marxismo, direito e sociedade

41
Marxismo, Direito e Sociedade Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003. Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra. Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, „marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C. MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e social de nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na sociedade? E no seu entendimento, quais as consequências de se pensar o Direito desta forma? Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves. ALAOR CAFFÉ ALVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof. Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a respeito do pensamento jurídico, e especialmente do pensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologia singular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no sentido tradicional do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista, desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas históricas, problemas graves, inclusive de situações relacionadas com frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso nos dá um grau de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas importantes. Eu simplesmente tive de escolher porque meia hora é tão pouco alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a perspectiva marxista, que é uma perspectiva que no século XX teve um domínio muito grande, especialmente na ordem política, embora não daquela forma que desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas no esquema político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na conclusão do ideal desse pensador que conhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Na verdade,

Upload: martinsjur

Post on 22-Jan-2016

220 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Preleção de Olavo de Carvalho em debate com Alaôr Caffé na USP.

TRANSCRIPT

Page 1: Marxismo, Direito e Sociedade

Marxismo, Direito e Sociedade

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé Alves

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,

19 de novembro de 2003.

Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de

Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais completa. Agradeço a eles e

também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns

pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra.

Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação

mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, „marxismo esotérico” e “Diferenças

específicas”, publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.

MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À

minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à

crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica

expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como

um dos luminares do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros

livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da

autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de

discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta

minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às

perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e

social de nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na

sociedade? E no seu entendimento, quais as consequências de se pensar o Direito desta forma?

Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof. Olavo de

Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a respeito do pensamento

jurídico, e especialmente do pensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologia

singular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no

sentido tradicional do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas

questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento teórico marxista,

desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas históricas, problemas graves, inclusive

de situações relacionadas com frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso

nos dá um grau de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas

importantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco – alguma coisa

estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a perspectiva marxista, que é uma

perspectiva que no século XX teve um domínio muito grande, especialmente na ordem política,

embora não daquela forma que desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas

no esquema político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são efetivamente

(ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na conclusão do ideal desse pensador que

conhecemos, que é Marx. De qualquer forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe

apenas uma perspectiva um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da

sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Na verdade,

Page 2: Marxismo, Direito e Sociedade

Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito singular no plano do

pensamento teórico da economia, estabelecendo seus princípios, enfim, aquilo que ele julgava

adequado para explicar a sociedade em que ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não

valem mais, em função da historicidade dessas mesmas explicações. Então, é claro, temos de

dar o devido valor e entender que isso não significa absolutamente compreender Marx sob o

ponto de vista dogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos oferecer para

entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no nosso caso, o problema

jurídico.

Para colocar a questão muito rapidamente, muito estrategicamente, no ponto de possível

discussão, nós temos de levar em conta as características do Direito exatamente dentro da

perspectiva e da posição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensão

estrutural social; precisamos entender o que significa a chamada estrutura social, se ela

comporta ou não previsibilidade, se admite ou não as possibilidades de um conhecimento

razoável do ser humano, a ponto de prever as condições objetivas de sua vida social. Nós

encontramos várias ciências sob o ângulo da previsão, como a sociologia, como a própria

economia, mas a questão é saber se a história pode ser prevista. Essa é uma questão importante,

porque o próprio homem é considerado como ser produto da história e de sua socialidade. Se o

ser humano é um produto social, a par da situação individual em que ele se apresenta também

como ser biológico – ele também tem a sua individualidade singular, biológica, psicológica –,

aqui também se indaga sobre a forma social que toma essa expressão biológica e psicológica.

Até que ponto a socialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, as

crenças? Em que sentido isso ocorre?

O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômeno social e, sendo um fenômeno

social, tem de ser estudado desde de certos critérios que permitem caracterizar uma certa

regularidade no Direito. É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um saber

científico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um saber apenas

prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ou se há apenas um conjunto de

propostas gerais que não têm uma fundamentação científica adequada para verificação de sua

validade, de sua verdade. Tudo isso é um problema complicado, pois se trata da metodologia do

saber jurídico, focada na perspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre

esse assunto. Por exemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico jurista, que

sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande pensador que, atendendo às

premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela metodologia marxista, pela visão marxista do

mundo, acabou dando-nos uma visão interessante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo

altera seu ponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É claro que

outros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofos juristas como Ceromi [?], grande

pensador italiano, ligado também à perspectiva marxista, e também Atienza, um grande

pensador ligado às questões da ordem do método marxista do Direito. Também temos o namoro

feito por Norberto Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal, mas

de uma forma um tanto diferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX e mesmo do

século XX.

Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte: como é que vamos

tratar o Direito dentro de uma perspectiva não positivista? Uma delas é a marxista. O conceito

de direito no sentido positivista, como vocês sabem, decorre exatamente de uma posição e

definição da lei como sendo aquela que deve definir as condições e as específicas diretrizes

Page 3: Marxismo, Direito e Sociedade

jurídicas de uma sociedade. A sociedade deve ser produzida do ponto de vista econômico, mas

também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grande

problema é saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há, claro, explicações,

inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, que são muito interessantes – mas não

vamos perder tempo agora em defini-los, porque é muito complicado e precisaríamos de mais

tempo –, explicações estas que não têm normalmente, por definição, a produção do espírito

humano senão mediante a confissão de reflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal

do Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectiva não-materialista corresponde

ao fato de que há um espírito, espírito este que não significa o de cada um de nós, mas o

conjunto dos espíritos, que na verdade são as ações culturais dos homens, particularmente, que

formam o espírito que em última instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale

dizer, o espírito na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a busca da liberdade

produz praticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressão desse mesmo espírito.

Essa visão é extremamente criticada pelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por

base uma estrutura social calcada na visão da produção da vida social, na produção da vida

material. Se não houver a ideia da produção da vida material da sociedade, nós não temos a

ideia mais clara do próprio espírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada à

materialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, como não caberia existir a

matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais a matéria bruta, nem aquela matéria

opaca; não é materialidade dos físicos gregos clássicos, a busca de um “ em si ”, de uma

substância material no mundo. Para Karl Marx, a matéria é postulada em função da produção da

vida social humana. Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade, de certo

modo; há uma relação dialética entre o processo de pelo qual os homens agem no mundo e

transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo, os homens,

progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. É isso o que acontece.

Portanto, esta visão inaugura a ideia de processualidade, exatamente o oposto da visão

positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, o caso de Kelsen, que trabalha uma visão

fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muito abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente

norma e é uma estrutura de sentido. A norma como estrutura de sentido não será estudada do

ponto de vista de sua gênese e nem de seus fins, porque gênese e fins da norma são questões de

outras ciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, se exprime pela

norma abstrata, por um dever-ser postulado segundo uma estrutura de coação, que é definida

pelo próprio Estado. Então, um dever-ser , para Kelsen, é fundamental, e ele separa

fundamentalmente o dever-ser do ser. Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva

marxista, porque o ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. Não é fácil

compreender isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz diferença

profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o dever-ser , isto é, ele é condição para o

dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade deve existir necessariamente para que exista o

Direito, para que exista o dever-ser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou

seja, a relação social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro

tem por fundamento um outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele chama de norma

fundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o ser é absolutamente separada, não

existe uma comunhão entre uma e outra a não ser pela condição necessária – não a condição per

quam , pela qual, mas a condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. É claro que não

há Direito sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente ladino,

profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada. O Direito como

estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora tendo como causa a vontade humana,

Page 4: Marxismo, Direito e Sociedade

porque já não pode mais ter causa divina (desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então

não há mais essa postura de direito teologal, como também não há a ideia do direito natural, um

direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser , em que o próprio ser é

dever-ser. Como já não se admite isso, a única forma de se admitir o Direito é aquele imposto

pelos homens. A forma de impô-lo implica uma relativização do Direito, e esta relativização do

Direito imposto pelo homem (porque o homem é um ser circunstanciado, histórico,

condicionado por situações singulares) evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do

que ele faz, especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não pode aceitar

senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que a positivação do Direito moderno é

fundamental, porque é uma das formas pela qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da

forma como se diz o Direito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito mediante formas

escritas; por isso a codificação do sistema, porque antes não havia esta codificação tão

expressiva, mas a partir do século XVII, a codificação se torna cada vez mais presente, e no

século XIX é praticamente universalizada. O Direito é um direito escrito, e enquanto direito

escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que tem de ser interpretado. Vejam vocês,

portanto, que a estrutura econômica se torna muito complexa, determina a necessidade de os

homens registrarem o Direito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamente

interpretado e aplicado adequadamente.

Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modo extrai as

possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece-se Kelsen dos fundamentos sociais, das

estruturas sociais; daí o problema de que no positivismo se faz uma separação entre Direito

como norma positivada e justiça, moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos

distintas. O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que o Direito é isto. É claro

que esta visão é formalizada, portanto, uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visão

universal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a norma jurídica, como jurídica que é,

que dá a essencialidade à compreensão do Direito, é igual no sistema capitalista, socialista,

comunista, feudal, clássico: a norma é sempre a norma, é sempre o dever-ser . É por isso que

ele, então, essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco o caminho

platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, a factualidade, as circunstâncias,

isso passa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida do mundo, como que sombras da

caverna. O que importa fundamentalmente para essencializar o Direito é a norma; a norma é

uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, e não a vontade é a norma. Vejam a diferença

entre a postura marxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada, mais

ampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o sistema capitalista;

fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na perspectiva teológica que como nós

temos ainda em vários países do mundo que a adotam, mas os países mais avançados têm esta

linha muito consagrada da positividade, portanto a linha da legalidade.

Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da ideia da processualidade, que é uma ideia

dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciação entre o processo e o produto. A ideia é

normalmente separar o resultado do processo, então fica complicado porque ficamos apenas

com o resultado. Em termos operacionais e práticos dá para usar o resultado muito bem de

forma instrumental, e como dizia Habermas, a instrumentalidade racional permite que se

manipule o resultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido e entendido

cientificamente se não se atender para o processo pelo qual o resultado é resultado. Então, há

uma processualidade no mundo e buscar o processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do

que buscar a coisa feita por si mesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é

Page 5: Marxismo, Direito e Sociedade

melhor para entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem de ter a expressão

do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem sua negatividade; porque o homem não é

o passado, ele supera esse passado. Uma visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade

de que o homem supere o passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação.

Ele se afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criança que foi,

portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa, e isso existe no plano do

Direito.

Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temos então de projetar a

sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: a sociedade, como se dá? Em que termos a

sociedade entra como processo? É um problema que eu sempre levo em conta: ela é uma

produção puramente espiritual, é uma produção material, ou é material e espiritual ao mesmo

tempo? Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não é apenas a história do

espírito humano que define o homem; também não é uma materialidade pura e simplesmente,

naquela concepção mecanicista e substancialista da matéria; mas é uma relação, uma dinâmica

entre espiritualidade e materialidade. Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é o

fundamental nisto? Os marxistas consideram que, em última instância, a dimensão material

(naquele sentido dito por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção, ou

seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é claro que tem história. Se

examinarmos antropologicamente, vê-se que os homens não produziram sempre aquilo que

produzem hoje; produziram de forma muito diferente, produziam outras coisas, em modos

diferentes de produção. As formas sociais para produção são diferentes, as relações que os

homens guardam entre si são diferentes nos diversos momentos históricos. Então, você vê que,

efetivamente, existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico do Direito para saber

até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste processo.

O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um exemplo

bem específico para vocês entenderem o que eu quero dizer. No sistema feudal, as relações

produtivas eram muito singelas; era uma economia mais natural, mais de subsistência; o valor

de uso predominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda não corria muito; os feudos

centralizavam o sistema econômico. Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício

da força, porque a politicidade também tem em seu centro a possibilidade do exercício da força;

isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A relação econômica era a produção

feita pelos homens e a relação social destes homens para a produção. Mas a relação social se

compunha, ao mesmo tempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder para

transformar o mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão-de-obra e

os mecanismos que existem para fazê-lo, mas existia também uma atuação política, uma força

política para esse exercício. Então, sabe-se que numa época escravista, como a época feudal, as

relações entre os homens para produzir não eram as mesmas das épocas modernas, da época que

chamamos burguesa ou capitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque o

exercício da força sobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico e o

político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal maneira feridos em

sua integridade, que o agente econômico era o mesmo agente político. O senhor feudal era ao

mesmo tempo agente econômico, agente cultural e agente político: ele exercia a força, ele

inclusive trazia a mão-de-obra à força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro

elemento que é a ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de explorar os homens

nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito própria que traduz

uma forma política específica da época medieval. Quando entretanto – e aqui vem a tese

Page 6: Marxismo, Direito e Sociedade

marxista – há uma evolução desse processo produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a

condição material da produção, vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visão tecnológica de

certo modo, que foi muito discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia avança

pelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seu trabalho, da sua atuação direta

com o mundo, buscando novas formas de cultivar o mundo, inventando várias coisas como o

moinho de vento, a roda dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, é claro que isto

vai implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a se

desenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (a produção) e os limites do

sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor basicamente, e depois, na expansão, era

muito complicado fazer com que a venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) se

estendesse para todo conjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondo certas

situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aí existe um conflito singular

entre uma força produtiva típica singular feudal e a força nascente, que seria exatamente essa

dimensão calcada na perspectiva de uma nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se,

portanto, um período de crise em que forma e matéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí

vem uma nova fase: o homem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era preciso

distribuir a mercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, que ganhem recursos

para que possam consumir a mercadoria do mercado. Mas como seria possível fazer isso se as

relações eram tipicamente ou servis ou escravistas? Impossível, porque não se podia distribuir

recursos; para isso, era preciso criar novas formas, como a forma da moeda (a monetarização da

economia), o salário (o assalariado se inicia neste processo). É evidente que neste momento tudo

passa a ser diferente: o sistema econômico não mais é garantido em função de uma relação de

imposição sobre o trabalho, mas era preciso fazer com que o trabalho passasse a ter agora uma

outra dimensão, a dimensão de liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das

peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com que a força do

trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portanto vendável. Então, é o momento em que

aparece a venda na força do trabalho, e esta venda forma o mercado, o mercado de trabalho,

onde as mercadorias passam a circular, entre as quais, a própria força do trabalho. É claro que,

nesse caso, a relação entre o capital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, como

acontecia no sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia uma imposição

sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou do escravizador. Agora não: ela se universaliza

na sociedade de uma forma completamente diferente, é preciso que os homens estabeleçam

relações entre si de forma mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente, proprietários.

Todos têm que ser proprietários: os proprietários do capital (do salário) e os proprietários

correspondentes. Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do outro lado a força

de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário; com esse salário formavam o

mercado e com isso então expandia-se a produção.

Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura do contrato, que se

universaliza nesta época. Então, é somente com o aparecimento de uma nova forma de produção

que se universaliza a figura do contrato juridicamente. A figura do contrato pressupõe pessoas

contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há que haver portanto, a universalização das pessoas

jurídicas. Há necessidade de que as pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar

coisas de que tenham posse em disponibilidade. Aqui vocês veem, portanto, a liberdade: como é

possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto é a igualdade. Vocês veem,

portanto, que as figuras jurídicas formuladas no direito civil especialmente (isso depois

transcende para o direito público) acabam resultando de um processo de movimento das forças

produtivas, da capacidade material dos homens, que determina formas diferentes. Não vejam,

Page 7: Marxismo, Direito e Sociedade

portanto, o contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado no cosmos. Não:

primeiro existem as relações de troca, depois elas vão para o código para ser reguladas de forma

detalhada, singular, e garantidas.

Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta estrutura de

pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõe uma dimensão muito singular, muito

interessante, que deve ser objeto de exploração. Não quer dizer que ela seja a única – cuidado

com isso! Ela deve ser objeto da expansão metodológica porque ela nos dá algumas bases

interessantíssimas para explicar um pouco melhor os próprios institutos jurídicos. Aqui vocês

veem apenas um momento estratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia

nova, interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal, mas pode nos

dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro, principalmente dos processos pelos quais os

institutos chegam a ser institutos jurídicos. É isto basicamente.

MEDIADOR : Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.

OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. Agradecendo muito a Thiago Magalhães e a seus

colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar, que o meu interlocutor é bem menos marxista

do que me disseram, o que de certo modo facilita o trabalho, porque a análise do marxismo é

sempre um problema quase impossível de resolver, pela multilateralidade dos seus aspectos.

Vocês vejam que o marxismo é uma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma

estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma crítica cultural,

é uma organização política da militância: ele é tudo isso ao mesmo tempo. Ora, vocês não

encontrarão em todo o mundo, em toda a história humana, nenhum fenômeno parecido: não

existe nenhum outro fenômeno que abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmo

tempo. Isso quer dizer que o marxismo nos coloca desde logo o problema de que não sabemos a

que gênero de fenômenos ele pertence.

Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critério aristotélico do gênero

próximo e da diferença específica, nós já nos esborrachamos no primeiro degrau da escada por

não haver um gênero próximo. Isso significa que toda a tentativa de discussão do marxismo

imita aquele célebre caso dos cegos com o elefante, em que um pega a perna e diz que o elefante

é um poste, outro pega a tromba é diz que é uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma

folha de papel, e assim por diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno econômico – o

pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia, porque a crítica liberal da

economia marxista é tão arrasadora que este é o campo mais fácil para discussão –, quando

pensam que estão ganhando a discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da

crítica moral do capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberal fez está perdido.

Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo do marxismo, também quando estamos

quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete a teologia da libertação, dizendo

que é mais cristão do que nós. Então, realmente estamos lidando com um ente proteiforme e

indefinido. É evidente que a análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas

que, sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas ao marxismo

que se fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja inútil, mas pega somente detalhes

e partes às vezes insignificantes do problema.

