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  • 7/24/2019 Artigo Principios A TENSO ENTRE CAPITALISMO E DEMOCRACIA EM HABERMAS: DO PS-GUERRA AOS DIAS DE HOJE

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    ATENSO ENTRE CAPITALISMO E DEMOCRACIA EMHABERMAS:DO PS-GUERRA AOS DIAS DE HOJE

    Leonardo da Hora PereiraDoutorando em Filosofia

    Universit Paris Ouest Nanterre La Dfense

    Bolsista CAPES

    Natal, v. 22, n. 38

    Maio-Ago. 2015, p. 279-309

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    Princpios:Revista de Filosofia, Natal, v. 22, n. 38, maio-ago. 2015.ISSN1983-2109

    Resumo: O objetivo desse artigo o de compreender a evoluo dodiagnstico do capitalismo tardio ao longo da trajetria intelectual de

    Habermas. O nosso interesse o de investigar se h mudanas significa-tivas no modo pelo qual Habermas concebe a relao entre capitalismotardio e democracia efetiva. Como hiptese geral, defenderemos a ideiade que h ao menos uma grande ruptura no modelo crtico habermasi-ano, entre o fim dos anos 70 e incio dos anos 80. Tal ruptura pode serresumida,grosso modo, pela ideia segundo a qual, pelo menos atProble-mas de Legitimao no Capitalismo Tardio, obra de 1973, capitalismo edemocracia efetiva no eram vistos como compatveis. Por outro lado, apartir da Teoria da Ao Comunicativa, publicada em 1981, ambos passam

    a poder conviver, apesar das tenses e mediante um novo equilbrio depoderes. Finalmente, iremos ver como Habermas concebe esta tensoentre capitalismo e democracia hoje, a partir de seu debate recente com osocilogo alemo Wolfgang Streeck, notadamente tendo em vista a criseda Unio Europeia.

    Palavras-chave: Habermas; Capitalismo; Democracia; Teoria Crtica.

    Abstract: The aim of this article is to understand the evolution of thediagnosis of late capitalism along the intellectual history of Habermas.Our interest is to investigate if there are significant changes in the wayHabermas conceives the relationship between late capitalism andeffective democracy. As a hypothesis, I will defend the idea that there isat least a major disruption in Habermass critical model, between the late70s and early 80s. Such disruption can be summarized roughly by theidea that, at least untilLegitimation Crisis(1973), capitalism and effectivedemocracy were not seen as compatible. On the other hand, since TheTheory of Communicative Action, published in 1981, both can now live,despite the tensions and through a new balance of power. Finally, we willsee how Habermas conceives this tension between capitalism anddemocracy today, through his recent debate with the German sociologistWolfgang Streeck, especially in view of the EU crisis.

    Keywords: Habermas; Capitalism; Democracy; Critical Theory.

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    Princpios:Revista de Filosofia, Natal, v. 22, n. 38, maio-ago. 2015.ISSN1983-2109

    IntroduoNos tempos atuais vivenciamos uma coincidncia histrica

    bastante oportuna naquilo que diz respeito trajetria intelectualde Habermas. Pois nos ltimos anos, luz da crise econmica epoltica europeia, ele retornou discusso de uma temtica que opersegue desde o seu primeiro livro, publicado no j longnquo anode 1961, Student und Politik (O Estudante e a Poltica). Falamosaqui da tenso que se estabelece entre o capitalismo e a democra-cia no quadro das sociedades modernas avanadas. Dada aatualidade deste tema, acreditamos que o momento muito apro-

    priado para uma introduo ao pensamento do autor que elejaessa temtica como fio condutor. Evidentemente, no teremoscomo tratar em detalhe de cada obra importante de Habermas.Entretanto, nos parece que o mais importante em filosofia saberdeslindar com preciso o problema ou os principais problemas apartir dos quais cada filsofo constitui sua experincia ou seu pen-samento.

    No entanto, ainda que tenhamos falado antes de coincidncia,

    acreditamos que no fundo esta temtica, que agora retorna aocentro das preocupaes do filosofo alemo, uma temticaestrutural no seu pensamento, que volta e meia vem tona, aindaque isso nem sempre seja ressaltado pelos comentadores.

    Alis, digno de nota que essa temtica mais diretamentevinculada a aspectos econmicos e sociais costuma ser negligen-ciada em favor de temas como esfera pblica, democracia delibe-rativa, racionalidade comunicativa ou tica do discurso, os quais

    so obviamente importantes dentro do modelo habermasiano, masque precisam ser compreendidos tendo em conta o seu contextoeconmico-social adequado. Isto , quando se trata da reiteraodos marcos distintivos de sua experincia intelectual, importanteentender por que tais temas, antes quase que completamenteausentes do escopo da Teoria Crtica, assumem um papel central. Epara isso seja talvez produtivo retomar o diagnstico habermasi-ano do capitalismo tardio.

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    interessante que a ideia de que o tema da democracia praticamente onipresente na obra de Jrgen Habermas no parece

    suscitar muita resistncia. De fato, as suas anlises acerca da noode esfera pblica, assim como seus trabalhos em torno de umatica do discurso e de uma democracia deliberativa j se tornaramclssicos no campo da tica e filosofia poltica contempornea. Noentanto, as pesquisas sobre este tema maior do pensamento dofilsofo alemo costumam girar em torno de elementos denatureza mais normativa. assim que diversas anlises sobre apossibilidade de uma esfera pblica autnoma, sobre o carter

    procedimental que os processos democrticos de formao davontade poltica deveriam assumir, sobre uma teoria discursiva dodireito, sobre a discusso em torno do princpio de universalizaoou sobre as relaes entre pragmtica formal e racionalidadecomunicativa ganham relevncia. No entanto, se adotarmos ape-nas essa perspectiva de anlise em relao ao pensamento haber-masiano, tudo se passa como se os seus esforos tericos notivessem nada a dizer acerca das dinmicas efetivas e atuais que

    marcam nossas sociedades contemporneas. Com efeito, se, aolongo de sua trajetria intelectual, Habermas s tivesse se preocu-pado com questes puramente tericas e abstratas, ou at mesmocom uma tica e com uma teoria normativa que ignorasse as con-dicionantes estruturais de sua aplicao, ele no poderia serconsiderado como o maior representante vivo de uma corrente depensamento conhecida como teoria crtica da sociedade1. Se qui-sermos fazer jus sua experincia intelectual, bem como cor-

    rente da qual ele provm, no podemos deixar de considerar as-pectos de seu pensamento que no se reduzem ao mbitonormativo ou puramente filosfico. No se pode esquecer queHabermas tambm um importante terico das sociedades capita-listas avanadas.

