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Artigos doutrinários 47 As provas ilícitas no atual ordenamento processual penal brasileiro Waldemar Cláudio de Carvalho * Sumário Introdução; 2. Da inadmissibilidade das provas ilícitas; 3. O temperamento da proibição; 4. Principais aspectos da disciplina normativa introduzida pela Lei 11.690/2008; 5. Da descontaminação do julgado; Considerações finais; Referências bibliográficas. Introdução A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LVI, veda a utilização de provas obtidas por meios ilícitos, assim compreendidos aqueles empregados em desconformidade com o Direito e com os princípios inspiradores do ordenamento jurídico brasileiro 1 . Assim é porque a Carta Democrática de 1988 agasalhou diversas outras garantias fundamentais do cidadão, tais como: inviolabilidade de sua intimidade/privacidade; de seu domicílio; do sigilo das mais variadas formas de comunicação, bem como aquelas especialmente afetas ao direito processual penal, com destaque para o princípio da inocência e o direito ao próprio silêncio, as quais restariam seriamente comprometidas caso não lhes fosse assegurado também o devido processo legal e todos os seus consectários. Sabe-se que a prova judiciária visa reconstrução dos fatos investigados na instrução criminal, objetivando fornecer ao julgador uma verdade judicial, senão absoluta, mas apta a fundamentar uma decisão final. Daí a disponibilização de meios que permitam ao julgador se aproximar, o quanto possível, da verdade histórica dos fatos investigados sem, contudo, ultrapassar os limites * Juiz Federal da Subseção Judiciária de Tabatinga/AM. Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília. 1 Em relação aos meios ilícitos, Guilherme NUCCI, in Código de Processo Penal Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008; à p. 342, destaca que eles abrangem não somente os que forem expressamente proibidos por lei, mas também os imorais, antiéticos, atentatórios à dignidade e à liberdade da pessoa humana e aos bons costumes, bem como os contrários aos princípios gerais do direito. do devido processo legal, insculpido na Constituição. À vista disso, Eugênio Pacelli 2 , após constatar que nosso atual modelo processual penal brasileiro se consolidou, a partir de 1988, como um sistema de feição acusatória, assevera que o contraditório e a ampla defesa constituem a base da estrutura do devido processo legal, em que, ao lado do princípio da inocência, autorizam a afirmação no sentido de ser o processo penal um instrumento de garantia do indivíduo diante do Estado. Concebe-se, portanto, o julgador, na atual instrução criminal, como um verdadeiro garantidor das liberdades públicas, facultando-lhe, inclusive, exercer o controle constitucional de todas as citadas restrições às inviolabilidades, ainda que em desfavor da chamada verdade real, a qual não deve ser buscada a qualquer custo. Com efeito, se, por um lado, o atual sistema da livre convicção motivada ou persuasão racional permite ao juiz, pelos mais diversos meios de prova admitidos em direito, buscar a verdade real para a formação do seu convencimento, constituindo mesmo a tônica do processo penal, por outro lado, referida busca encontra limitações constitucionais e legais, as quais buscam realizar valores ínsitos à dignidade da pessoa humana, cuja manifestação se expressa nas diversas garantias dos direitos fundamentais previstos pela Constituição. Por isso a advertência de Andrey Borges de Mendonça 3 no sentido de que a busca da verdade, mesmo no processo penal, não pode ser vista como uma atividade ilimitada, existindo limites no âmbito legal e constitucional, pois, como ensina Germano Marques, a verdade processual não é um valor absoluto e, por isso, não tem de ser investigada a qualquer preço, mormente quando esse preço é o sacrifício de direitos fundamentais. Veja também, a propósito, o seguinte excerto do Voto lançado pelo Ministro Celso de Mello na Ação Penal 307-3/DF, acerca da preliminar sobre ilicitude de prova, verbis: 2 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 283. 3 In Nova Reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Método, 2008, p. 170. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 21, n. 6/7, jun./jul. 2009

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As provas ilícitas no atual ordenamento processual penal brasileiroWaldemar Cláudio de Carvalho*

Sumário

Introdução; 2. Da inadmissibilidade das provas ilícitas; 3. O temperamento da proibição; 4. Principais aspectos da disciplina normativa introduzida pela Lei 11.690/2008; 5. Da descontaminação do julgado; Considerações finais; Referências bibliográficas.

