audiÊncia pÚblica: representaÇÃo social das polÍticas … · a primeira corrente faz um...
TRANSCRIPT
-
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
VIRITIANA APARECIDA DE ALMEIDA
AUDIÊNCIA PÚBLICA: REPRESENTAÇÃO SOCIAL DAS POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS NA MÍDIA TELEVISIVA
CURITIBA
2012
-
VIRITIANA APARECIDA DE ALMEIDA
AUDIÊNCIA PÚBLICA: REPRESENTAÇÃO SOCIAL DAS POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS NA MÍDIA TELEVISIVA
Monografia apresentada como requisito
parcial para a obtenção do grau de Bacharel
e Licenciatura em Ciências Sociais do
Departamento de Ciências Sociais, do Setor
de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Nelson Rosário de
Souza
CURITIBA
2012
-
RESUMO
O debate das políticas de ações afirmativas na audiência pública (AP) realizada pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) em março de 2010 no território brasileiro tem causado
muitas polêmicas. O objetivo deste trabalho é fazer uma análise da visibilidade - na mídia
televisionada - dos argumentos favoráveis e contrários às cotas raciais, especialmente no
campo semântico do argumento da desigualdade histórica debatido no STF. Parte-se da
hipótese de que o enquadramento midiático dos discursos das ações afirmativas favoráveis às
cotas raciais - especialmente o argumento da desigualdade histórica debatido na AP - fora
enfatizado pela mídia de massa porque esse argumento legitima, de certa forma, os
argumentos contrários às discriminações positivas, fortalecendo a crença na democracia
racial. Para a comprovação da hipótese a metodologia aplicada seguiu a seguinte forma: num
primeiro momento se buscou nas referências bibliográficas que discutem o problema da
negritude brasileira os argumentos das ações afirmativas, focando o discurso da desigualdade
histórica. Num segundo momento fez-se uma análise qualitativa das mensagens difundidas
sobre o evento pelo Jornal Nacional e Jornal da Record. Por fim, realizou-se uma análise
quantitativa dos discursos presentes na audiência pública, utilizando o software SPSS
statistics 17.0.
Palavras-Chave: ação afirmativa, enquadramento midiático, desigualdade histórica.
-
LISTA DE TABELAS
Tabela – 1 Cruzamento da utilização do argumento econômico no discurso da AP
Tabela – 2 Cruzamento da utilização do argumento raça no discurso da AP
Tabela – 3 Cruzamento da utilização do argumento fenótipo no discurso da AP
Tabela – 4 Cruzamento da utilização do argumento divisão racial no discurso da AP
Tabela – 5 Cruzamento da utilização do argumento inconstitucionalidade no discurso na AP
Tabela – 6 Cruzamento da utilização do argumento igualdade material no discurso na AP
Tabela – 7 Cruzamento da utilização do argumento diversidade no discurso na AP
Tabela – 8 Cruzamento da utilização do argumento índice de rendimento acadêmico - IRA no
discurso na AP
Tabela – 9 Cruzamento da utilização do argumento inconstitucionalidade no discurso na AP
Tabela – 10 Porcentagem da utilização dos argumentos contrários e favoráveis às cotas raciais
na AP
Tabela – 11 Argumentos contrários e favoráveis às cotas raciais enfatizados pelos jornais
Nacional e da Record
-
SUMÁRIO
I - INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 5
1 - O PROBLEMA PÚBLICO DA NEGRITUDE BRASILEIRA ...................................... 8
1.1. Da Marcha Zumbi dos Palmares aos discursos sobre ações afirmativas ....................... 11
1.2. Conferência de Durban: debate sobre as ações afirmativas .......................................... 18
2. TEORIAS DAS COMUNICAÇÕES ................................................................................ 25
2.1. O enquadramento midiático da audiência pública sobre cotas pelo Jornal Nacional e
pelo Jornal da Record ........................................................................................................... 26
3. OS ARGUMENTOS DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NA AUDIÊNCIA PÚBLICA DO
STF SOBRE COTAS ............................................................................................................. 35
3.1. Análise quantitativa dos argumentos das cotas na audiência pública ........................... 36
3.1.1. Argumentos contrários às cotas raciais .................................................................. 36
3.1.2. Argumentos favoráveis às cotas com recorte racial ............................................... 44
APONTAMENTOS FINAIS ................................................................................................. 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 54
-
I - INTRODUÇÃO
A implantação das políticas de ações afirmativas1 pelas universidades públicas tem
provocado intensos debates na sociedade brasileira, especialmente a partir do momento em
que o Partido Democrata - DEM impetrou o instrumento jurídico arguição descumprimento
do preceito fundamental2 – ADPF 186 - contra o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da
Universidade de Brasília - UNB, que aderiu ao sistema de ações afirmativas com recorte
étnico-racial. Além da ADPF-186 também foi interposto um recurso extraordinário3 (RE) por
um estudante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que se sentiu
prejudicado pelo sistema de cotas sociais (COSTA; PINHEL; SILVEIRA, 2012).
Em ambos os casos citados está o pedido de declaração de inconstitucionalidade4 das
ações afirmativas. Esse fato levou o Supremo Tribunal Federal - STF a realizar, no período de
três a cinco de março de 2010, uma audiência pública - AP com especialistas no assunto das
políticas de discriminações positivas a fim de julgar a ADPF 186 e o RE.
O debate das ações afirmativas, no entanto, vem chamando a atenção de intelectuais
desde antes da realização da AP. Observa-se que os estudos sobre discriminação positiva
encontram respaldo teórico em três principais correntes de estudo. A primeira corrente faz um
apanhado histórico do conceito de ação afirmativa no contexto brasileiro e norte americano. A
segunda realiza uma análise qualitativa do enquadramento5 dos argumentos contrários e
favoráveis às discriminações positivas veiculadas nos meios de comunicação de massa.
1 O termo ação afirmativa - também conhecido atualmente como discriminação positiva – indica o incentivo, por
parte do Estado, para a inclusão social de grupos minoritários percebidos como tais, em face de traços
estigmatizados como a raça, o gênero e a classe social. No princípio, o conceito não designava uma regra, antes
buscava a conscientização da população para a existência de preconceito vigente na sociedade.
Contemporaneamente, as ações afirmativas são percebidas como arranjos legais de caráter provisório que visam
instigar a igualdade substancial de indivíduos socialmente inferiorizados. O tratamento diferenciado para os
desiguais visa proporcionar aos grupos desfavorecidos a possibilidade de alcançar o mesmo status social que os
demais componentes da comunidade. (BELLINTANI, 2006) 2 Lei nº 9.882/99, art. 1º: “A arguição prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal será proposta
perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental,
resultante de ato do Poder Público”. 3 Constituição Federal, art. 102. “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe: (...) III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou
última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face
desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal”. 4 Práticas que ferem os princípios jurídicos da Constituição Federal de 1988. Uma vez que todos os brasileiros
são considerados iguais, alegam que não deveria haver privilégios de um segmento da população em detrimento
de outros. Assim as cotas raciais são vistas como um privilégio pelos grupos contrários às políticas de ações
afirmativas para negros. 5 A análise do enquadramento verifica os princípios de seleção, ênfase e apresentação compostos de pequenas
teorias tácitas sobre o que existe, o que acontece e o que é importante. Enquadramentos midiáticos são padrões
persistentes de cognição, interpretação e apresentação, seleção, ênfase e exclusão, através dos quais os detentores
-
Por fim, a última corrente, que estuda as políticas de ações afirmativas tendo como
base as obras clássicas de Florestan Fernandes (2008) e Gilberto Freyre (2006), é composta
por autores como Michael Hanchard (2001); Roberto Damatta (1981); Jessé Souza (2000;
2005); Antonio Sergio Guimarães (2001), João feres Junior (2006; 2007; 2010).
Todas as três correntes de estudo contribuíram para a reflexão deste trabalho. A obra
“Casa grande e senzala”, de Gilberto Freyre, analisada por esses autores, será utilizada para
compreender a ideia de democracia racial6, a qual instiga a levantar a seguinte hipótese: o
enquadramento midiático dos discursos das ações afirmativas favoráveis às cotas raciais -
especialmente o argumento da desigualdade histórica7 debatido na AP - fora enfatizado pela
mídia de massa porque esse argumento legitima, de certa forma, os argumentos contrários às
discriminações positivas, fortalecendo a crença na democracia racial.
Para a comprovação da hipótese foram utilizados os métodos de análise do
enquadramento midiático e o método quantitativo. A análise do enquadramento parte da
leitura textual das mensagens escolhidas para a análise, identificando os aspectos mais
relevantes para criar categorias de análise, enfocando pontos que suscitem maior contraste nos
enquadramentos. Partindo de uma análise descritiva, também busca caracterizar as
reportagens de maneira genérica, interpretando os dados obtidos a partir de tais categorias, contrastando os
resultados e teorizando os dados descritos, visando explicar ou compreender os enquadramentos. Conforme o
roteiro resumidamente apresentado, tal proposta metodológica é elaborada com base nos métodos de
pesquisa em comunicação em que definição do objeto, observação, descrição e interpretação formam o
processo investigativo da pesquisa científica (VIEIRA JUNIOR, 2009). E esta é a proposta
metodológica adotada nesta pesquisa, que visa analisar as notícias publicadas pelos jornais
Nacional e da Record no período de vinte e sete de fevereiro de 2010 a catorze de março de
2010 acerca do debate das ações afirmativas na AP. O objetivo é captar dois eixos discursivos
ou enquadramentos que revelam os argumentos e contra-argumentos enfatizados pelos meios
dos símbolos organizam de forma rotineira, o discurso, seja verbal ou visual (GITLIN 1980 p.6-7 in: LEAL
2007, p.4). 6 A ideia de democracia racial traz à tona os discursos ideológicos da mestiçagem e da miscigenação, que
contestam as ações afirmativas para negros. “O vocábulo ‘democracia racial’ foi usado pela primeira vez por
Gilberto Freyre em 1962 com o intuito de atacar o conceito de ‘negritude’ cunhado por Aimé Cesaire, em 1937,
que questionava o preconceito para com os negros. Para Gilberto Freyre os negros brasileiros estavam
sofrendo influência de povos estrangeiros ao questionar as práticas de preconceito racial e por isso era seu
dever opor-se ‘à mística da ‘negritude’ como ao mito da ‘branquitude’: dois extremos sectários que contrariam
a já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem: uma prática que nos impõe deveres de
particular solidariedade com outros povos mestiços” (GUIMARAES, 2001, p.7). 7 O argumento da desigualdade histórica faz remissão ao preconceito contra o negro ao longo do tempo em que
se impossibilitou sua ascensão social. “Na sociedade escravocrata a inferiorização do negro servia para
legitimar o regime político-legal vigente, ao passo que no contexto da sociedade capitalista ela cumpre a função
de alijar os negros da competição por oportunidades de ascensão social.” (FERES, 2006, p.165).