Page 8: Marxismo, Direito e Sociedade

Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escala de abrangência e de

abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, o que é o marxismo. Então, abreviando quinze

ou mais anos de estudo que me levam a esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo

pelo seu gênero próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gênero próximo: o

marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia, não é um partido político, não é

nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura , no sentido antropológico do termo.

Uma cultura significa um universo inteiro, um complexo inteiro de crenças, símbolos, discursos,

reações humanas, sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas de ação e,

sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa. Para toda cultura existente, o

desafio número um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o marxismo, ao longo de sua

história, desenvolveu uma infinidade de meios de autopreservação cujo funcionamento,

inclusive material, dificilmente é objeto de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho

que o marxismo, que professa tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela

base econômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressão de que as ideias

marxistas, exatamente como as ideias do antigo idealismo, se propagam no ar sem nenhuma

ajuda humana e sem nenhuma sustentação econômica.

Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era um jovem militante do

Partido Comunista e, à medida que fui descobrindo os dados a respeito, eu vi que o próprio

marxismo era um fenômeno econômico dos mais interessantes. Quando digo que o marxismo é

um fenômeno sui generis , que nunca houve um complexo cultural assim tão vasto, há um outro

ponto no qual o marxismo também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a

entidade chamada NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes

–, este era um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmente conseguimos imaginar. A

KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinha quinhentos mil funcionários, sem contar toda a

militância comunista espalhada pelo mundo (o que era um serviço auxiliar também obrigatório),

com o que se pode somar mais dez ou vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais

vinte milhões de auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos os serviços

secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não tiveram um

serviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda Guerra – os Estados Unidos

desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação da KGB na intelectualidade europeia começa já

na década de 20, havendo ali um festival de compra de consciências como nunca houve na

história humana. A respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Double Lives (“Vidas

Duplas”), que trata exatamente da apropriação da intelectualidade europeia pela KGB, através

não só de mecanismos normais de persuasão mas realmente da compra de consciências, de

chantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito também deste período há um outro livro que

eu lhes recomendo: chama-se Hollywood Party , de Kenneth Billingsley, sobre o Partido

Comunista no cinema americano. Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se

tornou famosa no mundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pela Câmara dos

Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas nenhum artista de Hollywood jamais

compareceu perante a comissão McCarthy e sim perante uma outra comissão totalmente

diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista negra no cinema americano desde quinze

anos antes, que se compunha das pessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem

aparecido nos últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.

Eu digo isso para vocês terem uma ideia do sustentáculo econômico e organizacional da

difusão das ideias marxistas. Nenhuma outra no mundo jamais teve isto a seu serviço. Notem

bem que a eficácia desse mecanismo ainda nos atinge no Brasil. Onde quer que haja cinco ou

Page 9: Marxismo, Direito e Sociedade

seis professores marxistas – não no sentido do prof. Alaor Caffé, pelo amor de Deus, porque já

vi que ele é um homem sensato –, mas no sentido de um militante efetivamente comprometido,

há uma equipe de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que não

interesse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame-se Partido Comunista,

Worker's Party, como quiser). Eu vou lhes dar um exemplo de como se faz isso: este livro

chama-se Dicionário Crítico do Pensamento da Direita . É uma obra feita por 140 professores

universitários brasileiros; portanto, é representativa de uma classe. Esses 140 professores

trabalharam durante seis anos, com verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para nos

dizer o que é o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do Partido Comunista,

eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudar também o pensamento de direita e tenho a

pretensão de conhecê-lo. Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui:

nem Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz. Em suma, todos os pensadores que

fizeram a cabeça do movimento conservador nos Estados Unidos e na Inglaterra estão

totalmente ausentes. O que representa o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels,

Julius Streicher (este era um maluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi

expulso do Partido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então, você

compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali um bloqueio

total do que quer que lhe possa dar uma ideia do adversário que não combine com a ideia

precisa que este grupo de militantes quer impor às pessoas. Esse procedimento não é exceção.

Após a abertura dos arquivos de Moscou, nós temos uma documentação enorme sobre o uso

desses métodos no mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma dificuldade para estudar o

marxismo, porque entre seus mecanismos de defesa existe também o mecanismo de escamotear

sua própria história e a história do adversário. Ressalto: nunca houve uma organização de

tamanho comparável, dedicada a fazer isso no sentido extramarxista ou antimarxista. Todos os

movimentos, até anticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curta

duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si. Para vocês terem uma ideia, o sujeito

pode ser anticomunista porque é judeu ortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista:

vocês não vão querer que o anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se deem as

mãos. Por causa disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresenta de maneira tão

disseminada e tão impossível de se localizar que todo o debate neste sentido falha logo de

início.

Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que está infinitamente acima de

minha capacidade, mas creio que um primeiro passo é fazer com que essa figura nebulosa e

proteiforme do marxismo seja substituída por uma figura mais reconhecível. Daí a minha

definição do marxismo como uma cultura. Sendo uma cultura, a sua própria preservação tem

prioridade absoluta e, em nome dessa prioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler

aqui um trechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que ele

relata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoria jurídica do marxismo.

Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismo não tinha teoria jurídica alguma, e Negri dizia

que tinha. Diz Antonio Negri:

“O problema foi que o objeto da discussão não era o mesmo, nem para os dois participantes,

nem para os espectadores, nem para os partidários dos dois lados. Para Norberto Bobbio, uma

teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra

do próprio Marx, e ele não tinha encontrado nada disso. Para o autor marxista radical (isto é, ele

mesmo, Antonio Negri), no entanto, uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das

instituições jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma prática

Page 10: Marxismo, Direito e Sociedade

que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à hermenêutica marxista da

construção de um sujeito revolucionário e à expressão do seu poder”.

O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que, embora não haja

realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos de Marx – existem apenas observações

mais ou menos esporádicas e deduções que os discípulos podem tirar delas –, existe uma crítica

marxista que está de certo modo embutida na própria prática revolucionária e na afirmação do

seu poder. Ou seja, se queremos saber qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx: é

necessário observar a história do movimento comunista, ver como ele se desenvolveu e ler a

crítica jurídica que está embutida ali. Está compreendido? Muito bem, só que em seguida ele

diz: “ Se havia algo em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravam o

socialismo real (Sabem o que é socialismo real? É o socialismo cuja existência foi documentada

na União Soviética, na China, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um

desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. A redução do marxismo à

história do socialismo real não faz nenhum sentido ”. Ora, mas o que é o socialismo real? Ele

não foi precisamente a cristalização histórica do resultado da tal “prática da criação do sujeito

revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria marxista do Estado não está nos escritos

de Marx e também não está no resultado da prática revolucionária, onde diabos ela está?

Resposta: ela está na prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É

esta prática que é a legítima, as anteriores não. Isto é uma constante na história do movimento

socialista.

Tão logo enunciados os princípios do marxismo no Manifesto Comunista de 1848, a

primeira coisa que os comunistas fizeram foi colocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo

capítulo da história do marxismo após a sua fundação, de modo que, aos revisionistas

(Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marx estabelecia entre marxismo e

violência era ilegítima. Não nos façamos ilusões: Karl Marx sempre disse que a revolução

somente se faria por meio da violência, ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar o

marxismo por meio da educação ou qualquer outro meio pacífico e inclusive dizia, lamentando-

se, que “para implantar o socialismo no mundo nós temos de destruir no caminho uns quantos

povos inferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à violência não fazia parte da

essência do marxismo, mas era uma espécie de excrescência devida a alguma perturbação na

cabeça do próprio Marx. No terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin,

acreditando-se que é absolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência; e,

através do uso da violência, constitui-se a duras penas, com sacrifício de milhões de militantes,

sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, o Estado Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz

a geração seguinte? “Isto não é representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”.

Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal, quando aparecerá o

verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já: nunca. Porque o verdadeiro marxismo não

existe como nenhuma formulação explícita, que possa ser discutida racionalmente. O marxismo

só existe como uma cultura, na qual a formulação doutrinal é apenas um elemento provisório e

tático, que pode ser trocado quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somente

mudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome do marxismo já

não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que ele tem na cabeça –, mas consiga

também fazer até o milagre oposto: ele consegue não apenas limpar a memória de seus próprios

crimes, mas consegue trazer para si os méritos do adversário. Vou lhes dar um exemplo de

como se faz isso, exemplo que tirei do próprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da

Page 11: Marxismo, Direito e Sociedade

criação do sujeito revolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “ isso faz parte da

história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveram contra o

trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o Levante de Paris de 1789 até a Queda do

Muro de Berlim ”. A Queda do Muro de Berlim integra-se na sucessão das lutas para a criação

do sujeito revolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer que o único

marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. O representante de qualquer religião,

ideologia, partido político ou clube esportivo que se permita uma tamanha elasticidade será

evidentemente condenado como charlatão ou internado como louco. Mas dentro do marxismo

isto vale. Mais ainda, digo para vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidade

consciente. Isto é possível dentro do marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria

que se tenha de defender mediante uma discussão racional.

Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma cultura, todos os

meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade não devem entrar na

linha de conta, porque veracidade, ciência, cientificidade, moralidade e racionalidade são apenas

expressões parciais da cultura, de maneira que fazer cobranças à cultura em nome delas parece

uma insuportável revolta das partes contra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a

cultura está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria. Sendo o marxismo

uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer não podem ser impugnadas no campo

doutrinal, evidentemente. Porque, ou nós as impugnaremos no campo moral e, a cultura estando

acima da moral, rejeitará nossa argumentação como irrelevante, ou nós argumentaremos em

nome da ciência, da racionalidade etc., e a cultura como um todo jamais poderá se colocar sob a

fiscalização da moral e dos bons costumes. É tão absurdo você discutir com um marxista sobre a

sua cultura quanto seria você chegar numa tribo de índios do Alto Xingu e dizer a eles que

algum de seus costumes é imoral. Ele não entenderá o que você diz, porque a moral para ele são

exatamente os costumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele possa apelar. Nós

temos ideia de uma moral supracultural porque vivemos em enormes blocos civilizacionais

multiculturais, recebemos o impacto de muitas culturas e podemos compará-las entre si. Isto,

por um lado, nos induz ao relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão de

abstração e abrangência maiores, mais científicos.

Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, e qualquer produto

externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhado e modificado no seu sentido, de modo

que se torne inofensivo. Por exemplo, o pensamento conservador todo será substituído por

pensadores de direita de baixíssimo nível – de preferência psicopatas nazistas que se denunciem

a si mesmos na primeira palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes,

procede-se de maneira menos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto nível,

mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácil vencê-los saindo de seu

quadro categorial, puxando a discussão para um outro quadro. Por exemplo, a famosa discussão

com Kelsen: Kelsen está apenas tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Se

existe, dentro de uma sociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religião

etc.), nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste cada um desses

elementos? Se dissermos que cada um dos elementos não é nada, que só existe a mistura, será

então a mistura de vários nadas que miraculosamente dá em alguma coisa. Na época de Kelsen,

houve vários esforços em várias ciências totalmente distintas para conseguir definir seu campo

de maneira, como eles diziam, “pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros,

houve o esforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguém entenderá

uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentro deste movimento. Como o universo

Page 12: Marxismo, Direito e Sociedade

categorial conceitual de Kelsen é bastante limitado (e eu, particularmente, também acho que

Kelsen está errado ao definir o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil, numa

discussão com ele, apelar para conceitos sociológicos e históricos que estão infinitamente fora

do quadro de referência dele e fazer de conta que o derrubou, quando simplesmente não se

entrou no assunto. E assim se procede com praticamente todo mundo.

Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamente sobre o marxismo,

muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo, que eu acredito piamente que não existem.

Mas vamos examinar muito rapidamente alguns conceitos marxistas.

Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que a realidade

social dos homens condiciona a sua consciência; nas Teses sobre Feuerbach , ele vai um pouco

mais além e diz “determina”. Isto quer dizer que você tem uma posição na sociedade que é

definida pelo seu papel no sistema de produção e você tem um conjunto de ideias que é

determinado por esta posição. Quanto é determinado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz

é que, em última instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entre posição

social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como diz Marx, ou posição social é uma coisa

e ideologia é outra completamente diferente. Se houvesse uma conexão efetiva, então o burguês

tem de pensar como burguês, o proletário como proletário, podendo haver, é claro, exceções.

Mas qual seria a possibilidade de que justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não

fosse um proletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E o quarto também

não? E de que praticamente toda a liderança do movimento comunista, ao longo dos tempos e

incluindo Antonio Negri, nunca fosse de proletários? Eles podem dizer que são burgueses

esclarecidos e que aderiram. Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm.

Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sua livre escolha, e a

famosa conexão não existe.

Outro item (eu poderia dar uns cinquenta, mas vou usar um que foi lembrado aqui pelo prof.

Alaor) é o de que cada etapa histórica é marcada por um sistema de propriedade, e que dentro

deste sistema existem forças de produção que crescem até um certo ponto e derrubam este

sistema de propriedade – o prof. Alaor deu como exemplo o feudalismo. Então, o feudalismo

tem lá um sistema de propriedade; quando a produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e o

feudalismo cai. Perguntem-me quando isso aconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu

muito antes de que houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e os meios

de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição real ou monárquica. O feudalismo

foi derrubado quando o rei, que era um primus inter pares , decide derrubar os seus pares e

tornar-se o primus “sem pares”. Para isso, no caso da França, constitui-se, pela primeira vez,

uma imensa burocracia estatal, com a qual nem os senhores feudais nem muito menos os

burgueses puderam competir de maneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que

na Revolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são os capitalistas, não? Façam

a lista dos líderes da Revolução Francesa e vejam quantos capitalistas havia ali. Resposta: um.

Os outros eram todos padres, aristocratas frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram burgueses

ou capitalistas pessoalmente, eles podiam ter algum contato com entidades de capitalistas que

lhes diziam quais eram seus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas nunca houve

este contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução Francesa era a ideologia dos

capitalistas ou da burguesia, curiosamente os burgueses se esquivaram de defendê-la: ela foi

defendida por pessoas que não tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum

burguês vindo-lhes pedir que fizessem algo.

Page 13: Marxismo, Direito e Sociedade

Isso é para lhes dar uma ideia de até que ponto a teoria marxista da história é pura mitologia

e charlatanismo em cada um dos seus itens. É claro que, se em meia hora o prof. Alaor não pode

expor a parte dele (a qual vocês já estão acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar

toda essa novidade. Deem-me alguns anos e eu provo isto com todos os detalhes.

MEDIADOR : Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaor Caffé Alves.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, isso se trata de um debate, e se é um debate pressupõe um

embate de algumas ideias que são postuladas. Obviamente eu não penso como o prof. Olavo no

sentido tão global de cultura marxista; não considero que isto exista no sentido que foi

colocado. Há uma ideologia, obviamente, e toda ideologia pressupõe sempre a restrição, em

princípio, de seus membros ideologicamente preparados e geralmente tenta excluir as outras

ideologias, tanto quanto a ideologia neoliberal tenta excluir a ideologia marxista – é óbvio, é a

mesma falta. O importante é estudar a ideologia. É claro que, como foi colocado aqui, a

ideologia de Marx nunca foi assim colocada. Marx tem até um trabalho muito conhecido, A

ideologia alemã , onde ele desenvolve três conceitos de ideologia; e além disso, depois, no curso

dos seus trabalhos, desenvolve outros conceitos. Aliás, a ideologia é plurívoca, tem várias

ideias, vários conceitos para definição e caracterização das ideologias, mas não é tão singelo

assim como se fez parecer. Obviamente, foi colocada aqui uma série de questões relativas à

história do socialismo real, mas nós aqui dissemos aos senhores que isso não significa que

reflita de forma nenhuma as bases autênticas do pensamento marxista.

Muitos pensadores, inclusive da estirpe marxista, são de variadas concepções, de variadas

formas de ver o mundo. Não existe “um” marxismo mesmo. Existe o próprio Marx: quem quiser

estudar, estude Marx. Não se postula apenas inicialmente como uma cultura, porque Marx

iniciou seu trabalho cientificamente. Pode ter muita coisa errada, disso não há dúvida nenhuma.

Mas que ele iniciou seu trabalho com uma análise científica da economia burguesa de sua

época, ele fez isso. Ele não teve intenção de estabelecer uma sociedade socialista, comunista;

ele nem tratou disso, na verdade. Ele sempre propugnava alguns programas em bloco,

propugnava uma sociedade mais justa.

Aliás, é exatamente esse o problema: como dizer que o marxismo é um conjunto de

besteiras, de bobagens, se ele parte exatamente de uma realidade que até hoje é presente?

Expliquem para mim a racionalidade de que o bolo social é um só e, no entanto, um grupo

pequeno de pessoas amealhe esse bolo, patrimonialize esse bolo, capitalize parte desse bolo, e

uma grande quantidade de pessoas não tem absolutamente nada, nem sequer o que comer. Eu já

não estou partindo da literatura, nem do pensamento, nem das coisas abstratas. Estou pensando

na realidade atual: milhões de brasileiros não têm o que comer, não têm recurso, e eles

participaram na elaboração do bolo. Ou não? Pensar que aqueles que têm um patrimônio

imenso, recursos acumulados imensos. Esses recursos vêm de fora da sociedade? De Deus?

Deus seria malvado, não é? Ele dá recursos só para um grupo e não dá para os outros. Eles vêm

da sociedade conjunta, de todos, e no entanto temos uma diferença tão profunda que não há

sequer neoliberalismo – que hoje é dominante – que resolva esta questão, e não vai resolver.

Assim como se diz que o marxismo não vai resolver, o neoliberalismo também não vai.

