pachukanis - teoria geral do direito e o marxismo

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Pachukanis - Teoria Geral Do Direito e o Marxismo

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E. B. PASUKANIS 1891-1937

A TEORIA. GERAL DO DIREITO E O MARXISMO

Tradução, apresentaçao, índice e notas por · PAULO BESSA

RENOVAR

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Todos os direitos reservados à LIVRARIA E ·EDITORA RENO V AR LTDA.

Rua da Assembléia, 10/1.417 - 20011 - Centro Rua Almirante Baltazàr, 56-A - 20940 - São Cristóvão

Tel.: 232-9205 -Rio de Janeiro - RJ

A Teoria Geral do Direito e o Marxismo E. B. Pasukanis

© .da tradução: Paulo Bessa

Produção editorial Antonio Cordeiro Filho

Revisão tipográfica José Adriano Monteiro de Moraes e

Cristina Lopes de Oliveira

Capa Júlio Cesar Gomes

Composição Linolivro S/C Composições Gráficas

FICHA CATALOGRAFICA

Pasukanis, Eugeny Bronislanovich, 1891-1937 P291 A teoria geral do direito e o marxismo I

E. B. Pasukanis I trad., apres. e notas por Paulo Bessa. - Rio de Janeiro, Renovar, 1989.

1. Direito, teoria geral. 2. Marxismo. I. Título.

CDU 340.11

Proibida a reprodução (Lei n.0 5.988/73)

Impresso no Brasil Printed in Brazil

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SUMÁRIO

Apresentação/ VII ·

PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO RUSSA/ 1

Introdução AS TAREFAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO/ 11

Capítulo Um . OS MÉTODOS DE CONSTRUÇÃO DO CONCRETO

NAS CIÊNCIAS ABSTRATAS/ 31

. Capítulo Dois IDEOLOGIA E DIREITO/ 41

Capítulo ·Três RELAÇÃO E NORMA/ 55

Capítulo Quatro MERCADORIA E SUJEITO/ 81

Capítulo Cinc.o DIREITO E ESTADO/ 109

Capítulo Seis DIREITO E MORÀL/ 127

Capítulo Sete DIREITO E VIOLAÇÃO DO DIREITO/ 143

lndice Onómástico/ 167 Breve Notícia Biográfica de Alguns Autores Citaqos/ 171 Termos Latinos Citados/ 175

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APRESENTAÇÃO

Dedicada a Edmundo Moni:z, marxista.

1. Introdução Geral- A Teoria Geral do Direito e o Mar­xismo é uma das primeiras tentativas de compreensão do fenô­meno jur~dico utilizando-se o instrumental te6rico fornecido pelo Materialismo Hist6rico. Pasukanis, juntamente com Stuc­ka e Gojchbarg, buscou elaborar uma teoria científica do Di· reito que servisse de ferramenta para · a construção do socia­lismo, levando em conhl o papel· que o· Direito poderia desem­penhar nesta nova ordem. Eugeny Bronislanovich Pasukanis realiza sua investigação partindo ·do pressuposto que o Direito é uma forma necessária da sociedade capitalista e que surge em conseqüência de um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais daí decorrentes. Vale observar que a formulação te6rica estruturada pelo juristlz bolchevique foi realizada em período de intensa luta política e no qual Pasukanis exercita o elevado cargo . de Vice-Comis­sário do Povo 'para a justiça (Stucka era o Comissário do Povo para a justiça) e, portanto, desempenhava relevante fun­ção no organograma do novo Estado Soviético e na modela­gem dos princípios e 'institutos de uma ordem jurídica revolu­cionária. Assim, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo

·· possui um inequívoco sentido prático e de polêmica politica contra os juristas burgueses e de discussão fraterna entre os camaradas do partido que tinham tarefas a serem cumpridas na área do Direito. Este duplice conteudo da obra que ora sé apresenta torna-a extremamente viva e fascinante. Vale notar .• em favor do livro, que este era destinado a ser um trabalho

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pessoal de Eugeny Bronislanovich e não um documento para publicação ou destinado ao grande público. Apesar disto, as edições do trabalho se têm sucedido através . dos tempos e sempre alcançado incontestável êxito.

Ainda que· com enfoques e objetos extremamente diver­sificados, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo está no mesmo nível que as grandes obras de doutrina política e jurí­dica, tais como as de Locke, Rousseau, Hobbes e outros.

O método empregado é o que vai em busca das genera­lidades do Direito e daquilo que há em comum entre os vários sistemas jurídicos e as suas junções concretas no interior do Modo de Produção Capitalista. Marx, em relação à Econo­mia Política, buscou as categorias econômicas, isto é, os ele­mentos mais simples e que na sua simplicidade continham a condensação das leis principais da Economia. Foi a partir da mercadoria, do valor, do preço que Marx pôde estabelecer e compreender as regras básicas e universais da Economia Capitalista. Como Marx, Pasukanis buscou certificar-se das leis fundamentais do direito na sociedade capitalista. Assim, ele busca desvendar as categorias básicas do Direito, isto é, aquelas encontráveis em qualquer ordenamento jurídico bur­guês e não em um ordenamento específico. Avançando na trilha aberta pelo autor de O Capital, Pasukanis desvenda as categorias sujeito de direito, pessoa, contrato, etc., e a partir da constatação do papel específico desempenhado por estas categorias no interior da ordem jurídica burguesa ele parte em sentido de construir uma teoria do Direito Público, do Direito Penal, etc. Assim, em A Teoria Geral do Direito e o Mar­xismo estão claramente tipificadas as implicaçóes que decor­rem para todo o direito no momento em que dois sujeitos de direito se encontram no mercado para celebrar um contrato. O ato de contratar, este momento es!:encial para o Capitalis­mo, é, portanto, o ponto central do Direito burguês.

A forma jurídica tem por finalidade precípua estabelecer e mediar os vínculos entre dois agentes econômicos que se pdem em contato no mercado. Esta intermediação, efetuada pelo Direito, 'com o estabelecimento de regras ·e de garantias reciprocas, é a relação jurídica que irá se desenvolvendo e

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desdobrando em conformidade com a complexidade posta pelo nível de desenvolvimento das relações econômicas e sociais. A relação jurídica e as suas conseqüências têm, portanto, um papel fundamental na organização da Economia Capitalista, que é exatamente o de permitir e estimular a circulação de mercadorias . · E· a partir das necessidades concretas postas pelo Modo de Produção Capitalista que o Direito burguês irá cons-

' truir Úma de suas categorias fundamentais, que é a igualdade. O Capitalismo exige que todos se encont11em no mercado em estrito pé de igualdade. A. igualdade jurídica é a contrapartida lógica e necessária da desigualdade econ8mica. A diferença entre o Capitalismo e os outros sistemas econômicos é que; embora todos aqueles que o precederam tivessem; em sua es~ fera produtora, situações ,desiguais, estas, ao nível político e "jur~dico", não eram encobertas. A desigualdade foi a tônica do escravismo, do feudalismo, etc. fá no Capitalismo às coisas se operam- de fÓrma diferente, a proeminência do mercado e a necessidade de reprodução, ampliação e circulação do Ca­pital impõem uma representação política totalmente diferen­ciada daquelas dos modos de produção anteriores. A separa­ção entre produtor direto (proletário) e produtor indireto (pro­prietário dos meios de produção) deve ser transformada juri­dicamente em igua1dade entre vendedor e comprador. O Modo de Produção Feudal; com seus entraves à livre circulação de mercadorias - e mesmo a sua produção em escala-diminuta -, dispensava inteiramente a igualdade entre os homens, uma vez que as suas leis internas eram de outra natureza . A agi­lidade de aquisição e aliena--çáo não. era uma condição neces­sária à sobrevivência e reprodução do sistema. A · burguesia contestou a "propriedade feudal" não devido ao fato desta ser "feu,dal" mas em razão de' que os gravames, taxas e impos~ tos que -a marcavam tornavam-na extremamente petrificada e com escassa capacidade de rápida c;rculação. Para Pasukanis ~ esta mobilidade e os institutos juridicos que a significam que constituem o que ele denomina "forma jurídica". Entende o jurista soviético que estas são características fup.damentais e essenciais . do Direito, sem as quais não. há Direito. Daí porque o autor em questão só reconhece a existência do direito no Capitalismo, ou seja, o direito é uma forma essencialmente.

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burguesa e capitalista O Feudalismo, dispensando os meca­nismos -econômicos capitalistas, dispensava o direito; eiJZ con­seqüência, o Estado, estrutura responsável pela sua articulaÇão social, era, destarte, igualmente .desnecessário. Em realidade, assiste plena razão ao autor, uma vez que falar-se em "Direito Feudal" é forçar determinado conceito ao extremo. Sabemos todos que, no Feudalismo, vários "or-denamentos jurídicos" se confundiam e que cada Estado social tinha as suas regras pró­prias, inaplicáveis aos outros Estados, além das diversas juris­dições paralelas (Eclesiástica, Comercial, do Rei, dos Nobres, etc.). Por oposição, verifica-se que mttra característica do Direito burgu'ês é a existência de aparelho gerador e aplicador centralizado: o Estado. Tal questão ressai bastante óbvia na construção dos Estados Nacionais e na própria incapacidade do Estado absolutista em contémplar os anseios burgueses { po­líticos e econômicos) de liberdade e sustentar a continuidade dos privilégios aristocráticos. A contradição interna do Estado absolutista foi resolvida com a maré revolucionária dos séculos XVIII e XIX, e com a implantação do Estado burguês de Direito, que é a forma privilegiada da dominação burguesa.

2. Marx "jurista" - Tendo estudado em profundidade a Economia Capitalista, Marx não poderia ter deixado de exa­minar um elemento que é conseqüência desta mesma economia, isto é, o Direito burguês. As análises que· Marx fez sobre o Direito· não foram sistemáticas, uma vez ·que ele jamais se de­dicou especificamente a enfrentar o problema jurídico . O Di­reito para Marx é objeto de análise na medida em que os seus institutos se·rvem para organizar e reproduzir o Modo de Pro­dução Capitalista. Assim, o autor ·de O Capital jamais se preo-

-cupou com filigranas ou questiúnculas tão ao~ gosto dos "ju­ristas".

O Prefácio e a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, a Crítica ao Manifeslo da Escola HistóriCa, as Anotações sobre a Regulamentação da Censura Prussiana, A Crítica Moralizan­te e a Moral Crítica, a análise do Julgamento dos Lenhadores, a Ideologia Alemã (escrita em colaboração com Engels) são leituras obrigatórias, dentre outras, para aqueles qúe queiram compreender o pensamento. marxiano sobre o Direito. Estas

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obras, ditas do "jovem Marx", começam a elaborar uma pro­posição teórica que será aprofundada e cristalizada em O Ca­pital. Em sua obra mais fundamental, Marx examina, em espe­cial, o contrato e os s.eus elementos constitutivos como· instru­mentos básicos de reprodução do capital. Não escapou à observação do autor do 18 Brumário de Luis Bonaparte a legis­lação repressiva adotada pela Inglaterra,. visando a compelir os camponeses expulsos dos campos a se engajarem na produ­ção industrial. Possivelmente é neste ponto de suas pesquisas que Marx mostra com mais crueza e força o verdadeiro signi­ficado do Direito burguês. E na legislação referente ao tra­balho e ao operariado que se pode aquilatar o conteúdo con­creto dos slogans burgueses de liberdade e igualdade.

Não resta dúvida que, não obstante as várias páginas que Marx dedicou aos temas jurídicos, foi em relação ao Estado que ele teve oportunidade de avançar com mais firmeza e dei­xar uma teoria mais acabada. Foi a partir de sua intensa prá­tica política que Karl Marx pôde desvendar as características chaves do Estado como aparelho de classe destinado a assegu­rsar uma determinada ordem política e um determinado padrão de acumulação de Capital. A obra marxiana dedicada aos es­tudos do Estado é bastante vasta e nela podemos vislumbrar dois momentos extremamente importantes, que podem ser iden­tificados com o 18 Brumário de Luis Bonaparte e com As Lu­tas de Classes em França. No primeiro trabalho é analisada em profundidade a ascensão de Napoleão li/ ao governo e a maneira pela qual ele jogou com as contradições de classe para colocar-se acima das mesmas, na forma de um árbitro, e em­polgar o poder com astúcia. já em As Lutas de Classe em França não é mais para o Estado burguês que Marx dirige a sua observação crítica, mas sim em ·direção à luta revolucio­nária do· proletariado da Comuna de Paris. Foi a partir da­quela experfência revolucionária concreta que Marx teve a. pos­sibilidade de estabelecer as ltnhas básicas da futura organi- ' zação do Estado socialista e de seus princípios fun-damentais. Também quanto às características básicas do. Estado socialista deve ser consultada a Crítica ao· Programa de Gotha, na qual o corifeu da Práxis polemiza com os dirigentes do Partido So·

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cial Democrata Alemão quanto à natureza de suas consignas, em especial as referentes ao Estado popular. Marx demons­trou que o Estado popular postulado pelos socialistas alemães era ainda o Estado burguês, de pouco valendo a adjetivação de popular que, por si só, não descaracterizava-o como insti­tuição tipicamente burguesa, por melhor ·que fossem os pro­pósitos do partido alemão.

Os enjrentamentos políticos no interior do campo socia­lista opuseram Marx a Proudhom naquilo que concerne à con­cepção da propriedade. O líder político francês, em seu opús­culo denominado O que é a Propriedade?, classifiCa-a como um roubo, desenvolvendo inúmeras considerações sobre a pro­priedade justa. Marx refuta as teses de Proudhom, sustentando que reivindicar uma propriedade justa e classificá-la como roubo é ipso facto admitir como vál.i·dos os seus fundamentos, pois o roubo é subtrair de alguém algo que lhe pertence, logo reconhecer a propriedade enquanto tal.

Como .se pode ver nestas rápidas passagens, o tema Di~ reito sempre· esteve presente 11.a reflexão marxiana. Compete­nos, a partir do legado do autor alemão, avançar em pontos e questões que foram apenas ventilados na obra do fundador da Economia Crítica.

Em geral, houve uma abordagem do tema Direito por todos o.s teóricos do marxismo. O próprio Engels enveredou pelo jurídico, dando especial ênfase ao exame ·da propriedade privada como demonstra um de seus trabalhos mais conheci­dos e comentados, que é A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, cujas teses fundamentais são exposadas por Marx. Engels defende o ponto de vista, escudado em pes­quisas feitas por Morgan, de que o incremento da divisão so-

. cial do trabalho e a ·separação entre ·produtor direto e indireto deram origem à necessidade de aparelhos de coerção que fos­sem capazes de assegurar a reprodução das _relações sociais de­rivadas da nova ordem econômica. O afastamento progressivo dç humanidade da economia "natural" implicou, portanto, no surgimento . ·de superestruturas capazes de articular o econômi~ co, o ideológico e o político em unia nova ordem. O Estado -ou seus rudimentos - surge como uma racionalização da vio­lência que se encontra espalhada pela sociedade e' que, se dei-

APRESENTAÇÃO .XIII

xada à própria sorte, tende a levar à desestruturação da pró­pria atividade econômica. O Estado é, portanto, a violência organizada de uma classe contra aquelas que lhe são subordi­nadas.

O autor de A Situação da Classe Trabalhadora na Ingla­terra escreveu, também, textos dedicados à análise do socialis­mo dos juristas· e outros, que podem ser encontrados no Anti­Dühring, onde versa sobre Direito e Moral, etc.

Lenin, em prosseguimento ao trabalho desenvolvido por Karl Marx, também lançou suas preocupações em. 1 direção ao estudo do Estado (0 Estado e a Revolução) e da função a ser desempenhada pelo Direito em um período revolucionário· e conseqüentemente de um elevado nível na luta de· classes. O Estado e a Revolução é a continuidade lógica do que foi teo­rizado em As Lutas de Classé em França e em A Crítica do Programa de Gotha, acrescido de toda a experiência teórica e prática acumulada pelo proletariad,o internacional desde aque­las memoráveis lutas. Lenin, como dirigente máximo do Es­tado Soviético, fazia questão de ressaltar em todas as ocasiões possíveis que era fundamental para o êxito da construção do socialismo que os dirigentes partidários e as massas mantives­sem a mais estrita observância à legalidade socialista.

O Marxismo, ao contrário do que alega a crítica burgue­sa e liberal, não é refratário ao .direito e à sua investigação científica. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo é, incon­testavelmente, um salto de qualidade nesta área particular do conhecimento mas, como não poderia deixar de ser, continua­dor de uma tradição já existente na Filosofia da Práxis. É, em realidade, a mais completa e original análise marxista do Direito até hoje realizada .

3. Alguns As.Pectos Fundamentais de A Teoria Geral do Di­reito e o Marxismo - O sujeito de Direito é o ponto ao redor do qual circulam todas as categorias jurídicas. E mais, é no sen­tido dq garantir um determinado tipo de "liberdade" que o Di­reito tutela os interesses deste mesmo sujeito de Direito que; em essência, são interesses egoísticos que se contrapõem àqueles dos demais membros da sociedade. Em linguagem psicanalí-

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tica poder-se-ia dizer que o Direito prima pelo egocentrismo. . O Direito é o reino do erga omnes, ou, em linguagem popular,

do salve-se quem puder. Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito encon­

tra-se .situado no mercado como um agente econômico, isto é, como comprador e vendedor de mercadorias. E a repetição destes atos de compra e venda que constitui a circulação -capi­talista de mercadorias. Pàsukanis parte deste ato simples de compra e venda e da circulação para ao longo dos capítulos de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo demonstrar quão importante é o Direito para assegurar a reprodução perpétua destes mecanismos fundamentais do Capitalismo. O Direito é o Estado são, aos olhos de Pasukanis, constituídos com o intuito de dar. uma normatização á estas relações econôm_icas e de arbitrar os conflitos entre os diversos sujeitos econômi­cos que, no instante em que passam a ser· motivo das preocupa­ções do Direito, transformam-se em sujeito .de Direito.

A ordem jurídica burguesa, ao resguardar os interesses privados de um capitalista, tem por objetivo resguardar os dos Capitalistas. Pasukanis demonstra que é a partir desta neces­sidade concreta que se constrói aquilo que veio a ser chamado pelos juristas de Poder Público, ou seja, um poder impessoal e independente de indivíduos particulares com a especifica missão de resguardar a ortlem pública. O Poder Público existe para .garantir os interesses da classe dos_.capitalistas e não os seus interesses privados. A noção de Poder Público, para Pa· sukanis, era totalmente impensável nos quadros da ordem feu­dal pois, naquela, o . senhor feudal era . a própria ordem A era a encarnação pessoal de úm dado conjunto de instituições é prá­ticas. Destarte, era praticamente impossível uma diferenciação entre os interesses privados do senhor e o interesse público. O exerctcio de tarefas que, hoje, se apresentam como tipica­mente estatais, tais quais a administração e à aplicação da Jus­tiça, era desempenhado pelos senhores feudais muito mais com a finalidade de alcançar rendimentos do que de "prestar um serviço". O tesouro dos nobres er.a indiferenciado do tesouro do Feudo ou da Marca. As penalidades aplicadas pelas Cortes Feudais podiam, em certa medida, ser substitúídas por valores a serem pagos aos nobres. Pasukanis nos fornece · inúmeros

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APRESENTAÇÃO XV

exemplos e situações tais como as que acabaram de ser refe­ridas.

A burguesia, partindo de suas necessidades materiais con­cretas, iniciou nas cidades a implantação de Tesouros Munici­pais, não mais geridos no benefício de um grupo ou pessoa, mas com a finalidade de assegurar o gerenciamento de ativi­dades essenciais para a classe dos capitalistas, O Poder Pú­blico Municipal, com suas características de impessoalidade, 6 o ponto culminante de um processo histórico que, mais adiante, irá desembocar na edificação dos Estados nacionais. O Estado gendarme, irá marcar a sua intervenção no econômi­co assegurando a "liberdade" de contratar e compelindo ao trabalho as massas oriundas do campo, conforme nos dá um ótimo exemplo a legislação contra a mendicância que se espa­lhou por toda a Europa. Hugo van Groot (Grotius), ao longo de seus diversos escritos, demonstrou cabalmente a necessidade da "liberdade" para a expansão capitalista urbi et orbi.

O Estado burguês na etapa do capitalismo concorrencial, intervém no mercado como garante da propriedade privada e gerente dos interesses comuns da burguesia. O interesse pú­blico é, em realidade, não criar obstáculos ·à expansão dos in­teresses privados.

A sociedade burguesa, como se sabe, não é formada só pela classe .dos burgueses; ao contrário, é uma sociedade divi­dida e fragmentada em diferentes classes sociais, que ocupam funções diferenciadas no âmbito de produção. O Direito bur­guês tem que formar mecanismos que possibilitem às diversas classes sociais negociarem no mercado. O · sistema político e econômico feudal não conheceu o indivíduo, mas apenas e tão­somente ordens e Estados sociais; era um sistema fundado na desigualdade e em privilégios.

~ A rapidez necessária para a circulação da mercadoria só pode ser conseguida com a desintegração do sistema de Or­dens e Estados e a construção de um ordenamento que não sc fixasse nestes anacronismos feudais. O burguês é, em essên­cia, um sujeito de Direito,· Como já disse Marx, as idéias de uma sociedade são as idéias de sua classe dominante, daí que a representação social dos indivíduos também deve set a re-

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presentação das classes dirigentes. Destarte, o proletário tam­bém é juridicamente construído como sujeito .e, em um passe de niágica, burgueses e proletários transformam-se, ambos, em suieitos de Direito. A desigualdade concreta que se verifica no mundo real para o Direito é inexistente . Assim, se reto­mássemos a linguagem psicanalítica, não seria exagero fala1'­mos de esquizofrenia do Direito, uma vez. que o seu mundo não é o real, mas especificamente jurídico - burgueses e pro­letários, tão diferentes, encontram-se no mercado em igualda­de de condições jurídicas. A· compra e venda que . ocorre entre burgueses e proletários é sui generis, é o Contrato de Trabalho.

A Força de Trabalho .(mercadoria que o proletário põe à venda no mercado), como qualquer mercadoria, precisa cir­cular, a fim de que o capital reali~e o seu Ciclo. O proletário vende a sua forfa de trabalho em . troca do salário, mediante um "acordo de vontades". O capitalista somente tem por inte­r~sse assegurar .a reproduÇão desta mesma força de trabalho, sem ter qualquer compromisso com o pri'Jletário que vá além de garantir a relativa incolumidade de seu parceiro contra­tual. A liberdade dos estandartes burgueses resume-se,. para o proletário, em poder vender a sua força de trabalho. A igual­dad~ · burguesa, para o proletário, é a igtialdade, como parte, no contrato de trabalho . ·

Os juristas burgueses, tomo anota Pa,sukanis, construíram a teoria jurídica da pessoa, tomàndo como ponto de partida

. uma infinidade de c,onsiderações de natureza mor(ll e teoló­gica acerca da igualdàde "intrtnseca" entre o.s homens." Inda­ga, com clareza, o autor de A Teoria Geral do Direito e o Mar-

. xismo onde fica a igualdade e a dignidade do capitalista levado à rutna p1la concorrlncla de outro capitalista? ou mesmo a' .do operdrlo d111mpr~gado que 6 obrigado a deixar sua' família em dificuldades? Estas questões, observa Eugeny Bronislano• vlch; nao t8m respostas. a ser dadas pelos juristas burgueses.

Do que vem de ser exposto, ressai que cJ Direito - e seus conceitos basilares - é uma racionalização ideológica, que tem por finalidade alcançar objetivos concretos perseguidos pela burguesia. Em verdade, como fica claro na obra que se está apresentando, o direito· dá tintas civilizadas à opressão de clas­se. PasUkanis, admitindo esta premissa inicial, entende que a

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mera constatação da natureza ideológica do Direito é insufi­ciente para desvendar os seus mecanismos mais íntimos . As• sim, para o jurista soviético, é fundamental que se estude a forma jurídica e não apenas o seu conteúdo .. Em nosso enten­dimento, esta· é a principal inov~ão trazida pelo importante autor bolchevique. .

Pasukanis parte do pressuposto de que o éonceito jurídico é uma forma ideológica mas que, como a mercadoria que é também uma forma ideológica, um "fetiche", foi estudada cien­tificamente, não há motivos para negar-se ao direito igual tra­tamento. Não é o fato de que o Direito seja ; uma ideologia que deve inibir o seu exame; ao revés, o que não é possível, e o que é metodologicamente incorreto, é examinar o Direito apenas quanto ao seu conteúdo (dominação de classe) e aban­donar a sua manifestação formal. Para o Direito a forma é essencial. Ao correr da leitura de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo constata-se que o seu autor estava perfeitamente I atualizado com as mais modernas teorias burguesas de sua época.

E usual atribuir-se a Pasukanis uma teoria jurídica . que propugna pelo imediato desaparecimento da forma jurídica tout court. Nada mais falso. O Vice-Comissário do Povo para a Justiça do primeiro Governo Soviético, coerente com o seu entendimento de que a forma jurídica é da essência do capi­talismo, esposava a tese de que só a partir do desaparecimento completo do capitalismo é que poderia ocorrer a desintegração do Direito. Assim, no período de transição (ditadura do pro­letariado) seria extremamente precipitado e errôneo postular um pleno fim do direito. O que Pasukanis não admite - e a nosso ;uízo o faz com razão - é que os institutos jurídicos se transformem em institutos de Direito socialista. A manuten­ção das relações de troca -: mesmo que entre entidades esta­belecidas pelo poder soviético - .demonstra a permanência das relações capitalistas na ditadura do proletariado. A NEP esta­belecida por Lenin confirma o acerto das teorias de E .. B. Pasukanis. Karl Renner, teórico fiiiado à Segunda Internacio­nal, defendia a tese da permanência dos institutos jurídicos, com a modificação de seu conteúdo. As teses de Renner, com algumas modificações, foram utilizadas por Stálin e seu Pro-

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XVIII E. B. PASUKANIS

curador Geral, Vishinsky, contra as concepções de Eugeny Bronislanovich. Este, juntamente com Marx, entendia que o simples jato do operariado apoderar-se do aparelho de Estado burguês não implicava em uma modificação metafísica de sua natut'eza.

Stálin e Vishinsky, sustentando uma concepção volunta­rista do Direito, entendiam que o Direito socialista era a ex­pressão da vontade de classe do proletariado, o que - muta­tis, mutandi - não está muito longe da doutrina idealista de Rousseau, que via na lei a expressão da vontade geral. Stálin e Vishinsky fizeram tábula rasa do marxismo e ipso facto per­deram de vista a realidade econômica. Não foi sem coerência com este modelo de interpretação do Direito e do. mundo que Stálin chegou a declarar que a União Soviética jd havia alcan­çado o comunismo! Hoje se sabe perfeitamente o custo social, político e moral da prevalência da corrente stallnista no inte­rior do movimento socialista internacional.

4. O Contrato e o Direito Penal- Os temas fundamentais da Filosofia do Direito são tratados com grande profundidade e firmeza em A Teoria Geral do Direito .e o Marxismo, e a cada um deles é segura a sensação de que .. o autor domina-os com absoluta tranqülidade. Hauriou, Kelsen, Duguit, Kant e Stammler não oferecem qualquer dljic.uldade para Pasukanis que ·contesta-os com veemência e quando concorda com os mesmos é para demonstrar as imensas contradiç"es internas da teoria jurídica burguesa.

Dentre todos os temas abordados pelo livro ora apresen­tando, parece-nos que um dos mais relevantes 6 o Direito Pe­nal, o seu papel especifico na ordem jurtdica burguesa como garante da propriedade privada. Mas o que se destaca mais em sua análise, pela criatividade e ineditismo, 6 o exame do processo penal como uma barganha, um contrato entre acusa­ção e acusado, entre delinqüente e ordem e a performance do Estado-Juiz como interveniente 11este contrato atípico e que, no entanto, está. plenamente inserido na lógica do Modo de Produção Capitalista. O Direito Penal merece atenção espe­cial de Pasukanis e, dentro dele, destaca-se a reflexão sobre a pena como reparação equivalente. ·

APRESENTAÇÃO XIX

A vingança de sangue é o marco zero do qual derivam todos os desdobramentos possíveis e imagnários do tema, che­gando-se às modernas teorias do Direito Penal burguês. . De todo o estudo desenvolvido sobre . a violação do Direito -incidência privilegiada da norma penal - verifica-se, com cla­reza indiscutãvel, que a repressão a condutas moralmente re­prováveis não· é, nem nunca foi, o centro de atuação da norma penal. As condutas moralmente reprováveis passam a ser pe­nalmente reconhecidas quando implicam em um certo nível de ferimento à o.rdem econômica.

Como nos contratos, de maneira geral,· a cada prestação corresponde uma cóntraprestação, in casu, no âmbito do Di.­reito Penal burguês, a cada violação da norma corresponde um quantum de liberdade a ser perdido pelo criminoso, como con~ trapresiação do seu ato. Esta nátureza contratual é igualmente encontradiça no processo penal, na medida em que é dada ao réu a possibilidade de defesa (obrigatoriedade mesmo) e a in­dicação de advogado que tem por junção processual a de nego­ciar o valor a ser pago pelo seu cliente, ou mesmo a .de con­vencer ao Tribunal de que o réu/ cliente não praticou qualquer ilícito contratual. "Aliás, a Justiça burguesa zela cuidadosa­mente para que o contrato com o delinqüente seja concluído dentro de todas as regras da arte, de forma que cada um possa convencer-se de que o pagamento é igualmente de_termintido (publicidade do processo judicial) e de que o delinqüente pode negociar livremente sua liberdade (o processo contraditório) e que pode utilizar-se de um profissional tecnicamente preparado (admissão de advogados de defesa), bem como que cada um possa' controlar a aplicação :da lei. Em uma palavra, as rela­ções entre o Estado e o delinqüente situam-se nos quadros de um negócio comercial lealmente estabelecido. E nisto que con-sistem as garantias do processo penal." ·

A pena que, ap6s longa evolução e transformação, é um instituto do Direito Público e não mais se confunde com vin­gança ârbitrária e desmesurada é, no capitalismo, uma grada­ção escalonada que, com base no princípio da troca equiva­lente, deve limitar a perda da liberdade do delinqüente. Para cada delito· existe um valor correspondente de liberdade a ser perdida, valor este previamenttl determinado e, por presunção,

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de conhécimento público. O contrato entre o dlllltfiJinll o o Estado tem suas cláusulas adrede conhecida• (prlnofplo da re­serva legal) e inafastáveis. Na esteira do qUI /OI tlál(fntado por Pasukanis, é possível avançar o racloctnto 11ft dlrlçilo ao estudo de tema de fundamental importancltl plrt o mundo jurídico, que é a Ação Penal, que tem n01 dl'llfHOI 1l111mas jurídicos trátamento diferenciado. para o DINIIO ,..,,...,.,tca­no. não há a indisponibilidade vigente rzô ord,.,.,.IO •Nillllro, sendo que ao Ministério Público é dcido um ''"""' Olimpo de opçÕes capazes de, por si só, confirmar a· ,_, R Mtureza contratual que Pasukanis defende com tanto' IIIUo 1 brilhan­tismo. já no caso brasileiro, a ação penal .llfd ,,.., a uma maior rigidez e, em conseqüência, é regida por .IM lfttcatll1mo que se materializa na indisponibilidade 1 .... Idade. O que merece ser indagado é qual a poutv1l .. ,.. 111l1t1nte entre os princípios que regem a· Ação P1nal 1t0 fff04tlo Jurldlco norte-americano e a sua relação • com um *do ,.á ..ao de acumulação de capital, e daí verificar-SI Gl ,.,.,,.,,.,d, 1xls· tentes nos ordenamentos de raízes an&l~ 1 01 d1 tra­dição romano-germânicas. Qual a ,.,z,.. lfflll dllpt:Jnlblli­dade e indisponibilidade da persecuçao .,.,., f 1 tllmocra­tização de uma determinada sociedad1 "" ,.,.,,, 11111 ca· minhos ainda precisam ser trilhados p1l1 ,.,, /tllltllctl mar· xista.

A extensa área do Direito Penal tam.,. ~ .,. d1 atua­ção das categorias jurídicas fundamtnMII, O lfl/1110 d1 Di­reito, a igualdade, a pessoa e a vontadl diiiiiMt ltD Cddlgo Penal com a mesma desenvoltura qui o ,_,. M Dlrtllo Civil. Tal qual na legislação civil, o sujeito dl DlrfiiO "14 ltel c1ntro do Direito Penal, isto é, tanto aqui C01fl0 14, I 1141 pr111nça marca indelevelmenie tudo aquilo qui d,. ,.,,,, i aplica­ção da lei. A responsabiljdade no Dl,liO I'IMI hur11uls ~ pessoal, não passando, em. tese, da p111011 do fllll,.qU~ttrll -princípip este que foi alçado ao nl111l dl '""''"' &'tlfllllltuc:io­nal -, os conceitos de dolo e culptl llo, tlllltrll, ú~rlvt1dos, dos conceitos aplicáveis ao Dlr1ltt:J tm I'"' 11 ''" "'flctdal, vinculam-se à vontade juridzcam1n11 ~11111 , Dll (/l&lflmt que só há delito imputá1Jel a algulm fiMit~O "' .,., h1t11 ulflutJm possa ser encontrado um compOII111N "'INI-IH IIIIIUntl pre-

APRESENTAÇÃO XXI

ciso: a volição. Justifica-se, conseqüentemente, a exclusão da­queles que não sejam senhores de sua vontade do campo de incidência da norma penal, exclusão esta que, por igual, é feita de tais indivíduos do círculo daqueles que podem con­tratar validamente.

A confissão do réu, nos sistemas nos quais o caráter ne­gociai do Direito Penal é mais evidente, assume assim um aspecto muito mais relevante para o desfecho do processo. Confesso o réu, dispensa-se toda a "confabulação" que signi­fica a marcha do processo e passa-se diretamente a negociar a contrapartida, ou seja, a pena a ser aplicada ao delinqüente. No Direito Processual Penal de origem romano-germânica, veri­fica-se que o procedimento, pelo seu caráter de indisponibili­dade, prossegue não obstante a confissão e, de fato, é como se os "seus mecanismos extremamentes complexos e eruditos estivessem postos com o intuito de dificultar ao máximo a apli­cação da pena. Sem exagero, poder· se-ia afirmar que ao Có­digo Penal contrap~e-se o Código de Processo Penal, como em um antagonismo dialético.

5. Breve Biografia de Pasukanis - já vai longe esta apresen­tação e, com efeito, achamos que a sua finalidade é única e exclusivamente de ser o que, em geral, se espera que ela seja: uma breve notícia sobre o trabalho e a indicação de alguns aspectos que parecem relevantes aos olhos do prefaciador. Julgamos que neste encerramento é necessário que sejam .ditas algumas palavras sobre a biografia de E. B.. Pasukanis. Eu­geny Bronislanovich Pasukanis nasceu em 1 O de fevereiro de 1891, em uma família de camponeses lituanos, na cidade de Starica. Foi membro do Partido Operário Social-Democrata Russp (bolchevique) desde 1912. Vice-Comissário do Povo pa­ra a Justiça na gestão de Stuka como Comissário.· A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, sua principal obra, foi publi­cada em 1924. Após a morte de Lenin, no mesmo ano, e a ascensilo de Stálin ao poder absoluto na União Soviética, ini­ciou-se uma perseguição política e ideológica a vários militan­tes bolcheviques, dentre os quais se encontrava Pasukanis.

Além das atividades acima relacionadas, Pasukanis foi diretor do Instituto Jurídico je Moscou e Vice-Presidente da

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XXII B, 1. JAIUIANII

Academia ComunlsltJ I r.,.... . "'"'"' . PCIIukCinls a elabo­ração de um novo C~,. l'fMI IMrt 1 Untao das Repúblicas Socialistas Sovl.t/QGI, talf /ti .,,,,.,, tJOn1ld1rado pela seção jurídica da Acadtmt. c., .. """ I

A partir d1 lllfl IMfllf 1111/trldo por uma matéria do Pravda, em Zil11 '"'"'"'""" 111 criticas a E. B. Pasukanis até que ocorrtll 1 ..., """lfiGrtcimento". Pasukanis foi ata-cado doutriMriMuNII 1 vitima d1 calúnias insidiosas que acusa­va~ o 111lhiJ ""'UIIOrt4rlo d1 "inimigo do povo" e outros eplt1t01 tio 10 10110 do 1tallnlsmo e de Vishinsky (o célebre acusador dOI ,fOHIIOI d1 Moscou). Aos 8 de agosto de 1956, foi dlcrtlldl 1 rHblllta~o de Pasukanis, tendo sido reconhe­cldtll HlfiO /111111 "' acusações dirigidas contra o jurista bol­chtlllflUI. • d1 11 1sperar que em plena Perestroika as idéias d1 PtUukanl• po11am penetrar livremente nos círculos marxis- · til poli, 11m ddvida, elas têm muito que ensinar àqueles. que 11 d1dlcam ao estudo do Direito.

Porto Alegre, maio de 1988.

PAULO BESSA

PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO RUSSA

Quando da publicação do meu livro, não pensava ser necessária uma segunda edição, sobretudo decorrido tão pouco tempo após a primeira. Aliás, me convenci hoje de que isto aconteceu em razão de este trabalho ter sido usado como ma­nual - o que nunca imaginei! - quando, na melhor das hi­póteses, deveria apenas servir de estímulo. Isto significa dizer que é muito insuficiente a ·literatura marxista referente à teoria geral do direito. Do mesmo modo, de que outra forma poderia ser, se, até muito pouco, os meioli marxistas se mostravam des­crentes com relação à própria existência de uma teoria geral do direito?

De qualquer maneira, o presente trabalho não pretende ser de jeito nenhum o fio de Ariadne marxista no domínio da teoria geral do direito; ao contrário, pois em grande parte foi escrito objetivando o esclarecimento pessoal. De onde a abs­tração e a forma concisa e mesmo assim apenas esboço de exposição; de onde também o seu aspecto unilateral que se deve inevitavelmente à concentração ·da atenção sobre deter­minados aspectos do problema que se revelam essenciais. Todas estas particularidades demonstram que este livro não pode deste modo .servir de manual.

Ainda que perfeitamente consciente destes defeitos, rejeitei a idéia de suprimi-los na segunda edição, e o fiz pela seguinte razão: a crítica marxista da teoria geral do direito ainda está no início. Por isso, qua(quer conclusão definitiva será preci-

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pitada; é preciso, pois, um profundo estudo de cada ramo da ciência do direito. Ora, neste campo há ainda muito o que fazer. Basta dizer que a critica marxista ainda não abordou, de nenhum modo, domínios tais como, por exemplo, o do

· direito inte~nacional. O mesmo se observa com relação à área dos processos e também, se bem que em menor grau, com a do direito penal. No domínio da história do direito dispomos apenas daquilo que a teoria geral marxista do direito nos ·le­gou. Salvo o direito público e o direito civil, que constituem uma exceção relativamente feliz. P_or conseguinte,· o marxismo se encontra apenas em condições de apropriar-se de um novo domínio. E natural que, de início, tal aconteça sob a forma de discussões, e de lutas entre diferentes concepções.

Meu livro, que põe em discussão algumas questões da . teoria geral do aireito, objetiva, principalmente, preparar todo esse trabalho. Resolvi, então, conservar o essencial do seu antigo caráter, sem tentar. reestruturá-lo em forma de manual. Fiz apên~s complementações necessárias, devidas, em parte, às observações . da crítica. ·

Acho convenie11ie revelar, desde já; neste prefácio, algu­mas. observações prévias quanto às idéias fundamentais' do meu trabalho. O companheiro P. I. Stucka definiu, muito corre­tamente, a minha posição com relação à teoria geral do direito, como uma "!entativa de- aproximar a forma do direito da forma da mercadoria". Na. medida em que o balanço final permite julgar, esta idéia foi reconhecida >~em ger~l, e salvo algumas reservas, como feliz e frutuosa. 1st() se deve, certamente, ao fato de eu não ter tido neste caso necessklade· de "descobrir a América". Na literatura marxista e, em primeiro 'ugar, ·no próprio Marx, é pÓssível encontrar elementos suficientes para uma tal aproximação. Basta citar, além das passagens men­cionadas neste livro, o capítulo intitulado "A moral e o direito. A igualdade",· do Anti-Dühring. Nele é dado por Engels uma formulação absolutamente precisa do vínculo existente entre o princípio da igualdade e a lei do valor; numa nota ele afirma que "esta dedução das. modernas idéias de igualdade, a partir das éondições econômicas da sociedade .burguesa, foi exposta

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pela primeira vez por Marx em O Capital". 1 Por conseguinte, faltavam ser compilados e unificados os diversos pensamentos de Marx e de Engels, e tentar-se aprofundar algumas conclusões daí decorrentes. Depois de Marx, a tese fundamental, a saber, de que o sujeito jurídico das teorias do direito se encontra numa relação rnuito íntima com o proprietário das mercado­rias, não precisava outra vez ser demonstrada.

A segunda proposição também nada continha . de novo. Esta~ porém, enuncia que aquela filosofia do direito, cujo fun­damento é a categoria do sujeito corn a sua capacidade de auto­determinação (já que, até o presente, a ciência burguesa não criou outros sistemas coerentes de filosofia do direito), nada mais é, com certeza, do que a filosofia da economia mercantil, que estabelece as condições mais gerais, mais abstratas, sob quais se pode efetuar a troca de acordo com a lei do valor e ter lugar a exploração sob a forma de "contrato livre". Este pensamento embasa a crítica que o comunismo fez, e ainda jaz, à ideologia burguesa da liberdade,· da igualdade e da de­mocracia burguesa formal, dessa democracia na qual "a repú­blica. do mercado" procura mascarar o "despotismo da · fábri­ca". .Este pensamento dá-nos a convicção de que a defesa dos chamados fundamentos abstratos da ordem jurídica é a forma mais geral da defesa dos interesses ,da clas.se burguesa, e~c. Contudo, se a análise marxista da forma da mercadoria e da forma do sujeito, que àquela se liga, encontrou uma aplicação muito vasta como meio de crítica da ideologia jurídica bur· guesa, de· modo algum tem sido utilizada para estudo da su­perestrutura jurídica como fenômeno objetivo. O principal obstáculo a este estudo está em que os raros marxistas que se ocupam das questões jurídicas consideram sem dúvida àlguma o momento da regulamentação coativa social como a caracte­rística central e fundamental, a ·única característica típica dos fenômenos jurídicos. Pareceu-lhes que somente este ponto de vista sustentaria uma atitude científica, ou seja, sociológica e

1. Engels, Herrn Eugen Dührings Umwiilzung der Wissenschaft (1878), 12." ed., Berlim, 19~3,...., Tradução brasileira: Ed. Paz e Terra, Rio, 1979.

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histórica em face do problema do direito, em oposição à atitu­de dos sistemas idealistas, puramente especulativos; à atitude ;daquela filosofia do direito que tem por fundamento a repr~­sentação do conceito de sujeito com a sua capacidade de auto­determinação. Era, pois, absolutamente natural pensar que a crítica marxista do sujeito jurídico, imediatamente derivada da análise da forma mercantil, nenhuma relação guardasse com a teoria geral do direito, já que efetivamente a regulamentação coativa, externa das relações recíprocas entre proprietários de mercadorias, representa apenas uma parte ínfima da regulamen­tação social em geral.

Em outras palavras, sob este ponto de vista, tudo o que poderia concluir-se da concepção marxistas sobre os "guardiães de mercadorias", "cuja vontade habita nas próprias coisas"/ parecia válido apenas para um campo relativamente restrito, o do chamado direito comercial da sociedade burguesa,· sendo, porém, totalmente inutilizável noutros campos do direito (di­reito público, direito penal, etc.) e no caso de outras forma­ções históricas, como, por exemplo, o escravismo, o feudalis­mo, etc. Falando de outra maneira, o significado da ·análise marxista se restringia, por um lado, a um campo especial do direito e seus resultados, e, por outro, à função de desmasca­rar a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade, à fun­ção de criticar a democracia formal, mas não à função de expli­car particularidades fundamentais e primárias da superestru­tura jurídica enquanto fenômeno objetivo. Deste modo duas coisas foram negligenciadas: uma esqueceu-se que o principio da subjetividade jurídica .(assim entendemos 'o prlnctplo formal da liberdade e da igualdade; da autonomia da personalidade, etc.) não é somente um meio dissimulatório e um produto da hipocrisia burguesa na medida em que ~ oposto à luta prole­tária pela abolição das classes, contudo. não deixando de ser também um princípio realmente atuante, que se acha. incorpo­rado à sociedade burguesa desde que essa nasceu da sociedade feudal patriarcal e a destruiu. A outra foi que esqueceu-se

2. Karl Marx, O Capital, Liv. I, Cap. II, Ed. Soclales, Paris, 1969, p. 95. Tradução brasileira: Regis Barbosa e Flávio Kotkhe, Nova Cullu· ral, São Paulo, 3.• ed., 1988, p. 79.

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de que a ·vitória deste princípio não é apenas e tão-somente um processo ideológico (ou seja, um processo da ordem das idéias, das representações, etc.), mas antes um real processo de transformação jurídica das relações humanas, que acompa­nha o desenvolvimento da. economia mercantil e monetária (da economia capitalista, falando da Europa) e que engendra pro­fundas e múltiplas modificações de natureza objetiva. Este con­junto de fenômenos compreende o surgimento e a consolida­ção da propriedade privada, a sua extensão universal tanto aos sujeitos como a todos os objetos possíveis; a libertação da terra das relações de domínio e servidão; a conversão de toda a propriedade em propriedade mobiliária; o desenvolvi­mento e preponderância das relações obrigacionais e, finalmen• te, a constituição de um poder político autônomo como parti­cL(lar forma de poder - ao lado do qual tem lugar o poder puramente econômico do dinheiro -, assim como a subseqüen­te divisão, mais ou menos profunda, entre a esfera das rela­ções públicas e a das relações privadas, entre o direito público e o direito privado.

Se a análise da forma mercantil revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e desvel'da os fundamentos dos esquemas abstratos da ideologia jurídica, o processo de evolução histórica da economia mercantil-monetárie< e mercan­til-capitalista acompanha a realização destes esquemas sob a forma da superestrutura jurídica concreta . Desde que as re­lações humanas têm como base as relações entre sujeitos, sur­gem as condições para o desenvolvimento de uma superestru­tura jurídica, com suas leis formais, seus tribunais, seus pro-cessos, seus advogados, etc. ·

Chega-se, então, à conclusão de que os traços essenczazs do direito privado burguês são, ao mesmo tempo, os atributos" característicos da superestrutura jurídica. Nos estágios primi­tivos de desenvolvimento, a troca de equivalentes, sob a forma de compen.sação e reparação dos prejuízos, produziu esta forma jurídica, muito primitiva, que se vê nas leis bárbaras: do mes­mo modo, as sobrevivências da troca de equivalentes na esfera da distribuição, que subsistirão igualmente numa organização socialista da produção ( até\à passagem para o comunismo evo-

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luído), obrigarão a sociedade socialista a se confinar, por al­gum tempo, "no horizonte limitado do direito burguês", tal como o previra Marx. Entre estes dois pontos extremos ope­ra-se o desenvolvimento da forma jurídica que atinge o seu mais alto grau na sociedade burguesa capitalista. Podemos também caracterizar este processo como uma desagregação das relações org&nicas patriarcais que são substituídas por relações jurídicas, isto. 4, por relações entte sujeitos que, formalmente, possuem os mesmos direitos. A dissolução da família patriarcal onde o pater familias tem a posse da força de trabalho da mu­lher e dos filhos, e a subseqüente transformação desta numa fa­mília contratual onde os cônjuges celebrqm entre si um contrato que objetiva os bens e onde os filhos (como, por exemplo, na propriedade norte-americana) recebem do pai um salário, consti· tui um dos ttpicos exemplos desta evolução. A qual, além disso, se vê acelerada pelo desenvolvimento das relações mercantis e monetárias. A esfera da circulação, a esfera que se compre­ende pela fórmula Mercadoria-Din/:zeiro-Mercadoria, desempe­nha um papel predominante. O direito comercial exerce sobre o direito civil a mesma função que este exerce sobre todos os oUtros ramos do direito, isto é, indica-lhes o caminho do de­senvolvimento. O direito comercial é, portanto, por um lado, um. domtnio especial que só tem significação para as pessoas

. que fizeram da transformação da mercadoria em forma mone­tária, ou inversamente, a própria. profissão; e, por outro, ele é () prdprio direito civil nd seu dinamism01. no seu movimento em direção aos mais puros esquemas, nos quais não se en­contra qualquer traço de organicismo e onde o sujeito jurí~ dico aparece na. sua forma acabada, como complemento indis-' pensdvel e inevitável da mercadoria.