Introdução

A Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso LVI, veda a utilização de provas obtidas por meios ilícitos, assim compreendidos aqueles empregados em desconformidade com o Direito e com os princípios inspiradores do ordenamento jurídico brasileiro1. Assim é porque a Carta Democrática de 1988 agasalhou diversas outras garantias fundamentais do cidadão, tais como: inviolabilidade de sua intimidade/privacidade; de seu domicílio; do sigilo das mais variadas formas de comunicação, bem como aquelas especialmente afetas ao direito processual penal, com destaque para o princípio da inocência e o direito ao próprio silêncio, as quais restariam seriamente comprometidas caso não lhes fosse assegurado também o devido processo legal e todos os seus consectários.

Sabe-se que a prova judiciária visa reconstrução dos fatos investigados na instrução criminal, objetivando fornecer ao julgador uma verdade judicial, senão absoluta, mas apta a fundamentar uma decisão final. Daí a disponibilização de meios que permitam ao julgador se aproximar, o quanto possível, da verdade histórica dos fatos investigados sem, contudo, ultrapassar os limites

* Juiz Federal da Subseção Judiciária de Tabatinga/AM. Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília.

1 Em relação aos meios ilícitos, Guilherme NUCCI, in Código de Processo Penal Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008; à p. 342, destaca que eles abrangem não somente os que forem expressamente proibidos por lei, mas também os imorais, antiéticos, atentatórios à dignidade e à liberdade da pessoa humana e aos bons costumes, bem como os contrários aos princípios gerais do direito.

do devido processo legal, insculpido na Constituição. À vista disso, Eugênio Pacelli2, após constatar que nosso atual modelo processual penal brasileiro se consolidou, a partir de 1988, como um sistema de feição acusatória, assevera que o contraditório e a ampla defesa constituem a base da estrutura do devido processo legal, em que, ao lado do princípio da inocência, autorizam a afirmação no sentido de ser o processo penal um instrumento de garantia do indivíduo diante do Estado.

Concebe-se, portanto, o julgador, na atual instrução criminal, como um verdadeiro garantidor das liberdades públicas, facultando-lhe, inclusive, exercer o controle constitucional de todas as citadas restrições às inviolabilidades, ainda que em desfavor da chamada verdade real, a qual não deve ser buscada a qualquer custo. Com efeito, se, por um lado, o atual sistema da livre convicção motivada ou persuasão racional permite ao juiz, pelos mais diversos meios de prova admitidos em direito, buscar a verdade real para a formação do seu convencimento, constituindo mesmo a tônica do processo penal, por outro lado, referida busca encontra limitações constitucionais e legais, as quais buscam realizar valores ínsitos à dignidade da pessoa humana, cuja manifestação se expressa nas diversas garantias dos direitos fundamentais previstos pela Constituição.

Por isso a advertência de Andrey Borges de Mendonça3 no sentido de que a busca da verdade, mesmo no processo penal, não pode ser vista como uma atividade ilimitada, existindo limites no âmbito legal e constitucional, pois, como ensina Germano Marques, a verdade processual não é um valor absoluto e, por isso, não tem de ser investigada a qualquer preço, mormente quando esse preço é o sacrifício de direitos fundamentais. Veja também, a propósito, o seguinte excerto do Voto lançado pelo Ministro Celso de Mello na Ação Penal 307-3/DF, acerca da preliminar sobre ilicitude de prova, verbis:

2 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 283.

3 In Nova Reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Método, 2008, p. 170.

Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 21, n. 6/7, jun./jul. 2009

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Tenho reiteradamente enfatizado, em diversas decisões proferidas no âmbito desta Corte Suprema, que ninguém pode ser denunciado ou condenado com fundamento em provas ilícitas, eis que a atividade persecutória do Poder Público, também nesse domínio, está necessariamente subordinada à estrita observância de parâmetros de caráter ético-jurídico cuja transgressão só pode importar, no contexto emergente de nosso sistema normativo, na absoluta ineficácia dos meios probatórios produzidos pelo Estado. (...)

A busca da verdade real constitui o objetivo último perseguido pelo processo penal condenatório. Essa pesquisa da realidade, no entanto, sofre decisivas limitações impostas pelas exigências ético-jurídicas que informam o nosso ordenamento jurídico.

Note-se, ademais, que, desde o Direito Romano imperial, os jurisconsultos, no tocante ao exame e à valoração da prova, já buscavam diminuir a liberdade dos seus Juízes, sem tirar-lhes, contudo, a livre convicção ao julgar. Houve, inclusive, a regulação da prática da tortura, antes destinada apenas aos escravos, mas posteriormente também admitida contras os homens livres, nos crimes de lesa-majestade, o que perdurou até nossas terras, conforme se pode ver pelo magistério da Ministra Maria Tereza Rocha de Assis Moura4, citando o Regimento aprovado pelo Alvará de 1º de setembro de 1774, sob o Governo do Marquês de Pombal (Ordenações Filipinas, Livro V), o qual manteve o processo de tormento, com a observação de não se aplicar a tortura senão no caso de existirem indícios veementes.

