feita por outros autores que tambm no se inserem na perspectiva marxista. Eder (2001) discorda daqueles que consideram que a noo de classe deixou de ser importante. Embora os novos movimentos sociais no considerem classe como um elemento definidor de sua identidade, podem ser definidos como movimentos de classe mdia: so formas de radicalismo de classe mdia e protesto de classe mdia (Eder, 2001, p. 7). Isto porque seus membros partilham no apenas uma estrutura de oportunidade social8, mas tambm uma estrutura de oportunidade cultural, na qual os conceitos de boa vida e de relaes sociais consensuais so fundamentais. Para o autor, no adianta atribuir o carter de classe de um movimento social composio social de seus integrantes e apoiadores. O importante analisar a cultura do movimento, o que pode ser feito atravs da identificao de seus interesses, normas e valores.

    8 Essa estrutura entendida como os processos socioestruturais (diferenciao ocupacional,

    diferenciao cultural, diferenciao de renda, diferenciao de estilos de vida etc.) que abrem o espao social para a diferenciao de classe e as relaes de classe Eder, 2001, p. 13).

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    Sallum Jr. tambm enfatiza a importncia da cultura, criticando autores como Melucci, Offe e Inglehart por no conseguirem explicar de modo satisfatrio por que a classe mdia predomina nos novos movimentos sociais. Para Sallum Jr., esses autores subestimam a relevncia da cultura no apenas na articulao entre classe e ao coletiva, mas na conformao mesma dos dois termos... as classes e seus interesses so considerados como dedutveis de suas posies scio-econmicas (Sallum Jr., 2005, p. 23-4). Este autor visa contribuir para preencher o vazio terico decorrente da opo dos estudos sobre classe social se concentrarem na estratificao social, dissociando classe de ao coletiva, e da tendncia dos estudos sobre movimentos sociais a desprezar a relao entre estrutura de classe e ao coletiva. Para isso, busca incorporar a dimenso cultural ao sistema de estratificao, valendo-se da noo de habitus (Bourdieu) e de contradio (Marx), articulando, assim, as categorias analticas que lhe parecem necessrias para pensar tanto a questo da reproduo quanto a da transformao social. As classes sociais no so, por si s, atores coletivos, mas fixam balizas, por sua posio relativa nos planos material e cultural, sociabilidade cotidiana, aos movimentos sociais... (Sallum Jr., 2005, p. 40).

    2. Elementos para uma abordagem marxista dos movimentos sociais

    A teoria marxista, a despeito de seu interesse pelo estudo do movimento operrio, no desenvolveu muito a temtica dos movimentos sociais. As contribuies dos autores vinculados a essa abordagem, sobretudo os clssicos, priorizaram a discusso sobre as formas partido e sindicato, e a relao entre ambas. Nesse sentido, o movimento operrio era o movimento social por excelncia, de modo que a noo de movimento social estava vinculada condio de classe e luta entre capital e trabalho. Essa perspectiva foi desafiada no apenas pela ecloso dos chamados novos movimentos sociais, mas pelas teorias forjadas para explic-los, teorias que, como vimos acima, buscavam negar a relevncia da dimenso de classe e a centralidade da luta de classes.

    Nos anos 70, trs estudos de autores vinculados ao marxismo se destacaram por abordar essa temtica. Trata-se de La question urbaine, de Manuel Castells (1972), de Le marxisme, lEtat et la question urbaine, de Jean Lojkine (1977) e de Luttes urbaines et pouvoir politique (1973), de Manuel Castells. Os dois primeiros trabalhos no tinham como foco os movimentos sociais: Castells faz meno s lutas sociais urbanas,

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    apontando a determinao, em ltima instncia, dos elementos estruturais sobre as prticas sociais; Lojkine, por sua vez, discute o conceito de Estado capitalista e analisa as polticas sociais urbanas a partir dos interesses de classe. Apenas na concluso do livro de Castells encontra-se, sob a forma de tese exploratria, uma definio de movimento social urbano9. No caso de Lojkine, essa questo tratada somente no ltimo captulo do livro: movimento social definido pela capacidade de um conjunto de agentes das classes dominadas diferenciar-se dos papis e funes atravs dos quais a classe (ou frao de classe) dominante garante a subordinao e dependncia dessas classes dominadas com relao ao sistema scio-econmico em vigor (Lojkine, 1981, p. 292). Ele compreende dois processos sociais: A) Um processo de pr-se em movimento de classes, fraes de classe e camadas sociais. Esse primeiro processo define a intensidade e a extenso (o campo social) do movimento social pelo tipo de combinao que une: a) a base social, e; b) a organizao do movimento social [....] B) Do pr-se em movimento ao desafio poltico (Lojkine, 1981, p. 296-7). Essa segunda dimenso significa que todo movimento social portador de um desafio poltico, por isso, deve ser analisado em sua relao com o poder poltico (a crtica aqui a Touraine). Assim, o movimento social ser definido, em ltima instncia, por sua capacidade de transformar o sistema scio-econmico no qual surgiu (Lojkine, 1981, p. 298). Isso requer a anlise de suas reivindicaes e aes (tanto as propostas quanto as realizadas). Apesar de esses trabalhos apresentem teses distintas no que se refere ao papel do Estado e compreenso do urbano, e de no terem como objetivo a anlise dos movimentos sociais, possvel extrair alguns elementos pertinentes para a questo que

    nos importa: os autores consideram o movimento social como expresso da luta de classes; no estabelecem uma ciso entre mobilizao e poder poltico, entre movimento social e organizao poltica; e apontam para as diferentes dimenses polticas do movimento social: lutar pela transformao do sistema scio-econmico no equivale a dizer que o movimento seja revolucionrio.