Por este motivo, portanto, o princtplo da subjetividade jurídica e os esquemas nele contidos, que para a jurisprudência b'urguesa surgem cpmo esquemas a priori da vontade humana, derivam necessatiamente e. absolutamente das condições da economia mercantil e monetária. O modo estrltam1nt1 emptrico e técnico de conceber o vínculo existente 1ntt1 IStls dois mo­mentos encontra a sua expressão nas reflBXIJIS r1lativas ao fato de a evolução do comércio exigir algumas garantias, como seja,

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da propriedade, áe bons tribunais, de uma boa política, etc. Porém, se nos aprofundarmos, torna-se óbvio que não apenas tal ou qual estrutura técnica do aparelho do Estado nasce no terreno do mercado, como também que não deixa de existir um vínculo interno indissociável entre as categorias da econo­mia mercantil, e monetária e a própria forma· jurídica. Numa sociedade onde existe dinheiro, e onde, por conseguinte, o tra­b·alho privado individual só se torna trabalho social pela me­diação de um equ_ivalente geral, encontram-se já delineadas as condições de uma forma jurídica com as suas oposições entre o subjetivo e o objetivo.

E, pois, somente numa tal sociedade que se abre a pos­sibilidade de o poder político se opor ao poder puramente econômico, o qual se revela, o. mais distintamente, sob a for­ma do poder do dinheiro. Ao mesmo tempo a forma da lei torna-se igualmente possível. Chega-se, então, à conclusão de que para analisar as definições fundamentais do direito não seja preciso partir do conceito de lei e utilizá-lo como fio con­dutor, já. que o próprio conceito de lei, enquanto decreto do poder político, pertence a um estágio de desenvolvimento onde a divisão ,da sociedade em esferas civil e política já está con­cluída e consolidada e onde, conseguintemente, já estão reali­zaáos os momentos fundamentais da forma jurídica. "A cons­tituição do Estado político, diz Marx, mediante a decomposi­ção da sociedade. burguesa em indivíduos independentes, cujas relações são regidas pelo direito, assim como as relações dos homens das corporações e dos mestres eram regidas por privi­légios, conclui-se através de um único e mesmo ato'?

O que foi exposto até o momento não quer dizer, de modo algum, que eu considere a :/.IJi!:J:J.a. iw:iricfl como um "simples reflexo de uma pura ideologia": 4 A este respeito penso haver usado expressões suficientemente claras: "o direito, considerado

3. karl Marx, A questão Judaica (1844), Col. Le Monde, Paris, U.O.E., 1968, p. 43. Ed. brasileira: Ed. Moraes, São Paulo, p. 50.

·4. Cf. Stucka, Revoljucionnaja rol'prava i gosudarstva (0 papel re· volucionário do Direito e do Estado), prefácio' à primeira edição, Mos-

. ..... cou, 1921, p. v.

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como forma, não existe somente na mente das pe.ssoas ou nas teorias dos juristas especializados; ele tem .uma história real, paralela, que tem seu desenvolvimento, não como um sistema conceitual, mas como um particular sistema de, relações".5

Mais adiante falo de conceitos jurídicos que ."refletem teo­ricamente o sistema jurídico enquanto totalidade orgânica" 6

Em outros termos, a forma jurídica, expressa por abstrações lógicas, é um produto da 'forma jurídica real ou concreta (de acordo com a expressão do companheiro Stucka), um produto da mediação real das relações de produção. Não só indiquei que a gênese da forma jurídica está por se· encontrar nas rela­ções de troca, como também mencionei qual o 7;nomento que; na minha opinião, representa a realização completa da forma jurídica: o tribunal e o processo .

E natural que no desenvolvimento de qualquer relação _ jurídica possa haver, na mente dos agentes, diferentes repre­sentações ideológicas mais ou menos pronunciadas, deles pró- ' prios enquanto sujeitos, dos seus próprios direitos e deveres, da "liberdade" das suas próprias ações, dos limites da lei. A significação prática das relações jurídicas não se encontra, entretanto, nestes estados subjetivos . da consciênc:a. Enquanto o proprietário de mercadorias não tiver consciência de si como proprietário de mercadorias, então ainda não aconteceu a rela­ção econômica da troca, com o conjunto das conseqU8ncias ulteriores que escapam à suá consciência e à sua vontade. A mediação jurídica só é concluída no momento do acordo. Po­rém, um acordo comercial já nao se pode dizfJr um fen~meno psicológico; já não se pode dizer uma "idéia", uma "forma da consciência", é um fato econômico objetivo, uma relaç4o eco-. nômica indissoluvelmente ligada' à sua forma jurídica que é também objetiva.

O objetivo prático da mediaÇão jurídica é o de dar ga­rantias à marcha, mais ou menos livre, da produçao e da reprodução social que, na sociedade de produção mercantil, se operam formalmente através de vários contratos jurtdico.~

5. Cf. id., ib,, p. 39. 6. C f. id., ib . , p. 44.

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privados. Não se pode atingir este objetivo buscando unica­mente o auxílio de formas de consciência, isto é, através de momentos puramente subjetivos: é necessário, então, recorrer a critérios precisos, a leis e a rigorosas interpretações de leis, a uma casuística, a tribunais e à execução coativa das decisões Judiciais. P: por este moÍivo que não podemos nos restringir, na análise da forma jurídica, à "pura ideologia", desconside­rando mecanismo objetivamente existente. Todo fato jurídico por exemplo, a solução de um litígio por uma sentença é o que chamamos· de fato objetivo, situado tão fora da consciência dos protagonistas como o fenômeno econômico que, em tal caso, é mediatizado pelo direito.

Concordo, com reservas precisas, com uma outra censura que me dirige o companheiro Stucka, a de reconhecer a exis· tência do direito somente na sociedade burguesa. Efetivamente tenho afirmado, e continuo a afirmar, que as relações dos pro­dutores de . mercadorias entre si engendram a mais desenvol­vida, universal e acabada mediação jurídica, e que, por conse­gz,ânte, toda a teoria geral do direito ·e toda a jurisprudência "pura" não são outra coisa senão uma descrição unilateral, que abstrai de todas as outras condições das relações dos ho­mens que aparecem no mercado como proprietários de merca­dorias. Mas, uma forma desenvolvida e acabada não exclui formas embrionárias e rudimentares; pelo contrário, pressu­põe-nas.

·As coisas apresentam-se, exemplificativamente, da seguinte maneira no que diz respeito à propriedade privada: só o mo­mento da livre alienação revela plenamente a essência funda­mental desta instituição, ainda que, indubi:tavelmente, a proprie­dade, como apropriação, tenha existido antes como forma, não só desenvolvida, mas, também, muito embrionária da troca. A propriedade como apropriação é a conseqüência natural de

. todo modo dé produção; porém, a propriedade só reveste a sua forma lógica mais simples e mais geral de propriedade privada quando se visa ao núcleo de uma determinada formação social onde ela é determinada como a condição elementar da contín(J.a

· circulação dos valores, que se opera de acordo com a fórmula Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria.

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E quanto à relação de exploração, sucede ·exatamente o mesmo. Esta, entenda-se bem, em nenhum caso vê-se ligada à relação de troca como sendo igualmente concebivel numa economia natural. Porém, é apenas na sociedade burguesa ca~ pitalista, em que o proletário surge como alguém que dispõe da sua força de trabalho como mercadoria, que a relação eco­nômica da explo~:ação e juridicamente mediatizada sob .a forma de um contrato.

E justamente por isso que na sociedade burguesa a forma jurídica, em oposição ao que ocorre nas sociedades edificadas sobre a escravatura 'e 11 servidão, adquire uma significação uni­versal; é por isso que a ideologia jurtdica se to{na a ideologia por excelência e que também a defesa dos intt!resses de classe dos exploradores surge, com um sucesso sempre crescente, como a defesa dos princípios abstratos da subjetividade . ju­rídica.

Resumindo, minhas investigações não ti.'1ham de modo algum a intenção de ·impedir à teoria marxisia da direito o acesso a estes pertodos históricos que não confieceram a eco­nomia capitalista mercantil desenvolvida. Pelo contrário, tenho me esforçado e ainda. me esforço por facilitar a compreensão destas formas embrionárias que se encontram· ·nestes periodos e por relacioná-las com as formas mais desenvolvidas de acor­do com uma linha de evolução geral. O futuro mostrará até que ponto minha concepção é frutuosa. Natur~lmente, nesta breve tentativa, não poderia delinear os grandes .traços de evo­lução histórica e · dialética da forma jurídica. Para esse em­preendimento servi-me, essencialmente, das idé~as que encon· trei em Marx. Minha tarefa nã.o era a de resolver· em defi.nitivo todos os prQ.blerrz,as da teoria do .direito ou mesmo apenas al­guns. Meu desejo era mostrar unicamente sob que angulo é possível abordá· los e como devem ser equacionados. Fico con­tente em saber. que alguns ·marxistas tenham considerado que a minha posição sobre as questões do .:Jireito é interessante e oferece perspectivas. E é isto o que ainda me conserva no desejo de prosseguir este trabalho pela via iniciada.

· Pa1ukanls 1926.

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Introdução

AS TAREFAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO

A teoria geral do direito pode ser definida como o de­senvolvimento dos conceitos jurídicos fundamentais, isto é, os mais abstratos. A esta categoria pertençem, por exemplo, as definições de "norma jurídica", de "relação jurídica", de "su­jeito de direito'', etc. Estes conceitos são utilizáveis em qual­quer domínio do direito em decorrência de sua natureza abs­trata; a sua significação lógica e sistemática permanece a mes­ma, independentemente do conteúdo concreto ao qual sejam aplicados; Ninguém contestará que, por exemplo, o conceito de sujeito no direito civil e no direito internacional esteja subordinado ao conceito mais geral de sujeito de direito como tal, e que, em conseqüência, esta. categoria pode ser definida e desenvolvida independentemente de tal ou qual conteúdo concreto. Por- outro lado, também podemos constatar, se nos mantivermos nos limites ·de uma área particular do direito, que as categorias jurídicas fundamentais acima mencionadas não dependem do cÕnteúdo concreto das normas jur.idicas, isto é, que conservam sua significação mesmo que o seu conteúdo material concreto se modifique· de umà maneira ou de . outra.

.E evidente que estes conceitos jurídicos, os mais abstra­tos e os mais simples, são o resultado de uma elaboração ló­gica das normas de direito positivo e representam, em com­paração .com o caráter espontâneo das relações jurídicas e das normas que os exprimem, o produto tardio e superior de uma criação consciente.

Isto não impede . que os filósofos da . escola neokantiana considerem as categori"as jurídicas fundamentais como uma rea-

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lidade que se situa acima da experiência e que ·torna possí­vel a própria experiência. Assim, por exemplo, em Saval'skijl lê-se o seguinte: "o sujeito, o objeto, a relação e a regra das relações representam o a priori da exper!ência jurídica, as con· dições lógicas indispensáveis desta experiência, aquelas qu~ a. tomam possível". E mais adiante: "a relação jurídica é a con· dição imprescindível e única de toda instituição jurídica e por­tanto, também da ciência do diteito; pois sem relação jurídica não existe igualmente ciência que a ela se refira, isto é, a ciên· cia do direito, assim como. sem o princípio da causalidade não pode existir natureza nem, conseqüentemente, ciência da natureza".2 Saval'skij, em suas reflexões, apenas reproduz as conclusões de um dos neokantianos mais marcantes, .Cohen.3

O mesmo ponto de vista é encontrado em Stammler. seja na sua primeira obra fundamental; Wirtsçhaft und Reçht\ como em seu último trabalho, Lehrbuçh der Reçhtsphilosophie, onde se lê: "é necessário distinguir, entre os conceitos jurídicosJ de um lado, os conceitos jurí,dicos puros e, de outro, os conceitos jurídicos condicionados. Os primeiros representam as formas de pensamento gerais dos conceitos fundamentais do direito; a sua intervenção nada pressupõe além da própria idéia de direito. Assim sendo, encontram uma aplicação plena em todas as questões jurídicas que possam surgir, pois não são mais do que manifestações diversas do conceito formal do direito. Em conseqüência devem ser extraídos das determinações constan­tes deste último".5

Os neokantianos podem sempre nos assegurar quey se­gundo sua concepção, ''a idéia de direito" não precede a experiência :geneticamente, isto é, cronologieamente, mas. ape-

l. Saval'skij, Osnovy filosofii prava v naucliom idealizme (Prlncf­pios da filosofia do direito no idealismo cientifico), Moscou, 1908, p. 216;

2. Id., ib., p. 218. 3. Hermann Cohen, Die Ethik des reínen Willens, 2.• ed., Berlim,

1907, p. 22.7 e segs. 4. Rudolf' Stammler, Wirtschaft und Recht, 1896. 5. Id., Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.• ed., 1928, p. 250.

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nas lógica e gnoseologicamente; devemos, portanto, constatar que a assim chamada filosofia crítica nos conduz, tanto neste como em muitos outros aspectos, à escolástica medieval.

Podemos, portanto, ter por assente que o pensamento ju­rídico evoluído, independentemente da matéria à qual se re­fira, . não pode pa~sar sem uma certa quantidade de definições abstratas e gerais . Mesmo nosso direito soviético não pode prescindir delas, pelo menos enquanto permanecer como di­reito, cumprindo as suas tarefas ·práticas imediatas. Os con· ceitos jurídicos fundamentais, formais, continuam existindo em nossos códigos e nos seus comentários. O método de pensa­mento jurídico ·com os seus procedimentos específicos exigem igualmente sua existência.

Mas o acima referido demonstra que a teoria científica do direito deve se ocupar da análise de tais abstrações? Uma concepção bastante difundida atribui-lhes apenas valor pura­mente técnico condicional. A dogmática jurídica, dizem-nos, utiliza estas denominações por meras razões de· comodidade. Assim sendo, estas denominações, fora da dogmática jurídica, não teriam qualquer significação para a teoria e para o co­nhecimento. O fato, portanto, de que a dogmática jurídica é uma disciplina prática, e em certo sentido técnica, não nos permite concluir que os conceitos dogmáticos não possam evo­luir para o corpo de uma dh;ciplina teórica correspondente. Podemos concordar com Karner (isto é, Renner), quando afir· ma que a ciência do direito começa onde termina a dogmática jurídica.6 Mas daí não se conclui que a ciência do direito deva simplesmente lançar fora as abstrações fundamentais que ex­primem a essência teórica da . forma jurídica. A própria eco­nomia política começou efetivamente o seu desenvolvimento pelas questões práticas, extraídas sobretudo da esfera da cir­culação do dinheiro. Ela também fixou, originalmente, a tare­fa de mostrar "os meios de enriquecimento dos governos e

6 . J osef Karner, Die soziale Funktion der Rechtsinstitute beson­ders des Eigertums, cap. I, p. 72, in: 1rlarx-Stu4ien,. tomo I, 1904, tradu­ção russa, 1923, p. 11 (Karner é um pseudômino de Karl Renner).

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dos povos": Todavia, encontramos nestes conselhos técnicos os fundamentos dos conceitos que, s.ob forma aprofundada e gene­ralizada, passam a integrar os marcos teóricos da economia política.

Será a ciência do direito capaz de se desenvolver em uma teoria geral do direito, sem dissolver-se na psicologia ou mes­mo na sociologia?

Haverá a possibilidade de uma análise das definições fun· · damentais da forma jurídica, tal qual existe na economia po­lítica uma análise das definições fundamentais e gerais da forma mercadoria e da forma valor? Estas são as questões cuja solução determinará se a teoria geral do direito pode ser considerada como uma disciplina teórica autônoma.

Para a filosofia do Direito burguês, cujos representantes, em sua maioria se situam no terreno neokantiano, o problema aqui posto é resolvido pela simples oposição de duas catego­rias: a categoria do Ser e a categoria do Dever-Ser. Em .con­seqüência admite-se a existência de duas modalidades de pon­tos de vista científicos: o explicativo e o normativo. ~·o pri­meiro enfoca os objetos sob o ângulo de seu comportamento empírico, que ele busca tornar mais inteligível, relacionando-o com conexões internas dos objetos e .às suas características ex­ternas comuns . O segundo considera os objetos sob o ângulo das normas precisas que se exprimem através deles, normas que ele introduz em cada objeto singular como uma exigência. No primeiro caso todos os fatos são valorizados da mesma forma; no segundo são submetidos intencionalmente a uma apreciação valorativa, quer se faça abstração daquilo que con· tradiz as normas estabelecidas, quer se oponha expressamente o comportamento normal, que -confirma as normas, ao compor­tamento contrário às normas" .7

Para Simmel, a categoria do Dever-Ser determina um mo­do particular de pensamento que está separado por um abismo intransponível desta ordem lógica através da qual nós pensa­mos o Ser, que se efetiva com uma realidade natural. O "Tu

7. Wilhelm Wundt, Ethik, 1903, p. 1.

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 15

deves" concreto só pode ser fundamentado em relação a um outro imperativo. Permanecendo nos limites da lógica não po· demos, a partir da · necessidade, tirar conclusões acerca do Dever-Ser, e inversamente.8

Em sua obra principal, Wirtschaft und Recht, Stammler desenvolve em todas as nuances o mesmo pensamento, de que a conformidade às leis pode ser estabelecida por dois métodos diferentes: o método causal e o método teleológico. A ciência do direito adquiriu assim, ç;omo disciplina dogmática, uma base metodológica sólida. De fato, as tentativas de aprofundamento desta metodologia conduziram, por exemplo, Kelsen à convic­ção de que a ciência do direito é uma ciência essencialmente normativa, pois pode, mel:tior do que qualquer outra ciência da mesma classe, manter-se nos limites do sentido formal e lógico da categoria Dever-Ser. Na realidade, tanto na Moral como na Estética, a normatividade está impregnada de ele­mentos psicológicos e pode ser qualificada como vontade qua­lificada, isto é, como Fato, como Ente: o ponto de vista da causalidade .se impõe permanentemente e prejudica a· própria normatividade. Em oposição, no direito, cuja lei estatal é para Kelsen a expressão mais elevada, o princípio do Imperativo aparece sob uma forma inégavelmente heterônoma, rompendo definitivamente com a facticidade do real. :É: suficiente para Kelsen transportar a função legislativa para o terreno meta­jurídico - e é o que faz efetivamente - para que a ciência do direito reste a pura esfera da normatividade: a tarefa desta ciência do direito limita-se, portanto, exclusivamente a ordenar lógica e sistematicamente os diferentes conteúdos normativos. Não se pode negar a Kelsen um grande mérito. Pela sua lógica intrépida; ele levou quase ao absurdo a metodologia do neo­kantismo com as suas duas ordens de categorias científicas . Efetivamente, a categoria científica "pura" do Dever-Ser, liber­ta de todos os aluviões do Ente, da facticidade, de todas as "escórias" psicológicas e sociológicas, não possui, e não pode possuir de forma alguma determinações de natureza racional.

8. 1910.

Georg Simmel, Einleitung in die Moralwissenschaft, Stuttgart, -

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Para o imperativo puramente jurídico, isto é, incondicional­mente· heterônomo, a finalidade é, por si própria, secundária e indiferente. "Tu deves a fim de que ... ", esta . formulação, para Kelsen, não é mais o "Tu deves" jurídico.

No plano do Dever-Ser jurídico nada há .mais que a 'Pas­sagem de uma norma à outra segundo os graus de uma escala hierárquica, no cume da qual encontra-se a autoridade sup_re­ma. que dita as normas e que engloba ó todo - um conceito­limite do qual a ciência do direito parte cbmo de um dado. Um crítico de Kelsen apresentou esta atitude relativa às tare­fas da ciência do direito, sob a forma de um diálogo carica­tura! entre um jurista e um legislador: "Nós não sabemos - e isto nem nos preocupa - que tipo. de leis os senhores devem

·decretar. Isto pftrtence à arte da .legislação, que nos é estra­nha. Aprovem leis, como bem vos aprouver; tão logo os se­nhores o tenham feito, nós vos explicaremos, em latim, de que tipo de lei se trata".9

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Uma tal teoria geral do direito, que não explica nada, que a pribri dá· as costas às realidades. de fato, quer dizer, à vida social, e que se preocupa com as normas, sem se preo­cupar com as suas origens (o que é uma questão metajurídica!), ou pe suas relações com quaisquer interesses materiàis, não pode pretender o título de teoria, senão o de teoria do jogo de xadrez. Utna tal teoria nada tem a ver com a ciência. Esta "teoria" não pretende analisar o direito, a forma Jurídica en­quanto forma histórica, pois não vísa a estudar a realidade. :e por isso, para empregar uma expressão vulg~r, que não há muito que se possa tirar dela. ·

:e diferente nas teorias jurídicas denominadas sociológicas e psicológicas. Pode-se exigir-lhes muito mais, pois 'buscam, com o auxílio de seu método, uma explicação do direito .en­quanto fenômeno real, em sua origem e desenvolvimento . Mas também nos reservam outras decepções. As teorias jurídicas sociológicas e piscológ:cas deixam usualmente a forma jurídi-

9. Julius Ofner; Das soziafe·.Rechtsdenken,·Stuttgart, 1923, p. '54.

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 17

ca fora dos seus círculos de reflexões; em outros termos, elas não percebem, pura e simplesmente, o problema que está pos­to. Elas trabalham desde o começo com conceitos extrajuridi­cps e ainda que eventualmente levem em consideração defini­ções jurídicas, somente o fazem para apresentá-las como "fic­ção", "fantasmas ideológicos", "projeções", etc. . Esta atitude naturalista ou niilista inspira, à primeira abordagem, uma certa simpatia, particularmente se a opusermos às teorias jurídicas idealistas totalmente impregnadas de teleologia e de ''mora­Esmo". Após frases pomposas sobre "idéia eterna do direito", ou sobre a "significação absoluta da personalidade", o leitor que procura uma explicação materialista dos fenômenos sociais se volta, com satisfação particular, em direção às teorias que abordam o direito como resultado de uma luta de interesses, como manifestação da coerção estatal ou mesmo como um pro­cesso desenvolvendo-se na psique humana real. A muitos mar­xistas têm. sido suficiente introduzir, nas teorias acima, o mo­mento de luta de classes para se obter uma teoria do direito verdadeiramente materialista e marxista. Daí não resulta mais do que uma histót:a das formas econômicas com uma tintura jurídica, mais ou menos forte, ou uma história das instituições, mas em nenhuma hipótese uma teoria geral do direito.10

10. Mesmo o livro de P. I. Stucka, Revoljucionnaja rol'ptava i gosudarstva, já citado, que trata de toda uma série de questões da teo­ria geral do direito, não as reúne em uma unid.ade sistemática. O desen­volvimento histórico da regulação jurídica, do ponto de vista de seu cónteúdo de classe, é colocado em primeiro plano em sua exposição em relação ao desenvolvimento lógico e dialético da própria forma (é ne­cessário assimilar, entretanto, que percebe-se naturalmente que o autor dedicou em sua 3.• ed. comparando-a com a 1.• muito mais atenção às questões da forma jurídica). Stucka, contudo, procedeu apenas em fun­ção de seu ponto de partida, isto é, em função de uma concepção de direito que faz da teoria geral do direito, essencialmente, um sistema de relações de produção e troca. Se consideramos o direito inicialmente como 11'--forma de qualquer relação social, pode-se dizer que, a priori, as suas características passarão despercebidas. Ao contrário, o direito, enquanto forma de relações de produção e troca, desvenda facilmente, por força de U!Jla ànálise mais ou menos adequada, as suas caracterís· ticas específicas.

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Se os juristas burgueses, que têm tentado defender posi­ções próximas ao materialismo, como por exemplo Gumplo­wicz, se sentiram obrigados a examinar em detalhes, digamos de ofício, o arsenal de conceitos jurídicos fundamentais, quan­do mais não fosse para explicar . que estas são construções artificiais, meramente convencionais, os marxistas, que não possuem responsabilidades, particulares em relação à ciência do direito, quedam silentes ante a definição formal da teoria geral do direito, consagrando toda a sua atenção. ao conteúdo concreto das normas jurídicas e à evolução histórica das ins­tituições jurídicas. Em geral, é preciso anotar que os autores marxistas, quando falam de conceitos jurídicos, pensam essen­cialmente no conteúdo concreto do ordenamento jurídico carac­terístico de uma época dada, significa dizer, o que os homens consideram como sendo o direito em uma determinada etapa da evolução. B o que se verifica, por exemplo, na seguinte, formulação: "com base em um estudo determinado de forças produtivas nascem determinadas relações de produção que en­contram sua expressão ideal nos conceitos jurídicos dos ho­mens e nas regras mais ou menos abstratas, no direito costu~ meiro e nas leis escritas".U ·

O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; . a questão da forma jurí­dica enquanto tal não é colocada. Contudo não há. dúvida de que a teoria marxista não .deve apenas examinar o conteúdp · concreto dos orden~mentos jurídicos nas diferentes épocas his­tóricas, mas fornecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como fomia histórica determinada. Se renunciarmos à análise dos conceitos jurídicos fundamentais, obteremos apenas uma teoria jurídica explieativa da origem do ordenamento. jurídico a partir das necessidades materiais da s.ociedade e, conseqüentemente, do fato de que as normas jurídicas correspondem aos interesses de tal ou . qual classe

11. N. Beltov, K voprussu ... (Sobre a evolução da concepção monista da história), Petersburgo, 1894. Beltov é um pseudônimo de G. V. Plékhanov.

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social. Mas o próprio ordenamento jurídico permanece sem ser analisado enquanto forma, apesar da riqueza do conteúdo histórico que introduzimos neste conceito. Ao invés de dis­pormos de uma totalidade de determinações e de seus vínculos internos, somos compelidos a utilizar, mais modestamente e apenas de forma aproximada, um esboço de análise do fenÔ· meno jurídico. Este esboço é tão fluido que as fronteiras que delimitam a esfera jurídica das esferas vizinhas são comple­tamente enevoadas.U

Tal maneira de proceder deve ser reconhecida como jus­tificada até certo ponto. Podemos expor a história econômica e negligenciar completamente as sutilezas e detalhes, por exem­plo, da teoria. da renda ou da teoria do salário. Mas o que diríamos de uma história das formas econômicas .na qual as categorias fundamentais da teoria da economia política, Valor­Capital-Lucro-Renda, etc., fundamentam-se no conceito vago e indiferenciado de Economia? Não evoquemos a recepção que receberia este tipo de tentativa visando a apresentar tal história econômica como uma teoria da economia política. Entretanto, no domínio da teoria marxista do direito, as coisas ocorrem precisamente como descrito e não de maneira diferente. Po­demos sempre consolarmo-nos pensando que os juristas ainda buscam uma definição para o conceito de direito e não con­seguem encontrá-la. Ainda que a maioria dos cursos sobre teo­ria geral comecem habitualmente por esta ou aquela forma, estas, na realidade, não fornecem mais que uma representaçãc confusa, aproximativa e inarticulada do fenômeno jurídico. Pode-se afirmar, de maneira axiomática, que as definições do direito não nos ensinam grande coisa acerca do que ele é realmente, e que, inversamente, o especialista nos faz conhe-

12. O livro de Micail Nikolajeviê Prokrovskij, Ocerki po istorii russkoj l(ultury (Ensaio sobre a história da cultura russa), onde a defini­ção do clireito se limita às características de imobilidade e de inércia em oposição à mobilidade dos fenômenos econômicos, nos mostrá como a riqueza da exposição histórica se concilia com o mais breve esboço da forma jurídica: cf. op. cit., 2.• ed. M<l'!;cou, 1918, vol. I, p. 16.

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cer tanto mais profundamente o direito corno forma quanto menos se atérn à sua definição.

A causa deste estado de coisa é absolutamente clara: um conceito tão complexo .corno o de direito não pode ser expli­citado, exaustivamente por urna definição feita segundo as .re­gras da·lógica escolástica, per genus et per differentiam speci­ficam.

Infelizmente, aqueles poucos rnarx!stãs que se. ocupam-da teoria do direito sucumbiram, igualmente, às tentações da "ciência" escolástica. Renner, por exemplo, fundamenta a sua definição de direito no conceito de imperativo que a socie· dade impõe ao indivíduo.U Esta construção pouco engenhosa parece-lhe inteiramente suficiente para permitir-lhe seguir a evolução passada, presente e futura das instituições jurídi· cas.14

13. Cf. J. Karner, op. cit., cap. I, p. 68 (pseudônimo de K. Ren-ner). .

'-14. Cf., ta~bém, N. I. Ziber, Sobranie soCinenij (Obras comple­tas), vol. Il, p. 134: "O direito é o conjunto de normas coercitivas ex­primindo um caso típico de desenvolvimento econômico, conjunto des· tinado a previnir e a reprimir os . desvios em relação ao curso normal dos acontecimentos". O livro de N. Boukharine, lstoriceskij materializm (O materialismo hist6rico), (2.• ed., p. 175) contém definições, de direito, análogas: como conjunto de normas coercitivas decretadas pelo poder estatal. A diferença entre Boukharine e Ziber e particularmente Renner consiste em que Boukharine insiste particularmente sobre o caráter de

. classe do poder de Estado e, em conseqüência, do direito, Podvolockij, um discípulo de Boukharine, dá uma definição detalhada .do direito: "o direito é um conjunto de norínas~$Ociais coercitivas que refletem as re· lações econômicas e sociais de uma determinada sociedade e que são introduzidas e mantfdas pelo pbder estatal das classes dominantes· para sancionar, regular e consolidar estas relações e conseqüentemente, con~ solidar a sua' dominação" (1. P. Podvolockij, Marxistskaja teorija prava ,[Teoria marxista do direito], 2.• ed., Moscou, 1926). Todas estas defini­ções sublinham o vínculo existente entre o conteúdo con't:reto do orde· namento jurídico e a economia; Ademais tentam simultaneamente esbo­çar a análise do direito como forma, concreti.zando-a pela coerção ex­terior, organizada pelo Estado; em outras palavras, não ultrapassam, no fundo, os procedimentos grosseiramente_empíricos da ciência do direito prática e dogmática que o ·marxismo deveria ter' por tarefa .superar. (Há edição brasileira do livro ~e Boukharine - N. do T.)

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 21

O erro fundamental deste tipo de formulação é que elas não permitem captar o conceito de direito em seu verdadeiro movimento; naquilo que desvenda toda a riqueza das intera­ções e vínculos internos. de seu conteúdo. Em lugar de nos proporem o conceito de direito em sua forma mais acabada e mais clara, mostrando-nos, em razão disto, o valor deste con­ceito para urna época historicamente determinada, servem-nos unicamente um lugar comum, vazio, o de "ordenamento auto­ritário externo", que convém indiferentemente a todas as épo· cas e a todos os estudos de desenvolvimento da sociedade humana. As tentativas feitas na economia política para en­contrar urna definição do conceito de economia que englobe todas as épocas históricas, assemelham-se a estas definições. Se a teoria econômica consistisse apenas de tais generalizações estéreis e escolásticas, ela não merecia o nome de ciênéia.

Marx, corno se sabe, não começa as suas pesqu!sas pela investigação da economia em geral, mas por urna análise da mercadoria e do valor. Pois a economia, enquanto esfera par­ticular de relações, somente se diferencia quando surge a tro­ca. Enquanto ainda não existem relações de valor, a ativi­dade econômica só . dificilmente pode ser diferenciada das ou­tras atividades vitais, com as quais forma urna totalidade orgâ­nica. A economia natural não faz parte da economia política

( . .

enquanto ciência independente.15 Só as relações de economia mercantil capitalista formam o objeto da economia política corno disciplina teórica particular' que utiliza conceitos espe­cíficos._ "A economia política começa com a mercadoria, no momento em que os produtoS-! são trocados uns pelo..s outros,

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15. :e preciso, contudo; dizer que nãÓ reina a' unanimida~e com· pleta entre os marxistas no que diz respeito ao objeto da economia teórica. :e o que prova a discussão relativa ao artigo de I. I. Stepanov· Skvorcov publicado no Vestnik Kommunisticeskoj Akademii, 1925, n .. • 12. A grande maioria dos nossos teóricos em economia· que participa~;am de sua illscussão rejeitaram o ponto de vista de Stepanov d~ que as cate· gorias de economia mercantil capitalista em 11enhuma hipótese· formam

. o objeto específico da economia teórica-:-

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quer seja pelos indivíduos, quer seja pelas comunidades pri­mitivas".16

Podemos tecer considerações an,álogas em relação à teoria geral do direito. As abstrações jurídicas fundamentais que en­gendram a evolução do pensamento jurídico, as quais repre­sentam as definições mais próximas da forma jurídica como tal, refletem relações sociais bastante precisas e complexas. Qualquer tentativa para encontrar uma definição de direito adequada, não só a estas complexas relações, mas tam:bém à "Natureza humana'' ou à "Comunidade humana" em geral. conduz inevitavelmente a fonnas puramente verbais e esco• lástieas.

Uma vez que é necessário passar desta fórmula inerte à análise da forma jurídica tal qual ela existe realmente, nos deparamos com uma série de dificuldades que não se . deí:Xam subjugar senão com o auxílio de flagrantes artifícios. Assim, aprende-se, rotineiramente, após ter estudado uma definição· geral do direito, que existem propriamente duas formas de direito: um direito subjetivo e um direito objetivo, um jus agendi e uma norma agendi. Mas a possibilidade desta dico­tomia não é prevista na própria definição; assim, é~se cons­trangido a negar uma das duas fo~mas de direito e a apre· sentá-la como uma ficção, uma quimera, ou, então, admitir dentre o conceito geral de direito e suas variáveis um vínculo puramente exterior. A natureza dúplice do direito, sua divi­são em norma de um lado e faculdade jurídica de outro, en~ tretanto, possui uma significação tão importante quanto o des­dobramento da mercadoria em valor de troca e valor de uso.

O direito enquanto forma não pode ser captado fora de suas mais simpl~s definições . Ele existe somente dentro de suas oposições: direito objetivo, direito subjetivo; direito pú­blico, direito privado, etc. Porém todas estas distinções fun­damentais aparecerão mecanicamente vinculadas à formulação

16. F. Engels, Contribuição à Ciência da Economia Polftica de Karl Marx em K. Marx-F. Engels, Obras escolhidas, tomo I, Edições Progresso; Moscou, 1955, p. 390 (ed. franc.) (art. publicado em Das Wolk, Londres, 6 a 20 de agosto de 1859). (Há edição portuguesa: Edi­torial Caminho - N. do T.)

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principal, se esta for estabelecida de maneira a abraçar todas as épocas e todos os estágios da evolução social, compreenden­do-se neles aqueles que não conheceram, sob qualquer forma, as oposições mencionadas .

Só a sociedade burguesa capitalista criou todas as con­dições necessárias para que o momento jurídico seja plena­mente determinado nas relações sociais.

Mesmo se deixarmos de lado as culturas dos povos pri­mitivos - . onde só com grande dificuldade se consegue extrair o direito dentre a massa dos fenômenos sociais de caráter nor­mativo - percebe-se ,que as formas jurídicas são extremamente pouco desenvolvidas, mesmo na Europa medieval. Todas as oposições mencionadas acima se fundem em um todo indi­ferenciado. Não existe fronteira entre o direito como norma objetiva e o direito como justificação. A norma geral não se distingue de sua aplicação concreta. A atividade do juiz e a atividade do legislador, em conseqüência, confundem-se. A oposição entre direito público e o direito privado encontra-se completamente obscurecida, tanto na comunidade rural, como na organização do poder feudal. Falta, em geral, a oposição tão característica que existe na época burguesa entre o indi­víduo como pessoa privada e o indivíduo como membro da sociedade política. Foi preciso um longo processo de desen-· volvimento, no qual as cidades foram o principal palco, para que as facetas da forma jurídica pudessem cristalizar-se em toda a sua precisão .

Assim. o desenvolvimento dialético dos conceitos jurídi­cos fundamentais não nos fornece apenas a forma jurídica eni seu pleno desenvolvimento e em todas as suas articulações, mas reflete igualmente o processo real da evolução histórica, que não é outro senão o processo de evolução da sociedade bur­guesa.

· Não se pode objetar à teoria geral do direito, como a concebemos, que esta disciplina trate unicamente de defini­ções {.ormais, convencionais e de construções artificiais. Nin­guém duvida de que a economia política estuda uma realidade efetivamente concreta, ainda que _Marx: tenha chamado a aten­ção a que fatos como o Valor, o Capital, o Lucro, a Renda,

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etc. não podem ser descobertos "com ajuda de microscópios e de análise química". A teoria do direito opera com abstra­ções que não são menos "artificiais": a "relação jurídica" ou o "sujeito de direito" não podem igualmente ser descobertos pelos métodos de investigação das ciências naturais, embora por detrás destas abstrações escondam-se forças sociais extre­mamente reais.

Do ponto de vista de um indivíduo que viva em uin regime de economia natural, a· economia baseada sobre rela­ções de valor aparecerá comu uma deformação artificial de coisas simples e naturais, tanto como o modo jurídico de pen­sar aparecerá ao indivíduo médio como contrário ao "bom senso".

Deve-se observar que o ponto de vista jurídico é incom· paravelmente mais estranho à consciência do "indivíduo médio" do que o ponto de vista econômico, pois mesmo quando a relação econômica se realiza simultaneamente como relação jurídica é, na maioria dos casos, precisamente o aspecto eco­nômico que é atualizado pelos protagonistas desta relação, enquanto que o momento jurídico permanece e111 plano secun­dário e sq aparece coin clareza em casos excepcionais (proces­sos, litígios jurídicos). De outra parte os membros de uma casta particular (juristas, juízes) surgem habitualmente como os de­tentores do "momento jurídico" ao nível ·de sua atividade. :e por isso que o pensamento . atuá, para o indivíduo médio mai.s freqüentemente com o auxílio de categorias econômicas do que com o auxílio de categorias jurídicas.

Se se acredita que os conceitos jurídicos, que exprimem o sentido da forma jurídica, representam o produto de uma qualquer intervenção arbitrária, cai-se no erro dos racionalis­tas do século XVIII, denunciado por Marx. Aqueles, não podendo explicar - como dito por Marx - a origem e o desenvolvimento das formas enigmáticas assumidas pelas re· lações humanas, tentaram livrá-las de suas características in­compreensíveis explicando precisamente que era inventos hu· manos e que não haviàm caído do céu.l'

17. Karl Marx, O Capital, I, cap. I, op. cit., p. 92 e 93. Bel. braal· leira: São Paulo, Nova Cultural, 1988, 3.• ed., p. 71/72.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 25

Aliás não se pode contestar o fato de que grande parte das construções jurídicas é, com efeito, bastante discutível e arbitrária. Assim é com a maioria das construções de direito público. Tentaremos, nas páginas seguintes, explicar as ra­zões deste fenômeno. Provisoriamente, contentar-nos-emas em observar que a forma valor torna-se universal nas condições de uma economia mercantil desenvolvida e que reveste, ao lado de formas primárias, diversas formas de expressão deri­vadas e artificiais: surgem assim, por exemplo, sob o aspecto de preços dos objetos que não são produtos de trabalho (terra), ou que não têm absolutamente nada a ver com o processo de produção (por exemplo, segredos militares com­prados por um espião). Isto, contudo, não obsta o fato de que o valor, como categoria econômica, somente pode ser com­preendido do ponto de vista do dispêndio do trabalho social­mente necessário para a fabricação de um produto determi· nado. Da mesma forma, o universalismo da forma jurídica não deve impedir-nos de pesquisar as relações que constituem o seu fundamento real. Esperamos poder demonstrar adiante que estes fundamentos não são as relações que se denominam de direito público. ·

Uma outra objeção à nossa concepção de tarefas da teo­ria geral do direito consiste em considerar que as abstrações que lhe servem de fundamento são próprias do direito bur­guês. O direito proletário, dizem-nos, deve buscar outras con­cepções gerais, e a pesquisa de tais conceitos deve ser a tarefa da teoria marxista do direito.

Esta objeção, à primeira vista, parece ser muito séria. No entanto, repousa sobre um equívoco. Esta tendência, exi­gindo para o direito proletário novos conceitos gerais que lhe sejam própriós, parece ser revolucionária por excelência. Mas, em realidade, proclama a imortalidade da forma jurídica, pois se esforça em extrair esta forma de condições históricas deter· minadas que lhe permitam se expandir completamente, e a apr~ntar como capaz de se renovar permanentemente. O desaparecimento de certas categorias (de certas categorias, pre­cisamente, e não de tais ou quais prescrições) do direito bur­guês não significa em hipótese alguma a sua substituição por

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categorias do direito proletário. Igualmente o desaparecimento das categor!as Valor, Capital, Lucro, etc., no período de tran­sição para o socialismo evoluído, não significa o aparecimento de novas categorias proletárias de Valor, Capital, etc.

O desaparecimento das categorias do direito burguês sig· nificará nestas condições o desaparecimento do direito em geral, isto é, o desaparecimento do momento jurÍdico das rela­ções humanas.

Mas o período de transição, como Marx demonstrou em sua Crítica do Programa de Gotha, é caracterizado pelo fato de que as relações humanas permanecem, durante um certo período, necessariamente no "horizonte limitado do direito burguês". ~ interessante analisar em que consiste, segundo a concepção marxista, este horizonte limitado do .direito burguês. Marx pressupõe um sistema social no qual os meios de pro· dução pertencem a toda sociedade e na qual os produtores não trocam os seus produtos . Ele supõe, em conseqüência, um ní­vel de desenvolvimento superior àquela da "Nova Política Ec.o­nômica", na qual vivemos presentemente. O Me'rcado já está completamente substituído por uma economia planificada e, em conseqüência, ''o trabalho investido' nos produtos não se apre· senta aqui, tampouco, como valor destes produtos, como uma qualidade material, por eles possuída, pois ~qui, em oposição ao que sucede na sociedade capitalista, os trabalhos individuais já não constituem parte integrante do trabalho comum através de um rodeio, mas diretamente" _18 Porém, mesmo quand~ o mercado e a troca mercantil estiverem completamente abolidas, como diz Marx, "apresenta ainda, em todos os seus aspectos, no econômico, no moral e no intelectual, o selo da velha so­ciedade de cujas entranhas procede".19

~ o que se revela igualmente no princípio da distribui7 ção, segundo o qual "o produtor individual obtém da socie-

18. Karl Marx, Crítica do programa de Gotha (1875), Ed. Sociales, Paris·; 1950, p. 23. (N.. do T.: ed. brasileira, Marx-Engels, Obras esco­lhidas. Ed. Alfa-ón1ega, SP, [s.d.], vol. 2, p. 213.)

19. Id., loc. cit., ed. brasileira (N. do T.).

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 27

dade - depois de feitas as devidas deduções - 1Jrecisamente aquilo que deu".20

Marx insiste no fato de que, apesar da modificação radi­cal da forma e do conteúdo, "impera o mesmo princípio que no intercâmbio de mercadorias equivalentes: troca-se uma quan­tidade de trabalho, sob uma forma, por outra quantidade igual de trabalho, sob outra forma diferente".21

Enquanto a. relação entre os produtos individuais e a so· ciedade continua a conservar a forma de troca entre equiva­lentes, esta relação continuará a manter igualmente a forma de direito; pois "o direito só pode consistir, por natureza, na aplicação de. uma medida igual". 22 Mas como, por isso, a desigua,ldade natural de aptidões entre os indivíduos não é levada em consideração, o direito "no fundo é, portanto, como todo direito, o direito da desigualdade".13 Marx não menciona a necessidade de um poder estatal que assegure pela coerção a realização destas normas de direito "desigual", que mantêm seus "limites burgueses", mas, evidentemente, isto subentende­se. Lenin chega a esta conclusão: ··o· direito burguês em rela­ção à distribuição dos produtos de consumo pressupõe, como é natural, também inevitavelmente um Estado burguês, pois o direito nada é sem um aparelho capaz de obrigar à observação das normas de direito. Daí decorre que no comunismo subsiste durante um certo tempo não só o direito burguês, mas tam­bém o Estado burguês - sem burguesia".24

Uma vez dada a forma de troca entre equivalentes, a for­ma do direito, a forma do poder público, ou seja, estatal, é igualmente dada, e, em conseqüência, esta perdura por algum tempo, mesmo que a divisão de classes não mais exista. O desaparecimento do direito e, com ele, o do Estado não se produz, segundo a concepção de Marx, senão quando "o tra·

20. Id ., loc. cit ., ed. brasileira (N. do T.). 21. 14,, p. 24, ed'. brasileira: p. 214 (N. do T.). 22. ) 1-d., ed. brasileira, p. 214 (N. do T.). 23. Id., ed. brasileira, p. 214 (N. do T.). 24. Lenin, O Estado e a Revolução, 1911, ed. em línguas estran·

geiras, Moscou, [s.d.], p. 117-118. (N. do T.: ed. brasileira, Obras es· colhidas, SP. Alfa-Omega, 1980, vol. 2, P: 289.)

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28 E. B. P ASUKANIS

balho não for somente um meio de vida, mas a primeira ne­cessidade vital" ,25 quando com o desenvolvimento universal do indivíduo também as forças produtivas tenham aumentado; quando todos os indivíduos trabal.hem 'voluntariamente segun­do as suas capacidades ou, como diz. Lenin, quando for ultra­passado "o horizonte estreito do direito burguês" que obriga a calcular com a insensibilidade de um Shylock: ''se não se trabalhou mais meia hora do que o outro?"/6 ém uma única palavra, quando a forma da relação de equivalência tiver sido definitivamente ultrapassada.

A transição para o comunismo evoiuído não se mostra, segundo Marx, como uma passagem a novas formas jurídicas, mas como o desaparecimento da forma jurídica enquanto tal, como uma libertação em relação a esta herança da época bur­guesa, destinada a sobreviver à própria burguesia.

Marx mostra ao mesmo tempo a condição fundamental, enraizada na estrutura econômica da própria sociedade, da existência da forma jurídica, isto é, da unificação dos dife­rentes rendimentos do trabalho segundo o. princípio da troca de equivalentes. Ele descobre, assim, o profundo vínculo in­terno existente ~ntre a forma jurídica e a forma mercantil. Uma sociedade que é constrangida, pelo estado de suas forças produtivas, a manter uma relação de equivalência entre o dis­pêndio de trabalho e a r.emuheração, sob uma forma que lem­bra, mesmo de longe, a troca de valores-mercadorias, será constrangida igualmente a manter a forma jurídica. Somente partindo deste momento fundamental é que se pode compre­ender por que toda uma série de outras relações sociais reveste a forma jurídica. Mas daí a concluir-se que· os tribunais e as leis deverão sempre existir, porque mesmo um estado de abun­dância econômica não fará desaparecer todos os delitos contra . a .pessoa, significa essencialmente tomar os momentos secun­dários e derivados pelos momentos essenciais e fundamentais.

25. Karl Marx, Crítica. . . op. cit., p. 25. (N. do T. : ed. brasi-leira, p. 214.) ·

26. Lenin, O Estado e a Revolução, op. cit., p. 115. (N. do T.: ed. brasileira, op. át., p. 287.)

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 29

Mesmo a criminologia burguesa progressista chegou teorica­mente à convicção de que a luta contra a criminalidade pode ser considerada em si mesma como uma tarefa medicinal e pedagógica, e que os juristas com os seus "corpos de delito", seus códigos, seus conceitos de "culpabilidade", de "respon­sabilidade penal plena e atenuada", suas sutis distinções en­tre cumplicidade, participação, instigação, etc. . . não podem, absolutamente, fornecer qualquer auxílio para resolver a ques­tão. E se estas concepções teóricas ainda não chegaram, até o presente, à supressão dos códigos penais e dos tribunais, é, evidentemente. porque a superação da forma jurídica está vin­culada não só à transgressão dos quadros da sociedade bur­guesa mas, também, a uma emancipação radical em relação a todas as sobrevivências.

A crítica da ciência do direito burguês do ponto de vista do socialismo deve mirar-se no exemplo de crítica da economia política burguesa, tal qual Marx nos legou. Desta forma, tal crítica deve se colocar, antes de tudo, no terreno do inimigo, isto é, ela não deve descartar as generalizações e abstrações que foram elaboradas pelos juristas burgueses, partindo das necessidades de seu tempo e de sua classe, mas analisar estas categorias abstratas e pôr em evidência o seu verdadeiro sig­nificado, em outros termos, descobrir os condicionamentos his­tóri(~QS-~ica.

Toda ideologia perece com as relações sociais que a en­gendraram. Mas este desaparecimento definitivo é precedido por uma fase na qual a ideologia perde, sob os golpes desferi­dos pela crítica, a capacidade de encobrir e velar as relações sociais das quais nasceu. O pôr a nu as raízes de uma ideo­logia é o sinal preciso de que o seu fim se aproxima, pois, como dizia Lassalle, "o anúncio de uma nova época só se manifesta através da aquisição da consciência do que até então era a realidade em si".27

27. F. Lassalle, System der erworb;nem Rechte, 1861.

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Capítulo Um

OS METODOS DE CONSTRUÇÃO DO CONCRETO NAS CI~NCIAS ABSTRATAS

Toda ciência que procede a generalizações se endereça, no estudo de seu objeto, a uma única e mesma realidade total e concreta. Uma única observação de um corpo celeste pas· sando pelo meridiano pode dar lugar tanto a conclusões astro­nômicas quanto psicológicas. Um único fato, por exemplo, o arrendamento da terra, pode constituir tanto o objeto de pes· quisa de economia política quanto o de pesquisas jurídicas. Em assim sendo, as diferenças existentes entre as diversas eiên· cias repousam, largamente, sobre as diferenças existentes entre os seus métodos de abordagem d~ realidade. Toda ciência possui o seu próprio plano segundo o qual visa a reproduzir a realidade. E assim, toda ciência constrói a realidade concreta, com sua riqueza de formas, de relações e correlações, como resultado . da combinação de abstrações mais simples.