OLAVO DE CARVALHO : Tem toda razão.

Page 14: Marxismo, Direito e Sociedade

ALAOR CAFFÉ ALVES : Há anos estão aí, com mais amplitude, globalizados, e tudo o

mais; e no entanto nós temos seis bilhões de seres humanos, dos quais três bilhões estão numa

situação de penúria ainda, se contarmos a África, a Ásia, [palavras inaudíveis]. A pergunta é a

seguinte: onde está a razão de que um grupo social mantém uma estrutura, e que o Direito está

aí presente, ele é um instrumento para esse mesmo efeito? Não é que o Direito seja culpado, de

forma nenhuma. Os culpados são os homens, não o Direito. Ele não tem pernas próprias. São os

homens que fazem isso, somos nós. Como justificar as discrepâncias, as diferenças terríveis que

existem nesse país? Dizem que é a nona economia do mundo, mas é a 54 a em distribuição de

renda. [Palavras inaudíveis.]

Perguntou-se a respeito da Revolução Francesa, e se disse que realmente não havia nenhum

capitalista na Revolução Francesa. E hoje nós temos o sistema mais bem definido, mais bem

claro, mais bem caracterizado que é o sistema capitalista no Brasil e em outros países e eu

pergunto: vocês encontram políticos burgueses? São os capitalistas que estão lá fazendo leis?

São os capitalistas que estão organizando e que estão governando o país? Não é só no Brasil,

não. E aí pensar: “Aí está o PT agora. O PT é comunista, é socialista.” Claro. Não estão

conseguindo fazer o que queriam fazer? Erguer até operário? Porque o sistema é tão forte, a

dimensão objetiva estrutural do sistema é tão forte, que podem ter lá ideias comunistas e

socialistas que não vão conseguir nada. Porque a estrutura determina isso. A questão científica

está em saber quais são os elos que vão nos explicar por que é que lá, no Congresso Nacional,

não temos burgueses, mas as leis são burguesas: interessante essa mecânica. Eu gostaria que se

utilizassem instrumentos sociológicos, e a sociologia política inclusive, ou a sociologia eleitoral

para mostrar como é que se dá isso. Quantos operários nós temos no Congresso? Nenhum, ou

poucos, contam-se com as mãos. No meio rural? Pouquíssimos. E mesmo os restantes não são

burgueses capitalistas. Não são os pró-capitalistas. Eles nunca quiseram… Aliás, o empenho

deles não é participar no sentido do proscênio político. Já tem toda uma dimensão estruturadora

do sistema que se chama “forma de produção ideológica”. É para isso mesmo. Vamos criticar,

por exemplo, as novelas, a mídia, os jornais, os jornalistas. [Palavras inaudíveis.] Criticar todos,

porque todos participam desse processo de fazimento, realização e estruturação das ideias

dominantes. Ideias estas que definem exatamente essa profunda injustiça que existe.

Então nós temos de nos revoltar contra isto. Sei lá que ideias vocês vão usar, se ideias

marxistas, ideias neoliberais, ideias liberais, ideias socialdemocratas. Não importa. O fato

importante, fundamental é este, gente: nós temos de vencer as discrepâncias, as diferenças

sociais profundas que existem nesse país. Isto é muito grave, sério. Pouco importa, inclusive, o

esquema de ideias que vamos utilizar. É natural que diante de uma situação dessas, os homens

tendem sempre a tentar equacionar o problema mediante seus conceitos, mediante sua

compreensão, como fazer isso tudo, como resolver essa questão da distribuição da renda. Não é

fácil. Dentro do regime de mercado, que é tão defendido pelos neoliberais, nós não encontramos

nenhuma solução. Até agora nunca houve isso. Pelo contrário, no sistema de mercado temos

uma diferença tão profunda entre os homens: entre muitos que não têm absolutamente nada, que

não vão ter mais nada do que têm, isto é, nada, e aqueles que têm muito, que vão ter a chance de

ter, fora isso, mais e mais. É a lei da acumulação. Ela existe ou não existe? É a lei do mercado:

quem tem recursos, tem como produzir a liberdade, ou não tem? Quem tem recursos vai à

Europa, vai à Ásia, vai conhecer o fruto de culturas diferenciadas, vai expandir sua

personalidade, vai ter educação, vai ter a medicina, vai ter a saúde, vai ter a sua cultura

acrescentada, porque tem recursos. E quem não tem? E quantos não têm? Não têm nem recursos

Page 15: Marxismo, Direito e Sociedade

para ter saneamento básico, nem água destinada à sua higiene. Minha gente, isso é uma

realidade, eu não estou falando aqui como se fosse uma construção silogística ou teórica. Isso é

real, e o mercado está ali, defendido, pois é ele exatamente por enquanto assim jogado às suas

próprias forças, autonomicamente desta forma como ele é, que ele é sempre um indutor da

miséria e das diferenças profundas sociais. Isso não é só o Brasil, não. É em todo o mundo,

inclusive nos Estados Unidos. Lá até é um pouco melhor em relação, porque o país é riquíssimo.

Falou-se da KGB. Falou-se da KGB. Claro, quem é que vai aceitar uma coisa como esta? A

KGB. Quem é que vai aceitar um negócio desses? Ninguém vai aceitar. Ninguém, na boa

consciência dos homens. Está correto o professor, o doutor Olavo. Mas é preciso também dizer

o seguinte: hoje, os Estados Unidos põem 450 bilhões de dólares anualmente no seu orçamento

militar. Não estou falando em KGB, não. Não estou falando de espionagem. Estou dizendo de

máquinas mortíferas: sabe aquelas que caem bombas, sabe aquelas que apertam botões e vai

matando gente? 450 bilhões de dólares. Já imaginaram o que é 450 bilhões de dólares em um

ano? 450 bilhões de dólares! Se isto fosse distribuído para toda a África em três tempos nós

teríamos o desenvolvimento de toda a África. É claro que não vão fazer isso, pois eles vão

cuidar eles próprios dos seus próprios problemas. Fazer isso significa criar opressividade para

eles. Imagine o que seria 450 bilhões de dólares aqui no Brasil, de vez; basicamente o país

inteiro há muito está precisando. Isso em um ano! Mas eles jogam isso em um ano na máquina,

na máquina de guerra! Então, isto está muito claro. Se nós estivéssemos importando recursos

deste tipo, não há dúvida que teríamos chances enorme de ter um desenvolvimento enorme

imediatamente. Eu diria que, em dez, quinze ou vinte anos, ou trinta anos no máximo, teríamos

desenvolvido o globo inteiro; mas esse desenvolvimento não é comportado pelas relações

produtivas do sistema capitalista. Este sistema, como vocês vão vendo, não só os 450 bilhões,

são bilhões e bilhões derramados não só no exército, mas na estrutura social americana, na

NASA. A pergunta é a seguinte: vocês já viram aquelas coisas maravilhosas que tem lá? Aquilo

custa dinheiro, aquilo custa recursos. Vocês acham que aquilo tudo vem dos Estados Unidos?

Vem do povinho que vai lá, que trabalha e que portanto faz seus programas espaciais, o seu

programa de atuação militar, a sua dimensão de políticas sociais? Nada! É do mundo inteiro que

eles tiram!

Alguém da plateia : A China também, né, professor?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Mesma coisa. Que seja. A mesma coisa. Aí vocês veem portanto

o que eu quero dizer. Eu não estou falando do povo dos Estados Unidos singularmente; eu estou

dizendo, gente, que o sistema não funciona de outra forma. Vocês, jovens, estão vivendo na

carne hoje o problema do desemprego. O desemprego não é uma questão simplesmente

conjuntural, é uma questão estrutural hoje. Não é no Brasil, é no mundo inteiro.

O fenômeno da globalização: esse desemprego é decorrente do quê? Da introjeção de

tecnologia e ciência no processo produtivo. É muito óbvio. É muito fácil isso. É necessário. Mas

na medida em que se vão introjetando sistemas cada vez mais sofisticados de produção, vai se

expulsando cada vez mais mão-de-obra do processo produtivo. E não é só expulsão no primeiro

ou no segundo setor da economia, na indústria ou no setor rural; também no terciário: cada vez

mais vocês têm dificuldades em ter engajamento. E o sistema não tem como fazer, porque ele

está entrando em contradições profundas. Ele é contraditório na sua própria realidade estrutural,

na sua dinâmica. Ele é contraditório mesmo. Ele não vai criando só mercado; ele produz cada

vez mais e mais, com máquinas, com automatização, com informática, com a robótica, com

Page 16: Marxismo, Direito e Sociedade

tudo. Mas os homens vão e se apresentam às fábricas. Mas como pagá-los, a esses homens, para

que eles possam formar o mercado, a fim de consumir essas coisas todas produzidas pelas

máquinas sofisticadas? Como? A resposta é: não tem como. E então não podemos avançar mais

com a economia, não podemos avançar mais com a tecnologia, com a ciência. Nós precisamos

distribuir renda.

Isto decorre exatamente da perspectiva, da visão deformativa do que nós chamamos de

materialismo histórico: o desenvolvimento das forças produtivas está definindo uma nova

relação entre os homens. Como sair dessa? É claro que pode levar dez dias, levar dez anos, ou

mesmo uma centena de anos; isso aí nunca se sabe, isso é um produto histórico. Mas que as

contradições internas o estão corroendo, estão. Não porque os homens assim queiram; é porque

a estrutura social e econômica está definindo esta forma: as relações entre os homens mediante

os processos produtivos e os instrumentos de produção. Talvez não comporte mais esse tipo de

relação; uma outra relação onde haja uma [palavra inaudível] cada vez maior, uma

produtividade cada vez mais sofisticada, mas uma distribuição que ainda não se enfrentou. Não

se distribui mais pelo salário, então vai se distribuir de que jeito? Como? Por quê? Conte para

mim. Conte. De que jeito vai distribuir? Isso é decorrente, inclusive, da econômica; não é teoria,

nem teorético, de jeito nenhum. Com isto todos estão preocupados, inclusive os teóricos

burgueses neoliberais; eles sabem disto, estão percebendo isso, certamente, claro.

Ainda se fala no caso do Estado, como se só o Estado aparecesse; como se não houvesse

nenhuma alteração do sistema feudal que passou para o sistema capitalista, burguês, sem uma

modificação específica. O Estado, inclusive, foi tomado primeiramente pelos nobres que

atuavam de forma absoluta, mas não se percebeu aqui que o Estado apareceu justamente neste

momento como Estado absoluto. Por que é que o Estado apareceu? Apareceu justamente na

continuidade do que eu havia dito antes, e é preciso analisar, é preciso trabalhar bem a análise

analiticamente. O que eu disse? Eu disse que o processo de desenvolvimento das forças

produtivas determinou que os homens ampliassem o mercado, portanto aparecem neste

momento as forças mercantis progressistas que avançaram. Não vão pensar que o capitalismo

apareceu como uma mazela. Foi muito bom, sem o capitalismo teríamos avançado para fora do

planeta; tivemos enormes progressos; o individualismo se criou no sistema, quando nobre,

adequado, compreendido e evidentemente praticado dentro das condições éticas, tudo bem.

Infelizmente o próprio sistema exacerbou esse processo pela busca do mundo, pela busca

exacerbada da acumulação desenfreada. Porque o Estado não podia aparecer neste momento

para coibir o processo produtivo.

Vejam uma coisa importante, para que tenhamos uma ideia clara. Quando o trabalho não é

mais posto forçadamente… Porque no sistema feudal, o que aconteceu, isso precisa ser

explicado concretamente: o sistema feudal, o sistema de trabalho, da produção da vida material

dos homens era feito em função de uma imposição por parte de uma força política, que também

era econômica. Como eu disse, os nobres eram detentores não só do esquema econômico, eram

patrimonialistas em função do sistema feudal, como também esses nobres eram os políticos do

sistema, ou seja, aqueles que podiam manipular a força para impor o trabalho ao produtor direto.

Quando, então, há o desenvolvimento progressivo da economia, e era preciso fazer a

distribuição de renda a fim de criar mercado, em função do desenvolvimento das próprias forças

produtivas, era preciso tirar, extrair, afastar a questão política da questão econômica. Não era

possível manter o econômico e o político conjugados à força daquele que produzia, não só por

razões de interesse econômico, mas também por questões de ordem política, atuava para que o

Page 17: Marxismo, Direito e Sociedade

trabalho fosse força. Na hora em que o trabalho começa a ser assalariado (o que precisava sê-lo,

para que o sistema funcionasse), aí ninguém admite a liberdade e a igualdade necessárias,

porque senão não há contrato. É por isso que neste período começa a pensar-se ideologicamente

no chamado contratualismo: ele se expande entre os teóricos do contratualismo porque o

contrato passa a ser uma figura, um instrumental fundamental para aproximar capital e trabalho.

Não havia isso antes. Por isso é que é preciso estabelecer que todos sejam sujeitos de direito,

direitos e obrigações. O capitalista vem e diz: “Você me traz sua força de trabalho e eu lhe pago

o seu direito de salário.” O trabalhador diz: “Está certo. Eu entro com meu trabalho, eu sou

obrigado a empregar a força de trabalho, tenho obrigações, mas eu tenho de receber o meu

salário. Eu tenho o quê? É evidente. Direitos e obrigações.”. E isso se universaliza por toda a

sociedade, justamente nos séculos XV, XVI e XVII. E nesse período, o que acontece com o

político? Ele vai se destacando e se concentrando não mais na sociedade descentralizada, como

havia antes; ele se concentra no poder absoluto dos reis, e aí é que aparece o Estado pela

primeira vez. Um Estado ainda não adequado à burguesia totalmente, mas como efeito de um

processo que correspondia exatamente a esse movimento do capital. Era a necessidade de que o

trabalho, o contratado, deveria ser contratado e não forçado, consequentemente não podia haver

a política no processo, mas a política deveria estar presente a todo instante em que o contrato

fosse rompido. Aí era preciso evocar e convocar o político, ou seja, a força, para que o sistema

continuasse a funcionar. Como isso é apenas formalizado em nível de mercado e não em nível

da produção, porque a produção ainda continuava a envolver uma inequação profunda (porque é

lá no processo produtivo que havia o processo expropriatório de acumulação), era preciso

manter uma estrutura de força para qualquer tipo de emergência que houvesse; caso grande

parte dessa população que tinha de entregar a sua parte de trabalho para acumular a outra parte,

era preciso que houvesse a emergência possível de uma força, caso falhasse o esquema

ideológico. O esquema ideológico começou a desenvolver-se amplamente para que todos

aceitassem a situação como natural. Mas a miséria, às vezes, alcança níveis tão altos que o

sistema burguês hegemônico tem de ter meios para poder resolver e neutralizar qualquer tipo de

crise. E como vai fazer isso senão através do Estado, através da força centralizada do Estado que

só aparece no sistema burguês. O Estado é um fenômeno tipicamente moderno. Não havia

Estado na época feudal; havia organização política, isso havia, mas não Estado. Não havia

Estado na época clássica, não existe Estado romano. Tinha Império romano, com uma dimensão

descentralizada enorme, por causa dos senhores de escravos, que atuavam diretamente de suas

fazendas; eram as famílias que tinham atuação de poder político. Isso não acontece mais no

sistema burguês, não acontece mais no sistema moderno, onde o sistema então acrescenta o

ponto de vista mercantil, e vai se desenvolvendo até chegar à Revolução Industrial; e isto se

concentra enormemente num processo imenso em que o Estado faz presente o gendarme, o

Estado-polícia, para evitar qualquer tipo de proposta que viesse a conflitar com os interesses da

política dominante, o que aconteceu mesmo já o século XIX.

O próprio Marx, que postulava ideias estranhas a esse sistema, foi perseguido, e teve de,

inclusive, tomar posições complicadas nesse processo, e outros movimentos, é claro,

movimentos operários nessa época do século XIX. Aí vocês veem que não há nada de

culturalidade abstrata. É preciso agora (eu disse isso, é claro, de forma muito genérica) mas eu

preciso basear agora os erros concretos de cada coisa. Eu explicaria para vocês o contrato,

explicaria a hipoteca, explicaria o aluguel, explicaria tudo a partir dessas estruturas! Não posso

fazê-lo porque tenho apenas meia hora. Portanto, não é uma questão abstrata, ampla, múltipla

simplesmente, é uma questão que envolve métodos especiais singulares.

Page 18: Marxismo, Direito e Sociedade

Outra questão que se colocou a respeito de Kelsen, que se colocou muito bem aqui, porque

Kelsen – eu mesmo disse a vocês que ele era muito inteligente –, ele era um leitor fruto das

condições do chamado positivismo, do primeiro quartel do século XX. Ele postulava a ideia de

ciência pura, a partir de uma ideia do positivismo como ciência do objetivo. A ciência tem de

ser objetiva, de tal maneira a dizer o que a coisa é, não o que ela deve ser. Ele dizia que se há

ciência do direito, essa ciência deve dizer o que é o direito. O direito dele lá, como objeto, é

dever-ser , é norma, não há dúvida – pelo menos isso, pelo menos isso. Mas o direito como

ciência tem que dizer o que ele é, e como é, significa dizer o que é o dever-ser, como é a norma .

E ele, muito bem aparelhado com a perspectiva e a visão dos positivistas, não só dos positivistas

jurídicos, mas dos positivistas filosóficos, os filósofos positivistas, que tentavam buscar a

extração do sujeito em relação ao objeto, evitar a mistura de sujeito e objeto, pelo contrário,

neutralizar o mais possível o sujeito para que o objeto se sobressaísse claramente como algo

objetivo. Então, tem de se buscar o direito objetivo. Claro está que esta dimensão foi fracassada,

mas não por ele, Kelsen, não por ele, mas pela crítica da própria sociedade.