    1

    Para uma definio desta tradio terica, ver Nobre (2004).

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    Sendo assim, no iremos analisar diretamente a teoria haberma-siana da democracia, o que nos obriga a excluir consideraes

    detalhadas acerca de sua concepo de esfera pblica ou de suaviso referente ao procedimento de deliberao. Concentrar-nos-emos, antes, em seus estudos acerca das crises e patologias engen-dradas pelo capitalismo tardio, bem como nos potenciais de resis-tncia e protesto que da surgem e apontam para uma aberturademocrtica no contexto dos processos de formao da vontadepoltica. Ao invs de tratar da teoria da democracia, tal empreendi-mento poderia ser visto como uma anlise da teoria habermasiana

    da democratizao. Em todo caso, a questo do diagnstico docapitalismo tardio assume aqui importncia central, uma vez que acompreenso dos componentes estruturais e das dinmicas da fasecapitalista atual fundamental para entender quais tipos deobstculos e de potenciais de emancipao esse tipo de organiza-o social oferece.

    Por isso, uma das principais tarefas desse artigo a de compre-ender a evoluodo diagnstico do capitalismo tardio ao longo da

    trajetria intelectual de Habermas. O nosso interesse o deinvestigar se h mudanassignificativas no modo pelo qual Haber-mas concebe a relao entre capitalismo tardio e democracia efeti-va. Consequentemente, a estratgia hermenutica adotada aquiser a de um estudo, at certo ponto, cronolgico, ainda que noexaustivo. Isso significa que selecionaremos algumas obras de refe-rncia, nas quais Habermas desenvolve mais ou menos detidamen-te um diagnstico do capitalismo tardio, o que j inclui a reflexo

    sobre a relao que nos interessa aqui. Com isso, evitaremos consi-derar o pensamento de Habermas em bloco, como se se tratassede algo nico e coerente, cujo princpio de inteligibilidade seriafornecido pela sua ltima grande obra, a partir da qual tudo seriaretrospectivamente iluminado e esclarecido. Pelo contrrio, sojustamente as eventuais rupturas e guinadas que mais nos interes-sam.

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    Como hiptese geral, defenderemos a ideia de que h ao menosuma grande ruptura no modelo crtico habermasiano, entre o fim

    dos anos 70 e incio dos anos 80. Tal ruptura pode ser resumida,grosso modo, pela ideia segundo a qual, pelo menos at Problemasde Legitimao no Capitalismo Tardio, obra de 1973, capitalismo edemocracia efetiva no eram vistos como compatveis. Por outrolado, a partir da Teoria da Ao Comunicativa, publicada em 1981,ambos passam a poder conviver, apesar das tenses e mediante umnovo equilbrio de poderes. No entanto, se h pontos de mudanae at mesmo de ruptura entre estes dois diagnsticos, deve-se

    ressaltar que tambm h linhas de continuidade, as quais seroindicadas ao longo do texto. Finalmente, iremos ver como Haber-mas concebe esta tenso entre capitalismo e democracia hoje, apartir de seu debate recente com o socilogo alemo WolfgangStreeck, notadamente tendo em vista a crise da Unio Europeia.Para concluir, faremos algumas consideraes crticas acerca daposi-o tardia de Habermas e discutiremos algumas alternativaspara a Teoria Crtica no comeo deste sculo.

    Capitalismo contra democracia:a fase pr-Teoria da Ao Comunicativa

    Durante o perodo que aqui chamamos de fase pr-Teoria daao comunicativa, temos uma tentativa clara de articular progns-ticos acerca da democratizao da formao da vontade polticacom uma crtica do capitalismo. interessante notar como h emHabermas um realinhamento da problemtica do capitalismo em

    relao posio marxista, na medida em que esta ltima tradi-cionalmente mais centrada na crtica da explorao do trabalho enas crises econmicas. Para entender esse realinhamento, precisoprimeiro entender em que sentido o capitalismo mudou no sculoXX. Isto , quais os tipos de transformao que marcam a passa-gem para o capitalismo tardio ou organizado do perodo ps-guer-ra. Segundo Habermas, a expresso capitalismo organizado(organisierter Kapitalismus) ou regulado pelo Estado (staatlich

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    geregelter) diz respeito a duas classes de fenmenos: de um lado,ao processo de concentrao das empresas ( apario das

    corporaes, das sociedades nacionais e multinacionais) e orga-nizao dos mercados de trabalho, de capitais e de bens; de outrolado, o fato de que o Estado intervencionista se imiscui nas lacunasfuncionais do mercado (Cf. Habermas, 1973, p. 53).

    No campo econmico, desenvolve-se um setor privado que determinado pelas estratgias do mercado de oligoplio o setormonopolista. Neste, o que mais evidente sua capacidade deexpandir continuamente as foras produtivas por meio da raciona-

    lizao dos salrios, dos preos, dos lucros, do consumo e da ino-vao tcnica (Cf. Keane, 1984, p. 80). Isso traz uma importanteconsequncia. Enquanto as anlises de Marx sobre a queda tenden-cial da taxa de lucro pressupunham um capitalismo concorrencial eanrquico, a produo monopolista tende a complicar essa equa-o, pois ela traz uma reorganizao e segmentao parcial daantiga sociedade civil. Por exemplo, a determinao dos preos damo-de-obra passam a ser negociados junto burocracia, por

    oligoplios e pelos sindicatos, e no mais determinados por meca-nismos mercadolgicos cegos; o que abre a possibilidade para umcompromisso de classe. A respeito do setor pblico, tem-se grandesempresas cuja maneira de tomar decises largamente indepen-dente do mercado.

    No mbito estatal, temos novos elementos responsveis peloquestionamento dos prognsticos de crise da anlise marxista. Oaparelho de Estado passa a satisfazer duas ordens de imperativos

    do sistema econmico. De um lado, ele regula o ciclo econmicoem seu conjunto graas planificao global. De outro lado, elemelhora as condies de explorao do capital acumulado (Cf.Habermas, 1973, p. 83). As principais medidas globais da polticamonetria e fiscal destinadas a regular os ciclos econmicos so asseguintes: a alocao de crdito, as garantias de preo, as subven-es, os emprstimos pblicos aprovados em funo da polticaconjuntural e a poltica de emprego.