A psicologia pretende decompor a consciência em seus elementos mais simples. A química r executa a mesma tarefa no que concerne à materia. Quando, na atividade l'rática, não se pode decompor a realidade em seus elementos mais sim­ples, a abstração socorre-nos. Nas ciências sociais o papel de abstração é particularmente grande . A maturidade das ciên­cias sociais é determinada pelo grau de perfeição de suas abstrações. E o que ~arx expôs magnificamente em relação à economia política: parecia muito .natural - diz ele -. co­meçar as pequisas pela totalidade concreta, pela população que vive e produz em circunstâncias geagráficas deterniinadas, mas, se deixarmos de lado as claS!~s que a compõem, esta não

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:52 E. B. PASUKAN.IS

passa de uma abstração vazia. Estas, por seu termo, não são nada sem as condições de sua existência, tais como o salário, o lucro, a renda, etc. A análise destas últimas pressupõe as çategorias mais simples do "preço", do "valor" e da "nierca· doria.". Partindo destas determinações mais simples, o teórico da ·economia política c reproduz a mesma totalidade concreta, mas não mais como um todo caótico e difuso, e sim como uma unidade rica de inúmeras determinações e inter-relações. Marx acrescenta que o desenvolvimento histórico da ciência seguiu precisamente o caminho inverso: os economistas 'do século XVII c<;>meçaram pelo concreto, pela Nação, Estado. População, pata, em seguida, chegar à Renda, ao Lucro, ao Salário, ao Preço e ao Valor. Mas o que foi historicamente inevitável nã.o é metodologicamente correto.1

. . 1 . Karl Marx, Contribuição à Crítica da ·Economia Política, São

Paulo, Martins Fontes (trad. M. H. Barreto Alves), 1977, p. 218. Pa' sukanis não seguiu o texto origirial de Marx, parecendo tê-lo citado de memória. O texto de Marx é o seguinte: "Parece que o melhor método será começar pelo real e :pelo concreto, que ~ão a condição prévia e efe­tiva: assim, em economia política, por exemplo, começar-se-ia pela popu­lação, que é a base e o sujeito do ato social de produção como um todo. No entanto, numa observação atenta, apercebemo-nos de· que há aqui um erro. A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, . as classes de que se compõe. Por seu lado, essas classes são uma pala­vra, ora se ignorarmos os elementos em que se repousam, por exemplo, sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem· o preço,· etc. Não é nada. Assim,. se começássemos pela população, teríamos uma visão caótica do todo, e, através de uma d~;terminação mais precisa, atra­vés de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do conceito figurado passaríamos a ábstrações cada vez mais delicadas àté atingirmos. âs determinações máis simples. Partindo daqui seria neces­sário caminhar em sentido contrário até s.e chegar finalmente de. novo à população, que não seria, desta vez, a representação caótica de um todo, mas uma rica totalidade de determinação e de relações 'numerosas, A· primeira via foi a que, historicamente, a economia política adotou ao seu nascimento. Os economistas do século XVII, por /exemplo, começam sempre por uma totalidade viva: populaçãó, Nação, Estado, diversos Es­tados, mas .acabam sempre Pot: formular, através da o análise, algumas relações geràis abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinhefro, o valor, etc. A partir do momento em que estes futore's iso­ladoi;bfóralfi .. mais ou, menos fixados e teoricamente formulados, surgiram sjst!;ma:~; .. I?,COI:l;Ôpticps . que, partindo de noções simples, tais como o tra-

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 33

Es.tas observaçqes, também, justificam-se quanto à teoria geral do direito. Neste caso, igualmente, a totalidade concreta, isto é, a sociedade, a população, o Estado, deve ser o resul­tado e a etapa final de nossas reflexões, mas nunca o seu ponto· de partida. Quando procedemos do mais simples para o mais comp.licado, quando vamos da forma mais pura do. pro­cesso às suas formas mais concretas, seguimos um caminh(l metodológico mais preciso, mais claro e, portanto, mais correto do . que. quando se avança tateando, tendo 'à frente apenas a imagem difusa e indiferenciada da totalidade concreta.

A segunda observação metodológica que devemos aqui fazer refere-se. a uma particularidade das ciências sociais, ou, mais exatamente, aos conceitos que utilizam.

Se pegarmos um conceito qualquer· das ciências naturais, por exemplo, de energia, podemos estabelecer com precisão o momento no qual ele aparece pela primeira vez na história. Contudo, tal data somente tem significação para a história da cultura e das ciências. Na pesquisa, propriamente dita, das ciências naturais, a utilização deste conceito mio é res­tringida por nenhum tipo de limite cronológico. A lei de transformação da energia agia muito antes do aparecimento do homem sobre a terra e continuará a agir depois da extinção de toda forma de vida sobre a terra. Ela se encontra fora do tempo, é uma lei eterna. Certamente podemos colocar a ques­tão da data do descobrimento da lei da transformação da energia, mas seria absurdo perguntar-sec de que época datam as relações, as circunstâncias das quais ela é expressão.

Se agora nos· voltarmos para as ciências sociais, como por exemplo a economia política, e se considerarmos um de seus ·conceitos fundamentais, por exemplo o do valor, logp se evidencia que tal conceito, enquanto elemento de nosso pensamento, é/·um conceito não apenas histórico, mas igual­mente se evidencia que, como substr~to deste conceito, como

balho, a divisão do trabalho, a neJessiliade, o valor de troca, se eleva­ram até ao Estado, às trocas internacionais e ao mercado mu11dial. Este segundo método é evidentemente o método científico correto. O concret() é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações; logo, unidade da diversidade" (N. do T.).. "

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34 E. B. P ASUKANIS

parte ela história da teoria da economia política, nós temos uma história real do valor, isto é, uma evolução das relações humanas que progressivamente fizeram deste conceito uma rea­lidade histór!ca.2

Sabemos exatamente quais são as condições materiais ne-.. cessárias para que esta qualidade "ideal", "imaginária" das coisas adquiram uma importância "real" e, mais ainda, decisi­va em relação às suas qualidades naturais, logo que ela trans­forma o produto. do trabalho de fenômeno natural em um fenô­meno social. Conhecemos .assim o substrato histórico real des­tas abstrações conceituais que utilizamos, e poderemos verifi­car igualmente os limites nos quais a utilização destas abstra­ções possui um sentido coincidente com os marcos da evolução histórica real e são até mesmo determinados por ele. Um outro exemplo, citado por Marx, coloca este fato em particular evi· dência. O trabalho, como relação mais simples do homem com a Natureza, se encontra em todos os estágios da evolução hu­mana; mas como abstração econômica aparece bastante tar­diamente (cf. a sucessão de escolas: mercantilistas, fisiocratas, economistas clássicos). A evolução real. das relações econô­micas que r~legou a segundo planq: as distinções entre os diferentes tipos de trabalho humano, para colocar. em seu lugar o "trabalho em geral", . correspondem a esta evolução do con· ceito. A evolução dos conceitos, assim, corresponde à real dia­lética do processo hist6rico3 •

2. Contudo não é necessário crer que a evolução da forma valor c a evolução da teoria do valor efetuem-se de maneira sincrônica. Ao contrário. Estes dois processos não ocorrem sincronicamente. Formas mal• ou menos desenvolvidas de troca e formas correspondentes de valor cncontram·IC na antiguidade, enquanto que a economia política é, como ac aabo, uma daa clenclaa mala recentes (nota à :s.• edição).

3. K. Marx, op. ctt., p. 220. "Neste sentido, podemos dizer que a categoria mal& simples podo exprimir rolaçllca dominantes de um todo menos · desenvolvido ou, pelo contrário, telaçllcs subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que existam já historicamente antes que o todo se desenvolvesse no sentido que .encontra a sua expressão numa categoria mais concreta. Nestà medida, a evoluçilo do pensa­mento abstrato, que se eleva do maissimples ao mais complexo, corres­ponderia ·, ao processo histórico real"~ Parece-nps que Pasukanis quis se referit à passagem ora reproduzida (N. do T.).

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 35

Tomemos um outro exemplo, mas desta vez fora dos do- . mínios da economia política. Consideremos o Estado. Aqui podemos observar, de uma parte, como o conceito de Estado adquiriu, . progressivamente, uma forma precisa . e acabada e desenvolve toda a riqueza· de suas determinações e, de outra parte, como .o Estado nasce, em realidade, da sociedade gen· tílica e da sociedade feudal, como ele "se abstrai" e se trans· forma em um poder ''que se basta a Si próprio". O direito igualmente, em suas determinações gerais, o direito enquanto forma, não existe apenas no cérebro e nas teorias dos juristas especializados~· Ele possui J.Ima história real, paralela,_ que nã,o se desenvolve como .um sistema de pensamento, mas como um sistema particular que os homens <tealizam não como uma es· colha consciente, mas sob a pressão das relaçõeS de produção. O homem torna-se sujeito de direito com a mesma necessidade que transforma o produto natural em uma mercadoria dotada das propriedades enigmáticas do valor.

O pensamento que não ultrapassa os marcos das condi­çõe.; de existência burguesa não pode conceber esta necessi­dade de outra maneira ·do que, senão, como uma necessidade natural; é por isso que a doutrina do direito natural é, .cons­ciente ou inconScientemente, o .fundamento de todas as teorias burguesas do direito. A escola do direito natural não foi ape­nas, a expressão mais marca:tl,te da ideologia burguesa em Uma época na qual a burguesia surgiu como classe revolucionária e formulou as suas reivindicações de maneira aberta e conse­qüente, mas também nos forneceu o mais profundo e Q mais , claro modelo de compreensão da fonna jurídica. Não é por acaso que o apogeu da doutrina do direito natural coincidiu, aproximadamente, com o aparecimento dos grandes clássicos, os teores da economia política burguesa.. As duas escolas se p:t:opusetam por tarefa a de·· formular, sob a forma mais geral e, por conseguinte, a mais abstrata) as cqndiçÕes fundamentais .de existência da sociedade burguesa que a eles pareceram ser · as condições naturais da existência de qualq;.ter sociedade ..

Mesmo um zeloso defensor do positivismo jurídico e ad· versário do direito natural colilb Bergbohm reconhece os

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36 E. B. P ASUKANIS

méritos da escola do direito natural na fundação da moder­na ordem jurídica burguesa. "Ele (o direito natural) quebrou os fundamentos da servidão feudal e das relações da sujeição em geral e abriu as vias para a supressão dos gravames que recaíam sobre a terra; liberou as forças produtivas aprisiona­das nos grilhões de um regime corporativo petrificado por res­trições comerciais absurdas ( ... ) obteve a liberdade de religião e de confissão, bem como a liberdade da ciência. Ele assegu­rou a proteção do direito privado de todos os homens, qual­quer que fosse a sua crença e a sua nacionalidade. Ele contri­buiu para eliminar a tortura para orientar o processo penal nas vias regulares de um processo confome à lei"4 •

Sem ter a intenção de, neste ponto, examinar em detalhe a sucessão das diferentes escolas da teoria do direito, não po· demos deixar de indicar um certo paralelismo en~re a evolução do pensamento jurídico e a do pensamento econômico. Assim a es~ola histórica, nos dois casos, pode ser ~onsiderada como uma manifestação da reação feudal aristocrática e, em parte, pequeno-burguesa corporativa. E mais, qesde que a chama revolucionária da burguesia extinguiu-se definitivamente na se­gunda metade do século XIX, a pureza e a precisão das dou­trinas clássicas deixaram por igual, de exercer sobre ela qual­quer atração. A sociedade burguesa aspira à estabilidade e a um poder forte. l! por isso que não é mais a análise da forma jurídica que se encontra no centro de interesses da teoria jurí­dica, mas, sim, o problema dos fundamentos coativos das de­terminações jurídicas. Resulta, então, um amálgama singular de historicismo e positivismo jurídico, que se reduz à negação de todo direito que não seja o direito oficiaL

O chamado "renascimento do direito natural" não signifi· ca o retorno da filosofia do direito burguês às concepções re­volucionárias do S'éculo XVIII. N6 tempo de Voltaire e de Beccaria, todo ju:z ''esclarecido" considerava que era um mé· rito conseguir, sob o pretexto de aplicar a lei, realizar os pen­samentos dos filósofos, que não eram mais do que a negação

4. K. :eergbohm, furisprudenz und Rechtsphilosophie, t. I, Leipzig, 1892, p. 215.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 37

revolucionária da ordem social feudal. Em nossos dias, o pro­feta do "direito natural" renascido, Rudolf Stammler, sustenta a tese de que o "direito justo" exige, antes de tudo, submissão ao direito positivo estabelecido, mesmo que este último seja "injusto".

A escola psicológica em economia política se encontra pa­ralela à escola psicológica do direito. Todas as duas se esfor­çam por transpor o objeto da su~ análise para a esfera dos estados subjetivos da consciência ("avaliação", "emoção impe­rativa-atributiva") e não vêem que as categorias abstratas cor­respondentes exprimem, por suas regularidades científicas, a estrutura lógica das . relaçõe:; sociais que se ocultam por detrás dos indivíduos e que ultrapassam o quadro da consciência in­dividual.

Enfim, o forma1isnio extremo da escola normativista (Kel­sen) exprime/ sem dúvida alguma, a decadência geral do

_mais ·recente pensamento científico burguês, que se dissipa em artifícios metodológicos e lógico-formais estéreis, ao glorificar seu total· afastamento da realidade .. Na teoria econômica os representantes da escola matemática ocupam uma posição similar.

A relação jurídica é, para utilizar a expressão marxista, uma relação abstrata, unilateral, mas que não aparece nesta unilateralidade como o resultado do trabalho conceitual de um sujeito pensante, mas como o produto da evolução social. "Em toda ciência histórica e social, é preciso nunca esquecer, .a pro­pósito da ·evolução das categorias econômicas, que o objeto, neste caso a sociedade burguesa moderna, é dado tanto na realidade como no cérebro; não esquecer que as categorias exprimem, portanto, formas de existência, condições de exis­tência determinadas, muitas vezes de simples aspectos parti­culares desta sociedade determh:tada, deste objeto ... "5

O que Marx diz das categorias econômicas é, também, totalmente aplicável às categorias jurídicas. Em sua universa­lidade aparente elas exprimem um aspecto determinado da exis-

5. K. Marx, id., ib., p. 224.

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38 E. B. P ASUKANIS

tência ·de um sujeito histórico determinado: a produção mer­cantil da sociedade burguesa.

Encontramos, finalmente, na mesma Contribuição já bas­tante citada, mais uma profunda reflexão metodológica de Marx. Concerne à possibilidade de explicitar a significação das for· mações anteriores pela análise das formas que as sucederam e que são, conseqüentemente, superiores e mais desenvolvidas. Desde que compreendamos a renda, diz Marx, compreendemos igualmente o tributo, o dízimo e o imposto. feudal. A forma mais desenvolvida nos permite compreender os estágios passa­dos nos quais ela apareceu de maneira simplesmente embrio­nária. A evolução histórica ulterior põe a descoberto as vir­tualidades que já se podiam encontrar em um passado lon­gínquo.

"A sociedade burguesa é a organização histórica da pro­dução mais desenvolvida e mais variada que existe. Por este fato, as categorias que exprimem as relações desta soc:edade, e que permitem compreender a.sua estrutura, permitem a.o mesmo tempo perceber a estrutt,tra e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e ele­mentos ela se edificou, e que certos vestígios, parcialmente ainda não apagados, continuam a subsistir nela'16 •

Se quisermos aplicar à teoria do direito as reflexões me­todológicas acima citadas, devemos começ.ar com a análise da fortna jurídica em sua configuração mais abstrata e mais pura, e,·· eín seguida, ir pela complicação progressiva ao concreto histórico. Não· devemos esquecer que a evoluçlo diall!tica dos ccmceitos, corresponde à evolução dia}ética do próprio pro· cesso histórico. A evolução histórica nlo implica apenas uma mudança no conteúdo das normas jurídicas e uma modifica­ção das instituições jurídicas, mas também um delenvolvimen­to da forma jurídica enquanto· tal. Esta, depois de ter surgido em um estágio determinado de civilização, permaneceu longa· ínente em estado embrionário, com uma fraca diferenclaçilo

6. K. Marx, id., ib., p. 222. A Contribuição à Critica da Bconomla Po.lítica e a Introdução Geral são a mesma obra (N. do T.)

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 39

interna e sem delimitação em relação aos círculos vizinhos· (costumes, religião). Foi somente. desenvolvendo-se progressi­vamente que atingiu o seu estágio supremo, sua diferenciação e sua precisão máxima. Este estágio de desenvolvimento superior corresponde a relações econômicas e soeiais determinadas . Ao mesmo tempo este estágio é caracterizado pela aparição de um sistema de conceitos gerais que refletem teoricamente o sistema jurídico como totalidade orgânica.

A estes dois ciclos de desenvolvimento correspondem duas épocas de superior desenvolvimento dos conceitos. jurídicos ge­rais: Roma e seu sistema de direito privado e os séculos XVII e XVIII na Europa, desde que o pensamento filosófico desco­briu a significação universal da forma jurídica como poten­cialidade que a democracia burguesa foi convocada a realizar.

Em conseqüência, s6 podemos obter definições claras e exaustivas se basearmos nossa análise sobre a· forma jurídica. inteirameitte desenvolvida, a qual revela tanto as formas jurí· dicas passadas como as suas próprias formas embrionárias .

~ apenas deste modo que poderemos captar ô direito, não como um atributo da sociedade humana abstrata, mas como uma categoria histórica que corresponde a um regime sacia] determinado, edifica9o sobre a oposição dos interesses · pri· vados.

~

--

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Capítulo Dois

IDEOLOGIA E DIREITO

A questão da natureza ideológica do direito desempe­nhou um papel essencial na polêmica entre P. I . Stucka e o professor Rejsner1 • O profe&sor Rejsner tentou demonstrar que Marx e Engels consideravam o direito como uma das "formas ideológicas". e que muitos outros teóricos marxistas tinham a mesma opinião. O professor Rejsner apóia-se em um grande número de citações. Não há nada a objetar a tais referências. Também não podemos contestar o fato de· que, para os homens, o direito é uma viva experiência psicológica, particularmente sob a forma de regras, de princípios ou de normas gerais. Contudo, o problema não consiste em admitir ou contestar a existência da ideologia jurídica (ou da psicolo­gia)' mas em demonstrar que as categorias jurídicas não pos­suem outra significação forà de sua significação ideológica. :f: somente a partir desta demonstraçãd que poderemos admi­tir como· inatacável a conclusão tirada pelo professor Rejsner, a saber, de "que um marxista não pode estudar o direito senão como uma espécie particular da Ideologia". Nesta pequena fórmula "não pode. . . senão como'' reside o fundo de toda questão. ];: o que queremos explicitar a partir de um exemplo da economia política. As categorias mercadoria, valor e valor de troca são, sem dúvida alguma, formações ideológicas, repre­sentações deformadas, mistificadas (segundo expressões de

1. C f. V estnik Socialisticeskoj Aksdemii, n.• 1. ·

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42 E. B. P ASUKANIS

Marx), pelas quais a sociedade, baseada sobre a troca mer­cantiL concebe as. relações de trabalho dos diferentes produto­res. O caráter ideológico destas 'formas é provado pelo fato de que basta passar a outras estruturas econômicas para. que categorias de mercadoria, valor, etc. percam toda a sua signi­ficação. Eis por que, a justo título, podemos falar de· uma ideologia mercantil ou, como Marx a nomeia, de um ''feti­chismo da mercadoria", e pôr este fenômeno na conta dos fenômenos psicológicos. Mas isto, absolutamente, não signifi· ca que as categorias de ,economia política possuam exclusiva­mente uma significação psicológica, que elas se refiram uni­camente a experiências vivenciadas, a representações e outros processos subjetivos. Sabemos muito bem que a categoria mer­cadoria, por exemplo, apesar de seu evidente caráter ideológico, reflete uma relação social objetiva. Sabemos que ·a~ diferen­tes estágios de desenvolvimento desta relação, sua maior ou menor universalidade, .são real.idades de fatos materíais que devem ser tomados em consideração como tal ·~ ' não apenas enquànto processos ideológicos e psicológicos. Daí que os conceitos gerais da economia política não são, então, simples elementos ideológicos, mas abstrações graças às quais a reali­dade econômica objetiva pode ser elaborada cientificamente, isto é, teoricamente. Para retomar a expressão de Marx, "as categorias da economia burguesa são formas do· intelecto que possuem uma verdade objetiva, uma vez que refletem relações sociais reais, mas estas relações pertenc~m apenas. àquela épo­ca histórica determinada, na qual a produção mercantil é

10

modo de produção social"2 ,

O que te:mos a demonstrar não é que os conceitos jurí­dicos gerais possam entrar, a título de elementos constituti­vos, nos processos e sistemas ideológicos - o que nlo 6 de forma alguma contestável -, mas que a realidade social, mas­carada, em certa medida, por um véu místico, não pede ser descoberta através dessés conceitos. Em outros termCI, deve·

2. K. Marx, O Capital, L. I, cap. IV, op. cit., p. $8. Bel, br1111· leira: São Paulo, Nova Cultural, 3.• ed., p. 134. , .4·

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 43

mos esclarecer a seguinte questão: representarão, efetivamen­te, as categorias juríd!cas essas categorias conceituais objetivas (objetivas para à sociedade historicamente determinada) e cor· respondentes a relações sociais objetivas? Em conseqüência, respondemos a questão da seguinte maneira: poderá o direito ser concebido como ·uma relação social no mesmo sentido em que Marx chamou o capital de uma relação social? ·

Tal problemática elimina, a priori, a referência à natu· reza ideológica do direito e recoloca a pesquisa em outro nível.

A constatação da natureza ideológica de um conceito não nos dispensa,. de forma alguma, da obrigação de ~studar a rea­lidade objetiva, quer dizer, a realidade existente no mundo exterior e não apenas na consciência. Por outro lado, toda a fronteira entre a realidade do "além", que também existe efe­tivamente na representação de certas pessoas, e, digamos, o Estado se extinguiriam. · :1! isto precisamente o que ocorreu com o professor Rejsner. Ele se apóia sobre a célebre citação de Engels a respeito do Estado como "primeira potência ideo­lógica que domina os homens" e identifica, sem hesitar, o Es­tado com a ideologia do Estado.

"O caráter psicológico das manifestações do poder é tão evidente, e o poder do Estado, que só existe no psiquismo. humano (sublinhado por mim, E. P.), é ele próprio, deste pon­to de vista, desprovido de características materiais, que pode­riamos acreditar ser impossível concebê-lo de forma diferente da . de uma idéia_ que somente se manifest~ na medida em que os homens fazem-na princípio de seu comportamento. "3

As finanças, o exército,· a administração, tudo isto é "des­provido de características materiais", tudo isto apenas existe no "psiquismo humano". Mas, então, o que sucede a esta ''enorme" massa da população, segundo a expressão do prq­prio professor Rejsner, que vive "fora de toda consciência do Estado"? Deve-se aparentemente excluir esta! massa; ela não possui qualquer espécie de importância para a existência "real" do Estado.

3. M. Rejsner, Gosudarstvo (0 Estado), t.• parte, 2." ed., Moscou 1918, p. XXXV. ......

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Mas o que é o Estado do ponto de vista de sua unidade econômica? As fronteiras alfandegárias são também um pro­cesso ideológico e psicológico? Poderíamos formular diversas questões similares, mas todas estas questões alcançariam o mesmo ponto. O Estado não é apenas uma forma ideológica, mas também, e simultaneamente, uma forma de ser social. A natureza ideológica de um conceito não suprime a ·realidade e a materialidade das relações das quais eie é expressão.

Pode-se compreender o neokantiano conseqüente que é Kelsen, quando ele afirma a objetividade normativa, isto é, puramente ideal do Estado e quando abandona os elementos objetivos e materiais da realidade, mas 'igualmente o real psi­quismo humano.· Mas, nós, renunciamós a construir uma teo­ria marxista, logo, materialista, que opere exclusivamente com experiências subjetivamente vividas. Aliils, o professor Rejs­ner, partidário da teoria psicológica de Petrazickij, que "de­compõe" completamente o Estado em uma série de "emoções imperativas-atributivas", não veria inconveniente, como mos­tram suas obras mais recentes, em vincular este ponto de vista à concepção neokantiana· lógica e formal de Kelsen4 • Certa­mente, tal tentativa faz honra à vasta cultUra de nosso autor, mas é efetuada em detrimento da lógica e da clareza metodo­lógica. Das duas uma: ou o Estado (segundo Petrazickij) é Upl processo ideológico, ou é (segundo Kelsen) uma idéia' regu­ladora que não tein nada a ver com quaisquer processos que se desenvolveram no tempo e que estão submetidos às leis da causalidade. Busçando compatibilizar estes dois pontos de vista, M. Rejsner cai em uma contradição . que não é nada · dialética.

A perfeição formal dos conceitos de "território nacional", de "população", de "poder Estatal': não reflete apenas uma determinada ideologia, mas, também, a realidade. objetiva da formação çle uma esfera concentrada de dominação, e, mais,

4. M. Rejsner, "Social' naja psikologija i ucenie Frejda" (A psicologia social e a teoria de Freud), in: Pecat i revoljucija (Imprensa e Revolu-ção), vol. 11, Moscou, 1925. ·

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a criação de uma organização administrativa, financeira e mi­litar real com uma estrutura humana e material correspon­dente. O Estado não é nada sem os meios de comunicação, sem a possibilidade de transmitir ordens e determinações e de mobilizar as forças armadas, etc. Será que o professor Rejsner acredita que os caminhos militares romanos ou os modernos meios de comunicação fazem parte do psiquismo humano? Ou pensa que tais elementos materiais não devem ser computados entre os elementos de formação do Estado? Evidentemente, então, só nos resta colocar no mesmo plano a realidade estatal e a realidade da "literatura, da filosofia e de outras produções espirituais do homem"5

• 1! pena que a prática da luta política, da luta pelo poder, contradiga radicalmente esta concepção psicológica e oponha a cada etapa elementos materiais e obje­tivos.

A este respeito é imperioso notar . que a conseqüência inevitável de tal ponto de vista psicológico, adotado pelo pro­fessor Rejsner, é úm subjetivismo sem alternativa. "O poder Estatal como criação. de múltiplas psicologias individuais, o poder Estatal que se manifesta sob formas tão diversas quanto as necessidades do meio, os grupos e as classes, assumirá na­turalmente diferentes figuras na consciência de .um ministro e de um camponês que ainda não chegou à idéia do Estado, no psiquismo de um homem de Estado, ou de um anarquista por princípio, em uma palavra, em pessoas de situações sociais diferentes, de profissões e de educações diferentes"6

• Sobres­sai claramente destas afirmações, se permanecermos no plano psicológico, que não há qualquer razão em falar a respeito do Estado como unidade objetiva. 1! somente quarido se considera o Estado como uma organização real de dominação de classe (isto é, levando-se em consideração todos os momentos, não apenas os psicológicos, mas igualmente os materiais, estes em primeiro lugar) que podemos situar-nos em um terreno sólido e que, efetivamente, se pode estudar o Estado, tal qual ele é

5. M. Rejsner, Gosudarstvo, op. cit., p. XLVIII. 6. ld., ib., p. XXXV.

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em realidade, e não, somente, as formas subjetivas, inúmeras e diver111 nu quais ele se reflete e é vivido7

Se, no entanto, estas definições abstratas da forma jurí­dica nlo se referem apenas a processos psicológicos, mas, igualmente, representam conceitos que exprimem relações so­ciais objetivas, em que sentido, então, diremos que o direito regulamenta as relações sociais? Com efeito, não quereríamos, então, dizer que as relações sociais regulam-se por si próprias? Pois ao dizermos que tal ou qual relação social assume forma jurídica, não devemos expr'mir uma simples tautologia: que o direito possui uma forma jurídica. 8

Este argumento parece ser, à primeira vista, uma objeção muito penetrante e que não nos deixa outra alternativa senão a de reconhecer o direito como uma ideologia. Todavia, que­remos tentar acabar com esta dificuldade. Para facilitarmo-nos nesta tarefa, recorremos, de novo, a uma comparação. A eco-

7. O professor Rejsner busca justificar o seu ponto de vista (cf. os seus trabalhos sobre a psicologia social e a teoria de Freud) por uma carta de F. Engels a C. Schmidt, na qual Engels examina o problema das relações entre o conceito e o fenômeno. Tomando por exemplo o sistema social feudal, Engels indica que a unidade do conceito e do fenômeno se apresenta como um processo infinito em sua essência. "0 feudalismo foi alguma vez, em um momento determinado, exatamente igual ao seu conceito? Foi esta ordem social uma ficção porque ná sua perfeição clássica só conseguiu ter uma curta duração na Palestina c assim mesmo (em grande parte) apenas no papel?" Estas considerações de Engels não significam, entretanto, que o porito de vista adotado pelo professor Rejsner, que identifica o conceito e o fenômeno, seja justo. Para Engels, o conceito de feudalismo e o conceito de sistema social feudal não formam uma única coisa. Ao contrário, Engels demonstra precisamente que o feudalismo não correspondeu jamais a seu conceito, sem que, contudo, deixasse de ser feudalismo. O conceito de feu­dalismo, em si, é uma abstração que está fundamentada nas ten­dências reais do sistema social que nós denominamo• feudal. Na reali­dade histórica, estas tendências confundem-se e cruzam-1e com inumerá­veis outras tendências e não podem, por este fato, ser observadas em sua configuração lógica, pura, mas unicamente sob uma forma mais ou menos aproximada. E o que afirma Engels, ao dizer que. a unidade do conceito e do fenômeno é no fundo um processo infinito. . 8. Cf. o comentário do livro de P. I. Stucka feito pelo professor Rejsner no Vestnik Socialistiéeskoj Akademii, n.• 1, p. 176.

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nomia política marxista ensina, como se sabe, que o capital é uma relação social. Como diz Marx, ele não pode ser desco­berto com um microscópio, mas ele não se deixa, de forma alguma, reduzir a uma experiência vivida, às ideologias e ou­tros processos subjetivos que se desenvolvem no psiquismo humano. :e uma relação social objetiva. E mais, se observar­mos,· digamos, o círculo da pequena produção, uma passagem progressiva do trabalho destinado a um cliente consumidor parà o trabalho destinado a um comerciante, constatamos· que as relações correspondentes. assumiram a forma capitalista. Isto significa que sucumbimos à tautologia? De forma algu­ma; apenas dissemos que a relação social, que denominamos capital, se comunicou a outra relação social, ou que transferiu a sua forma para aquelá. Assim podemos considerar todos ps fenômenos, exclusivamente do ponto de vista objetivo, como processos materiais e, assim, eliminar totalmente a psicologia ou a ideologia dos protagon~s.tas . Por que não seria ~gual para o Direito? Como .ele próprio é uma relação social, pode se comunicar mais ou menos com outras relações sociais ou trans­ferir-lhes sua· forma. Porém, jama!s poderemos abordar o pro­blema sob esta perspectiva, deixando-nos guiar por umà re­presentação confusa do Direito como "forma em geral", assim ; como a economia vulgar não conseguiu captar a essência das relações capitalistas partindo do conceito de capital . como "trabalho acumulado em geral". ·

Assim evitaremos esta contradição aparente se chegarmos a demonstrar, pela análise das definições fundamentais do Di­reito, que o Direito representa a forma, envolvida em brumas místicas, de uma relação social · especifica. Neste caso não seria absurdo afirmar que ·esta relação transfere, em certas hipóteses, sua própria forma para outra qualquer relação so­cial ou mesmo à totalidade das relações . •

:e exatamente assim para a segunda aparente tautologia, segundo a qual o Direito regulamenta as relações sociais. Se retirarmos desta fórmula um certo. antropomorfismo que lhe é inerente, ela reduzir-se-á à seguinte proposição: a regula-

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mf~- d11 relações sociais em certas condições reveste·se 'êl'9iJ.iu:D ,.,..,, Jurtdico. Tal formulação é, sem dúvida, mais · .qpta I hlttoricamente mais justa. Não podemos contestar que, IDIImo entre os animais, existe uma vida coletiva e que eat~ •. resulamentada de uma maneira ou de outra. Mas não olitarlamoa afirmar que ~s relações entre as, abelhas e as for­mijai 1lo regulamentadas juridicamente. Se passamos aos povo,l primitivos, neles verificamos algumas características de um embrião de direito, mas a maioria das relações é regula­mentada extra juridicamente, por exemplo, sob a forma ·de man­damentos religiosos. Finalmente, mesmo na sociedade burgue­sa, atividades tais como a organização d.e serviços postais, de estradas de ferro, do exército, etc. só podem ser internamente relegadas ao campo da regulamentação jurtdica se as consi­deramos muito superficialmente e se não nos deixarmos des- . concertar pela forma externa das leis, estatutos e decretos. A planificação ferroviária regula o tráfego nas estradas de (erro em um sentido inteiramente diverso daquele, digamos,

. que a lei regula sobre responsabilidade das estradas de ferro na entrega de mercadorias transportadas. O pririleiro tipo de regulamentação é sobretudo técnico, o segundo basicamente jurídico. A mesma relação existe entre um plano de mobili· zação e a lei sobre o serviço militar obrigatório, entre a inves­tigação criminal e o código de processo penal.

Nas páginas seguintes voltaremos a abordar as diferenças existentes entre as normas técnicas e as normas jurídicas. As­sinalaremos provisoriamente que a regulamentação das' rela­ções sociais possui um relativo caráter jurídico, isto é, pode, em certa medida, fundamentar-se na relação fundamental, es­. pecífica, do direito\

A regulamentação ou normatização das relações soci~is só é homogênea e inteiramente jurídica quando se faz uma · reflexão superficial ou puramente formal. Efetivamente, par­tindo-se deste ponto de vista, existe entre· a.s diversas atividades humanas diferenças muito marcantes. Gumplowicz já estabele­ceu um limite .muito preciso entre o direito privado e as normas .. .

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estatais9; porém, reconheceu ~penas como integrante da dog-. mático jurídica as normas do primeiro grupo. Com efeito, .

o núcleo mais sólido de universo ju;rídico (se assim posso exprimir-me) situa-se, precisamente, no domínio das relações de direito privado. :1! lá, precisamente, que. o sujeito de di­reito, "a pessoa",- encontra uma encarnaÇão totalmente ade­quada na personalidade concreta do sujeito econômico egoís­ta, do proprietário, do titular de interesses privados. :1! pre­cisamente no direito privado que o pensamento jurídico mo. ve~se com mais segurança e liberdade, e que as suas constru­ções assumem formas mais acabadas e mais harmoniosas. · A sombra clássica de Aulus Aegerius e de Numerius Negidius, * esses protagonistas das questões do processo romano,· paira contitiuamente sobre os· juristas que neles se in[;piram. :1! exa­tamente no d)reito privado · que as premissas e os princípios a priori do pensamento jurídico se incorporam na carne e no s.angue das duas partes em litígio, que pela vingança privada reivindicam o seh direito. O papel do jurista, enquanto teó­rico, coincide, então, com a sua função social concreta. O dogma do direito privado não é nada além de uma série in­finita ·de considerações a favor e contra reivindicações imagi­nárias ou demandas eventuais. Aliás, em cada parágrafo deste sistema esconde-se o cliente abstrato, invisível, pronto a utili­zar as teses em confronto como conselho jurídico. As. especializadas polêmicas doutrinárias dos juristas acerca da significação do erro ou sobre part!lha do ônus da prova' não se distingut(m das disputas análogas que ocorrem ante os tribunais. A diferença não é maior do que a ex!s­tente entre os torneios de cavalaria e as guerras feudais. Os torneios, como sabemos, por vezes, foram disputados encar· niçadamente exigindo tanto dispêndio ·de energia e fazendo tantas vítimas quanto os combates reais. Somente quando a economia individualista for substituída por uma produção

9. Cf. L. Gumplowicz, Rechtsstaat und Sozialismus, Innsbntck, 1881.

* Célebres autor e réu, nas figurações clássicas do Processo ro· mano (N. do T.).

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e uma distribuição social planificada, é que terá fill! este dispêndio improdutivo das forças intelectuais · do hoinem.\0 .

Uma das premissas fundamentais da regulamentação ju­rídica. é, portanto, o antagonismo de interesses privados. Este antagonismo é tanto a condição lógica da forma jurídica quanto a · causa real âa evolução de superestrutura jurídica. O comportamento dos homens pode ser determinado pelas regras mais complexas, mas o momento jurídico deste regu­lamento começa onde diferenças e oposições de interesses co­meçam. Gümplowicz diz: "o litígio é o elemento fundameJl· tal de todo fato 'jurídico". A unidade de objetivo, ao con­trário, representa a c condição' para a regulamentação técnica. Eis por que as normas jurídicas relativas. à responsabilidade das estradas de ferro pressupõem direitos pr:vados, interesses privados diferenciados, enquanto que .. as normas técnicas do tráfego ferroviário pressupõem um objetivo unitário, comO, por exemplo, o rendimento máximo. Tomemos outro exemplo: a cura de um doente pressupõe uma série de regras, tanto para o doente quanto para a equipe médica. Uma vez que tais regras são estabelecidas visando ao restabelecimepto do doen-

10. O pequeno trabalho de T; Jabloclcov, "Suspen~ivnoe uslovie i bremja dokazyvanija" (A condição suspensivll e o tempo da prova), in: furidiceskij Vestnik, 1916, n:• 15, que expõe a história e a literatura do problema jurídico particular e a partilha do ônus da prova entre as partes desde que o acusado invoque uma condição suspensj.va, dará· uma idéia da extensão e da importância do dispêndio da inteligência humana. O autor não cita menos do que cinqüenta especialistas que escreveram sobre esta questão. Ele observa "que a literatura sobre a matéria vem desde os pós-glosadores e dá a conhecer que foram cons~ truídas "duas teorias" sobre a questão, que dividiram o meio jurídico especializado em dois . campos mais ou menos iguais. Éle encantou-se pela grande riqueza dos argumentoa avançadps, pelas duas partes, há cem anos (o que manifestam(lnte não impediu pesquisadores posterior,es de retornarem ao problema com os mesmos argumentos em diversas nuances), rende homenagem à "penetrante análise" e à "perspicácia dos procedimentos metodológicos" dos polemistas especializl!dOs e da ·a co­nhecer que a polêmica inflamou de ial forma as paixões, que os adversá­rios acusavam-se mutuamente, sob o fogo da ação, da difamanção ·e da difÚsão de f,alsos rumores acusando reciprocamente às suas teorias de imorais e desonestas.

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te, possuem caráter técnico. A aplicação destas regras pode estar vinculada ao exercício de uma coação sobre o doente. Porém, enquanto esta coação for considerada do ponto de vis­ta da finalidade médica, tanto para aquele que a exerce, como para aquele que a s::>fre, ela não será nada mais do que uma ação tecnicamente racional. O conteúdo desta regra é determinado no âmbito da ciência médica e evolui à medida que esta progride. Aqui o jurista nada tem a fazer. A sua tarefa começa onde se é obrigado a abandonar este terreno de unidade de objetivos e assumir outra perspectiva, a perspectiva de sujeitos distintos que se opõem 'e que possuem, cada qual, seus próprios inte­resses privados. O doente e o médico transformam-se, então, em sujeitos possuidores de direitos e deveres, e as regras que os unem, em normas jurídicas. Destarte, a coação não é mais considerada apenas a partir do ponto de vista da racionali­dade do objetivo,· mas, igualmente, do ponto de vista de seu caráter formal, quer dizer, juridicamente lícito.

Não é difícil constatar que a possibilidade de adotar um ponto de vista jurídico corresponde ao fato de que as diferen­tes relações na sociedade de produção mercantil se calcam so­bre o tipo de relações de trocas comerciais e assumem, em conseqüência, a forma jurídica. Por igual, é plenamente na­tural, para os juristas burgueses, . deduzir esta universalidade da forma jurídica quer seja de· propriedades eternas e abso­lutas da natureza humana, quer seja do fato de que os atos do poder público aplicam-se a qualquer objeto em geral. Vale a pena provar este último ponto. Não é verdade que houve no código burguês do império russo pré-revolucionário um ar­'ti.go que. obrigava o homem a "amar sua mulher como seu próprio corpo?" Mas mesmo o jurista mais audacioso jamais ousaria construir uma relação jurídica correspondente e que possuísse possibilidade d,e processo judicial.

Ao contrário, por/mais cerebrina e irreal que possa pa­recer tal ou qual construção jurídica, ela repousará no entanto, sobre uma base sólida, se se mantiver nos limites do direito privado, e em primeiro lugar do direito de propriedade - de outra forma seria impossível compreender como as idéias fun­damentais dos juristas romanos guardaram sua significação até

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nossos dias e permaneceram como o direito escrito de toda a sociedade de produção mercant.il.

Assim sendo, antecipamos, até um certo ponto, a res­posta da questão posta no início: onde buscar esta relação social sui generis da qual a forma jurídica é o reflexo inevi­tável. A seguir tentaremes demonstrar, em detalhe, que esta relação é a relação de proprietários de mercadorias entre si. 11

A análise habitual, que encontramos em qualquer filosofia do direito, constitui a relação jurídica como relação por excelên­cia, como relação na vontade dos homens em geral. O pen­samento parte dos "resultados acabados do processo de evolução", das "formas de pensamentos corrent(fs", sem levar em considera<;:ão suas origens históricas. Enquanto que, em realidade, as premissas naturais do ato de troca tornam-se, em função da evolução da economia mercantil, as pre­missas naturais, as formas naturais de qualquer relação hu­mana, à qual ·imprimem sua marca, os atos de comércio apre­sentam-se, ao contrário, na cabeça dos filósofos unicamente como casos particulares de uma forma geral que para eles assumiu um caráter de eternidadeY

O camarada Stucka, em nosso entender, colocou, corre­tamente, o problema jurídico como um problema de relações sociais. Mas, em lugar de dedicar-se à pesquisa da objetividade

11. V. V. Adorackij, O gosudarstve (Do Estado), Moscou, 1923, p. 41: "A influência enorme da ideologia jurídica sobre todo o modo de pensamento dos membros 'ortodoxos' da sociedade burguesa repousa ·sobre o enorme papel que desempenha a ideologia jurídica na vida desta sociedade. A relação de troca completa-se sob a forma de atos jurídicos de compra e venda, de empréstimo, de penhor, de locação, etc." E:. "O homem que vive na sociedade burguesa é constantemente consi· derado como sujeito de direito e de deveres. Ele efetua diariamente uma quantidade inumerável de atos jurídicos que produzem conseqUencias jurídicas as. mais variadas. Eis por que nenhuma sociedade possui tanta necessidade da idéia. de direito; precisamente pelo seu uso prático quo­tidiano nenhuma sociedade submete esta idéia a uma .. elaboraçllo tão cuidada, nenhuma a ·transforma em um instrumento tllo necessário às relações quotidianas, quanto a sociedade burguesa".

42. K. Marx, O Capital, I, cap. I, p. 92. Ed, braallelra: Slo Paulo, Nova Cultural, 1988, 3.• ed., p. 70.

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social específica destas relações, ele retornou à habitual defi­nição formal, ainda que esta esteja circunscrita pelas carac­terísticas de classe. Na fórmula geral de Stucka, o Direito não mais figura como uma relação social específica, mas como o conjunto de relações em geral, como um sistema de relações que correspondem aos interesses das classes dominantes e sal­vaguarda tais interesses pela violência organizada. Por conse­guinte, no interior deste sistema de classes, o Direito não pode ser separado, enquanto relação, das relações sociais em geral, e Stucka não está habilitado a responder à insidiosa pergunta do professor Rejsner: como as relações sociais trans­formam-se em instituições jurídicas, ou, então, <:orno o direito tornou-se o que é?13

A definição de Stucka, talvez porque provenha do Co­missariado do Povo para a Justiça, está adaptada às necess!­dades dos juristas práticos. Ela demonstra-nos os limites em­píricos que a história traça, a cada momento, à lógica jurídica, mas não põe a nu as raízes profundas desta lógica. Esta defi­nição desvenda o conteúdo de classe das formas jurídicas, mas não explica-nos por que este conteúdo assumiu tal forma.

Para a filosofia burguesa do direito, que considera a re­lação jurídica como uma forma natural e eterna de qualquer relação humana, tal questão não está colocada. Para a teoria marxista, que se esforça em penetrar nos mistérios das formas sociais e de reconduzir todas as relações humanas ao próprio homem, esta tarefa deve estar colocada em primeiro plano.

13. P. I. Stucka pensa ter respondido esta questão um ano antes da publicação do meu trabalho (cf. Revoljucionnaja . .. , op. cit., 3.• ed., p. 112). O Direito, enquanto sistema particular de relações sociais, carac­teriza-se, segundo ele, pelo fato de que assenta-se sobre a violência organizada, isto é, estatal, de uma classe. Naturalmente já· conhecia esta opinião, mas continuo a sustentar, depois de uma segunda explicação, que, em um sistema de relações 'correspondentes aos interesses da classe dominante, erigida sobre a violência, podem e devem ser extraídos os momentos que dão fundamentação material ao desenvolvimento da forma jurídica.

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Capftulo Três

RELAÇÃO-E NORMA

Assim como a riqueza da sociedade capitalista tem a for­ma de uma enorme acumulação de mercadorias, a sociedade, , em seu conjunto, apresenta-se ~omo uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas. A trocarde · mercadorias pressupõe uma economia atomizada. Os vínculos entre as diversas unidades econômicas priv1;1das e isoladas são mantidos a cada vez ·que os contratos são • firmados. A relação jurídica entre os Sujeitos é o avesso da relação entre os produtos do trabalho tornados mercadoria. Este fato não impede que certos juristas, como por exemplo L. Petrazickij; coloquem as coisas de cabeça para baixo. Este acredita que não é a forma mercantil q~e engendra a forma jurídica, mas que, ao contrário, os fenômenos econô­micos estudados pela economia polític~ "representam o com-· ·portamento indiv~dual e coletivo de hothens determinados por modificações típicas, que possuem sua fonte no direito civil (propriedade privada, obrigações e contratos, direito de famí­lia e direito das sucessões)".1

A relação jurídica é a célula central do tecido jurídico e é somente nela que o direito realiza o seu movimento real. Em\. contrapartida, o direito enquanto conjunto de . normas é apenas uma abstração sem vida. · Por isso, muito logicamente, a escola nórmativista, com

Kelsen à frente, nega completamente a relação entre os sujei· tos; reluta em co).isiderar o Direito sob o ângulo de sua exis-

1. L. Petrazickij, Vvedenie v izucenie .prava i nravstvennosti (In·. tradução ao estudo do direito e da moral), t. 1, p •. 77.

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tência real e concentra toda sua atenção no valor formal das normas. "A relàção jurídica é uma relação pertencente à or-

. dem jurídica, mais exatamente ao interior da ordem jurídica, e não uma relação . entre sujeitos de direito que se opõem a esta ordem" .2 Segundo a concepção corrente, o direito . objetivo ou a norma fundamentam a relação jurídica, seja logicamente, seja realmente. Segundo esta representação, a relação jurídi­ca é gerada pela norma objetiva. "A norma do direito ao rece­bimento de uma dívida não existe· porque os credores habi­tualmente. façam esta exigência, mas, pelo contrário, os cre­dores cobram o débito porque a norma existe; o Direito não é criado a partir da abstração dos casos verificados, mas como resultado de uma dedução efetuada a partir de uma regra formulada por alguém".3 · · ·

A expressão "a norma gera a relação jurídica" pode ser compreendida em . duplo sentido: real· e lógico. Examinemos a primeira hipóte,se. 1! necessário observar, de início - e os próprios juristas pesquisaram o suficiente para convencerem­se reciprocamente -, que o conjunto de narinas escritas ou não escritas pertence, em si, ao domínio da criaÇão literária.4

Este conjunto de normàs adquire unia significação reaf, ape­nas graças às relações que ~ão concebidas como derivando dessas normas e . que delas derivam efetivamente. Mesmo o partidário mais conseqüente do método puramente norma.tivo, Hans Kelsen, teve que reconhecer que era necessário conferir, de uma formá ou de outra, um elemento de vida real, quer dizer,. de conduta humana efetiva/ à ordem normativa ideal.5

Em realidade, aquele que considere as leis da Rússia czarista como direito atualmente vigente . está prontQ para ser inter­nado em um hospício. ·O métqdo jurídico formal que só cuida

2. H. Kelsen, Dás Problem der Souveriinitiit, 1920, p. 125. 3. Sér~enevic, Obsi:aja teorija prava (Teoria geral do Direito),

1910, p. 74. 4. ":e preciso levar em consideração que as leis apenas criam . o

'Direito', na medidà em que se realizam e que as normas saiam da 'existência no papel' para se afirmarem na vida, humana como Poder" (A. Hold V . .Femeck, Die Rechtswidrigkeit, Iéna, 1903, p. 11).