-
de comunicação de massa em relação às políticas de discriminação positiva (MARQUES,
2009). Tais enquadramentos possibilitam diagnosticar se o argumento da desigualdade
histórica está sendo reapropriado pelos argumentos contrários às discriminações positivas
com recorte etnicorracial a fim de fortalecer a crença a democracia racial.
A análise do enquadramento é uma abordagem que visa diagnosticar o caráter
construído da notícia, mostrando a retórica implícita vigente em textos supostamente
objetivos, imparciais e com função meramente referencial (SILVA, 2011). Em contrapartida a
metodologia quantitativa de análise de conteúdo permite mostrar indicadores8 presentes nas
notas taquigráficas9. Estes indicadores fornecem dados que possibilitam a construção de
tabelas através da utilização do programa para computador SPSS statistics 17.0. Como consta
de apostila básica para SPSS10
“o SPSS é um software apropriado para a elaboração de
análises estatísticas de matrizes de dados. Seu uso permite gerar relatórios tabulados,
gráficos e plotagens de distribuições utilizados na realização de análises descritivas e de
correlação entre variáveis”. O que será feito neste trabalho é uma correlação entre a variável
valência do discurso e a variável ausência ou presença de certos discursos.
O texto está estruturado da seguinte maneira: num primeiro momento apresenta o
problema público da negritude brasileira, diagnosticando os discursos de políticas de ações
afirmativas, especificadamente o argumento da desigualdade histórica. Num segundo
momento far-se-á uma análise qualitativa do enquadramento das mensagens difundidas pelos
jornais Nacional e da Record da Audiência Pública. Por fim, uma análise de conteúdo
quantitativo dos discursos presentes na AP, utilizando o software SPSS statistics 17.0, com
foco no discurso da desigualdade histórica.
8 Os indicadores utilizados são: a) valência do discurso (favorável, contrária ou neutra); b) presença ou ausência
de certos argumentos. 9 As notas taquigráficas são as transcrições das falas de todos os participantes da audiência, e estão
disponibilizadas no sítio do STF, no endereço <
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa/anexo/Notas_Taquigraficas_Audie
ncia_Publica.pdf>, último acesso em 17/06/2012. 10
Apostila básica para SPSS. Laboratório de metodologia em Ciências Sociais, UF
MG [s.d.]
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa/anexo/Notas_Taquigraficas_Audiencia_Publica.pdfhttp://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa/anexo/Notas_Taquigraficas_Audiencia_Publica.pdf
-
1 - O PROBLEMA PÚBLICO DA NEGRITUDE BRASILEIRA
No começo dos anos 60 do século passado uma nova configuração social emergiu no
mundo globalizado. Esse período histórico marcou a emergência de atores sociais que trouxe
à cena novos discursos sobre desigualdades que não se enquadravam no debate ortodoxo de
cunho marxista. Esses novos protagonistas, representados por categorias marginalizadas, a
saber, as mulheres, os homossexuais e os negros exteriorizavam outras formas de
discriminação - além da luta de classes11
- que sofriam na vida cotidiana.
Esse contexto histórico possibilitou que, na década de 80 do século passado, no
território brasileiro, o discurso sobre desigualdade histórica ganhasse fôlego, sobretudo com a
mudança do regime político autoritário ao democrático. No período de 1964 a 1978 os
discursos sobre negritude eram proibidos pelo governo. Somente o discurso da democracia
racial que trazia em si o sentimento de nacionalidade e da ideologia do regime político militar
era permitido (GUIMARÃES, 2001). A ideologia política do regime militar trazia em si a
ideia da expansão econômica atrelada à crença na democracia racial que se fundamentava na
ideia de mestiçagem e miscigenação.
A ideologia da mestiçagem e miscigenação foi um constructo político incentivado
pelo governo de Getúlio Vargas a fim de fundar a ideia de nação moderna12
brasileira. A
miscigenação visava o branqueamento da população negra brasileira (COSTA, 2001). De
acordo com essa política dentro de aproximadamente três décadas a raça13
negra seria extinta,
uma vez que os casamentos inter-raciais produziriam um fenótipo14
predominantemente
branco com o passar dos anos (ROCHA, 2009). Em contrapartida a ideia de mestiçagem
correspondia ao sincretismo cultural, permitindo a construção de uma cultura brasileira
unificada (COSTA, PINHEL; SILVEIRA, 2012).
11
O conceito de classe empregado aqui é no sentido de “um carisma baseado na posse e no domínio de bens
materiais e culturais”. Neste sentido, “classe” define uma qualidade moral e intelectual dos indivíduos e grupos
(GUIMARÃES, 1999, p.109). 12
“O discurso erudito da imaginação nacional, para a ideia de Brasil moderno, seria transformar as raças e
suas populações mestiças em um único povo” (COSTA; PINHEL, SILVEIRA, 2012, p.94) 13
Algumas das teorias que trabalharam o conceito de raça foram a corrente monogenista e poligenista. A
primeira defendia que a humanidade era um gradiente que ia do menos ao mais perfeito. Pertencente a uma
mesma espécie, espécie esta que comporta uma hierarquia entre as raças em função de seus diferentes níveis
mentais. Ao passo que a teoria poligenista interpretava as raças como pertencentes a diferentes espécies, não
redutíveis a uma única humanidade. É nesse ínterim que vigora a concepção de raça de conde Gobineau, que via
no Brasil os negros e índios como raças inferiores. “A passagem da noção de raça degenerada de conde
Gobineau para a celebração da cultura brasileira realizada por Gilberto Freyre na sua vasta obra, o
sincretismo cultural termina servindo de modelo à mestiçagem entre famílias de origens étnicas e sociais
distintas” (COSTA; PINHEL; SILVERA, 2012, p.102). 14
Fenótipo refere-se à aparência, às características manifestas de um organismo, incluindo traços anatômicos e
psicológicos, que resultam tanto da hereditariedade quanto do ambiente. (EDUCAFRO, 2003)
-
A ideologia da miscigenação e da mestiçagem foi legitimada pelo campo científico,
especialmente através da obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, que reforça uma
imagem idealizada de cultura brasileira unificada. Essa imagem idealizada será questionada
pelos discursos sobre diversidade que tem como norte a “ideia de equidade que se encontra
no fulcro das políticas multiculturalistas quando se esforçam por combinar o reconhecimento
cultural e a luta contra as desigualdades sociais” (WIEVIORKA, 2002, p.67). A combinação
desses dois fatores visa desconstruir a crença ideológica da democracia racial brasileira
fundada na ideia de mestiçagem, que desconsidera a diversidade dentro de cada cultura e não
permite que dentro de cada cultura haja resistência, ou seja, diferença (GANDIN;
HYPOLITO, 2003).
O quadro ideológico do povo mestiço faz parte da retórica tanto de políticos
profissionais de perfil ideológico de esquerda quanto de perfil ideológico direitista. Práticas
culturais e políticas que colocam em xeque a visão integracionista da harmonia racial
normalmente são vistas com maus olhos pelas elites políticas brasileiras de modo geral. Em
face disso o MNU (Movimento Negro Unificado) tem dificuldade de agendar na pauta dos
partidos políticos as demandas de ações afirmativas específicas para negros que reconheça a
desvantagem dos afro-brasileiros frente às políticas de miscigenação difundida pelo Estado
(HANCHARD, 2001). A saída para esse impasse foi se construindo ao longo do tempo
através da experiência empírica e teórica de associações negras que combinavam as
expressões de Max Weber “ação racional com relação a fins” e “ação afetiva”.
Ação racional com relação a fins exprime uma ação social consciente que visa
alcançar um fim determinado, enquanto a ação afetiva é marcada por práticas inconscientes
que não tem um direcionamento linear. É nesse caminho que parecem emergir os discursos
culturais de indivíduos e associações negras para explicar a desigualdade histórica. Além
desses discursos, os argumentos de negritude para obter sucesso na via partidária se veem
obrigados a levar em consideração o campo semântico de classe social e de gênero na defesa
dos direitos sociais de política racialista (HANCHARD, 2001).
O argumento de classe social imbricado ao de desigualdade histórica levou o
militante negro Abdias do Nascimento a se filiar ao Partido Democrático Trabalhista (PDT).
A aderência a esse partido político levou Abdias do Nascimento a receber o apoio do governo
de Leonel Brizola na década de 80 do século passado, permitindo ao militante negro a
elaboração do discurso da doutrina do “quilombismo”. Esse termo evoca a memória da
resistência dos escravos africanos que, ao fugir, fundavam quilombos no território brasileiro.