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    Se a planificao global se limita a corrigir as disfunes domercado, o Estado substitui este ltimo quando ele cria ou melho-

    ra certas condies de explorao do capital acumulado. Assim,entre outras coisas, ele refora a competitividade nacional organi-zando blocos econmicos supranacionais, desenvolve o consumopblico improdutivo, conduz o capital em direo a setores priva-dos negligenciados pelo mercado, melhora a infra-estrutura mate-rial (as comunicaes e os transportes, o sistema escolar, a sade,os centros de lazer, a planificao urbana, as moradias etc.),aumenta a fora produtiva do trabalho humano (programas de

    escolarizao) e enfim atenua as consequncias materiais e sociaisderivadas da apropriao privada (ajuda aos desempregados, segu-ridade social, campanhas ecolgicas). Tais atividades so reaess tendncias de crise dos antigos mecanismos de mercado e fun-cionam, portanto, como estratgias de gesto da crise, atravs dasquais o Estado responde a eventuais bloqueios no processo de acu-mulao (Cf. Keane, 1984, p.85).

    O Estado do capitalismo tardio se move, portanto, entre as

    lacunas funcionais do mercado, intervm no processo deacumulao e compensa as consequncias politicamente insuport-veis deste ltimo, terminando por afetar o princpio social de orga-nizao que repousa sobre a institucionalizao de um mercado detrabalho no organizado. O resultado que Estado e sociedadeno podem mais ser vistos a partir da metfora da base/superes-trura, pois as relaes capitalistas da produo mercantil foramrepolitizadas (Cf. Habermas, 1973, p. 83).

    Este ltimo processo gera um fenmeno muito importante,crucial para a compreenso da teoria habermasiana da crise, qualseja, a necessidade crescente de legitimao do sistema poltico.Isso porque as fraquezas funcionais do mercado e suas consequn-cias revelam as disfunes deste mecanismo de regulao e, porcausa da interveno estatal, estas fraquezas fazem tambm aideologia burguesa da troca justa entrar em colapso. Por isso, arepolitizao das relaes de produo cria uma necessidade extra

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    de legitimao. Se o Estado no se contenta mais em garantir ascondies gerais da produo e toma iniciativas intervindo neste

    processo, ele deve ser legitimado da mesma forma que aconteciacom o Estado pr-capitalista. Mas no mais possvel apelar paraas reservas de tradio j desgastadas ao longo da expanso docapitalismo. Ademais, os valores universalistas da ideologia bur-guesa tornaram universais os direitos cvicos, sobretudo o direitode participar das eleies. Desta forma, a legitimidade deve serassegurada com base no sufrgio universal no quadro de umademocracia formal. Mas se a participao dos cidados nos

    processos polticos de formao da vontade (democracia efetiva)deveria trazer conscincia a contradio entre a produo admi-nistrativamente socializadae a apropriaoprivadada mais-valia, osubsistema administrativo deve ser suficientemente autnomo emrelao formao da vontade legitimadora a fim de isentar essacontradio da tematizao pblica.

    Chega-se ento ao paradoxo tpico do capitalismo tardio que setorna o alvo prtico da nova Teoria Crtica:

    A transformao estrutural da esfera pblica burguesa gera, para asinstituies e procedimentos da democracia formal, condies de aplica-o nas quais os cidados assumem no interior de uma sociedade nelamesma polticao estatuto de cidados passivos com o direito de negarsuas aclamaes. (Habermas, 1973, p. 55)

    Isto , apesar da repolitizao da sociedade e do desabrochar devalores universa-listas em uma democracia (formal), os cidados

    permanecem passivos e aceitam a distribuio desigual dos bensproduzidos socialmente. Assim, a deciso autnoma e privada quediz respeito aos investimentos estatais encontra o seu complemen-to necessrio na despolitizao e no privatismo cvico dos cida-dos. Ou seja, a atenuao da efetiva participao poltica dasmassas no fortuita; a despolitizao um imperativo destaconfigurao social, j que as prioridades das polticas estataisconcernentes apropriao privada da produo socializada de-

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    vem ser retiradas da discusso pblica genuna (Cf. Keane, 1984,p. 89). Sobre este ponto, um socilogo prximo a Habermas, Claus

    Offe, sublinha que o problema estrutural do Estado do capitalismotardio reside no fato de que a lealdade das massas se torna umproblema permanente, na medida em que este Estado deve, aomesmo tempo, pr em prtica o seu carter de classe e obscurecereste vis. Sob a presso deste problema estrutural, as elites polti-cas acabam por desencorajar uma vida pblica autnoma (Cf. Offe,1975, p. 127). doravante a esta situao, e no mais prioritaria-mente ao processo de explorao e de pauperizao do proletaria-

    do, que a Teoria Crtica deve conceber uma soluo.A concluso de Habermas a de que, no caso de uma opiniopblica estruturalmente despolitizada, o processo de legitimaose reduz a necessidades residuais. Sobretudo, temos a orientaodo interesse dos cidados pelo consumo, por lazeres e pela car-reira. Como consequncia, os cidados desenvolvem a expectativade obter compensaes apropriadas (dinheiro, tempo livre e segu-rana)2. Um programa de substitutivos ento elaborado pelo

    Estado social.Apesar das semelhanas, podemos identificar diferenasimportantes entre as obras pertencentes a este perodo. No caso doartigo programtico de 1968, Tcnica e Cincia como Ideologia,o que aparece no primeiro plano uma teoria da evoluo social eda racionalizao. Aqui, Habermas introduz um expediente decrtica da razo que ser retomado e aprofundado mais adiante, na

    2O privatismo dos cidados corresponde ao interesse em prestaes do siste-ma administrativo nos domnios da regulao e da seguridade social, comuma participao no processo de legitimao limitada s ocasies previstas demodo institucional (sufrgio universal, por exemplo), o que significa uma opi-nio pblica despolitizada. De outro lado, a atitude privada na vida familiar eprofissional se identifica com uma vida orientada para a famlia (lazeres econsumo) e para a carreira profissional (concorrncia pelo status social), oque corresponde s estruturas de um sistema de emprego e de educao regu-lado pela concorrncia entre os desempenhos individuais. Cf. Habermas,

    1973, p. 106.