5. H. Kelsen, Der soziologische und der juristische Staatsbegriff Tübingen, 192!, p. 96.

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das normas e "do que é conforme ao direito" apenas pode manter a sua autonomia dentro de limites muito estreitos e. desde que a tensão entre· o fato e a norma não ultrapasse um determinado ponto. Na realidade material a relação prevalece sobre a norma. Se_ nenhum devedor quitar a sua dívida, então a norma correspondente deve ser considerada inexistente de fato. E_ se, assim mesmo, quiséssemos afirmar a existência desta regra, seria necessário, então, fetichizar a norma. Mui· tas teorias do direito empenham-se exatamente nesta tarefa e a fundamentam com consideraç~~ metodológicas ·muito sutis.

O Direito enquanto fenômeno social objetivo não pode esgotar-se na norma, seja ela escrita ou não. A norma; como tal, isto é, o seu conteúdo lógico .. ou é deduzida diretamente de relações preexistentes, ou, então, representa, quando pro­mulgada como lei estatal, um sintoma-que nos permite prever, com uma certa verossimilhança, o futuro nascimento de rela­ções correspondentes. Para afirmar a existência· objetiva do direito não é suficiente · conhecer o seu conteúdo normativo, mas é necessário saber se este conteúdo normativo é realizado na vida pelas relações sociais. A fonte habitual de erros neste caso é o modo de pensar dogmático que confere, ao conéeito de norma vigente, uma significação . específica que não coin· cide -com aquilo que 0 sociólogo ou o historiador compreen· dem por existência objetiva dó · direito. Quando o jurista dog­mático deve decidir se uma forma jurídica determinada está" êm vigor ou não, ele não busca .estabelecer genericamente a existência ou nãó de um fenômeno social objetivo determi~ nado, mas, unicamente, a presença ou não de um vínculo lógico entre a proposição normativa dada e as premissas normativas mais gerais.6

Não existe, para o jurista dogmático, no interior dos es-' treitos limites de sua atividade puramente técnica, verdadei­ramente, nada a1ém das normas; ele pode identificar, com muita serenidade, direito e norma. No que conc~me ao Di-. . .

6.1 Na lítlgua russa utilizamos para designar o ditejto efetivo e o direito ,vigente termps · que possuem o mesmo radical. Em alemão a diferenÇa lógica torna-se mais evidente pelo emprego de dois verbo$ diferentes: "wirken" no sentido de ser efiéaz, e "gelten" no sentido de ser válido, ,isto é, vinculado a uma premissa normativa mais geral.

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.rei to costumeiro, ele deve, queira ou não,. voltar-se para a rea­lidade .. Mas se a lei estatal é para o ju~ista cj supremo prin­cípio normativo, ou, para empregar a expressão técnica, a fonte do direito, as considerações do jurista dogmático acerca da existência do direito· vigente nada significam para O· his­toriador. que queira estudar o direito efetivamente existente. O estudo científico, vale dizer, teórico, só pode levar em consideração realidades de fato. Se certas relações constituí­ram-se em concreto,; isto significa que um direito correspon­dente nasceu; mas sé· umà iei ou decreto foran1 editados sem que nenhuma relaçãO correspondente tenha. aparecido, na prá­tica, isto significa· que. foi feito um ensaio ~ cdação de . di~ rei to, mas sem nenhum sucesso. Este ponto de vísta não equi­vale à negação. da vontade de classe como fator da evolução ou à renúncia da intervenção consciente no curso do desen­volvimento ·social ou, . ainda, ao "economismo'1; .ao fatalismo e outras coisas execráveis. A ação política. revolucionária pode· superar muitas dificuldades; pode realizar a.mànhã aquilo que não existe hoje;. :filas não pode fazer existir; subitamente, aquilo que não existiu no passado. Assim, quand0- afirmamos que o projeto de edificar um prédio e a · pr6pria planta deste prédio não representam o verdadeiro pFéqio, isto não . quer dizer _que a sua construção não necessita de pfOfeto e de plan­ta. Mas, se a decisão não ultrapassou o . plano.; :njo · podemos · dizer ·que o prédio tenha '>ido construído •..

Podemos modificar a proposição acima,. e :C.plocar em pri· meiro lugar não mais a norma como tal, mas as forças obje· tivas reguladoras e atuantes na sociedade, .. Ç>U ·segundo a ex­pressão dos juristas, a ordem jurídica pbjetiva.7

7. Aqui é necessário obserirar . que uma atividade social reg1,1ladora pode igualmente dispensar normas estabelecidas a prlorl. :e o que prova a criação jurisprudencial do direito. Sua p~oduçlo foi part'icularmente grande nos períodos que não conheceram a prodüçlio centralizada das leis. Assim,· por exemplo, O conceito de uma norma acabada, dada exteriormente, era inteiramente estranho aos tribunais da antiga Germâ· nia. Todas as compilações de regras eram, para os jurados, meios auxi­liares que lhes permitiam formar suas próprias opiniões e não leis obri­gatórias (S. Stinzing, Geschlcht1 der deutschen Rechtswissenschaft, tomo I, J880, p. 39). .

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Mas, ainda que sob esta formulação modificada, esta tese pode ser submetida a uma outra crítica. Se compreendermos por forças sociais reguladoras apenas estas mesmas relações em sua regularidade e continuidade, caímos em uma simples tautologia; mas se por isto entendermos uma ordem particular, organizada conscientemente, que garante e preserva esta rela­ção, o erro lógico torna"se evidente. Não se po.de afirmar, com efeito, que a relação entre o credor e o ·devedor é criada pelo sistema coativo de cobrança de dívidas que existe no Estado . em tela. Esta ordem objetivamente existente, certa­mente, garante a relação, preserva-a, mas não a cria de for­ma alguma. A melhor prova de que não se trata de uma querela verbal e escolástica é que se pode_ imaginar os mais diversos graus de perfeição nó · funcionam~nto desta regula­mentação social, externa e coativa, e, em conseqü~ncia, os mais diversos graus na preservação destas relações, justificando to· dos através de exemplos históricos, sem que estas relações sub­sistam à menor modificação na sua própria existência. Pode-· mos, igualmente, figurar um caso limite onde não exista, ao lado de duas partes que entram mutuamente em relação, uma terceira força capaz de estabeleéer uma norma e garantir a sua observância: por exemplo, um contrato entre os Var e os Gregos. Mesmo neste caso, ainda que a relação subsista.8 Mas basta supor o desaparecimento de uma das partes, quer dizer, de um dos sujeitos enquanto portador de um interesse parti­cular autônomo, para que, de pronto, desapareça a possibili· dade da própria relação.

8. Todo o sistema jurídico feudal repousava sobre tais relações contratuais não garantidas por uma "terceira força". Assim, também, o direito internacional moderno não conhece qualquer coação organi­zada do exterior. Certamente tais relações jurídicas não garantidas não se caracterizam pela sua estabilidade, mas isto não nos autoriza a negar­lhes existência. Um direito absolutamente constante não existe; por outro _lado, a estabilidade das relações privadas, no Estado burguês mo· demo "beiJl ordenado", não assenta-se unicamente sobre a polícia e os tribunais. Os débitos não são pagos pelos indivíduos porque "de qual­quer forma seriam pagos", mas, também, para que possam conservar o crédito p;ua o futuro. ~ o ·que ressai, no mundo dos negócios, das con­seqüências práticas das letras de câmbio levadas a. protesto.

-......

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Podem replicar-nos que, se fizermos abstração da nor­ma objetiva, os cc:>nceitos de relação jurídica e de sujeito de direito ficam flutuando no ar e não podem ·ser captados por nenhuma definição. Nesta objeção exprime-se o sentido emi· nentemente prático e empírico da dogmática jurídica moderna, a qual está 'permanentemente convencida de uma única verdade: a saber, a de que o processo estaria perdido se a parte que o ajuizou não pudesse apoiar-se em um artigo de uma lei. Teoricamente, contudo, a convicção de que o sujeito de direito e a relação jurídica não existem fora da norma objetiva é tão errônea quanto a convicção segundo a qual o valor não existe e não pode ser definido fora da oferta e da procura, por que ele só se manifesta empiricamente nas ftutuações do preço.

O pensamento jurídico dominante, que coloca em pri­meiro plano a norma como regra de conduta estabelecida au­toritariamente, não é menos empírico, e da mesma forma, como podemos observar nas teorias econômicas, possui um forma­lismo extremo, totalmente desligado da vida.

A oferta e a procura podem existir para todas as espé­cies de objeto, dentre os quais aqueles que não são produtos do trabalho. Disto conclui-se que o valor pode ser determi­nado por fora da relação entre o tempo de trabalho social­mente necessário à produção do objeto em questão. A apre­ciação empírica, individual, serve de fundamento à teoria for­mal-lógica da utilidade marginal. Por igual, as normas ema­nadas do Estado podem relacionar-se aos campos mais diver· sos e possuir características as mais variadas. Conclui-se, entlo, que a essência do direito esgota-se nas normas de conduta, ou em ordens provenientes de uma autoridade superior, e que a própria matéria das relações sociais não contém os ele· mentos geradores da forma jurídica.

A teoria formal-lógica do positivismo jurídico baseia-se no fato empírico de que as relações que se encontram sob a proteção do Estado são as que estão mais bem garantidas.

· A questão que examinamos reduz-se - para· usar a ter­minologia da concepção materialista da história - ao proble· ma das relações recíprocas entre a superestrutura jurídica e a superestrutura política. Se consideramos a norma, sob qual·

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quer . perspectiva, como o momento primário, devemos então, antes de buscar uma determinada superestrutura jurídica, pres­supor a existência de uma autoridade estabelecedora de nor­mas, em outros termos, de uma QJ::ga.t\iZ_l:l_~~o _J,ol~ti~~. Devemos -l­concluir que a superestrutura jurídica é uma conseqüência da · superestrutura política.

O próprio Marx salienta que as relações de propriedade, que constituem a camada fundamental e mais profunda da superestrutura jurídica, se . encontram . em contato tão estreito com a base, que aparecem como sendo as "mesmas relações de produção",· das quais são "a expressão jurídica". O Esta­do, ou seja, a orgahizaçã::> da dominação política de classe, nasce sobre o terreno de relações de produção e ·de proprie dade determinadas. As relações de produção e sua expressão jurídica formam o que Marx denominou, na esteira de Hegel, sociedade civiL A superestrutura política e notadamente a vida política estatal oficial são momentos secundários e derivadÇ>s.

O modo pelo qual Marx apresenta as relações entre a sociedade civil e o Estado está na seguinte citação: "O indi·' víduo egoísta ·da sociedade burguesa esforça-se, em sua repre­sentação não sensível e em sua representação sem vida, por se engrandecer ao ponto de se tomar por um átomo, isto é, por um ser sem .a menor relação_, bastando-se a si próprio, sem necessidades, absolutamente pleno, em plena felicidade, mas a desafortunada realidade semivel não trata da imaginação deste indivíduq; e cada um dos seus sentidos constrange-o a pensar no significado do mundo e dos indivíduos que existem além de si próprio; e até o seu profano estômago lembra-lhe diariamente que o mundo fora dele não se encontra vazio e que, pelo contrário, é ele que verdadeiramente o enche.. Cada uma de suas atividades e de suas. propriedades essenciais, cada um de seus instintos. vitais toma-se carência, uma neéessidade, que transforma seu egoísmo, seu interesse pessoál em interesse· por outras coisas e outros homens além dele. Mas, como a ~rência de um dado indivíduo não tem por si mesma sentido inteligível para b outro indivíduo egoísta que· possua os meios de satisfazer essa. carência, cotno a car~ncia não ·tem pois relação imediata eom a sua satisfação, todo o·· indivíduo se

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encontra obrigado a criar esta relação fazendo-se igualmente intermediário entre a carência de outrem e os objetos desta carência. ~ pois a necessidade natural (são as propriedades ~ssenciais do. homem, por muito alienados que pareçam), é o

·interesse que mantém unidos· os membros da sociedade· bur­guesa cujo vínculo real é, portanto, constituído peia vida civil e não pela vida política. o que assegura a coesão dos átomos da socied~de burguesa não é, pois, o Estado, mas o fato de tais átomos serem átomos apenas na representação, no céu de sua imaginação, e o de, na realidade, serem seres prodigio­samente diferentes dos átomos: ·não egotsmos divinos, mas ho­mens egoístas. Nos nossos dias, apenas a superstição política imagina que a coesão da vida civil é produto do Estado, mas, na realidade, a coesão do Estado, esta sim, é mantida como fato da vida civil'19 • ·

Em outro ensaio, A critica moralizante ou a moral criti­ca, Mat?t retoma ao mesmo problema. Ele polemiza com o representante do ~·socialismo verdadeiro", Karl Heizen, e es· creve: "Aliás se a burguesia mantém polit:camente, isto é, por sua força política, 'a injustiça nas relações de propriedade', não foi ela que a criou. 'A ·injustiça nas· reláções de proprie­dade', tal qual é condicionada pela moderna divisão do traba· lho, a moderna forma de troca, a concorrência, a concentra­ção, etc., de forma alguma possui a sua origem na supremaCia poUtica da burguesia; ao contrário, é a supremacia política da burguesia que possui sua fonte nestas modernas relações de produção, às quais os economistas burgueses proclamam como leis necessárias, eternas"10

9. K. Marx, A Sagrada familia (1845), trad. francesa de Ema Cogniot, Éd; Sociales, Paris,. 1963, pp. 146-147. Há edição portÜguesa (N. do T.).

10. K. Marx, "A crítica moralizante ou a moral crítica", in: CEuvres philosophiques, tradução Molitor, Ed. Costes, Paris, 1947, tomo III, p. 130. Seria um grande erro concluir, a partir de algUmas linhas, que a organi· zação política· não desempenha nenhum papel. e que o proletariado, em particular, não possui necessidade de lutar _para chegar ao poder do Es· tado, uma vez que, seja como for, isto não constitui a coisa essencial. Os sindicalistas cometem este erro, fazendo-se campeões da "ação di­reta". A teoria dos reformistas, que estão convencidos do princípio de que a dominação política da burguesia decórre das relações de produção,

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 63

Assim sendo, o caminho que vai da relação de produção à relação jurídica, ou relação de propriedade, é mais curto do que pensa a autodertominada dogmática positiva, que não pode passar sem um elo intermediário: o poder de Estado e suas normas. O homem que produz em sociedade é ·o pressuposto do qual parte a teoria econômica. A teoria geral do direito,' na medida em que trata de definições fundamentais, deveria partir igualmente dos mesmos pressupostos. Destarte, por exemplo, é necessário que a relação. econômica de troca exista para que a relação jurídica contratual de compra e venda possa nascer. O poder político pode regulamentar, módificar, deter-'. minar, concretizar, de maneira muito diversa, a forma e o conteúdo deste ato jurídico, com a ajuda das leis. A lei pode determinar de maneira muito precisa o que pode· ser vendido e comprado, bem como em que condiç9es e por quem.

A dogmática jurídica conclui, então, que todos . os ele­mentos existentes na relação jurídica, inclusive o próprio su­jeito, são criados pela norma. Na realidade, a existência de uma economia mercantil e monetária é naturalmente a condi· ção fundamental sem a qual todas estas normas concretas não possuem qualquer significado. ~ · somente sob esta condição que o sujeito de direito possui um substrato material na _pes­soa do sujeito econômico egoísta que. a lei não cria, mas que

representa uma deformação tanto mais grosseira quanto mais concluem que uma revolução política do proletariado é ·impossível e inútil. Ein outras palavras, transformam o marxismo ~m uma~ doutrina fatalista e, no fundo, contra-revolucionária. Em· realidade, estas mesmas relações d~ produção, de onde decorre a dominação política da bu~::guesia, 'engendram naturalmente, no curso de seu desenvolvimento, as premissas .do· cresci· mento das forças do proletariado e, em última instância, de sua .vitória política sobre a burguesia. Só podemos fechar os olhos a esta dialética se nos encontramos, conscientes ou inconscientes, ao lado ·da burguesia contra a classe operária. Nos limitamos, nesta altura, a estas poucas observações, uma vez que a nos!)a tarefa não consiste em refutar falsas conclus.ões extraídas da teoria marxista das relações entre a base e a super­estruma (mesmo porque estas já foram brilhantemente refutadas pelo marxismo revolucionário em sua luta contra o sindicalismo e o refor· mismo), mas, sim, em. extrair desta teoria histórica certos ensinamentos úteis à análise da estrutura ·jurídica.

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eneontra .diante de si. Onde inexiste este substrato, a relação jurídica correspondente é, a. priori, inconcebível.

O problema toma-se mais claro se o considerarmos .em sua dimensão dinâmica e histórica. Nesta hipótese vemos como a relação econômica é, em seu movimento real, á fonte da relação jurídica que )lasce s0mente no momento do desacordo~ Na lide, quer dizer, no processo, os sujeitos econômicos pri­vados aparecem como partes, isto é, como protagonistas da superestrutura jurídica. O tribunal representa, mesmo em sua. forma mais primitiva, a superestrutura jurídica por excelência. Através do pr<)cesso judiciário, o . momento jurídico separa-se do momento econômico e surge como um momento autônomo. Historicamente, o direito comeÇou com o. litígio, isto 'é, COJl! a ação judicial; foi somente mais tarde que o direito valeu-se de relações práticas ou puramente econômiÇas já preexistentes que, assim, desde o início assumem um aspecto dúplice: eco­nômico e jurídico. A dogmática jurídica esquece esta suces­são histórica e começa pelo resultado acabado, pelas· normas abstratas pelas quais o Estado preenche, por assim dizer, todo o espaço social, ao conferir propriedades jurídicas a todas as ações que se realizam. Segundo esta concepção elementar, não é o conteúdq material, econômico, das próprias rel1;1ções que , é O momento fundamental, determinante, nas relações de CQm· · pra e. vendá, mas entre mutuante e mutuário, etc., mas o im­perativo dirigido em nome do Estado às pessoas singulares; este ponto de partida do jurista prático é tão utilizável para a análise e explicação da ordem jurídica concreta quanto para a análise da forma jurídica em suas determinações mais ge­rais. O poder de Estado confere clareza e estabilidade ·à es­trutura jurídica, mas 'não cria as premissas que estão enraíza· das nas reiações materiais, isto é, nas relações de produção.

Gumplowicz chega, como se sabe, à conclus~o estrita­mente oposta; ele proclama o primado do Estado, ou seja, da dominação política11

• Ele se volta para a história do direito romano e crê ter provado que ''todo direito privado foi, em um tempo, direito público". Isto provém, segundo ele,· do fato,

11. Cf. Gumplowicz, Rechtstaat und sociqlismus, op. cit., § 35.

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de que "todas as instituições fundamentais do direito privado rom1;1no" nascem, ''a título de privilégios da classe dominante. como vantagens de direito público" destinadas a consolidar o poder nas mãos de um grupo vitorioso.

Não se pode negar a esta teoria uma· força de conVIcçao, na medida ém que ela destaca o momento da luta de c1asses e põe fim às representações idílicas sobre a origem da pro­priedade privada e do poder de Estado. Mas Gumplowicz, entretanto, comete dois grandes erros . ·Em primeiro lugar, ele atribui à violência, enquanto tal, um papel determinante e esquece completamente que toda ordem social, igualmente a baseada na conquista; é determinada pelo. nível de forças· pro­dutivas sociais. Em segundo lugar, faz desaparecer, quando fala do Estado, toda a distinção entre as relações primitivas de dominação e a ''autoridade pública" no sentido moderno, burguês, do termo .. ]! por isso que, em sua concenção, o direi­to privado originou-se do direito público. Mas, a partir da mesma constatação, a saber, que as instituições essenciais do jus civile romano antigo - propriedade, família, sucessão -foram criadas pelas classes dominantes para consolidar o seu. poder, podemos chegar à -conclusão diametralmente oposta, a saber': ''todo direito público foi, em um tempo, direito priva­do". Isto é mais correto ou, mais exatamente: mais falso, na medida em que a oposição entre o direito privado e o direito público corresponde a relações muito mais desenvolvidas e perde na significação quando é aplicada a épocas primitivas. Se as instituições de direito civil romano representam efeti­vamente uma misturà. de relações jurídicas públicas e priva­das - para utilizar a tenninoÍogia moderna·-, elas contê~, em igual medida, os elementos religiosos e, no sentido amplo do termo, elementos rituais. A este nível da evolução, por ·con­seguinte, o ·momento jurídico não poderia, ainda, distinguir­se dos outros e jortiori, encontrar uina expressão em um siste­ma de conceitos gerais; O desenvolvimento do direito c0mo ~tema não foi engendrado pela éxigência das relações de do­minação, mas pela exigência das trocas comerciais entre as pequenas populaçõés que, precisamente, não estavam subme­tidas a uma esfera de poder ánico. A propósito, é o que re-

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conhece o próprio Gumplowicz12• As relações comerciais com

as tribos estrangeiras, com os peregrinos, com os problemas e com o conjunto de pessoas que, em geral, não faziam parte da comunidade de direito público (segundo a terminologia de Gumplowicz), deram vida ao jus gentiuni, modelo de superes­trutura jurídica em sua forma pura. Contrariamente ao jui civile e suas formas pesadas, o jus gentium rejeita tudo aquilo que não é ligado ao fim e à natureza da relação econômica que o informa. Ele adapta-se à natureza desta relação e pare­ce, dessarte, ser um direito ''natural". Ele tenta reduzir .es.ta relação ao mínimo de premissas possível e se desenvolve, assim, facilmente, em um sistema lógico, bem ordenado. Gumplowicz, · sem dúvida, tem razão quando identifica a 19gica do civilista à lógica especificamente jurídica13

• Mas ele se engana, quando acredita que o sistema de direito privado poderia se desen­volver em razão da incúria de qualquer modalidade do poder de Estado. O seu raciocínio é mais ou menos o seguinte: dado

. 9ue os litígios privados não tocam direta e materialmente aos interesses do poder de Estado, este deixou, à casta dos juristas, inteira liberdade para aprofundar o seu espírito neste canwo14 •

No domínio do direito público, pelo contrário, os esforços dos juristas são geralmente arruinados sem comp!acência pela· rea-

. lidade, pois o poder estatal não tolera nenhuma intromissão em seus negócios e não reconhece a força toda-poderosa . da lógica jurídica.

:!! muito claro gue a lógica dos conceitos ju!'idlcos cor:\ responde à lógica da~ relações sociais de uma socledi!fie. de produção mercantil. E precisamente nesta relaçlo ~ .. nlo na concordância da autoridade pública que · devemos bJ.:~!ÇEir . P.

12. Op. cit., § 36. 13. O fato histórico de que as definlç15ca s~rals _d() direito se

desenvolveram, durante muito tem o, como uma arte da teoria do d'reito civil nos remete, igualmente, ao ro undo vínculo interno ex e­tente entre a lo ica 'urídica como ta ca -o civilista. SÓ uma reflexão muito superficial pode· fazer crer - como a de Kavelin - que este fato deixa-se explicar apenas por um erro,, por um equívoco (cf. ~· D.- Kavelin, Sobranie So'~inenij (obras), tomo IV, p. 338).

14. L. Gumplowicz, op. cit., ' 32.

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raiz do sistema de ·direito privado. Ao contrário, a lógica das relações de dominação e de servidão, apenas em parte, cabe no sistema de conceitos jurídicos. E por isto que a concepção jurídica do Estado não poderá . jamais tornar-se uma teoria e permanecerá, sempre, como uma deformação ideológica dos fatos. - Constatamos, portanto, em qualguer lugar que observa­mos uma camada primária de superestrutura jurídica, gue a relação jurídica é dir~amente gerada pelas relações materiais existentes entre os homens.

Segue-se, então, que não é necessário partir do conceito de norma, como lei autoritária externa1 ~ra analisar a relação jurídica elll .. ~Ha JC2.t:l!lll .. !D.11E_simples. E suficiente fundamen­tar a análise sobre uma relação jurídica "cujo conteúdo é f_ç>r­necido pela própria relação econômica"15 e examinar, a se­guir. a forma "legal" desta relação jurídica como uma hipótese particular . , · ·

Posta ew sua perspectiva hi_s_!órica real, i!.__questão de saber se a norma deve ser considerada como a premissa da relação j~rídica condüz=-nos-~~!?i~.~~~~=ret:ã.s:~~:f.'~ªP.:~ocas ·exis­!entes _entre -~-.fl!:l..P~!~tru,~_p_ç!ít_i_c_a -~--.~h-~E.~~~trutura jurí­dica. Na esfera lógica e sistemátic~L~!_!!_q_l!~.H[Q __ ~-ª.wla das relações entre o poder objetivo ~-..0 direito subjetivo.

Em seu manual de direito constitucional, Duguit chama a atenção para o fato de que uma única denominação "di­reito" designa coisas ''que, sem dúvida, se interpenetram pro­fundamente, mas que se distinguem muito claramente umas das outras"16

• Ele pensa no direito em sentido objetivo e em sentído subjetivo. Neste caso, abordamos, efetivamente, um dos pontos mais obscuros e mais controvertidos da teoria geral do direito. Estamos diante de üma estranha dualidade de con­ceito. cujos éiOis'âspéct~s. aindâ'gue '8ê sitüàndõem-nÍve'is' difé. rentes. se condicionam reciprocamente. O Direito é simulta­neamente, sob um aspecto, a forma de regulamentação auto-

15. KarLMarx, O Capital, L. I, cap. 11, p. 95. Ed. brasileira: São Paulo, 1988, Nova Cultural, 3." ed., p. 79.

16. L. Duguit, Estudos de direito público, Paris, 1901.

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ritária externa e, sob outro, a forma de autonomia subjetiva privada. Em uma modalidade, é a característica da obrigação absoluta, da coação externa pura e simples, que é fundamen­tal na outra, é a característica da liberdade garantida e reco­nhecida no interior de certos limites. O direito surge seja como o princípio da organ:zação social, seja como meio que permite aos indivíduos "limitarem-se na sociedade". Em uma hipóte!3e', o direito funde-se, digamos, totalmente com a autori­dade externa; em outra, opõe-se, totalmente, a toda autoridade externa que por ele não é reconhecida. O direito como sinô­nimo da existência oficial do Estado e o direito como porta­voz da luta revolucionária: esta dualidade determina um cam· po de controvérsias infinitas e de confusões Universais.

o conhecimento desta profunda contradição susoitou inú· meras ·tentativas de suprimir, de uma maneira ou de outra, esta de~integração desagradável de conceitos. Foram feitas nu­merosas tentativas de sacrificar um dos conceitos em favor do outro. O próprio Duguit, que qualifica, em seu manual, as expressões "direito objetivo e direito subjetivo" de ''felizes, claras e precisas", esforça-se em provar, em outra obra, com toda a sua perspicácia, que o direito subjetivo apóia-se em um mal-entendido, sobre "uma concepção metafísica .que, em uma época de realismo e de positivismo como a nossa, não pode ser mantida.U

A corrente oposta, que é definida na Alemanha por Bier­ling. e entre nós pelos psicologistas, à sua cabeça Petrazickij, possui tendência, ao contrário, a apresentar o direito objetivo como. uma ''projeção emocional", desprovida de significação real, como uma criação da imaginaçlo, como um produto ·da objetivação de .processos internos, paicolóslooa, etc.11 • ·

17. L. ·n~guit, As transformaçlJIIJ do dll'fllo prJbllco, Paria, 1913. 18. Cf. por exemplo em Bierling: ·"lato oorrtapondo 11 uma ten­

dênCia geral do nosso espírito humano, que 6 a do panaar o direito, antes de tudo, como alguma coisa de objetivo, isto 6, oomo um aor em si c para si, situado acima dos membros da COD;lUnldado jurtdloa1 01te pen­samento sem dúvida possui valor prático. M:as 6 neo111•rlo nlo oaquecer que este "direito objetivo", mesmo quando esteJa IOb forma de direito ·escrito, uma forma exter~or própria, particular, não 6 mall do quo uma

"-.._

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 69

Queremos, provisoriamente deixar de lado a escola psi­cológica e as tendências próximas, e ocupar-nos da opinião daqueles para os quais o. direito deve ser concebido . ~xclusi­vamente como uma norma objetiva.

Se partirmos desta concepção, tembs de um lado a regra imperativa autoritária como norma e de outro lado a obriga­ção subjetiva correspondente a esta regra e por ela criada.

o dualismo parece radicalmente suprimido; esta supres­são é, no entanto, meramente aparente. Tão lógo se queira aplicar está fórmula, surgem as tentativas para reintroduzir, mais uma vez, por vias transversas, todas as nuances indis· pensáveis à formaç.ão do conceito· de ''direito subjetivo". No­vamente nos deparamos com estes• dois aspectos, apenas coni · a seguinte diferença: um dos dois, a saber, o direito subjetivo, é representado por diferentes artifícios, como um tipo de som­bra; com efeito, nenhuma . combinação de imperativos e de obrigações pode fornecer-nos o conceito de direito subjetivo em sua significação autônoma e plenamente real, em virtude da quai ele é encarnado por todos os proprietários da .socie­daçle burguesa. · Basta que tomemos a propriedade como exem­plo para nos convencermos de tal fato. Se a tentativa de re­duzir o direito .de propriedade a uma série de proibições ende­reçadas a terceiras pessoas não é mais do que um processo lógico uma construção mutilada e. deformada:, a apresentação do direito de propriedade burguês como uma obrigação social não ·passa de uma hipocrisia19 •

forma d_e nossa representação do direito ~e que o próprio direito, na realidade, como todo produto da vida psíquica, só possui existência nos espíritos, em espet;:ial, dos membros da mesma comunidade jurídica" (E. R. Bierling, /TJristische Prinzipienlehre, Fribourgen e Leipzig, 1894, tomo I, p. 145).

· 19. Em comentário ao Código Civil da Rússia, Gojchbarg assinalá que os jurist~s burgueses progressistas já começam a ~ão considerar nÍai$ a propriedade privada como um direito subjetivo 11rbitrário, mas como . um bem posto à disposição da pessoa. Gojchbarg refere-se, priricipal­·mente, a Duguit, o qual'afirma que o possuidor do capitatsó deve,êstar protegido juridicamente· quando dá ao seu capital uma destinação com-

. patível com funções socialmente 'úteis.

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Todo proprietário, inclusive seus auxiliares, compreende muito bem que o direito que lhe assiste, enquanto proprietário, pouco tem a ver com a obrigação, a tal ponto que lhe é, em realidade, diametralmente oposto. O direito subjetivo é o fato primário, pois assenta-se, em última instância, sobre interesses materiais que existem· independentemente de regu!amentação · externa, consciente, da vida social.

O sujeito como titular e destinatário de todas as. pteten­> sões possíveis, a cadeia de sujeitos vinculados uns aos outros

por pretensões recíprocas, esta é a estrutura jurídica funda­mental que corresponde à estrutura econômica, às relações

Estas considerações dos juristas burgueses são certamente interessan~ tes, pois significam um sintoma do declínio da época capitalista. Mas a burguesia, de outra parte, somente tolera tais consideraçõ~s acerca das funções sociais da propriedade porque elas não . a comprometem em nada. A antítese real da propriedade, com efeito, não é propriedade concebida como· uma função social, mas a economia planificada socia­lista; quer dizer, a supressão da propriedade privada, o seu subjetivismo, não cansiste em que "cada um coma o seu pr6prio pão, ou seja, não é o ato de consumo individual, ainda que seja igualmente produtivo, mas na circulação, no ato de apropriação e alienação, na troca de mercadorias onde a. finalidade econômico-social não é nllda além do que o resultado de fins privados e de decisões privadas au~ônomas.

A explicação de Duguit, segundo a qual o proprietário não deve ser proegido senão quando cumpra as suas obrigações sociais, não possui nenhum significado ·quando posta nes.tes termos gerais. No Estado bur­guês é uma hipocrisia, no Estado proletário é uma dissimulação dos fatos.· Pois se o Estado proletário pudesse deixar que cada proprietário, foiir.ttmente, cumprisse sua função social, ele o faria privando dos ·pro­prietários o direito de dispor de sua propriedade. Porém, se, economica· mettte, ele é incapaz disso, ele tem de proteger o interesse privado en­qt~anto tjtl e fixar-lhe, apenas, os limites. Seria uma ilusão afi.rmar que todo iMI'lvíduo que, no interior das fronteiras da União Soviética, acumu­leu UllWl . quantidade de dinheiro está protegldo pelas nossas leis e por nossos tribunais apenas porque encontrou, ·para o dinheiro acumulado, uma utt:Uzação ~ocialmente útil. Aliás, Gojchbarg parece ter esquecido. ··a propriedade do capital, sob a sua forma mais abstr!lta, monetária, e raciocina cotriÓ se ·o capital s6 existisse sob a forma concreta de capital proq~,Jtivo. os· ~spectos anti-sociais da propriedade s6 podem ser parali­sadQ8. de '}ato,· ou seja, pelo desenvolvimento da economia planificada so­cialista em detrimento da economia de mercado. Mas nenhu~a espécie de '{órinula mesmo se for extraída das obras dos juristas os mais pro­gressiStas da Europa Ocidental, pode tornar socialmente úteis os COll·

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O. MARXISMO 71

de produção de uma sociedade baseada na divisão do trabalho e de troca.

A organização social que dispõe dos meios de coerção é a totalidade concreta à qual devemos chegar- após termos con- · cebido, puramente, a relação jurídica sob sua forma a mais pura e a mais simples. A obrigação enquanto resultado de um imperativo ou de um CQmando surge, em conseqüência, no estudo da forma jurídica, como um momento que concretiza e complica as coisas. Em sua forma màis abstrata e mais sim~

' ples, a obrigação jurídica deve ser considerada como reflexa e correlata à pretensão jurídica subjetiva. Se analisarmos a relação jurídica veremos, muito claramente, que a obrigação não pode esgotar o conteúdo lógico da forma jurídica. E mais, ela não é sequer um elemento autônomo desta forma jurídica. A obrigação surge sempre como reflexa e correlata a um direi­to subjetivo. A dívida, de uma das partes, não é o't!Íra coisa além daquilo que pertence à outra e lhe é garantido. o que é um direito para o credor é uma obrigação para o devedor. A categoria de direito só está logicamente ac,abada no mo­mento em que inclui o titular e o portador do 4ireito c::ujos direitos representam apenas as obrigações correspondent~s de um terceiro para com ele. Esta natureza dúplice do direito é particularmente 1lssinalada por Petrazickij, que lhe dá um fun­damento bastante instável em sua .teoria psicológica ad hoc. :e necessário, contudo, obseryar que estas relações recíprocas entre o direito e a obrigação foram formuladas de maneira muito precisa para outros juristas rião suspeitos de psicolo­gismo20. · ~

Portanto, a relação jurídica não .. nos mostra apenas o di­'reito em seu movimento real,. nias descobre, igualmente, as propriedades características do direito enquanto categoria lógi-

tratos firmados sob a égide do nosso C6digo Civil e transformar cada proprietário em uma pessoa exercente de uma função social. Uma tal\ supressão verbal da economia privada e do direito privado s6 pode obs· curecer a perspectiva de sua supressão real.

20. Cf. por exemplo, A. Merkel, Juristische Enzyclopi.idie, Leipzig, 1885, § 146, e N. M. Korkunov, Enciklopedija prava (Enciclopédia do Direito), Moscou, 19i8, p. 114.

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72 E. B. PASUKANIS

ca. · A norma, ao contrário, enquanto tal, quer dizer, enquanto coinando imperlitivo, é tanto um elemento da moral, da esté­tica, da técnica, quanto, ao mesmo título, um elemento do direito.

A diferença entre a técnica e o &reito não consiste abso­lutamente, como . pensa I . Alekseev, em que a técnica pressu" põe uma finalidade exterior à sua própria matéria, enquanto que na ordem jurídica todo sujeito constitui um fim em sF1 •

Nas páginas seguintes mostraremos que para a ordem jurídica o "fim em si" nada mais é do que a circulaÇão de mercadà­. rias. No que concerne, todavia, à técnica do pedagogo ou do cirurgião; que têm, respectivamente, como matéria, um, o psi­quismo da criança, o outro, o organismo do paciente operado, ninguém poderá contestar que a matéria, também aqui, con­tém igualmente o ein si, o fim.

A ordem jurídica. se distingue, precisamente, de qualquer outra espécie de ordem social no que cohcerne aos sujeitos privados isolados. A norma jurídica deve sua especificidade, que a distingue da massa de outras regras morais, estéticas, utilitárias, etc., precisamente ao fatp de que ela pressupõe uma pessoa munida de direitos, fazendo valer, ~través deles, . ativamente, suas pretensões22 • ·

A tendência a fazer da· regulamentação externa o momen­to lógico fundamental do direito conduz a identificar o direito com .·a ordem social estabelecida autoritariamente. Esta ten­dência do pensamento jurídico refiete, fielmente, o espírito de nossa época, na qual a ideologia de Manchester e a livre con­corrência foram substituídas pelos grandes monopólios capi­talistas e pela política imperialista.

O capital financeiro aprecia mais um poder forte e a dis­ciplina do que ''os direitos eternos e intangíveis do homem e do cidadão". O proprietário capitalista, transformado em entesourador de dividendos e lucros .da bolsa, não pode deixar

21. I. Alekseev, Vvedenie v _i:tucel'iie prava (Introdução ao estudo do direito), Moscou, 1918, p. 114. ·

22. "0 direito não é dado gratuitamente a quem dele tem ne· cessidade". M. A. Muromcev, Obrazovanie prava (A formaçao do dl·

, reito), 1885, p. 33.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 73

de considerar com um certo cinismo o "direito sagrado de propriedade". Basta nos reportarmos à!r lamentações de lhe~ ring sobre a ''abjeta especulaÇão na bolsa e a agiotagem frau­dulenta" onde perece o "sentimento nàrmal do direitG"21

Não é difícil provar que a idéia de s.ubmissão incondi­cional a uma autoridade normativa externa não possui a mí­nima relação com a forma ,jurídica. J! ··suficiente tomarmos <is exemplos limites que, devido a isto, são mais claros. Pegue­mos uma formação militar, na qual muitos homens são subor­dinados, em seus movimentos, a uma ordem comum, na qual . o único princípio ativo e autônomo é a . vontade do coman­dante. Ou, ainda, o exemplo da Ordem dos Jesuítas na qual · todos os irmãos da comunidade executam, cegamente e sem discussão, a vontade do superior. Basta que se aprofunde es,tés exemplos para se concluir que. quanto mais' o princípio da re­gulamentação autoritária, que exclui toda referência a uma vontade autônoma particular, seja aplicado de maneira conse­qüente, tanto· mais se restringe o campo de aplicação da cate­goria direito. Isto é particularmente sensível na . esfera do assim chamado direito público. A teoria jurídica, nesta 'área, ressente-se de diticuldá.des muito grandes. De maneira geral, um único fenômeno, que Marx caracteriza como a separaÇão do Estado político, da sociedade civil, reflete-se na teoria gera] do direito sob a forma de dois problemas -distintos que pos· suem, cada um, um ·lugar particular no sistema e uma solução específica. O primeiro problema teni um caráter pur~mente. abstrato e consiste na cisão do conceito fundamental em dois aspectos que já ·expusemos acima. O direito JUbjetivo é a càracterística do homem egoísta "membro da sociedade bur­guesa, do indivíduo auto-suficiente, sobre. seu interesse privado e sua V-Ontade privada e separado da cmnúnidadé" . O direito objetivo é a expressão do Estado butguês como totalidade! que "se releva como Estado político e . que só faz valer sua generalidade ein opósição a(lª~lementos que o com.põem"

23. R. Iherirtg, D,er Kampf ums Récht, Wien, 1900;· Ed. brasileira: A Luta pelo Direito; Rio, Ed. Liber Juris, 1987.

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74 E. B. P ASUKANIS

O problema do direito subjetivo e do direito objetivo é o problema, formulado de maneira filosófica, do homem . como indivíduq burguês privado e . do homem c()nío cidadão. O mesmo problema surge, uma vez m~i~, agora de ·forma mais concreta, como problema do direito público e do direito · pri­vádó. A tarefa, então; reduz-se à limitação d~ alguns domí­nios jurídicos realmente. existentes, à • classificação em diferen­tes rubricas das instituições que nasceram historicamente. A dogmática jurídica, com seu método formal lógico não pode, entenda-se bem, resolver nem o primeiro, nem o segundo pro­blema, nem e~plicar o víncl:Jlo existente entre· os dois.

A div,isão do direito em direito público e direito privado, assim, já apresenta dificuldades específicas, pois o limite entre ó interesse egoístico do homem enquanto· membro da sociedade civil e o interesse geral abstrato da totalidade política somente pode ser traÇado nà abstração. Na realidade tais momentos interpretam-se reciprocamente. Daí a impossibilidade de indi­car as ·instituições jurídicas concretas nas quais este famoso interesse· privado esteja totalmente encarnado em sua forma pura.·

Uma outra dificuldade é que o jurista ao traçar, com maior ou menor sucesso, um limite empírico entre as insti- · tuições de direito público e as de direito privado, defronta~se novamente, no interior dos limites de cada · um destes domí· nios, com um problema que parecia já estar resolvido, mas desta vez a partir de uma outra problemática abstrata. O pro­blema surge como uma contradição entre o direito subjetivo e o direito objetivo. Os direitos públicos subjetivos repre­sentam, de fato, de novo, os mesmos direitos privados (e em conseqüência os mesmos interesses privados) ressuscitados e apenas -levemente modificados, que se apresentam em uma esfera na qual deveria reinar o interesse geral impessoal, re­fletido pelas normas .de direito objetivq. Mas,' enquanto que o direito civil, que trata da camada jurídica fundamental e pri­mária, utiliza com abundância e segurança o conceito de direi­to subjetivo, a utilização deste conceito, no âmbito da teoria do direito público, gera regularmente contradições e mal-en­tendidos. Eis por que o sistema do direito civil caracteriza-se

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 75

por sua simplicidade, clareza e perfeição, enquanto que as teo­rias de direito público contemplam diversas construções for· çadas, artificiais e unilaterais, ao ponto de tornarem-se até mesmo grotescas. A forma jurídica com seu aspecto de auto~ rização subjetiva nasce em uma sociedade composta de titu­lares de int~resses privados egoístas e isolados. Dado que toda vida econômica edifica-se sobre o princípio da conéÓrdância entre vontades independentes, cada função social assume, de . forma mais ou menos reflexiva, um caráter jurídico, isto é, ~não é apenas uma função. sociai, mas, igualmente, . um direito pertencente àquele. que exerce tais funções sociais. Mas, uma vez que ·os interesses priva~os não podem, dada a pr6pria, na~ tureza da organização política, alcançar nela um desenvolvi­mento completo . e uma importância determinante como na economia da sociedade burguesa, os direitos públicos subjeti­vos surgem, eles também, coino uma fotqna efêmera, desprovi­dos de verdadeiras raízes e eternamente incertos. Ademais, o Estado não é uma superestrutura jurídica, mas somente pode ser pensado enquanto ta[24•

A . teoria jurídica não pode identificar os direitos do Le­gislativo, os direitos do Executivo; etc., como, por exemplo, o direito do credor à restituição da quantia emprestada, .pois isto significaria substituir a st~rpremacia do interesse estatal geral; e impessoal, )?resumido pela ideologia burguesa, pelo in­terese privado isolado. Mas, ao mesmo tempo,. cada jurista est? . consciente do fato de que não pode dar a estes direitos nenhum outro conteúdo fundamental, sem que a forma jurídica lhe est.:ape das mãos. O . direito público só pode existir en~ quanto refletir a forma jurídica privada na· esfera. da organi­zação política, ou então deixa de ser um direito. Tdda tenta­tiva visando a apresentar a função social pelo que ela é, quer dizer, simplesmente. como função social, e a apresentar a nor­ma simplesmente como regra organizàtiva, significa a morte da

24. "Para o conhecimento jurídico, trata-se exclusivame11te de res­ponder a seguinte questão~ como deve conceber-se juridicamente o Estado?" (G. Jellinek, System der subjektiven offentlichen Rechte, Tü­bingen, 1905, p. 13).

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forma jurídica. A condição real da supressão da forma jurí­dica e da ideologia jurídica é um estado social no qual a con­tràdição entre o interesse individual e o interesse social esteja superada.

Mas o que caracteriza a sociedade burguesa é precisamen­te o fato de que os interesses gerais destacam-se dos interesses privados e a eles se opõem. E assumem, involuntariamente, nesta oposição a forma de interesses privados, a fornia~· de direito. Além do mais, como era de se esperar, são precisa­lnente estes momentos que se deixam integrar completamente no esquema dos interesses privados isolados e ópostos, que constituem o momento jurídico da organização estatal25 •

A. G. Gojchbarg contesta a própria necessidade de dis· tinguir os conceitos de qireito público e de direito privado.

25. Cf., por exemplo, as considerações de S. A. Kotljarevskij, sobre o direito eleitoral: "no Estado constitucional o eleitor cumpre uma fun­ção determinada que lhe é ditada pela ordem estatal transcrita na Cons­tituição. Mas do ponto de vista do Estado de direito é impossível atribuir ao eleitor somente esta função sem -levar em conta o direito que a ela está relacionado". Acrescentamos que isto é tão impossível quanto a transformação da propriedade burguesa em função social. Kotljarevskij sublinha, ainda, muito justamente que se negarmos, como Laband, o elemento de investidura subjetiva do eleitor, "a elegibilidade dos represen­tantes perde todo o seu sentido jurídico e reduz-se a uma questão de técnica e de oportunidade". Aí, também, encontraremos a mesma oposi­ção entre a oportunidade técnica fundada sobre a unidade de fins e a organização j,urídica construída sobre a separação e oposiçllo dos inte: resses privados. E, finalmente, o sistema representativo deve toda sua característica jurídica à introduçllo de sarantla1 juríclicaa ou jurídico­administrativas doa direito• do1 eleltoret. O proce11o judiciário e a disputa entre os partido• 110, aqui, elemento• 0111nciai1 da luperestru­tura jurídica (cf. S. A. Kotljarev1ltij, Vla1t' I pravo [Autoridade e direito], Moscou, 1915, p. 25). O direito pllbllco 1m 11ral 16 10 torna objeto de elaboração jurídica enquan\o direito con1tltucional, ou 1oja, eomente com o aparecimento de forças que se combat1m mutuamente, como o rei e o parlamento, a câmara alta e a cAmara baixa, o aovorno o a represen­tação nacional. Assim também sucedo com o direito admlnl1tratlvo. Seu conteúdo jurídico reduz-se, por um lado, l aarantla clo1 direitos da po­pulação e, por outro, dos direitos dos repr11entanto1 da hierarquia buro­crática. Ademais. o direito administrativo ou, como ora chamndo antiga­mente, o direito de polícia representa uma ml1tura varl11cla de regras técnicas e de preceitos políticos. etc.

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 77

Lê-se em seu trabalho: "a divisão do direito em direito pú­blico e em direito privado jamais satisfez aos juristas e, pre­sentemente, só é reconhecida pelos juristas mais retrógrados, dentre os quais se encontram alguns de nossos juristas"26 •

Gojchbarg, ademais, apóia esta idéia sobre a inutilidade da divisão do direito em direito público e d!reito privado nas seguintes considerações: o princípio do livre cambismo, da não ingerência do Estado nos assuntos econômicos está superado no século XX, diz, o arbítrio individual ilimitado na vida econômica prejudica os interesses do conjunto; existem, mes­mo nos países que não passaram por uma revolução proletá­ria, numerosas instituições nas quais misturam-se os domínios do direito privado e do direito público, e entre nós, final­mente, onde a atividade econômica está concentrada princi­palmente nas mãos dos organismos do Estado, a delimitação do conceito de direito civil, em relação a outros conceitos, não tem sentido. Parece-nos que toda esta argumenta~ão repousa sobre toda uma ,série de equívocos. A escolha desta ou da­quela direção política prática não é determinante em relação aos fundamentos . teóricos da distinção entre os diferentes con­ceitos. Assim podemos estar convencidos de que a edificação das relações econômicas sobre a base de relações mercantis possui inúmeras conseqüências negativas. Mas não se depre­ende daí que a distinção dos conceitos de "valor de uso" e de ''valor de troca" seja teoricamente inconsistente. Em segundo lugar, a afirmação (que, de resto, não contém nada de novo), segundo a ··qual os domínios do direito . público e do direito privado interpenetram-se, não tem nenhuma espécie de signi­ficação se não pudermos distinguir estes dois conceitos. Efe­tivamente, como é que coisas que não possuem existência se­parada podem interpenetrar-se? As objeções de Gojchbarg l)s­sentam-se sobre as idéias de que as abstrações de "direito pó-.. blico" e de "direito privado" não são . frutos do desenvolvi­mento histórico, mas simplesmente o produto ela imaginação dos juristas. Contudç, é precisamente esta oposição que é a

26. A. G. Gojchbarg, Chozjajstvennoe pravo (O direito econômico). p. 5.

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78 E. B. P ASUKANIS

propriedade . característica da forma jurídica. A divisão do direito em direito público e em direito ptivado caracteriza esta forma jurídica, tanto do ponto de vista lógico, quanto do histórico. Se declaramos, simplesmente, inexistente esta opo­sição, nós não estaremos acima destes. juristas práticos "retró­grados", mas, ao cpntrário, seremos obrigados a utilizarmo­nos destas mesmas definições formais e e~colásticas com as quais eles trabalham .