    No terceiro trabalho supra-mencionado, Castells desenvolve a definio anteriormente proposta, definindo os movimentos sociais urbanos como sistemas de prticas sociais contraditrias que controvertem a ordem estabelecida a partir das

    9 Por movimento social urbano entendemos um sistema de prticas que resulta da articulao de uma

    conjuntura definida, ao mesmo tempo, pela insero dos agentes de apoio na estrutura urbana e na estrutura social, e de tal modo que seu desenvolvimento tenda objetivamente para a transformao estrutural do sistema urbano ou para uma modificao substancial da relao de fora na luta de classes, quer dizer, em ltima instncia, no poder do Estado (Castells, 1983, p. 461).

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    contradies especficas da problemtica urbana (Castells, 1991, p. 3). Embora essa definio se restrinja a movimentos relativos moradia, acesso a servios coletivos e atividades culturais da juventude, o autor fornece pistas importantes para pensar os movimentos sociais em geral a partir da perspectiva marxista: a relao entre vida cotidiana e vida no trabalho (na medida em que a lgica produtiva domina a vida cotidiana); a relao indireta entre problemas urbanos e interesses de classe; a articulao entre os diferentes problemas urbanos; a politizao da questo urbana; o potencial de mudana dos movimentos sociais urbanos; sua capacidade de questionar as leis estruturais da sociedade; a base social inter-classista desses movimentos. Todavia, essa perspectiva no foi desenvolvida, tendo sido inclusive abandonada pelo autor, que posteriormente se afastou do marxismo.

    Nos anos 80, j num contexto de crise do marxismo, dois autores influenciados por Gramsci, Laclau e Mouffe (1985) produziram um trabalho que criticava tanto a teoria dos novos movimentos sociais quanto uma certa abordagem marxista, na medida em que recusava a idia de um agente histrico privilegiado, seja ele um grupo ou uma classe social. Os autores criticavam o marxismo da Segunda Internacional, opondo-se ao economicismo e tese da proletarizao das classes mdias e do campesinato, considerando que sem levar em conta as especificidades dessas classes no seria possvel construir uma alternativa hegemnica das classes dominadas. Por outro lado, valendo-se da noo de identidade, entendiam que as novas contradies sociais provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo no poderiam ser reduzidas ao conceito de interesses de classe. Essas novas contradies, no situadas no nvel das relaes de produo, faziam com que o inimigo contra o qual os movimentos sociais lutam no pudesse mais ser definido em funo da explorao, mas da posse de certo poder derivado de uma organizao social, a um s tempo, capitalista, sexista, patriarcal e racista (Laclau e Mouffe, 1981, p. 21), j que o antagonismo de classe constitui apenas uma das formas de dominao e opresso. Diante disso, os autores se colocam se a seguinte questo: como articular essas identidades sociais dispersas, fragmentadas? A resposta enfatiza a importncia do projeto poltico, pois as identidades polticas no so dadas de antemo, so construdas com base num complexo de prticas discursivas (Laclau e Mouffe, 1985).

    Se reconhecem que o sujeito de classe no unificado, os autores apontam a necessidade de construir uma identidade comum, a despeito das diferenas entre os

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    agentes. Nesse sentido, defendem a articulao entre as demandas apresentadas pelos distintos movimentos sociais. Essa articulao importante para superar as dificuldades e fraquezas de uma lgica fragmentada. Todavia, articulao no significa homogeneizao: ela no deve reduzir ou eliminar as especificidades dos movimentos, de modo que estes devem preservar sua autonomia.

    A unidade no reside na vinculao com o trabalho, nem na condio de classe, embora entendam ser possvel pensar a articulao entre o trabalho e as demais formas de dominao e, portanto, entre a luta dos novos movimentos sociais e a luta da classe trabalhadora. Para isso, importante ver como a lgica capitalista, a maximizao do lucro, est presente em esferas aparentemente desconectadas da economia, como a questo ambiental, j que esta lgica que comanda a destruio dos recursos naturais. Assim, ao mesmo tempo em que sustentam que os movimentos sociais permitem

    fortalecer a luta anti-capitalista, na medida em que lutam contra diferentes formas de dominao, reiteram a necessidade de um projeto poltico que possibilite unificar esses movimentos em torna da luta anti-capitalista.

    Apenas nos anos 90 houve uma renovao dos estudos dos movimentos sociais a partir de uma perspectiva terica marxista. Vejamos como alguns autores franceses tm contribudo para esse debate.

    Vakaloulis (2003) reconhece a extenso das formas de conflituosidade para alm do universo do trabalho. As contradies da nova ordem produtiva, flexvel, ultrapassam as fronteiras da empresa e do origem a lutas distintas: desempregados, sem-direitos, contra o racismo e a xenofobia, igualdade de direitos entre homens e mulheres, defesa das liberdades individuais e coletivas... Assim, distingue dois plos do movimento social: trabalhista, que se inscreve na trilha das lutas operrias (so conflitos de trabalho, embora a recomposio sociolgica do salariato leve esses conflitos para alm da fbrica) e societal, que compreende a ampliao dos direitos sociais, manifestaes contra a guerra, lutas cidads contra o racismo e o Front Nacional. Esses dois plos so interdependentes posto que so resultado das mesmas causas estruturais e suas prticas se opem aos efeitos combinados produzidos pelo sistema (Vakaloulis, 2003, p. 89).

    A abordagem do autor busca pensar o que muda e o que permanece. A luta de classes mudou, no mais aquela do capitalismo fordista. Novos atores e plos de resistncia emergem, que no se reduzem ao movimento operrio, mas as lutas operrias

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    continuam a existir. Reconhecer a existncia de movimentos policlassistas no significa que a dominao e a explorao de classes deixaram de ser importantes. Admitir que os movimentos sociais no surgem apenas da luta de classes, no o mesmo que afirmar que estas foram eliminadas. Por fim, embora esses movimentos no sejam anti-capitalistas, no se situam no exterior da relao capital/trabalho.