Os discursos de quilombismo, de ênfase na desigualdade histórica configuram fenômenos
-
mundiais da diáspora africana. Diáspora aqui corresponde a uma expressão que indica uma
comunidade transnacional, constituída em ambos os lados do Atlântico, de uma contracultura
negra, que não é nem africana, nem antilhana, nem americana, nem britânica, mas que é tudo
isso ao mesmo tempo na luta contra o preconceito sofrido pelos seus membros
(WIEVIORKA, 2002). Esses discursos que enfatizam a desigualdade histórica foram ativados
pelo militante negro Abdias do Nascimento, que pregou a união dos afro-brasileiros num
movimento transnacional na luta contra o preconceito racial. O citado político renovou os
discursos da diáspora africana ao vincular o conceito de raça e classe social na defesa do
caráter universal da opressão dos negros. Esse fato contribuiu para que Abdias afirmasse que
negros são todos os brasileiros descendentes de escravos africanos excluídos do mercado de
trabalho (GUIMARÃES, 2001).
Os discursos de desigualdade histórica e de classe social possibilitaram a
Abdias do Nascimento a encaminhar ao Congresso Nacional o projeto de lei numero 1.332 de
1983, reivindicando ações afirmativas específicas para negros. Neste documento eram
mencionadas as seguintes demandas:
[...] reserva de 20% de vagas para mulheres negras e 20% para homens
negros na seleção de candidatos a serviço público; bolsas de estudo; incentivos às
empresas do setor privado para a eliminação da prática da discriminação racial;
incorporação da imagem positiva da família afro-brasileira ao sistema de ensino e
à literatura didática e paradidática, bem como a introdução da história das
civilizações africanas e do africano no Brasil (MOEHLECKE, 2002, p.204).
A demanda de ações afirmativas para negros trouxe pela primeira vez a discussão
política da importância da interferência do Estado brasileiro na correção da desigualdade
histórica sofrida pelos afro-brasileiros. As reivindicações presentes no projeto de Abdias não
foram aprovadas nas casas legislativas, mas passaram a fazer parte do programa de ação das
associações negras como o MNU, que se engajou na denúncia da ideologia da democracia
racial a fim de obter êxito na defesa dessas demandas. Para desmistificar a ideia de povo
mestiço as associações negras se apropriaram dos discursos culturais presentes na obra Casa
Grande e Senzala. Ao se apropriar dessa literatura, o MNU afirma que a mesma expressa o
mito da democracia racial. Mito porque, apesar de o Estado difundir a crença da harmonia
-
racial brasileira, percebe-se o corte que o preconceito racial opera na marginalização da maior
parcela dos afro-brasileiros conforme revelam os dados empíricos de pesquisa de opinião15
.
A relação tridimensional entre o discurso da mestiçagem (Estado), de intelectuais
(ciência) e de militantes negros (movimentos negros) levou as associações negras a radicalizar
os discursos do direito à diversidade. Nesses argumentos vigoram a defesa da intervenção do
governo na promoção de políticas racialistas que permitam a passagem de uma igualdade
formal, que se fundamenta na ideologia da mestiçagem, para uma política que fomente a
igualdade material baseada no reconhecimento da diversidade brasileira (GUIMARÃES,
2001).
As reivindicações dos movimentos sociais, especialmente do MNU, pela
implementação de políticas que conduzam à igualdade material levaram o governo brasileiro
a reformular a constituinte de 1988. Esta trouxe no corpo do seu documento o reconhecimento
institucional das terras quilombolas, além de considerar crime a prática de racismo. A
legalização das terras quilombolas traz consigo “a existência de povos com identidade,
território e cultura que lhes são próprios (e que muitas vezes os distinguem da cultura
nacional-oficial dos Estados de que fazem parte)” (MILANO, 2008, p.2). Essa distinção traz
a configuração de uma identidade que nem sempre converge com a noção de nacionalidade
que se configura pelo tripé identidade/nacionalidade/território.
A existência de uma identidade quilombola põe em xeque a ideia de democracia
racial que se fundamenta na defesa de uma identidade mestiça. Por isso a legalização de terras
remanescente de quilombos marcou de um lado os conflitos políticos daqueles que defendem
o discurso da ideologia da mestiçagem e do outro daqueles que defendem que a mestiçagem
não passa de um mito da democracia racial. Esses confrontos políticos estavam explícitos na
comemoração do centenário da assinatura da Lei Áurea, em 1988, e também na marcha
Zumbi dos Palmares, organizada em 1995. Tais conflitos exprimiram a ênfase de militantes
negros nos discursos sobre desigualdade histórica na luta por ações afirmativas.
1.1. Da Marcha Zumbi dos Palmares aos discursos sobre ações afirmativas
A passeata organizada por militantes do eixo Rio-São Paulo em 1988 representou a
radicalização dos discursos do MNU sobre o mito da democracia racial na luta por ações
15 Essas pesquisas mostram que do “total de universitários, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de
descendentes de orientais. Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são
negros. Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros” (DOS ANJOS, 2008,
apud PEREIRA, 2009 p. 2)
-
afirmativas no território brasileiro. O ato público criticava a data oficial de 13 de maio de
1888, data que marca o dia da assinatura da Lei Áurea pela princesa Isabel na libertação dos
escravos. Data oficial do governo que representa o símbolo nacional de combate ao racismo
no Brasil. O MNU, inconformado com a força simbólica dessa data que fortalece a ideologia
da mestiçagem, procurou contestar a nobreza do ato da princesa Isabel. Por isso defendeu que
o dia 20 de novembro é que representa a data de combate ao preconceito racial, uma vez que
marca a morte do escravo Zumbi dos Palmares, a mando do governo português. A
reivindicação pela mudança da data 13 de maio para 20 de novembro como símbolo da
resistência negra brasileira indica a luta acirrada pela demanda de ações afirmativas no
território brasileiro pelo MNU.
O MNU do Estado do Rio de Janeiro, a fim de lembrar a memória de Zumbi dos
Palmares na luta pela liberdade dos escravos, também procurou profanar a estátua de Duque
de Caxias, filho da elite branca latifundiária composta por donos de escravos africanos. Diante
dessa ameaça o Chefe da Secretaria da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, em 1988
impediu a passagem de membros das comunidades negras pela praça onde está o monumento
nacional em homenagem a Duque de Caxias (HANCHARD, 2001). A reação a esse bloqueio
veio com a ênfase dos discursos do MNU sobre desigualdade histórica com foco na memória
do escravo Zumbi dos Palmares. Esse fato favoreceu o comentário do ex-presidente José
Sarney no livro Orfeu e o Poder, de Michel Hanchard (2001), de ênfase à ideologia da
mestiçagem, tal como descrito na obra de Gilberto Freyre.
Na comemoração centenária da assinatura da Lei Áurea, José Sarney comentou as
atrocidades que sofreram os escravos africanos, especialmente Zumbi dos Palmares, privados
de sua liberdade, mas libertados com o ato da princesa Isabel. Essa lei possibilitou, conforme
José Sarney, a integração dos afrodescendentes à nação brasileira, demonstrando a ideologia
da mestiçagem. O Chefe do Executivo Nacional à época também fez elogios à contribuição
cultural do carnaval, religiosa e, sobretudo, ao caráter emocional dos afro-brasileiros na
formação do povo mestiço. Segundo o ex-presidente as paixões dos afro-brasileiros amaciam
a racionalidade do povo português; mas tal afirmação traz implícita a dicotomia entre trabalho
intelectual e braçal na sociedade brasileira. A partir de então o MNU politiza o discurso pela
demanda de ações afirmativas específicas para negros a fim de eliminar tal dicotomia. A
politização do discurso é observada no ato público conhecido como a marcha Zumbi dos
Palmares, ocorrida no ano de 1995. Nessa marcha foi entregue ao ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso – FHC um documento oficial que marca a luta pelas políticas de
discriminação positiva:
-
[...] incorporar o quesito cor em diversos sistemas de informação;
estabelecer incentivos fiscais às empresas que adotarem os programas de promoção
da igualdade racial; instalar no âmbito do Ministério do Trabalho, a câmara
Permanente de Promoção da Igualdade que deverá se ocupar de diagnósticos e
proposições de políticas de igualdade no trabalho; implementar a convenção sobre
Eliminação da Discriminação Racial no Ensino; conceber bolsas remuneradas a
adolescentes negros de baixa renda, para o acesso e conclusão do primeiro e
segundo graus; desenvolver ações afirmativas para acesso de negros em cursos
profissionalizantes, as universidade e às áreas de tecnologia de ponta; assegurar a
representação proporcional dos grupos étnicos raciais nas campanhas de
comunicação do governo e de entidades que com eles mantenham relações
econômicas [MOEHLECKE, 2002 p.205-206].
A demanda pelas políticas de discriminação positiva na marcha Zumbi dos Palmares
levou FHC a reconhecer em 1995 o problema público do preconceito racial brasileiro. FHC,
ao reconhecer o preconceito racial brasileiro, levou em consideração os trabalhos acadêmicos
patrocinados pelo governo no ano de 1988 sobre a desigualdade histórica. O ex-presidente
também se comprometeu a realizar um seminário em Brasília em 1996 para debater o
problema do preconceito contra os negros.
Na época da reformulação da Constituição brasileira observa-se que o governo
brasileiro valorizou as teses acadêmicas sobre negritude que focaram a desigualdade histórica.
Os grupos de trabalhos - GTs e mesas redondas - MRs sobre questão racial se restringiram a
temas sobre abolição e cultura negra.