Já mesmo nas épocas do começo do século XX, nós encontramos por exemplo um [?], um

François [?], esses pensadores, esses sociólogos, que tentaram quebrar a condição formal de

Kelsen. E Kelsen ainda diz assim: “Não, mas a questão sociológica não é uma questão jurídica

na sua essência.” Nós sabemos muito bem disso. Muito bem! Essa história é muito bem

contada! Efetivamente, é claro que Kelsen queria só uma pequena questão, que é a questão do

que é, na sua essência, o jurídico. O problema é que ele não foi aceito, não por ele mesmo, mas

por vários pensadores que chegaram à conclusão de que o Direito não pode ser puro quanto à

sua tese, quanto à sua teoria. O Direito em si mesmo, o Direito como objeto, é claro que ele

nunca foi puro, e o próprio Kelsen sabia muito bem disso. O Direito é impuro por natureza; pura

é a teoria sobre ele, isto é que é puro. Mas é válida do ponto de vista – agora veja o que eu digo

– epistemológico. Como uma crítica epistemológica, é válido consignar essa forma de

compreender o mundo? Talvez fosse válida naquele momento. Compreensível! Mas depois da

Segunda Guerra Mundial, com a conturbação imensa do humano, do homem, já não se pensava

mais em buscar ciências puras, isoladas, solitárias, cada uma de per si . Percebeu-se que os

homens tiveram mazelas profundas exatamente por não se comunicarem não só eles, como com

as próprias ciências. Daí vem toda a questão da interdisciplinaridade que vocês conhecem hoje,

que é um problema muito complexo, muito difícil, que não se soluciona facilmente. Buscar o

Direito na sua expressão a partir da forma interdisciplinar, em que envolvemos não só a

juridicidade como norma, mas também o que é a dimensão social, econômica, e assim por

diante. Como compreender uma realidade plenamente senão descendo às suas próprias raízes?

Isso é como imaginar que somente o estudo do caule lhe dê a realidade da planta. Não é isso. E

o caule sozinho existe? Não. Ele só existe em ligação com a planta, e este só existe em ligação

com as suas raízes. Vejam, então, os senhores que, efetivamente, é claro que há muitas outras

questões a serem colocadas, como afinal eu queria colocar que é a da violência, da revolução.

Marx nunca pensou só na revolução no sentido da violência. Pelo amor de Deus! Foi colocada

aqui a questão das teses sobre Feuerbach. Nas Teses sobre Feuerbach , Marx coloca muito

claramente o que ele entende por revolução. Ele não fala especificamente de revolução: ele fala

em transformação pelas raízes. A revolução não tem de ser necessariamente violenta, de jeito

nenhum. Pode ser outra. Por exemplo, essa questão que eu coloquei agora há pouco, que é a da

limitação do próprio sistema econômico capitalista que não pode superar-se a si próprio, vai

implicar uma revolução, uma transformação profunda. Isso não precisa ser pelo caminho das

armas. É até bom evitar isso, evitar a morte das pessoas. Quanto mais as pessoas forem

conscientes, mais educadas, mais claras em ver o mundo, tanto mais facilmente poderemos fazer

Page 19: Marxismo, Direito e Sociedade

a transmutação. Por isso é que nós preferimos então a democracia, não uma democracia

simplesmente representativa, mas uma democracia participativa que permite a todos nós

trabalharmos o mercado. Nós vamos contrapor a democracia participativa não à ditadura, não

aos meios autocráticos apenas, mas também, gente, opô-la ao mercado, esse mercado terrível

que não tem força nenhuma que o coíba. É preciso coibi-lo através do quê? Da conjunção, do

consenso da comunidade, para buscar melhor a expressão do valor do uso social! Evitar que

esse valor de troca toque todo mundo. [Palavras inaudíveis.] Esse mercado tem de sofrer

impactos restritivos em prol da comunidade, em prol da dignidade humana, em prol da

distribuição para os homens, em prol da paz entre os homens. Isto é fundamental. É disso que se

trata.

MEDIADOR : Passo a palavra para Olavo de Carvalho.

OLAVO DE CARVALHO : Então está muito bom. Já que passamos a discussão para o

terreno dos fatos, e partimos de uma situação que Marx teria encontrado e que ainda se encontra

mais ou menos igual no mundo, então vamos ver um pouco a relação entre os fatores

considerados: mercado e miséria. Segundo o prof. Alaor, o grande culpado da miséria e da

desigualdade é o mercado descontrolado. Ele usou a palavra “controlar” e a palavra “coibir”.

Portanto, é necessário controlar e coibir o mercado.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não foi isso.

OLAVO DE CARVALHO : Aí eu não sei…

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE CARVALHO : Quando chegar a sua vez o senhor fala. Eu não lhe dei aparte.

O senhor usou as expressões “controlar” e “coibir”.

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE CARVALHO : Eu não lhe dei aparte! O senhor espere. Eu esperei aqui. Muito

bem. “Controlar” e “coibir”. Quanto eu não sei. A coibição total seria a estatização total dos

meios de produção. Não me parece que o prof. Alaor seja um defensor disto, e não creio que

exista mais, nem mesmo entre os teóricos marxistas, alguém que defenda exatamente isto. Mas,

se o grande culpado da miséria e da desigualdade é o mercado descontrolado, então para

melhorar a condição dos pobres temos de controlá-lo. O controle se faz basicamente de duas

maneiras: a mais direta, que é a participação do Estado na economia como proprietário e

investidor, e a segunda através de legislações controladoras e restritivas, seja sob o aspecto

fiscal seja sob outros aspectos.

Muito bem. Nós temos aqui um índice de liberdade econômica. Liberdade econômica seria

a ausência de controle. Ausência total não existe, assim como controle total não existe. Mas

dentro dessa escala que vai de 1 a mais ou menos 150, nós temos entre os países de economia

mais livre do mundo Hong Kong, Nova Zelândia, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Estados

Unidos, Austrália, Chile, Reino Unido etc. E assim, à medida que aumenta o número de

controles, supostamente para proteger os pobres, nós vamos descendo na escala de liberdade

econômica. Passou a primeira página, passou a segunda, aí mais ou menos no meio da terceira,

Page 20: Marxismo, Direito e Sociedade

encontramos o Brasil em 79 o lugar. Quem tem mais controle do que o Brasil e, portanto, está

abaixo nesta lista? Eu vou dar alguns: Paraguai, Nicarágua, Quênia, Zâmbia, Guiné, Ruanda,

Tanzânia, e assim por diante. Se vocês pegarem este mesmo quadro transformado para uma

projeção visual, nós temos aqui em verde e azul as regiões de mais liberdade econômica e,

portanto, de menos controle, e em amarelo e vermelho aquelas que têm mais controle. É só você

olhar estes dados, que são coletados anualmente com muito critério por um grupo de

economistas, e você verá que a ideia mesma de melhorar a condição dos pobres através de

controle é um absurdo sem mais tamanho. Se disserem que o neoliberalismo não vai resolver, é

claro que não. Em primeiro lugar, porque neoliberalismo não é liberalismo. Neoliberalismo é

um liberalismo meia-bomba que também se mistura com um socialismo meia-bomba, e o

neoliberalismo é simplesmente um pretexto para fazer o que o nosso governo tem feito, que é

controlar mais e mais e mais. Hoje em dia, só de dispositivos que regulam o orçamento federal,

vocês sabem quantos há? Cinco mil e quinhentos. Isto quer dizer que para um sujeito votar o

orçamento com consciência de causa, ele precisa conhecer cinco mil e quinhentas leis. Isto é

humanamente impossível. Isto é o controle estatal.

Ora, o prof. Alaor reconhece que aqueles que estão no Congresso e que fazem as leis não

são capitalistas e, ao mesmo tempo, ele diz que eles legislam em favor dos capitalistas. Aí eu

me permito concluir que se fossem proletários não legislariam necessariamente em favor dos

proletários. Porque acabamos de ver que a ideologia e os ideais do indivíduo não são de maneira

alguma condicionados nem determinados pela sua condição social. Porque se fosse esse o caso,

eu, que sou filho de operário de indústria e neto de lavadeira, deveria ser o mais marxista de

todos, ao passo que pessoas como o sr. Eduardo Suplicy e toda essa gente seriam pró-

capitalistas. Mas, se os legisladores, tanto no Brasil como em outros lugares, não são nem

capitalistas nem proletários, o que é que eles são?

Ora, eu estava lhes contando a história do fim do feudalismo. Desde o reinado de Luís XIV

se começa a formar, para fins militares, um princípio de organização burocrática estatal. Aos

poucos essa organização burocrática vai tirando da aristocracia feudal as funções locais que elas

exerciam (por exemplo, tribunais, juiz de paz, coleta de impostos etc.) e passando para a

burocracia. É evidente que os aristocratas perdiam a sua função sem perder a sua quota dos

impostos, criando então uma classe ociosa imensa, contra a qual se volta, com toda justiça, a

Revolução Francesa dois séculos depois. Mas ao mesmo tempo que se forma a burocracia

estatal, para preenchê-la é necessário ter funcionários preparados. Para ter funcionários

preparados, é preciso haver uma expansão do ensino. Então cria-se, para uma multidão de

pessoas de todas as origens sociais mais pobres, desde a pequena burguesia até os camponeses,

uma promessa de subir na vida através do funcionalismo público. Este é um fenômeno inédito

na História. E acontece que o funcionalismo público cresce, a burocracia cresce, e junto com ela

cresce o ensino. Mas, naturalmente, o número de candidatos cresce formidavelmente mais. E

com isso se cria uma legião de pessoas que têm alguma instrução e que aspiram ao cargo

público e não o têm. É a esta classe que eu chamo a burocracia virtual .

Se você estudar a história de todas as revoluções (Revolução Francesa, Revolução Russa,

Revolução Chinesa etc.) não através de impressões gerais e nomes de classes – gêneros

universais como burguesia e proletariado – mas se você for vendo uma a uma a origem social

dos líderes, era a esta classe que pertenciam. Esta é a classe revolucionária. Mais ainda: todas as

revoluções que ela fez foram sempre em proveito próprio. Quem sai ganhando com as

revoluções não é o proletariado e também não é a classe capitalista. É a burocracia virtual, que

Page 21: Marxismo, Direito e Sociedade

sempre legisla em causa própria, segundo a norma que foi assim enunciada pelo próprio

Trotsky: “O encarregado da distribuição jamais se esquecerá de distribuir a si próprio em

primeiro lugar.” Isto é norma, e é por isso que esses países onde o Estado não deixa a economia

à sua própria mercê, onde a economia é controlada, são os mais pobres e os que têm os mais

altos índices de corrupção. Isto é necessariamente assim, e não há solução enquanto o poder da

burocracia, sobretudo da burocracia virtual, não for quebrado.

Mas é preciso muita cara-de-pau para lhes dizer isto justamente aqui. Porque esta escola

existe para isto. Numa pesquisa feita entre universitários brasileiros dois anos atrás, verificou-se

que menos de 2% deles queriam ser empresários depois de formar-se. Todos queriam um

emprego. De cara eu fico espantado, porque eu sempre ouvi dizer que a Universidade faz parte

do aparelho ideológico da burguesia para formar a classe dominante, e de repente nós

descobrimos que todos eles querem ser empregados. Que tipo de empregado? Não é necessário

dizer. Então, isto quer dizer que vocês são burocratas virtuais, esperando para transformar-se em

burocratas reais. Portanto, são por excelência a população da qual o movimento político

revolucionário colhe os agentes de transformação social. Porque, evidentemente, não há lugar

para os burocratas virtuais em nenhuma sociedade; só haverá lugar quando eles estiverem no

poder. Ora, tomam o poder acreditando que vão pôr fim às injustiças. Uns acreditam, outros são

mais cínicos e sabem que não.

Vamos fazer aqui uma comparação: aqui nós temos um sujeito maior e mais poderoso que

está oprimindo este aqui, que é menor e menos poderoso. Então eu entro e digo: vou parar com

essa injustiça, eu vou intervir. Ora, para intervir numa briga entre o mais forte que oprime o

menos forte, eu tenho de ser necessariamente mais forte que os dois. Isto quer dizer que

qualquer intervenção política que vise a diminuir a desigualdade econômica tem de fazê-lo

necessariamente aumentando a desigualdade política, portanto concentrando o poder político.

Isto é uma regra jamais desmentida em qualquer processo revolucionário violento ou pacífico

do mundo. Então, eu vou ter de concentrar o poder; concentra o poder, concentra o quê? O

controle.

Por outro lado, se eu concentro o poder político, do que é que vive o poder político? O

poder político não custa dinheiro? O próprio prof. Alaor estava falando do orçamento militar

americano. Isso quer dizer que se há uma concentração do poder político, há necessariamente

uma concentração ainda maior do poder econômico. E é isto que permitiu ao socialismo realizar

um feito jamais igualado na história humana: matar de fome, em cinco anos, trinta milhões de

pessoas, no Grande Salto para a Frente, que foi o quê? A centralização da agricultura chinesa.

Isto é uma verdadeira maravilha! Ninguém conseguiu isto. Ora, se vocês quiserem tentar

novamente… Bom, agora querem. O MST, no fundo, quer isto: “Nós vamos fazer uma

agricultura centralizada, estatizada, diretamente sob controle do ministério”. Vocês sabem

perfeitamente que o MST não produz nada e que vive de cestas básicas. Saiu recentemente um

livro de um jornalista chamando Nelson Barreto, que visitou mais de trinta acampamentos rurais

e disse: “São favelas rurais”. É claro, não poderiam ser outra coisa. A socialização da

agricultura sempre dá nisto. Se você pegar todos os países africanos que estão numa condição de

miséria atroz, todos eles foram vítimas de políticas estatistas, centralizadoras e socialistas. Hoje

em dia, na Etiópia, por exemplo, se você toma uma cerveja, você paga 82% de imposto; se você

tem um firma que ganha mais quinhentos dólares por ano, você paga 52% de imposto, e para

cada tostão que ultrapassa os quinhentos, você paga mais trinta, e assim por diante. Saiu um

livro recentemente descrevendo a economia da Etiópia – é uma maravilha, é o controle. Se o

Page 22: Marxismo, Direito e Sociedade

mercado é o monstro que está deixando as pessoas miseráveis, lá eles não correm esse perigo,

porque o mercado está amarradinho. Ele está amarradinho na Etiópia, na Zâmbia, no Gabão. Por

que é que não imitamos esses lugares? Parece que a presente geração está seriamente inclinada a

fazer isso. Por que é que está inclinada? Porque o raciocínio que preside essa decisão, essa

escolha, não é um raciocínio baseado na economia, na realidade econômica, na racionalidade

econômica. É um raciocínio de ordem cultural.

Existe uma cultura marxista que está associada a símbolos de valor ético, de bondade e de

solidariedade intergrupal. Ora, você se desvencilhar de uma ideologia ou de uma ideia é

relativamente fácil, porque você simplesmente muda de ideia. Mas, como é que você faz para se

desgarrar do meio marxista, da atmosfera marxista? Primeiro, tem de abandonar seus amigos:

eles não gostam mais de você. Isto, todos meus alunos depõem, nesse sentido, e eu recebo

centenas de cartas: “Eu sou discriminado porque não sou marxista…” São centenas, e chegam

todo mês. Não estou acusando os marxistas de serem maus, não é isso o que eu estou dizendo.

Se eu fosse fazer um diagnóstico desse tipo, eu nem precisava vir aqui: eu estou tentando ser o

mais científico que eu posso. Científico não quer dizer neutro, quer dizer apenas honesto.

Por exemplo, o professor se refere às novelas, ao poder ideológico que elas têm sobre o

público. Vocês já ouviram falar de uma novela chamada Kubanacan ? Vocês sabem o que quer

dizer “Kubanacan”? Sabem o que quer dizer essa palavra? É o nome da agência oficial de

turismo de Cuba. Se você pegar todas as novelas da Globo, de vinte anos para cá, a seleção

ideológica é estrita. No tempo do falecido Dias Gomes havia uma central de seleção de novela.

A novela passava por três peneiras de seleção: primeiro, ideológica; segundo, artística; terceiro,

comercial. Qual era a primeira instância? Ideológica. Ou seja, se não atende ao requisito

ideológico, nem passa à segunda instância. Nós estamos impregnados de cultura marxista 24

horas por dia; é difícil sair de dentro dela. Mesmo no tempo em que as coisas não eram assim,

quem quer que participasse desse meio tinha certa dificuldade de sair. Vou lhes contar por que.

Quando eu comecei a trabalhar na imprensa, a primeira coisa que eu fiz foi entrar no

Partidão. O sujeito que me cooptou para o Partidão era um jornalista pernambucano chamado

Pedro. Eu vou lá, participo de várias reuniões da “base” (na época chamava-se base à unidade

mínima). A base era na Folha de São Paulo, que se chamava Empresa Folha da Manhã na época.

Passa um mês, chega um sujeito muito sinistro do Comitê Estadual e nos reúne na ausência do

tal do Pedro, que era o chefe da base, e diz: “Companheiros, estamos com um problema. Nós

estamos desconfiados de que o companheiro Pedro arrumou uma amante, e temos razões para

crer que ela é agente do Dops. Não temos certeza, e por isto nós precisamos isolar esse

camarada enquanto tiramos o assunto a limpo. Para isso precisamos que vocês arrumem um

local para depositá-lo (um cárcere privado, evidentemente) enquanto averiguamos”. Delegou

quatro voluntários, entre os quais este que vos fala, para fazer esta porcaria. Eu arrumei um

barraco numa favela onde eu nunca mais conseguiria chegar – é impossível, é depois de Deus-

me-livre. E deixamos o camarada lá. Passou uma semana, duas, três, e nós íamos levar comida e

cigarros para o sujeito. Daí a equipe de apoio logístico foi trocada e eu passei meses sem ouvir

falar do camarada. Um dia eu escuto na redação a seguinte conversa (isto, uns nove ou dez

meses depois): “Sabe quem estava aí na portaria? Aquele f.d.p. do Pedro. Nós não deixamos

nem entrar.” “Ótimo, estamos livres do problema.” Passam mais alguns meses, eu estou no bar

na frente da Folha tomando um cafezinho e chega o tal do Pedro, magro, chupado, barbudo,

verdadeiro mendigo. E veio falar comigo, e eu, como bom militante, virei-lhe as costas. Este era

um processo normal dentro do Partido: excluir as pessoas que lhe eram desagradáveis. Isso não

Page 23: Marxismo, Direito e Sociedade

aconteceu com um, aconteceu com centenas. Isso é muito comum, porque é considerado uma

justa medida de segurança.