O conceito de "direito público" somente pode ser com­preendido em seu· desenvolvimento: pelo qual ele é continua­mente repelido pelo direito privado, na medida em que tende a se determinar come; oposto daquele e pelo qual a ele regressa conio seu centro de gravidade .

A tentativa inversa, isto é, a tentativa de descobrir as definições fundamentais. do direito privado - que não são outras senão que as definições do direito em geral -, partindo do conceito de norma, só pode gerar construções incertas e formais, que, aliás, não estão ísentas de contradições internas. O direito, como função, deixa de ser direito desde q4e a per­missão jurídica transforma-se, sem o interesse privado que a sustenta, em algo de inacessível, abstrato, que se transmuta facilmente em seu contrário, quer dizer a obrigação (todo 'di­reito, público é, com efeito,. simultaneamente, uma obrigação). Tão simples, compreensível e "natural" que seja "o direito do credor" à restituição da dívida, tão precário, problemático e ambíguo é, digamos, o ''direito" do parlamento de votar o or­çamento. Se no direito civil os ,litígios são tratados a nível do que Ihering chamou de sintomatologia jurídica, aqui é o próprio fundamento da dogmática jurídica que está sendo posto em dúvida. Nisto reside a fonte das· hesitações e das incerte­zas metodológicas que ameaçam transformar a dogmática jurí­dica em Sociologia ou em Psicologia.

Alguns de meus críticos, como por exemplo, Razumovs­kij27 e T. Il'inskij28 acreditaram, em parte, parece-me, a partir

27. Cf. Vestnik Kommunistice~koj Akademii, vol. VIII. 28. Cf. Molodaja Gvardija, n.o 6.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 79.

da base do desenvolvimento precedente, que eu havia me pro­posto por tarefa ''construir uma teoria da dogmática jurídica pura". Em seguida ao que, Il'inskij conclui que tal finalida­de não foi alcançada. Ele escreveu: ''o autor produziu uma teoria do direito que é, em sua essência, sociológica, ainda, que tenha tido a intenção de construí-la como dogmática ju­rídica pura·".

Quanto a Razumovskij, ainda que ele .não exprima qual­quer opinião precisa sobre os meus objetivos, me atribui, con­tudo, a intenção acima mencionada, e condena muito severa­mente: ''o seu (isto é, o meu, E. P.) receio de velhas pesqui­sas metodológicas transformarem a dogmática jurídica em So­ciologia ou em Psicologia revela, apenas, que ele possui uma representação insuficiente do caráter da análise marxista". "Isto é tanto mais estranho - espante-se o meu crítico -que o próprio Pasukanis vê uma certa discordância entre a verdade sociológica e a verdade jurídica e sabe que a concep­ção jurídica é uma concepção unilateral". Com efeito,. isto é realmente estranho. Por um lado, eu temo que a dogmática jurídica não se transforme em Sociologia; por outro, reco­nheço que a concepção jurídica é uma concepção "unilateral". De uma parte eu quero produzir uma teoria da dogmática ju­rídica pura, de outra parte sobressai que eu produzi uma teo­ria sociológica do direito. Onde está a solução desta contra­dição? A solução é muito simples. Enquanto marxista, eu não me atribuí a tarefa de construir uma teoria da dogmática jurí­dica pura e eu não poderia, da mesma forma, enquanto mar­xista, atribuir-me esta tarefa. Desde o início estava perfeita­mente c6nsciente do fim ao qual segundo a opinião de Il'inskij, teria chegado inconscientemente. Este fim era de fazer uma interpretação sociológica da forma jurídica e das categorias específicas que exprimem esta forma jurídica. :e precisamen-te por isto que subtitulei a meu livro "tentativa de crítica dos -. conceitos jurídicos fundamentais". Mas a minha tarefa seria, entenda-se, totalmente absurda se eu não tivesse reconhecido a existência desta mesma forma jurídica e se tivesse rejeitado as categorias que. exprimem esta forma como elucubrações ociosas.

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80 E. B. PASUKANIS

Uma vez ·que eu estigmatizo a precariedade e a inade­quação das construções jurídicas no domínio do direito pú­blico, falando das hesitações e das incertezas metodológicas que ameaçam transformar a dogmática jurídica seja em Socio-

. logia, seja em Ps!cologia, é estranho acreditar que quero pre­caver-me contra a tentativa de uma crítica sociológica da dog-mática jurídica feita do ponto de vista marxista: ·

Tal precaução endereçar-se-ia, em primeiro lugar, a mim mesmo. As linhas que provocaram o espanto de Razumovskij, e que ele explica pela minha representação insuficiente do caráter da análise marxista, reportando-se, contudo, às conclu­sões da dogmática jurídica .burguesa, que perde confiança na estrutura de suas concepções desde que sé afasta da relação de troca (no sentido amplo do termo). Talvez eu devesse mos­trar, por uma citação explícita, que esta frase relativa ao ''pe­rigo que ameaça à dogmática jurídica" é uma alusão às lamen­tações de um filósofo burguês do direito. Estas lamentações não se relacionam, certamente, à crítica marxista (esta ainda não inquietava o espírito dos "juristas puros"), mas às tenta­tivas da dogmática jurídica burguesa visando a mascarar a estreiteza de seu próprio método com empréstimos de Socio­logia e da Psicologia. Mas eu estava longe de pensar que algu·ém poderia ver em mim um "jurista puro", com a alma mortificada pelas ameaças que a crítica marxista faz pesar sobre a dogmática jurídica burguesa.

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I Capítulo Quatro

MERCADORIA E SUJEITO

Toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. _O sujeito é o átomo da teoria jurídica, seu elemento máis sim­ples, indecomponível. Por isto começaremos nossa análise pelo

· sujeito. I. Razumovskij não concorda comigo em que a análise

do conceito de ''sujeito" deva servir de fundamento ao estudo da forma jurídica. Esta categoria da sociedade burguesa de­senvolvida parece-lhe, primeiramente, muito complexa e, em segundo lugar, não lhe parece que ela caracterize os períodos históricos anteriores. Segundo ele, é "o desenvolvimento da relação fundamental de toda sociedade de classe" que deve ser­vir de ponto de partida.1 Esta seria, como diz Marx na sua In­trodução Geral, propriedade que, ·a partir da apropriação, se· desenvolve de fato e, em comeqüência ·· desta, em proprie­dade jurídica.2 Razumovskij, todavia, ao mostrar as vias deste .desenvolvimento, chegou à conclusão de que a propriedade privada, como tal, somente forma no processo de desenvol­vimento, só sé toma propriedade privada, no sentido moderno do termo,. no interior deste processo, e. desde que esta pro­priedade se acompanhe não apenas "da possibilidade de livre posse", mas também ''da possibilidade de alienação".3 Mas também significa que a forma jurídica, no seu estágio desen:-

1. I. P. Razumovskij, Problemy .marksistskoj teorii prava (Proble' mas da teoria' marxista do Direito), Moscou, 1925, p. 18. Ver nota 6 do capítulo um.

2. Cf. K. Marx, Introdução Geral, op. cit., p. 212. 3. Razumovskij, op. cit., p. 114.

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82 E: B. PÀSUKANIS

volvido, corresponde precisamen~e às relações sociais burgue­sas· capitalista. E claro que as fo~mas particulares de rela~ ções sociais não suprimem estas ·próprias relações e as leis que lhes servem· de fundamento. Assim, a apropriação de um produto no interior de uma dada formação social e graças às suas formas é um,fato fundamental, du, se qu!sermos, uma lei fundamental. Mas esta relação só a~sume a forma jurí­dica da propriedade privada em um determinado estágio de desenvolvimento das forças. produtivas e da divisão do tra­balho que lhe é correspondente. Razumovskij crê que, -ao fun­damentar a minha análise no conceito de sujeito, elimino, desta forma, de meus estudos as relações de domínio e ser­vidão, enquanto que, em realidade, a posse e a propriedade estão indissoluvelmente ligadas a estas relações. Não pretendo, de forma alguma, contestar este vínculo. Afirmo, apenas, que a propriedade somente se torna fundamento da forma jurídi­ca enquanto livre disposição de bens no mercado. A cate­goria sujeito serve, então, precisamente, como expressão_ geral desta liberdadé. O que significa, por exemplo, a propriedade jurídica da terra? ''Simplesmente, diz Marx, que o proprie­tário rural pode usar da terra como qualquer possuidor de mercadoria pode usar de suas mercadorias."4 Por outro lado, o capitalismo transforma precisamente a propriedade ·fundiária feudal em propriedade fundiária moderna, liberando~a intei­ramente das relações de domínio e servidão. O escravo é totalmente subordinado ao seu senhor e é precisamente por esta razão que esta relação de exploração não necessita de nenhuma elaboração jurídica particular. O trabalhador assa­lariado, ao contrário, surge no mercado como livre vendedor de sua força de trabalho e é por isso que a relação e explo­ração capitalista se mediatiza sob a forma jurídica de contrato. Eu creio que estes exemplos são suficientes para colocar em evidênc!a a importância decisiva da categoria sujeito na análise da forma jurídica.

As teorias idealistas do direito desenvolvem o conceito de sujeito a partir desta ou daquela idéia geral, isto é, de

4. Karl Marx, O Capital, L. III, cap. XXXVII, trad. francesa.

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 83

uma maneira puramente especulativa: ''o conceito fundamen­tal do direito é a liberdade ( ... ) O conceito abstrato de liber­dade é a possibilidade de se ·determinar a qualquer coisa ( ... ) O Homem é o sujeito de direito porque possui a possibilidade de determinar-se, porque possui uma vontade" .5 Igualmente em Hegel "a personalidade contém principalmente a capacidade de direito e constitui o fundamento (ele próprio abstrato) d~ direito abstrato, em conseqüência formal. Q imperativo de direito é então: seja uma pessoa e respeite ós outros como pessoas".6 E mais adiante: "O que é imediatamente diferente do espírito livre, e considerado este como em si, é a extrin­sidade em geral: uma coisa, qualquer coisa de não livre, sem personalidade e sem direito" .1

Mais adiante veremos em que sentido ~-- oposição entre a coisa e o sujeito nos fornece a chave para compreender a forma jurídica. A dogmática jurídica, ao contrário, serve-se deste conceito sob seu aspecto formal. Para ela o sujeito não é nada mais do que um ''meio de qualificação jurídica dos fenômenos, do ponto de vista de sua capacidade ou incapaci­dade em participar das relações jurídicas".8 A dogmática ju­rídica., por conseguinte, não coloca de forma alguma a ques­tão de porque o homem se transformou de indivíduo -zooló­gico em sujeito de direito. Ela parte da relação jurídica como uma fórma acabada, dada a priori.

A teoria marxista, ao contrário, considera historicamente toda forma social. Ela, portanto, se propõe por tarefa expli­car as ' condições materiais, historicamente determinadas, que tenham feito desta ou daquela categoria uma realidade. As premissas materiais dá comunidade jurídica ou das relações en­tre os sujeitos de direito foram definidas~ pelo próprio Mar:N,

5. G. F. Puchta, Kursus der.Institqtion,en, Leipzig, 1950, t. I, p. 4-9. 6. F. Hegel, Princípios da filosofia do direito, Leipzig. 1821, trad._

francesa na coleção Idéias, Gallimard, Paris, 1940, p. 84. Há tradução portuguesa (N. do T.). . J

7. Idem, p. 88. (N. do T.: Versão extraída da tradução portugue­sa: Guimarães Editores, trad. Orlando Vitorino, [s.d.], p. 63.)

8. Cf. Rozhdestvenskij, Teorija sub'ektivnych publicnych pravo (Teoria do direito público subjetivo), p. 6.

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no primeiro tomo de O Capital, mas apenas en passant, sob· a forma de indicações muito gerais. Estas indicações, con­tudo, contribuem muito mais para a compreensão do momen­to jurídico nas relações humanas do que qualquer tratado volumoso sobre teoria geral do direito. A análise da forma sujeito, em Marx, decorre imediatamente da análise da forma mercadoria.

A sociedade capitalista é antes de tudo uma sociedade de proprietários de mercadodas. Isto significa que as relações sociais dos homens no . processo de produção possuem uma forma coisificada nos produtos do trabalho que se apresen­tam; uns em relação aos outros como valores. A mercadoria é um objeto no qual a diversidade concreta ·das propriedades úteis torna-se; simpl_esmente, o envólucro coisifiCado da pro­priedade abstrata do valor, que se exprime como capacidade de ser trocada em uma proporção . determinada em relação a outras mercadorias. Esta propriedade se exprime como uma qualidade inerente às próprias coisas, em virtude de um tipo de lei natural que age indepe11dente dos homens, de maneira totabnente indiferente às suas vontades.

Mas se a merca.doria adquire o seu valor independente­mente. da vontade do sujeito que a produz, a realização do valor, no processo de troca, pressupõe, ao contrário, um ato voluntário, consciente, de parte do proprietário da mercado-. ria, ou, como diz Marx: "As mercadorias . não podem por si próprias irem ao mercado. nem trocar-se entre si. PreCisamos, então, voltar a nossa atenção para os seus guardiães e condu­tores, isto é, para os. seus possuidores. As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem nenhuma resistência ao homem. Se elas não estão com boa vc;mtade, ele pode em­pregar a força, em outros termos, apoderar-se delas.'19

.Assim, o vínculo so.cial entre os homens no processo de produção, vínculo reificado nos produtos do trabalho e sob a forma de uma legalidade elementar, exige, para a sua rea-

9. K. Marx, O Capital, l, cap. 11, p. 95. Ed. brasileira: Sito Paulo, Nova Cultural, 1988, 3.• ed., p. 79 El seg.

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lização, uma relação particular entre os homens enquanto in­divíduos que dispõem de produtos, enquanto sujeitos cuja "vontade habita nas próprias coisas".10 "O fato de que os bens econômicos contêm trabalho é uma propriedade que lhes é inerente; o fato de que·eles podem ser trocados é uma segun­da propriedade que só depende de seus proprietários, com a única condição de que estes bens sejam apropriáveis e alie­náveis."11 Eis por que, ao mesmo tempo em que o produto do trabalho reveste as propriedades da mercadoria e torna-se portador de valor, o homem torna-se sujeito de direito e por­tador de direitosY "A pessoa cuja vontade é declarada deter­minante é o sujeito de direito."13

A vida social, ao mesmo tempo, se desloca, por um lado, para uma totalidade de relações reificadas, nascendo espon­taneamente (como o são todas as relações econômicas: nível de preços, taxa de mais-valia, taxa de lucro, etc.), isto é,. re­lações nas quais os homens não têm outra significação senão que a de coisa e; por outro lado, para uma totalidade de rela­ções nas quais o homem somente é determinado na medida em que se oponha a uma coisa, quer dizer, é definido como sujeito. Esta é precisamente a relação jurídica. Tais são as formas fundamentais que, originariamente, distinguem uma da outra; mas que, ao mesmo tempo, condicionam-se mutuamente e estão estreitamente ligadas entre si. O vínculo social enrai­zado na produção apresenta-se simultaneamente sob duas for-

10. K. Marx, O Capital, I, cap. 11, p. 95. 11. R. Hilferding, Bohm-Bawerks Marx-kritik, Wien,. 1904, p. 54. 12. O homem enquanto mercadoria, isto é, escravo, torna-se re­

flexamente sujeito, desde que surja como indivíduo dispondo de coisas­mercadorias e participe da circulação (cf. sobre o direito dos escravos, quando da conclusão dos contratos no direito romano: I. A. Pokrovskij, Jstoriia rimskogo prava [Hist6ria do direito romano], t. 11, 2:- ed., Pe­trogrado, 1915, p. 294). Na sociedade moderna, ao contrário, o homem livre, quer dizer, o proletário, quando procura·, enquanto tal, um mer­cado para vender sua força ·de trabalho, é tratado · como um o~ e cai sob a dependência das l.ek. de imigração, sob o golpe das proibições, fixação de quantidades, etc., que regem as outras mercadorias introduzi· das no interior das fronteiras estatais. ,

13. B. Windscheid, Lehrbuch des Pandektenrecht, t. I, Frankfurt, 1906, § 49.

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mas absurdas, de um lado, como valor mercantil e, do outro, COlDO càpacidade do homem ser sujeito de direito.

Assim como a. diversidade natural das propriedades úteis de um produto só aparece na mercadoria sob a forma de sim­ples invólucro de seu valor e como as variedades concr~tas do trabalho humano se dissÓlvem no trabalho humano abstra­to, como criador de valor, igualmente a diversidade concreta da ,relação do homem com a coisa aparece como vontade abstrata do proprietário e todas as particularidades concretas, que distinguem um representante da espécie Homo sapiens de outro, se dissolvem na abstração do homem em geral, do ho· mem ·como sujeito d~ direito.

Se a coisa domina economicamente o homem, porque ela coisifica, a título de mercadoria, uma relação social que não está subordinada ao homem, este, em resposta, reina juridi­camente sobre a coisa, porque, ele próprio, na qualidade de possuidor e de proprietário, não é mais do que uma encar­nação do sujeito de direito abstrato, impessoal, um puro pro­duto das relações sociais. Segundo os termos de Marx; ''Para colocar estas coisas em relação umas com as oúiras, a título de mercadoria, os seus gÜardiães devem, eles próprios, se colo-­carem em relação entre si a título de pessoas cuja vontade habita nestas mesmas coisas, de tal forma que a vontade de ·Um é também. a vontade do outro e que cada um se apropria da mercadoria estranha, abandonando a sua, através de . um ato voluntário comum. Eles devem. portanto, reconhecer-se red­procamente como proprietáríos~privados.m4

·Evidentemente que a evolução histórica _da propriedade enquanto instituição jurídica, compreendendo todos os diver­sos modos de aquisição e proteção da propriedade, todas as modificações relativas aos· diversos objetos, etc., não se coh· sumou de maneira tão ordenada e coerente como á dedução lógica acima . mencionada. Mas somente esta dedução desven­da-nos o sentido geral do processo histórico.

Após ter caído em uma dependência do escravo· face às relações econômicas que nascem à sua frente sob a forma de lei do valor, o s_!:tieito econômic~ recebe, por assim dizer,

14. K. Marx, O Capital, I, cap. 11, p. 95. Ver nota 9.

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em compensação, agora, enquanto sujeito jurídico, Ulll- presente singular: uma vontade juridicamente presumida que o toma totalmente livre e igual entre os proprietários de mercadorias. "Todos devem ser livres e ninguém deve entravar a liberdade dos outros. Cada um possui o seu corpo como livre instru­mento de sua vontade.''15 Tal é o axioma do qual partem os t!!Qticos do direito natural; e esta idéia de isolamento, de vol· tar-se . sobre si próprio, da pessoa humana, deste "estado na· tural", de onde decorre "o conflito da liberdade até o .. infini­to"; corresponde adequadamente à produção mercantil na quál os produtores são formalmente independentes uns dos outros e somente estão vinculados entre si pela ordem jurídica arti­fieiálmente ·criada, Esta própria condição jurídicaj ou, para empregar as palavras do mesmo autor, "a existência .simultâ­nea de numerosas criaturas livres, que devem todas ser livres e cuja liberdade não pode entravar a liberdade dos outros", não é mais do que o mercado idealizado, transposto para as nuvens da abstração filosófica e liberado da grosseira empiria, . na qual se encontram os produtores independentes, pois, como nos ensina um outro filósofo: "no contrato comercial, as duas partes fazem o que querem e cada parte não exige para si mais liberdade do que aquela que .concede à otitra''Oi6

A crescente divisão do trabalho, a . melhoria das comu­nicações e o consecutivo desenvolvimento da troca fazem do valor uma categoria econômica, quer dizer, a encarnação das relações sociais de produção que dominam o indivíduo. Mas Ísto necessita·· que os difer~ntes atos acidentais de troca trans· formem-se em uma circulação ampliada e. sistemática de mer­cadorias. Neste estágio de desenvolvimento, o valor distin­gue-se das avaliações ocasionais, perde o seu caráter de fenô­meno psíquico individual e adquire uma significação econô­micá objetiva. As condições reais são necessárias, igualmentt, para. que o homem se transforme de indivíduo zooldgico em um sujeito de direito abstrato e impessoal, em uma pessoa jurídica. Estas condições reais são, .,de um lado, o estreita­mento dos vínculos soc!ais e, de outros, a: crescente pujança\

15. J. Ô. Fichte, Rechtslehre, Leipzig, 1912, p. 10. 16. H. Spencer, Social statics, Londres, ·1851, cap. XIII.

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da organização social, isto é, da organização de classe que atinge o seu apogeu no Estado burguês "bem ordenado". A capacidade de ser sujeito de direito destaca-se, então, defini­tivamente da personalidade concreta, viva, deixa de ser uma função de sua vontade consciente, eficaz, e torna-se uma sim­ples propriedade social. A capacidade de agir se abstrai da capacidade jurídica, o sujeito de direito um doublé na pessoa de um representante é adquire ele próprio a significação de um ponto matemático, de um núcleo no qual se concentra um. certo número de direitos.

A propriedade burguesa capitalista deixa, conseqüentemen-. te, ·de ser uma posse flutuante e instável, uma posse puramente de fato, que pode ser contestada a todo instante e que deve ser defendida de armas na mão. Ela se transforma em um direito absoluto, estável, que segue a coisa em todos os luga­res a que o acaso a atire e que, desde que a civilização bur­guesa estendeu a sua dominação sobre todo o globo, é pro­tegida no mundo inteiro pelas leis, pela polícia e pelos tri­bunaisP

17. O desenvolvimento do pretenso direito de guerra não é outra coisa além de" uma consolidação progressiva do princípio da inviolabi­lidade da propriedade ·burguesa. Até a ·época da Revolução Francesa a população civil era pilhada sem limites nem escrúpulos, tanto pelos seus próprios . soldados como pelos do inimigo. Benjamin Franklin foi o J'rimeiro a prociamar em 1785 o princípio político pelo quál nas guer­ras futuras "os camponeses, os. artesãos e os comerciantes devem poder continuar pacificamente as suas ocupações sob a proteção das partes be­ligerantes". Rousseau fixou, C()mo regra, no Contrato social que a guerra \ deve ser travada entre os Estados, mas não entre os cidadãos destes Estados. A legislação da Convenção punia muito severamente a pilha­gem praticada por soldados; tanto em seu próprio país como no estran­geiro. Somente em 1899, em Haia, é que os princípios da Revolução Fran­cesa foram erigidos em direito internacional. A eqüidade nos obriga a mencionar que Napoleão ·experimentou certos escrúpulos ao decretar o Bloqueio continental e que ele houve por bem justificar esta medida, em sua mensagem ao Senado, "que em conseqüência das hostilidades entre os soberanos faz sofrer prejuízo aos interesses de pessoas privadas" c "lembra as barbáries dos séculos passados''; quando da última guerra mundial, ao contrário, os governantes burgueses lesaram abertamente, sem nenhum escrúpulo, os direitos de propriedade dos cldadloa daa duas partes beligerantes.

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Neste estágio de desenvolvimento, a pretensa. teoria vo­litiva dos direitos subjetivos começa a se revelar inadequada. à realidadeY Prefere-se definir o direito em sentido subjetivo como "a parte de bens que a vontade geral atribui e garante a uma pessoa". A capacidade de querer e de agir não é re­quisitada nesta pessoa. A definição de Dernburg, bem enten­dido, aproxima-se bastante do universo intelectual dos juristas. modernos que operam com a capacidade jurídica dos defi­cientes mentais, dos recém-nascidos, das pessoas jurídicas, etc. A teoria da vontade, em compensação, equivale, em suas últi­mas conseqüências, à exclusão das categorias mencionadas, da relação dos sujeitos de direito.'? Dernburg está, sem nenhuma dúvida, muito mais perto da verdade, ao conceber o sujeito de direito como um fenômeno puramente social. Mas,· por outro lado, vê-se muito claramente por que o elemento da· vontade joga, na construção do sujeito de direito, um ·papel tão essencial. E. isto que Dernburg, em parte, também vê quando afirma que "os direitos, em sentido subjetivo, existi­ram historicamente muito antes da formação de um sistema estatal consciente de si próprio . . Eles estavam fundamentados ria personalidade dos indivíduos e sobre o respeito que eles souberam ganhar e impor pelas suas pessoas e seus bens . Foi somente pela abstração que se pôde formar progressivamente, a partir da concepção de direitos subjetivos existentes, o con­ceito de ordem jurídica. A concepção segundo a qual os di­reitos, em seu sentido subjetivo, são apenas a emanação do direito em seu sentido objetivo, é, portanto, não histórica e falsa".20 Evidentemente, somente aquele que não possui ape­nas uma vontade mas que detivesse também uma parte impor­tante do poder poderia "ganhar e impor o respeito". Contu­do, como a maior parte dos juristas, Dernburg tem igualmente a tendência a tratar o sujeito de direito enquanto "personali­·dade em geral", isto é, como uma categoria eterna situada fora das condições históricas determinadas. Deste ponto de

18. Cf. H. Dernburg, Pandeckten, t. I, Berlim, 1902, § 39. 19. Cf. em relação às pessoas jurídicas: Brinz, Pandeckten, t. 11,

p. '984. 20. H. Dernburg, op. cit., § 39.

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vista, o que é próprio do homem, como ser animado e pro­vido de vontade racional, é ser sujeito de direito. Em reali­dade a categoria sujeito do direito é evidentemente abstraída do ato âe ·troca que ocorre no mercado. :g~Ql:"~Ci~all1ente neste ato de troca que o homem realiza praticamente a liberdade formal de autodeterminação. A relação do mercado transfor­ma esta oposição entre o sujeito e o objeto em J,lm significado jurídico cparticular. o objeto é a mercadoria, o sujeito é o proprietário de mercadorias .que delas dispõe no ato de apro­priação e de alienação. g precisamente no ato de· troca que ·o sujeito manifesta, primeiramente, toda a plenitude de suas determinações. O conceito, formalmente mais acabado, de su­ieito, que doravante abrangerá apenas a capacidade jurídica; afasta-nos muito mais do significado histórico real desta cate­goria jurídica. :e por isso que é tão difícil aos juristas renun-

. ciar ao elemento voluntário ativo em suas .construções dos conceitos de "Sujeito" e de "Direito subjetivo".

A esfera de domínio que .envolve a forma do direito sub­jetivo é um fenÔmeno social que é atribuído ao indivíduo da mesma forma que o valor, outro fenômeno social, é atribuído à coisa enquanto produto do trabalho. O fetichismo da mer­cadoria é completado pelo fetichismo jurídico.

As relações entre os homens no processo de produção possuem em um determinado estágio de desenvolvimento, uma forma duplamente enigmática. Elas parecem, por um lado, como relações entre coisas (mercadorias) e, por outro lado, como relações de vontade entre unidades independentes umas das outras, porém iguais: como relações entre sujeitos de di­reito. Ao lado da propriedade mística do valor surge uni fenômenb não menos enigmático: o direito. Ao mesmo tem­po a relação unitária e total possui dois aspectos abstratos e . fundamentais: um aspecto econômico e um a~pecto jurídico. No desenvolvimento das categorias jurídicas a capacidade de efetuar atos de troca é apenas uma das diversas manifestações con<;retas da capacidade jurídica e da capacidade .de agir. His­toricamente, todavia, o ato de troca faz consolidar a idéia do sujeito como portador de todas as pretensões jurídicas possí­veis . :e apenas na economia mercantil que nasce a forma jurí-

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dica abstrata, em outras palavras, que ª_çapacidade geral de possuir direitos se separa das pretensões jurídicas concretas. Só a contínua transferência de direitos que ocorre no_ merca­do cria a idéia de um portador imutável destes direitos. No mercado, aquele que obr!ga, obriga-se simultaneamente. A todo momento ele passa da condição de credor à de. obrigado. Assim foi criada a possibilidade de abstraírem-se as diferen­ças concretas entre os. sujeitos de direito e englobá-los sob um único conceito genético.21

Da mesma fbrma que os atos de troca da produção mer­cantil ôésenvolvida foram precedidos por atos ocasionais e de formas primitivas de troca, tais como, por exemplo, as doações recíprocas; igualmente, o sujeito de direito, com a esfera de domínio jurídico que se estende à sua volta, foi precedido historicamente pelo 'indivíduo armado, ou, mais freqüentemente, por um grupo de homens (gens, horda, tribo), capaz de defender no conflito, na luta, o que para ele representa as suas próprias condições de existência. Esta estreita relação morfológica criou um vínculo evidente entre o tribuna) e o duelo entre as partes de um processe) e os pro­tagonistas de uma luta armada. Mas com o crescimento das forças sociais regulag()ras, o sujeito perde a sua concretização material. Em lugar de sua energia pessoal, surge a força da organização social, ou. seja, da organização de classe, que en­contra· a sua expressão ptais alta no Estado.22 ·A abstração

21. Na Alemanha, isto ocorreu apenas no momento da implantação do direito romano, como demonstra, a propósito, a i~existência de um termo alemão· para os conceitos de "pessoa" e de "sujeito de direito'' (cf. (). Gierke, Dat~ Peutsche Genossenschaftsrecht, 3 vol., Berlim, 1873; vol. 2: Geschichte des deutschen Korperschajtsbegrijfs, p. 30).

22. A partir deste momento a figura do sujeito de direito começa a não parecer mais o que ele é na realidade, isto é, o reflexo de uma relação que nasce sob os olhos dos homens, mas parece ser uma, invenção artificial da razão humana. Mas as próprias relações tomou-se tão habituais que parecem ser condições indispensáveis de toda comunidade. A idéia de sujeito de direito é uma construção artificial com a mesma significação para a teoria científica do direito, que possui a idéia do caráter artif~cial do dinheiro para a economia política. ·

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impessoal de um poder estatal agindo no espaço e no tempo com regularidade e continuidade ideal corresponde, então, ao sujeito impessoal e abstrato do qual é ·o reflexo.

. Este poder abstrato tem um fundamento bastante real na organização do aparelho burocrático, do exército permanente, das finanças, dos meios de comunicação, etc. A condição pré­via de todo este conjunto é o desenvolvimento correspondente das forças produtivas. Mas·, antes de se utilizar dos mecanis­mos· estatais, o sujeito apóia-se sobre a estabilidade e a conti· nuidade orgânica das relações . Assim como a repetição regular do ato de troca constitui o valor em uma categoria geral, que se eleva acima da avaliação subjetiva e de proporções ocasio­nais de troca, assim também a repetição regular destas mes­mas relações - o uso - confere um novo sentido à esfera

· subjetiva de domínio, dando um fundamento à sua existência por uma norma externa. O uso, ou a tradição, enquanto fun­damento supra-individual das pretensões jurídicas, corresponde à estrutura. feudal com seus li).nites e rigidez. A traâição ou o uso é por e!)sência qualquer coisa que está compreendida em uma área geográfica determinada, bastante restrita. Eis por que cada direito só se relaciona com um sujeito concreto ou a um grupo limitado de sujeitos . .No mundo feudal, cada direito era um privilégio, diz Marx. Cada cidade, cada estado social, cada corporação vivia segundo o seu próprio direito, o qual seguia o indivíduo onde quer que ele fosse. A idéia de um estatuto jurídico formal, comum a todos os dd11dãos, a todos os homens, era completamente estranha àquela época. ~sta situação correspondia, no âmbito econômico, a unidades econômicas fechadas, auto-suficientes, e à proibição de impor­tação e de exportação, etc .

''Jamais a personalidade possuiu um conteúdo inteiramen­te idêntico. Originalmente, o Estado, a propriedade, a profissão, o medo, a idade, o sexo, a força física, etc. levaram a uma desigualdade tão profunda da capacidade jurídica quo nllo se via, além destas diferenças concretas, nas quais a per1onulldade permanecia, apesar de tudo, idêntica a ela mesma."11 .

23. O. Gierke, op. cit., p. 35.

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A igualdade dos sujeitos somente era pressuposta para relações compreendidas em esfera relativamente pequena. Assim, os membros de um mesmo estado social, na esfera dos direitos dos estados, os membros de uma corporação eram iguais ·na esfera dos direitos corporativos. Nesta etapa o su­jeito de direito só ·aparece como portador abstrato de todas as pretensões jurídicas concebíveis na qualidade de titular de privilégios c.oncretos.

"No fundo, a proposição do direito romano, segundo a qual a personalidade é, em si, igual e a desigualdade apenas a conseqüência. de uma regra de exceção do direito positivo, não se impôs atualmente, seja na vida jurídica, seja na cons-ciência jurídica."24 ·

Dado que na Idade Média não havia o conceito abstrato de. sujeito de direito, a idéia de uma norma objetiva endere­çada a um círculo indeterminado e amplo de pessoas con­fundia-se,. igualmente, com a instituição de privilégios e de li­berdades concretas. No século XIII ainda não se encont.ta nenhum traço de representação clara da diferença existente entre direito objetivo' e direito subjetivo, ou possibilidade ju­rídica. Nos privilégios e nos f orais concedidos pelos impera­dores e príncipes às cidades, encontra-se, a cada momento, a confusão erttre esses dois conceitos. A forma habitual do estabe­lecimento de uma regra ou de uma norma geral é o reconheci­mento de qualidades jurídicas a um ãeterminado espaço terri­torial ou a uma parte da população. A célebre fórmula: Stadtluft macht/rei (o ar citadino torna livte) tinha igualmente este caráter, e a supressão dos direitos judiciários foi também realizada dà mesma forml:!. Ao lado de tais disposições, os direitos dos citadinos à utilização das florestas principescas ou

·imperiais foram concedidos de maneira . semelhante. No direito municipal pode-se observar a mesma mistura

de momentos subjetivos e objetivos. As cartas urbanas eram, em parte, regulamentos gerais e, em parte, a enumeração de direitos ou privilégios particulares atribuídos a grupos de de­terminados cidadãos.

24. Id., ib., p. 34.

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Apenas com o completo desenvolvimento das rellições .. burguesas é que o direito assumiu um caráter abstrato. Cada

-liomem torna-se um homem em geral, cada trabalho torna-se trabalho social útil em geral, cada indivíduo torna-se um su­jeito de direito abstrato.25 Ao mesmo tempo a norma assume, igualmente, a forma lógica acabada de lei geral abstrat!!.

O sujeito de direito é, em conseqüência, um proprietá­rio abstrato e transposto para as nuvens. Sua vontade,. em sentido jurídico, possui seu fundamento real no desejo de alienar ,na aquisição e de adquirir na alienação. Para que esse desejo se realize é necessário que os desejos dos proprie­tários de mercadorias concordem reciprocamente. Jurídica· mente esta relação exprime-se .como contrato, ou como acordo entre vontades independentes. I!. por isso que o contrato é um conceito central no direito~ ·Dito de· maneira mais enfática: o contrato representa um elemento constitutivo da idéia de direi­to. No ·sistema lógico. de conceitos jurídicos, o contrato nada mais é do que uma variedade do ato jurídico em geral, isto é, nada além do que um dos meios de manifestaÇão concreta da vontade com a ajuda da qual o sujeito age na esfera jurídic~ que o cerca. Histórica e concretamente, o conceito de ato jurídico é, ao revés, extraído do de contrato. Fora do con­trato os conceitos jurídicos de sujeito e vontade não são mais do que abstrações mortas. I! apenas no contrato que tais conceitos existem autenticamente. Ao mesmo tempo, a forma jurídica, em seu aspecto mais simples e -inais puro, recebe, · igualmente, no ato de troca, um fundamento material. O ato de troca concentra, por conseguinte, como um foco os momentos essenciais da economia política e do direito. Na troca, como diz :rvfarx, "a relação de vontade ou

25. "Uma sociedade na qual o produto do trabalho geralmente toma forma de mercadoria, e, onde, em . conseqüência, a relação mais geral entre os produtores consiste em comparar os valores de seus pro­dutos e, sob esta capa de coisas, em comparar os seus trabalhos privados com trabalho humano igual, uma tal sociedade encontra no cristianismo, com seu culto ao homem abstrato e, sobretudo, nos seus tipos burgueses, protestantismo. deísmo, etc., o complemento religioso mais conveniente" (Karl Marx, O Capital, I, cap. I, pp. 90-91. Ed. brasileira: Silo Paulo. Nova Cultural, 3.• ed., 1988, p. 45 e segs.).

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qoelação jurídica . é dada pela própria relação econômica". Uma vez nascida, a idéia de contrato tende a adquirir significação universal. Os possuidores de mercadorias, antes de se reccr nhecerem mutuamente como proprietários, já eram proprietá­rios, mas em sentido diferente, orgânico, extrajurídiço. "O reconhecimento recíproco" é umà tentativa de explicar, com a ajuda da fórmula abstrata do contrato, as forrp.as orgânicas de apropriação, que repousam ~obre o trabalho, a conquista, etc., que a sociedade de produtores, desde seu nascimento, já encontra constituídas. A relação entre o homem e a coisa é, em si, destituída de qualquer significação jurídica. E isto que os juristas percebem quando tentam dar à instituição da prcr priedade privada o significado de uma relação entre sujeitos, ou seja, entre homens. Mas constroem essa relação de ma­neira puramente formal e n€(_gativa, como uma proibição geral que exclui, à exceção do proprietário, de todos os outros in­divíduos o direito de usar é gozar dela.26 Certamente esta con­cepção é suficiente para os fins práticos da dogmática jurídica, mas é completamente inutilizável para a análise teórica. Nes­tas proibições abstratas, o conceito de propriedade perde toda a sua significação concreta e se separa de sua própria história pré-jurídica.

Mas se a relação orgânica, "natural", do homem com a coisa,· ou seja, a apropriação, forma o ponto de partida gené­tico do desenvolvimento, a ·transformação desta relação em uma relação jurídica ocorre sob a influência de necessidades

26. Neste sentido, por exemplo, B. Windscheid, Lehrbuch des Pendéktenrecht, Frankfurt, 1906, t. I, § 38, partindo do fato ~e que ci direito só pode existir entre pessoas e uma coisa, conclui: "o di­reito real só conhece proibições. O contetído da vontade que determina o direito real é um conteúdo negativo; aqueles que se encontram em face do titular do direito devem abster-se de agir sobre a coisa e não devem, com seu comportamento, obstruir a ação do titular do direito sobre ela~ :A conclusão lógica desta mªneira de examinar o problema é tirada por Schlossman (Der Vertrag), que considera o conceito de di­reito real unicamente como um "meio terminológico auxiliar". _H. Dem­burg (Pendektenrecht, tomo I, parágrafo 22, notas) sustenta, ao contrário, o ponto de vista segund<;> o qual "mesmo a propriedade, que se afigura como o mais positivo de todos os direitos, juridicamente não é mais do que um simples conteúdo negativo".

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criadas pela circulação dos bens, ou seja, essencialmente pela contpra e venda. Hauriou chama a atenção para o fato de que o comércio marítimo e o comércio das caravanas criara originalmente a necessidade de garantir a propriedade. A dis­tância que separava os comerciantes era a melhor garantia con­tra as pretensões abusivas. A formação de um mercado está­vel cr!ou a necessidade de JJIJla regulamentação do direito de di~por das mercadorias e, em conseqüência, do direito de pro· pí-iedade.27

O título de propriedade . no antigo dire~to romano, man­cipatio per aes et libram, mostra que ele. nasceu si~ultanea­mente com· o fenômeno ·da troca interna. Igualmente a suces­são hereditária só foi instituída como título de propriedade no momento em que as relações civis descobriram- um' interesse em tal transferência de bens.28

Na troca, para empregar os termos de Marx, um dos pro­prietários da mercadoria só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua com o consentimento do outro proprie­tário. ~ precisamente esta idéia que os representantes da dou­trina do direito natural querem exprimir ao tentar fundamen­tar ·a propriedade sobre um contrato originário. Eles têm razão, não porque tal contrato tenha existido historicamente, mas no sentido de que as fbrmas naturais ou orgânicas de apropriação revestem-se de um caráter de "razão" jurídica nas ações_ reei~ procas de aquisição e alienação. No ato de alienação, a reali­zação do direito de propriedade como abstração torna-se uma realidade. Qualquer emprego de uma coisa está ligado a seu 1tjpo concreto de utilização como bem de consumo oti bem de produção. Mas, quando a coisa atua como valor de troca, ela torna-se impessoal, um simples objeto jurídico, e o sujeito que dela dispõe, um simples sujeito de direito. Deve-se procurar a explicação na contradição existente entre a propriedade feudal e a pmpriedade burguesa em suas respectivas relações com a circulação. A principal falha da propriedade feudal, para os olhos do mundo burguês, não reside na sua origem

27. M. Hauriou, Princípios de direito público, p. 286. 28. ld., ib .• p. 287.

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(espoliação, violência, etc.), mas na sua imobilidade, na sua incapacidade de tornar-se uma garantia recíproca ao passar de uma mão à outra, pelo ato de alienação e aquisição. A proprie· dadé feudal ou corporativa . viola o princípio fundamental da sociedade burguesa: "igual oportunidade de acesso à desigual· dade". Hauriou, um dos juristas burgueses mais perspicazes, coloca, justamente em primeiro plano. a reciprocidade como garantia mais eficaz da propriedade e a que exige a mínima violência exterior. Esta reciprocidade garantida pelas leis do p1ercado dá à propriedade a sua característica de instituição ''eterna". A simples garantia política dada pelo aparelho de ~oação estatal reduz-se, ao· revés, à proteção de uma deter· minada situação· pessoal dos proprietários, quer dizer, a um momento que não possui significação de princípio; Na histó­ria, freqüentemente, a luta de classes provocou uma redistri· buiÇão da propriedade, bem como a expropriação dos usurá· rios e dos grand6s proprietários fundiários.29 Porém, estes con· tratempos1 tão desagradáveis quanto possam ter sido, para os grupos e classes que os sofreram, não puderam abalar os fun· damentos da propriedade. privada: o vínculo, ·mediado pela troca, das esferas econômicas. Os mesmos homens que ,.se in­surgiram contra a propriedade, .a afirmaram no dia em que se colocaram no mercado como ·produtores independentes. Tal foi o rumo de todas as revoluções não-proletárias. Tal é a conclusão lógica do ideal dos anarquistas que rejeitam as ca­racterísticas exteriores do direito burguês, a coerção estatal e as ~eis, mas que delxani subsistir a sua essência interna, o livre contrato entre produtores indepen'dentes.30

29. "Tanto é verdade, lembra Engels em certa ocasião, que há dois mil e quinhentos anos a propriedade privada só pode manter-se violando a propriedade." F. Engels, A origem da familia; da proprieda.de privada e do Estado. Stuttgart, 1884, trad:·rranc., Jeanne Stern, Ed. So­ciales, Paris, 1954, p: 107. Há edição brasileira da Editora Civilização Brasileira; 1975 (N. do T.). ,

30. Neste sentido, por exemplo, Proudhon explica: "Eu quero o contrato, mas não as leis; para que eu seja livre, todo edifício social deve ser construído sobre a base de um contrato recíproco" (P. J. Proudhon, A idéia geral da Revolução do século XIX, 1851, p. 138). Mas em seguida acrescenta: "A norma segundo a qual o contrato deve ser celebrado não repousará exclusivamente sobre o jurista, mas, também,

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Assim, apenas o desênvolvimento do mercado cria a ne­cessidaqe e a possibilidade de transformação do homem, que apropria-se das coisas pelo. trabalho (ou pela espoliação), em proprietário jurídico. Entre essas duas fases não existem fron· teiras claras. O "natural" passa imperceptivelmente para o "jurídico", da mesma maneira que o roubo à mão armada está estreitamente ligado ao comércio.

Karner tem outra concepção da propriedade. Segundo a sua definição, "a -propriedade é, de jure, o poder que a pessoa A tem de dispor da coisa N, a relação nua entre um indivíduo e uma coisa natural que não diz respeito a nenhuM outro indivíduo (sublinhado por mim, E. P.) e a nenhuma outra coisa; a coisa é uma coisa privada, o indivíduo urn iadivfduo privado, o direito é um direito privado. E assim que igual­mente se passam as coisas no período da produção mercantil simples".31

Toda esta passagem demonstra uma falsa compreensão do problema. Karner reproduz aqui as "robinsonadas" em vigor. Mas, pergunta-se, por que dois Robinsons, que ignoram m:utuamente as. suas existências, concebem suas relações com as coisas juridicamente, ao passo que esta relação é inteira­mente uma relação de fato . Este direito de homem isolado merece ser colocado .ao lado do famoso valor do ''copo d'água no deserto". Tanto o valor quanto o direito de propriedade são engendrados por um único e mesll1o fenômeno: pela Cir­culação dos produtos transformados em mercadoria. A pro­priedade jurídica nasce, não porque veio à idéia dos homens se atribuírem reciprocamente tal qualidade jurídica, inas por~ que eles não podem trocar mercadorias sem vestirem a más­cara jurídica. "O poder ilimitado de dispor da coisa nada mais é do que o reflexo da circulação ilimitada das merc.a• dorias".

sobre a vontade comum dos homens vivendo em comunidade. Esta vontade, em caso de necessidade, contemplará o respeito ao contrato. pela violêncja" (id., p. 293).

31. J. Kamer (pseudônimo de Karl Renner), Die soziale Funktion der Rechtsfnstitute, beson.ders des Eigentums, in: Marx-Studien, t. I 1904, p. 173.

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 99

Karner percebe que "vem à idéia do proprietário exercer a função jurídica da propriedade, alienando a coisa".32 Porém, ele não vê, de modo algum, que o "jurídico" começa exata­mente quando esta função .é ''exercida"; enquanto esta não existe, a apropriação não passa de simples apropriação natu­ral, orgânica.

Karner reconhece que "a compra e venda, o empréstimo, o crédito, a locação também existiram outrora, mas com exten­são, subjetiva e objetiva, restrita".33 Com efeito, essas diversas formas jurídicas de circulação dos bens existiram tão . precoce­mente que já se encontrava uma formulação precisa do emprés­timo e do empréstimo com garantia, antes mesmo da própria elaboração da fórmula jurídica da propriedade. Este simples fato nos fornece a chave para compreender corretamente. a natureza jurídica da propriedade.

Karner, ao contrário, crê que o homem, antes mesmo de comprar, de vendér ou hipotecar coisas e independentemente dis­to, já era proprietário. As relações que ele menciona parecem-lhe ser apenas ''instituições auxiliares, acessórios que preenchem as lacunas da propriedade pequeno-burguesa". Em outros ter­mos, ele parte da representação de indivíduos totalmente iso­lados, aos quais veio a idéia (não sabe por quê) de criar uma "vontade geral" e, em nome desta vontade geral, ordenar ·a todos que -se abstenham de tocar nas coisas que pertençam a outrem'. Após o que, esses Robinsons isolados decidem -tendo recorilíecido que o proprietário não pode ser conside­rado como ser universal, nem enquanto força de trabalho, nem enquanto 'consumidor - completar a propriedade com as ins­tituições de compra, venda, empréstimos, crédito, etc. Este esquema puramente ·racional inverte a evolução real das coisas e dos conceitos.

Karner simplesmente reproduz o sistema de interpretação do direito das Pandectas que leva o nome de Hugo Heyse e cujo ponto de partida é, igualmente, o homem que se submete aos objetos do mundo exterior (direito real), para, em segui~

32. Id .. ib .. p. 175. 33. I d., loc. cit.

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. da, passar à troca de serviços (direito das obrigações) e final­mente 'às normas que . regulam a situação do homem como membr-o de uma família e o destino de seus. bens após sua morte (direito de família e direito das sucessões). A relação do homem com uma coisa que ele próprio produziu, ou fur­tou, ou que constitui também uma parte de sua personalidade (jóias, armas), representa sem nenhuma dúvida, historicamen­te, um elemento do desenvolvimento da propriedade privada. Representa a forma originária, bruta e limitada dessa proprie­dade. Mas a propriedade privada somente assume um caráter acabado e universal com a passagem à economia mercantil ou, mais exatamente, à economia mercantil capitalista. Ela, então, torna..se indiferente ao· objeto e rompe todo o vínculo com as sociedades humanas orgânicas (gens, família, comuni­dade) . Ela surge em sua significação universal como." círculo exterior de liberdade" (Hegel), quer dizer, como realização prática da capacidade ·abstrata de ser sujeito de direito.