A referência à cultura negra exprimiu a contribuição dos costumes africanos na
formação da nação brasileira. Em contrapartida, os discursos sobre abolição de ênfase na
desigualdade histórica remetem aos processos da assinatura da Lei Áurea. A escravidão foi
apontada nos eventos como o fator principal que explica a desigualdade histórica na sociedade
brasileira. Nos GTs e MRs, ao se apontar a escravidão como fator que explica a desigualdade
histórica, surge à tona o discurso de que os negros sofrem preconceito não diretamente por
causa das características fenotípicas, e sim pela incapacidade de incorporar para si à visão de
mundo e os valores morais concernentes à era moderna (SOUZA, 2005).
Nesse sentido, o “preconceito fenótipo” que engendra a desigualdade histórica
brasileira ocupou o último lugar nos debates acadêmicos. Ao passo que o debate sobre
desigualdade histórica vinculado ao viés da escravidão que prega a falta de preparo dos
negros para ocupar os cargos vigentes na sociedade capitalista moderna foi enfatizado por
FHC no seminário realizado em Brasília em 1996. Mas antes de falar do problema da
-
desigualdade histórica e da modernização, FHC enfatizou os discursos da ideologia da
mestiçagem.
O seminário sobre ações afirmativas sediado na Universidade de Brasília - UNB teve
como bibliografia principal, dentre outras obras, as literaturas de Roberto Damatta, Antonio
Sergio Guimarães e Gilberto Freyre. O ex-presidente FHC estava presente em tal seminário,
e abriu a mesa de discussão fazendo um apelo à intelectualidade brasileira a ser criativa na
busca de soluções para a problemática da desigualdade histórica brasileira. Segundo o
Presidente à época, o Brasil tinha um caso particular de desigualdade histórica, incomparável
com a experiência do preconceito norte americano e sul-africano (GRIN, 2001). Por isso era
inconcebível importar o modelo de ação afirmativa implantado nos EUA ao contexto social
brasileiro. Para apoiar seu discurso FHC utilizou a obra de Roberto Damatta e Gilberto
Freyre.
Da primeira obra retirou o argumento de que no Brasil o preconceito pode ser
traduzido na figura de uma pirâmide social. Ou seja, quanto mais próximo do estereótipo
europeu mais chances de ascensão social tem o afro-brasileiro. Por isso a discriminação racial
no Brasil não é um empecilho, como o é nos EUA aonde o preconceito é de origem, enquanto
nos trópicos é de marca. Onde existe o preconceito de marca, há uma preterição do indivíduo
de cor negra, que sempre se vê em desvantagem quando existe um branco nas mesmas
condições. Enquanto o preconceito de origem traz consigo a crença de que as características
negativas da raça são hereditárias, transmitidas pelo sangue, o que gera um ódio entre brancos
e não brancos. FHC, portanto, defende que a legislação norte-americana traduz a segregação
racial, fato em tese ausente no Brasil, uma vez que o preconceito na America do sul é de
marca. Por esse motivo não se deve implementar ações afirmativas baseadas em leis
segregacionistas. Para fortalecer esse discurso FHC recorreu aos discursos do livro Casa
Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, afirmando que a difusão da ideologia da mestiçagem e
da miscigenação produziu uma identidade racial brasileira harmoniosa. Engendrando a
argumentação da ideologia da mestiçagem FHC citou os dados estatísticos de pesquisas de
opinião pública que revelam que os brasileiros reconhecem o preconceito contra os negros,
mas mesmo assim defendem o ideário da ideologia da mestiçagem. Depois de apresentar os
dados estatísticos FHC passou a argumentar sobre o problema da desigualdade histórica e da
modernização.
Segundo FHC o problema da desigualdade histórica na nação brasileira é um
resquício da dicotomia entre povos atrasados e povos civilizados (GRIN, 2001). Portanto a
cor de pele não é uma barreira intransponível à ascensão social. Conforme o ex-presidente a
-
desigualdade racial desaparecerá à medida que a nação brasileira se modernizar. O discurso
conservador de modernização defendido por FHC foi como o mencionado no começo desse
trabalho, que impulsionou Getúlio Vargas a promover as políticas de mestiçagem e
miscigenação, uma vez que o negro era visto como um empecilho ao progresso nacional. O
argumento de FHC expressa adesão ao ideal do projeto da ideologia do povo mestiço, aonde o
negro - símbolo do arcaico - seja extinto, permitindo o progresso brasileiro. O discurso de
FHC de modernização, que mencionou o problema da desigualdade histórica, também se
assemelha aos discursos teóricos de Jessé Souza e Florestan Fernandes.
Segundo Jessé Souza (2005) os negros e brancos pobres não conseguiram interiorizar
os valores morais que emergiram na era moderna, demonstrando que a variável explicativa da
desigualdade histórica é econômica e meritocrática, e não racial. Esse fato revela o processo
de exclusão social dos brasileiros pobres de modo geral, independente da cor. Isso demonstra
a necessidade de políticas públicas que reduzam a distância social entre pobres e ricos no
acesso aos bens simbólicos que permitam a consolidação do projeto da nação moderna
brasileira.
A segunda simetria do argumento modernizante de FHC, e que expressa o problema
da desigualdade histórica discutido no seminário em Brasília, se refere aos escritos do
sociólogo Florestan Fernandes no livro Integração do Negro na sociedade de Classes. Mas ao
se apropriar dessa literatura para explicitar o problema da nação moderna o ex-presidente
exprimiu uma argumentação confusa e incoerente16
, e exprimiu a posição conservadora do seu
discurso, que se apoia nas políticas públicas de branqueamento. Essa confusão teórica reforça
a tese de Hansebald de que a modernização econômica brasileira jamais deletaria o
preconceito racial vigente no Brasil (CAMPOS; DAFLON; FERES, 2010).
A incoerência do discurso de FHC sobre modernização, vinculada à desigualdade
histórica, levou o cientista social Antonio Sergio Guimarães, no seminário em Brasília, a
criticar os argumentos de FHC (GRIN, 2001). Para isso Guimarães defendeu a importância da
implantação de ações afirmativas fundada no critério racial. Para esse autor as ações
afirmativas fundadas no critério racial são a única via pela qual a desigualdade racial no
mercado de trabalho, nas escolas e na publicidade pode ser reduzida. Para ele essas políticas
não produziriam a segregação racial entre negros e brancos como nos EUA, como postula
16 Essa incoerência foi percebida quando FHC acabou explicitando que o livro de Florestan Fernandes
reconhece a desvantagem do negro na engenharia da ideologia da mestiçagem, quando detectou três problemas
que impediram a integração do escravo recém-liberto na sociedade moderna: a) herança psicossocial do negro do
regime escravocrata; b) o racismo praticado pelos imigrantes brancos brasileiros; e c) a falta de políticas
implementada pelo governo para introduzir o escravo recém-liberto na nova lógica do mercado de trabalho
(FERNANDES, [1961] 2008).
-
FHC, antes permitiria aos afro-brasileiros reconhecer sua identidade racial negra (GRIN,
2001). O reconhecimento da identidade negra possibilita a desconstrução do mito da
democracia racial.
Segundo Sergio Guimarães a desconstrução do mito da democracia racial
engendraria a modernização do Brasil que FHC defende. Contudo, tal tarefa exigiria num
primeiro momento a “conciliação das fronteiras entre raça e classe social, diluindo a
primeira na segunda, e num segundo momento a conciliação entre raça e cultura criando
categorias classificatórias rígidas” (GRIN, 2001, p.185). Nesse caminho argumentou que a
primeira iniciativa para possibilitar a consciência racial negra no Brasil já foi engendrada com
a emergência do discurso de Abdias do Nascimento, que relaciona classe e raça e que
questiona a ideologia da mestiçagem. O segundo passo está sendo dado com a imbricação dos
discursos entre raça e cultura, que traz em cena o discurso da diversidade e que coloca o negro
como sujeito que necessita de auxílio do Estado para manter-se frente aos brancos (GRIN,
2006). Isso legitima as reivindicações por políticas de ações afirmativas especificas para
negros, e que deságua no discurso de que o preconceito racial não se compara com outros
tipos de discriminação. Fato este aceito por FHC quando o mesmo reconheceu a existência do
preconceito de marca vigente no Brasil. Antonio Sergio Guimarães não acredita na visão de
FHC de que o preconceito de marca desaparecerá à medida que a sociedade brasileira se
modernizar, pelo contrário, defende que a modernização acontecerá quando houver a
desconstrução do mito da democracia racial. Desta perspectiva Antonio Sergio Guimarães
reafirmou sua posição favorável à implantação de políticas de ações afirmativas fundadas no
critério racial. Para ele o preconceito racial impede os discriminados de ascender socialmente
(GRIN, 2001).
Em contrapartida, contrapondo-se aos argumentos de Antonio Sergio Guimarães,
observa-se no seminário o discurso do antropólogo Roberto Damatta, que se assemelha aos
discursos de FHC. A semelhança do discurso de Damatta ao de FHC se verifica quando o
antropólogo afirma que “pessoas ficam brancas ou negras de acordo com suas atitudes,
sucesso e, sobretudo, relacionamento” (GRIN, 2001, p.188). O argumento de Damatta se
traduz no discurso de FHC, quando este afirma que o preconceito racial desaparecerá à
medida que a sociedade brasileira se modernizar. Em ambas as falas observa-se que o
preconceito racial vigente no Brasil não é uma barreira intransponível como ocorre nos EUA.