    Para o autor, os movimentos sociais so fatores de politizao e de emancipao das trocas sociais (Vakaloulis, 2003, p. 81). A dimenso poltica dos movimentos sociais pode ser observada nos seguintes aspectos:

    1. os movimentos sociais levantam e politizam problemas como emprego, segurana social, sade, aposentadoria...

    2. ao mesmo tempo, recusam a instrumentalizao pela e a submisso poltica partidria e institucional, o que no significa uma verso ps-moderna do anarco-sindicalismo, mas a demanda por igualdade com o poltico.

    3. adotam prticas que ampliam o espao pblico (participao direta, novos repertrios de ao).

    Os movimentos sociais emergem num contexto determinado, no qual h uma dificuldade de apreender a esfera poltica (as dificuldades de se exprimir atravs das instituies disponveis, dos canais de representao tradicionais). Ou seja, eles no exprimem uma rejeio poltica, tampouco se dirigem somente ao Estado. Eles tm projetos prprios, alternativos, expressam uma tentativa de transformao da sociedade. No demandam apenas uma reorientao da poltica de Estado, uma interveno, uma poltica pblica, eles tentam fazer poltica de outro modo, so portadores de concepes distintas do que deve ser a poltica de Estado.

    A anlise dos movimentos sociais deve articular aspectos econmicos, polticos e ideolgicos, das condies objetivas e subjetivas (Broud et al., 1998): a origem comum [dos diferentes movimentos sociais], se que existe uma, est no fato de que certos grupos sociais dominados entram em conflito, de forma direta ou indireta, com a materialidade das relaes de poder e de dominao, mas tambm com o imaginrio social marcado pela dinmica da valorizao/desvalorizao (Vakaloulis, 2005, p. 132). Do mesmo modo, deve articular elementos (e motivaes) conjunturais e determinantes estruturais: A fora de um movimento social no se mede somente por

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    seus efeitos conjunturais (impacto temporrio) ou substanciais (satisfao de reivindicaes). Nem exclusivamente por sua capacidade de pesar sobre a poltica institucional, modificando o que os cientistas polticos chamam de estrutura de oportunidades polticas. Se se coloca do ponto de vista de uma poltica de emancipao, a contribuio fundamental dos movimentos sociais a de colocar os explorados e os dominados na frente da cena, mostrando que o espao de contestao se constri no em termos de contra-poderes mas, sobretudo, em termos de positividade (Vakaloulis, s/d, p. 17).

    Broud, Mouriaux e Vakaloulis apontam a polissemia da expresso movimento social e utilizam-na para designar um processo amplo e multiforme de mobilizaes em busca de transformaes sociais (Broud et al., 1998, p. 21).

    Partindo da contribuio de Tarrow, que define movimentos sociais como contestaes coletivas, baseada em objetivos comuns e solidariedades sociais, numa interao prolongada com elites, oponentes e autoridades (Tarrow, 1994, p. 4), esses autores se propem a prolongar a problemtica marxista do movimento social, definindo-o como a dinmica prpria de um grupo social portador de reivindicaes importantes, durveis e conflituosas (Broud et al., 1998, p. 57). Distinguem movimento social de outras formas de expresso coletiva, que no se excluem mutuamente, para sustentar que nem toda ao coletiva um movimento social. Este se caracteriza pela tendncia autonomia, por reivindicaes explcitas, pela importncia da oposio de classes na estruturao do movimento, pela emergncia de solidariedade e pela necessidade de negociao: Todo movimento social em sua especificidade mesma, no pode ser compreendido sem que seja considerada a centralidade da oposio capital/trabalho no seio das sociedades contemporneas (Broud et al., 1998, p. 58). Assim, trata-se de pensar a possibilidade estrutural da ao coletiva, as articulaes e as sobreposies entre os conflitos do trabalho e os mais transversais (Mouriaux, Broud, 2005, p. 166)10.

    10 por esse motivo que Mouriaux fala em feminismos, no em feminismo no singular: Nas formaes

    sociais capitalistas, as mulheres so objeto de uma opresso especfica herdada do passado e desde ento articulada aos diversos pertencimentos de classe. O feminismo o movimento de emancipao das mulheres que no vislumbram da mesma maneira seu combate libertador, em razo de suas origens sociais diferentes. A diversidade dos feminismos tem, portanto, um fundamento social que se cristaliza em ideologias distintas que, todavia, tm em comum um objetivo emancipador (Mouriaux, 1995, p. 184). Em outras palavras: quando se fala em feminismo, utiliza-se uma expresso aproximativa pois h vrios feminismos: o feminismo burgus existe e no tem nada a ver com o feminismo de origem popular. Antes de mais nada, no so as mesmas organizaes. surpreendente que se coloque na categoria novos

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    A partir dessas consideraes, pode-se afirmar que a perspectiva marxista faz diferena (ou importa) na anlise dos movimentos sociais ao buscar a relao entre ideologia e classe, entre poltica e economia. Compreender o posicionamento de classe requer a anlise das condies materiais, do impacto da ideologia dominante, da relao com as outras classes11.

    O movimento social no fruto de uma oportunidade poltica desconectada da base econmica12, a ao poltica no est desvinculada de interesses materiais.

    Trabalhar com as contradies de classe ajuda a compreender os conflitos, as resistncias dos dominantes ao das classes dominadas, sobretudo quando elas so capazes de desvelar e apontar para as causas da desigualdade e da explorao.