2 – Da inadmissibilidade das provas ilícitas

A vedação de utilização, no processo, de provas obtidas por meios ilícitos consta de nosso próprio Texto Maior, constituindo cláusula pétrea pertinente aos direitos e garantias fundamentais – art. 5º, inciso LVI. Interpretando tal dispositivo, o Supremo Tribunal Federal, no citado precedente AP 307-3-DF, já havia assentado que a prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explícita razão, de qualquer aptidão jurídico-material. Prova ilícita, sendo providência instrutória

4 In A Prova por Indícios no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 10.

eivada de inconstitucionalidade, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo que seja, de eficácia jurídica.

Questão relevante que se colocava à hermenêutica do citado dispositivo constitucional consistia na interpretação restritiva a ele dada por parcela significativa dos doutrinadores, no sentido de que tal limitação abarcaria apenas as provas ilícitas, assim entendidas aquelas ofensivas ao direito material. Já quanto às provas chamadas ilegítimas, obtidas com a infração formal ao direito processual, conduziriam ao reconhecimento de sua nulidade, regulada pelo art. 564 do CPP. Parece, inclusive, ter sido esta a solução dada ao tema pela Constituição portuguesa, ao preceituar, em seu art. 32, que: São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.5

Se alguma controvérsia subsistiu na jurisprudência pátria acerca da classificação doutrinária do regime adotado por nosso ordenamento para solução dessa questão (se o Sistema das Nulidades ou o da Inadmissibilidade), a nova redação do art. 157 do CPP, dada pela Lei 11.690/2008, dirimiu quaisquer dúvidas que eventualmente persistissem ao preceituar que: São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. Portanto não há mais espaço para a citada distinção entre normas formais e materiais na disciplina das provas ilícitas.

De tal modo, qualquer prova ilícita, seja ela criminosa – obtida em infração às normas penais (Constituição Federal ou leis ordinárias), seja ilegítima – obtida em desconformidade com os preceitos gerais de processo –, serão inadmissíveis, devendo ser, portanto, desentranhadas do processo. A mencionada disciplina legal revela-se por demais importante, visto que define expressamente a opção pelo Sistema de Inadmissibilidade, ao determinar, no § 3º do citado art. 157 do CPP, a cogente destruição da prova ilícita, mediante incidente presidido pelo próprio juízo. Superado, dessarte, o Sistema das Nulidades, o qual

5 Apud GOMES, Luiz Flávio. Doutrina: Lei 11.690/2008 e Provas Ilícitas: conceito e inadmissibilidade. Disponível em http://www.uj.com.br, em 01.07.2008.

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permitia, mesmo após reconhecido eventual vício na prova, a sua manutenção em cartório, conforme bem observado pelo Prof. Guilherme Nucci em palestra ministrada na I Jornada de Estudos sobre Direito Processual Penal, coordenada pela Escola de Magistratura Federal da 1ª Região – Esmaf, na cidade de Cuiabá, no dia 11.12.2008.

3 – O temperamento da proibição

O Sistema da Inadmissibilidade, no processo, da prova obtida por meios ilícitos, como todo preceito fundamental, não pode ser interpretado de forma absoluta, permitindo a moderna hermenêutica constitucional ponderar sua aplicabilidade em face de outros valores também prestigiados pelo ordenamento. Essa realidade, como bem acentuado pelo Prof. Eugênio Pacelli de Oliveira6, decorre do fato de vivermos em uma sociedade plural, isto é, em que vários são os interesses individuais e dos grupos que compõem a comunidade jurídica. Assim, a tutela de uma pluralidade de interesses somente pode ocorrer no plano abstrato, ou seja, no plano normativo. Quando a realidade demonstrar a possibilidade de eventuais conflitos entre valores igualmente protegidos na Constituição, somente um juízo de proporcionalidade na interpretação do Direito, orientado pela vedação do excesso e da máxima efetividade dos direitos fundamentais é que poderá oferecer soluções plausíveis. No mesmo sentido, encontra-se o magistério de Alexandre de Moraes7, verbis:

Salienta-se, porém, que a doutrina constitucional passou a atenuar a vedação das provas ilícitas, visando corrigir distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Esta atenuação prevê, com base no Princípio da proporcionalidade, hipóteses em que as provas ilícitas, em caráter excepcional e em casos extremamente graves, poderão ser utilizadas, pois nenhuma liberdade pública é absoluta, havendo possibilidade, em casos delicados, em que se percebe que o direito tutelado é mais importante que o direito à intimidade, segredo, liberdade de comunicação, por exemplo, de permitir-se sua utilização. (...)