Por isso, ambos defendem a concretização do ideário da democracia racial brasileira. Para eles
a opinião pública deseja ver concretizado esse ideal, como demonstram os dados estatísticos
das pesquisas de opinião. Nesse sentido, defendem a implantação de ações afirmativas,
-
contanto que essas discriminações positivas não sejam uma cópia das experiências do sistema
norte americano. FHC e Roberto Damatta acreditam que a importação do modelo de ação
afirmativa vigente nos EUA ao território brasileiro pode produzir a divisão racial entre
brancos e não brancos, fato ausente no Brasil devido à posição mediadora do mestiço
brasileiro.
Os discursos visibilizados no seminário em Brasília e no centenário da assinatura da
Lei Áurea mostram que o MNU, ao difundir as ideias de ênfase na desigualdade histórica, dá
brecha para que as elites políticas se apropriem do mesmo ressignificando-o (HANCHARD,
2001) como demonstram os discursos de FHC sobre modernização e José Sarney sobre a Lei
Áurea. A apropriação desse discurso por FHC e José Sarney está explícita quando o primeiro
afirma que o problema da desigualdade histórica é mais evidente pelo fato de que o negro não
interiorizou os valores morais exigidos na era moderna do que a influência do preconceito de
marca. Quanto a José Sarney percebe-se que a sua reapropriação do discurso da desigualdade
histórica parece dar-se quando o mesmo deixa claro que a Lei Áurea libertou e possibilitou a
integração efetiva dos afro-brasileiros à nação brasileira graças à ideologia da mestiçagem. E
por isso não há a necessidade de políticas de ações afirmativas para negros.
A reapropriação dos discursos da desigualdade histórica por FHC e José Sarney
levou militantes negros a enfatizar esse discurso. Esse fato se verificou na abordagem dada
por militantes negros para a problemática da desigualdade histórica e da desigualdade
econômica. Tal abordagem pode ser observada no artigo da militante do MNU e socióloga
Luisa Bairros (1996), filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT), e que ocupa um cargo de
chefia nessa organização. Em tal texto percebe-se que o mesmo se assemelha aos discursos de
Abdias do Nascimento, de ênfase na desigualdade histórica e de classe social para explicar a
opressão das classes desfavorecidas. Esse fato parece possibilitar a diluição do discurso de
raça no de classe, tal como explicitado por Antonio Sergio Guimarães. Mas não possibilita a
conciliação das fronteiras entre raça e cultura, uma vez que a autora chega a mencionar num
artigo de réplica ao livro Orfeu e o Poder, de Michel Hanchard, que não era a cultura e o
fenótipo que uniam os descendentes de escravos africanos mundialmente, mas o sofrimento
comum, que também abrangia os seres humanos de cor branca.
O argumento do sofrimento comum que abrange a todos traz dificuldade para a
construção de um discurso coerente que traduza a necessidade da implantação de políticas de
ações afirmativas baseadas no fenótipo. Isso porque dá brecha para a interpretação do
sofrimento que passam os brasileiros no âmbito da escassez de bens materiais, e não racial.
Isso legitima intelectuais como Jessé Souza (2005) e políticos do partido democratas (DEM) a
-
defenderem apenas políticas de ações afirmativas baseadas no critério de classe social com
viés socioeconômico.
Em suma, observa-se que o debate sobre negritude brasileira que traz em cena os
discursos de ações afirmativas, especialmente o argumento da desigualdade histórica, trouxe o
discurso de duas vertentes: a) o problema do preconceito de marca é um resquício da
dicotomia entre povos atrasados e civilizados. Nesse caso o preconceito contra o negro
desaparecerá à medida que a sociedade brasileira se modernizar, concretizando o ideal de
democracia racial (discursos de FHC e José Sarney); b) o discurso imbricando raça e classe,
raça e cultura possibilita a desconstrução do mito da democracia racial (Abdias do
Nascimento, Antonio Sergio Guimarães, MNU).
Outra vertente que discute o problema da desigualdade histórica, mas que não foi
problematizada nas discussões acima é o debate sobre ações afirmativas ocorrido na cidade de
Durban, na África do Sul. Em tal evento o debate sobre desigualdade histórica (que antes se
referia à desigualdade histórica sofrida por parte dos negros), incluiu o debate sobre
desigualdade de gênero e classe social.
1.2. Conferência de Durban: debate sobre as ações afirmativas
O problema das desigualdades de gênero, de classe e étnicos é mundial e assola as
democracias contemporâneas. Tanto que se tornou uma das preocupações da agenda da
Organização das Nações Unidas – ONU. O problema específico do racismo e da
discriminação racial já vinha sendo discutido a portas fechadas pela ONU desde 1978. Esses
debates eram realizados nos bastidores para não atrair a atenção dos meios de comunicação de
massa em face do problema do apartheid ocorrido na África do Sul. Entretanto, com a posse
do presidente civil negro Nelson Mandela, o problema da divisão racial entre brancos e negros
neste Estado foi apaziguado e possibilitou a discussão da desigualdade histórica no mundo
globalizado.
O debate sobre desigualdade histórica brasileira no âmbito internacional teve início
com as denúncias dos movimentos negros à Organização Internacional do Trabalho - OIT
contra a falta de iniciativa do Estado em implementar políticas contra a discriminação
(MOEHLECKE, 2002). Isso impulsionou o reconhecimento mundial do problema do
preconceito racial brasileiro. Assim aumentaram as pressões para a realização de uma
conferência contra as diversas formas de discriminação existentes no mundo. Assim a
subcomissão do órgão que promove a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos dentro da
ONU lançou a proposta de necessidade de realização de uma conferência que tratasse das
-
diversas formas de discriminações. Desse órgão “emergiu, portanto, a resolução 1994/2
denominada Conferência mundial contra o racismo, discriminação racial ou étnica, a
xenofobia e outras formas contemporâneas correlatas de intolerância” (ALVES, 2002, p.202),
marcada para ocorrer na cidade de Durban, África do Sul, em 2001.
Na conferência de Durban o debate sobre desigualdade histórica fez menção ao
problema da desigualdade no âmbito escolar, da saúde e habitação entre brancos e não
brancos (CARNEIRO, 2002). Os discursos proferidos na conferência são o oposto dos
argumentos difundidos pelo ex-presidente José Sarney na comemoração do centenário da
morte de Zumbi dos Palmares e por FHC no seminário em Brasília. Esse fato expressa que a
desigualdade histórica passou a ser interpretada como um dos “fatores que contribuem para
as desigualdades sociais e econômicas duradouras em muitas partes do mundo de hoje”
(ALVES, 2002, p.212). Isso demonstra que o preconceito de marca é um fator que delimita a
fronteira entre brancos e não brancos na busca pela ascensão social. Nesse sentido observa-se
que a hipótese de Jesse Souza (2005) de que a fonte da desigualdade brasileira é econômica e
meritocrática não dialoga com os discursos da conferência de Durban.
O discurso fundamentado na desigualdade histórica levou os povos africanos a exigir
indenização e pedido de perdão dos povos ocidentais pela prática da escravidão negra. Os
Estados ocidentais se recusavam a aceitar essas demandas, provocando tensões na
conferência, e acabou sendo retirado do documento final da conferência de Durban o
vocábulo ação afirmativa na fomentação da igualdade material, por mais que as associações
negras, inclusive brasileiras as reivindicassem (ALVES, 2002).
A exclusão de tal termo foi defendida pelos EUA e seus aliados, que temiam que a
defesa dessa política se alastrasse no mundo globalizado. Além da retirada do vocábulo
também foi abolido o uso do termo raça. A extinção deste buscou afirmar que raças não
existem e por isso não há necessidade de implementar políticas fundamentadas nessa crença.
Argumento semelhante ao do geneticista Sergio Pena, que afirma que no Brasil todos os
brasileiros tem no seu genoma a contribuição dos três povos formadores da nação brasileira.
Por esse motivo não há como definir quem é negro ou branco fenotipicamente devido à
difusão da prática da ideologia da miscigenação discutida nesse trabalho.
Apesar da retirada do termo ação afirmativa, na conferência de Durban o debate
sobre desigualdade histórica17
enfatizou as discriminações de gênero, econômica, social e
17
O termo desigualdade histórica era empregado no Brasil até a conferência de Durban para explicar o
preconceito sofrido pelos negros ao longo do tempo. Entretanto, após a conferência de Durban o vocábulo
passou a incluir a luta dos deficientes físicos, mulheres e de classe social. Por isso a partir de agora quando o
-
racial. Fato que levou órgãos internacionais a exigir dos Estados a criação de meios que
permitam aos discriminados de modo geral ascender-se socialmente. Essas exigências se
encontram no artigo 108 do documento internacional:
[...] medidas especiais para lograr representação apropriada nas
instituições de ensino, na moradia, nos partidos políticos, nos parlamentos e no
emprego, em particular em órgãos judiciais e policiais, no exército e outros serviços
civis, o que, em alguns casos pode exigir reformas eleitorais, reformas agrárias e
campanhas em prol da participação equitativa (ALVES, 2002, p.215).
O artigo 108, ao reconhecer o problema das discriminações históricas de modo geral,
abriu brecha para que os movimentos negros brasileiros reivindicassem ainda mais políticas
de correção da Desigualdade Histórica. Assim, a conferência de Durban consolidou na agenda
política a implementação de ações afirmativas, por exemplo, através do apoio do governo de
Anthony Garotinho no Rio janeiro, Luis Inácio Lula da Silva, Ciro Gomes e José Serra no
território brasileiro. Em 2003 o governo federal ampliou o debate das discriminações positivas
em decorrência das negociações entre o governo, os movimentos sociais negros e os políticos
profissionais afrodescendentes aliados ao Partido dos Trabalhadores (NASCIMENTO, 2007).