Por aí vocês veem como é difícil sair desse meio. Eu levei vinte anos para sair. Você tem de

cortar os contatos um por um, você tem de fazer novas amizades, você tem de mudar de lugar,

porque se você está ali você não vai aguentar a pressão. Isto não é a força de uma ideologia,

uma ideologia não pode ser tão forte assim. Uma ideologia não penetra até às mais íntimas

reações emocionais da pessoa. Isto é uma cultura no sentido antropológico do termo, da qual

evidentemente fazem parte as formulações doutrinais do marxismo; mas não essenciais, tanto

não são, que podem ser trocadas. Eu acabei de lhes citar o caso de que Marx acreditava que era

imprescindível o uso da violência (e nisto ele é textual, não há menor possibilidade de dúvida),

que a geração seguinte já acredita que se pode implantar o socialismo pelo voto e que, em

seguida, se volta à teoria da violência, e assim por diante, numa sucessão absolutamente

alucinante de transformações. Então, o marxismo hoje diz isso e amanhã pode dizer uma outra

coisa completamente diferente, sem perder o senso de unidade – isto é que é miraculoso. Há

pessoas que dizem que o marxismo é uma religião; eu digo: de maneira alguma. Ele pode ser

uma religião no sentido primitivo, em que cultura, religião e sociedade formam um amálgama

indiscernível. Mas no sentido das religiões universais – Judaísmo, Cristianismo e Islam – elas

têm de ter um dogma perfeitamente identificável, com o qual você possa discutir, e aceitar ou

impugnar. Mas o marxismo não tem. O marxismo pode se livrar de qualquer das suas doutrinas,

se livrar de qualquer dos seus feitos, e absorver os feitos do adversário. Eu já lhes provei como é

assim.

Um exemplo característico é o das relações entre marxismo e fascismo. O fascismo existiu

no mundo e chegou a ter força graças à União Soviética. Por quê? Stalin, analisando

marxisticamente o fenômeno, acreditava que aquilo era uma rebelião meio anárquica de classe

média que conseguiria destruir as instituições das velhas democracias capitalistas, mas que não

conseguiria manter-se no poder. Então, ele dizia que os fascistas eram “o navio quebra-gelo da

revolução”. Dito de outro modo, eles ganham e nós levamos. Então, decidiu ajudá-los o mais

que pudesse, sobretudo do ponto de vista militar. Vou lhes mostrar aqui mais um livro: The Red

Army and the Wehrmacht . É a história de como a União Soviética construiu militarmente a

Alemanha nazista. Isto foi escondido durante muito tempo e apareceu agora com a abertura dos

arquivos de Moscou. Muito bem. Acontece que esta teoria que Stalin tinha a respeito do

nazifascismo não era a que Hitler tinha. Hitler tinha outra teoria. Em função disso, ele de

repente dá para trás e invade a União Soviética. Aquilo era tão absurdo do ponto de vista da

interpretação marxista de Stalin que ele levou dois dias para acreditar que aquilo estivesse

acontecendo. Ele achou que era uma operação de contrainformação feita pelos malignos

ingleses. Bom, durante toda a década de 30 houve estreita colaboração com o nazismo, antes da

eleição de Hitler. Hoje todo o mundo sabe do pacto Ribentropp-Molotov de 1939. O pacto foi

apenas a exteriorização de uma colaboração muito profunda que pelo menos desde 1933

construiu o poder militar da Alemanha. Ao mesmo tempo, como operação diversionista, Stalin

lançava em alguns países ocidentais, especialmente na França, uma imensa campanha de

antifascismo literário, na qual toda a intelectualidade francesa colaborou, sendo muitíssimo bem

paga. Até hoje, a noção de fascismo que nós temos é esta. Em 1933 houve o famoso atentado ao

Parlamento alemão; daí lançaram a culpa num comunista e prenderam um agente do Komintern,

George Dimitrov – vocês já devem ter ouvido falar disto. George Dimitrov chega ao tribunal e

diz: “Eu estou aqui preso por causa da tirania fascista dos capitalistas, a ditadura dos Krupp e

dos Thyssen.” Até hoje as pessoas acreditam que nazifascismo é isto. Não sabem, por exemplo,

Page 24: Marxismo, Direito e Sociedade

que o velho Thyssen, quando veio o nazismo, fugiu para a França, de onde foi sequestrado e

obrigado a voltar para colaborar com os seus inimigos. Mas como é que George Dimitrov foi

parar na cadeia? É muito simples. Ele era a figura mais importante do Komintern, e estava ali na

Alemanha; foi almoçar no restaurante que era o ponto de encontro de toda a oficialidade nazista;

vocês imaginem um militante clandestino fazer isso, almoçando com dois de seus assessores ao

lado. Foi preso ali, evidentemente, sem nenhuma violência, foi levado até o tribunal, onde pôde

fazer o seu show e em seguida foi inocentado e devolvido em paz à União Soviética. Seus dois

assessores que sabiam da história foram mortos. Isto quer dizer que toda a nossa concepção

corrente de fascismo é um mito publicitário, criado para encobrir a colaboração profunda da

União Soviética com o fascismo.

Olhem, eu lhes asseguro com a experiência de quem estuda esse negócio há trinta anos: eu

não sou um teórico neoliberal, não pertenço a movimento nenhum, tenho horror dessa direita

brasileira, cuspo na cara de todos eles, estou pouco me lixando para o que pensam, não estou

falando em nome de ninguém, e não tenho nenhuma solução para os problemas do mundo. Eu

falo somente daquilo que eu estudei. Esse negócio de marxismo e de história do comunismo eu

estudei. Eu lhes garanto: eu nunca encontrei uma afirmação central, fosse do próprio marxismo

fosse da cultura comunista em geral que, examinada, não se mostrasse exatamente o contrário

da verdade. É uma por uma, a lista não acaba mais. Eu mesmo, chegou uma hora em que

comecei a ficar alucinado: não é possível, tudo o que eles dizem que é invenção da tal da direita

é verdade.

É experiência de vida que eu tenho para lhes dizer. Para mim foi chocante, porque eu saí do

Partido não por discordância ideológica; saí simplesmente porque fiquei moralmente confuso

com episódios como esse que eu lhes contei, e durante 25 anos não dei palpite em nenhum

assunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e tentando chegar a conclusões. O

material que eu tenho sobre isso é imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão,

Marx era um vigarista. Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos

mais ricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo que ele tinha à mão, a

Inglaterra, que era o único país da Europa com boas estatísticas na época, e o melhor material

eram os Blue Books, relatórios anuais do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios,

descobriu que, ao contrário do que ele estava dizendo, a condição da classe operária tinha

melhorado. O que é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os

registros estão na biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas

como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os registros de trinta

anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja. Mais ainda: na hora em que o sujeito

editou o seu próprio sistema de “materialismo dialético”, vocês já pararam para pensar nessa

expressão? Uma dialética é um fluxo, um processo inteligível de ideias. Em que sentido isto

pode acontecer na matéria? Engels diz que a matéria tinha estrutura dialética. Por exemplo, hoje

nós diríamos assim: o elétron é a tese, o próton é a antítese e o átomo é a síntese. Não é preciso

dizer que todas essas ideias foram absolutamente desmoralizadas. Depois de desmoralizadas,

apareceu esta versão que o prof. Alaor defende agora: “Não, Marx não quis dizer isto, mas usou

o materialismo apenas no sentido da convivência do homem com a matéria, no sentido da ação

histórica sobre a matéria.” Se o materialismo de Marx diz respeito apenas à nossa ação sobre a

matéria, então a matéria é o fator passivo e alheio ao materialismo dialético. Só existe

materialismo dialético, portanto, na ação humana. Mas que raio de materialismo sem matéria é

esse aí? Isto não é um materialismo. O que é a matéria para Marx? Marx não diz absolutamente

nada sobre isso, e ele acredita que o processo central é a “ação transformadora do homem no

Page 25: Marxismo, Direito e Sociedade

cosmos”. Ora, quanto do cosmos o homem pode transformar? Um pedacinho insignificante da

crosta de um planetinha, e todo o restante do cosmos permanece perfeitamente indiferente a isto

aí. Como é que este processo pode ser o centro da realidade material? Se você disser que

espiritualmente ele é o centro, isto é possível, aí faz sentido; embora pequeno fisicamente, ele é

significativo. Colocá-lo materialmente no centro é nonsense e é de um primarismo filosófico

digno de analfabeto. Mas Marx não era um analfabeto, Marx era simplesmente mentiroso. As

provas disso são abundantes: a sua falsificação de fontes, as interpretações absolutamente

forçadas. Por exemplo, quando ele diz que inverte Hegel e o põe de ponta-cabeça: ele não faz

absolutamente nada disso. O que ele faz com a dialética não tem nada a ver com Hegel, ele

passa longe. E no entanto todo mundo acredita que é a estrutura da dialética de Hegel que está lá

dentro, e assim por diante.

A quantidade de charlatanismo é muito grande para eu poder lhes expor em meia hora, ou

até em um mês. Eu tenho dado aulas e mais aulas sobre isto, e o negócio não acaba. Então, eu

vou terminar esta exposição com um apelo. Não se sai de uma cultura mudando de ideia. A

cultura abarca a personalidade das pessoas. Para você abandonar essa cultura, você vai ter

insegurança, problemas psicológicos e dificuldades existenciais terríveis. Isto quer dizer que

dentro da redoma dessa cultura não é a mente ou a opinião das pessoas que está presa: é a alma

e a existência delas. E se é para falar em liberdade, então, antes de querer a liberdade para os

outros, experimente o que é a liberdade. Experimente examinar a cultura marxista não desde

dentro, como ela sempre faz, mas experimente olhar de fora, e vocês terão uma visão bem

diferente da que talvez tenham. Muito obrigado.

MEDIADOR : O prof. Olavo de Carvalho não concorda com passar dez minutos ao prof.

Alaor Caffé Alves para tecer comentários.

OLAVO DE CARVALHO : Só se eu também tiver dez minutos também. Ou é igual ou

nada. Ou é tudo ou nada. Ou é honesto ou é sacanagem.

[Há uma discussão sobre a continuação do debate e fica decidido que cada um dos

debatedores terá a palavra por dez minutos.]

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, eu acho que as coisas estavam indo muito bem. Mas esta

última, inclusive o aplauso que se deferiu para um tipo de política que me é extremamente

estranha e séria, mostrou inclusive que não se sabe o que é o nazismo. Porque os outros, isso

que vocês conhecem, vocês sabem o que é… Porque existe uma outra ideia do nazismo que

talvez fosse aceitável, como o Olavo falou. Profundamente triste isso. De qualquer forma, a

questão de dizer que Marx é um charlatão é muito complicado, é muito difícil formular dessa

forma porque é atacar uma pessoa que não está presente, que não tem nem a condição de se

defender. Mas isso é muito complicado porque não existe só a literatura marxista, existem

marxistas, os que são simpatizantes de Marx, os que aproveitam parte da concepção marxista, e

que admitem perfeitamente a possibilidade de desenvolver teses interessantes e importantes, de

cunho científico. Marx viveu praticamente a vida inteira naquela biblioteca de Londres dando

toda a sua vida para isso, e estudou profundamente a sociedade da sua época. Como eu disse, ele

pode ter errado em muitas coisas. Até a gente aceita isso, que Marx errou nisto ou naquilo. Mas

atacar uma dimensão moral, contra um intelectual que é um dos primeiros no mundo, é um dos

maiores intelectuais, indiscutível isso… Alguém vai discutir uma coisa dessa?

Page 26: Marxismo, Direito e Sociedade

OLAVO DE CARVALHO : Eu vou discutir.

ALAOR CAFFÉ ALVES : É, sempre tem alguém. Eu acho tudo muito gratuito isto, colocar

essas questões que foram colocadas aqui, muito gratuito. Não, não é assim que vamos discutir.

Eu, por exemplo, fiz toda uma série de colocações singulares a respeito de como se estrutura o

sistema, pelo menos aí rapidamente, pelo menos no sentido de verticalização, mas eu fiz umas

coisas concretas, de mencionar portanto discussões conceituais. Quando se penetrou no terreno

conceitual, se diz que Marx não sabe nem do quê está falando sobre a matéria, mas Marx nunca

se preocupou especificamente com a matéria no sentido físico. E quando ele [Marx] fala em

matéria, a matéria corresponde a um esforço da transformação do homem como um fato

importantíssimo, que não foi nem colocado aqui. E ele [Olavo] diz que estudou, temos que fazer

uma análise disso. Que é “o” debate. Debate da forma pela qual os homens agem sobre o

mundo, transformando o mundo. Dizer que Marx queria transformar o universo não tem

sentido. Não é disso que ele estava falando. Ele nem pensava nisso…

OLAVO DE CARVALHO : Nem eu disse isso.

ALAOR CAFFÉ ALVES : … ele nem disse isso. Nem foi dito isso, nunca. “A

transformação do universo, do cosmos.” A transformação que o Marx propunha era a

transformação do homem, do homem na sua pequena Terra mesmo, no seu planetinha,

direitinho. Mas é o homem, ele estava estudando o homem! Ele não estava estudando um

marciano nem nada disso. É o homem e, portanto, os homens, claro, têm uma dimensão

concreta que é a ação humana, que ele imagina não poder explicar as questões

especulativamente. Era isto o que ele queria dizer só. Que a especulação filosófica, puramente

teórica, não é suficiente para caracterizar o que o homem é. Marx postulava algo um pouco na

contraposição, na contramão dos racionalistas, especialmente um Descartes, que dizia que o

homem é um ser pensante. A postulação do homem, inclusive, como ser pensante, o distinguia

dos outros animais, é assim que se pensava em forma clássica. E Marx não acreditou

simplesmente nessa posição, ele avançou. Ele não está excluindo a vida teórica, ele foi um

teórico. Ele se trancou. Ele quis incluir a vida emocional dele, a vida da praxis , da ação, da

decisão, dos valores. Isso aí ele quis incluir. E é claro que o movimento da praxis envolve

exatamente o movimento do homem como um todo, não apenas como inteligência, como um ser

especulativo, como lógica. Ele via o homem como um movimento do seu corpo, dos seus pés,

das suas mãos. E uma relação social, nunca se viu o homem tornar-se solitário. Ele não pensava

na matéria no sentido, por exemplo, dos gregos, buscar a arkhe , o fundamento de todas as

coisas, como se fazia desde Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, e esses

pensadores todos que passaram, os pré-socráticos. Na verdade, ele trabalhou muito com esses

filósofos interessantes, que aliás foram trabalhados também por Engels, que é Parmênides e

Heráclito, com as suas posições. Pena que não dá tempo de desenvolver toda a temática desses

pensadores muito maravilhosos, que foram trazidos para nós, que foram recuperados.

Quando Marx faz essa postura, de não ser um homem teórico, é porque está vivendo

justamente num período que se chama “Revolução Industrial”. O homem pobre não pode ser

simplesmente teórico, ele tem que entrar em contato com o mundo, transformar o mundo, ele

tem de mudar a matéria-prima, ele tem de buscar matérias-primas, ele tem de transformar o

mundo com as suas mãos, com a sua indústria. Daí porque ele teve de começar a pensar

especificamente, não de forma puramente teórica, ou de forma especulativa. Esta dialética é

diferente. Quando ele busca a materialidade, não é essa materialidade portanto abstrata. É muito

Page 27: Marxismo, Direito e Sociedade

concreto, porque ela é calcada no trabalho humano. Para ele, o trabalho é fundamentalmente

aquele núcleo que perpassa o próprio homem. O homem é produto do seu trabalho na história e

socialmente. Não há homem sem trabalho, sem ação com o mundo. Trabalho é a administração

do homem sobre o mundo, transformando esse mundo, porque nisso ele transforma-se a si

mesmo. É isso que ele quis dizer: matéria transformada permanentemente pela sua própria ação.

Não é matéria bruta, como eu contava para ele [Olavo]. Ele nem tinha essa ideia da física nem

da química. Não contava para Marx isso. O importante para ele era a dimensão

fundamentalmente social, isso é que era importante para ele.