Na jurisprudência pátria, somente se aplica o princípio da proporcionalidade pró reo,

6 Ibid., p. 302.7 In Direito Constitucional. 17ª Ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 97.

entendendo-se que a ilicitude é eliminada por causas excludentes de ilicitude, em prol do princípio da inocência. Dessa forma, repta-se que a regra deve ser a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, que só excepcionalmente deverão ser admitidas em juízo, em respeito às liberdade públicas e ao princípio da dignidade humana na colheita de prova e na própria persecução penal do Estado.

No mesmo diapasão, assevera o Prof. Tourinho Filho8 que, embora a Constituição proíba as provas ilícitas, poderão ser elas excepcionalmente admitidas em atenção ao Princípio da Proporcionalidade, quando em benefício do réu, porque, entre a prova colhida com desrespeito a direitos fundamentais do cidadão e o direito de liberdade, este deve se sobrepor àquele. Noutras palavras, admite-se a mitigação da proibição de utilização de provas ilícitas no processo penal brasileiro quando presente uma hipótese de excludente de ilicitude.

Em razão disso, pode-se perceber a enorme dificuldade da doutrina para estabelecer as limitações da referida exceção. Isso porque não se pode, por exemplo, mesmo nas chamadas provas ilegítimas, simplesmente recorrer ao princípio da instrumentalidade das formas, contido no art. 563 do CPP, visando preservar a prova eventualmente obtida de forma ilícita, visto que presumível o prejuízo de qualquer procedimento ofensivo ao devido processo legal. Aliás, parece ter sido exatamente esse o norte no deslinde da controvérsia, como bem colocado por Andrey Borges de Mendonça9, verbis:

Quando o art. 157 (do CPP) fala em violação a normas constitucionais ou legais, não distingue se a norma legal é material ou processual. Qualquer violação ao devido processo legal, em síntese, conduz à ilicitude da prova (cf. MEndes, Gilmar Ferreira ET alii, Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva: 2007, p. 604-605, que sublinham: ‘A obtenção de prova sem a observância das garantias previstas na ordem constitucional ou em contrariedade ao disposto em normas fundamentais de procedimento configurará afronta ao princípio do devido processo legal). Concordamos com o autor, mas apenas com a seguinte ressalva: não é qualquer violação às normas processuais que transformará a prova em inadmissível. Somente quando forem

8 In TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 493.

9 Ibid., p. 171.

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desrespeitadas as disposições processuais que possam refletir no devido processo legal é que se poderá falar em inadmissibilidade da prova. Assim, uma prova testemunhal obtida em juízo sem a presença do defensor deverá ser considerada inadmissível (ilícita), por violação à ampla defesa e, portanto, ao devido processo legal. No entanto, o desrespeito a uma disposição de caráter nitidamente procedimental, que não interfira em qualquer garantia relacionada ao devido processo legal, não pode se reputada ilícita e, portanto, inadmissível (por exemplo, uma testemunha inquirida pelo sistema presidencialista e não diretamente pelas partes). Portanto, para as violações em que não houver lesão ao princípio do devido processo legal, o sistema deve continuar a ser o das nulidades. Caso contrário, ferindo-se o due process of Law, a prova deve ser considerada inadmissível.

Traçados, assim, os parâmetros hermenêuticos aplicáveis ao inciso LVI do art. 5º da Constituição, muitos dos quais já assentados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cumpre analisar as principais contribuições sobre o tema trazidas a lume pela Lei 11.690/2008.

4 – Principais aspectos da disciplina normativa introduzida pela Lei 11.690/2008

O mote da inadmissibilidade da utilização de provas ilicitamente obtidas no procedimento penal consiste, sem sombra de dúvidas, em controlar a regularidade da atividade estatal persecutória, inibindo, assim, a adoção de práticas ilegais por aqueles responsáveis pela sua produção. Evita-se, com isso, o sacrifício de valores tão caros ao Estado de Direito instaurado pela Constituição de 1988, garantindo-se efetivamente direitos ínsitos à dignidade da pessoa humana, tais como a proteção à intimidade/privacidade; à imagem; à inviolabilidade de domicílio etc.

Na busca de tal desiderato, a Lei 11.690/2008, ao conferir nova redação ao art. 157 do CPP, trouxe valiosas inovações acerca do tema, a começar pela redação de seu caput, o qual, conforme visto, passou a adotar explicitamente o Sistema da Inadmissibilidade das provas ilícitas, ampliando sobremaneira o seu conceito, a fim de abarcar qualquer violação do ordenamento jurídico, bem como determinando, de forma categórica, o desentranhamento de tais provas após o respectivo incidente previsto em seu § 3º.