As negociações entre o governo e movimentos negros fomentaram a criação da
Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial – SEPPIR e a aprovação da
lei 10.639/2003 pelo Congresso Nacional. A partir dessa data entrou em vigor a
obrigatoriedade de nas escolas públicas se abordar a História da África e do Negro no Brasil
envolvendo a problemática da Desigualdade Histórica.
Aproveitando o momento propício às negociações com o governo os movimentos
negros dialogaram com algumas universidades públicas a fim de angariar as cotas raciais.
Nesse diálogo algumas instituições de ensino implantaram as políticas de igualdade material
com o corte racial. A adesão das cotas raciais nas Universidades Públicas Brasileiras
provocou uma reação dos grupos opositores às cotas raciais que alegaram a
inconstitucionalidade das ações afirmativas. Entre os contrários à implantação de políticas
públicas para a promoção da igualdade racial está parcela significativa de intelectuais
brasileiros, como o geneticista Sergio Danilo Pena e a ex-mulher de FHC, Ruth Cardoso
termo “Desigualdade Histórica” estiver escrito em maiúsculo se refere ao preconceito sofrido pelos negros, e
quando vim escrito em minúsculo (desigualdade histórica) refere-se à desigualdade no âmbito empregado na
conferência de Durban.
-
Melo, que se articularam em 2006, quando elaboraram e entregaram pela primeira vez um
manifesto com 113 signatários ao Congresso Nacional contra as cotas raciais.
No abaixo assinado vigorava o argumento de que no Brasil não havia racismo devido
às políticas públicas de miscigenação. Dois anos depois, os opositores às cotas raciais
entregaram mais um manifesto com 114 assinaturas ao STF argumentando que as cotas raciais
infringiam o princípio da meritocracia e que o problema no Brasil seria econômico e não
racial, como sugere a literatura de Jessé Souza (2005). Além desses argumentos os
manifestantes alegaram que as cotas raciais iriam promover num futuro próximo à
intolerância racial no Brasil, através da importação do racismo norte americano (SILVERIO;
MOYA, 2009). Discursos estes semelhantes aos de FHC no seminário em Brasília.
O discurso da meritocracia é conservador e mostra como naturais as desigualdades
individuais nas democracias contemporâneas. Defende a inconstitucionalidade das ações
afirmativas com o argumento de que os alunos menos capacitados roubam as vagas dos
alunos competentes. Esse discurso contribui para que os humildes tenham desvantagem,
argumentando com o princípio da igualdade jurídica, a igualdade formal engendra os
discursos da meritocracia mantendo o status quo da sociedade. A meritocracia é classificada
como um dom natural pelos grupos favorecidos, e não uma característica sociocultural
transmitida ao longo das gerações, tal como a herança material. Desta forma, as redes de
ensino transformam as hierarquias sociais em hierarquias escolares através dos títulos. Nas
provas os alunos são classificados conforme a sua habilidade e competência intelectual,
contribuindo para que os menos favorecidos interiorizem uma inferioridade que é construída
através das oportunidades econômicas e sociais (BOURDIEU, 2008).
As instituições escolares, ao se apoiarem no princípio da meritocracia como eixo-
ordenador das capacidades individuais, legitimam os argumentos das classes com melhores
condições econômicas. Tal diagnóstico pode ser observado na argumentação de José Sarney
em 1988, que deixou explícita a dicotomia entre trabalho braçal e intelectual no dia da
comemoração centenária da assinatura da Lei Áurea. Nesses discursos verifica-se uma espécie
de dispositivo que visa perpetuar um pacto do silêncio estabelecido pela ideologia da
mestiçagem, e no qual ninguém deve se manifestar a fim de silenciar os discursos da prática
do racismo para não incomodar o racismo estabelecido (MEDEIROS, 2009).
O pacto de silêncio, no entanto está sendo questionado com a reação aos dois
manifestos contrários às cotas raciais. Por sua vez, o manifesto que visa desconstruir os
argumentos contrários às cotas raciais tem mais de 740 assinaturas de artistas, políticos,
militantes negros e advogados que afirmam a constitucionalidade das políticas de ações
-
afirmativas. No discurso da constitucionalidade das cotas raciais alega-se que a Constituição
de 1988 reconheceu o racismo brasileiro, tanto que tornou crime a prática do mesmo. Além
desse argumento os defensores das cotas raciais afirmam que a Constituição Federal, ao
reconhecer a legalidade na implantação de cotas para deficientes físicos, abriu espaço para a
implantação de políticas contra a desigualdade fenotípica. Outro argumento que também é
utilizado é o de que as universidades públicas federais, com a constituinte de 1988, passaram
a ser regidas pelo princípio da autonomia e por isso têm o direito de definir os critérios de
implantação do sistema de ações afirmativas.
Os grupos favoráveis às ações afirmativas também recorrem à historiografia para
afirmar que o sistema de cotas no Brasil é fomentado pelo Estado, desde o governo de Getúlio
Vargas. Este reservava 65% das vagas em postos de serviço para os trabalhadores brasileiros
(NASCIMENTO, 2007) a fim de fortalecer a ideologia da mestiçagem. Outro argumento
favorável às ações afirmativas foi a utilização de cotas nas universidades públicas a filhos de
trabalhadores rurais, independente do tamanho da propriedade de terras (NASCIMENTO,
2007). Nesse sentido os grupos favoráveis às políticas de discriminação positiva afirmam que
somente as cotas para negros são recriminadas pelos grupos contrários às políticas de ações
afirmativas, pois visam manter a hegemonia racial brasileira.
O termo hegemonia racial brasileira é uma readaptação do conceito gramsciano de
Hegemonia. Michael Hanchard, ao reformular esse termo, tenta mostrar que, no Brasil, vigora
uma espécie de hegemonia da raça branca sobre a raça negra através da difusão da crença da
ideologia da miscigenação. Segundo esse autor no Brasil os afro-brasileiros têm uma
consciência racial multifacetada devido às práticas de branqueamento. E aponta a
miscigenação como fonte da desorganização da subjetividade dos indivíduos, uma vez que os
afro-brasileiros sofrem preconceito nas escolas, no mercado de trabalho e na mídia devido ao
fenótipo, mas tentam mascarar esse preconceito. Essa mascara é colocada pelos afro-
brasileiros porque, ao denunciar o indivíduo racista, o estigmatizado é condenado pela
sociedade, que se diz não racista apoiando-se no discurso da miscigenação. Esse fato provoca
o pacto do silêncio de aproximadamente 50% dos afro-brasileiros, como revela Priscila
Martins Medeiros (2009).
O discurso da miscigenação e da meritocracia, além de provocar o pacto do silêncio
dos afrodescendentes, é um dos pilares que sustentam os mandados de segurança contra as
universidades públicas que implantaram os programas de ações afirmativas com corte racial.
O argumento de meritocracia, também utilizado pelos grupos contrários, deve ser lido à luz do
-
princípio da razoabilidade18
. Este princípio, presente nas leis brasileiras, regula as regras para
que não haja excessos da lei garantindo beneficio a um grupo prejudicando outros. E alegando
que as cotas raciais ferem o princípio da proporcionalidade que os advogados defendem seus
clientes, afirmando que os alunos que recorrem ao mandado de segurança não passaram no
vestibular devido às cotas, uma vez que se não fossem as cotas os mesmos teriam passado
através do mérito. Nesse sentido os advogados que impetram o mandato de segurança
argumentam que, ao invés de ações afirmativas para negros, devem-se melhorar as escolas
públicas brasileiras, de modo que se permita a entrada de negros e brancos em proporções
iguais nas instituições superiores de ensino (MEDEIROS, 2009).
Os discursos dos advogados contrários às cotas raciais parecem desconhecer as
literaturas que exprimem as práticas de racismo que sofrem os afrodescendentes nas escolas
públicas. Essa discriminação fenotípica impede que os negros ingressem nas instituições
superiores de ensino (CARVALHO, 2004). Além de desconhecer a prática de racismo nas
escolas, observa-se que os advogados não sabem que os alunos que o procuram não têm nota
suficiente para ingressar nas instituições superiores de ensino quando comparado seu
desempenho individual com os vestibulandos que concorrem às vagas gerais. Esse fato leva a
maior parcela dos juízes a dar a sentença favorável às universidades que implantaram as cotas
raciais.
As sentenças favoráveis às Instituições Superiores de Ensino levaram os grupos
contrários às cotas raciais a enfatizar outros argumentos como a raça, a ideologia da
miscigenação e da divisão racial, a fim de deslegitimar as ações afirmativas. O discurso da
miscigenação propaga o argumento de que no Brasil não há como definir quem é branco ou
negro fenotipicamente. Somente podem ser identificados brancos puros genotipicamente
(CAMPOS; DAFLON; FERES, 2010). Esse argumento engendra o argumento de que raças
não existem, argumento este semelhante ao discurso da conferência de Durban. Demonstram,
assim, a crença de que não deve haver cotas raciais fundadas na raça porque essas políticas
podem acirrar o problema da divisão racial, como apontou FHC e Roberto Damatta no
seminário na UNB.
Se apoiando nos discursos contrários às ações afirmativas para negros o Partido
Democrata – DEM impetrou o instrumento jurídico arguição de descumprimento do preceito
fundamental (ADPF186) contra a UNB, pois essa instituição aderiu às políticas de
18
O princípio da razoabilidade pode ser definido como aquele que exige proporcionalidade, justiça e adequação
entre os meios utilizados pelo Poder Público, no exercício de suas competências, e os fins por ela almejados
levando-se em conta critérios racionais e coerentes” (MORAES, 2012, p.922)
-
discriminação positiva tendo como critério de seleção o fenótipo. A ADPF 186 é uma ação
que foi proposta em julho de 2009 pela advogada do DEM, Roberta Frangoso Meneses
Kaufmann, a qual pede a declaração de inconstitucionalidade e a extinção das cotas raciais em
todas as instituições superiores de ensino (CAMPOS; DAFLON; FERES, 2010).