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    sua Teoria da Ao Comunicativa (1981). assim que em 1968, noquadro mais amplo de sua teoria da evoluo social, que est

    baseada na distino entre trabalho e interao, Habermas intro-duz a ideia de uma dupla racionalizao (Cf. Habermas, 1968, p.98).

    Por outro lado, em Problemas de legitimao no capitalismo tar-dio (Legitimationsprobleme im Sptkapitalismus), Habermas reto-ma, com algumas ressalvas, o expediente marxista de uma teoriadas crisesdo capitalismo (Cf. Benhabib, 1986, p. 229), isto , a vin-culao entre crtica e crise reatualizada. Assim, sem abandonar

    a teoria da evoluo social e a teoria da modernidade e daracionalizao, o que aparece em primeiro plano a ideia de que ocapitalismo passvel de encontrar limites internos sua expanso.Em outras palavras, em 1973, Habermas vincula a sua crtica elaborao de teoremas de crisespor meio de um modelo descri-tivo do capitalismo tardio, atualizando, em certo sentido, o proce-dimento marxista desenvolvido em O Capital (Cf. McCarthy, 1981,p. 358). Desta forma, Habermas se pergunta sobre as tendncias s

    crises imanentesao capitalismo tardio. Isto o que talvez marque asingularidade da obra de 1973 em relao ao que foi feito antes eao que vir depois na produo de Habermas.

    Tais crises, entendidas num sentido mais amplo que aquele deMarx, no se limitam mais dimenso econmica. Na verdade,como o prprio titulo da obra indica, as crises mais importantes selocalizariam no mbito scio-cultural, crises de legitimao e demotivao.

    A contradio fundamental do capitalismo, a saber, o fato deuma produo social voltada para interesses no universalizveis, deslocada para a administrao. Agora, o que preciso justificar a cobrana fiscal diferente segundo as camadas sociais e oemprego particularista dos magros recursos que uma poltica deafastamento das crises utiliza e esgota. Disso resulta a necessidadefuncional de tornar o tanto quanto possvel o sistema administra-tivo independente do sistema de legitimao. Isso explica a neces-

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    sidade de manter o privatismo dos cidados enquanto um recursode motivao fundamental da ao capitalista.

    A questo que as tradies culturais tm suas prprias condi-es de reproduo. Estas s continuam vivas na medida em que sedesenvolvem de forma espontnea ou pseudonatural, garantindo acontinuidade de uma histria por intermdio da qual os indivduose os grupos podem se identificar com eles mesmos e entre eles.Ora, segundo Habermas a expanso da atividade estatal tem porconsequncia indireta um aumento desmedido da necessidade delegitimao, uma vez que evidncias culturais que eram at aqui

    condies marginais de aplicao do sistema poltico entram nodomnio da planificao da administrao (Habermas, 1973, p.101). Desde ento so tematizadas e questionadas tradies queeram isentas dos programas pblicos e das discusses de ordemprtica. A planificao da educao, a planificao urbana, aquelado sistema de sade e da famlia exigem uma justificao universal(j que o Estado representa em tese todos os cidados) paraesferas caracterizadas precisamente por seu poder de auto-justifi-

    cao. Isto gera a tomada de conscincia do carter contingenteno apenas dos contedos da tradio, mas tambm das tcnicasde transmisso, isto , de socializao3. Assim, em todos os planos,a planificao administrativa implica involuntariamente uma per-turbao e uma publicidade que enfraquecem o potencial dejustificao de tradies que perderam seu carter espontneo4. Deacordo com a grande aposta do nosso autor,

    3Enquanto que a administao escolar de antes s tinha que decodificar umCnon que se tinha firmado de forma espontnea, a planificao do currculo,por exemplo, repousa sobre a premissa de que os modelos de tradio poderi-am ser diferentes. Cf. Habermas, 1973, p. 102.4Ou, como atesta Thomas McCarthy: A atividade expandida do Estado pro -duz um aumento na necessidade de legitimao, por justificao da interven-o do governo em novas reas da vida. Ao mesmo tempo, o prprio processode submeter setores da vida social ao planejamento administrativo produz o

    efeito colateral no intencionalde minar legitimaes tradicionais [...]. E esse

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    [...] uma vez que foi destrudo seu carter indiscutvel, as pretenses devalidade s podem ser estabilizadas por discusses. A desestabilizaodas evidncias culturais favorece, portanto, a politizao de domnios da

    vida cotidiana que podiam at aqui ser confiados vida privada.Mas istocomporta um perigo para o privatismo dos cidados, assegurado de manei-

    ra informal pelas estruturas da opinio publica.(Habermas, 1973, p. 102)

    Ele identifica nos esforos de participao e na apario demodelos diferentes, em particular nos domnios culturais como aescola e a universidade, a imprensa, a Igreja, o teatro, a editorasetc., os signos desta evoluo.

    J os argumentos a favor de uma crise de motivao dizemrespeito a mudanas no prprio sistema scio-cultural, que acabampor ameaar a complementaridade que existe entre os requerimen-tos do aparato estatal e as expectativas de legitimao e necessi-dades dos membros da sociedade (Cf. McCarthy, 1981, p. 371).Como vimos, a motivao mais importante para a manuteno dossistemas de ao social do capitalismo tardio consiste em uma ati-tude privada na vida pblica dos cidados e na vida profissional e

    familiar. A tese de Habermas que estes modelos de motivaoso sistematicamente destrudos em razo de uma dinmica inter-na s sociedades do capitalismo tardio. Para isso, ele deve mostrar,de uma parte, o esgotamento das tradies que sustentam tais ati-tudes e, de outra parte, que o capitalismo no pode mobilizarnovos recursos de motivao a fim de substituir funcionalmente osprimeiros.

    A fim de demonstrar sua tese, Habermas tenta provar de incio

    que estas duas fontes culturais, as reservas de tradio pr-burguesas e as burguesas, esto esgotadas. As imagens de mundotradicionalistas foram enfraquecidas continuamente no curso daevoluo do capitalismo, j que elas eram inconciliveis, sobretu-

    desenvolvimento coloca em risco o privatismo civil, essencial para a esfera p-

    blica despolitizada (McCarthy, 1981, p. 369-370).

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    do, com a extenso dos domnios onde predomina a ao racionalcom respeito a fins.