Essa questão da burocracia, é claro, todo sistema social hoje, tem de ter uma burocracia. Por

isso mesmo que se propugna por uma dimensão outra, que é aquela que o Olavo disse a respeito

do poder maior do que aqueles poderes. Um poder que oprime o outro, que pressupõe o outro,

que é bem maior. Sabe qual é o poder maior? É a comunidade! É a sociedade democraticamente

organizada, articulada de forma tal que se permita coibir (agora sim, a palavra mais correta) a

ação sozinha e solitária do mercado. Não pensem os senhores que vamos aqui imaginar que o

mercado que age diariamente, com bilhões e bilhões de dólares se movimentando pelo alto, pelo

labor da globalização, nós vamos conseguir neutralizar isso. Simplesmente com o quê? Com a

vontade singular de cada um? Ou com recursos que nós não temos? A única forma de coibir é

exatamente através de uma democracia participativa! Não é através da democracia

representativa, que de quatro em quatro anos vocês vão correndinho num domingo determinado

de manhã cedo e depositam um voto ali, para eleger os políticos que, em última instância, vão

ser cooptados pelo sistema. Não é isso. É a democracia participativa formada por divisão de

comissões, de conselhos, de articulação de comunidades. Não é fácil de fazer isso! É lógico que

é uma coisa difícil. É ela que vai, de certo modo, se opor às dimensões do mercado, que está sob

a decisão de quantos? Eu pergunto aos senhores: quantos? Poucos! Os donos do mundo! Eles

decidem o que querem! Onde pôr o capital, investir, tirar, pôr… Eles fazem. Esses movimentos

de capitais procuram as comunidades onde a mão-de-obra é mais barata. Dizer… Essas

postulações de que se o Estado interfere o sistema fica pior, ele está propugnando

fundamentalmente que largue tudo ao mercado, que façam tudo de acordo com as forças do

mercado, que tudo vai bem. Como, se cada pessoa tem o seu poder no mercado em função do

quê? Em função da sua entrada, da sua renda. E quantos têm renda? Eu não estou colocando a

questão daqueles que não têm trabalho, porque esses não têm mesmo nada. São aqueles que

ainda têm trabalho e que ganham metade de um salário mínimo, milhões de pessoas aqui. Como

é que essas pessoas vão definir situações, vão decidir sobre questões do mercado? E essas

pessoas vão fazer o quê? Vão ganhar mais? Então vocês estão percebendo que eu acho que essas

questões de colocar Marx como espertalhão, como… não é bom. Não fica bem. Não fica bem.

Vamos trabalhar mais com os outros filósofos, com outros pensadores que seguiram, inclusive

que houve outras mudanças, outras formas inclusive de considerar Marx, a questão até dessa

violência, nunca Marx falou de materialismo histórico, nunca! Me conta onde Marx diz

materialismo histórico! O primeiro a aplicar isso foi Paul Lafargue. Foi outra pessoa! Marx

nunca falou em materialismo histórico.

OLAVO DE CARVALHO : Falou em “materialismo dialético”.

ALAOR CAFFÉ ALVES : E mesmo sendo “dialético”, Marx nunca estabeleceu essas

formas, esses jargões (que eu concordo, são jargões), que no fim acabam distorcendo até o

pensamento, embora dê a entender Marx nos seus conceitos. Ler O Capital , ler… Tem várias

obras dele maravilhosas e interessantes, já que ele [Olavo] está fazendo tanto denegrir, tanto. Eu

Page 28: Marxismo, Direito e Sociedade

diria para vocês que há obras notáveis. Obras notáveis que exprimem conceitos riquíssimos.

Podem não ser todos suficientes para explicar tudo no mundo, é claro que não é isto. Mas que

nos ajuda a compreender o homem, como outros mais, não só Marx. Pensem num Weber, por

exemplo, um Durkheim. Tem de estudar esses pensadores para mostrar plenamente que tudo se

compõe, esse sim, o espírito humano, mas como a base fundamental da estrutura de ação

humana constante e permanente, que é o trabalho, que nós devemos cultivar permanentemente.

Estou contra essa ideia de “Marx charlatão”. Acho muito baixo para isso. E o prof. Olavo não

precisa se socorrer desse tipo de coisa. Não precisa. Ele é suficientemente filósofo, eu sei, eu

conheço o trabalho dele. Dá para dizer uma coisa mais profunda, mais tranquila, mais científica.

É isso.

OLAVO DE CARVALHO : Em primeiríssimo lugar, é preciso lembrar aos senhores que o

conceito de fraude intelectual não é um insulto, é um conceito, inclusive jurídico, perfeitamente

delimitado, e que eu tenho todas as provas de que Marx se enquadra nisto, pela falsificação de

fontes, pela má interpretação proposital de autores que ele conhecia perfeitamente bem, e assim

por diante. Em segundo lugar, eu não vejo por que eu deveria me abster de usar a palavra

correta para designar o procedimento dele, quando na verdade eu li Marx durante muito tempo e

conheço bem o estilo de Marx. Marx se referia a pessoas contra as quais ele não tinha tantas

acusações assim chamando-as de cães sarnentos, vendedores de drogas, proxenetas, canalhas.

Assim, este é o estilo de Karl Marx. Eu não estou usando nada disso, eu estou usando um

conceito perfeitamente delimitado de ordem jurídica, dizendo que isto é fraude intelectual.

Outra coisa: eu não posso confundir a tranquilidade com a cientificidade. Estar nervoso ou estar

calmo não tem nada a ver com esta história. Não vamos confundir calma e tranquilidade com

honestidade. Só interessa uma coisa aqui: tem de ser honesto. Ou seja, não fingir que sabe o que

não sabe nem que não sabe o que sabe: isto é a definição de honestidade intelectual.

Os indícios, as provas da fraude intelectual de Marx são vastíssimas, e é uma literatura

enorme. Infelizmente essa literatura, no Brasil, é desconhecida, porque o ensino universitário

aqui é nesta base: existe a redoma. Prova de que existe a redoma é que o prof. Alaor ficou

escandalizado quando eu sugeri que havia um outro conceito de nazismo que não fosse aquele

expresso por Dimitrov, o que significa que ele não conhece, ele nem imagina que existe: ele

também está dentro da redoma. As principais obras sobre o nazismo rebatem essa concepção

marxista no todo: as obras de Norman Cohn, Eric Voegelin, Leo Strauss, há uma bibliografia

imensa sobre o nazismo. Se existe uma coisa que é bem conhecida hoje, é o nazismo. Sabemos

que ele não foi de maneira alguma a ditadura do grande capital, sob aspecto nenhum, e muito

menos ainda foi um regime capitalista: foi um dos regimes mais socialistas e mais

intervencionistas que houve na história do mundo. E quando eles se chamaram de partido

nacional-socialista, não foi à toa, não foi só para parecer. A semelhança estrutural entre nazismo

e comunismo permite dizer que, de fato, a única diferença é entre socialismo internacional e

socialismo nacional. É somente isso, e é por isso mesmo que não pode haver uma “Internacional

Nazista”, porque só quem se identifica com a cultura nacional é que pode participar daquela

porcaria. Então, existe outro conceito sobre o nazismo sim. Não é para ficar escandalizado, mas

o próprio escândalo do prof. Alaor mostra como essas ideias e essas informações estão distantes

do meio universitário hoje. Porque o prof. Alaor não é um homem inculto; ao contrário, é um

homem bem informado. Só que é o seguinte: alimenta-se dessa cultura, e tudo o que recebe de

Page 29: Marxismo, Direito e Sociedade

fora já come no formato apropriado a esta cultura. Pode-se passar uma vida assim, e eu digo: eu

levei vinte anos para sair disto.

Uma outra coisa que foi dita na outra intervenção é a respeito dos 400 bilhões de dólares do

orçamento militar americano: “Se dessem 400 bilhões de dólares para o Brasil ou para a África,

nós sairíamos do buraco.” Eu lembraria a vocês um outro dado: só no ano de 2000 (é a

informação mais recente que eu tenho, não tenho outra mais atualizada), os cidadãos americanos

– cidadãos e empresas, sem contar o governo – fizeram um total de 200 bilhões de dólares de

contribuições para entidades de caridade, principalmente do Terceiro Mundo. Some com o

governo, e veja quanto saiu. Ora, o que acontece com esse dinheiro? É dado diretamente aos

necessitados? Não, é dado a uma estrutura burocrática da democracia participativa: é a

comissão, é o conselho, é não-sei-o-quê etc. E tudo isso tem despesa: tem de pagar telefone, tem

de pagar aluguel, tem de pagar empregados etc. Vocês sabem como os americanos definem

FMI? FMI é uma entidade que se dedica a tirar dinheiro das pessoas pobres nos países ricos

para dar às pessoas ricas nos países pobres. Essa definição é muito precisa. De vez em quando

nós vemos a nossa esquerda irritada com o FMI (“Ah, porque o FMI…” etc.) como se o FMI

fosse um propugnador da economia liberal e não um dos maiores controladores da economia

que existe no mundo: é o órgão controlador por excelência fundado por Lord Keynes, que além

de ser um estatista feroz era um colaborador da espionagem soviética. Ora, isto quer dizer que

ficam brabos de vez em quando com o FMI, usando-o como símbolo do capitalismo. Mas,

quando o FMI estrangulou economicamente o governo Somoza para dar o poder aos

sandinistas, ninguém ficou brabo. Ou seja, o FMI não tem essa identidade ideológica que lhe

estão dando, ele tem uma outra. Quer saber qual é a outra? Eu lhe digo: se o senhor fala das

grandes fortunas, veja as duas grandes fortunas, Rockefeller e Ford.

Vocês sabem que se não fossem Rockefeller e Ford não existiria a esquerda nacional. Elas

subsidiam partidos, ONGs, o Fórum Social Mundial etc., e ninguém pára para pensar que talvez

a equação socioeconômica do mundo seja um pouco mais complicada, um pouco mais sutil do

que o esqueminha marxista admite que você veja. Na verdade, se você pensar: mas por que é

que esses grandes capitalistas contribuem para o movimento revolucionário? É por um motivo

muito simples. O sujeito enriquece dentro da economia liberal e acumula tanto dinheiro, mas

tanto dinheiro, que dali a pouco ele entra na seguinte consideração: “Não podemos permitir que

essa fortuna, que custou tanto esforço, esteja à mercê das forças irracionais do mercado. É

preciso preservá-la.” Então, ele deixa de raciocinar capitalisticamente e passa a entrar em

considerações dinásticas. Ele tem de assegurar a continuidade daquela fortuna: o mercado não

pode fazer isso, somente o Estado pode. Por isso é que se você pegar as duzentas maiores

fortunas de Wall Street, elas jamais apoiaram uma política liberal. Entre dois candidatos nos

EUA, eles apoiam sempre o mais intervencionista e estatista. Isto é regular. Por que é que eles

podem fazer isso? Porque eles sabem, pelo menos desde a década de 20, que o estatismo total

jamais acontecerá. Então, eles estão seguros: por mais estatismo que venha, haverá uma margem

de liberdade econômica para quem tenha o poder de assegurá-la. Eles sabem que o estatismo

total não funciona, porque isto lhes foi demonstrado. Eles aprenderam – e nós, parece que até

hoje não – com o economista Ludwig von Mises na década de 20. Ludwig von Mises disse o

seguinte: se você implanta o socialismo, você elimina o mercado; se elimina o mercado, as

coisas não têm preço; se não têm preço, não dá para fazer cálculo de preço; se não dá para fazer

cálculo de preço, não dá para fazer economia planejada; portanto, não existe socialismo. Por isto

mesmo, tanto os metacapitalistas quanto os dirigentes socialistas se prepararam para isto. Na

União Soviética, por exemplo, sempre se reservou uma quota de 30 a 40% para a economia

Page 30: Marxismo, Direito e Sociedade

capitalista clandestina. E é por isso que se explica o surgimento dos grandes milionários russos.

Que, se era tudo do Estado, de onde apareceu tanto milionário do dia para a noite? Já eram

milionários. Sempre existiu capitalismo na Rússia, como sempre existiu na China. Ou seja, a

estatização total nunca acontecerá. Os líderes comunistas sabem disso, e os grandes banqueiros

sabem disso. Por isto, os grandes banqueiros, as grandes fortunas, só têm um inimigo: chama-se

economia liberal. Porque ela dissolve as grandes fortunas na concorrência do mercado e eles

precisam do Estado para garantir o seu poder monopolístico; por isto fomentam movimentos

socialistas e estatistas em todo o Terceiro Mundo. E nós, idiotas, caímos nessa acreditando que

estamos lutando contra o poder do capitalismo quando o estamos servindo. Muito obrigado.

Mediador : Passamos agora às perguntas.

P: Eu vou fazer duas perguntas ao prof. Olavo. A primeira, talvez eu tenha compreendido

mal – na verdade são três perguntas –, o senhor chegou a dizer que os censores das novelas da

Globo tinham uma ideologia marxista…

OLAVO DE CARVALHO : Certamente.

P: Eu só queria confirmar isso. Isso não me parece evidente, então eu gostaria de um pouco

mais de explicação. Com relação à sua concepção do marxismo como cultura, no sentido

antropológico de termo, eu também não consigo enxergar claramente todas as dimensões disso,

porque a cultura no sentido antropológico implica instituições, e aí eu gostaria de enxergar mais

claramente quais são as instituições marxistas que nós temos no Brasil, no Paraguai, em

qualquer outro desses países. E a última pergunta é que o senhor faz uma aproximação,

inclusive mostrando gráficos, entre o Estado intervencionista e centralizado e o marxismo…

[troca de fita]

OLAVO DE CARVALHO : Bom, são três perguntas. Em primeiro lugar, estude

simplesmente as biografias de Dias Gomes e de Janete Clair, que sempre foram militantes do

Partido Comunista; em seguida, você vai precisar de informações de um pouco mais de dentro e

conhecer os scripts de novela que são propostos, que você vai averiguar gradativamente a

introdução de elementos de propaganda claramente esquerdista, se bem que light ,

evidentemente. Porque você vai usar o meio de propaganda conforme a natureza e o público que

você vai atingir. Em segundo lugar, quanto à questão da cultura marxista, a resposta é simples:

leia Gramsci. E não é verdade que cultura implique instituições. Cultura, no sentido

antropológico, é um termo que abrange desde culturas indígenas primitivas até às [culturas]

modernas. Eu usei “cultura” e não “sociedade” exatamente por este motivo. As instituições dos

países socialistas se incluem nisto; fora dos países socialistas você pode ter um domínio sobre

uma parte das instituições, mas isto não é absolutamente essencial para o processo que eu estou

descrevendo. E, quanto à terceira pergunta, é verdade que naquele momento Marx advogava o

livre câmbio porque as políticas protecionistas eram políticas herdadas de um concepção

mercantilista antiga, e naquele momento Marx achava que era mais importante liberar a força do

capital, para que crescesse e para que, no entender dele, chegasse a criar a contradição que

resultaria no socialismo. Porém, a verdade é que, no século XX, sempre os partidos comunistas

e de esquerda favoreceram as políticas protecionistas, como no Brasil. Aliás, uma das vantagens

da esquerda é ser internacional. Por quê? Porque ela explora as contradições entre países. Então,

por exemplo, nos EUA, a esquerda sempre apoia políticas protecionistas; e no Terceiro Mundo

reclama contra as políticas protecionistas americanas que ela mesma criou.

Page 31: Marxismo, Direito e Sociedade

P: É o seguinte: eu estava ouvindo aí esses temas – a revolução, os políticos, o jurídico,

qualidade de vida dos brasileiros, milhões de miseráveis, como resolver isso, distribuir renda – e

isso me fez lembrar que três anos atrás aproximadamente eu lia o Joelmir Beting, que escreveu

um artigo em que ele defendia, em vez da apropriação dos meios de produção, a tributação da

produção e da renda. Deu como exemplo países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia.

Talvez eu não esteja sendo preciso por uma questão de memória fraca, mas eram basicamente

esses países da Escandinávia. Eu pesquisei e descobri que exatamente esses países citados pelo

Joelmir Beting são países com cargas tributárias extremamente elevadas (30%, 40%, 45%, 50%

e mais). E, por coincidência, esses países também são os países com melhor índice de

desenvolvimento humano, ou seja, melhor qualidade de vida. Então, será que nos regimes

capitalistas vigoraria o que Joelmir Beting chamou de “socialismo fiscal”?

OLAVO DE CARVALHO : De maneira alguma. Na escala de liberdade econômica a

Dinamarca está em 12 o lugar. Imposto elevado não basta para caracterizar um controle

estatista. É necessário haver legislações restritivas etc. No conjunto, a economia dinamarquesa é

extremamente livre, está bem mais próxima do liberalismo do que qualquer outra coisa, e assim

também os outros países. Se me escreverem para o meu e-mail, eu passo essa escala para quem

quiser.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, a tributação vem do corte financeiro em cima da sociedade

civil. A sociedade civil tem a produção. O Estado precisa viver de um recurso, quer dizer, o

recurso é extraído da produção. E consequentemente a produção, como não é neutra, ela

envolve capital, o capital muitas vezes resiste à tributação. Vocês veem que ele resiste à

tributação tendo em vista o fato de que isso atrapalha a acumulação dele. Então, ele não quer

evitar, ele não quer ter limitações de sua acumulação. A tendência, portanto, é haver uma crise

interna, pelo processo capitalista, quando há essa quantidade muito grande, muito acentuada dos

tributos. Portanto, mais uma vez existe o problema dos conflitos e das contradições internas da

sociedade em torno disso. Quando não acontece isso, o sistema cria o “caixa 2”. Vocês já

ouviram falar no “caixa 2”: não paga exatamente para ficar com uma parte e conseguir fazer,

com isto, a acumulação. Há portanto uma dinâmica econômica no processo, muito importante:

não é simplesmente tirar da sociedade.

P: Eu gostaria de saber dos dois professores como é que eles definem o atual momento

político e ideológico do país, e se os dois têm esperança no Brasil, e no quê eles teriam

esperança?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, o atual sistema, o atual momento político é um momento à

esquerda. Sabemos que é isso. Pelo menos como ideário, o sistema que prevalece hoje é o

Partido, é o PT. Só que é evidente que o PT não pode tomar posições senão pragmáticas, em

função da situação. Porque aquilo até que se esperava – que o PT tomasse uma posição mais

radical em termos econômicos –, não o fez, aceitando de certo modo as diretrizes de definição

econômica e social, tendo em vista os problemas que eles estão enfrentando. Vocês veem até

que eles estão conservadores no processo, inclusive de abertura econômica. Isso significa, é

claro, que não é a perda do ideal mais socializante, ou então mais equalizador, do sistema social.