Face ao exposto, o STF agendou, em março de 2010, uma AP para analisar a ADPF
186 contra as cotas raciais e o recurso extraordinário contra a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, contra as cotas sociais. O STF recorreu aos Amici Curiae19
a fim de analisar
esses processos para julgar se há ou não inconstitucionalidade na implantação de ações
afirmativas nas Universidades públicas brasileiras. Mas antes de fazer uma exegese dos
argumentos debatidos na AP pelo STF analisar-se-á como as teorias sobre os meios de
comunicação de massa nos possibilita compreender midiaticamente os debates de ações
afirmativas no território brasileiro.
19
Amicus Curiae é o “amigo da corte”, aquele que lhe presta informações sobre matéria de fato e de direito,
objeto da controvérsia. Sua função é chamar a atenção dos julgadores para alguma matéria que poderia, de outra
forma, escapar-lhe ao conhecimento. Um memorial de amicus curiae é produzido, assim, por quem não é parte
no processo, com vistas a auxiliar a Corte para que esta possa proferir uma decisão acertada, ou com vistas a
sustentar determinada tese jurídica em defesa de interesses públicos ou privados de terceiros, que serão
indiretamente afetados pelo desfecho da questão. V. Steven H. GIFIS, Law Dictionary, Barron’s Educational
Series, Inc., 1975, p. 11/12. Apud BINENBOJM, Gustavo. A dimensão do amicus curiae no processo
constitucional brasileiro: requisitos, poderes processuais e aplicabilidade no âmbito nacional. Revista Eletrônica
do Direito de Estado, Salvador, n. 1 – jan./fev./mar. 2005.
-
2. TEORIAS DAS COMUNICAÇÕES
As primeiras pesquisas sobre os meios de comunicação de massa foram produzidas no
final do século XVIII, mas foi durante a primeira guerra mundial que os estudos se
intensificaram com o intuito de analisar as propagandas disseminadas pelos regimes políticos
autoritários. Influenciados pelas teorias comportamentalistas de cunho behaviorista, os
estudiosos dos meios de comunicação de massa acreditavam que o aparelho radiofônico tinha
grande influência nas sociedades de massa. Partindo da premissa de que havia uma relação
causal direta entre comportamento humano e exposição das mensagens, emerge a teoria
hipodérmica. Essa teoria se fundamentava na hipótese de que os indivíduos são diretamente
atingidos pelas mensagens expostas pelos meios de comunicação de massa através da relação
estímulo-resposta. E por isso são manipulados pela mídia de massa.
A tese hipodérmica foi superada parcialmente com os estudos científicos de
Harold Lasswell, embora conservasse intacto o pressuposto hipodermiano fundado na relação
estímulo-resposta. Apesar das críticas por conservar os princípios da teoria hipodérmica, a
investigação empreendida por Lasswell engendrou um campo teórico mais amplo fundado na
divisão social do trabalho no campo da sociologia comunicativa. Fato que possibilitou a
emergência de um campo de análise fragmentada dos segmentos que compõem a totalidade
dos atos comunicativos, analisando separadamente a audiência, o emissor e o conteúdo das
mensagens (WOLF, 1984).
Os experimentos laboratoriais realizados pelo sociólogo austríaco Paul Lazarsfeld na
área das Ciências Sociais se afastam das premissas presentes na teoria hipodérmica.
Lazarsfeld gera um arcabouço teórico denominado de Efeitos Limitados, apresentado em 1944
nos EUA. Essa teoria sobre propaganda eleitoral desafiou os paradigmas hegemônicos sobre
meios de comunicação de massa ao defender a importância das instituições familiares e dos
líderes de opinião no jogo da comunicação política midiática (RUBIM, 2004). O líder de
opinião desempenhava o papel de mediador entre meios de comunicação de massa e outros
indivíduos menos interessados nos aspectos políticos. Isso explica que a mídia é um dentre
vários fatores que influenciam as decisões políticas, uma vez que detém um poder limitado
sobre seu público.
Nessa linha, a pesquisa empreendida por Paul Lazarsfeld no campo da investigação
entre mídia e público abre caminho para a discussão que possibilita a emergência dos estudos
no campo do enquadramento midiático. Este conceito é identificado, grosso modo, como
sendo interpretações gerais que dão sentido a algum evento e situação social. Nessa linha, o
-
discurso é acompanhado da manipulação de símbolos que organizam o argumento visibilizado
pelos meios de comunicação (RUBIM, 2004). O argumento pode ser enquadrado de forma
positiva ou negativa, de acordo com as interpretações gerais feitas pelo jornalista sobre o
evento.
A teoria do enquadramento midiático será adotada nesse trabalho para analisar as
noticias veiculadas pela mídia televisiva no período de vinte e sete de fevereiro de 2010 a
catorze de março de 2010 sobre as políticas de ações afirmativas. O objetivo é analisar o
sentido das interpretações visibilizadas pelo Jornal Nacional e pelo Jornal da Record em torno
dos argumentos sobre as políticas de discriminação positiva. Vale ressaltar que de início esta
pesquisa visava analisar o sentido que o Jornal da Band e o Jornal Nacional deram ao debate
das cotas raciais nas universidades. Entretanto, percebeu-se ao longo da coleta de dados uma
total invisibilidade dada pelo Jornal da Band ao debate das políticas de discriminação
positiva, fato que acarretou um redimensionamento da pesquisa para a análise das mensagens
veiculadas pelo Jornal da Record. Assim segue abaixo a análise das mensagens televisivas
acerca do debate das ações afirmativas veiculadas pelos telejornais acima mencionados
durante um período de tempo já delimitado.
2.1. O enquadramento midiático da audiência pública sobre cotas pelo Jornal
Nacional e pelo Jornal da Record
O estudo do enquadramento midiático se fundamenta na análise de como os meios de
comunicação de massa trabalham determinada informação. Um enquadramento na prática
jornalística é construído através de procedimentos como a ênfase e exclusão de determinados
aspectos e informações que formam as noticias do dia á dia. Nessa linha, a mídia pode ser
comparada a uma moldura de uma janela por onde a sociedade entra em conexão com uma
minúscula parcela da realidade. Essa realidade transformada em notícia pelo jornalista
demonstra que a “organização de determinados termos pode ser chamada de
enquadramento” (LEAL, 2007, p.2). Ou seja, o jornalista decide se enquadra um
acontecimento de uma forma ou de outra, enfatizando uma parte da realidade em detrimento
de outra.
A partir dessa concepção de enquadramento o sociólogo Erving Goffman inaugura o
conceito de enquadramento da seguinte maneira:
Eu assumo que definições de uma situação são construídas de acordo com
os princípios de organização que governam os eventos […] e o nosso envolvimento
subjetivo neles; enquadrar é a palavra que eu uso para referir a esses elementos
-
básicos como eu sou capaz de identificar. (GOFFMAN20
, 1974, Apud LEAL, 2007,
p. 10)
A definição de enquadramento proposto por Erving Goffman explicita que a
transformação de um acontecimento em notícia traz consigo princípios de organizações que
definem o enquadramento adotado de uma determinada questão. Esta definição de
enquadramento foi revisada por Todd Gintlin (1980) que traz em cena a ideia de que existe
uma tática de organização do discurso pelo emissor, mesmo que suas intenções sejam
inconscientes (LEAL, 2007). Essa ideia foi interpretada por Porto, (2002) que a complementa
definindo que “enquadramentos são entendidos como marcos interpretativos mais gerais,
construídos socialmente, que permeiam às pessoas dar sentido aos eventos e às situações
sociais” (PORTO21
, 2002, apud AITA, 2010, p.5).
O sentido dado aos eventos sociais traz consigo avaliações morais diferenciadas com
relação ao tratamento dado a determinadas questões. Tal disparidade dado no tratamento de
determinados temas pode ser analisada através do emprego de um ou mais dos quatro tipos de
enquadramento. São eles: a) Episódico; b) plural aberto; c) plural fechado; d) restrito.
O primeiro acontece quando há um relato espelhado do evento não havendo
enquadramento interpretativo. Já o enquadramento plural aberto ocorre quando o
enquadramento interpretativo apresenta um diagnostico equilibrado das partes envolvida no
processo. Ao passo que o enquadramento plural fechado privilegia o enquadramento
interpretativo de uma das partes. Enquanto que o enquadramento restrito apresenta um único
discurso ou viés a respeito do evento ou tema debatido (DOS ANJOS, 2004).
Os argumentos das ações afirmativas veiculadas pelos telejornais serão analisados a
luz do enquadramento plural fechado, uma vez que a mídia televisiva parece ter enfatizado
mais os argumentos contrários do que favoráveis às cotas raciais. Com isso poderá ser
verificado o sentido que os jornais em análise deram ao debate das ações afirmativas durante
o período de vinte e sete de fevereiro a catorze de março de 2010. O que revelará se a mídia
televisiva reproduziu as interpretações de grupos e instituições hegemônicas (PORTO, 2007),
ou seja dos grupos contrários as cotas raciais.