Não menos relevantes são os §§ 2º e 3º do citado dispositivo, que buscam oferecer razoável disciplina normativa acerca da aceitabilidade, ou não, da prova ilícita, em razão da chamada prova ilícita por derivação, também conhecida por teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree), a qual, importada do Direito americano e somente aceita pela jurisprudência do STF após calorosos debates10, permite a comunicabilidade da ilicitude da prova originária a todas aquelas que dela derivam11. Assim, como regra geral, segundo referida doutrina, a prova ilícita contaminaria as demais provas dela decorrentes, com exceção das ressalvas hoje feitas pelo legislador ordinário nos mencionados parágrafos.

Conforme se pode ver, a complexidade da matéria exsurge do fato de a Constituição não prever, textualmente, que a prova derivada de outra ilícita seja, também, inadmitida. A inadmissibilidade da prova ilícita por derivação, conforme visto, decorre da citada teoria dos frutos da árvore envenenada, já cristalizada na jurisprudência pátria. Entretanto também não se encontra, no Texto constitucional, nenhuma previsão de exceção à admissibilidade da prova ilícita derivada, tal como o fez o legislador infraconstitucional brasileiro, nos referidos parágrafos do art. 157 do CPP. De qualquer forma, o fato é que o Direito não se restringe às normas, devendo seu intérprete ficar atento às demais manifestações jurídicas, em especial à jurisprudência e à doutrina. Nesse sentido, o Ministro Sepúlveda Pertence lança a seguinte advertência no HC 75.543/SP:

A doutrina da proscrição dos fruits of the poisonous tree é não apenas a orientação capaz de dar eficácia à proibição constitucional da admissão da prova ilícita, mas também a única que realiza o princípio de que, no Estado de Direito, não é possível sobrepor o interesse na apuração da verdade real à salvaguarda dos direitos, garantias e liberdades fundamentais, que tem seu pressuposto na exigência

10 Cf. Moraes, Alexandre de. ibid., p. 97 a 100. 11 Guilherme de Sousa NUCCI, in ibid., p. 353, comentando a teoria

da prova ilícita por derivação, explica que a maneira encontrada pela Justiça americana para dar fim aos abusos cometidos por policiais foi tornando ineficaz e inútil a prova produzida por mecanismos ilícitos, sejam elas primárias ou secundárias. Assim, a partir da decisão proferida no caso ‘Silverthone LumberCo. V. United States (251 US 385; 40 S. Ct. 182; 64 L. Ed. 319), de 1920, as Cortes passaram a excluir a prova derivadamente obtida a partir de práticas ilegais.

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da legitimidade jurídica da ação de toda autoridade pública.

Desse modo, mostra-se louvável a referida inovação legislativa, seja por normatizar entendimento jurisprudencial já assentado acerca do tema, seja por aceitar as provas derivadas das ilícitas, quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras ou quando obtidas de fontes independentes, assim consideradas aquelas que por si sós, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, sejam capazes de conduzir ao fato objeto da prova (§§ 1º e 2º do art. 157 do CPP). Nesse ponto, urge também recorremos à jurisprudência americana a fim de analisar quais os limites da prova aceita por derivação, vale dizer, para definir quando será possível afirmar que uma prova não se encontra contaminada por outra, afastando, assim, a aplicação da teoria da ilicitude por derivação.

Andrey Borges de Mendonça12 nos fornece três limites à teoria da prova ilícita por derivação, todos de criação jurisprudencial americana, a saber: a) limitação da fonte independente; b) limitação da descoberta inevitável e, finalmente, c) limitação da contaminação expurgada. Pela limitação da fonte independente, a ilicitude da prova ficaria afastada desde que demonstrado que a prova não decorre da prova ilícita originária, mas sim de fonte independente da prova ilícita, o que exclui o respectivo nexo causal. Foi a exceção prevista no § 1º do art. 157 do CPP.

Por sua vez, a limitação pela descoberta inevitável haverá de ser aplicável quando ficar demonstrado que a prova seria produzida de qualquer maneira, independentemente da prova ilícita originária. Assim, a indesejável contaminação da prova ilícita originária será afastada toda vez que os próprios trâmites da investigação ou da instrução criminal forem capazes de conduzir ao fato, objeto da prova, por meio legítimo, independentemente daquele outro viciado. Parece ser a hipótese disciplinada pelo § 2º do art. 157 do CPP, embora o legislador tenha externado sua pretensão de descrever a fonte independente. Referido equívoco técnico, aliás, restou devidamente registrado pelo Prof. Eugênio Pacelli de Oliveira, conforme se pode ver à página 310 de sua referida obra doutrinária.