Isso é importante. Não é esta perda. São as impossibilidades que o próprio sistema impõe. E

essa impossibilidade não é fácil. Por ter uma atuação pragmática que tem de fazer, porque tem

de governar o país, e não perdê-lo mas governá-lo, então ele tem de tomar certas posições

Page 32: Marxismo, Direito e Sociedade

pragmáticas nesse sentido. É claro que isso implica uma série de questões e problemas que nós

temos de enfrentar como um todo, o país como um todo. E o próprio governo neste caso tem

problemas muito graves e gargalos seríssimos. Não porque ele não tenha essa dimensão social,

mas porque ele enfrenta dificuldades e medidas que eles não têm suficiente controle e condições

de fazer.

OLAVO DE CARVALHO : Muito bem. O presente governo tem duas prioridades e

nenhuma delas tem nada a ver com o chamado “social”. A primeira é manter o equilíbrio

orçamentário, controlar a inflação e, em suma, atender às exigências do FMI de, como eles

chamam, sanidade financeira. Notem bem que essas exigências não têm o teor ideológico que as

pessoas lhes atribuem. Esse mesmo conjunto de exigências pode ser usado para esmagar

governos de direita ou de esquerda – acabei de lhes dar o exemplo de Somoza. Então,

dependendo de quem controla o instrumento, ele aperta aqui ou aperta acolá. Esta é a primeira

prioridade. Para quê? Para o governo ter tempo de desenvolver a segunda parte, que é a

integração dos movimentos políticos latino-americanos – movimentos revolucionários – e a

identificação de Partido com o Estado. São essas duas coisas. Essas duas coisas dão um trabalho

miserável.

Eu acho que o governo está fazendo isso da melhor maneira possível. Eu acho tudo isso de

uma extrema habilidade. Mais ainda: esta é a política que Lenin seguiria. Três meses antes de o

Lula ser eleito, eu escrevi um artigo chamado “O que Lenin faria”, se ele tivesse o poder na

mão. Faria exatamente isto: acalmar o investidor estrangeiro (através do equilíbrio fiscal etc.) e

montar um sistema de controle político (através da expansão indefinida do Partido, da

identificação entre Partido e Estado etc.).

Ter esperança ou não ter esperança é uma coisa que, com relação à política, eu sou incapaz

de ter. Eu nunca coloquei nenhuma esperança em política alguma; nem chego a entender o que

as pessoas querem dizer com isso. Eu estou me limitando a estudar a situação e tentar entendê-la

da melhor maneira que eu possa. Não tenho nenhuma fórmula para salvar o Brasil, mas se fosse

para fazer uma coisa boa, eu faria algo que o governo Lula anunciou no começo que ia fazer. O

governo viu que o grande número de propriedades imobiliárias irregulares no país (quase 80%)

impede a formação de capital para os pobres. Ou seja, os pobres têm o capital na mão, mas é

capital morto, não tem liquidez. E ele fez o plano de distribuir títulos de propriedade

imediatamente. Mas falou isso durante uma semana e depois broxou completamente. Isto era a

coisa boa para se fazer: não tem nada a ver nem com agradar o FMI nem com fazer a revolução

latino-americana. Isto eu teria feito se estivesse no lugar deles.

P: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o prof. Alaor, e se o sr. Olavo quiser comentar

também… Bom, o professor falou que acredita numa democracia participativa, e entende isso

como a participação de cada indivíduo de uma sociedade brasileira diretamente nas decisões

governamentais. Eu pergunto: como isso é possível hoje no Brasil, sem que haja uma

dominação dos meios públicos? Por exemplo, aqui na faculdade tem o orçamento participativo:

os alunos vão, orçamento participativo, pá-pá-pá, chega aqui, assembleísmo, pá, a maioria dos

alunos acaba não decidindo porque “não tem tempo, não pôde ver, não pôde ir para a aula”.

Enfim, como é que isso vai acontecer com o resto do povo brasileiro, com o pescador, um

sujeito que não entende muito bem de política (com todo o direito), como é que… Enfim, não

sei se o senhor entendeu a minha pergunta. Eu não acredito no orçamento participativo. Como é

que o senhor acredita?

Page 33: Marxismo, Direito e Sociedade

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não. Acontece o seguinte: a democracia participativa impõe

todo um processo muito amplo de mobilização social e de organização social. Se não houver a

mobilização e a organização social não haverá nunca a democracia participativa. Ela é agora

uma coisa nova. Na verdade, ela é uma proposta de quê? De dez anos, no máximo. Não tem

ainda a organicidade que deve ter, e, muitas vezes, a participativa é cooptada. Esse é que é o

problema complicado. O próprio sistema não quer saber da democracia participativa

efetivamente, mas existem indicações. Por exemplo, eu vou dar uma ideia para vocês

entenderem isso. O sistema de conselhos no Brasil é difícil, não é? Ele fica praticamente

neutralizado e acaba não surtindo os efeitos que deve surtir. O sistema de conselhos seria

interessante, não o conselho de rua (geralmente há o conselho de rua). A chamada democracia

representativa é a democracia da rua: todas as pessoas vão à rua, os políticos vão à rua, propõem

as suas colocações, fazem as suas exposições, e tentam amealhar, tentam cooptar as pessoas, ou

seja, persuadir as pessoas. Eu acho que essa democracia não é suficiente. Por exemplo, a

democracia que envolve a possibilidade de participação de todas as comunidades, inclusive as

comunidades escolares, fabris, os clubes, as igrejas, as vizinhanças, mas isso ainda tem muito a

caminhar. Nós precisamos trabalhar muito e estudar muito esse aspecto e tentar estabelecer

relações internas dessas unidades todas e externas, ou seja, inter-relacionais. Não é fácil. Não é

fácil. Nós temos a democracia representativa, que domina completamente. E muitas vezes eu

tenho perguntado aos vereadores, aos deputados etc., se querem a participação. Eles não

querem, eles acham que isso diminui, elimina os seus poderes respectivos. Portanto, eles fazem

uma proposta sempre constante de democracia representativa, evitando o mais possível o

domínio da democracia participativa. É complicado, demanda consciência, demanda, digamos,

uma dimensão muito mais criativa e consciente, politicamente, por parte das organizações. Aqui

por exemplo, na faculdade tem muito pouco disso. Precisaria ter muito mais disso, de um

movimento político nesse sentido.

OLAVO DE CARVALHO : É preciso ver se nós estamos discutindo as palavras pelo seu

valor de dicionário e pela sua associação emocional ou pela substancialidade das situações de

fato que elas representam. Com relação ao conceito genérico de participação, ninguém pode ser

contra. Santo Tomás de Aquino já dizia que qualquer sociedade política só pode estar segura da

sua sobrevivência se todos os seus membros participarem da política. Quer dizer, isto é uma

espécie de consenso universal. Ninguém discute isso há sete séculos. O problema é o como.

Ora, a estrutura partidária da representação que nós temos já é suficientemente complexa para

que nenhum cidadão possa dizer que a conhece. Agora, multiplique isso por uma infinidade de

conselhos, comissões, assembleias etc., e ademais pergunte: todas as pessoas que vão dirigir

todas essas coisas são militantes trabalhando gratuitamente? Ou seja, a concepção atual da

participação é tão complexa e tão custosa que eu a afastaria de cara como simples psicose. A

proposta de democracia participativa pode servir como um instrumento propagandístico para

desmoralizar o sistema representativo, que já não está muito bem das pernas. Mas que vá

substituí-lo é absolutamente impossível.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bom, é óbvio que o “como” é complicado mesmo. Mas ele

demanda mesmo uma complicação em função de uma sociedade altamente complexa. Não há

dúvida. Não há dúvida. O que ocorre é que a democracia representativa não assumiu, e não

assume de forma nenhuma, as dimensões necessárias para compor políticas públicas de forma a

efetivamente trazer à comunidade a satisficação necessária, tendo em vista exatamente esses

problemas que nós elencamos, como, por exemplo, o caso das diferenças profundas entre as

Page 34: Marxismo, Direito e Sociedade

pessoas. Essa democracia que nós temos, a representativa, ela tem um problema de

representação das camadas sociais e das classes sociais muito distorcido. Não há possibilidade

de um aproveitamento claro nesse sistema. Por outro lado, a questão de comissões etc. depende

dos “bolsões”. Não é comissão para toda coisa geral. Tem a comissão do meio ambiente, a

comissão da educação, disto ou daquilo, as comissões singulares, que vão atuando em sistemas

capilares. É claro que isso é complexo mesmo. É um assunto altamente complexo, numa

sociedade complexa como a nossa. O que nós não podemos é ter uma posição, digamos,

pessimista quanto a isso, porque depois não há sistema nenhum, nenhuma engenharia social ou

institucional que nos permita realmente tomar conta da sociedade. Para largar a sociedade

justamente para quem? Para aqueles que são os donos do sistema, os hegemônicos do sistema,

os donos do capital.

OLAVO DE CARVALHO : Quando você fala dos “donos de capital”, eu queria lembrar

uma coisa a você. A chamada corrente liberal só tem uma instituição que a defende: chama-se

Instituto Liberal. O Instituto Liberal de São Paulo fechou por falta de verbas. Jamais faltam

verbas para o Fórum Social Mundial, para o PT, para o MST etc. Portanto, a distribuição do

poder e do dinheiro não é exatamente esta que geralmente se pensa: “Aqui estão os burgueses

defendendo os seus interesses e ali estão os partidos de esquerda heroicamente lutando em favor

dos pobrezinhos.” Simplesmente não é assim. Eu não vim aqui para defender proposta

nenhuma, o meu ponto de vista é a realidade, e a realidade no momento é esta. Por exemplo,

essa capilaridade se faz em grande parte através de ONGs. Vocês sabem que nenhuma das

ONGs que nascem no Brasil é produto local? Vocês sabem que a ONU tem um curso de

formação de movimentos sociais no Terceiro Mundo que anualmente espalha vinte mil

profissionais disso para tudo quanto é lugar, subsidiados por outras ONGs enormes financiadas

por Rockefeller, George Soros, Morgan etc.? Vocês têm ideia de que essa tal da democracia

participativa é ela mesma uma obra de engenharia social que está sendo implantada em toda a

parte, e não está surgindo de baixo? Estudem esse assunto. Estudem a estrutura atual da ONU.

Existe um livro do Pe. Michel Schooyans, que foi professor de filosofia no Brasil, chamado La

face cachée de l'ONU (“A Face Oculta da ONU”), que trata dessas coisas. Então, notem bem

que a estrutura do poder global é bem diferente do que uma análise marxista permitiria

imaginar. A estrutura do poder não corresponde a isto. Muita coisa que parece movimento social

vem diretamente do grande capital.

P: Eu acho as posições dos dois muito radicais, né. Então, eu queria saber a opinião de

“um”, que coloca que aparentemente não há solução, e a do professor, que o sistema capitalista

não seria a solução. Eu queria saber se dentro do próprio sistema capitalista vocês não acham

completamente inviável uma coisa que o pessoal abomina: o hobbesianismo, o princípio do

interesse próprio. Na verdade o interesse próprio de cada indivíduo capitalista, digamos, não

pode encaminhar em direção ao interesse social, sem pensar num idealismo romântico, sem

apelar para o bom senso ou para a caridade, mas que o próprio capital para se manter ele vai

criar, e cria – como tem criado – a função social das empresas, a ação voluntária das pessoas,

para desenvolver os próprios mercados que ele quer explorar e não, ao contrário, destruir

mercados dos quais ele precisa.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não, não se trata disso, do fato de que o capital não faça o

possível para ficar com uma fachada boa e muito interessante. E não se trata do fato de que o

capital não faça também alguma coisa de cunho social. Eu não coloquei essa questão, eu

coloquei uma questão de estrutura interna. De qualquer forma, todas as empresas vão buscar o

Page 35: Marxismo, Direito e Sociedade

quê? Elas querem mercado, querem tentar colocar os seus produtos. O que eu disse aos senhores

é que com a inclusão da sofisticação grande da técnica e da ciência, o sistema se coloca a si

mesmo em xeque. Há uma contradição interna no sistema (que não foi comentada aqui), e eu

falei com toda a clareza: o sistema, por receber toda a dimensão muito sofisticada da

produção… Não porque o capitalista queira, ele não quer isso mesmo. Qual é o dono do capital

que vai querer isto? Vai querer nada. Mas ele é obrigado a fazer em termos da sua competição

mundial, ele precisa fazer isso. Mas ao fazer isso, ele libera necessariamente a mão-de-obra

porque faz parte dos custos. Ele tem de tirar isso da frente. Os custos mais facilmente tiráveis,

ou seja, que são possíveis de ser eliminados, são os custos relacionados com a mão-de-obra. A

matéria-prima ele tem de aplicar, as máquinas ele tem de fabricar e tem que utilizá-las, não tem

jeito. E as máquinas e a matéria-prima vão todas para o produto. A única coisa que ele pode

eliminar é a mão-de-obra. Mas na hora em que ele elimina a mão-de-obra (não é porque ele

queira, ele vai ter de fazer isso), mesmo fazendo ajustes sociais, fazendo tudo o que você

imaginou, a beleza da coisa, se ele está metido em algum processo de acumulação, ele vai

precisar necessariamente continuar o processo de expansão da economia, porque a lei do capital

é esta mesma: é de permanente ampliação e acumulação. Ele entra num processo de crise e de

conflito, que tem um limite, é claro. O capital tem limite, gente. Ele é um processo social,

histórico. E como ele tem um começo, um dia vai ter um fim. Um dia vai ter, mas eu não sei

nem quando. Qual é a ideia que se vai ter disso? Ele é um processo social. Ou o capitalismo é

eterno? De repente apareceu o final da História: é o “Fim da História”? Quebrou aqui e aqui, e

não tem mais? Não é isso. Nós estamos mostrando as contradições que levam o sistema a outra

situação, mesmo um sistema que seja em geral “bonzinho”.

OLAVO DE CARVALHO : Bem, evidentemente o capitalismo pode acabar. Se o

socialismo acabou, por que é que o capitalismo não pode acabar? Ademais, o capitalismo não

tem de ser defendido como ideal para resolver o que quer que seja, porque, em primeiro lugar, o

capitalismo já existe. E quando eu o defendo – e mesmo assim com limitações, que eu não sou

nenhum entusiasta do capitalismo – é apenas como algo que está funcionando, que funciona

bem onde lhe permitem funcionar. Destruí-lo em função de hipóteses como “democracia

participativa” é suicídio. Até o momento se falou em contradições: é claro que tem contradições,

toda sociedade tem contradições. Mas nunca o capitalismo chegou às tais contradições que

Marx denominava “contradições antagônicas”, que o destruiriam desde dentro. A isso não

chegou até hoje; e o socialismo chegou. O socialismo mostrou que é incapaz de passar de um

certo ponto. Em matéria de contradições antagônicas, o socialismo está ganhando.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Parece que não se percebeu claramente a lei do materialismo

histórico. É que a indução do socialismo no século passado foi artificial. Não é que socialismo

acabou, como você está dizendo. Ele nem começou.

OLAVO DE CARVALHO : Ah!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Nem começou.

OLAVO DE CARVALHO : Então me enganaram o tempo todo!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Enganaram todo o tempo. Quer dizer, isso de ver fantasmas

socialistas de anos atrás por toda a parte [palavras inaudíveis], isso realmente obscurece a

pessoa.

Page 36: Marxismo, Direito e Sociedade

OLAVO DE CARVALHO : [Risos.]

ALAOR CAFFÉ ALVES : É preciso ter clareza disso aí. O socialismo como tal, como o

próprio Marx disse, teria de fazer com que as forças produtivas avançarem de tal maneira a

chegar no limite das relações sociais de produção. O fato é que até agora não se chegou aos

limites do sistema. Está se percebendo agora que está começando a entrar nesse processo.

OLAVO DE CARVALHO : Puxa, que maravilha…

ALAOR CAFFÉ ALVES : A crise está começando a entrar agora. Agora é que estão

começando a se desenvolver os problemas de desemprego, do social etc., né? A crise mundial,

onde as coisas são irracionais. Um sistema como esse americano, que faz a coisa mais absurda e

irracional, como atacar um país inteiro sem motivo praticamente, a não ser um motivo pessoal,

um motivo articulado do próprio país, que é a busca de energia que ele precisa tanto para

desenvolver o seu sistema. Porque se ele não tem energia, minha gente, ele cai, ele cai

completamente. Ele precisa segurar a energia. É por isso que eles fizeram isso. Não é o Bush

que é mau, não. O Bush não é malvado (pode até ser, mas a gente nunca sabe). Ele tem de fazer

isso em razão da própria impulsão do sistema. Pode estar certo, Olavo: o socialismo não

começou, não. Ainda temos muita coisa para ver. Muita água ainda vai correr embaixo da ponte.

Infelizmente, eu gostaria que as coisas fossem mais rápidas, mas não são. O que aconteceu foi o

desenvolvimento de um tipo de revolução artificial, que não chegou justamente aos limites que

o sistema vai ter. Porque os limites o sistema vai ter. E está tendo já, está começando agora. Não

sei quanto tempo, pode durar duzentos anos, sei lá. No entanto, é isso mesmo. Estamos agora já

com a indicação histórica que alguma coisa agora está condenada pelo sistema capitalista. É isso

aí que eu estou dizendo. Agora, se vai ser socialismo… que tipo de socialismo, que forma de

socialismo. isso nós não sabemos. É claro, isso não sabemos.