Neste trabalho a analise dos argumentos será classificada em enquadramentos22
argumentativos principais. Os enquadramentos argumentativos contrários às cotas raciais são:
20
GOFFMAN, E. Frame Analysis: an essay on the organization of experience. New York: Harper, 1974. 21
PORTO, Mauro. Enquadramentos da mídia e política. 2002. 22
Seguindo as orientações de Porto (2001), os enquadramentos interpretativos empregados neste trabalho serão
os enquadramentos de causa. O enquadramento de causa será chamado de argumentativo e abrange os
-
a) econômico; b) raça; c) divisão racial; d) fenótipo; e) inconstitucionalidade. Por outro lado,
os enquadramentos favoráveis envolvem os seguintes argumentos: a) igualdade material b)
Diversidade cultural; c) bom desempenho dos cotistas (SILVERIO; MOYA, 2009). Por fim, o
enquadramento neutro se revela no discurso da desigualdade histórica.
O discurso da desigualdade econômica, favorável às ações afirmativas para pobres, é
defendido por políticos profissionais do PT-PE e do PC do B-SP, em detrimento das cotas
raciais. Nos discursos dos deputados Maurício Rands e Aldo Rabelo, respectivamente,
vigoraram o argumento de que a fonte da desigualdade brasileira é econômica, semelhante ao
argumento de Jessé Souza. Nesses discursos observa-se a dificuldade que a elite política
esquerdista tem de aderir às demandas de cotas raciais para negros. Apesar de mostrar-se
solícita a essa política, vê-se imperar uma argumentação conservadora desses deputados. Esse
fato é explicado porque a matriz ideológica que gerou os políticos profissionais de esquerda é
a mesma que engendrou os políticos com matriz ideológica de direita (HANCHARD, 2001).
Esse fato pode ser observado no discurso enquadrado pelo Jornal Nacional do senador
Demóstenes Torres (DEM) que impetrou a ADPF 186 contra as cotas raciais.
[...] O problema do Brasil, quem é discriminado no Brasil é apenas o
negro? O negro é que é o alvo de toda discriminação que nós temos, ou será que o
nosso problema é em relação ao pobre? Ou será que o nosso problema é em relação
àquele que nada possui independentemente da sua cor? (Demóstenes Torres, notícia
publicada pelo Jornal Nacional no dia 05 de março de 2010).
Este raciocínio parte da ideia de que as diferenças entre brancos e negros se dão no
nível econômico e que o preconceito que os negros sofrem em razão da cor de pele ocorre no
âmbito do privado devido às práticas de miscigenação (MOYA; SILVÉRIO, 2009). Tal
discurso revela a posição conservadora das elites políticas de perfil ideológico de direita, que
não reconhecem a desigualdade fenotípica brasileira, devido à crença na ideologia da
miscigenação. Este conservadorismo é observado quando se percebe prevalecer a ideia de que
o preconceito dentro da família é legal, já que não tem a intenção de ofender o discriminado, e
é visto como sendo somente uma brincadeira. Dessa forma, percebe-se que esse tipo de
raciocínio carece de fundamentação empírica, justamente porque mascara a discriminação
racial, que é a variável explicativa da desigualdade brasileira (FERES, 2006).
argumentos noticiados que sustentam posicionamentos favoráveis, contrários ou neutros às políticas de
discriminação positiva com orientação racial. (MOYA; SILVÉRIO, 2009).
-
O argumento da desigualdade econômica desestabiliza o discurso da Desigualdade
Histórica, que surgiu primeiramente no bojo dos discursos de Abdias do Nascimento na luta
por ações afirmativas e foi enfatizado pelas associações negras, especialmente o MNU. Este
argumento, ao ser desestabilizado, é apropriado e resignificado pelos grupos contrários às
cotas raciais. O discurso da Desigualdade Histórica foi utilizado por grupos contrários às
cotas raciais, como fez o geneticista Sergio Pena, um dos precursores do abaixo-assinado
entregue ao Congresso Nacional contra as cotas raciais, como mencionado na primeira parte
deste trabalho.
Ao se apoiar nas obras de Gilberto Freyre sobre ideologia do povo mestiço, Sergio
Pena recorreu ao discurso da Desigualdade Histórica presente na retórica do MNU para
deslegitimar o conceito de raça baseada na superioridade de um povo sobre outro. O discurso
de raça foi desconstruído pelo geneticista, que enfatizou a ideia de miscigenação e
mestiçagem. Esse argumento foi enquadrado pelo Jornal Nacional da seguinte maneira:
[...] Raças não existem, cores de pele existem, mas são coisas diferentes
e não devem ser confundidas nem misturadas em nenhum tipo de discurso.
Praticamente todos os brasileiros têm as três raízes ancestrais presentes no seu
genoma (Sérgio Danilo Pena, notícia publicada pelo Jornal Nacional no dia 05 de
março de 2010).
Ao mencionar as três raízes ancestrais o geneticista reforça o discurso da democracia
racial através da prática da mestiçagem e miscigenação incentivada no governo de Getúlio
Vargas. Sergio Pena, ao enfatizar o discurso da mestiçagem e miscigenação, defende que
raças não existem, buscando amenizar o preconceito, visto que a mestiçagem é a prova da
harmonia entre as raças (ACEVEDO; NONHARA, 2008).
Nesse sentido, percebe-se que Sergio Pena não problematiza o conceito de
miscigenação, que foi uma estratégia de purificação das raças, uma vez que no século XIX
predominava o argumento científico de inferioridade da raça negra em relação à raça branca.
Ao contrário, preferiu argumentar que atualmente foi comprovado cientificamente que raças,
no sentido biológico, não existem e que o problema da Desigualdade Histórica é um tema do
pretérito, porque atualmente vigora no Brasil um povo mestiço. Por esse motivo as cotas
raciais nas universidades devem levar em consideração a desigualdade histórica do país e o
sofrimento da população brasileira de modo geral (MOYA;SILVERIO, 2009). Ao defender
que a desigualdade histórica no Brasil engloba diversos segmentos da sociedade, Sergio Pena
-
enfatiza a ideia de mestiçagem e miscigenação e minimiza o discurso da Desigualdade
Histórica.
A ênfase no conceito de mestiçagem e miscigenação também estava implícita no
enquadramento argumentativo do discurso da divisão racial e do fenótipo. Na reportagem, a
jornalista do Jornal da Record posiciona-se contrária às cotas para negros nas universidades
públicas, como demonstram os trechos da notícia a seguir:
[...] Aqueles que querem acabar com as cotas raciais dizem que as
diferenças sociais de um país não podem ser resolvidas com medidas baseadas na
cor de pele, e apontam para o risco dessas políticas criarem um problema que o
Brasil hoje não tem, como a divisão e os conflitos raciais (Natalia Leite, repórter,
notícia publicada pelo Jornal da Record, dia 06 de março de 2010).
[...] Flavio Vieira espera romper com o ciclo da pobreza, apesar da pele
clara, acaba de entrar na faculdade por cotas, a mãe é negra (Natalia Leite repórter,
notícia publicada pelo Jornal da Record em 06 de março de 2010).
Nas falas da repórter observa-se que o argumento da divisão racial e do fenótipo
parece ser o mesmo proferido no seminário em Brasília pelo ex-presidente FHC e que está
fortemente fundamentado na crença de que no Brasil não há racialização devido à prática da
miscigenação (MOYA; SILVERIO, 2009) e que as cotas raciais levariam à divisão racial no
Brasil, assim como ocorre nos EUA. Tal enquadramento também tenta associar pobreza e
desigualdade de fenótipo, mas pelo viés de que pessoas de pele branca e pobres se dizem
negras para ingressar nas universidades pelo sistema de cotas. Entretanto, apesar de a repórter
associar o rapaz Flávio Vieira como branco, percebe-se nas mensagens visuais que ele parece
deter os traços fenótipos negros, tais como cabelo, nariz, boca.
O discurso de que as cotas raciais produzem a racialização é reforçado pelo
argumento da inconstitucionalidade das ações afirmativas. Esse enquadramento
argumentativo foi enfatizado pela mídia televisiva da seguinte maneira:
[...] são critérios inconstitucionais as vagas de reserva, porque são
critérios baseados em presunção de necessidade (advogado recorrente, notícia
veiculada pelo Jornal da Record em 06 de março de 2010).
-
O argumento da inconstitucionalidade vem acompanhado do discurso da
meritocracia. Mesmo implícita a menção desse termo na citação acima, percebe-se que a
presunção de necessidade a que o advogado se refere na entrevista é o fato de um aluno que
ingressou no vestibular pelas cotas sociais ter preterido a vaga de um aluno da escola privada.
O que leva o advogado recorrente a afirmar que princípios da Constituição Federal estão
sendo violados quando a universidade pública privilegia certos grupos em detrimentos de
outros. Para ele a violação ocorre porque a Constituição se fundamenta no preceito da
igualdade formal que emana do princípio de que todos são iguais, não devendo haver qualquer
distinção (PEREIRA, 2009).
Os princípios da igualdade formal e do mérito fundamentam a passagem do regime
absolutista para o estado democrático moderno. Trabalhando de forma conjunta, os princípios
do mérito e da igualdade formal se perpetuam ao longo da história trazendo em cena discursos
conservadores de que as vagas nas universidades tem dono. E a entrada de negros, brancos
pobres e indígenas quebra a estabilidade do sistema meritocrático (MEDEIROS, 2009).
O argumento da inconstitucionalidade, que traz os discursos de igualdade formal e da
meritocracia, está sendo questionado pelo discurso da igualdade material ou de oportunidade.
Favorável às políticas de ações afirmativas, o enquadramento argumentativo da igualdade
material foi veiculado na mídia televisiva da seguinte maneira:
[...] Você tem que tratar desigualmente os desiguais para lá na frente
torná-los iguais (Maria Aparecida - MNU, notícia publicada pelo Jornal da Record
em 06 de março de 2010)
O enquadramento argumentativo da igualdade material traz à cena a alegação de que
a igualdade se sobrepõe à meritocracia. Ou seja, o Estado deve dar oportunidade de condições
para