    A abordagem marxista tambm permite ao analista se interrogar sobre a diversidade dos movimentos e, ao mesmo tempo, buscar seus elementos comuns13. Ainda possibilita compreender os movimentos de modo no linear, uma vez que a conflituosidade feita de avanos e retrocessos. Isso requer examinar as contradies que o movimento encerra, seus limites. Por fim, possibilita considerar os nveis distintos

    movimentos sociais o movimento feminista, que um movimento bastante antigo, que remete a contradies que so anteriores ao capitalismo (Mouriaux, In: Galvo, 2002, p. 165). A abordagem de Hirata a esse respeito , igualmente, interessante, embora distinta. A autora trata a explorao no trabalho assalariado e a opresso de sexo como relaes indissociveis, a esfera da explorao econmica ou aquela das relaes de classes sendo simultaneamente aquela onde se exerce o poder masculino sobre as mulheres (Hirata, 1995, p. 82). A ligao indissocivel entre opresso sexual (e de classe) e explorao econmica (e de sexo) permite reconceitualizar o trabalho, que passa a comportar as duas dimenses: relaes de classe e de sexo (Hirata, 1995, p. 83). Desse modo, o trabalho (assim como suas categorias de anlise) sexuado, tem sexo. 11

    Cumpre esclarecer de que maneira utilizamos o conceito de classes. Em primeiro lugar, descartamos os conceitos de classe que se circunscrevem renda e/ou dimenso ocupacional. Em segundo lugar, a nosso ver, a posio de classe no pode ser considerada como mero reflexo da posio econmica. Mas se entendemos que no h uma relao mecnica entre posio no processo produtivo e posio de classe, isso no significa que no haja nenhuma relao entre ambas: consideramos que a localizao no processo produtivo circunscreve um campo de interesses, que vai ser construdo na luta de classes. Definido desse modo, o emprego do conceito de classe til para entender as razes de certas reivindicaes e determinadas formas de ao coletiva. 12

    A esse respeito, importante inclusive considerar o papel do direito burgus que, ao estabelecer o respeito s liberdades individuais e a igualdade de todos perante a lei, fornece elementos para que os movimentos sociais, a exemplo do prprio movimento sindical, possam se constituir legalmente. 13

    Ns no queremos proclamar a unidade do movimento social a priori. Ns tentamos ver qual era a raiz comum, o que faz com que as mulheres, os desempregados, os sem-teto, os assalariados, se mobilizem. H em comum a recusa do liberalismo enquanto lgica de um sistema econmico que cega [...] Essa lgica do lucro atinge nveis de irracionalidade e isso que unifica o movimento social atualmente: a recusa da desumanidade, mas trata-se ainda de um movimento bastante distinto, tanto por sua origem, pelos grupos sociais que so implicados, quanto por suas reivindicaes (Mouriaux, In: Galvo, 2002, p. 165).

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    de atuao poltica que, esquematicamente, podem ser resumidos nos seguintes aspectos:

    1. Demandas pontuais ao Estado: subsdios para subsistncia imediata (como os movimentos dos sem);

    2. Reformas (econmicas, como a distribuio de renda; das instituies polticas, como mais participao, democratizao14), ampliao da cidadania, direitos sociais (perspectiva anti-neoliberal);

    3. Mudanas das prticas polticas e dos valores sociais: novas relaes de gnero, raciais, de preferncia sexual;

    3. Anti-capitalista: requer pensar a questo da emancipao social.

    Feitas essas consideraes de ordem terica, passemos anlise emprica.

    3. Os movimentos sociais na Amrica Latina em questo15

    Nesta parte do texto, buscaremos refletir sobre algumas experincias latino-americanas recentes. Essa reflexo que toma por base a bibliografia disponvel (nem toda ela inspirada no marxismo, bom que se diga) leva em conta os seguintes aspectos: a composio social, a plataforma reivindicativa e a forma de atuao desses movimentos. Para tanto, parte de algumas questes e de algumas hipteses:

    1) Que condies teriam possibilitado a constituio e a ascenso desses movimentos? A hiptese presente na maior parte da bibliografia sustenta que esses diferentes movimentos, a despeito de sua heterogeneidade, constituem uma resposta aos efeitos nefastos da poltica neoliberal que vem sendo implantada, desde os anos 70 (se se leva em conta a experincia do Chile) por diferentes governos da regio.

    2) Que tipo de relao esses movimentos estabelecem com a esfera poltica? Essa questo contm em si mesma um suposto, qual seja, o de que esses movimentos

    14 As demandas por mais participao podem assumir diferentes formas: a participao nas instituies

    existentes; a busca de novas formas de participao como forma de combater as instituies existentes. Aqui preciso advertir que se pode lutar contra as instituies existentes apenas para substitu-las, mantendo-se o arcabouo institucional e suas regras de funcionamento e que a no-participao, longe de ser uma perspectiva que possa ser definida a priori como isolacionista ou sectria, tambm constitui um posicionamento poltico. 15

    Retomo e desenvolvo aqui alguns aspectos da comunicao apresentada no 6 Encontro da ABCP (Galvo, 2008).

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    possuem uma dimenso poltica, dimenso essa que pode ser observada sob dois ngulos: de um lado, porque se constituem em contraposio a instituies, projetos e medidas polticas; de outro porque ao resistirem a essas instituies, projetos e medidas produzem um impacto poltico de monta. Esse impacto poltico passa pela criao de novas foras polticas; por sua posio de oposio ou apoio frente aos governos; por sua relao com os partidos polticos e com os demais movimentos sociais, como o sindical; pela luta por uma insero institucional ou pela recusa a ela16.

    3) Como definir esses movimentos? Esses movimentos caracterizam-se pela luta por direitos econmicos, como acesso terra, garantia de trabalho ou benefcios sociais; e polticos, como o direito participao poltica. No se trata de lutar somente pelo reconhecimento de identidades tnicas ou de minorias, pois as reivindicaes vo alm dessas questes. Tambm no se trata de novos movimentos sociais stricto senso, no apenas porque alguns desses movimentos no so to novos assim17, mas porque tambm no constituem necessariamente uma oposio ao movimento operrio e sindical, mas se associam a ele, de formas distintas. Alm disso, ao contrrio do que propugnam as teorias sobre os novos movimentos sociais, possvel encontrar um carter de classe nesses movimentos, o que permite pensar sua unidade, a despeito de sua heterogeneidade.