Sob a forma puramente jurídica a propriedade, logicamen­te, tem poucas coisas em comum com o princípi9 .orgânico e natural de apropriação privada como o resultado de um des­dobramento da força pessoal ou como condição de tim con­sumo e de um uso. pessoal. A relação do proprietário com a propriedade é - uma vez que toda a realidade econômica fagmentou-se no âmbito do mercado - abstrata formal, con­dicionada e racionalizada, agora .uma relação do homem com o produto de seu trabalho, por exemplo, um pedaço de terra cultivada pelo seu trabalho pessoal, representa algo de ele­mentar e compreensível, mesmo para o pensamento mais pri­mitivo.34

Se estas duas instituições, a apropriação privada como con­dição do uso pessoal livre, e a apropriação privada como con­dição da alienação ulterior no ato de troca, se unem uma à outra por um vínculo direto, elas constituem categorias dife­rentes, e o termo ''propriedade" cria, em relaç!o aos dois.

.34. Eis por que os defensores da propriedade privada gostam pllr· ticularmerite de apelar para esta relação elementar, pois sabem que a força ideolÓgica dessa relação ultrapassa em muito sua significação eco­nômica para a sociedade moderna.

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mais confusão do que certeza. A propriedade fundiária capi­talista não pressupõe qualquer modalidade de vínculo orgâni­co entre a. terra e seu proprietário. Aliás, ela não é conce­bível sem a sua transferência inteiramente livre de uma mão à outra.

O próprio conceito de propriedade fundiária surgiu jun­tamente com a propriedade fundiária e alienável. Os fundos de terra comuns das pastagens comunais não eram, em sua origem, propriedade de uma pessoa jurídica (tal conceito não existia) mas eram utilizados pelos membros da Marka enquan­to pessoa coletiva.35

A propriedade capitalista é, no fundo, a liberdade de transformação do capital de uma forma à outra, .a liberdade de transferência do capital de um círculo a outro, tendo em vista auferir o maior lucro possível sem trabalhar. Esta liber­dade de dispor da propriedade capitalista é impensável sem a existência de indivíduos despojados de propriedade, isto é, de proletários. ·A forma jurídica da propriedade não está em contradição com a exprqpriação de um grande número de ci" dadãos, pois a condição de ser sujeito de direito é uma con­dição puramente formal. Ela define todas as pessoas como igualmente "dignas" de serem proprietáriàs, não obstante não as torne proprietárias. Esta dialética da propriedade capi­talista está exposta de maneira grandiosa em O Capital, de Marx, seja quando ela assume a forma jurídica · "imu­tável", seja quando ela é fragmentada pela violência (no pe­ríodo da acumulação primitiva). As pesquisas de Karner, sob este ângulo, oferecem pouca novidade, se comparadas ao tomo I de O Capital. Mas onde Kamer quer ser original, semeia a confusão. Já demonstramos a sua tentativa de abstrair a propriedade do momento que a constituiu juridicamente, da troca. Esta concepção, puramente formal, acarreta um outro erro ao -examinar a . passagem da propriedade pequeno-burguesa para a propriedade capitalista, Karner declara que "a institui­ção da propriedade conheceu um rico desenvolvimento em tem­po relativamente curto, sofreu uma transformaçãó completa,

35. O. Gierke, op. cit., p. 146.

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fõem que fosse modificada em sua natureza jurídica" ;36 e con­clui, logo em seguida, que "a função social das instituições jurídicas muda, sem que se modifique a sua natureza jurídica".

Pergunta-se: a quais instituições se refere Karner? Se se trata da fórmula abstrata do direito romano, nada poderia mudar nela. Mas esta fórmula só regulou a pequena proprie­dade na época das relações burguesas capitalistas.· Se, ao re­vés, considerannos o artesanato corporativo e a economia ru· ral da época da servidão, encontraremos uma série de norm~s restringindo o direito da propriedade. Certamente pode-se obj~­tar que estas restrições foram todas de natureza jurídico-públi­ca e que elas não tocaram à instituição da propriedade como tal. Mas, neste caso, a afirmação se reduz acy que se segue: que uma fórmula abstrata determinada é igual a ela mesma. Por outro lado, as formas de propriedade feudal e corpora­tiva, ou seja, formas limitadas de propriedade, já manifesta­vam a sua função: a absorção do trabalho não pago. A pro­priedade da produção mercantil simples que Karner opõe à forma capitalista de propriedade é uma ábstração tão evidente como a própria produção mercantil simples. Pois a transfor· mação de uma parte. dos produtos em mercadorias e o surgi­mento do dinheiro criam as condições para o surgimento do capital usurário que, segundo. a expressão de Marx, ''faz parte com o capital comercial, seu irmão gêmeo, das fonnas ante­diluvianas do capital, que precedem longamente o modo de produção capitalista e se reencontram nas · diversas estruturas sociais mais diversàs, do ponto de vista econ0mico".37 Nós po­demos concluir, em conseqU!ncia, contrariamente a Karner, que as normas modificam-se, mas a funçlo social permanece imodificada . ·

Em razão da evolução do modo de produç,ão capitalista, o proprietário destaca-se, progressivamente. dàs funções téc·

. . ' nicas da· produção e, assim; perde o domínio jurídico total sobre o capital. Em uma sociedade comercial, o capitalista individual só possui um título relativo à uma quota-parte

36. J.'Kamer, op. cit., p. J66. 37. Karl Marx, O Capital, L. li I, cap. XXXVI.

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determinada, obtendo uma retirada sem trabalhar. Sua ati­vidade econômica e jurídica enquanto proprietário é quase inteiramente limitada ao consumo improdutivo. A massa prin­cipal do capital torna-se uma força de classe impessoaL Na medida em que esta massa de capital participa da circulação mercantil, o que supõe a autonomia de suas diferentes partes, estas partes autônomas aparecem como propriédade de pes­soas jurídicas. Em realidade é um grupo relativamente restrito de grandes capitalistas que dispõem de grande massa do ca­pital e que, ademais, não operam diretamente, mas por inter· médio de representantes ou procuradores estipendiados. A for· ma· jurídica distinta da propriedade privada não reflete mais a real situação das coisas, sendo certo que, por métodos de participação e controle, etc. , a dominação efetiva se estende muito além dos quadros simplesmente jurídicos. Aproxima­mo-nos, então, do momento em que a sociedade capitalista se encontra madura para transformat-se no seu contrário. A con• dição política indispensável para tal transformação é a revo­lução de classe do proletariado.

Porém, antes desta transformação, o desenvolvimento do modo de produção capitalista, edificado sobre o princípio de livre concorrênciá, transforma este princípio em seu contrário. O capitalismo monopolista cria . as premissas de um outro sistema econômico no qual o movimento de produção e da reprodução social se realiza, não por meio de con­tratos particulares entre unidades econômicas autônomas, mas

· graças a uma organização centralizada e planificada. Esta organização é. criada pelos trusts, cartéis e outras uniões mo­nopolistas. A simbiose, observada durante, a guerra entre as orgaQ.izações capitalistas privadas e as organizações estatais, em uni podemso sistema de capitalismo de Estado burguês re­presenta uma realização destas tendências. Esta transformação prática na vida jurídica não poderia passar despercebida na teoria. Na aurora de seu desenvolvimento, o capitalismo in­dustrial envolveu. o princípio de subjetividade jurídica em uma certa auréola, exaltando-o como uma qualidade absoluta da personalidade humana. Presentemente, começa-se a . conside­rar este princípio como uma simples determinação técnica que

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permite ''delimitar os riscos e as responsabilidades" ou entlo 11ão apresentados; unicamente, como uma hipótese especula· tiva, ·destituída de qualquer fundamento· real. Como esta ten· dênda -desfere seus golpes contra o individualismo, adquiriu ·a simpatia de diferentes marxistas que pensaram encontrar nela elementos de uma nova teoria ''social" do direito correspOlJ.· dente aos interesses do proletariado. Tal juízo certamente, tes­temunha uma posição puramente formal em relação ao assunto,· sem considerar-se ·que as teorias mencionadas não fornecem nenhum ponto . de partida para uma verdadeira concepção so­ciológica das categorias individualistas do. direito burguês e que, alem do mais criticam este individualismo não do ângulo da concepção proletária do socialismo, mas do ponto, de vista da ditadura do capital financeiro .. A significação social destas doutrinas é a justificação do Estado imperialista moderno e que este empregou especialmente . durante a última guerra.38

Justifica-se assim, porque não é espantoso que um jurista ame­ricano chegue,. sobre a base dos ensinamentos da última guerra mundial, a guerra mais reacionária e mais criminosa da his­tória moderna, a conclusões de ressonância· "sociálista": "os direitos individuais à vida, à liberdade, à propriedade · não possuem nenhuma espécie de existência absoluta ou abstrata; sãó direitos que só existem do ponto de vista legal, porque~ o Estado garante-os, e que, em conseqüência, são inteiramente subordinados ao poder do Estado" .39

A tomada do poder político pelo proletariado é a con­dição fundamental do ~ocialismo. Mas a experiência mostrou que a·· produção e a distribuição organizadas e planificadas não podem substituir imediatamente, da noite para o dia, as trocas mercantis e a ligação das diferentes unidades econômi­cas pelo mercado. Se isto fosse possível, a forma jurídica da propriedade estaria, também, superada historicamente. Ela teria encerrado o seu ciclo de desenvolvimento, retornando ao seu ponto de origem: aos objetos de uso individual e imediato;

38. Trata-se da Primeira Querra Muqdial (N. do T.). 39. E. A. Hardman, "A propriedade inimiga na Am6rloa", 1111 Tltl

American Journal of Internatiof}al_ Law, 1924, t. I, p, 202;

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 105

isto é, ele deveria .estar transformado em uma relação elemen­tar da prática social. Mas, assim, a forma jurídica em geral estari~;~ condenada à morte.40 Enquanto não for resolvida a tarefa de edificação de uma economia planificada única, en­quanto perdürar o vínculo do mercado entre as diferentes em­presas e grupos de empresas~ a forma jurídica igualmente per- . durará. Também não é necessário mencionar que (a forma da propriedade privada dos meios de produção na pequena eco­nomia camponesa e artesanal permanece praticamente intoca­da no período de transição. Mas, igualmente, na grande indús­tria nacionalizada a aplicação do princípio do ''cálculo econô­mico" significa a formação de unidades autônomas cujo vín· culo, com as outras unidades econômicas, é mediatizado pelo mercado.

Na medida em que as empresas estatais estão submetidas às condições da circulação, as suas inter-relações não assumem a forma de uma coordenação técniCa, mas a de contratos . E a regulamentação puramente jurídica das relações torna-se, por­tanto, igualmente possível e necessária. E mais, a direção imediata, a direção técniCo"administrativa, que indubitavelmen­te se reforça com o tempo, igualmente subsiste pela subordina­ção a um plano econômico geral. Assim nós temos, de um lado, uma vida econômica que se desenvolve em categorias econômicas naturais e relações sociais entre unidades de produção que surgem sob um forma racional, hão mascarada (isto é, sem a forma merzantil). A isto correspondem métodos de diretivas imediatas, quer dizer, de determinações técnicas sob a forma de programas, de planos de produção, de distribuição, etc. Tais diretivas são concretas· e mudam continuamente, à medida que se transformam as condições. Por outro lado, temos mercado­rias circulando sob a forma de valor. e, por conseguinte, uma ligação entre as unidades econômicas, que se exprime sob a forma de contrato. A isto corresponde, então, a criação de

40. O processo ulterior de superação da forma jurídica limitar-se-ia· à passagem progressiva da distribuição do equivalente (para uma certa soma de trabalho uma certa soma de produtos soCiais) à realização da fórmula do comunismo desenvolvido "a cada um segundo a sua capa­cidade, a· cada um segÚndo a sua necessidade" .

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limitações e regras formais jurídicas entre sujeitos autônomos (código civil e talvez o código comercial), e a criação de _ór­gãos que ajudem a realizar praticamente essas relações, regu­lamentando os litígios (tribunais, juízos arbitrais). B eviden­te que a primeira tendência não oferece qualquer perspectiva para o desabrochar. da disciplina jurídica. A vitória progres­siva desta tendência significará o desaparecimento da forma jurídica em geral. Pode-se objetar que um programa de pro­dução é, também, uma norma de direito público, uma vez que procede .do podêr estatal, que possui uma força de coerção e que cria direitos e obrigações, etc. Certamente que, na me­dida em que a nova sociedade é edificada sobre os elementos da antiga sociedade, isto é, a partir de homens que concebem os vínculos sociais ape11as como meios para seus fins privados, as simples diretivas técnicàs racionais revestir-se-ão igualmente da forma de uma força estranha ao homem e situada acima dele. O homem político será ainda um ''homem abstrato, arti­ficial", segundo a expressão de Marx. Mas, quanto mais as relações mercantis e o incentivo do lucro forem sendo radi­calmente suprimidos da esfera da produção, mais rápido soa­rá a hora desta libertação definitiva de que Marx falou em seu ensino sobre A Questão Judaica: ''somente quando o ho­mem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forces propres como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política; somente então se processa a emancipação humana".41

Tais são as perspectivas de um futuro distante. No que conceme ao nosso período de transição, devemos indicar o que se segue. Se à época da dominação do capital financeiro anônimo, as oposições de interesse entre os diferentes grupos capitalistas (que dispõem de seu capital e do capital alheio) subsistem, ao contrário, no capitalismo de Estado proletário,

41. Karl Marx, A Questão Judaica, São Paulo, Ed. Moraes, [s/d.], p. 52 (N. do T.).

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não obstante a sobrevivência da troca de mercadorias, as opo­sições de interesses são suprimidas no interior da indústria nacionalizada, e a separação ou autonomia dos diferentes or­ganismos econômicos (segundo o modelo de autonomia da eco­nm:nia privada) só é mantida como método. Desta maneira as relações econômicas quase privadas que nascem entre a indús­tria estatal e as pequenas economias, assim como entre as dife­rentes empresas e grupos de empresas · no interior da própria indústria estatal, são mantidas em limites muitos estritos, que são determinados a cada momento pelos sucessos obtidos no âmbito da direção econômica planificada. B por isso que a forma jurídica enquanto tal não contém em nosso período de transição estas possibilidades ilimitadas que a ela sé oferecem na sociedade burguesa capitalista em seu início. Ao contrário, fechamos temporariamente seu horizonte limitado; ela somente existe para esgotar-se de~initivamente.

A tarefa da teoria marxista consiste em verificar estas conclusões gerais e em prosseguir o estudo dos dados históri­cos concretos. O desenvolvimento não ocorre de maneira igual na sociedade. Eis por que um trabalho minucioso de obser­vação, de comparação 'e de análise é indispensável. Somente quando tivermos estudado a fundo o ritmo e a forma da su­pressão das relações de valor na economia e ao mesmo tempo o desaparecimento dos momentos jurídicos privados na éstru­tura jurídica e finalmente a dissolução progressiva da própria superestrutura jurídica condicionadà por estes processos fun­damentais, é que poderemos dizer que explicamos pelo menos um aspecto do processo de edificação da cultura ·sem classes do futuro.

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Capítulo Cinco

DIREITO E ESTADO .

A relação jurídica não pressupõe "naturalment~" um es­tado de paz; assim como o comércio não exclui em sua origem o roubo à mão armada, mas, pelo contrário, caminha de mãos dadas com ele. O direito e o arbítrio, estes dois con­ceitos aparentemente opostos, em realidade, são estreitamente vinculados entre si. Tal assertiva é correta não só para os períodos mais antigos do direito romano, mas também para os períodos ulteriores. O direito internacional moderno possui uma parcela muito importante de arbítrio (retorsões, represá­lias, guerras, etc.). Mesmo no Estado burguês "bem ordenado" a materialização dos direitos, segundo a opinião de um jurista tão perspicaz como Hauriou, tem lugar para cada ddadão, por sua própria conta e risco. Marx formula este raCiocínio de maneira ainda mais clara em sua Introdução geral à crítica da economia política: "Faustrecht (o direito do mais forte) é igualmente um direito."1 Não é um paradoxo,. pois o direito é, como toda troca, um meio de ligação entre elementos sociais apartados. O grau da separação pode ser historicamente maior ou menor, mas não pode desaparecer inteiramente. Assim sen­do, as empresas pertencentes ao Estado soviético cumprem uma tarefa coletiva; mas como, em seu trabalho, devem ater-se aos métodos do mercado, cada uma possui seus interesses par­ticulares. Opõe-se entre si como ~Õmpradoras e vendedoras,

· 1. K. Marx, Introdução geral à. crítica da Economia política, 1857, em Contribuição à crítica da Economia política, . trad. Maurice Husson e Gilbert Badia, Ed: Sociales, Paris, 1967, p: 153. Ver nót~ 6 do cap. um.

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agindo por iniciativa própria e devendo, portanto, manter rela­ções juridicas. A vitória final dá economia planificada fará de sua ligação recíproca uma ligação exclusivamente técnico· racional e liquidará a "personalidade jurídica" delas. Quan· do apresentamos a relação jurídica como uma relação orga­nizada e bem regulada, identificando assim o direito e a ordem jurídica, esquecemos que, em realidade, a ordem não é mais que uma tendência e o resultado final (ainda imperfeito), mas nunca o ponto de partida e a condição da relação jurídica. O próprio estado de paz que parece ser contínuo e uniforme no pensamento jurídico abstrato não existia enquanto tal nos estágios iniciais do desenvolvimento do direito. O antigo di­reito germânico . conheceu diferentes graus de paz: faz em casa, paz no seu feudo, paz na vila. O grau deste estado de paz exprimia-se pelo grau de gravidade da pena que atingia aquele que a violava. ·

o estado de paz tornou-se uma necessidade quando a tro­ca tornou-se um· fenômeno regular. Dado que as garantias para a manutenção da paz eram insuficientes, os trocadores preferiam não se encontrar pessoalmente, mas examinar as mercadorias na ausência da outra parte. Contudo, em geral, o comércio exige que não apenas as mercadorias se encontrem, mas que também as pessoas o façam. Na época da ordem gentílica, tcdo estrangeiro era considerado inimigo; era uma presa entre os animais selvagens. Somente os costumes de hospitalidade davam oportunidade a relações com tribos es­trangeiras. Na Europa feudal a Igreja tentou referendar as guerras privadas ininterruptas ao proclamar a "trégua de Deus".2

Ao mesmo tempo os mercados e centros comerciais come· çaram a gozar privilégios particulares. Os mercadores que se dirigiam ao mercado obtinham salvo-conduto e a sua proprie·

2. É interessante observar que a Igreja, pelo simples fato de pro. clamar por alguns dias a "trégua de Deus", sancionou efetivamente o guerra privada. No século XI foi proposta a supressão total da1 JUDrrn• privadas. Gérard, bispo de Cambrai, protestou energ~camente contrA 11

idéia, dizendo que a trégua de Deus permanente. contradizia 111 natUI'117.H humana" (cf. S. A. Kotljarevskij, Vlast' i pravo [Autorldldl 1 dlr~ltol, Moscou, 1925, p. 189). ·

,._ ...... _________ _

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 111

dade era protegida contra o confisco arbitrário, enquanto que juizados especiais asseguravam a execução dos contratos . Assim nasceu um "jus mercantorum" especial ou um "jus fori", que se tomou o fundamento do direito municipal ulterior.

Inicialmente as feiras e os mercados eram partes· inte­grantes dos domínios feudais e simplesmente serviam de fonte de lucros avantajados para o senhor feudal do local. Tão logo era acertada a paz do mercado, em uma localidade qual­quer, esta destinava-se apenas a encher os cofres do senhor feudal e, por conseqtiência, a servir aos seus interesses pri­vados. Mas, na medida em que o poder feudal assumia o papel de garantidor da paz, indispensável aos cont~;atos de troca, assumia, graças às suas novas funções, um caráter pú­blico totalmente novo em relação às suas atribuições anterio­res. O poder de tipo feudal ou patriarcal não conhece fron­teiras entre o privado e o público. Os direitos públicos do senhor feudal em relação a seus servos eram ao mesmo tempo os seus direitos como proprietário privado; · inversamente os seus direitos privados podi~m ser interpretados, se assim o quisesse, como direitos políticos; ou seja, públicos. Igual­mente, o "jus civile" da Roma ·antiga é interpretado· por muitos juristas {Gumplowicz, por exemplo) como direito pú­blico, pois seus fundamentos e fontes estavam na integração do indivíduo a uma organização. gentílica determinada. · Na realidade trata-se de uma forma jurídica embrionária que ain­da não desenvolveu em si própria as determinações opostas e correlativas, de "direito privado" e "direito público". :e por isso que todo poder que porta os traços de relações pa-, triarcais ou feud~is é caracter;zado, também, pela predomi­nância do elemento teológico sobre o elemento · jurídico. A interpretação jurídica, racional, do fenômeno do poder só é possível com o desenvolvimento da economia monetária e do comércio. Apenas estas fornias econômicas enquadram a po­sição entre a vida pública e a vida. privada, que assume, com o passar dos tempos, um caráter "eterno" e ''natural" e cons­titui o fundamento da teoria jurídica do poder.

o estado moderno, no sentido burguês do termo, nasce no momento em que a organização do poder de grupo ou de

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classe engloba relações mercantis suficientemente extensas.3 Em \Roma o comércio com os estrangeiros, peregrinos etc., exigia \o reconhecimento da capaéidade jurídica das pessoas que não pertenciam à organização gentílicà·. ISto já pressupunha à dis­tinção entre o direito público . e o direito privado.

' O divórcio entre o princípio de direito público de sbbe" rania territorial e o princípio de proptiedade privada da terra consumou-se na Europa medieval mais cedo e mais plena­mente nos limites das vilas. Ali as obrigações reais e pessoais inerentes à terra se diferenciavam,- mais cedo do que no~ cam. po, em impostos e encargos em benefício da comunidade urba~ na, bem como em rendas auferidas sobre a propriedade pri-vadá.4 ·

A dominação de fato ganha um caráter pronunciado de direito público assim quer nascem a seu lado, e independentes de si, relações vinculadas ao ato da troca, que são relações privadas por excelência. Na medida em que a autoridade se mostra como garante destas relações, ela transforma-se numa autoridade social, em poder público, que representa o inte­resse impessoal da ordem.5

O Estado, enquanto organização do poder de classe e en­quanto organização destinada a realizar guerras externas, não necessita de ·interpretação jurídica é não a permite . de forma alguma. ~ um domínio no qual reina a chamada razão de Estado que não é outra coisa que simplesments::. o princípio da oportunidade. Em sentido inverso: a atitpridade como ga­rante da troca mercantil só pode ser expressa na linguagem qo direito, apresenta-se a si própria como direito e somente

3. Cf. M. Hauriou, op. cit., p. 272. 4. Cf. O. Gierke, op. cit., p. 648. 5. Na realidade os S!lnhores feudais ocidentais; tanto quanto os

príncipes russos, jamais foram· conscientes desta mis11ão e ocons!deravam as suas funções de guardiães da ordem, única e . exClusivamente, como uma. fonte de renda; . os ulteriores .historiadores burgueses', contudo, não deixaram ·de atribuir motivações imàgfnárias aos senhores feudais .e aos príncipes ·russos, pot's para estes historiaJfores as relações burguesas e o caráter público do poder que daí advêm possuem' valor. como normas eternas.

• 1 gt&n .. i;,:u. ------- ·-·-·-·-------

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 113

como direito, isto é, confunde-se totalmente com a norma ~bjetiva abstrata.6

Qualquer teoria jurídica · do Estado que queira alcançar todw; as funções do Estado é, no presente, necessariamente inadequada. Não pode ser o reflexo fiel de todos os fatos da vida do Estado e apenas parece uma reprodução ideoló-gica, deformada, da realidade.

A dominação de classe, em sua forma organizada como em sua forma ,desorganizada, é muito mais ampla do que o do­mínio que podemos ·designar como sendo a esfera oficia:! da dominação do poder estatal. A dominação da burguesia se exprime tanto na dependência do governo aos bancos· e gru­pos capitalistas quanto na dependência de cada trabalhador particular em relação ao seu empregador, e no fato de que os funcionários do aparelho de Estado são intimamente vin­culados à classe dominante. Todos estes fatos, cujo número poderíamos multiplicar até o infinito, não possuem qualquer expressão jurídica oficial mas concordam, em sua significação, com os fatos que possuem expressão jurídica muito oficial; tal como a subordinação dos mesmos operários às leis do Es­tado burguês, às ordens e decretos de seus organismos, ao julgamento de seus tribunais, etc. Ao lado da dominação de classe direta e imediata constitui-se uma dominação mediata, refletida sob a forma do poder oficial do Estado enquanto poder particular destacado da sociedade. Assim surgiu o pro­blema do Estado que oferece tanta dificuldade à análise quan­to o problema da mercadoria.

6. De resto, a norma objetiva é apresentada como convicção ge­ral dos indivíduos a ela ·submetidos. O direito seria a· convicção geral das pessoas _que mantêm relações jurídicas. O nascimento de uma situa­ção jurídica seria, por conseqUência, o nascimento de uma convicção geral que teria uma força coativa e que exigiria ser executada (G. F. Puchta, Vorlesungen über das heutige rõmische .Recht). Esta fórmula em uma aparente universalidade não é mais· do que o reflexo ideal das con­dições de relações mercantis. Sem estas últimas, tal fórmula não· tem qualquer sentido. Ninguém ousaria pretender que,. por exemplq, a situa­ção jurídica dos hilotas em Esparta fosse resultado das suas convicções gerais tornadas força coativa (cf. Gumplowicz, Rechtsstaat und Sozialis­mus).

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114 E. B. PASUKANIS

Engels, em seu livro A Origem da Famtlia, da Propriedadé Privada e do Estado, considera o Estado como a expressão do fato de que a sociedade se encaminhou para contradições de classe insolúveis. "Mas, diz ele, para que os antagonistas, as classes com interesses econômicos apostes, não se consu­mam, elas e a sociedade, em uma luta estéril, impõe-se a ne­cessidade de um poder que, na aparência, posto acima da so­ciedade, cesse o conflito, mantenha-o nos limites da 'ciJdem'; e este poder, nascido da sociedade, e que se coloca acima dela, e que cada vez mais se torna estranho à própria sociedade, é o Estado".' Nesta exposição existe um ponto. que não está muito claro e que aparece, na seqüência, quando Engels diz que o poder de Estado deve- cair naturalmente nas mãos da classe ·mais forte que, ''graças a ele, toma-se a classe politi­camente dominante".8 Esta frase nos de.ixa supor que :o poder de Estado não nasce· como uma I orça de classe, mas como algo situado aeima das classes, que salva a sociedade da de­sagregação e que só se torna objeto da usurpação após ·um golpe. Tal concepção contradiz as realidades ·históricas. Sa­bemos que o aparelho do poder de Estado foi sempre_ criado pela classe dominante. Acreditamos que o próprio Engels teria rejeitádo tal interpretação de suas palavras. Mas de qualquer forma a sua formulação não é muito clara. Segundo ela, o Estado surgiu porque de . outrà forma. as·· classes se bateriam em uma luta encarniçada na qual perigaria toda a sociedade. Em conseqüência, o Estado nasce desde que alguma das duas classes em luta não seja capaz de obter uma vitória decisiva. Neste caso, das duas uma: ou bem o Estado estabelece esta rela­ção de equilíbrio e, então, seria uma força acima das classes, o que não podemos admitir; ou bem ele é o resultado· da vitória de uma das classes. Neste caso, contudo, a necessidade do Estado para a sociedade desaparece, uma vez . que, com a vi­tória decisiva de uma classe,. o equilíbrio é restabelecido e a sociedade é salvá. Por detrás de todás estas contr~vérsias se

7. F. Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), trad. franc. Ed. Sociales, p. 156. Ed. brasileira: Civilização Brasileira, Rio, 1975.

8. Id., ib., p. 157.

~ TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 115

esconde uma questão fundamental: porque a dominação de classe não se apresenta tal qual ela é, a saber, a sujeição de uma parte da população à outra? Porque assume a forma de umá domin,ação estatal oficial ou, o que vem a ser o mesmo, porque o aparelho de coação estatal não -se constitui como aparelho privado das classes dominantes, porque ele se des­taca destas últimas e assume a forma de um aparelhei de poder público impessoal, distante da sociedade?9

Não podemos nos contentar com a explicação segundo a qual é vantajoso para a classe dominante exigir uma tela ideo­lógiCa· e esconder a sua dominação de classe atrás de barrei­ras do Estado. Pois bem, ainda que taf explicação seja, sem dúvida, correta, ela não nos explica por que tal ideologia pode nascer e, conseqüentemente, também, por que a classe domi­nante pode servir-se dela. A utilização consciente das formas ideológicas é, com efeito, diferente de suas origens, que são geralmente independentes da vontade dos homens. Se quiser­mos pôr a nu as raízes ·de uma determinada ideologia, ·devemos buscar as relações reais das quais ela é expressão. Nos rende­remos então à diferença fundamental que existe entre a inter­pretação teológica e a interpretação jurídica do conceito de ''poder de Estado". No primeiro caso, temos que constitui um fetichismo da mais pura espécie; é por isso que não tería­mos êxito em tentar descobrir nas representações e nos con­ceitos correspondentes outra coisa além do desdobramento ideológico da realidade, ou seja, destas mesmas relações de dominação e de servidão. A concepção jurídica, ao contrário, é uma concepção unilateral cujas .abstrações exprimem apenas um dos aspectos do sujeito realmente existente, isto é, da sociedade de produção mercantil.

Em seu Problemy marksistskoj teorii prava, I. P. Razu­movskij me recriminou por colocar sem razão as questões da

9. Em nossa época, na qual as lutas revolucionárias intensificaram­se, podemos observar como o aparelho oficial do Estado burguês cede lugar aos bandos fascistas, etc. Isto prova mais uma vez que, desde que o equilíbrio da sociedade seja desestabilizado, esta não busca sua re­cuperação na criação .de um poder situado acima das classes, mas na tendência maxima de todas as forças de classe em luta.

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116 E. B. P ASUKANIS

dominação e da servidão na esfera indeterminada do "desdo­bramento da realidade" e de não enquadrá-las, na análise das categorias do direito, local que lhe seria conveniente. O fato de que o pensamento religioso ou teológico representa um "desdobramento da realidade" parece-me, após Feuerbach e Marx, não é mais necessário ser posto em discussão. Eu não vejo nadá de indeterminado; ao contrário, a coisa é muito simples: a submissão do servo ao senhor feudal foi a conse­qüência direta e imediata do fato de que o senhor feudal era um grande proprietário de terras e qu,é ·dispunha de umà fórça armada. Esta . dependência imediata, esta relação de domina­ção de fato, 'progressivamente adquiriu um véu ideológico: o poder do senhor feudal · foi progressivamente deduzido de uma autoridade divina e supra-humana: "nenhuma autoridade que não emane d~ Deus". A subordinação do operário assala" riado ao capitalista e sua dependência em relação ao patrão existe igualmente sob a forma imediata: o trabalho morto acumulado domina o trabalho vivo. Mas a subordinação deste operário ao Estado capitalista não é idêntica à sua dependên­cia em relação ao cap!talista singular que é simp!esmente dis­solvida sob uma forma ideológica. Não ·é 'a mesma cOi~a, em primeiro lugar, porque aqui existe um aparelho particular. sepa· rado' dos representantes da classe· dominante,· situado acitl;la de cada. capitalista .singular e que figura como uma força iil,lpes­soal. Não é ·a mesma coisa, em segundo lugar, porque esta fOrça impessoal não intermedeia cada relação de exploração. Com efeito, o assalariado não é coagido política e juridicamente a tr'abalhar para um ·empresá:rio determinado, mas vende-lhe a. força de trabalho mediante um contrato livre. Na medida etn que a relação dé exploração se realiza fol'Qlalmente -como re~ lação entre dois proprietários de mercadorias "independentes'' e "iguais", onde um, o proletário, vepde sua força de trabalho . e o outro, o capitalista, compra-a, então o poder político de classe JX>de assumir a. forma de· um poder público.

O princípio da concorrência que dirige o mundo bur­guês-capitalista não. permite, como já dissemos, nenhuma pos­sibilidade de vincular o poder político .ab empresário indivi­dual (como no feudalismo, onde este poder es1ava vinculado

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 117

à grande propriedade fundiária) . "A livre. concorrência, a li­berdade de propriedade 'privada 'a igua!d~de de direitos' ~o mercado, e a garanti;t da existência· da classe ·unicamente romo tal, criavam uma nova forma de poder estat~l, i a democracia, que faz uma classe aceder coletivamente ao poder".10

B perfeitamente exato que "a igualdade de direitos" no mercado cria uma forma específica de poder, mas o vínculo entre estes fenômenos não se situa lá . onde Podvplockij crê que ele esteja. Em primeiro lugar, o poder, mesmo que não esteja ligado a uni capitalista individual, pode permanecer um negócio privado da organização capitalista. As associações de indústrias, com suas reservas financeiras em caso de conflito, suas listas negras, seus lock-out e seus bandos de ''fura-greves" são indubitavelmente órgãos de poder que existem a0 ]ado do poder oficial, do poder estatal. Ademais, a autoridade no in­terior da empresa continua assunto do capitalista individual. A ·instauração de uma ordem interna do trabalho é um elo de regulamentação privada, isto é, um elemento autêntico do feudalismo, ainda que os juristas burg,ueses façam m)Jito es­forço para dar ao fato .um colorido moderno, construindo a ficção de um autodenominado contrat d'adhésim:z11 ou de ple· nos poderes particulares que o capitalista teria pretensamente recebido dos órgãos do ·poder público a fim de "exercer com sucesso a função social necessária e útil da empresa" .12

Contudo, no presente caso, a analogia com as relações feudais não é forçosamente exata, pois, como cÜz Marx,· "a autoridade do capitalista, no prccesso direto de produção, por­que ele personifica o capital, a função social que lhe vale na qualidade de diretor e mestre da produção, difere essencial­mente da autoridade baseada sobre a produção realizada por

10. I. P. Podvolockij, Marksistskaja teorija prava, op. cit.; 1923, .p. 33.

11. Em francês no original (N. do T.). 12. Tal', "Juridiceskaja priroda organicii i1i vnutrennego porjadka

predprijatija" (A natureza jurídica da organização ou .a ordem interna da empresa), in: Juridicerkij Vestnik, 1915, IX (I).

/)

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118 E. B. P ASUKANIS

escravos, servos, etc. No regime capitalista de produção, a massa dos produtores diretos se encontra fac1 a face com o caráter social de sua produção, sob a forma de uma autorida­de organizativa severa e de um mecanismo social perfeitamente hierarquizado do processo de. trabalho (mas os detentores desta autoridade não são mais, como nas anteriores formas de pro­dução, senhores polítiCos ou teocráticos; se eles a detêm, é simplesmente porque eles personificam os meios de trabalho em relação ao trabalho)".13 As relações de dominação e servi­dão podem igualmente existir nos quadros do modo de produ· ção capitalista, sem se distanciarem da forma concreta com que se apresentam: como dominação das relações de produção sobre os produtores. Mas sendo dado precisamente que elas não surgem sob uma forma mascarada, como no escravismo ou no regime de' . servidão/4 explica-se por que passam desper­cebidas aos olhos dos juristas.

Na medida em que a sociedáde representa um mercado, a máquina do Estado se realiza efetivamente como a vontade geral e in1pessoal, como autoridade de direito, etc .. No merca­do, como já vimos, cada comprador e cada vendedor é sujeito de direito por excelência. Onde as categorias valor e valor de troca entram em cena, a vontade autônoma dos trocadores é uma condição indispensável. O valor de troca deixa de ser valor de troca, a mercadoria deixa de ser mercadoria quando as proporções de troca são determinadas por uma autoridade situada fora das leis imanentes do mercado. A, coação, enquan­to uma função baseada na violência e endereçad;l por um in­divíduo a outro indivíduo, contradiz as premissas fundamen­tais das relações entre proprietários de mercadorias,. ~ por isso que, em uma sociedade de proprietários de mercadorias e no interior do ato da troca, a função da coação não pode aparecer como função social, dado que ela não é impessoal e abstrata. A subordinação a um homem enquanto tal, como indivíduo concreto, significa na sociedade de produção me:r-

13. K. Marx, O Capital, L. I li, cap. LI, op. cit., t. I li, p. 255/6. 14. Id., cap. XLVIII, p. 209. '

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 119

1 cantil a subordinação ao arbítrio, pois isto significa a subor-1, dinação de um produtor de mercadorias a outro. Por isso a coação não pode surgir sob sua forma não mascarada, como um simples ato de oportunidade . Ela deve aparecer como uma coação proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que não é exercida no interesse do indivíduo do qual provém - pois cada homem é um homem egoísta na sociedade de produção mercantil -, mas no interesse de todos os membros partíci­pes das relações jurídicas. O poder de um homem sobre um outro homem é transposto para a realidade como o poder de uma maneira objetiva,· imparcial.

O pensamento burguês que toma o quadro da produção mercantil pelo quadro eterno e natural de qualquer sociedade considera o poder do Estado em abstrato como um elemento pertencente às sociedades em geral. Este pensamento foi ex­presso de maneira singela pelos teóricos do direito natural que fundamentaram sua teoria do poder sobre a idéia de rela­ções entre pessoas independentes e iguais e que pensavam tais princípios derivassem das próprias rdações humanas. Eles não fizeram mais do que desenvolver, em suas diversas nuances, a idéia de um poder que vinculasse entre si os proprietários de mercadorias . ~ isto que explica os traços fundamentais desta doutrina, que já aparecem muito claramente em Grotius. Para o mercado, os proprietários de mercadorias que partici­pam das trocas são o fato primário, enquanto que a ordem autoritária é algo derivado, secundário, algo que, do exterior, se acresce aos proprietários existentes. Por isso, os teóricos do direito natural não consideram que o poder estatal seja um fenômeno surgido historicamente e, por conseqüência, vincu­lado às forças que agem na sociedade em questão, mas enca­ram-no de maneira abstrata e racionalista. Nas relações entre proprietários de mercadorias, a necessi>dáde de uma coação autoritária surge "'quando a paz foi quebrada ou que os contratos não foram plenamente observados. Assim, a dou~ trina do direito natural reduz a função do poder estátal à manutenção da paz e reserva ao Estado a exclusividade de ser instrumento do direito. Enfim, no mercado, cada proprie­tário de mercadorias possui esta qualidade graças à vontade

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120" E. B. P ASUKANIS

1 dos outros . e todos são proprietários de mercadorias pela von-

rtade comum. B devido a isto que a doutrina do direito na­

' tural faz derivar o Estado do contrato social havido entre diferentes pessoas isoladas. Este é o esqueleto de toda dou­trina que, segundo a situação histórica ou a simpatia política e a capacidade dialética de tal ou qual autor, tolera as mais diversas variações concretas. Ela permite desvios republica­nos ou monarquistas e, em geral, os graus mais diversificados de democratismo e revolucionarismo.

Afinal, esta teoria foi a bandeira revolucionária sob a qual a burguesia. efetivou as suas lutas revolucionárias contra a sociedade feudal. Isto igualmente determina: o destino da doutrina. Desde que a burguesia se transformou em classe dominante, o passado revolucionário do direito natural co­meçou a gerar apreensões, e as teorias· dominantes . apressa­ram-se em pô-lo de lado. Certamente a teoria do direito na­tural não resiste a uma crítica histórica ou socialista, pois a imagem por ela dada não corresponde em hipótese. alguma à realidade. Mas o mais singular é que a teoria jurídica do Estado, que substituiu a teoria do direito natural· e que rejei~ tou a teoria dos direitos inatos e inalienáveis do homem e do cidadão, dando-se a denominação de teoria "primitiva", igual­mente deforma a realidade.15 Ela é coagida a deformar· a rea­lidade porque toda teoria jurídica do Estado deve necessaria­mente figurar o Estado como uma potência autônoma, sepa­rada da sociedade.' :É exatamente nisto que reside o aspecto jurídico desta doutrina. '

Por isto, ainda ·que a atividade de organização estatal tenha lugar sob a forma de ordens e decretos emanados de pessoas s~gulares, a forma jurídica admite em primeiro lugar que não são pessoas que dão as ordens, mas o Estado, e; em segundo lugar que estas ordens são submetidas às· normas ge-

15. Não preciso provar detalhadamente esta proposição, pois posso referir-me à crítica das teorias jurídicas de Laband, Jellinek, etc. feita por Gumplowicz (cf. os seus livros Rechtsstaat und Sozialismus e Gechschite dré Siaat$theorine) ou ainda ao mãrcante ~rabalho de V. V. Adorackij, Gosudarstvo (O Estado), Moscou, 1923.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 121

rais da lei que exprimem a vontade do Estado.16 Quanto a este · ponto, a: doutrina do direito natural não é mais realista dq que

qualquer outra doutrina jurídica do Estado, inclusive a dou­trina mais positivista. O essencial ·da doutrina do ·direito na­tural consiste em admitir,. ao lado das diversas formas de dependência de um homem em· relação a outro (dependência que esta doutrina abstrai), um outro tipo de dependência, aque­la em relação à vontade geral e impessoal do Estado.

Mas é precisamente esta construção que igualmente cons­titui o fundamento da teoria jurídica do "Estado como pes­soa". O elemento de direito natural está situado mais pro­fundamente nas teorias jurídicas do Estado do que parece aos críticos da doutrina· do direito natural. Ele reside no próprio conceito de poder púbiicó, isto é, um poder que não pertence a ninguém em particular, que se situa acima de todos e que se dirige a todos. Orientando-se segundo este conceito, a teo­ria jurídica inevitavelmente perde o contato com a realidade, A. diferença entre a doutrina do direito natural e o positivismo jurídico moderno consiste unicamente no fato de que a pri­meira percebeu, muito mais claramente, o vínculo lógico exis­tente entre o poder de Estado abstrato e o sujeito abstrato. Ela toma as relações mistificadas da sociedade de produção mercantil em sua conexão necessária e fornece, assim, um exem­plo de clareza clássica. O chamado positivismo jurídico, pelo contrário, não classificou suas própr!as premissas lógicas.

16. Devemos pôr em relevo uma pequena contradição. Se não são os homens que agem, mas sim o próprio Estado, por que insistir na submissão às normas deste mesmo Estado? Com efeito, é apenas a repetição da mesma coisa. Aliás, em geral, a teoria dos órgãos do Estado é uma das pedras fundamentais da teoria jurídica. Uma vez vinda a lume a definição do Estado, o jurista que quiser continuar a defender a tese encontra um novo amparo: o conceito de "órgão". Assim, por exemplo, em Jellinck, o Estado não possui vontade, mas os órgãos qo Estado a possuem. ~ preciso indagar-se: como surgem estes órgãos? Sem órgão não existe Estado. A tentativa de atenuar a dificuldade, cone cebendo o Estado como uma relação jurídica, apenas substitui o proble­ma geral por uma série de casos particulares nos quais ela se desàgrega. Toda relação jurídica concreta de direito público contém, em si, o mesmo elemento de mistificação que se encontra no conceito geral de "Estado como pessoa". •

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122 E. B. P ASUKANIS

O Estado jurídico é uma miragem, mas uma miragem muito conveniente para a burguesia, pois ele substitui a ideo­logia religiosa em decomposição e esconde, dos olhos das mas­sas, a realidade da dominação burguesa. A ideologia do Es­tado jurídico convém mais do que a ideologia religiosa, porque não reflete inteiramente a realidade objetiva, ainda que se apóie sobre ela. A autoridade como "vontade geral", como ''força do direito", se realiza nll' sociedade burguesa na me­dida em que esta representa um mercado.17 Deste ponto de vista, os regulamentos baixados pela polícia podem figurar, igualmente, como a encarnação da idéia kantiana de liberdade limitada pela liberdade do outro.

Os proprietários de mercadorias, livres e iguais, que se encontram no mercado, não são como na relação abstrata de apropriação e aliena~ão. Na vida real, são vinculados por todos os tipos de relações de dependência recíproca; como, por exemplo, o pequeno comerci~nte e o comerciante ataca­dista, o camponês e o proprietário fundiário, o devedor arrui­nado e o seu credor, o proletário e o capitalista. Todas estas

-~ inúmeras relações concretas de dependência constituem· o fun-i';f damento real da organização do Estado. Contudo, para a teo­

'+\;'~t ria jurídica do Estado, é como se elas não existissem. E mais, \~r a vida do Estado consiste em lutas entre diferentes forças polí­

~1;~~ ticas, de classes, de partidos, de todos os tipos possíveis de \?,,~grupamento; é aí que se escondem os verdadeiros mecanis­-;~os do Estado. Estes permanecem tão incompreensíveis para

';~; ~l7. Lorenz Stein, como se sabe, opôs o Estado ideal, situado acima

da s~ciedade, isto é, segundo a nossa terminologia, ao Estado de classe. CorlÍo tal ele designou o Estado feudal absolutista, que protege os privilé· gios 'âa grande· propriedade fundiária, e o Estado capitalista, que garante os privilégios da burguesia. Mas, uma vez tenhamos compreendido estas realid!ldes históricas, não resta mais que o Estado como quimera de um funciol:).áriD prussiano ou o Estado como garantia abstrata das condi­ções das trocas fundadas sobre o valor. Na realidade histórica, contudo, o "Estado de direito", ou seja, o Estado situado acima da sociedade, só se realiza de fato como o seu contrário, como "um comitê executivo dos negócios da burguesia". ..

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 123

a . teoria jurídica como. as relações anteriormente mencionadas. Sem dúvida, o jurista pode prever uma maior ou menor capa­cidade de adaptação aos fatos, pode, por exemplo, ao lado do direito escrito, considerar igualmente as regras não escritas que surgem progressivamente da prática do Estado, mas isto nada muda em sua posição de princípio em relação à reali­dade. Uma certa discordância entre a verdade jurídica e a verdade que é o objeto da pesquisa histórica e sociológica é inevitável. Isto não provém apenas do fato de que o dina~ mismo da vida social transborda as margens das formas jurí• dicas e de que o jurista está condenado a estar sempre atra­sado em sua análise; pois se o jurista permanece, digamos, à jour18 com os fatos em suas afirmações, ele os reproduz de forma diferente da sociologia. O jurista, com efeito, se per­manece jurista, parte do conceito de Estado como força autô­noma que se opõe a todas as outras forçf!s individuais e sociais. Do ponto de vista histórico e político, as decisões de uma organização de classe ou de um partido influentes possuem importância tão grande e, às vezes, ainda maior do que as decisões do parlamento ou de qualquer outra instituição._ do Estado. Do ponto de vista jurídico, pelo contrário, tal tipo de fato não existe. Inversamente, se colocarmos entre parên­tesis o ponto de vista jurídico, poderemos perceber em cada decisão do parlamento, não um ato de Estado, mas uma deci­são tomada por um grupo ou clã determinados (que agem tão movidos por motivos individuais egoísticos ou por motivos de classe como qualquer outro grupo). O teórico mais exter­nado do normativismo, Kelsen, conclui que, em geral, o Esta­do só existe -eomo produto de pensamento, como sistema fe· chado de normas ou de obrigações. Tal materialidade do obje­to da 'teoria do direito público deve certamente espantar os juristas práticos. Estes percebem, por certo, se não racional­mente, pelo menos instintivamente, o valor indubitavelmente prático de seus conceitos, precisamente neste mundo iníquo e não apenas no mundo de pura lógica. "O Estado" dos ju: . ristas, apesar de sua "natureza ideológica'', é ligado a uma

18. Em francês, no .. original: em dia, atualizado (N. do T.).

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~

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realidade objetiva, assim como o sonho mais fantástico re­pous~ sobre a realidade.

Esta realidade é, antes de tudo, o próprio aparelho de Estado c.om todos os seus elementos materiais e humanos.

Antes de criar teorias. acabadas, a burguesia construiu seu Estado na prática. O processo começou na Europa oci­dental pelas comunidades· urbanas.19

Ainda que o mundo feudal ignorasse qualquer diferença entre as fontes pessoais de recursos do senhor feudal e as fontes de recurso da comunidade política, o tesouro munici­pal comum aparecia,· de início, esporadicamente nas cidades e posteriormente como instituição permanente.20

O espírito dos "negócios de Estado" adquire, então; seu assento material.

A· criação de recursos estatais favoreceu o aparecimento de homens que vivam destes recursos: empregados e funcio­nários. Na época feudal, as funções administrativas e judi­ciárias eram preenchidas pelos vassalos do senhor feudal. Os serviços públicos, no sentido próprio· do termo, só apareceram nas- comunidades urbanas; o caráter público ·da autoridade encontra então a sua encarnação material. A formàção, no sentido de direito privado, de um mandato. dado para a reali­zação de negócios jurídicos, separa-se do serviço público. A monarquia absoluta não fez mais do que tomar posse desta forma de autoridade pública, que nasceu nas vilas, e aplicá-la a um território mais vasto. Todo aperfeiçoamento posterior do Estado burguês, que se realizou mais por explosões revo­lucionárias. do que .por uma .adaptação pacífica dos elementos monárquicos feudais, pode ser remetido a um princípio único

19. S. A. Kotljarevskij, Vlast' i pravo, op. cit., p. 193. 20. A· antiga comunidade. alemã, a Marka, não ·era uma pessoa ju­

rídica que dispusesse de propriedade. O caráter público . dos pastos expiimia-se no fato de que eram utilizados por todos os membros da Marka. As contribuições destinadas às necessidades públicas só eram percebidas esporadicamente e. Sempre na estrita proporção da neces·si­dade. Se houvesse um excedente, este era destinado à subsistência co­mum. Este uso mostra quanto era estranha a idéia de rendas 'públicas permanentes.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 125

segundo o qual nenhum dos dois trocadores pode, no merca· do, regular as relações de troca por sua própria autoridade; nesta hipótese, exige-se uma terceira parte que encarne a ga­rantia recíproca que os possuidores de mercadorias acordam mutuamente, devido a sua qualidade de proprietários, e que personifique, em conseqüência, as regras das relações de troca entre os · possuidores de mercadorias .