12 Ibid., p. 173 usque 177.

Já a limitação da contaminação expurgada ocorreria naquelas hipóteses em que um ato posterior, totalmente independente, viesse a retirar a ilicitude originária. Embora não acolhida expressamente pelo legislador brasileiro, eventual hipótese em concreto poderá ser solucionada por uma das exceções já vistas ou, se for o caso, aplicada a regra geral prevista no próprio caput do citado art. 157 do CPP, a depender da gravidade do vício analisado, visto que, se ofensivo ao Devido Processo Legal, aplicar-se-á o Sistema da Inadmissibilidade, do contrário, se meramente ofensivo às normas procedimentais, adotar-se-á o Sistema das Nulidades.

Teoria interessante informada pelo mesmo autor13 refere-se à exceção da boa-fé, reconhecida pela Suprema Corte americana no caso US v. Leon, 1984, segundo a qual, como a vedação às provas ilícitas visa desestimular violações aos direitos fundamentais, não haveria ilicitude quando, com base em um mandado de busca e apreensão ilegal (por incompetência do juiz, por exemplo), o agente, desconhecendo a ilicitude de tal ordem e existindo motivos razoáveis para crer na sua validade, obtém inúmeras provas por meio do mandado, na crença de que estaria agindo dentro da legalidade. Prossegue aquele autor, citando Flávio Gomes: ... esta teoria não era e continua não sendo admitida pelo nosso ordenamento. Tudo isso a demonstrar a riqueza da controvérsia, a permitir inúmeros desdobramentos acerca da aceitação, ou rejeição, da prova ilícita por derivação.

Conforme já observado por Flávio Gomes14: Parece que a intenção do legislador foi de incorporar, ao texto do Código, posicionamentos solidificados na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (HC 846.579/MS), segundo o qual se a prova ilícita por derivação não é a única produzida nos autos, a condenação do agente deve ser mantida. Em outras palavras: se a condenação vem fundada em outros elementos de prova, totalmente desvinculados da prova ilícita original, não será esta, tomada isoladamente, que terá o condão de ensejar a absolvição do réu. Da mesma forma, Eugênio Pacelli de Oliveira15 ensina que: ... nem sempre que estivermos diante de uma prova obtida ilicitamente teremos como

13 Ibid., p. 177, in nota 39.14 In Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da

Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 286.15 Ibid., p. 311.

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conseqüência a inadmissibilidade de todas aquelas outras a ela subseqüentes. Será preciso, no exame cuidadoso de cada situação concreta, avaliar a eventual derivação da ilicitude, (...) posto que, em tema de produção de provas e, assim, em produção ilícita de provas, o que se revela e o que se quer efetivamente proteger, na verdade, não é unicamente a ética do procedimento, mas, sobretudo, a violação a direitos fundamentais, em regra, mais expostos a tais diligências investigativas.

Por fim, cumpre tecer algumas considerações acerca do incidente processual previsto no § 3º do art. 157 do CPP. Segundo ali disposto, tanto as provas ilícitas quanto aquelas tidas como ilícitas por derivação deverão ser desentranhadas do processo por determinação judicial, para serem posteriormente inutilizadas, logo após preclusa aquela decisão. Observa-se que referido incidente tem por consequência a retirada daquelas provas ilícitas dos autos, independentemente da demonstração de qualquer prejuízo, que, na dicção de Andrey Borges de Mendonça16, é presumido de maneira absoluta pelo legislador. Conforme bem consignado por Luiz Flavio Gomes17:

O desentranhamento dos autos tem por objetivo sepultar, de vez, qualquer possibilidade de consulta a tal prova. Se ela foi reconhecida como ilícita, assim declarada por decisão judicial transita em julgado, não há qualquer razão lógica para sua manutenção no processo. Evita-se, assim, que a parte interessada se sinta tentada a invocá-la e, pior, que as instâncias superiores eventualmente se impressionem com seu teor. Melhor seu desentranhamento e posterior inutilização.

Vê-se, portanto, que o legislador normatizou o procedimento já anteriormente agasalhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal18.

Questão processual outra muito interessante refere-se ao recurso cabível contra aquela decisão, pois, diante da omissão do legislador, variadas manifestações doutrinárias foram lançadas acerca do tema. Andrey Borges de Mendonça19, por exemplo, após registrar que o projeto originário fazia previsão ao agravo de instrumento, propõe, por meio de uma interpretação

16 Ibid., p. 178.17 Ibid., Comentários às reformas... p. 288.18 Id., cf. Emb.Decl. 731-DF, Rel. Néri da Silveira, DJ 07.06.1996, p.