    3.1 A relao entre neoliberalismo e movimentos sociais

    As causas que se encontram na origem desses diversos movimentos sociais so mltiplas, mas possvel encontrar, em todos eles, um aspecto comum: eles constituem uma reao ao neoliberalismo, muito embora a poltica neoliberal se apresente sob formas distintas e tenha sido aplicada com intensidade variada nos pases latino-

    16 No se trata, portanto, de pensar a autonomia como ausncia de vnculos com as instituies polticas,

    sejam elas Estado, governos ou partidos, ao contrrio do que propugna a bibliografia produzida sob a influncia da teoria dos novos movimentos sociais. Diferentemente do que defendem os autores ligados a essa corrente, os movimentos sociais no tm propsitos meramente culturais, de transformao da sociedade civil, mas tambm polticos, mesmo que a tomada do poder de Estado no esteja em questo. Da a necessidade de se distinguir as diferentes formas de luta poltica. Nesse sentido, tambm se destaca a contribuio de Tarrow (1994), para quem os movimentos sociais so influenciados pelo sistema poltico, bem como buscam exercer influncia sobre ele. Isto posto, seria interessante analisar seu impacto sobre a nova configurao poltica da AL, mediante a eleio dos diferentes governos de esquerdas. 17

    O campesinato um velho sujeito social, que alguns autores, inclusive marxistas, com a disseminao das relaes de produo capitalista no campo, consideraram que estivesse fadado ao desaparecimento (por se tratar de uma classe no central no modo de produo capitalista). Aqui, importante destacar a importncia do movimento campons na Revoluo Russa de 1905, na Revoluo Mexicana (1910-20), na Revoluo Boliviana (1952), as Ligas Camponesas no Brasil (1954-64). O mesmo se pode dizer dos indgenas, cujos levantes em prol da reconstruo da nao andina marcaram a Bolvia e o Peru no sculo XVIII.

  • 18

    americanos. A Argentina talvez tenha sido o caso mais exemplar de uma poltica neoliberal levada ao extremo, cujo colapso teve um efeito devastador, dando origem crise de 2001. A crise financeira provocada pela paridade peso/dlar deu origem ao corralito (reteno de dinheiro nos bancos, mediante o estabelecimento de um limite semanal de retirada) e provocou a exploso do desemprego e um empobrecimento generalizado. Essa conjuntura deu origem a movimentos distintos, cuja unidade pode ser encontrada no questionamento do neoliberalismo. So movimentos que reagem ao desemprego, precarizao e pobreza, exprimindo o descontentamento com as falsas promessas do neoliberalismo e com o slogan da modernidade: compreendem o panelao da classe mdia contra o corralito, os piquetes dos desempregados, o movimento das fbricas recuperadas, as assemblias de bairro (Chesnais, Divs, 2002; Palomino, 2006).

    Isso indica que o impacto negativo do neoliberalismo afetou, embora o tenha feito de maneira diferente, no apenas a classe operria, mas tambm as classes mdias e at grupos de burguesia dependente vinculados ao mercado interno (Quijano, 2004, p. 75), produzindo uma contnua e crescente polarizao social da populao: As trs dcadas de neoliberalismo na Amrica Latina criaram as condies, as necessidades e os sujeitos sociais de um horizonte de conflitos sociais e polticos (Quijano, 2004, p. 82).

    Esses movimentos denunciam os tratados de livre comrcio, a ingerncia dos organismos multilaterais sobre as polticas governamentais, declaram-se antiimperialistas18, criticam o capitalismo neoliberal, defendem Estados plurinacionais que reconheam sua autodeterminao e seus direitos coletivos, demandam a participao em assemblias constituintes, cujos representantes no seriam escolhidos via partidos ou eleies tradicionais (Almeida, 2006/7, p. 75).

    O caso mexicano produziu movimentos significativos, como os zapatistas de Chiapas e os manifestantes de Oaxaca. O primeiro tornou-se mundialmente conhecido a partir do levante de 1 de janeiro de 1994, quando os zapatistas se insurgiram contra a entrada em vigor do Tratado de Livre Comrcio da Amrica do Norte (Nafta). Trata-se de uma luta pelo resgate da identidade e da autonomia, pela dignidade, que passa pela recuperao e defesa da cultura, do fortalecimento da luta pelos direitos humanos individuais e coletivos, assim como pela gerao de novas formas democrticas de

    18 E alguns deles anti-capitalistas, embora esse elemento faa mais parte do discurso do que da prtica

    poltica dos movimentos.

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    participao nos assuntos pblicos (Gndara, 2004, p. 104). Os segundos tornaram-se conhecidos em 2006, a partir de um movimento desencadeado por associaes de professores em greve por aumento de salrio e melhorias no sistema educativo. Esse movimento tambm exprime uma reao ao governo corrompido do PRI (mais particularmente, eleio fraudulenta de Ulyses Ruiz ao cargo de governador em 2004) e deteriorao das condies de vida da populao: 2/3 da populao daquele estado indgena, vive na pobreza, sendo que a situao scio-econmica foi agravada pelo Nafta, que piorou as condies de vida no campo, levando migrao. Tambm as mudanas constitucionais promovidas pelo governo Salinas de Gortari, possibilitando a diviso e venda das terras comunais, produziram forte impacto num Estado onde 85% do territrio de propriedade comunal, ao levar remercantilizao das terras e ao fim dos ejidos. Esses antecedentes mais amplos levaram ao apoio ao movimento dos professores e ampliao de suas demandas, que passa de uma ao corporativa (greve dos professores) luta pela destituio do governador (Gogol, 2007).