A burguesia colocou este con.ceito jurídico de Estado na base de mais teorias e tentou transpô-lo à prática. Ela o fez dei­xandO'-se guiar pelo famoso princípio ''tanto por tantom1

• Com efeito, a burguesia jamais perdeu de vista, em nome da pureza histórica, o outro aspecto da questão, a saber, que a sociedade de classe não é somente um mercado no qual se encontram

21. A burguesia inglesa, que assumiu antes que todas as outras burguesias a dominação do mercado mundial e que, dada a sua situação insular, sentia-se invulnerável, pôde ir mais longe que todas as outras burguesias na direção da realização do "Estado de direito". A realização mais conseqüente do princípio jurídico nas relações recíprocas entre o poder de Estado e o sujeito singular, como a garantia mais eficaz para que os detentores do poder não ultrapassem o seu papel, o da personi­ficação de uma norma objetiva, são dadas pela subordinação dos órgãos estatais à jurisdição de um tribunal independente (que, entenda-se, não é independente da burguesia). O sistema anglo-saxão é uma forma de apoteose da democracia burguesa. Mas, em outras condições históricas, a burguesia está igualmente preparada, digamos, no pior dos casos, a se acomodar em um sistema que pode ser designado como a "separação· da propriedade do Estado;' ou "cesarismo". Neste caso, a malta reinante, com o seu arbítrio despótico ilimitado (que segue duas direções: ul]la interna contra o proletariado e outra externa sob a forma de uma polí· tica exterior imperialista), criou, aparentemente, o terreno para a "livre autodeterminação da pessoa" na vida social. Destarte, segundo Kotlja­revskij, "o individualismo jurídico privado concorda, no geral, com o despotismo político. O códigó civil nasceu em uma época que não só é caracterizada pela falta de liberdàtie política na ordem estatal francesa, mas igualmente por uma certa indiferença com relação a esta liberdade, que já. se manifestava desde o 18 Brumário: Tal liberdade jurídica priva· da não somente dá lugar a uma acomodação em referência a muitos aspectos do Estado, mas, também, confere a este último um certo caráter de legalidade" (Vlast' i pravo, op;· cit., p. 171). Encontramos uma bri· lhante caracterização das relações entre Napoleão I c a sociedade. civil na Sagrada Família, de Marx, p. 150.

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os proprietários independentes de mercadorias, mas que é, também; um campo de batalha de uma feroz guerra de classes, na qual o Estado representa uma arma muito poderosa. Sobre este campo de batalha, as relações não se formam no espírito kantiano do direito como a restrição mínima de liberdade in­dividual, indispensável à coexistência humana. Gumplowicz tem plena razão quando explica que tal tipo de direito nunca existiu, pois "o grau de 'liberdade' de uns não . depende do grau de dominação de outros. A norma de coexistência não é determinada pela possibilidade da coexistência, mas pela do­minação de uns sobre os outros". O Estado como fator de força na política interior e exterior: esta é a correção que a burguesia deve fazer. à sua teoria e à sua prática do "estado jurídico". Quanto mais a dominação da burguesia for amea­çada, mais estas correções se tomam comprometedoras e mais rapidamente o "Estado jurídico" se transforma em uma som­bra material, até que a agravação ·extraordinária da luta de classes force a burguesia a rasgar inteiramente a máscara do Estado de direito e a revelar a essência do poder de Éstado \ como a violência· organizada de uma classe social contra as outras. ·

Capítulo Seis

DIREITO E MORAL

Para que os produtos do trabalho humano possam rela­cionar-se· uns com os outros como valores, os homens devem comportar-se, uns em relação aos outros, como pessoas inde­pendenies e iguais.

Quando um homem se encontra subjugado. acr poder de um outro, isto é, quando é escravo, seu trabalho deixa de ser criador e substância de valores. A força de trabalho do es­cravo só transmite ao produto, assim como a força de trabalho dos animais domésticos, uma parte determinada dos custos de sua própria produção e reprodução. Tugan-Baranovskij con­clui daí que só se pode compreender a economia política par­tindo . da idéia diretriz ética do valor supremo e, portanto, da igualdade das pessoas humanas.1 Marx, como se sabe, chega a concluRão .oposta: ele relaciona a idéia ética da igualdade das pessoas humanas com forma mercantil, ou seja, fa:z derivar esta idéia de equalização prática de. todas as variedades do trabalho humano entre si.

Efetivamente, o homem, enquanto sujeito moral, quer dizer, enquanto pessoa igual às· outras pessoas, nada mais é do que a condição prévia da troca com base na lei <;lo valor. O homem, enquanto sujeito· de direito, enquanto proprietário, igualmente. representa tal condição. Finalmente, estas duas de­terminações estão estreitamente ligadas a uma terceira, na qual o . homem figura como sujeito econômico egoísta.

1. Tugan-Baranovskij, Osnovy politiceskoj eknomii (Princípios de economia política), 1917, p. 60.

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.Estas três determinações, que não são redutíveis umas às outras e que, aparentemente, são contraditórias, exprimem o conjunto de condições necessárias à realização da relação do valor, de uma relação na qual a relação dos homens entre si, no processo de trabalho, surja como uma propriedade coit>ifi­cada dos produtos trocados .

Se destacarmos estas determinações das relações soc1a1s reais que exprimem, e se tentarmos desenvolvê-las como cate­gorias autônomas (pela via purameri.te especulativa), obtere­mos por resultado um caos de contradições e proposições que se renegam reciprocamente2 • Mas, na relação de troca real, estas contradições se articulam dialeticamente em uma totali­dade.

O agente da troca deve ser egoísta, deve ater-se ao puro cálculo econômico, do contrário a relação de valor não pode manifestar-se como uma relação social necessária. O agente da troca deve ser portador de direitos, isto é, deve ter a possi­bilidade de tomar uma decisão autônoma, pois sua vontade deve, com efeito, "habitar as coisas,.. Finalmente, o agente da troca encarna o princípio da igualdade fundamental das pessoas humanas, pois as trocas de todas as -variedades de trabalho são assimiladas umas às outras. e reduzidas ao tra­balho humano abstrato.

Assim, os três momentos acima mencionados, ou como antes se gostaria de dizer, os três princípios elo egoísmo, da liberdade e do valor supremo da pessoa, são indissoluvelmen­te ligados uns aos outros e representam, em sua totalidade, a expressão racional de uma só e mesma relação social. O su-

2. Os revolucionários pequeno-burgueses, os jacobinos, enredaram­se tragicamente nestas contradições .. Eles quiseram submeter o desenvolvi­mento real da sociedade burguesa às. formas de virtudes cívicas empres­tadas da Roma antiga.· Már:X: disse a este propósito: "Ser obrigado a reconhecer e sancionar nOs direitos do homem a sociedade burguesa mo­derna, a sociedade da indústria, da concorrência universal, dos interesses privados que buscam. seus fins, este regime de anarquia, de individua­lismo natural e esPiritual; qu~r ao mesmo tempo anular, de um golpe. de tal ou tal indivíduo particular as manifestações vitais desta sociedade, pretendendo apenas fazer à antiga a cabeça política desta sociedade: que colossal .ilusão!" (A Sagrada Familia, p. 1.48).

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jeito egoísta, o sujeito de direito e a pessoa moral são as ttês principais máscaras sob as quais surge o homem na sociedade de produção mercantil. A economia das relações de valor nos fornece a chave para compreender a estrutura jurídica e mo­ral, não no sentido do conteúdo . concreto da norma jurídica ou moral, mas no sentido da própria forma do direito e da moral. A idéia do valor supremo e da igualdade de princípio das pessoas humanas tem uma longa história: da filosofia es­tóica ela passou aos usos dos juristas romanos, aos dogmas da Igreja cristã e em seguida à doutrina do direito natural. A existência da escravidão na Roma antiga não impediu Sêneca de se convencer de que, "mesmo se o corpo pode ser escravo e pertencer a um senhor, a alma permanece sui juris". Kant, no fundo, não deu um . grande passo à frente em comparação a esta fórmula. Nele igualmente a autonomia prinéipal da pessoa se deixa conciliar muito bem com visões puramente feudais sobre as relações entre o senhor e a vassalagem. Mas, qualquer que seja a forma que possa assumir esta idéia, redes­cobrimos nela, unicamente, a expressão do fato de que as diferentes variedades concretas do trabalho social útil redu­zem-se ao trabalho em geral, desde que os produtos do traba­lho são trocados como mercadorias . Em todas as outras rela­ções, a desigualdade dos homens entre si (desigualdade de sexo, de classes, etc.) salta aos olhos de maneira tão evidente ao longo dà história, que causa espanto, não a abundância de argumentos, neste particular, que têm sido apresentados contra a doutrina da igualdade natural dos homens, pelos seus diferentes adversários, mas, sim, que, antes de Marx, ninguém tenha se interrogado sobre as causas históricas que favorece­ram o nascimento deste preceito do direito natural. Pois, se o pensamento humano, ao longo de séculos, sempre se tem voltado com tanta obstinação à tese da igualdade dos homens e a elaborou de mi\ maneiras, é porque deve haver por detrás desta tese uma qualquer relação objetiva. Sem nenhuma dú• Vida o conce:to de pessoa moral ou de pessoa igual é uma de­formação ideológica que, como tal, não é adequada à reali­dade. O conceito de sujeito ·econômico egoísta é igualmente uma deformação ideológica da verdade. Contudo, assim mes·

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mo, estas duas determinações são adequadas a uma relação social específica, mesmo que a exprimam de maneira abstrata e, por conseqüência, unilateral. Já tivemos ocasião de indicar que, em geral, o conceito ou a pequena palavra "ideologia" não deveria impedir que a análise fosse efetuada em profun­didade. Simplificaríamos muito a nossa tarefa se nos. satisfi~ zéssemos com" a explicação segundo a qual a noção de homem igual a outro homem é unicamente ·Criação da ideologia. Os~ conceitos de "alto" e ''baixo" são conceitos que exprimem a nossa ideologia ''terrestre"; no entanto, são fundados na rea­lidade efetiva, indubitável, da gravitação. Foi precisamente quando o homem reconheceu a causa real que lhe constrangia a distinguir o "alto" do "baixo", isto é, a força de gravidade dirigida em direção ao centro da terra; que ele captou igual­mente o caráter limitado destas definições que as impedem de serem aplicadas a todas as reaEdades cósmicas. Assim, a des­coberta da natureza ideológica de um conceito não é senão o reverso do estabelecimento de sua verdade.

Se a pessoa moral não é outra coisa além do sujeito da sociedade de produção mercantil, então a lei moral deve se manifestar como regra das. relações entre proprietários de mer­cadorias. Isto confere, inevitavelmente, à lei moral tim cará­ter antinômico. De uma parte, esta lei deve ser social e. en­contrar-se, portanto, acima da pessoa individual; de outra par­te, o proprietário de mercadorias é por natureza o portador da liberdade (da liberdade de apropriação e de alienação), de sorte que a regra que determina as relações entre proprietários de mercadorias deve ser igualmente transportada à alma de cada proprietário de mercadorias, ser à s.ua lei interna. O im-

. perativo categórico de Kant uniu estas exigências contraditó­rias. Ele é supra-individual, porque não tem nada a ver com impulsos naturais (temor, simpatia, piedade, sentimentos de solidariedade, etc.). Segundo as palavras de Kant, efetiva­mente, ele não ameaça, não persuade, não lisonjeia. Está si­tuado fora de toda motivação empírica, isto é, simplesmente humana. Ao mesmo tempo, ele se manifesta independente­mente de qualquer pressão exterior, no significado direto e grosseiro da palavra . Age exclusivamente pela consciência de

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sua universalidade . A ética kantiana é a ética típica da socie­dade de produção mercantil, mas, igualmente, é a forma mais pura e acabada da ética em g»:ral. Kant conferiu a esta forma uma figura lógica acabada, que a sociedade burguesa atomiza­da esforçou-se em transportar para a realidade, libertando a pessoa dos liames orgânicos das épocas patriarcais e feudais.3

Os conceitos fundamentais da moral perdem sua significação, se os destacarmos da sociedade de produção mercantil e se tentarmos aplicá-los a uma outra estrutura. O imperativo cate­górico não é, de forma alguma, um instituto social, pois sua destinação essencial é ser ativo onde seja impossível qualquer motivação natural, orgânica, supra-individual. Onde exista uma estreita ligação emocional entre os indivíduos, que trans­borde os limites do Eu individual, o fenômeno da obrigação moral não pode ter lugar. Se quisermos compreender está categoria, não devemos partir do vínculo orgânico existente, por exemplo, entre a mulher e seu filho, ou entre a família e cada um de seus membros, mas do estado de isolamento. O ser .moral é um cómplemento .necessário do ser jurídico, e os dois são modos de relações entre os produtores de merca­dorias. Todo o pathos do imperativo categórico kantiano re­duz-se a que o homem cumpra "livremente", ou seja, por con• vicção interna. aquilo gue ele seria compelido a fazer no âm­bito do direito. Quanto a isto, os exemplos que Kant cita, para ilustrar o seu . pensamento, são muito característicos. Eles redu· zem-se. a simples manifestações de conveniência burguesa. O heroísmo e as proezas não encontram lugar nos quadros do imperativo kantiano. Não é necessário sacrificar-se, desde que não exijamos do outro tal sacrifício. As ações "irracionais"

3. A doutrina ética de Kant deixa-se conciliar muito facilmente com a fé eni Deus, tanto mais que ela é o último refúgio desta fé. Mas um vínculo entre as duas não é logicamente necessário. Aliás, o Deus que busca proteção na sombra do imperativo categórico torna-se uma abstração muito tênue e pouco aprofundada para intimidar as massas populares. Eis por que a reação clérico-feudal se fixou por tarefa pole­mizar contra o formalismo inerte de Kant, de estabelecer um Deus mais seguro, que "reina", por assim dizer, e que coloca no lugar do impera· tivo categórico os sentimentos vivos de "vergonha, compaixão e de ve­neração" (Vladimir Solov'ev).

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de abnegação tanto quanto o desprezo de seus próprios inte­resses em nome da construção de uma vocação histórica, de sua função social, ações nas quais se manifesta a mais alta tep.são do instinto social, sitUam-se fora da ética, no sentido estrito do termo4 • -

Schopenhauer e, depois dele, V. Solov'ev definiram o di­reito como um certo mínimo ético. Pela mesma razão pode se definir a ética como um certo mínimo social. A maior intensidade do sentimento social se encontra fora da ética, no sentido estrito deste termo, e é uma herança transmitida pelas épocas orgânicas precedentes, notadamente pela ordem gentí­lica, à humanidade atual. Engels, por exemplo, diz o que se segue ao comparar o caráter dos antigos Germânicos · e dos Romanos civilizados: "seu valor e sua bravura pessoal, seu espírito de liberdade e seu instinto democrático, que via em todos os. assuntos públicos um assunto pessoal, em resumo, todas as qualidades que os Romanos perderam, e que só eles eram capazes de modelar com o barro do mundo romano Es­tados novos e de fazer crescer as novas nacionalidades; ora, o que é isto senão os traços característicos do Bárbaro do estágio superior, fruto da organização gentílica?"5

O único aspecto pelo qual a ética racion'alista eleva-se, efetivamente, acima dos instintos sociais, poderosos e irracio­nais, é o seu universalismo que se estende a todos os homens. Ela tende a quebrar todas as estruturas orgânicas, necessaria­mente, estreitas da tribo, da gens, da nação e a tornar~se uni­versal,. Ela, assim reflete as conquistas materiais determina­das da humanidade, notadamente a transfowação do comér­cio em comércio· mundial. A fórmula "nem ~rego, nem judeu" é reflexo de uma situação histórica real: a unificação dos povos sob o domínio de Roma.

4. ~ por isto que o professor Magaziner, por exemplo, tem razão quando qualifica a ética neste sentido de "moderacão e exatidão" e opõe-lhe o heroísmo que empurra os homens para ações que ultrapassam os seus deveres (J. M. Maga~iner, Obscee ucenie o gosudarstve [Teoria geral do Estado], 2.•, ed., Petrogrado, 1922, p. 50).

5. F. Engels, A origem da família ... , op. cit., p. 143.

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O universalismo da forma ética (e, por conseguinte, tam­bém da forma jurídica) -:- todos os homens são iguais, todos possuem uma mesma "alma", todos podem ser sujeitos de di­reito,· etc. - foi imposto aos Romanos pela prática de rela.­ções comerciais com os estrangeiros, isto é, com pessoas de costumes, de línguas, de religiões diferentes. Talvez tenha sido por isto que, de início, ele teve alguma dificuldade em ser con­siderado como algo positivo, quanto mais não fosse porque implicava na rejeição dos próprios costumes romanos enrai­zados: amor a si próptio e desprezo pelo estrangeiro. Maine informa que o jus gentium era uma conseqüência do desprezo que os Romanos dedicavam a todo direito estrangeiro. e da sua hostilidade em conceder aos estrangeiros os privilégios do jus civile de · seu país. Segundo Maine, a Roma antiga gostava tão pouco do jus gentium quanto dos estrangeiros para os quais este era feito. A palavra "aequitas" significava igualdade e, talvez, nenhuma nuance ética fosse, de início, verdaJeiramen­te inerente a esta expressão. Não existe nenhuma razão em admitir que o processo designado por esta expressão tenha sus­citado, no espírito de um Romano primitivo, outra coisa além de Upl sentimento de aversão6 •

Todavia, a ética racionalista de sociedade de produção mercantil apresentou-se, ulteriormente, como uma grande con­quista e um valor culturál muito alto, do qual temos o hábito de falar unicamente em um tom de entusiasmo. :É suficiente relembrar a célebre frase de Kant: "Duas coisas preenchem­me o coração de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes à medida que minha reflexão sobre elas se volta e se aplica: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim"7 •

Contudo, quando o discurso cita um semelhante "livre" cumprimento do dever moral, são sempre os mesmos exemplos que entram em cena - esmolas dadas a um pobre ou nega­tiva de mentir quando seria possível fazê-lo impunemente. Por

6: Summer Maine, Ancient Law, trad. russa de N. Belozerskaia. 1873, p. 40 e 47.

7. I. Kant, Crítica. da Razão prática, 1788.

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outro lado, Kant observa muito justamente que a regra ''considera teu próximo como um fim em si" só tem sentido onde o homem pode ser transformado praticamente em . um meio para outro homem. O pathos moral está indissoluvel~ mente ligado à moral da prática social e dela se alimenta. As doutrinas morais têm a pretensão de mudar o mundo e melhorá-lo, mas, em realidade, não passam de um reflexo deformado de um aspecto deste mundo verdadeiro precisamen~ ·te o aspecto que mostra as relações humanas submetidas à lei do valor. ~ necessário não esquecer que a pessoa moral não é mais do que uma das hipóstases do sujeito trinitário; o ho­mem como um fim em si· nada mais é do que um outro as­pecto do sujeito econômico egoísta. Uma ação que é verdadei­ra e única encarnação do princípio ético contém também a negação deste princípio. O grande capitalista arruína de· "boa fé" o pequeno capitalista sem se importar com o valor abso­luto de sua pessoa. A pessoa do proletário é "igual em prin­cípio" à pessoa do capitalista; isto se exprime no "livre" con­trato de trabalho. Mas esta mesma ''liberdade materializada" resulta, para o proletário, na possibilidade de morrer tran­qüilamente de fome.

Esta duplicidade da forma ética não ·é devida ao acaso, e não é uma imperfeição exterior, determinada pelos defeitos específicos do capitalismo. Ela é, ao contrário, um signo dis­tintivo, essencial da forma ética como tal. A supressão desta duplicidade de forma ética significa a passagem à economia socialista e planificada; mas isto significa a edificação de um sistema social no qual os homens podem construir e pensar as relações sociais com a ajuda de conceitos claros e simples de dano e utilidade . A abolição da duplicidade de forma ética no campo mais importante, no âmbito da existência material dos homens, significa a abolição da forma ética em geral.

No seu esforço para dissipar as brumas metáfísicas que envolvem a doutrina ética, o puro utilitarismo considera os conceitos de "bom" e ''mau" sob o ângulo do útil e do preju­dicial. Mediante isto, ele suprime a ética, ou, mais exatamen­te, tenta suprimi-la, superá-la, pois a supressão dos fetiches éti­cos só pode se consumar, na prática, com a supressão simul-

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tânea do 'fetichismo mercantil e do fetichismo jurídico. En­quanto este ·estágio de 4lesenvolvimento não for alcançado pela humanidade, ou seja, . enquanto a herança da época capitalista não. for superada, os esforços do pensamento teórico apenas anteciparão esta ·libertação futura, mas não encarná-là-ão pra­ticamente . Lembremo-nos das palavras de Marx sobre o feti­chismo mercantil: "a descoberta científica, feita mais tarde, de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são a ex­pressão pura e simples do trabalho despendido na sua pro­dução marca uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipa a fantasmagoria que faz aparecer o caráter social do trabalho como uma qualidade das coisas, dos próprios produtos"8

Poderão retorquir-me que a moral de classe do proleta· riado liberasse, desde o presente, de todos os fetiches. O que é moralmente uma obrigação e o· que ·é útil à classe. Sob tal perspectiva., a moral não possui nada de absoluto, pois o que hoje é útil pode deixar de 'sê-lo amanhã; . e ela também não tem nada de místico ou de supranatural pois o princípio de u.tilidade é simples e racional. ~ indubitável que a moral do proletariado, ou, mais exatamente, a moral de sua vanguarda, perde seu caráter de duplo fetichismo purificando-se, por exem­plo, dos elementos religiosos. Mas mesmo uma moral des­vencilhada de qualquer impureza, notadamente de elementos religiosos, permanece- uma moral, uma forma de relações sociais nas quais nem tudo é direcionado . ao próprio homem. Logo que o liame vivo que liga o indivíduo à classe seja efetiva­mente tão forte, que os limites de seu Eu, por assim dizer, apagam-se, e que o interesse da classe torne-se, de fato, idên­tico ao interesse pessoal, torna-se absurdo falar do cumpri· mento de um dever moral, e então o fenômeno da moral será inexistente. Mas onde ainda não tenha ocorrido semelhante fusão de interesses, sur]e inevitavelmente a relação abstrata do dever moral com todas as formas que daí resultam. · A regra: "age de tal forma que a máxima de tua vontade possa ser erigida em princípio de uma legislação universal".

8. K. Marx, O Capital, L. I, op. cit., p. 86.

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Toda diferença consiste em que nós procedemos no pri- · meiro caso a uma restrição concreta e que damos à lógica

· ética um enfoque de dasses9;

Mesmo no interior deste quadto ela mantém todo o seu valor .. · O conteúdo de classe da ética ·não aniquila a sua forma em si. Não pensamos apenas em sua forma lógica, mas igual­mente nas formas pelas quais ela se manifesta concretamente.

Igualmente, no interior do coletivo proletário, isto é, em tim coletivo de classe, nós podemos óbservar os mesmos mé­todos formais de cumprimento do dever moral constituídos por duas motivações opostas. De uma parte, o coletivo não renun­cia a todos os meios de pressão posflíveis para incitar os seus membros a cumprirem seus deveres morais. De outra parte, o coletivo não caracteriza uma c.onduta como moral quando não seja .esta pressão externa que· constitua .sua motivação. É precisa­mente por isto que, na prática social, a moral e a conduta moral são tão estreitamente ligadas à hipocrisia. Certamente as con­dições de vi dá do · proletariado constituem as premissas para o desenvolvimento de uma ·nova forma, superior e mais har­moniosa, de relações entre o indivíduo e a coletividade. Nu­merosos fatos, que exprimem a solidariedade da classe prole­tária, testemunham-no. Mas, ao lado deste novo, continua a subsistir também o antigo. Ao lado do homem social do futu­ro, que deixa fuhdir o seu Eu na coletividade, que encontra assim a. grande sa:tisfação e o verdadeiro sentido de sua vida, continua,. igualmente, a existir o homem moral que carrega sobre os seus ombros o fardo de um futuro mais ou menos abstrato. A vitória da ·primeira forma equivale à libertação completa do homem de todas as sobrevivências das relações jurídicas privad~s e à transformação definitiva da humanida-

9. Depreende-se que uma ética sem cÓnteúdo de· classe em uma sociedade dilacer-ada pelas lutas de classe só pode existir na imaginação, não na prática. O operário que decide, independentemente das priva­ções às quais se expõe, participar de uma greve, certamente pode for­mtdar sua decisão como um dever moral qU:e lhe determina subordinar os seus interesses Jilrivados ao interesse geral. Mas é muito claro que este conceito de interesse geral não pode conter os interesses do capita· lismo contra os quais é travada a luta operária ..

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de na direção do comunismo. Certamente, tal tarefa não é apenas uma tarefa puramente ideológica ou pedagógica. O novo tipo de relações humanas necessita da criação e da con­solidação de uma nova base material, econômica.

É preciso lembrar, conseqüentemente, que a Moral, o Di­reito e o Estado são formas de sociedade burguesa. Mesmo que o proletariado seja obrigado a utilizar-se destas formas, isto não significa absolutamente que elas podem continuar a se desenvolver com um conteúdo socialista. Elas não podem assimilar este conteúdo, e deverão desaparecer à medida que este conteúdo se realize. Contudo, no atual período de transi­ção, o proletariado deve explorar, em benefício de seus ipte­),"esses, estas formas herdadas da sociedade burguesa, esgotando­as completamente. Mas para isto, antes de tudo, o proletariado deve ter uma representação muito clara, liberta do véu ideo­lógico, da origem histórica destas formas. O proletariado deve ter uma visão friamente crítica, não apenas em relaç,ão ·à Mo­ral e ao Estado burguês, mas também em relação a seu pró­prio Estado e sua própria Moral. Dito de outra forma, ele deve estar consciente de suà existência, mas também de seu desaparecimento10 •

Em sua crítica a Proudhon, Marx indica que o conceito abstrato de justiça não é um critério absoluto e eterno, a par­tir do qual podemos edificar uma relação de troca ideal, isto é, justa. Seria uma tentativa "para transformar as trocas quí­micas em função de 'idéias eternas' de 'qualidades particula­res' e 'afinidades', ao invés de estudar suas leis reais".

O próprio conceito de justiça ·é extraído da relação de troca, e não tem sentido fora dela. No fundo, o conceito de justiça não contém nada de essenCialmente novo em· relação ao

10. Isto significa que "não existirá mais moral na sociedade fu­tura?" Absolutamente, se concebermos a moral em sentido amplo, como o .desenvolvimento de formas humanas superiores, como a transformação do homem em um ser gen~rico. No caso presente, .trata-se, contudo, de outra· coisa; trata-se de formas específicas da consciência moral e da conduta humana que, após terem' concluído o seu papel histórico, devem dar lugar a outras formas, superiores, de relações entre 'o indivíduo e a coletividade (nota à terceira edição) . ·

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conceito de igualdade entre todos os homens que analisamos mais acima . :1! por isto que é ridículo ver na idéia de justiça um critério autônomo e absoluto. De qualquer maneira, esta idéia, se for habilmente utilizada, permite interpretar a desi7 gualdade como igualdade, e convém, muito particularmente, para velar pela ambigüidade da forma ética. Por outro lado, a justiça é a marcha que leva a ética em direção ao direito. A conduta moral deve ser ''livre", mas a justiça pode ser obti­da pela força. A coação, incitando a conduta moral tenta negar sua própria realidade. A justiça, ao contrário, "cálhou" abertamente na partilha ao homem. Ela autoriza ·a realização exterior e uma atividade egoísta interessada. Aí é que resi­dem os pontos de contato e de discordância mais importantes entre ~ forma ética e a forma jurídica.

A troca, ou a circulação de mercadorias, supõe que os agentes da troca reconheçam-se mutuamente como proprietários. Este reconhecimento, que surge sob a forma de uma convicção interna ou do imperativo categórico, é o máximo. concebível ao qual pode se elevar uma sociedade de produção mercantil. Mas além deste máximo existe, igualmente, um certo rp.ínimo, qt,te permite a existência, sem entraves, da circulação de mer­cadorias. Para realizar este mínimo é necessário que os pr~ prietários se comportem como· se eles se reconhecessem mu­tuamente enquanto proprietários. ~A conduta moral, aqui, opõe­se à conduta legal, que é caracterizada como tal, independen­temente dos motores que determinam-na, Do ponto de vista jurídico, é perfeitamente igual que a dívida seja paga, porque, "de qualquer forma, o devedor será constrangido a pagá-la", ou porque o devedor sente-se moralmente obrigado a fazê-lo. A idéia de constrição exterior e não apenas esta idéia, mas; também, a organização da constrição exterior são aspectos essen­ciais da forma jurídica. Uma vez que a . relação jurídica não pode ser construída de uma maneira puramente teórica, como avesso. da relação de troca, sua realização prática exige, então, a presença de modelos gerais razoavelmente fixados, uma con­sulta elaborada e, finalmenty~ uma organização particular qu~ aplique estes modelos aos casos particulares e que garanta a execução· coativa das decisões. Estas necessidades são mais

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bem satisfeitas pelo poder Estatal, ainda que a relação jurí­dica também se realize, freqüentemente, sem sua intervenção, graças ao direito costumeiro, à arbitragem voluntária e à jus­tiça pessoal.

Onde a função de coerção não está organizada e não possui um aparelho particular, situado acima das partes, ela surge sob a forma da, assim chamada, "reciprocidade"; este princípio de reciprocidade representa, nas condições de equilí­brio de forças até os nossos dias existentes, o único e, por assim dizer, precário fundamento do· direito internacional.

Por outro lado, a exigência jurídica, em oposição .à exigên­cia moral, não se reveste da forma de ''voz interior", mas de exigência exterior, proveniente de um sujeito concreto, o qual é, em regra geral, o titular de um interesse material correspon­dente11.

:1! por isto que o cumprimento dos deveres jurídicos é es­tranho à todos os elementos subjetivos do lado do obrigado e assume forma externa, quase objetiva, do cumprimento de uma exigência. O próprio conceito de obrigação jurídica tor-

11. Assim se passa no direito privado, que é o protótipo da forma jurídica em geral. "As exigências jurídicas" que emanam dos órgãos do poder público, e fora das quais não se contempla nenhum interesse pri­vado; não são nada mais do que a configuração jurídica da vida política. A característica desta configuração é diferente segundo as circunstân­cias; eis por que a concepção jurídica do estado cai irremediavelmente no pluralismo jurídico. Desde que o poder do Estado é representado como a encarnação de uma regra objetiva situada acima dos sujeitos-' partes, ele se funde com a norma e torna-se o ponto mais elevado, im­pessoal e abstrato. A exigência do Estado surge como lei imparcial e desinteressada. Neste caso é praticamente impossível conceber o Estado como sujeito, seja porque está destituído de substancialidade, seja porque transformou-se em uma garantia abstrata das relações entre sujeitos reais, proprietários de mercadorias. Esta concepção, como a concepção mais pura do Estado, é aquela defendida pela escola normativista aus­tríaca, com Kelsen à frente. Nas relações internacionais, ao contrário, o Estado não surge como a encarnação de uma norma objetiva, mas como titular de direito subjetivo, isto é, com todos os atributos da substancia­lidade e do interesse egoísta. O Estado desempenha o mesmo papel, quando atua a título de fisco, como parte em um litígio com pessoas privadas. Entre estas duas concepções pode haver numerosas formas intermediárias e híbridas.

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na-se, assim, muito problemático. Se formos conseqüentes, é preciso dizer, de maneira geral- como faz Binder em Rechts­norm und Rechtspflicht -, que uma obrigação jurídica nada tem de comum com o ,., dever", mas só existe juridicamente enquanto ''responsabilidade"; "ser obrigado" não significa na­da mais do que "responder com seus bens (e no direito penal com a sua pessoa) pela via do processo e· sob a forma de execução forçada"12

As conclusões, paradoxais aos olhos da maioria dos ju­ristas, a qpe chega Binder, e que se deixam exprimir pela se­guinte fórmula simplificada: ''o direito não obriga juridica­mente a ninguém", são, em realidade, a continuação, conse­qüente, da dístinção de conceitos que Kant já havia feito. Precisamente esta definição clara da delimitação entre a esfera moral e a esfera jurídica, uma em relação à outra, é a fonte de contradições insolúveis para os filósofos burgueses do di-· reito. Se a obrigação jurídica não possui nada em comum com o dever moral ''interior", então não se pode distinguir a sub­missão ao direito da submissão à violência enquanto tal. Mas se por outro lado, admitirmos no direito o momento do dever como característica essencial, mesmo com a nuance objetiva mais fra:ca, então a noção de direito, como mínimo socialmente necessário, perde todo o sentido. A filosofia burguesa do direi­to se perde nesta contradição fundamental, nesta luta sem fim, com suas próprias premissas .

Além disso, .é interessante notar que as contradições, que no fundo são idênticas, se mostram sob estas duas formas dife­rentes segundo se trata da relação entre o direito e a moral ou da relação entre o Estado e o direito. No primeiro caso, quando se afirma a autonomia do direito em relação à moral, o direito se confunde com o Estado, em razão da forte acen­tuação do momento de coação externa. No segundo caso,

. quando o direito se opõe ao Estado, isto é, à dominação de fato, o momento do dever entra inevitavelmente em cena, no sentido do termo alemão sollen (e não de müssen) e então

12. J. Binder, Rechtsnorm und Rechtspflicht, Leipzig, 1916.

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temos, se assim se pode dizer, uma frente única do direito e da moral.

A tentativa do professor Petrazickij de encontrar no di­reito um imperativo aboluto, isto é, ético, e que ao mesmo tempo se diferencie do imperativo moral, é deixada sem êxito13

Como se sabe o professor Petrazickij constrói a categoria de de­ver jurídico como um dever que incumbe a um sujeito em con­fronto com os outros que podem pleitear a execução . A obriga­ção moral, ao contrário, não determina, segundo ele, nada mais que uma cer-ta conduta, mas não concede a terceiros o direito de exigir o que lhes foi tomado.

Por conseguinte, · o direito possui característica bilateral imperativo-atributivo, enquanto que a moral possui caracterís­tica unicamente obrigatória ou imperativa. O professor Petra­zickij, apoiando-se em observações pessoais, assegura-nos que pode distinguir, sem dificuldades, a obrigação jurídica que o obriga a ressarcir ao credor a soma mutuada, da obrigação moral que o obriga a dar esmolas a um pobre. Mas, depreen­de-se que esta capacidade de distinguir tão claramente as coi­sas pertence exclusivamente ao professor Petrazickij. Pois ou­tros, como o professor Trubeckoj, asseguram-nos que a obriga­ção de dar esmolas a um pobre é, do ponto de vista psicoló­gico, tão ·ligada a esta última quanto o é a obrigação de pagar as dívidas ao credor14 • (Uma tese que, diga-se de passagem, não é desvantajosa para o pobre, mas que deve ser muito con­testável aos olhos do credor.) O professor Rejsner, ao contrá­rio, é de posição de que o .momento emocional de uma obri­gação estabelecida · refere-se inteiramente a um ponto de vista psicológico. Se para o professor Trubeckoj o credor, com suas pretensões, está, em conseqüência, posto no mesmo nível "psi­cologicamente" que o pobre, para o professor Rejsner ele não é nada mais, nada ·menos, do que superior. Em outros termos, a contradição que revelamos, sob sua forma lógica e sistemá­tica, como uma contradição de conceitos, revela-se, aqui, como

13. L. I. Petrazickij, Vvedenie v izucenie prava, op. cit. 14. E. Trubeékoj, Enciklopedija prava (Enciclopédia do direito).

Moscou, 1903, p. 28.

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uma contradição resultante da observação pessoal. Mas o sig­nificado permanece o mesmo. A obrigação jurídica não pode ter significado autônomo, e oscila eternamente entre dois limi­tes extremos: a coação exterior e o dever moral "livre".

Como sempre, e aqui igualmente, a contradição no siste­ma lógico reflete a contradição da vida real, ou seja, do meio social que produziu a própria forma da moral e do direito. A contradição entre o individual e o social, entre o privado e o público, que a filosofia burguesa do direito não pode su­primir, apesar de todos os seus esforços, é o fundamento real da própria sociedade burguesa, enquanto sociedade de produ­tores de mercadorias. Esta contradição é encarnada nas rela­ções reais dos homens, que não podem considerar suas ativi· dades privadas (:Orno atividades sociais, senão que sob a for­ma absurda e mistificada do valor mercantil.

Capítulo· Sete

DIREITO E VIOLAÇÂO DO DIREITO

A Russkaja Pravda, que é o mais antigo monumento ju­rídico do período de Kiev de nossa história, contém, eril t:\ldo e por tudo, em seus 43 artigos (da ''lista acadêmica") apenas dois que nãó se referem a infrações ao direito penal ou ao direito civil. Todos os outros artigos definem sanções ou regras de procedimentos que devem ser aplicadas em caso de violação do direito. · Em ambos os casos, conseqüentemente, pressupõe­se umà violação das normas.1

As chamadas "leis bárbaras" das· tribos alemães nos -ofe­recem o mesmo quadro. Assim, por exemplo, nos 408 artigos da lei Sálica, apenas 65 não possuem aspecto repressivo. O mais antigo monumento do direito romano, a lei das Doze Tá· buas, começa pela regra sobre a demanda judiciária: "si in jus vocat, ni it, antestamino igitur in capito"2

• O célebre histo­riador do direito, Maine, diz em seu livro Ancient Law: "Em regra geral, quanto mais velho é um código, mais· a sua parte penal é detalhada e completa"3

1 . Basta menr.ionar o fato de que, neste estágio primitivo do desen­volvimento, o assim chamado "delito" criminal e o "delito" civil não se distinguem. O conceito dominante era o de que o -dano exigia repa· ração: o roubo, a pilhagem, a morte, e o não pagamento de uma dívida eram, indistintamente, considerados como motivos que permitiam ao indivíduo lesado propor uma ação e obter a reparação sob a forma de uma multa.

2. XII tablic, ed. Nikol'skij, 1897, p. 1. 3-. Summer Maine, Ancient Law, p. 288.

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A não submissão à norma, a violação da norma, a ruptura da forma normal das relações e os conflitos que daí resultam constituem o ponto de partida e o principal conteúdo da legis­lação arcaica. O normal, ao contrário, não é fixado como tal; ele s!mplesmente não existe. A necessidade de fixar e de determinar de maneira precisa a extensão e o conteúdo dos direitos e dos deveres recíprocos só surgiu onde a existência calma e pacífica foi turbada. Deste ponto de vista Bentham tem razão, ao dizer que a lei criou o direito ao criar o delito. A relação jurídica adquiriu historicamente o seu caráter espe­cífico, sobretudo, em relação com a violação do direito. O conceito de roubo surge depois do conceito de proptiedade. As relações derivadas do empréstimo são determinadas nos casos em que o devedor não quer pagar: ''desde qué alguém reclame a outrem uma dívida, mas que o outro refute o paga­mento"4.

O significado originário da palavra Pactum (pacto) não é aquele do contrato em geral, mas derivado de pax (paz), isto é, representa a regulamentação amigável de uma disputa: o pacto encerra a disputa5 •

Se o direito privado reflete mais diretam~nte as condições gerais de existência da forma jurídica enquanto tal, o direito penal representa a esfera na qual a relação. jurídica atinge a maior tensão. O momento jurídico, aqui, destaca-se em pri­meiro lugar e mais claramente das práticas costumeiras e tor­na-se totalmente independente. No processo judicial, a trans­formação das ações de ·um homem concreto em atos de parte jurídica, isto é, de um sujeito de direito, é muito clara. Para distinguir as ações e os desejos quotidianos das manifestações jurídicas de vontade, o direito antigo servia-se de fórmulas e cerimônias solenes, particulares . O caráter dramático do processo judicial criou de maneira sensível uma existência ju­rídica particular ao lado do mundo real.

4. Russkaja Pravda, Accademik Liste, art. 14. 5 . R. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, t.• parte, trad. russa,

1875, p. 118. (Há tradução bra,sileita: O Espfrito do Direito Romano, Rio, Editora Alba, 1943, 4 vols. N. do T.).

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 145

De todos os ramos do direito é precisamente o direito penal aquele que possui o poder de tocar a pessoa individual de modo mais direto e ma:s brutal. E. por isso que o direito penal sempre suscitou o maior interesse prático. A lei e a pena que pune a sua transgressão são, em geral, estreitamente ligadas entre si, de forma que o direito penal desempenha o papel de um representante do direito: é uma parte que subs­titui o todo.

A origem do direito penal está historicamente vinculada ao costume da vingança de sangue. Indubitavelmente, estes dois fenômenos estão genericamente muito próximos. Mas a vingança só é realmente vingança quando é seguida de conde­nação. e de pena; igualmente aqui são unicamente os estágios ulteriores do desenvolvimento (como podemos observar muito freqüentemente na história da humanidade) que tornam com­preensíveis os esboços contidos nas formas anteriores . Se abor­darmos o mesmo problema pela extremidade oposta, não pode­mos ver nada mais do que a luta pela existência, uma reali­dade puramente biológica. Para os teóricos do direito penal que se limitam a uma época mais tardia, a vingança de sangue coincide com o jus talionis, ou seja, com o princípio de repa­ração equivalente que exclui a possibilidade de uma vingança ulterior desde que o ofendido, ou sua família, tenham sido vingados. Em realidade, como M. Kovalevskij justamente de­monstrou, a característica mais antiga da vingança de sangue era outra. O ofendido e seus parentes tornavam-se, por sua vez, ofensores, e o ciclo prosseguia de uma geração a outra, freqüentemente até a eliminação completa das famílias ini­migas6.

A vingança não começa a ser regulamentada pelo costume e a se transformar em reparação segundo a regra de talião "olho por olho, dente por dente", mas quando, ao lado da vingança, começa a consolidar-se o sistema de modernização ou reparação em dinheiro. A idéia do equivalente, esta pri­meira idéia puramente jurídica, encontra novamente suas fon-

6. M. Kovalevskij, Sovremennyi obycaj i drevnij zakon (Os usos modernos e a lei antiga), li, Petesburgo e Moscou, 188ti, p. 37-8.

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tes na forma mercantil. O delito pode ser considerado como uma variedade particular de circulação, na qual a relação de troca, a relação contratual, é fixada pela ação arbitrária de uma das partes. A proporção entre delito e separação igual­mente se reduz a uma proporção de troca. Por isto Aristóte­les, ao falar da igualitarização na troca como uma variedade de justiça, distingue dois tipos: a igualitarização nas ações voluntárias e a igualitarização nas ações involuntárias, abran­gendo as relações econômicas de compra, venda, empréstimo, etc. nas relações voluntárias, e as diferentes modalidades de delito, que acarretam sanções a título de equivalentes especí­ficos, nas ações involuntárias. ~ também dele a definição do delito como contrato firmado contra a vontade. A sanção surge, então, como um equivalente que compensa os danos sofridos pela vítima. Esta idéia foi retomada, como se sabe, por Hugo Grotius. Por singelas que estas construções possam parecer à primeira vista, elas, entretanto, denotam uma intui­ção da forma jurídica muito mais fina que as teorias ecléticas dos juristas modernos. Podemos observar muito claramente, nos exemplos da vingança e da pena, por que transições im­perceptíveis o orgânico e o biológico se vinculam ao jurídico. Esta conexão é ainda acentuada p~lo fato de que o homem não é capaz de renunciar à interpretação habitual, jurídica (ou ética) dos fenômenos da vida animal. Ew atribui, sem o que­rer, às ações dos animais, um significado que, a bem da ver­dade, só lhe foi conferido pela evolução ulterior, pelo desen­volvimento histórico da humanidade.

A .autodefesa é um dos fenômenos mais naturais da vida animal, e a· encontramos indiferentemente, seja sob a forma de simples reação individual do ser vivo, seja sob a forma de reação de uma coletividade. Os cientistas que estudaram a vida das abelhas demonstraram que elas defendem a entrada da colméia, atacando toda abelha estranha que tentar invadi-la para subtrair mel. Mas se uma. abelha estranha já penetrou na colméia, ela é morta tão logo seja descoberta. Não é raro encontrar no mundo animal casos nos quais as reações são separadas das ações que as provocaram por um certo lapso de tempo. O ani!Jlal não responde imediatamente ao ataque,

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 147

mas deixa a sua ação para mais tarde, para um momento mais oportuno. Assim, a autodefesa transforma-se em vingança no sentido mais . verdadeiro da palavra. E como a vingança está, para o homem moderno, indissoluvelmente ligada à idéia de reparação equivalente, não é espantoso que Ferri esteja dis· posto a admitir a existência de um instinto "jurídico" entre os animais7 •

Com efeito, a idéia jurídica, isto é, a idéia da equiva­lência, só se exprime limpa e claramente, e só se realiza obje­tivamente no estágio de desenvolvimento econômico no qual esta forma de equivalência torna-se costumeira como igualita­rização nas trocas; por conseqüência, em nenhuma. hipótese no mundo animal, mas apenas na sociedade humana. Para isto não é necessário que a vingança tenha sido completa­mente suplantada pela reparação. ~ precisamente no caso em que a reparação seja considerada como algo desonroso (tal concep~ão predominou durante muito tempo entre os povos primitivos) e no qual a execução da vingança pessoal é consi­derada como um dever sagrado, que o próprio ato de vingança assume uma nova nuance que não possuía desde que ele ainda representava uma alternativa: no presente foi introduzida a idéia de que ele representa a única reparação adequada. A refutação da reparação sob forma de dinheiro põe em evidên­cia, em suma, o fato de que o derramamento de sangue é o único equivalente do sangue já derramado. De fenômeno pu­ramente biológico, a vingança se transforma em instituição jurídica desde que se liga à forma de troca equivalente, da troca · mensurada por valores .

O direito penal arcaico demonstra este vínculo de ma­neira particularmente evidente e grosseira, pondo diretamente em pé de igualdade o dano causado aos bens e o malefício causado à pessoa, com uma ingenuidade à qual as épocas posteriores renunciaram pudicamente. Do ponto de vista do direito romano antigo, não havia nada de anormal no fato de que um devedor insolvente pagasse as suas dívidas com

7. . E. Ferri, Sociologia Criminal, trad. russa com prefácio de Drill', vol. 11, p. 37.

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uma parte de seu corpo (in partes secare) e que um culpado respondesse com seus bens a uma ofensa física feita a outra pessoa. A idéia de composição com base em um equivalente aparece aqui com toda sua nudez, e não é dificultada ou mascarada por nenhuni tipo de momento sobreposto . Em conseqüência, o processo penal assume, igualmente, o cará­ter de um contrato comercial. "Devemos figurar ·aqui, diz Ihering, um mercado no qual uma das partes propõe e a outra éontrapropõe, até que finalmente cheguem a um acordo. Isto era expresso pelos termos pacere, pacisci, depecisci e o acordo propriamente dito pelo termo pactum. E. aqui que apa­rece no velho dire:to nórdico o ofício de mediador, escolhido pelas duas partes, que determina o montante da soma para a conciliação (o arbiter no sentido romano originário)".8

No que concerne às, assim chamadas, penas públicas, em sua origem elas foram introduzidas, principalmente, em razão de considerações de ordem fiscal e serviram para ali-. mentar os cofres dos representantes do poder. "O Estado, diz a este respeito Maine, não exigia do acusado uma multa pelo dano que se supunha ter sido por ele causado, mas exigia apenas uma parte da indenização devida ao querelante, a títu­lo de justa· indenização pela perda de tempo e por seus ser­viços".9

A história russa· nos ensina que esta ''justa indenização pela perda de tempo" era tão considerada pelos príncipes que, segundG o testemunho das crônicas, "o território russo era devastado pelas guerras e pelos impostos". E mais, este mes­mo fenômeno de pilhagem judiciária pode ser observado não apenas na Rússia antiga, mas, igualmente, no império de Car­los Magno. Aos olhos dos antigos príncipes russos, os lucros proporcionados pelas custas judiciais em nada se distinguiam das fontes ordinárias de receita. Eles ofereciam-nos a seus servidores, repartiam-nos, etc. Era possível subtrair-se aos tri· bunais dos príncipes pagando-se uma certa quantia.10

8. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, trad. russa, vol. I, p. 118. (Ver nota 5 do capítulo sete.)