19847. 19 Ibid., p. 178.

extensiva ao inciso XIII do art. 581 do CPP, o cabimento de recurso em sentido estrito contra decisão que anular o processo da instrução criminal, no todo ou em parte. Sugere, ainda, da decisão que não considere a prova ilícita, o manejo de habeas corpus ou, na hipótese de o magistrado determinar a destruição da prova declarada ilícita antes da preclusão da matéria, o mandado de segurança, inclusive com pedido de liminar.

Por sua vez, Guilherme Nucci20 propõe a apelação (art. 593, II, do CPP) por entender tratar-se de uma decisão com força de definitiva, que põe fim a uma controvérsia. Já Eugênio Pacelli de Oliveira21 admite o recurso em sentido estrito apenas se aquele incidente ocorrer antes da audiência; caso contrário, sugere a apelação. Na hipótese do reconhecimento da licitude da prova, entende ainda Eugênio Pacelli ser irrecorrível essa decisão, remetendo eventual reapreciação da matéria por ocasião da apelação. Solução mais pragmática encontra-se formulada por Ivan Luís Marques da Silva22, nestes termos: Contra a decisão que determina o desentranhamento da prova considerada ilícita não há previsão de recurso. Deve o acusado utilizar o habeas corpus e a acusação o mandado de segurança.

5 – Da descontaminação do julgado

Outra questão de interesse diz respeito ao instituto denominado pelo Prof. Marinoni23 de: teoria da descontaminação do julgado, desenvolvida com o escopo de se evitar que venha a julgar o caso o magistrado que tiver tomado conhecimento da prova ilícita, pois não teria a necessária isenção para analisá-lo com a imparcialidade devida. Tal instituto encontrava-se previsto no § 4º do art. 157 do CPP, pela nova redação dada pela Lei 11.690/2008, tendo sido, porém, vetado pelo Presidente da República sob o argumento básico de que, ao impedir de sentenciar aquele juiz que tivesse tomado conhecimento da prova obtida ilicitamente provocaria transtornos razoáveis ao andamento processual, comprometendo, desse modo,

20 Ibid., p. 362.21 Ibid., p. 296.22 in Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2008, p. 67.23 Apud Andrey Borges de MENDONÇA, ibid. p. 179.

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a sua celeridade ao sempre obrigar a substituição do julgador.

O citado veto foi muito criticado pela doutrina especializada, porquanto deixou a questão sem disciplinamento legislativo, restando apenas ao juiz, diante de cada caso concreto, avaliar a própria condição de ânimo para formação de sua convicção após ter tido contato com a prova ilícita, podendo invocar, se for o caso, motivo de foro íntimo para se declarar suspeito para o julgamento da causa. Luiz Flávio Gomes24, por exemplo, critica veementemente as razões utilizadas pelo aludido veto, aduzindo que:

O juiz é alguém que julga com a emoção e a sentença é o reflexo desse complexo ‘sentire’. Consequentemente, em muitos casos, a decisão deve ser anulada, ainda que sequer mencione a prova ilícita, pois não há nenhuma garantia de que a convicção foi formada (exclusivamente) a partir do material probatório válido. A garantia da jurisdição vai muito além da mera presença de um juiz (natural, imparcial, etc.): ela está relacionada com a qualidade da jurisdição A garantia de que alguém será julgado somente a partir da prova judicializada (nada de condenações com base nos atos de investigação do inquérito policial) e com plena observância de todas as regras do devido processo penal.

Daí porque não basta anular o processo e desentranhar a prova ilícita: deve-se substituir o julgador do processo, na medida em que sua permanência representa imenso prejuízo, que decorre dos pré-juízos (sequer é pré-julgamento, mas julgamento completo) que ele fez.

Não é crível de se pensar que um mesmo juiz, após julgar e ter sua sentença anulada pela ilicitude da prova (que ele admitiu e, muitas vezes até valorou), possa julgar novamente o mesmo caso com imparcialidade e independência.

Em que pese a razoabilidade de toda argumentação acima desenvolvida, é fato que a redação do dispositivo vetado25, em contrapartida, poderia, em muitos casos, inviabilizar a tão propalada celeridade processual, tão exigida do Poder Judiciário nos dias atuais. Note-se que ele é categórico ao sempre determinar a substituição do magistrado, independentemente do grau de conhecimento que porventura pudesse ter tido daquela

24 In Prova Ilícita, Juiz contaminado e o Direito Penal do inimigo. Disponível em http://www.ifg.com.br, em 17.06.2008.

25 Cf: § 4º - O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão.

prova ilícita, olvidando-se, talvez, que a formação do convencimento do julgador só pode se fazer de forma motivada, tal como exige a Constituição (cf. art. 93, IX). Em corroboração a tal entendimento, urge transcrever os pertinentes comentários de Andrey Borges de Mendonça26 acerca do tema, verbis:

O § 4º, segundo dissemos, acabou por ser vetado. Entendemos que o dispositivo, tal qual fora redigido, traria problemas sérios à administração da justiça e, por isto, concordamos com o veto. Veja que, pelo dispositivo vetado, se o juiz tivesse tomado conhecimento da prova ilícita e, desde logo, indeferisse a sua juntada, já estaria impedido de julgar. Da mesma forma, o problema se agravaria nos Tribunais: se um desembargador determinasse o desentranhamento da prova, ficaria também impedido de julgar? E, posteriormente, no STF, se algum Ministro tomasse conhecimento da prova ilícita, não poderia mais julgar?

A lei deveria ter tratado apenas daquela hipótese em que o magistrado profere sentença, levando em consideração a prova produzida ilicitamente, e, em razão de decisão posterior de um Tribunal, a prova é reputada ilícita, anulando-se a sentença. Poderia o mesmo juiz que teve a sentença anulada julgar novamente, mesmo sem a prova ilícita nos autos? Neste contexto, realmente, entendemos que seria necessário que outro juiz proferisse a sentença, para evitar que o segundo julgamento fosse ‘contaminado’ pelo primeiro. E, infelizmente, esta situação não encontra solução no ordenamento atual, a não ser que o próprio magistrado se declare suspeito por motivo de foro íntimo.

Seja como for, na falta de disciplina normativa própria, a questão se volta para o próprio juiz e seu Tribunal revisor, os quais deverão apurar, em cada caso concreto, a conveniência, ou não, de se manter para o julgamento final o mesmo magistrado que eventualmente tenha tido contado com a prova colhida de forma ilícita.

Considerações finais

A problemática da ilicitude dos meios de prova é bastante instigante, sobretudo no campo do Direito Processual Penal brasileiro, cuja disciplina encontra-se disposta em diversos diplomas normativos, a começar pelo próprio Texto Constitucional.

26 Ibid., p. 179/180.

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Se, por um lado, confere-se ao Estado a persecução penal, por outro, impõem-se limites mediante os diversos direitos e garantias individuais, a lhe exigirem, na busca da verdade real, um procedimento eticamente comprometido com o Devido Processo Legal.

A Constituição brasileira, em seu art. 5º, inciso LVI, repudia veementemente a prova obtida por meios ilícitos, retirando-lhe qualquer eficácia probante no processo, o que a torna destituída de qualquer valor: um verdadeiro nada jurídico.

Diante das importantes inovações levadas a efeito pela Lei 11.690/2008, a ilicitude da prova passa a ser vista como aquela que desrespeita o ordenamento jurídico como um todo, seja a norma violada de natureza instrumental ou material.

Disciplina-se também a chamada prova ilícita por derivação, reconhecendo-se explicitamente a ponderação de todos os valores que envolvem o tema. Prevê-se, assim, um incidente no qual o magistrado deverá aferir eventual relação causal entre umas e outras, a fim de declarar a sua admissibilidade, ou não, na instrução da causa.

Adota-se, portanto, o Sistema da Inadmissibilidade, reservando o Sistema das Nulidades para aqueles vícios inofensivos ao Devido Processo Legal.

Daí porque a prova considerada ilícita deverá ser desentranhada dos autos e inutilizada, não podendo permanecer em cartório ou reutilizada para nenhum outro fim.

Trata-se de uma medida radical, é verdade, mas parece ter sido conscientemente adotada pelo legislador pátrio para coibir as irregularidades mais graves eventualmente perpetradas pelos agentes públicos na persecução penal.

Com o veto ao § 4º do art. 157 do CPP, a jurisprudência de nossos Tribunais deverá ser chamada a enfrentar a questão envolvendo a teoria da descontaminação do julgado, a fim de disciplinar a situação do juiz que, já tendo tido contato com a prova viciada, venha posteriormente a julgar a causa, o que torna incrivelmente atual a observação de Francisco Campos acerca das provas, lançada na Exposição de Motivos do CPP, de 1941, verbis:

O juiz criminal é, assim, restituído à sua própria consciência. Nunca é demais, porém, advertir que livre convencimento não quer dizer puro capricho

de opinião ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não está ele dispensado de motivar a sua sentença. E precisamente nisto reside a suficiente garantia do direito das partes e do interesse social.

Referências bibliográficas

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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª Ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MOURA, Maria Tereza Rocha de Assis. A Prova por Indícios no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.

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SILVA, Ivan Luís Marques da. Reforma Processual Penal de 2008. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 21, n. 6/7, jun./jul. 2009