    A relao entre neoliberalismo e movimentos sociais tambm evidente no caso boliviano: a Marcha Indgena pelo Territrio e a Dignidade, de 1990, constitui uma reao s polticas de ajuste estrutural que passaram a ser aplicadas em 1985 (com a eleio de Victor Paz Estenssoro) e que se chocavam com as autonomias departamentais, j que pretendiam restaurar a autoridade e a unidade do Estado (Regalsky, 2007), e com as autonomias indgenas, como a justia comunitria. O ciclo de protestos, que envolveu organizaes sindicais indgenas e de bairro e provocou a queda dos presidentes Gonzalo Snchez de Lozada e Carlos Mesa, rechaava os efeitos da poltica neoliberal, como o aumento das tarifas dos servios pblicos (principalmente a gua) e a desnacionalizao da economia [que resultou no] (controle transnacional dos hidrocarburetos) (Stefanoni, 2007, p. 54). A privatizao das minas estatais contribuiu para fortalecer o movimento campons e para sua articulao com o movimento sindical, j que mineiros se tornaram camponeses aps terem sido desalojados das minas estatais que foram privatizadas entre 1985 e 1988 (Sanjins, 2004, p. 210). Tambm contribuiu para reativar o nacionalismo indgena, contra as transnacionais que adquiriram as empresas privatizadas (Do Alto, 2007, p. 90).

    A guerra da gua, de Cochabamba (2000), contra a privatizao do servio municipal de gua (Consrcio guas Del Tunari), que provocou o aumento do preo da gua e tambm assegurou empresa o controle sobre os sistemas de irrigao e poos

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    administrados pelas prprias comunidades camponesas; os bloqueios aymaras em La Paz, em 2000 y 2001; e as guerras do gs, em 2003 e 2005, contra um consrcio transnacional de exportao do gs para a Amrica do Norte, e em prol da nacionalizao e reestatizao dos hidrocarburetos e da convocao de uma Assemblia Constituinte, constituem os momentos mais expressivos desses movimentos19.

    Esses exemplos indicam que esses movimentos exprimem uma crtica ao neoliberalismo e, ao mesmo tempo, sinalizam que as criticas e resistncias poltica neoliberal provocam mudanas e adaptaes no neoliberalismo, contribuindo para deslegitim-lo poltica e ideologicamente, bem como para modificar o cenrio poltico, como se verifica por meio da eleio de partidos de centro-esquerda20.

    3.2 A composio social dos movimentos e as formas de luta Esses movimentos possuem uma abrangncia social ampla, sendo possvel

    apontar, em alguns casos, a mltipla condio dos mobilizados: no exemplo de Oaxaca, os mobilizados so, a um s tempo, indgenas, mulheres, jovens e trabalhadores urbanos (professores) (Gogol, 2007).

    Essa mltipla condio indica que, para alm dos pertencimentos de ordem tnica, de gnero, geracional, possvel identificar um carter de classe nesses movimentos. Essa interseco entre identidade tnica e de classe tambm visvel no caso boliviano, tanto no caso do sindicalismo mineiro (operrios), quanto dos camponeses produtores de coca: O processo de demanda de reconhecimento identitrio comeou a se ligar s reivindicaes camponesas e de classe, demanda pela terra e pelo territrio e, pouco a pouco, luta pelo controle dos recursos naturais [...] a Guerra pela gua [2000] como confluncia dos movimentos urbanos com os camponeses (Regalsky, 2007, p. 56). Assim, a luta , a um s tempo, contra a opresso econmica, de um lado, e contra a opresso scio-cultural (provocada pela condio indgena), de outro (Do Alto, 2007, p. 88).

    As convergncias entre trabalhadores de categorias ou universos distintos (no caso boliviano, urbanos e rurais; no caso dos zapatistas, a confluncia entre guerrilheiros revolucionrios e indgenas), ocorrem em outras experincias: no caso

    19 No caso da Venezuela, pode-se mencionar o Caracazo, de 1989, quando se registraram saques

    provocados pelo aumento generalizado do preo de produtos de primeira necessidade, aps a eleio de Carlos Andres Perez. 20

    No vamos aqui discutir a natureza dos governos comandados por esses partidos.

  • 21

    argentino, verifica-se a confluncia entre trabalhadores (assalariados entram em greve para obter o pagamento de salrios), desempregados (sobretudo operrios) e classe mdia, que passa por um processo de pauperizao (Quijano, 2004; Chesnais, Divs, 2002).

    No caso brasileiro, a composio social do MST inclui desempregados urbanos e trabalhadores informais, bem como camponeses expulsos de suas terras. Com efeito, a poltica neoliberal bloqueia as possibilidades de acomodar os ex-camponeses e assalariados rurais nas cidades. Impossibilitados de encontrar um emprego, mesmo que no setor informal, estes se juntam ao MST. O mesmo acontece com os desempregados urbanos, ao verem negadas as oportunidades de se reintegrar empresa ou de serem requalificados e transferidos a uma outra ocupao. Nesse sentido, as conseqncias das polticas neoliberais, no campo e nas cidades, acabam fornecendo uma base social para a expanso do MST (Coletti, 2002).

    Esses movimentos, to diversos em sua composio social e em suas demandas, tambm se diferenciam em termos de correntes e tendncias poltico-ideolgicas, bem como em suas formas de atuao. Estas so condicionadas pelas tradies locais, de modo que no h caractersticas nicas. Por exemplo, os pases com forte presena indgena so marcados por experincias coletivistas e comunitrias; os pases mais industrializados, com um proletariado urbano mais expressivo, so marcados pela experincia do movimento sindical e por suas relaes com os partidos polticos e com o Estado, a exemplo do corporativismo no Mxico, Brasil e Argentina.