9. S. Maine, op. cit ., p. 269. 10. Cf. a dikaja vira da Russkaja Pravda.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 149

Aliás, ao lado desta pena pública como fonte de renda, surge, muito cedo, a pena comó meio de manutenção da disci­plina e defesa da autoridade do poder clerical e militar. Sabe­se que na Roma antiga a maior parte dos delitos graves era, ao mesmo tempo, delito contra os deuses.U Assim, exemplifi­cadamente, uma das violações do direito mais importantes, para o proprietário rural, o deslocamento de má fé dos marcos de um terreno, era considerada, em toda a antiguidade, como um de­lito religioso, e a cabeça do culpado era oferecida aos deuses. A casta dos religiosos, que surge como a guardiã da ordem, não perseguia, assim, um interesse unicamente ideológico, mas, tainbém, um interesse material muito sólido, pois em tal hipó­tese os- bens do culpado eram confiscados em benefício dela. De outra parte, as penas impostas pela casta dos sacerdotes àqueles que causavam prejuízos à sua receita - ao recusar-se às cerimônias ou oferendas estabelecidas, ou ao tentar introduzir novas doutrinas religiosas, etc. - tinham igualmente um ca­ráter público.

A influência da organização clerical, ou seja,' da Igreja; sobre o direito penal se manifesta no fato de que, ainda que a pena continue a conservar o caráter de equivalente ou de reparação, isto está mais diretamente ligado ao dano sofrido pela vítima, e não mais fulcrado sobre· as pretensões desta última, mas adquire um significado superior, abstrato, enquanto castigo divino. Assim a Igreja quer associar ao momento material da indenização o motivo ideológico da expiação (expiatio) e, por­tanto, fazer do direito penal, baseado sobre o princípio de vin­gança privada, um meio eficaz de manutenção da disciplina pública, isto .é, da dominação de classe. Nesta perspectiva, os esforços do clero bizantino em introduzir a pena de morte no principado de Kiev são reveladores. O mesmo fim de ma-

11. Como o juramento (juramentum) era uma parte integrante e indispensável da relação jurídica (segundo Ihering os termos de "obrigar­se", de "constituir um direito" e de "jurar" possuíam,· por longo tempo, o mesmo significado), a relação jurídica, por completo, estava posta sob a proteção da religião, pois o próprio juramento era um ato religioso e o falso juramento ou o perjúrio eram delitos religiosos (cf. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, p. 304). (Ver nota 5 do cap. sete.)

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nutenção da disciplina igualmente determina o caráter das me­didas punitivas adotadas pelos chefes militares. Estes exercem a justiça tanto sobre os povos subjugados quanto sobre os seus próprios soldados, em casos de motins, complôs ou simplesmente de indisciplina. A célebre passagem de Clóvis, que com suas próprias mãos partiu em dois pedaços a cabeça de um guer· reiro recalcitrante, mostra o caráter primitivo da justiça penal à época do nascimento dos impérios bárbaros germânicos. Nas épocas mais remotas, esta tarefa de manutenção da disciplina militar incumbia à assembLéia popular; com o fortalecimento e a estabilização do poder real, esta função transferiu-se na­turalmente aos reis e identificou-se com a defesa de seus pró­prios privilégios. No que concerne aos delitos crimin~is co­muns, os reis germânicos (bem como os príncipes de Kiev) só o viram, durante muito tempo, com interesses puramente fiscaisY

Está situação se modificou com o desenvolvimento e a estabilização da divisão da sociedade em classes e em estados . O nascimento de uma hierarquia eclesiástica e de uma hie­rarquia laica faz da proteção de seus privilégios e da luta contra as classes inferiores e oprimidas da população uma tarefa prioritária. A desagregação da economia natural e a intensificação consecutiva da exploração dos camponeses, o desenvolvimento do comércio e a organização do Estado ba­seado sobre a divisão em estados e em classes colocam a jurisdição penal à frente de todas as outras tarefas; Nesta época, a justiça penal já não é mais, para os detentores do poder, um simples meio de enriquecimento, mas um meio de repressão impiedosa e brutal, sobretudo dos camponeses que fugissem da intolerável exploração dos senhores e de seu

12. Sabe-se que no antigo direito russo a expressão "fazer justiça por suas próprias mãos" significava, antes de tudo, que se privava o príncipe das custas judiciais que lhe eram devidas. Igualmente no código do rei Erik, as conciliações privadas entre a vítima, ou seus parentes, e o criminoso eram consideradas proibidas se elas privassem o rei da parcela que lhe era devida. No mesmo código, contudo, a acusàção em nome do rei ou de seu magistrado só era autorizada como uma rara exceção (cf. Wilda: Strafrecht der Germanen, 1842, p. 219).

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 151

Estado, assim como dos vagabundos pauperizados, dos men­digos, etc. O aparelho da polícia e da inquisição começa a desempenhar uma ·função proeminente. As penas transformam­se em meios de extermínio físico e de terrorismo . I! a época da tortura, das penas corporais, das execuções capitais mais bárbaras.

Assim constituiu-se progressivamente o complexo amálga­ma do direito penal moderno, no qual podemos distinguir sem dificuldade as raízes históricas que lhe deram origem. Fun­damentalmente, isto é, do ponto de vista puramente socioló­gico, a burguesia assegura e mantém ·sua dominação de classe através do seu sistema de direito penal oprimindo as classes exploradas, Sob este ângulo os seus tribunais e suas ()rgani­zações privadas "livres" e de "fura-greves" perseguem· um mesmo objetivo.

Se considerarmos as coisas deste ponto de vista, a ju­risdição penal não é nada mais do que um apêndice da polí­cia e da investigação. Se os tribunais de Paris tivessem real­mente que fechar suas portas por alguns meses, os únicos que sofreriam seriam os criminosos presos. Mas se as "famo­sas" brigadas da polícia de Paris cessassem o seu trabalho, por apenas um dia, o resultado seria catastrófico.

A jurisdição criminal do Estado burguês é o terror de classe organizado que só se distingue em certo grau das cha­madas medidas excepcionais utilizadas durante a guerra civil. Spencer demonstrou a analogia completa, a própria identi­dade existente entre as ações defensivas dirigidas contra os ataques externos (guerra) e as reações contra aqueles que perturbam a ordem interna do Estado (defesa judiciária ou jurídica).JJ O fato de que as medidas do primeiro tipo, isto é, medidas penai~ sejam utilizadas principalmente contra os elementos desclassificados da sociedade, e que as medidas do segundo tipo o sejam principalmente contra os militantes mais ativos de uma nova classe que deseja assumir o poder, não muda a natureza fundamental das coisas, mas, apenas, a re-

13. H. Spencer, Principies of Sociology, 1876, trad. russa, 1883, p. 659.

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gularidade e complexidade maior ou menor do procedimento utilizado. Não se pode compreender o verdadeiro sentido da Pt"ática penal do . Estado de classe sem partir de sua natureza antagonista. As teorias do direito penal que deduzem os prin­cípios da política penal a partir dos interesses do conjunto da sociedade são deformações conscientes da realidade. "O conjunto da sociedade" só existe na imaginação dos juristas; só existem, de fato, classes com interesses opostos, contradi­tórios. Todo sistema histórico e determinado de política penal traz a marca dos interesses da classe a qual serve. O senhor feudal executava o camponês insubmisso e os citadinos que se opunham à sua dominação. Na Idade Média todo indívi­duo que quisesse exercer uma profissão sem ser membro de um~ corporação era considerado fora da lei; a burguesia ca­pitalista, tão logo surgiu, declarou criminosos os esforços dos operários para se reunirem em associações .

O interesse de classe imprime, destarte, em· cada sistema penal a marca da concretização histórica. No que concerne aos próprios métodos de política penal, é usual ressaltar os grandes progressos consumados pela sociedade burgues.a desde a época de Beccaria e de Howard com a àdoção de penas mais humanas: abolição da tortura, das penas corporais e das penas infamantes, das execuções capitais bárbaras, etc. Tudo isto representa, sem dúvida, um grande progresso. Mas, não se pode esquecer que a abolição das penas corporais não ocor­reu em todo lugar. Na Inglaterra o açoite é permitido, até 25 golpes de vara para os menores de 16 anos, e até 150 golpes para os adultos, como punição para o roubo e o furto. Também os marinheiros sofrem suplícios corporais. Na Fran­ça, o castigo corporal é aplicado como sanção disciplinar aos penitenciários.14 Na América, em dois Estados da União, mu­tilam-se os criminosos, fazendo-os sofrer emasculação. A Di­namarca introduziu em 1905, para uma série de delitos, cas­tigos corporais. Mais recentemente, a queda da república so­viética da Hungria foi comemorada com a introdução do açoite aplicado como pena para uma gama de delitos contra a pessoa

14. I. J. Fojnickij, Ucenie o nakazanii (Teoria da pena); p. 15.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 153

e a propriedade.15 Além disso, deve ser notado que os últimos decênios do século XIX .e os primeiros decênios do século XX viram nascer, em um certo número de Estados burgueses, um.a tendência característica à restauração de penas aflitivas, cruéis e infamantes. O humanismo da burguesia cede lugar aos apelos da severidade e a uma maior aplicação da pena de morte.

Segundo Kautsky isto se explicaria pelo fato de que a burguesia tinha . uma atitude pacifista e humanitária no fim do século XVIII e no início do século XIX, ou seja, até a introdução do serviço militar obrigatório, porque ela não ser­viu o exército. E muito duvidoso que esta seja a razão fun­damental. A transformação da burguesia em uma classe reacio­nária que possui medo ·do ascenso do movimento operário, que transformou a política colonial em uma escola de cruel­dade, foram as causas mais importantes .

Somente o desaparecimento completo das classes permi­tirá criar um sistema penal do qual será excluído qualquer elemento de antagonismo de classe. A questão que se coloca é saber em quais circunstâncias tal sistema penal ainda será necessário. Se a prática penal do poder de Estado é em seu conteúdo e em seu caráter um instrumento de defesa da domi­nação de classe, em sua forma ela aparece como um elemento de superestrutura jurídica e integra-se no sistema jurídico como um de seus ramos. Mostramos precedentemente que a luta aberta pela sobrevivência assume, com a introdução do princípio da equivalência, forma jurídica. O ato de legítima defesa ,perde sua característica de simples defesa e torna-se uma forma de troca, um modo particular de circulação que encontra seu lugar ao lado da circulação comercial "normal". Os delitos ,e as penas transformam-se naquilo que realmente são, ganham característica jurídica, sobre a base de um con­trato. Enquanto esta forma se conserva, a luta de classe se realiza pelo direito. Inversamente, .a própria denominação "di­reito penal" perderia todo o sentido se este princípio de rela­ção de equivalência desaparecesse .

14. I. J. Fojnickij, Ucenie o nakazanii (Teoria da pena), p. 15.

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O direito penal é uma parte integrante da superestrutura jurídica, na medida em que encarna uma variedade desta forma fundamental à qual a sociedade moderna está subme­tida: a forma de troca de equivalentes com todas as suas conseqüências. A realização destas relações de troca no di­reito penal é um aspecto da· realização do Estado de direito como forma ideal das relações entre. produtores de mercado­rias independentes e iguais que'atúam no mercado. Mas como as relações sociais não se· limitam às relaÇões j1,1rídicas abstra­tas entre proprietários abstratos de mercadorias, a justiça penal não é apenas uma encarnação da forma jurídica abstrata, mas, também, uma arma poderosa na luta de classes. Quanto mais esta luta se torna aguda e violenta, mais a dominação de classe tem dificuldades de se realizar no interior . da forma jurídica. Neste caso o tribunal "imparcial" com suas garantias jurídi­cas ,é substituído por uma organização direta da violência de classe, cujas ações são geradas exclusivamente por considera­ções de oportunidade política.

Se considerarmos a sociedade burguesa, em sua essência, como uma sociedade de proprietários de mercadorias, faz-se necessário considerar a priori que o seu direito penal é jurí­dico em seu sentido mais elevado, no sentido mais preciso do termo. Ora, parece-nos que, desde o início, este ponto nos traz diferentes dificuldades. A primeira consiste em que o direito penal moderno não · parte a priori do dano sofrido pela parte lesada, mas da violação da norma estabelecida pelo Estado. Mas, se a parte lesada passar a segundo plano, pode­remos nos questionar onde se situa a forma da equivalência. Ainda que a parte lesada não desapareça inteiramente, ainda que ela permaneça em segundo plano: ela representa, ainda assim, o fundo da ação em curso. A abstração do interesse público lesado apura-se, inteiramente, na figura real da parte interessada, seja pessoalmente, seja através de um representante, dando com isto uma significação nova ao processo.16

16. A satisfação dada à parte lesada é considerada, nos dias atuais, como uma das finalidades da pena (cf. F. V. List, Lehrbuch des deuts· chen Strafechts, 1905, parágrafo 15).

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 155

Desta abstração, a propósito, encontramos uma tradução real na figura do promotor público, mesmo nos casos nos quais realmente não existem vítimas e nos quais é somente a lei que "protesta". Este desdobramrnto, pelo qual o xpesmo poder de Estado aparece tanto no papel de parte judiciária (promotor) quanto no papel de juiz, mostra que o processo penal como forma jurídica é inseparável da figura de vitima exigindo "reparação" e, em conseqüência, da forma mais ge­nérica do contrato. O promotor público demanda, como con­v.ém a uma ''parte", um "prego" elevado, ou seja, uma pena severa. O réu solicita indulgência, "uma redução", e o tribu­nal se pronuncia "com equidistância". Se rejeitarmos esta for­ma de contrato, retiraremos do processo penal toda a sua "alma jurídica". Imaginemos um momento no qual o tribunal só se ocupa com a forma pela qual as condições de vida do réu podem ser utilizadas para condená-lo ou para proteger a sociedade, e todo o significado do próprio termo "pena" rapi­damente volatilizar-se-ia. Isto não quer dizer que todo proce­dimento penal e o processo de execução sejam totalmente des­tituídos dos elementos simples e compreensíveis mencionados acima; apenas queremos demonstrar que este procedimento possui particularidades as quais não se deixam esgotar por considerações claras e .simples sobre a finalidade social, mas representam um momento irracional, mistificador e absurdo. Queremos demonstrar que, em específico, este momento é o momento jurídico.

Existe mais uma outra dificuldade. O direito penal ar.­caico só conhecia o conceito de dano. As noções de dolo e culpabilidade, que no direito penal moderno ocupam lugar muito importante, não existiam naquela etapa de desenvolvimento. O ato premeditado, o ato de imprudência e o caso fortuito so­mente eram avaliados por suas conseqüências. Os costumes dos franceses e dos Ossetas atuais situam-se no mesmo nível de desenvolvimento. Estes últimos não fazem, por exemplo, nenhuma espécie de diferença entre uma morte causada. inten­cionalmente por uma estocada de punhal e a morte provocada

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pela queda de uma pedra em conseqüência de um passo em falso de uma cabraP

Como se vê, o conceito de responsabilidade não era com­pletamente estranho ao direito antigo. Era determinado de forma diferente. No direito penal moderno nós temos, con­forme o individualismo radical da sociedade burguesa, o con­ceito da responsabilidade estritamente pessoal. O direito an­tigo, ao contrário, era pleno do conceito de responsabilidade coletiva. Puniam-se as crianças pelos delitos de seus pais e a gens era responsável por cada um de seus membros. A socie­dade burguesa dissolve todos os vínculos primitivos e orgâni­cos preexistentes entre os indivíduos. Ela proclama o prin­cípio: "cada um por si" e o realiza em todos os seus domínios - inclusive no direito penal - de maneira bastante conse­qÜente. E mais, o direito penal moderno introduziu no con­ceito de responsabilidade um elemento psicológico, dando-lfu: uma grande complexidade, distinguindo diversos níveis: res­ponsabilidade por uma conseqüência prevista (premeditação) e responsabilidade por uma conseqüência imprevista, mas pos­sível (ato por imprudência). Por fim, constitui o conceito de não-imputabilidade, ou seja, de abstenção completa de respon­sabilidade. A introdução do elemento psicológico no conceito de responsabilidade significa a racionalização da luta contra a criminalidade. E somente sobre a base da distinção entre ações imputáveis e as não-imputáveis que se pode construir uma teoria das medidas preventivas particulares e gerais. Na medida em que a relação entre o delinqüente e a autoridade penal é constituída como uma relação jurídica e se desenvolve sob a forma de processo judicial, este novo momento não ex­clui, em hipótese nenhuma, o princípio de reparação equiva­lente, mas, pelo contrário, cria uma nova base para sua apli-

17. Desde que um animal de uma tropa de burros, bois ou cavalos derrube uma pedra da montanha, lemos nos costumes escritos dos Ossetas, e que esta pedra fira ou mate um indivíduo, os parentes do fe­rido ou do morto perseguem, com sua vingança sangrenta, o proprie­tário do animal, dà mesma maneira que o fariam se a morte tivesse sido intencional, ou então exigem-lhe o preço de sangue (cf. Kovalevskij, Sovremennys obycaj i drevnij zakon, p. 105).

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 157

cação. O que significam estas distinções de graduação na res­ponsabilidade senão que a diferenciação nas condições de um futuro contrato? A graduação da responsabilidade é um dos fundamentos da escala de penas, é um novo momento, ideal ou psicológico se quisermos, que se acrescenta ao momento material do dano e ao momento objetivo do ato para com eles constituir o fund~mento da determinação proporcional da pena. O ato premeditado comporta a responsabilidade mais pesada e assin;t necessita da pena mais severa; o ato praticado com imprudência comporta uma responsabilidade menor e, logo, uma pena mais leve; por fim, no caso de ausência de responsabilidade (o autor é não-imputável), a pena não é deter­minadã. Se substituirmos as medidas penais pela terapêutica, ou seja, por um conceito médico e profilático, chegaremos a resultados totalmente diferentes. Nesta hipótese não é a prô­poJcionalidade das penas que nos interessará, mas sim se as medidas empregadas correspondem ao fim fixado, isto é, se permitem proteger a. sociedade e agir sobre o delinqüente, etc. Deste ponto de vista pode-se chegar finalmente à conclusão de que a relação esteja invertida: que exatamente em um caso de responsabilidade atenuada as medidas mais intensivas e mais .longas sejam as necessárias.

A idéia de responsabilidade é indispensável se a pena se apresenta como um ·meio de reparação. O delinqüente responde com sua liberdade por um delito cometido e com um quantum proporcional. à gravidade de seu ato. Esta noção de responsabilidade é supérflua quando a pena não tem cará­ter equivalente. Mas se, efetivamente, não mais existe ne­nhum traço de equivalência, a pena, em geral, deixa de ser pena no sentido jurídico do termo.

O conceito jurídico de culpabilidade não é um conceito científico, pois remete-se diretamente às contradições do inde­terminismo. Do ponto de vista do encadeamento de causas que determinam um acontecimento qualquer, não há a me· nor razão em privilegiar o nexo causal em detrimento de ou­tros. As ações de um homem psiquicamente anormal (irres­ponsável) são tão determinádas por uma série de causas (here· ditariedade, condições de vida, meio, etc.) quanto as ações de

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um homem normal (inteiramente responsável) . :1.! interessante observar que a pena aplicada sob a forma de medida peda­gógica (ou seja, sem referência à noção de equivalência) não está ligada a considerações sobre· a imputabilidade, liberdade de escolha,. etc. , e que ela sequer as necessita. A racionali­dade da pena (aqui falamos, evidentemente. ,da racionalidade em sentido mais geral, independentemente da forma, da cle­mênc!a ou da severidade da pena) é determinada, na pedago· gia, exclusivamente pela capacidade de um indivíduo captar suficientemente o vínculo existente entre suas próprias ações e lembrar-lhe as conseqüências desagradáveis por elas causa­das. As pessoas que a lei penal considera como irresponsáveis, ou seja, os menores, os psicologicamente anormais, etc., sob este ângulo são igualmente imputáveis, isto é, influenciáveis em um determinado sentido.18

A pena proporcional à culpa representa fundamen­talmente o mesmo que a reparação proporcional ao dano. Esta expressão aritmética que caracteriza o rigor da sentença: tantos dias, meses, etc. de privação da liberdade; multa de tal ou qual valor; perda de certos direitos. A privação da li­berdade, ditada pela sentença do tribunal, por um certo pe­ríodo de tempo é a forma .específica pela qual o direito penal moderno, burguês-capitalista, realiza o princípio da re­paração equivalente. Esta forma está inconscientemente, em­bora profundamente, ligada à representação do homem abstra· to e do trabalho humano abstrato avaliados em tempo. Não foi por acaso que esta modalidade de apenamento foi implan-

18. O célebre psiquiatra Kraepelin afirma "que um trabalho peda­gógico com os alienados, tal qual ele realizou com grande sucesso, seria naturalmente impensável se todos alienados, que não foram tocüdos pela lei penal, estivessem efetivamente privados de sua liberdade de autode­terminação, no sentido adotado pelo legislador" (E. Kraepelin, Die Abs­chaffung des Strajmasses, 1880, p. 13). Evidentemente, o autor faz uma ressalva no sentido de que ele não pretende propor a responsabilização penal dos alienados. Entretanto, estas considerações mostram com bas­tante clareza que o direito penal não utiliza o conceito ·de culpabilidade como condição de .culpabilidade no sentido que a definem a psicologia científica e a pedagogia.

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 159

tada e tida como natural precisamente no século XIX, ou seja, em uma época na qual a burguesia pôde desenvolver e apri­morar todas as suas características. As prisões e celas exis­tiam na Antiguidade e na Idade Média ao lado de outros meios de exercício da violência física. Mas os indivíduos geralmente ficavam detidos até a morte ou até que pudessem pagar os danos causados .

Para que a idéia de possibilidade de reparar o delito com a privação de um quantum de liberdade pudesse nascer, foi necessário que todas as formas concretas de riqueza social estivessem reduzidas à forma mais abstrata e mais simples - o trabalho humano medido em tempo. Indubitavelmente, esta­mos diante de um exemplo de interação entre os diversos aspectos da cultura. O capitalismo industrial, a Declaração dos Direitos do Homem, a economia política de Ricardo e o sistema de detenção temporária são fenômenos que pertencem a uma mesma época histórica.

Se o caráter de equivalência da pena, . sob sua forma grosseira, brutal, materialmente sensível de coação física, con­serva, precisamente devido a esta brutalidade, sua significàção elementar, acessível a todos, em contrapartida, sob a forma abstrata de privação de líberdade por um certo tempo, desa­parece a evidência de seu significado, ainda que tenhamos o costume de caracterizar a pena como proporcional à gravidade do ato. Eis porque tantos teóricos do direito penal, parti­cularmente os que se pretendem progressistas, esforçam-se por suprimir totalmente o momento de equivalência como uma manifestação absurda e concentram a sua atenção sobre as finalidades racionais da pena . O erro dos criminalistas pro­gressistas é de acreditar que estão em presença - ao criticar as teorias absolutistas do direito penal - de concepções falsas, de equívocos de pensamento que podem ser refutados pela simples crítica teórica. Em realidade, esta forma absurda de equivalência não é uma conseqüência do equívoco de alguns criminalistas, mas uma conseqüência das relações materiais de produção mercantil nas quais se nutre. A contradição entre os fins racionais da proteção à sociedade ou da reeducação dos delinqüentes e o princípio da reparação equivalente não

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160 E. B. P ASUKANIS

existe apenas nos livros e nas teorias, mas na própria vida, na prática judiciária, na própria estrutura da sociedade. Por igual, a contradição entre as relações recíprocas que os homens, enquanto tais, mantêm no trabalho e a absurda forma de expressão destas relações, o valor mercantil, não reside nos livros e nas teorias, mas na própria prática social. Para de­monstrá-lo, será necessário fixarmo-nos em alguns momentos. Se na v:ida social a pena fosse efetivamente consideracta uni­camente do ponto de vista de seu fim a execução da pena e seus resultados deveriam gerar grande interesse. Contudo, ninguém poderá contestar o fato de que o centro de gravidáde do processo penal se situa, na imensa maioria dos casos, no interior da sala de audiências e no exato momento no qual a sentença é proferida. O interesse demonstrado pelo método de ação terapêutica sobre os delinqüentes é insignificante se comparado com o interesse suscitado pelo impressionante ins­tante de prolação da sentença e determinação da "medida pe­nal". As questões da reforma penitenciária só interessam a um pequeno grupo de especialistas. Ao contrário, a questão que, para o público, se o encontra no centro de suas atenções é a de saber se a sentença corresponde ou não à gravidade do delito. Para a opinião pública, desde que o tribunal tenha determinado corretamente o equivalente, tudo está regulamen­tado, e o destino ulterior do delinqüente não interessa a quase ninguém. "A execução da· sentença, diz Krohne, um dos espe• cialistas mais conhecidos do mundo, é o ponto mais delicado do direito penal';, quer dizer, é relativamente negligenciado. "Se tiverdes, prossegue, as melhores leis, os melhores juízes, as melhores sentenças, mas se os funcionários encarregados da execução penal forem incapazes, podeis jogar as leis no lixo e queimar as sentenças".l9 /

. Mas a predominância do princípio da reparação equi­valente não se manifesta apenas nesta parcela da opinião pú­blica. Ela se manifesta também na própria' prática judiciária. A que fundamentos se referem de fato as sentenças citadas por

19. Citado por G. Aschaffenburg, Das Verbrechen und seine Be· kiimpfung, Heidelberg, 1906, p. 216.

A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 161

Aschaffenburg em seu livro Das verbrechen und seine Be­kampfung? T~memos alguns exemplos dentre tantos outros: um delinqüente reincidente que fora ccndenado 22 vezes por estelionato, roubo, chantagem, etc. foi condenado pela 23." vez a 24 dias de prisão por desacato a autoridade. Um outro, que passou 13 anos em penitenciárias e prisões, 16 vezes con­denado por roubo e chantagem, foi condenado pela 17 .• vez a quatro meses de prisão por chantagem. Nestes casos não se pode falar em função de defesa ou de reeducação. ~ o prin­cípio formal da equivalência que, no particular, triunfa: à crueldade igual, pena iguàl.20 Aliás, o que mais o tribunal po­deria fazer? Ele não pode esperar recuperar ein 3 semanas um reincidente contumaz, mas, por outro lado, não pode en­carcerar por toda a vida o indivíduo em questão por um sim­ples desacato a autoridade. Não lhe resta nada, a não ser pagar, o delinqüente, com a mesma moeda (algumas sema­nas de privação da liberdade). Aliás, a justiça burguesa zela cuidadosamente para. que o contrato com o delinqüente seja concluído dentro de todas as regras da arte, de forma ·que cada um possa convencer-se de que o pagamento é igualmente determinado (publicidade do processo judicial), e de que o delinqüente pode negociar livremente sua liberdade (processo contraditório), e que pode utilizar-se de um profissional tecni­camente preparado (admissão de advogados de defesa), bem como que · cada um possa controlar a aplicação da lei. · Em uma palavra, as relações entre o Estado e o delinqüente situam­se nos quadros de um negócio comercial lea1mente estabele­cido. ~ nisto que constituem as garantias do processo penal.

O delinqüente deve saber por antecipação do que 'está sendo acusado e em.que implica esta acusação: nullum crimen, nulla poena sine lege. O que isto significa? ~ necessário que cada delinqüente saiba exatamente quais os métodos de corre­ção que lhe são aplicados? Não, a coisa é muito simples e mui­to mais brutal. Ele deve saber que quantum de libevdade

....

20. Este absurdo não é nada mais do que o triunfo da idéia jurí­dica, pois o direito é precisamente a aplicação de uma medida igual, e nada mais do que isto.

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162 E. B. P ASUKANIS

deverá pagar em conseqüência do contrato concluído com o tribunal. Ele deve conhecer, por antecipação, as condições em que quitará seus débitos. Este é o sentido dos códigos penais e dos prccedimentos penais.

Não se deve imaginar que inicialmente no direito penal reinasse a falsa teoria da reparação e que esta foi suplantada pelo justo ponto de vista da defesa social. Não se deve acre­ditar que o desenvolvimento ocorreu apenas no plano das idéias. Em realidade, a política penal, tanto antes quanto depois do aparecimento da tendência sociológica e antropológica na cri­minalidade, tinha um conteúdo de defesa social (ou, mais exa­tamente, de defesa da classe dominante). Mas ao lado disto continha, e contém, elementos que não provinham desta fina­lidade técnica e que assim não permitiam ao processo penal exprimir-se inteiramente sob a forma racional e não injustifi" cada de regras técnicas sociais . Estes elementos cujas origem não deve ser procurada na política penal enquanto tal, mas mais profundamente, dão às abstrações jurídicas do delito e da pena sua realidade concreta e conferem-lhe uma significa­ção prática no âmbito da sociedade burguesa, apesar de todos os esforços em contrário realizados pela crítica teórica.

Um representante notório da escola sociológica, van Ham­mel. declarou no congresso de criminalística de Hamburgo, em 1905, que os principais obstáculos que se apresentavam à criminologia· moderna eram os tais conceitos de culpabili­dade, de delito e de pena. Tão logo nos desvencilhemos destes conceitcs, acrescenta, tudo irá melhorar. Podemos retrucar estas considerações, dizendo que as formas de consciência bur­guesa não se deixarão suprimir unicamente por uma crítica ideológica, pois constituem um todo com as relações materiais que exprimem. O único caminho para dissipar estas aparên­cias tornadas realidade é o da abolição prática destas rela· ções, a luta revolucionária do proletariado e a realização do socialismo .

Não basta, apresentar a culpabilidade como um precon· ceito, para que possamos .introduzir na prática uma política

. penal que a torne efetivamente supérfh1a. Enquanto a forma mercantil e a forma jurídica que dela decorre continuarem

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 163

a imprimir a sua marca na sociedade, a idéia absurda, do ponto de vista não jurídico, de que a gravidade de cada delito pode ser pesada e expressa em meses ou em anos de encarce­ramento conservarão sua força e significação reais na prática judiciária .

Naturalmente pode-se evitar a proclamação desta idéia sob forma tão brutal e chocante, contudo tal não significa que escapemos definitivamente de sua influência na prática. A modificação tecnológica nada muda na essência das coisas . O Comissariado do Povo para a Justiça de URSS* publicou, em 1919, os princípios diretores de direito penal nos quais repousa o princípio da culpabilidade como fundamento da pena e onde a própria pena é caracterizada não como repara­ção-de um erro, mas, exclusivamente, como medidas de defesa. O código penal da URSS, de 1922,. também adota o conceito de culpabilidade. Por fim, "os ·princípios fundamentais de le­gislação penal da União Soviética" excluem totalmente a deno· minação de "pena" e a substituíram pela seguinte designação: "medidas judiciário-corretivas de defesa social".

Tal modificação de terminologia certamente possui valor demonstrativo. · Todavia a questão não será resolvida, de ma­neira satisfatória, por meras demonstrações. A transformação da pena de reparação em medida adequada de· defesa social e de reeducação de indivíduos socialmente perigosos exige a so· lução de uma enorme tarefa de organização que permanece não apenas fora do domínio da atividade puramente judiciária, mas que, em caso de sucesso, torna totalmente inúteis o pro­cesso e a sentença· judicial. Com efeito, desde que tal tarefa esteja resolvida,. a ação de reeducação não será uma· simples "conseqüência jurídica" da sentença que pune um "delito" qualquer, mas transformar-se-á em função social autônoma, de natureza terapêutica ou pedagógica. Nosso desenvolvimento vai, e irá sem nenhuma dúvida, nesta direção. Provisoria­ménte, contudo, enquanto for necessário _acentuar o termo "ju-

* Utilizou-se a sigla URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) por ser mais atual. ·Em realidade, trata-se da República Socialista Soviética Federal !la Rússia (RSSFR) (N. do T.).

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diciário" quando falamos das medidas de defesa sccial, en­quanto persistirem as formas materiais do processo judicial e do código penal, a modificação da terminologià~ em grande medida, será uma reforma puramente formal. Obviamente, tal fato não poderia escapar das atenções dos juristas que anali­saram o nosso código penal. Cito apenas algumas opiniões. N. Poljanskij observa na parte especial do código penal "a negação do conceito de culpabilidade .é puramente exterior" e que "a questão da culpabilidade e de seus graus é sublinha­da na prática cotidiana dos tribunais"~"-.

M. Isaev22 diz que o conceito de culpabilidade "não é ignorado pelo código penal de 1922, e uma vez que ele dis­tingue a premeditação da imprudência, opondo as duas hipJ. teses, distingue igualmente a pena da medida de defesa sociàl no sentido estrito"23

Em sendo assim, tanto o código penal em si, quanto o procedimento judiciário para o qual foi criado, são penetrados em todo o seu interior pelo princípio jurídico da reparação equivalente. O que é a parte geral de qualquer código penal (inclusive do nosso), com seus conceitos de cumplicidJ!de, de co-responsabilidade, de tentativa, de preparação, etc., senão que um método de avaliação mais precisa da culpabilidade? O que significaria o conceito de inimputabilidade, se não exis­tisse o conceito de culpabilidade? E finalmente para que ser· viria a . parte especial do código penal, se se tratasse apenas de medidas sociais (de classe) de defesa?

Uma aplicação conseqüerite do princípio de defesa da sociedade não exigiria a determinação de corpos de delito dis­tintos (aos quais se ligam logicamente as medidas penais fixa­das pela lei ou pelo tribunal), mas uma descrição precisa dos

21. N. N. Poljanskij, "O código penal da URSS e o código penal alemão", in: Pravo i Zizn, 1922, 3.

22. M. M. Isaev, "O código penal de L""de junho de 1922", in: Sovestkoe pravo, 1922, 2.

23. Cf., "também, Trachterov, "a fórmula da irresponsabilidade no código penal da República Socialista Soviética da Ucrânia", in: Vestnik Sovetskoj justicii, órgão do Comissariado do Povo para Justiça da Repú-blica da Ucrânia, n.o 5, 1923. ·

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A TEORIA GERAL DO DIREITO E O MARXISMO 165

sintomas que caracterizam o estado socialmente perigoso e uma elaboração precisa dos métodos a serem aplicados em cada caso particular para proteger a sociedade. O ponto crucial não está, como pensam alguns, no fato de que a medida de defes·a social está vinculada, em sua aplicação, a momentos subjetivos (forma e grau de perigo social), ainda que a pena repouse sobre um ponto objetivo, um delito concreto definido na parte especial do código penal24

• O ponto crucial reside no caráter deste vínculo. Com efeito, é difícil separar a pena de sua base objetiva, porque não podemos rejeitar a forma de equivalência sem negar a característica fundamental da pena. Logo, é apenas o corpo de delito concreto que possui certa margem de uma grandeza mensurável e, por conseguinte, de um certo tipo de equivalência. Pode-se con·strapger um indivíduo a expiar uma certa ação, mas .é absurdo forçá-lo a expiá-Ia porque a sociedade o considera (a ·pessoa em tela) perigoso. Eis por que a pena supõe um corpo de delito* fixado com precisão, ainda que a medida de defesa social não neces­site tal· suposição. A expiação forçada é uma coação jurídica que se exerce sobre o sujeito no interior da formalidade pro­cessual da sentença e de sua execução. A coação, enquanto medida de defesa social, é um ato de pura oportunidade em conformidade com um objetivo, e, como tal, pode ser deter­minado por regras técnicas. Tais regras podem possuir maior ou menor complexidade, se o objetivo for a eliminação mecâ­nica do indiv~duo perigoso ou a sua recuperação. Em cada caso os fins fixados pela sociedade encontram nestas regras uma expressão simples e clara. Nas normas jurídicas, ao con­trário, que e~tabelecem penas determinadas para delitos deter­minados, a finalidade social encontra-se mascarada. O indiví­duo que está sendo submetido a uma ação de reeducação é posto na situação de um devedor que deve reembolsar suas dívidas. Não é por acaso que o termo "execução" é usado tanto para o cumprimento coativo das obrigações jurídicas privadas, como para as penas disciplinares. Exatamente a mes-

24. Cf. Piontkovskij, "A medida de defesa social e o código penal", in: Sovetskoe pravo, n.o 3 (6), 1923.

* Antiga denominação de crime. (N. do T.).

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ma coisa é expressa pelo termo "purgar suas penas". O de­linqüente que purgou sua pena retoma ao ponto de partida, ou seja, à existência indiv1dualista dentre a sociedade, à "liber­dade" de contratar obrigações e de cometer delitos.

O direito penal, assim como o direito em geral, é uma forma de relação entre sujeitos egoístas isolados, portadores de interesses privados autônomos ou proprietários ideais. Os mais persPicazes criminalistas burgueses perceberam muito bem este liame entre o direito penal e a forma jurídica em geral, a saber, as condições fundamentais sem as quais uma sociedade de produtores mercantis é impensável. :É por isso que os representantes extremados da escola sociológica e an­tropológica, que convidam a pôr ad acta os conceitos de delito e de culpabilidade e terminar em geral com a elaboração jurí­dica do direito penal, respondem, muito razoavelmente, assim: neste caso, o que ocorre com o princípio da liberdade civil, das garantias da legalidade do processo, do princípio "nullum crimen sine lege", etc.?

Esta é precisamente a posição de Cubinskij, em sua polê­mica contra Ferri, Dorado e outros25

• Aqui vai uma passagem característica: ''Mesmo apreciando sua (a de Dorado) bela cren­ça na onipotência da ciência, ainda assim preferimos perma­necer em terreno sólido, contar com a experiência histórica e c~m fatos reais; nesta hipótese devemos reconhecer que não é um arbítrio 'ilustrado e racional' (e quem garante que este arbítrio será assim?) desejável, mas uma ordem jurídica sólida cuja manutenção exige que seja realizado o seu estudo jurí­dico".

Os conceitos de delito e pena são, como ressai do que foi dito precedentemente, determinações necessárias da forma ju­rídica, da qual não poderemos nos desembaraçar até que come­ce o desaparecimento da superestrutura jurídica em geral. E tão logo comece realmente a desaparecer - e não apenas nas declarações -, estes conceitos tornar-se-ão inúteis, então esta será a melhor prova de que o horizonte limitado do direito burguês enfim se alarga à nossa frente.

25. Cf. M. Cubinskij, Kurs ugolovnogo prava (Curso de direito penal), 1909, p. 20..33.

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rNDICE ONOMÁSTICO

ADORACKIJ, V. V. 52, 120 '(nota) ALEKESEEV, I. 72 (nota) ARISTóTELES 146 ASCHAFFENBURG, G. 160 (nota)

BECCARIA, C. B. 36, 152 BENTHAN, J. 144 BERBOHM, K. 35, 36 (nota) BIERLING, E. R. 68 (nota), 69 (nota) BINDER, J. 140 BOUKHARINE, N. 20 (nota) BRINZ 89 (nota)

CARLOS MAGNO 148 CLOVIS 150 COHEN. H. 12 CUBINSKIJ, M. 166

DERNBURG, H. 89, 95 (nota) DORADO 166 DUGUIT, L. 67, 68, 69 (nota), 70 (nota)

ENGELS, F. ERIK, rei

22 (nota), 43, 46 (nota), 97 (nota), 114, 132 150 (nota)

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168 E. B. P ASUKANIS

FERNECK, A. H. V. 56 (nota) FEUERBACH, L. A. 116 · FERRI, E. 147 (nota), 166 FICHTE, J. G. 87 (nota) FRANKLIN, B. 88 (nota) FOJNICKIJ, I. J. 152 (nota)

GIERKE, O. 91 (nota), 92 (nota), 101 (nota), 112 (nota) GROTIUS (HUGO VAN GROOT) 119, 146 GOJCHBARG, A. G. 69 (nota), 70 (nota), 76, 77

HAMMEL, V. 162 HÀURIOU, M. 96, 97, 109, 112 (nota) HARRIMAN, E. A. 104 (nota)· HEGEL, G. W. F. 61, 83, 100 HEYSE, H. 99 HEIZEN, K. 62 HOWARD 152

IHERING, R. 73 (nota), 78, 144 (nota), 148, 149 (nota). IL'INSKIJ, T. 78, 79 ISAEV, M. M. 164

JABLOCKOV, T. 50 (nota) JELINEK, G. 75 (nota), 120 (nota), 121 (nota)

KANT, I. 129, 130, 131, 133 KELSEN, H. 15, 16, 37, 44, 55, 56, 123, 139 KARNER, J. (pseudônimo de KARL RENNER) 13, 20

98 (nota) KAUTSKY, K. 153 KAVELIN, K D. 66 (nota) KORKUNOV, N. M. 71 (nota) KOTLTAREVSKIJ, S. A. 76 (nota), 110 (nota), 124 (nota),

125 (nota)

q!·:;-

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íNDICE ONOMÁSTICO 169

KOVALEVSKIJ, M~ 145 (nota), 156 (nota) KRAEPELIN, E. 158 (nota) KROHNE 160

LABAND 76 (nota), 120 (nota) LASSALE .. F. 29 LENIN (VLADIMIR ILICH ULIANOV) 28 LIST, F. V. 154 (nota)

MARX, K. 3. 6, 7, 10, 21, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 32 (nota), 34, 37, 38, 42, 47, 52· (nota), 61, 62, 67 (nota) 73,.. 81, 82, 83, 84, 86 (riota), 92, 94, 96, 102, 106, 109, 116, 117, 118 (nota), 127, 128 (nota), 129, 13.5, 137

. MAGAZINER, J. M. . 132 MAINE, S. 133, 143, 148 MERKEL, A. 71 (nota) MUROMCEV, M. A. 72 (nota)

NAPOLEÃO 88 (nota)

PETRAZICKIJ, L. 44, 55, 68, 71, 141 PIONTKOVSKIJ 165 (nota) POLJANSKIJ, N. N. 164 PROKROVSKIJ, M. N. 19 (nota), 117 PROUDHON, P. J. 97 (nota), 137 PUCHTA, G. F. 83 (nota), 113 (nota)

RAZUMOVSKIJ, I. P. 78, 79, 80, 81, 82, 115 REJSNER, M. 41, 43, 44, 45, 46 (nota}, 53 RENNER, K. ver KARNER RICARDO, D. 159 RÓUSSEAU, J. J. 88 (nota) ROZHDESTVENSKIJ 83 (nota)

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170 E. B. P ASUKANIS

SAVAL'SKIJ 12 SCHLOSSMAN 95 (nota) SCHMIDT, C. 46 (nota) SCHOPENHAUER, A. 132 SSNECA (LUCIUS ANNAEUS) 129 SERSENEVIC . 56 (nota) SHILOCK (de Shapespeare, A Morte em Veneza) 28 SIMMEL, G. 14 SPENCER, H. 87 (nota), 151 {nota) STAMMLER, R. 12, 15, 37 STEIN, L. 122 STEPANOV-SKVORCOV, I. I. 21 (nota) STINZING, S. 58 (nota) . STUCKA, P. I. 8, 9, 17 (nota), 41, 46 (nota), 52, 53 SOLOV'EV, V. 131, 132

TRUBECKOJ, E. 141 TUGAN-BARANOVSKIJ 127

VOLTAIRE (FRANÇOIS MARIE AROUET) 36

WILDA 150 (nota) WINDSCHEID: B. 95 (nota)

ZIBER, N. I. 20 (nota)

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BREVE NOTrCIA BIOGRÁFICA DE ALGUNS AUTORES CITADOS

ARISTóTELES (384 - 322 a.C.) - Filósofo grego. Contra­punha-se a Platão pois possuía uma concepção tendente ao materialismo.

BECCARIA, CESARE BONESANA (1738-1794) - Jurista italiano, panalista. Humanista.

BENTHAN, JEREMY (1748~1832) -Filósofo e jurista inglês. Teórico da liberalismo e do utilitarismo.

BUKARINE, NICOLAI (1888-1938) ;_ Economista e Político russo, bolchevique, companheiro de Lenin, assassinado nos. "processos de Moscou" por ordem 4e Stálin .. Recen­temente foi reabilitado pelo .governo soviético, tendo sido consideradas falsas todas as acusações que lhe foram impu­tadas por Stálin.

COHEN, HERMANN (1842-1918) - Filósofo alemão. Neo­kantiano.

DUGUIT, LEON (1859-1928) - Jurista francês. Constitu· cionalist~:~. e administrativ:ista .

ENGELS, FRIEDERICH (1820-1895) - Filósofo alemão, companheiro de Marx. Político da classe operária; diri­gente da Primeira Internacional. Escrevetl \ várias obras

'~·~ em parceria com Marx.

FEURBACH, LUDWIG ANDREAS (1804-1872) '- Filósofo materialista alemão, um dos precursores do. materialismo de Marx.

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172 E. B. PASUKANIS

GROTIUS -(HUGO VAN GROOT) (1583-1645) - Filósofo holandês, adepto da teoria do Direito Natural de base racionalista .

GUMPLOWICZ, LUDWICK (1808-1909) - Jurista polonês.

HAURIOU, MAURICE (1856-1929) - Jurista francês, fun· dador do institucionalismo.

HEGEL, GEORG WILHELM FRIEDERICH (1770-1831) -. Filósofo alemão. Principal pensador ·burguês e idealista. Organizador da moderna dialética idealista. Precursor da filosofia marxista .

HEfZEN, KARL (1809-1880) - Escritor alemão. Pólítico de tendência liberal e individualista .

IHERING, RUDOLF VON (1812-1892) - Jurista alemão. Romanista.

JELLINECK, GEORG (1851-1911) -::::::- Jurista alemão. Publi~ cista.

KANT; IMANNUEL (1724-1804) - Fundador da filosofia clássica alemã. Precursor do Positivismo.

KAUTSKY, KARL (1854-1938) - Economista, político e es· critor alemão. Dirigente do Partido Social Democrata Alemão.

KELSEN, HANS (1881-1973) ,....- Jurista e filósofo austríaco. Norma ti vista.

LA&SALE, FERDINAND (1824-1864) - Escritor e político alemão. Fundador do Partido Social Democrata Alemão,

LENIN (VLADIMIR ILICH ULIANOV) (1870-1924) - Fi­lósofo, jurista, economista e político russo. Fundador da URSS.

MARX, KARL (1818-1883) - Filósofo. Político e economista alemão. Fundador do- marxismo.

PROUDHOM, PIERRE JOSEPH (1809-1865) - Filósofo e sociólogo francês. Militante poliíico anarquista.

PUCHTA, GEORG FRIEDERICH (1798-1846) -Jurista ale-mão, teórico da Escola Histórica. ·

BREVE NOTICIA BIOGRÁFICA ... 173

RENNER, KARL (1870-1950) - Jurista austríaco. Ex-Presi­dente da Áustria._

RICARDO, DAVID (1772-1823) - Economista clássico in· glês. Teórico do valor trabalho. Um dos precursores da economia marxista.

SCHOPENHAUER, ARTHUR (1778-1860) - Filósofo idea­lista alemão. Adepto do irracionalismo e do volunta­rismo .

S:E:NECA, LUCIUS ANNAEUS (c. 4-65) - Filósofo estóico.

SHYLOCK - Personagem shakespeariano (0 Mercador de Veneza) . Serviu de base para Rudolf Ihering desenvolver as idéias centrais de sua famosa conferência A Luta pelo Direito. ·

SIMMEL, GEORG (1858-1918) - Filósofo alemão. Neokan­tiano.

SOLOVEV, VLADIMIR SERGUEIEVICH (1853-1900)- Fi­lósofo russo .

SPENCER, HERBERT (1820-1903) ~ Filósofo inglês. Posi­tivista.

STAMMLER, RUDOLF (1856-1938) - Filósofo e jurista ale· mão. Neokimtiano.

STUCKA, PIOTR (1887-1932) - Jurista soviético, Presidente do Supremo Tribunal da URSS, Comissário do Povo para a Justiça. Escritor.

TRUBECKOSJ, NICOLAI SERGUEIEVICH (1890-1938) -Lingüista membro do Círculo Lingüista de Praga.

VOLTAIRE (FRANÇOIS MARIE AROUET) (1694-1778) -Filósofo e escritor francês da Ilustração, precursor da Rev. Francesa.

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·'·

TERMOS LATINOS CITADOS

A PRIOR! -'- Em primeira lugar, em princípio. AD HOC - Para o fim específico. CORPUS DELICTI - Corpo de delito; antiga denominação

para crime. DE IURE ~ De direito. IN PARTES SECARE - Com parte do corpo. IUS CIVILE - Direito aplicável ao~ cidadãos romanos. IUS FORI - Direito do foro .. IUS GENTIUM -.Direito das gentes, aplicável aos estran·

geiros. Precursor. do moderno direito internacional. HlS MERCATORUM - Direito dos mercadores. IUS T ALIONIS - Direitc;> de Talião. MANCIPATIO PER AES ET UBRAM- Título de proprie·

d~de Romana. · NULLUM CRIMENN, NULLA POENA SINE LEGE- Ne-

nhum crime e nenhuma pena sem lei. PACTUM - Pacto. PAX- Paz. PER GENUS ET PER DIFFERENTIAM SPECIFICAM -

Por gêneros e espécies diferentes . SI IN JUS VOCAT, NI IT, ANTESTAMINO IGITUR IN

CAPITO - .. Se alguém chamar outrem a juízo, vá; se não vai, tome tes,temunhas: elll; _seguida a detenha.

. SUl IURIS - Direito Romaria, pessoa não sujeita ao poder de outrem. ·