    Mas mesmo os elementos das ideologias burguesas que favore-cem as orientaes privatistas perdem o seu lugar em razo dastransformaes sociais. A ideologia da performance posta emquesto pelo descompasso entre a formao escolar e o sucessoprofissional. O individualismo possessivodesmorona pelo aumentoda parte dos bens de uso coletivos (os transportes, os lazeres, asade, a educao, etc.) entre os bens de consumo. Enfim, a orien-tao para valores de troca minada em consequncia do enfraque-

    cimento da socializao do mercado (Cf. Habermas, 1973, p. 117).De acordo com o diagnstico habermasiano, a eroso das reser-vas de tradio pr-capitalistas e capitalistas engendra estruturasnormativas residuais que no so adequadas reproduo doprivatismo na vida cvica e na vida profissional-familiar. Temosaqui um exemplo claro daquilo que Habermas estabeleceu comoum possvel efeito da interao entre a evoluo sistmica e a evo-luo do mbito scio-cultural: na medida em que a lgica de

    desenvolvimento deste ltimo independente da primeira, temosque a transformao do subsistema scio-cultural induzida justa-mente pelo desenvolvimento sistmico - notadamente a atividadeestatal, que passa a contribuir decisivamente com o desenvolvi-mento das foras produtivas o torna disfuncional em relao aosimperativos da economia e da administrao, ameaando assim acoerncia de conjunto do sistema social do capitalismo tardio. H,portanto, uma espcie de conflito entre os valores propostos pelo

    sistema scio-cultural e os valores reclamados para a manutenodos sistemas poltico e econmico estruturados em classes. Entre oselementos tornados dominantes na tradio cultural, necessriomencionar o cientificismona dimenso cognitiva ou terica, a arte

    ps-aurticana dimenso esttica e, sobretudo, a moral universalis-tana dimenso prtico-moral.

    At aqui, o fato de termos uma produo socializada fundadanuma apropriao privilegiada foi visto no s como uma mera

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    injustia, mas como a contradio fundamental responsvel porbloquear qualquer tentativa de repolitizao da esfera pblica.

    Vale lembrar que o privatismo dos cidados ou a despolitizaodas massas justificado com o fato da repolitizao das relaesde produo, o que gera a necessidade do Estado intervencionista,que via de regra intervm em favor dos interesses capitalistas pri-vados, legitimar a sua ao e manter a sua autonomia em face doscidados (que, nessa perspectiva, devem permanecer passivos e setornar meros clientes do Estado de Bem-Estar Social). Assim, at73, o diagnstico habermasiano aponta para um modelo de incom-

    patibilidade entre democracia efetiva e capitalismo, o que poderiatalvez ser representado por uma transfigurao (e no eliminao)do conflito capital x trabalho no conflito capital x democracia.

    Entre 1961 e 1973, a despolitizao das massas vinculada ao n-cleo fundamental do capitalismo tardio, e no aos seus desvios ou

    excessos. Por isso, os potenciais processos de democratizao apare-cem, ao mesmo tempo, como movimentos disfuncionais em rela-o ao funcionamento estrutural da forma capitalista de organi-

    zao social. Assim, a crtica no contra eventuais excessosdesse sistema, mas contra o seu ncleo estrutural e sua contra-dio fundamental.

    Se, em 1968, sua crtica do capitalismo ainda era externaao seudesenvolvimento social, em 1973 tal crtica vinculada prpriadinmica de expanso do capitalismo regulado estatalmente e suatendncia de crise (crtica interna). nesta obra que Habermasdesenvolve de modo mais sistemtico uma teoria do capitalismo

    tardio (com uma apropriao extensa e produtiva das cinciashumanas), assim como uma teoria das suas crises, visando captartanto a dimenso sistmica quanto a dimenso social ou vivida. Oque vemos ento um aprofundamento progressivo na analiseinterna da dinmica capitalista, o que mais tarde ser abandonadopor Habermas.

    Por outro lado, a principal dificuldade desta fase habermasiana a de esclarecer de modo mais detalhado a via poltica de supera-

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    o do capitalismo a partir de uma articulao consistente entreteoria e prtica, na qual movimentos sociais organizados apaream

    como destinatrios da teoria crtica. Por enquanto, o interessemaior por uma comunicao livre de dominao assume uma for-ma por demais annima, e no se v bem como a repolitizaoda esfera pblica seria efetivamente catalizada.

    Capitalismo e democracia nos anos 80:o perodo da TAC

    A interpretao proposta aqui sugere que nesta fase ocorre uma

    inflexo na posio habermasiana acerca da relao entre demo-cracia efetiva e capitalismo. Se at Legitimationsprobleme im Spt-kapitalismus (Problemas de legitimao no capitalismo tardio) estesdois princpios de organizao social apareciam como, em ltimaanlise, incompatveis (apesar das conquistas formais da democra-cia liberal), na medida em que a despolitizao das massas eravista como uma necessidade estrutural do sistema poltico-econ-mico, a partir dos anos 80 notadamente na sua obra mxima,

    Teoria da ao comunicativa(1981) Habermas passa a enfatizaros excessosdo sistema como a principal causa da falta de processosdemocrticos de formao da vontade poltica. A diferena podeparecer por vezes sutil, porm ela fundamental. O capitalismo e aadministrao burocrtica articulada a ele ainda so vistos como osvetores da despolitizao, porm o problema deixa de se localizarno ncleo de tais instituies. A contradio fundamental expressapela apropriao privada da produo socializada, assim como a

    burocratizao do aparelho estatal que lhe correspondente nocapitalismo tardio, deixa de ser o obstculo fundamental para umateoria da democratizao (capital x democracia). A economia capi-talista e o poder estatal burocratizado ganham seu espao leg-timo dentro das sociedades complexas e funcionalmente diferen-ciadas. O problema maior passa a ser o avano ilegtimo destesdois mecanismos sobre domnios de ao reservados ao mundo da

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    vida. Uma questo colocada por Michael Lwy permite evidenciartais transformaes no pensamento habermasiano:

    Quais concluses polticas se pode tirar desta crtica? Trata-se simples-mente de proteger o mundo da vida a esfera da interao simblicahumana das invases da racionalidade instrumental ou preciso queas questes econmicas, elas mesmas, sejam submetidas ao controle domundo vivido, enquanto objeto de um livre debate pblico e de decisesdemocrticas? Esta questo de fato, o ncleo racional do socialismo,como planejamento democrtico recebe uma resposta positivano traba-lho mais radical de Habermas,Problemas de legitimao no capitalismo

    tardio (1973), que esboa uma crtica muito pertinente dos limites da

    democracia no capitalismo [...]. Entretanto, encontramos uma aborda-gem bastante diferente dessas questes no seu opus major mais sistem-tico, A teoria da ao comunicativa [...]. Modesto, Habermas s pretendeproceder a uma reconstruo do materialismo histrico marxiano e dodiagnstico weberiano da modernidade, mas de fato ele formula umanova teoria, extraindo bastante de Durkeim, Parsons e Luhmann. Istoleva a uma diminuio considervel do radicalismo da primeira TeoriaCrtica, e a um tipo de reconciliao com as normas da modernidaderealmente existente. (Lwy, 1999, p. 81)

    Isto , Habermas deixa de defender uma posio prxima doncleo racional do socialismo democrtico5, para assumir umapostura mais defensiva e conformada. Em relao a esse ponto,Lwy prossegue mostrando que

    5Lwy cita ainda uma importante passagem da obra de 1973, na qual Haber-mas explicita que o debate democrtico livre de dominao deveria levar conscincia os problemas e contradies da apropriao privada da mais-valiano contexto de uma produo socializada, de modo que o sistema adminis-trativo do capitalismo tardio seria incompatvelcom uma democracia efetiva:A participao dos cidados nos processos polticos de formao da vontade,quer dizer a democracia concreta, deveria levar conscincia a contradioentre a produo, administrativamente socializada, e, como sempre, a apropri-ao e utilizao da mais-valia que permanecem assuntos privados. Parasubtrair esta contradio tematizao, o sistema administrativo deve serautnomo o suficiente em relao formao da vontade legitimante. (Ha-

    bermas, 1973, p. 55)

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    [...] entretanto, contrariamente s teses esboadas em Problemas delegitimao no capitalismo tardio, Habermas parece agora considerar aburocratizao e a economia mercantil como formas necessrias da mo-

    dernizao [...]. Para Habermas [a partir de 1981], a economia de mer-cado capitalista e a burocracia so portanto formas normais da moder-nidade: s se pode falar de patologia quando a racionalidade instru-mental transgride as fronteiras dos sistemas e penetra na esfera dareproduo simblica, isto , quando o dinheiro e o poder entram nosdomnios que implicam a compreenso mtua, ou, em outras palavras,quando os imperativos dos subsistemas autnomos colonizam o mundo

    vivido da comunicao. (Lwy, 1999, p. 82)

    Assim, o modelo normativo deixa de apontar para umasuperao do modo capitalista de produo e de organizao sociale prope doravante uma nova diviso de poderes (Cf. Habermas,2002, p. 505), em que os dois mecanismos sistmicos conviveriam,de modo balanceado e mediante o estabelecimento de traados defronteira, com o mecanismo solidariedade de coordenao so-cial.

    Talvez o que dificulte a compreenso dessa inflexo no percurso

    intelectual habermasiano seja o fato de que ele continua a traba-lhar com praticamente todos os temas de antes. A diferena naconstruo do argumento no raramente de nfase. Ele continuaa falar de modernidade, capitalismo tardio, de crises, decontradio, de crticas a alguns aspectos do capitalismo, de ticacomunicativa, de esfera pblica e at mesmo de socialismo.No entanto, muitos destes termos so resignificados, assim comouns passam ao primeiro plano e outros ocupam doravante uma

    posio secundria. Em todo caso, a nosso ver, a ruptura emtermos de relao entre capitalismo e democracia inegvel.

    Podem-se destacar pelo menos dois fatores explicativos paraessa mudana de posio. O primeiro seria a aceitao mais efetivade argumentos de matriz weberiana ou da teoria dos sistemas,segundo os quais os mbitos sistmicos funcionalmente diferen-ciados da economia capitalista e da administrao burocrtica pos-suem valor funcional intrnseco ou genuno (isto , independentes

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    da estrutura de classes), e trazem vantagens do ponto de vista daeficcia na consecuo da reproduo material da sociedade (Cf.

    Habermas, 2002, p. 95). Assim, qualquer tentativa de desdiferen-ciar tais domnios de ao e intervir diretamente no seu funcio-namento interno corresponderia a um retrocesso do ponto de vistada evoluo social. At porque, luz das experincias fornecidaspelo socialismo realmente existente, Habermas d razo a Weberem relao ao seu prognstico, segundo o qual a abolio docapitalismo privado no significaria de modo algum umadestruio da redoma de ao do trabalho industrial moderno

    (Habermas, 2002, p. 101).O segundo fator seria a percepo de que a dinmica atual doschamados novos movimentos sociais no mais orientada emfuno da velha poltica redistributiva, mas sim por uma busca demaior autonomia das formas de vida. Assim, os protestos anti-capitalistas perdem fora e do lugar a mobilizaes to variadas(como a luta por identidades nacionais, anti-racismo, feminismo,direito dos homossexuais, etc.) que no podem ser reduzidas a um

    nico sentido de emancipao (Cf. Melo, 2009). Nesse contexto, arepolitizao da esfera pblica no poderia ser pensada exclusiva-mente, e nem mesmo prioritariamente, em funo das lutas anti-capitalistas.

    A complexidade, de um lado, e a pluralidade, de outro, socaractersticas marcantes das sociedades ocidentais avanadas, e aTeoria Crtica deve estar altura do seu tempo. Nesse caso, ateoria da democratizao precisa se rearticular em funo dos

    atuais focos de potenciais emancipatrios e repensar a sua relaocom o capitalismo tardio. Por isso, excluindo a fase que vai at1973, concordamos com Tomberg ao indicar que a pretensasoluo reformista e ao mesmo tempo radicalmente democrticade Habermas decorre de sua deciso tomada perante um dilemapoltico fundamental que se reflete na soluo conceitual (dua-lista) de sua teoria:

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    Se no deve ser possvel que o sistema capitalista, por falta de cresci-mento, entre em uma crise em que ele tem de se partir, se com isso aemancipao do mundo da vida pressupe a existncia continuada do

    sistema capitalista e este s for possvel segundo um crescimento cons-tante, ento a concluso necessria seria aquela colonizao por meio daqual a emancipao do mundo da vida seria anulada. A conservao deum mundo da vida autnomo e o capitalismo tardio colonizador se con-tradizem mutuamente e exigem uma deciso, da qual Habermas no seesquiva. Contudo, ele tem de se decidir tanto por um quanto pelo outro. Eleaceitou o carter definitivo do capitalismo, que entretanto tem de ser con-

    cebido somente como capitalismo tardio, como compromisso do Estado soci-

    al, e ainda se mantm em um mundo da vida que deve fornecer o espao

    para as intenes de uma democracia radical e do socialismo. (Tomberg,2003, p. 335)

    Do ponto de vista da estratgia terica, vimos que o expedienteutilizado por Habermas em Tcnica e Cincia como Ideologia oda crtica da razo e da racionalizao, ao passo que, emProblemasde Legitimao, o que aparece em primeiro plano uma teoria dascrises internas do capitalismo. Na TAC, Habermas retoma e desen-volve o primeiro expediente. Na verdade, desde a primeira geraoda teoria crtica, o modelo crtico

    [...] se d nos termos de uma crtica da razo. A explicao disso seencontra em Max Weber e em Georg Lukcs: a modernizao capitalistapode ser vista, segundo esses autores, como um processo de raciona-lizao crescente, isto , um processo pelo qual a sociedade se estruturae se reproduz segundo critrios tidos por racionais. por isso que acrtica filosfica da razo coincide com uma crtica social da realidade

    moderna.(Repa, 2012)

    Nesse contexto, aparece a ideia de uma crtica da razo instru-mental. No entanto, para Habermas, a crtica da razo instrumen-tal s ganha sentido pleno se acompanhada de uma ampliao doconceito de racionalidade. S possvel criticar o predomnio daracionalidade instrumental se o critrio da crtica um conceito derazo que vai alm da relao meios e fins. Contudo, essa amplia-o do conceito de racionalidade conduz uma ampliao do

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    conceito de racionalizao, que no deve se limitar a um processode reificao, como em Lukcs e na primeira gerao da teoria

    crtica. assim que, na sua Teoria da Ao Comunicativa,vemos sedesenvolver um modelo complexo e no-seletivo de racionalizaoa partir de uma crtica imanente ao pensamento weberiano (Cf.Habermas, 1981, p. 321-6). Uma teoria da modernidade, e notanto das crises do capitalismo, o que passa ao primeiro plano. aqui tambm que a teoria dual da sociedade recebe sua formulaodefinitiva com o par conceitual mundo da vida e sistema.

    A atualidade da tenso capitalismo e democraciana era neoliberal: Habermas x StreeckMais recentemente, a partir da crise de 2008 e sobretudo a par-

    tir da crise das dvidas soberanas que ocorreu na Europa em 2011,o debate acerca da tenso entre capitalismo e democracia ganhoumuito em atualidade. Aquele capitalismo tardio ou organizado doqual falvamos anteriormente no mais existe. E, como nopoderia deixar de ser diferente, Habermas voltou a discutir o tema.

    A ocasio para tal se deu no momento da publicao de um impor-tante livro Gekaufte Zeit (Tempo comprado) sobre a crise docapitalismo democrtico, do socilogo alemo Wolfgang Streeck.

    Veremos que Habermas mantm a posio estabelecida a partirdos anos 80, mas no sem modificaes. Agora suas reflexes nor-mativas acerca dos regimes democrticos se move da esfera nacio-nal para a esfera transnacional, notadamente para o mbito daUnio Europeia (Cf. Habermas, 2011), a fim de acompanhar a pr-

    pria transnacionalizaao do capital financeiro.Tendo em vista que Habermas parece subscrever quase que

    integralmente o diagnstico de Streeck (2013a), vale a pena recu-perar aqui os traos fundamentais deste ltimo. A primeiraconstatao, reconhecida pelo prprio Habermas, o envelheci-mento do seu diagnstico da dcada 70, segundo o qual o capita-lismo estaria mais prximo de uma crise de legitimao do queuma crise econmica. O que temos hoje justamente o oposto,

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    uma grave crise econmica sem uma real mobilizao de forasprogressistas alternativas. No entanto, o modelo de Problemas de

    Legitimaono deixa de guardar uma certa atualidade, na medidaem que a anlise das crises do capitalismo e como estas so impor-tantes para a questo da democracia voltam ao centro do palco.

    Para compreender a atual crise econmica, Streeck comea suadescrio do percurso da crise com um esboo do Estado socialconstrudo na Europa do ps-guerra at o incio dos anos 70. Coma crise desse modelo e com a diminuio do crescimento econ-mico, seguem-se as fases de implementao das reformas neolibe-

    rais: estas, sem considerar as consequncias sociais, melhoraramde fato as condies de realizao do capital.As reformas afrouxaram as regras de regulamentao corpora-

    tiva e desregularam os mercados de uma maneira geral, isto , nos o do trabalho, mas tambm o de bens e servios, mas sobretudoo mercado de capitais. Streeck descreve essa mudana, que come-ou com Ronald Reagan e Margaret Thatcher, como um golpelibertador para os donos do capital e seus gerentes contra o Estado

    democrtico, que, de acordo com os princpios da justia social,tinha reduzido as margens de lucro das empresas, ainda que con-comitantemente, do ponto de vista dos investidores, tenha estran-gulado o crescimento econmico.

    Na medida em que faz crescer a desigualdade social, essainflexo neoliberal leva a uma transformao no Estado social dops-guerra (Cf. Streeck, 2013a, p. 144 et seq.). A mudana decisiva a seguinte: O Estado governado por seus cidados e, ao mesmo

    tempo cobrador de impostos, isto , um Estado democrtico finan-ciado por eles mesmos, torna-se um Estado democrtico devedorlogo que a sua sobrevivncia depende no apenas das contribui-es de seus cidados, mas, em grande parte tambm dos credores.Hoje em dia, pode-se apreciar o espetculo perverso da limitaoprogressiva da capacidade de atuao poltica dos Estados porcausa dos mercados.

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    Nas circunstncias particulares da Unio Europeia, a poltica deconsolidao oramental impe a todos os pases-membros as

    mesmas regras, independentemente das diferenas no desenvolvi-mento das suas economias e, com a inteno de implementar essasregras, concentra os direitos de interveno e de controle no nveleuropeu.