    Os movimentos latino-americanos se originam ou se amplificam num contexto

    de crise da democracia representativa, cuja expresso so os limites participao popular (decorrentes de sistemas polticos excludentes) e a degenerao de instituies polticas tradicionais (partidos e sindicatos marcados pela corrupo, por prticas autoritrias e pela incapacidade de representar as demandas sociais que emergem nesse novo contexto histrico). Sua constituio desafia o espao institucionalizado da poltica tradicional, fazendo frente crise de representao, recusando a democracia delegativa e buscando novas formas de participao. Essas formas de participao passam pela constituio de organismos sem insero no sistema poltico tradicional, a exemplo das assemblias de bairros na Argentina, da Assemblia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), dos municpios autnomos de Chiapas, que constituem uma espcie de duplo poder, na medida em que as autoridades territoriais constituem-se paralelamente

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    ao Estado central e gozam de autonomia, j que controlam, atravs de assemblias comunitrias e autoridades tradicionais ou sindicais, o que ocorre em seu espao territorial (Regalsky, 2007)21.

    Alm de experincias de democracia direta, as formas de luta incluem prticas de autogesto (no caso das fbricas recuperadas) e aes de solidariedade, dentre as quais se destacam os clubes de troca (espaos destinados troca de bens e servios, que tm moeda prpria: o crdito social), merenderos e comedores da Argentina. Tambm possvel encontrar mecanismos historicamente empregados pelo movimento operrio, como barricadas, piquetes e ocupao de fbricas, acrescidos dos bloqueios de estrada promovidos por mineiros e camponeses, dos saques promovidos pelos desempregados, dos panelaos da classe mdia, da ocupao de terras pelos sem-terra. Algumas experincias valem-se habilmente dos meios de comunicao, como o rdio e a prpria internet, para difundir suas bandeiras de luta para alm de suas fronteiras, a exemplo do caso mexicano (tanto em Oaxaca como em Chiapas) e ainda assumem um perfil militarizado, como o Exrcito Zapatista de Libertao Nacional (EZLN).

    Alguns movimentos surgem espontaneamente, por fora de estruturas institucionais e partidos polticos tradicionais e at mesmo sem a mediao de sindicatos, como os movimentos de desempregados, das fbricas recuperadas e as assemblias de bairro argentinas. As jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001, que culminaram na queda do presidente Fernando De la Ra e na adoo do lema que se vayan todos, caracterizou-se pela ausncia de organizaes de trabalhadores, salvo os de extrema esquerda. Estes, todavia, no dirigiram o movimento, de modo que a participao se deu de maneira individual e no organizada (Palomino, 2006). Outros movimentos, embora contem com a participao de organizaes de esquerda em seu processo de constituio, do origem a outras foras polticas e espaos organizativos. Esse o caso de algumas associaes de piqueteiros na Argentina, do MST no Brasil, do Pachakutik no Equador22, do Movimento ao Socialismo (MAS) e do Movimento Indgena Pachacuti (MIP) na Bolvia, do EZLN em Chiapas.

    21 O debate bibliogrfico referente a Chiapas tende a caracterizar essa experincia como uma tentativa de

    mudar o mundo sem tomar o poder (Holloway, 2003). Elogiada por alguns, que apontam as virtudes da sociedade civil em contraposio aos defeitos do Estado, essa estratgia criticada por outros, como Born (2003), que a caracteriza como a antipoltica do zapatismo. 22

    Todavia, os indgenas que se sublevaram em 1990, organizados na Conaie, dialogaram diretamente com o Estado, sem a participao das principais instituies democrticas como os partidos polticos e o

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    3.3 As reivindicaes e suas implicaes polticas

    possvel afirmar que esses movimentos, cujas singularidades esto relacionadas s experincias poltico-organizativas e histria pregressa dos pases em que se desenvolvem, exprimem uma recusa s instituies polticas tradicionais, recusa essa que passa pela criao de novas foras polticas ainda que a relao com organizaes j existentes no esteja descartada. Aqui tambm possvel observar caractersticas diferenciadas quanto participao nos espaos institucionalizados, j que, na maioria dos casos, verifica-se uma recusa a esse tipo de participao, muito embora a criao de novas foras polticas destine-se, por vezes, a assegurar essa participao por fora das organizaes tradicionais.

    Esse debate no pode ser traduzido em termos dicotmicos, numa polarizao entre autonomia X institucionalizao. Todo movimento social cria instituies e/ou se relaciona com as instituies polticas existentes, ainda que o faa de formas e em graus variados. O que central a discusso sobre autonomia, para verificar se a relao com outras organizaes e a participao nos espaos institucionalizados da poltica implica o abandono de sua plataforma reivindicativa e se comporta o risco de cooptao23. Isso no significa associar automaticamente participao e cooptao. A participao no por si s virtuosa, nem, de maneira oposta, a causa de todos os males. Por outro lado, a recusa participao no sinnimo de sectarismo e isolacionismo. necessrio avaliar a conjuntura em que ela se produz. Do mesmo modo, necessrio qualificar o que se entende por institucionalizao. Ela compreende tanto a constituio de instituies (que tendem burocratizao medida que se consolidam) quanto a participao em instituies j reconhecidas pelo sistema poltico. So dois processos independentes, ou seja, um no leva necessariamente ao outro.