OLAVO DE CARVALHO : Bom, vocês sabem quantos livros foram publicados com o

título de “A Crise Geral do Capitalismo”?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Ih, muitos…

OLAVO DE CARVALHO : Milhões e milhões. Todos faziam esse diagnóstico: “Agora

sacamos a crise, agora cai, e agora virá o socialismo.” E quando se diz que muita água vai

correr, não: muito sangue ainda vai correr. Matar cem milhões não foi o bastante. Notem bem,

uma ideologia que, com esses mesmíssimos argumentos da estrutura de classe, da ideologia, do

mercado etc., tomou o poder em um terço do globo terrestre, matando cem milhões de pessoas e

só conseguindo gerar miséria em proporções jamais vistas, como se gerou na China – depois de

tudo isso, é preciso ter muita cara-de-pau para dizer: “Não, mas aquilo não era o verdadeiro

socialismo. Nós vamos tentar outra vez. Vocês me deem mais um creditozinho de confiança, e

desta vez nós vamos acertar.” Ora, por que vamos dar esse crédito de confiança? Baseado em

quê? Na autoridade dos cem milhões que vocês mataram? Chega disto! O capitalismo não é

grande coisa, o capitalismo chega a ter aspectos até demoníacos. Porém, esse tipo de malefício

ele jamais fez: nunca chegou tão profundamente. Portanto, não vamos destruir uma coisa

razoável que temos, que pode ser mudada e aperfeiçoada muito, para tentar apostar novamente

no socialismo. Mais ainda: porque não é possível uma teoria dizer ao mesmo tempo que as

ideias não existem separadamente da história, que as ideias só existem pela sua encarnação

Page 37: Marxismo, Direito e Sociedade

material na história, e em seguida dizer que toda a história deles durante um século não o

compromete de maneira alguma, e que ele como ideal permanece puro e intocável no céu das

ideias platônicas. Isso é charlatanismo.

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Palavras inaudíveis.] É evidente que isto não é uma resposta.

Em primeiro lugar, ninguém está aqui defendendo a União Soviética, nem está pretendendo que

era isto que eu estaria fazendo. Ele [Olavo] está com fantasma na cabeça. Também isso nem

precisa mais pensar, que isso já foi mesmo, é coisa da História. Então é um fantasma pensar que

o que se propugna é aquilo que estava lá. Não é nada disso. Soube-se que houve erros

profundos, sérios, seríssimos. Exatamente porque se propôs impor um sistema fora da hora, fora

da História, da dimensão histórica. Porque não se viu realmente a dimensão histórica. Então, é

isso que se está colocando aqui. Não é a defesa de coisa nenhuma, de três milhões, de cinco

milhões, de trinta milhões que foram perdidos em relação a isto; mesmo porque outros sistemas

[palavras inaudíveis], ele [Olavo] não provou que o capitalismo não fez tantas mortes.

OLAVO DE CARVALHO : Não fez!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Não?

OLAVO DE CARVALHO : Não fez! Não fez! De jeito nenhum!

ALAOR CAFFÉ ALVES : Tantas mortes e muitos problemas gravíssimos de muitas

guerras, desde que existem claramente, basicamente as guerras deste mundo inteiro? Quem fez

isto, senão todo o sistema burguês capitalista que fez isto? É evidente que houve também essa

ampliação burocrata em termos objetivos por parte do socialismo. Então, neste caso, o certo é o

seguinte, só para terminar: não adianta entrar nesta questão. Eu quero que ele me explique como

é que ele vai resolver o problema das contradições dele (mas claro, tem de ser relido com

conceitos) decorrentes deste processo que está ocorrendo com o desenvolvimento tecnológico

das forças produtivas, expulsando a mão-de-obra, expulsando a capacidade de poder consumir

aquilo que o próprio capital produziu. Eu quero que ele me explique, me explique!

OLAVO DE CARVALHO : Essas contradições são exatamente as mesmas que Lenin

diagnosticava em 1915, e em nome das quais se fez a revolução. Agora, quanto ao morticínio,

está aqui: O Livro Negro do Capitalismo . Quando saiu O Livro Negro do Comunismo , feito

por pessoas de esquerda, que provava documentadamente que os comunistas haviam matado

cem milhões de pessoas, encomendou-se a um monte de intelectuais que produzissem, de

qualquer maneira, cem milhões de vítimas do capitalismo. Então, eles produziram este livro: são

trinta autores de alto prestígio no meio esquerdista. Então, para chegar aos cem milhões, foi

preciso atribuir ao capitalismo todas as vítimas da Segunda Guerra Mundial (cinquenta milhões,

todas as vítimas de todos os lados), todas as vítimas da Revolução Espanhola (de todos os

lados), todas as vítimas da Primeira Guerra Mundial… Isso é charlatanismo. Todo marxista é

um charlatão.

P: Eu gostaria que os dois debatedores comentassem algumas considerações minhas e vou

fazer uma pergunta específica para o prof. Olavo. Pelo tema do debate, eu esperava que

houvesse uma discussão a respeito das principais teses desenvolvidas pelo Marx, mas

infelizmente as discussões tomaram outro rumo, e eu percebo que as teses propriamente de

Marx foram tangenciadas. Como por exemplo a crítica feita ao materialismo, se ele não é o

Page 38: Marxismo, Direito e Sociedade

poder de a matéria gerar frutos, o que me parece uma concepção inclusive meio bíblica – o

homem feito do barro etc. Quando na realidade o fundamento do marxismo reside justamente na

interação do homem com a natureza, que é, segundo o próprio Marx, o corpo inorgânico do

homem, e a produção da ideologia se dá a partir dos pressupostos da atividade espiritual

humana. Então, nós estamos aqui fazendo o quê? Nós estamos aqui debatendo, mas nós estamos

aqui vestindo roupas, nós estamos calçados, os debatedores estão tomando água, fumando

cigarro. E de onde vêm essas coisas? Tudo isso foi produzido, tudo isso foi criado de alguma

forma através de alguma espécie de intervenção humana. Isso é a produção da ideologia, e não

dizer que o trabalhador tem de pensar como proletário e o capitalista tem de pensar como um

crápula. E isso é ridículo. E a maior prova ao contrário dessa fórmula é o Presidente Lula, que é

um trabalhador e que diz: “Eu nunca fui de esquerda.” Então, a questão é mais por aí. Eu

gostaria que os debatedores comentassem essa minha consideração. Outra delas é que me

pareceu ali muito claro o tempo todo que o socialismo foi discutido em termos de planificação

estatal, quando na realidade a teoria de Marx é muito diferente disso. Não se trata de

perfectibilizar o Estado ou de aprimorar as camadas políticas, tampouco de controlar o mercado.

A perspectiva de Marx é radical. A perspectiva de Marx é a destruição do mercado, a destruição

do Estado, mas a destruição do mercado não para substitui-lo pela planificação, mas para

substitui-lo pela apropriação social. Esse é segundo ponto que eu gostaria que fosse comentado.

E aí, por fim, a pergunta para o prof. Olavo. Eu fiquei muito feliz com a vinda do senhor aqui,

pela oportunidade de pedir um comentário sobre um artigo que eu li há cerca de um ano ou um

ano e meio no jornal O Globo , se não falha a memória, em que você afirma que o então

presidente Fernando Henrique Cardoso estaria mancomunado com o MST e preparando a

transição do Brasil ao socialismo. Eu gostaria que o senhor comentasse esse seu ponto de vista.

OLAVO DE CARVALHO : Vocês façam a conta de quanto saiu do governo FHC para o

MST. Sem isso, o MST simplesmente não existiria. É só isto: ele fez o MST, ele é o criador do

MST. Quais foram as intenções ideológicas, eu não sei, evidentemente. Porém, houve uma série

de artigos publicados por Alain Touraine na Folha de São Paulo (Alain Touraine é uma pessoa

que tem influência grande sobre a cabeça de FHC), nos quais ele traçava o plano de uma virada

do Brasil à esquerda. Eu não sei se foi isto que FHC quis ou não – nem me cabe conjeturar –,

mas eu estou apenas cotejando dois fatos e vendo que é possível haver uma ligação. Quanto

saberemos se houve isso ou não? Daqui a muito tempo, certamente. Mas que o governo FHC

construiu o MST com verbas do Estado, isso é um fato inegável.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Eu não tenho muito que comentar à formulação dessas questões.

Elas estão muito corretas para mim, né? Ou seja, o fato de que a materialidade depende das

relações de produção dos homens. Por exemplo, o caso que foi colocado aqui: nós estamos aqui

nessa mesa, tudo está sendo visto, todos estamos vestidos, temos nossa alimentação já

preparada, temos nossas roupas; amanhã ainda teremos porque outras pessoas estão trabalhando

para nós também. Nós estamos trabalhando para eles, e eles para nós. Há uma relação social

envolvida necessariamente. Isto é uma dimensão social grave e séria. Eu não posso estabilizar

que os homens, apenas pelas suas ideias, é que transformam as coisas ou fazem as coisas; fazem

através do movimento prático da praxis deles, dentro da estrutura social e econômica onde há a

troca entre os homens, fundamentalmente. Portanto, eu não muito o que dizer sobre esse aspecto

da matéria. Não é a matéria no sentido, como eu disse a vocês, abstrata, mas é a matéria do

ponto de vista das relações humanas concretas, o homem agindo sobre o meio e transformando

o meio. E quanto à apropriação social, que foi uma das propostas, mostra claramente que a

apropriação social é feita de uma forma totalmente desequilibrada. Por isso, se houver essa

Page 39: Marxismo, Direito e Sociedade

questão que foi colocada aqui pelo Olavo, pelo jornalista Olavo, foi colocada a respeito da

necessidade de estabelecer uma esquerda, de uma posição à esquerda. Se for para a distribuição

melhor da sociedade, uma distribuição das riquezas, que vamos para a esquerda. Ué, se há uma

miséria imensa, e nós vemos que as estruturas tradicionais não resolvem a questão, não tem

importância: vamos à esquerda. Pois se ela tentar resolver e se resolve, melhor. E Agora, nós

não temos a certeza de tudo isso, é verdade. Mas dizer que o sistema é bom, é quase que dizer…

Primeiro ele diz: “Olha, eu não sou um arauto do sistema, de forma nenhuma, mas vamos então

admiti-lo como bom, que ele é a única coisa boa que tem.” Mas nós temos também expectativas,

utopias, nós temos também meios de ver o mundo, nós temos também aspirações, nós temos

nossa imaginação, e nós precisamos realmente imaginar um mundo melhor e utópico. Isso é

otimismo. Não é um pessimismo que diz que tudo o que está à frente, se for à esquerda, não

presta. Quer dizer, aqui se defende exatamente posições de direita dizendo não está se fazendo

isso: “Não estou fazendo isso.” Está aqui atacando a esquerda e dizendo: “Não é uma diferença

de ideias.” É um ataque com toda força à esquerda, às visões marxistas etc., que são razoáveis

em muitas questões. Como eu já disse, não é perfeito. Não é que seja a panaceia, e não será

mesmo. Nós temos de criar a nossa própria panaceia. Nós temos de criar o nosso mundo, a

nossa utopia. Não é Marx no século XIX. O importante é que temos de utilizar isso. É pena que

tudo isso que nós conversamos e desenvolvemos nós pensamos em falar em “Marxismo, Direito

e Sociedade”, especialmente a questão do Direito. E eu vi que isto fugiu completamente. Talvez

eu tenha sido vítima da direita. A esquerda também é vítima, embora ele diga que não, porque

tudo aqui é da esquerda, todos são, até as novelas são de esquerda, a Globo é de esquerda. É ver

as coisas que não tem, que não existem mais. Até esse fantasma do chamado comunismo, isso

acabou. Nós temos de agora buscar uma outra vida, uma outra forma, uma outra sociedade. É

isso que tem de fazer, e não ficar remoendo problemas do passado. Existe aqui até um

movimento muito sério, muito grave em São Paulo, chamado TFP (Tradição, Família e

Propriedade), que faz esse tipo de coisa, ficam agindo nas ruas como se houvesse ainda esse

fantasma, como se essa esquerda fosse o quê? Ela simplesmente vai tentar desenvolver um

sistema onde haja mais distribuição social. Mas é só isso que se pretende fazer. O que se

pretende fazer? Uma igualação, uma igualdade melhor entre os homens. É isso que se pretende

fazer. O que é que se pretende fazer? O que é que se pretende fazer senão melhor igualdade,

maior igualdade, para condicionar uma vida de paz social, e que as pessoas tenham

oportunidade de aprimorar sua personalidade, a sua vida… Enfim, é isso que nós queremos.

Não queremos mais nada do que isso. E não ficamos aqui apresentando esses exemplos; esses

exemplos históricos que são mais do que conhecidos, sabemos que tem isso. Até ele [Olavo]

chega a dizer que esses exemplos são todos eles terríveis; do outro lado, o nazismo não teve

nenhum problema…

OLAVO DE CARVALHO : [Olavo protesta.]

ALAOR CAFFÉ ALVES : “Nós não sabemos, não conhecemos nada.” E o capitalismo é

um sistema absolutamente muito bom. O que é que é isto? Todos estão de acordo com esse tema

que ele está, com essa distribuição terrível que ele está, com essa miséria do Brasil? Daqui a

pouco vai se falar que a miséria é determinada pelos esquerdistas, pela esquerda…

OLAVO DE CARVALHO : E é, e é.

Page 40: Marxismo, Direito e Sociedade

ALAOR CAFFÉ ALVES : … como está se fazendo colocando a questão de que o FMI é de

esquerda, os EUA é de esquerda, Rockefeller é de esquerda etc. Isso é uma coisa maluca. É uma

questão emocional muito grave…

OLAVO DE CARVALHO : Ora, o prof. Alaor tem a pretensão de diagnosticar os meus

problemas emocionais. Dele, eu só diagnostico uma coisa: ignorância. Primeiro, ignorância dos

escritos de Marx. Ele diz que a matéria é função da produção; Marx diz exatamente o contrário:

Marx subscreve inteiramente as concepções atomísticas de Demócrito e aceita a ciência

newtoniana como a tradução perfeita da realidade. Ademais, a ideia de uma dialética interna da

matéria está exposta nos escritos do próprio Engels e faz parte da tradição do movimento

comunista. Abolir tudo isso, dizendo que Marx só falou da produção é absolutamente ridículo, é

coisa de ignorante, para não dizer mentiroso. Não o acuso de mentiroso mas o acuso de

ignorante. Em segundo lugar, com um homem que chega para mim e diz por um lado que “ah,

esse momento é da esquerda, a esquerda está com tudo” e, por outro lado, diz que não existe

esquerda nenhuma, em algum ponto a coisa está falhando. Em terceiro lugar, o conselho de

“esqueçamos a História, nada disto aconteceu, vamos tentar de novo, vamos confiar”, isso é

uma palhaçada, isso é pueril. Não se pode aceitar uma discussão nessa base.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Bem, eu evidentemente não estava esperando essa

agressividade. Essa foi demais.

OLAVO DE CARVALHO : Agressividade é a sua, que começa a falar em problemas

emocionais.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Veja bem, tem de respeitar. Chamar a gente de ignorante, e

pressupor que eu não conheça Marx…

OLAVO DE CARVALHO : Pressupor não: afirmo!

ALAOR CAFFÉ ALVES : ... e ele diz também que quatro décadas foi do Partido

Comunista. Maluco isso! Nunca foi coisa nenhuma! Foi nada!

OLAVO DE CARVALHO : O quê? Está me acusando de mentiroso?

ALAOR CAFFÉ ALVES : O senhor me acusou de mentiroso aqui.

OLAVO DE CARVALHO : Não, eu te acusei de ignorante.

ALAOR CAFFÉ ALVES : [Palavras inaudíveis.]

[Tumulto.]

OLAVO DE CARVALHO : Você é que está mentindo.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Você é que me xingou!

OLAVO DE CARVALHO : Você é mentiroso! Safado!

Page 41: Marxismo, Direito e Sociedade

ALAOR CAFFÉ ALVES : Ele vem aí com coisa [palavras inaudíveis] antissocialista ou

antimarxista e vem dizer que já foi, sabe, e conhece tão profundamente. Imagine que ele agora

não é, porque ele analisou tão profundamente isso e está dizendo…

OLAVO DE CARVALHO : Pois foi exatamente isso que você nunca fez.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Ora, pelo amor de Deus!

OLAVO DE CARVALHO : Você é um idiota.

Alaor Caffé Alves : Olha aí! Quer dizer, eu estou falando ao mesmo tempo; agora, se você

disser que eu sou idiota. Olhem, vocês me perdoem. Eu sou da Faculdade. Eu não vou permitir

uma coisa dessa! Isso é uma agressão pessoal. Eu esperava…

OLAVO DE CARVALHO : Você me agrediu primeiro, falando de problemas emocionais.

ALAOR CAFFÉ ALVES : Eu comecei muito bem, dei para vocês o mais possível a minha

ideia a respeito de um conceito sobre Direito, sobre a questão que o Marx colocou; e a coisa foi

num crescendo que eu não vou me admitir, vocês me perdoem.

ALGUÉM DA PLATÉIA : Está fugindo?

ALAOR CAFFÉ ALVES : Estou fugindo. Vou fugir. Estou fugindo para respirar. Eu sei

que vocês, grande parte de vocês, foram mobilizados. Houve uma mobilização aqui, séria,

grave, séria, e eu não vou me permitir, como professor da casa, ser agredido dentro da minha

casa, por uma pessoa como esta. Vocês me perdoem.

* * *

Nota de O. de C.: Ao final dos debates, há um tumulto geral, aplausos e vaias misturam-se

de maneira indiscernível. A maior parte das vaias condena a atitude de desistência do prof.

Alves, mas num canto da sala ouve-se distintamente o refrão gritado por um grupo organizado

de jovens de idade manifestamente inferior à da média da plateia: “Alerta! Alerta! Alerta aos

fascistas! A América Latina será toda socialista.”. – O. de C.