    Algumas experincias buscam constituir uma alternativa de poder ainda que no necessariamente numa perspectiva anti-capitalista, mas de implementar mudanas na concepo de Estado, a fim de democratiz-lo e de mudar a estrutura econmica ; outras no se colocam a questo da tomada do poder, operando desde reivindicaes ao

    Congresso. A interlocuo direta com o presidente, sem passar pelos mecanismos da democracia representativa, ocorre devido excluso dos indgenas do sistema poltico (Dvalos, 2004). 23

    Ao mesmo tempo, convm destacar a necessidade de discutir os limites da luta meramente institucional (quando a via legal a nica opo/opo prioritria), que produz uma tendncia acomodao, ao conformismo, integrao ordem, ao respeito s regras do jogo. Pode-se lutar contra as instituies existentes, mas apenas para substitui-las, mantendo-se o arcabouo institucional e suas regras de funcionamento.

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    Estado (como polticas pblicas e benefcios sociais para assegurar sua subsistncia imediata) at a constituio de territrios autnomos baseados em critrios tnicos, como no caso do zapatismo24.

    A poltica est presente nos movimentos tnicos, que tm como objetivos a redefinio da questo nacional dos atuais Estados e a autonomia territorial das nacionalidades dominadas (Quijano, 2004, p. 78). Observa-se, aqui, um entrecruzamento de demandas. O movimento equatoriano, por exemplo, articula um projeto nacional (como a proposta de plurinacionalidade do Estado), uma identidade tnica.

    Os indgenas viam o movimento social no como complemento democracia, mas como questionamento da democracia existente, como forma de disputar a hegemonia na construo de um novo Estado, de redefinir as regras do jogo poltico. Concebem a proposta de um Estado plurinacional, que se baseia em: reforma jurdica sob condies de pluralismo jurdico, direitos coletivos, reconhecimento dos territrios ancestrais sob a figura das circunscries territoriais, reconhecimento das instituies econmicas ancestrais etc (Dvalos, 2004, p. 187). Estabelecem uma poltica de alianas como outros setores sociais, com quem se unem para deter a privatizao da seguridade social, na tentativa de resistir modernizao neoliberal.

    Nesse processo, porm, os indgenas constituem organismos para atuar no interior do sistema poltico, como o movimento Pachakutik no Equador, criado com o objetivo de levar ao interior do sistema de representao poltica a discusso sobre a plurinacionalidade (Dvalos, 2004, p. 189); o MAS e o MIP na Bolvia.

    Todavia, a institucionalizao produz paradoxos: de um lado, tem um potencial transformador; de outro, apresenta limites. A participao do movimento Pachakutik da coalizo indgena-militar que elegeu Lucio Gutirrez em 2002 e, posteriormente, em seu

    24 O conflito social em Chiapas multidimensional e multicausal. Tem uma dimenso nacional, ainda que

    relacionada luta contra a globalizao neoliberal; e poltica, ainda que no se proponha a tomar o poder. Suas demandas vo alm das reivindicaes de direitos indgenas (cuja incorporao est relacionada s carncias e marginalizao que essa populao foi historicamente submetida). Compreendem a luta pela transformao do Estado e da sociedade, por meio da constituio de estruturas de representao poltica e de exerccio de governo alternativos (Gndara, 2004). Assim, o zapatismo no busca tomar o poder central, mas constituir territrios autnomos em relao a ele. Esses territrios, administrados por instncias prprias (os Caracoles), distintas das estruturas oficiais, contam tambm com seu prprio exrcito. Porm, o zapatismo tem uma autonomia limitada, porque abrange uma parte muito pequena do pas e no impede que o poder central refreie, poltica e militarmente, os avanos zapatistas (Lemoine, 2007, p. 118).

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    governo fez com que o movimento adotasse uma estratgia dual, articulando a luta institucional no institucional (Ramrez, 2003, p. 45). A presena marginal do movimento no governo e sua incapacidade de alterar a agenda neoliberal levaram deteriorao e ruptura da aliana, aps 7 meses. Embora tenha resistido a medidas governamentais, como o aumento do preo do gs, o movimento poltico Pachakutik pego em suas prprias contradies: deve questionar o sistema poltico desde dentro, mas ao participar finalmente o legitima (Dvalos, 2004, p. 190). Isso evidencia os limites do potencial transformador dessa forma de participao, que se d com determinados aliados e numa determinada conjuntura25.

    A novidade desses movimentos no reside em seu sujeito, j que indgenas se manifestaram em outros momentos histricos, assim como camponeses e

    desempregados. A novidade tambm no reside em suas formas de luta ou em suas demandas, j que piquetes e barricadas so historicamente empregados pelo movimento operrio. A novidade se deve conjuno de todos esses elementos numa nova conjuntura, marcada pelo neoliberalismo.

    As reivindicaes e formas de ao dos movimentos aqui mencionados revelam um contedo poltico varivel. A despeito das crticas s instituies polticas existentes, das demandas por autonomia, no se trata de se opor ao mbito organizativo, nem mesmo de recusar as relaes com o Estado. Verificam-se desde a criao de novas organizaes e prticas polticas, at demandas que, muitas vezes, passam pelo Estado (como financiamento pblico, mudanas na legislao seja uma nova lei de falncias, um novo regime jurdico para as empresas, ou do reconhecimento das autonomias indgenas).

    Por fim, os conflitos sociais que conduziram a esses movimentos podem ser lidos luz do pertencimento de classe. Nesse sentido, h uma articulao entre identidades tnicas e ocupacionais e condio de classe. A despeito das diferentes classes e identidades envolvidas, so movimentos de classes trabalhadoras (consideradas aqui em sentido amplo, a fim de incluir as classes mdias e os camponeses), que tm em comum o fato de partilhar uma ideologia antineoliberal.

    25 A participao tambm pode ser discutida num outro registro, como forma de combater as instituies

    existentes, a exemplo das experincias impulsionadas pelo governo Chvez que, no obstante o fato de ocupar o poder central, incentiva a participao popular, nas misses e conselhos comunais, buscando articular a conquista do poder de Estado s mudanas na sociedade civil.

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