    Ora, sem o simultneo fortalecimento do Parlamento Europeu,esta concentrao de competncias no Conselho e na Comissorefora a dissociao entre a opinio pblica e os parlamentosnacionais, e o concerto de governos obedientes ao mercado, que

    permanecem assim distantes da realidade e se estabelecem demaneira tecnocrtica.Temos ento um recrudescimento da tenso entre capitalismo e

    democracia via financeirizao das contas pblicas e das polticasestatais, agora fortemente financiadas pelo crdito do capitalfinanceiro. Capital este que se encontra fortemente globalizado, selibertando em grande medida da regulao dos Estados-nao.

    Na sua resenha do livro de Streeck (Cf. Habermas, 2013),

    Habermas nota que em relao a esta poltica de crise, existem ao menos em teoria duas alternativas: ou a liquidao defensivado euro, ou a ampliao ofensiva da comunidade monetria nadireo de uma democracia supranacional.

    E aqui reside a grande discordncia entre ambos os autores.Enquanto Streeck opta pela primeira opo, Habermas opta pelasegunda. Segundo Habermas, Streeck toma uma via nostlgica, deuma pretensa restaurao da vitalidade dos Estados-nao. Segun-

    do ele, desconstruir o euro significaria retroceder poca doentrincheiramento nacional-estatal dos anos 60 e 70 a fim de de-fender e reparar da melhor maneira possvel os possveis restosdestas instituies polticas com cuja ajuda talvez se lograriamodificar e substituir a justia do mercado pela justia social.

    Acontece que, como vimos, Habermas sempre foi um crticodeste Estado social, que em vez de cidados, acabou por produzirclientes. Alm disso, atualmente, preciso no se esquecer de que

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    os Estados da comunidade europeia esto enfrentando uma tarefaparticularmente rdua: pr mercados irreversivelmente globaliza-

    dos ao alcance de uma influncia poltica indireta, mas canalizada.Alm disso, os Estados que no se associam para formas unidadessupranacionais, e s dispem do recurso dos tratados internacio-nais, fracassam ante o objetivo de reintegrar novamente este setorfinanceiro s necessidades da economia real e de reduzi-lo a umadimenso funcional conveniente.

    Habermas tenta sustentar sua opo pelo aprofundamento dademocracia europeia transnacional assinalando que o que diferen-

    ciaria uma Unio Europeia de acordo com a democracia circuns-crita por razes compreensveis em princpio apenas aos membrosda Unio monetria de um federalismo executivo, em conformi-dade com o mercado, so principalmente duas inovaes. Emprimeiro lugar, um planejamento comum do quadro poltico,transferncias financeiras correspondentes e garantias mtuas dosEstados-Membros. Em segundo lugar, mudanas no Tratado deLisboa, necessrias para a legitimao democrtica das competn-

    cias correspondentes, ou seja uma participao paritria do Parla-mento e do Conselho na legislao e a responsabilidade uniformeda Comisso no que respeita a ambas as instituies. Assim, aconformao da vontade poltica j no dependeria unicamentedos compromissos slidos de representantes de interesses nacio-nais que bloqueiam uns aos outros, mas, igualmente, de decisespor uma maioria de deputados eleitos de acordo com prefernciasde partido. S no Parlamento Europeu, estruturado em blocos,

    pode ser operada uma generalizao dos interesses que desarticuleas fronteiras nacionais. Apenas em procedimentos parlamentarespode solidificar-se uma perspectiva nossa, conjunta.

    Posteriormente, Streeck prolongou o debate respondendo resenha de Habermas (Cf. Streeck, 2013b). Grosso modo, elereafirma sua posio negando a pecha de nostlgica. Na verdade,no se trata de defender o Estado nacional enquanto tal, mas decompreender que a Unio Europeia significou e continuar signi-

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    ficando antes de tudo uma unio monetria cujo efeito maior ode criar uma arquitetura institucional bastante eficaz na imposio

    dos ditames do capital financeiro sobre os governos nacionais. Paratanto, ele cita os casos da Grcia e da Itlia, que teve que instituirno auge da sua crise um governo formado essencialmente portecnocratas de alma neoliberal. Ele classifica ento a posio deHabermas como basicamente utpica, pois ignora uma srie defatos que contradizem sua opo. Acresce que a ideia de umademocracia nos moldes de um super-Estado europeu, supondo queela fosse possvel, seria incapaz de limitar o poder do capital

    transnacional: tal como os EUA, esta democracia ainda estariaaqum do alcance e da velocidade do processo de globalizaodocapital. Apenas um super-Estado global teria a mesma escala deum super-mercado mundial. No entanto, se por um momentopensamos na possibilidade de um tal estado, logo percebemos oquo distante ainda estamos dessa possibilidade. Por isso, segundoStreeck, seria melhor acabar com a UE e em seu lugar estabelecerum sistema de taxas de cmbio fixas, mas ajustveis, nos moldes

    do antigo sistema de Bretton Woods.

    Apontamentos para uma concluso:tenso irremedivel e a persistencia da utopia

    Sem querer entrar no debate acerca de qual seria a melhor es-tratgia poltica para a Europa, acreditamos que h uma questoque lhe precede. O que interessante que Habermas no parecetirar as consequncias do fracasso do seu diagnstico anterior. O

    que Streeck tenta expressar na sua trplica a Habermas , talvez,que a tenso entre capitalismo e democracia seja irremedivel, desorte que no se pode sustentar sem mais um modelo normativocalcado numa espcie de equilbrio entre estes dois princpiossociais, ou ento algum tipo de reduo da economia capitalista sua dimenso funcional apropriada. Por isso sua posio norma-tiva fixada desde os anos 80 parece ser insustentvel ou essencial-mente utpica, como afirma Streeck. preciso vislumbrar uma

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    democracia para alm do capitalismo, sem cair nas velhas receitasmarxistas ortodoxas. Se quisermos estar altura de nosso tempo e

    enfrentar esta questo, preciso teorizar o capitalismo de modomais aprofundado e vislumbrar alternativas polticas. No caso deHabermas, a crise atual do capitalismo no serviu de motivaosuficiente para que ele revisasse sua mudana de posio a partirdos anos 80.

    O que interessante que a contribuio habermasiana aocampo da Teoria Crtica se notabilizou por sua capacidade dereconstruir as bases normativas deste ltimo. A primeira gerao

    da chamada Escola de Frankfurt era muitas vezes julgada comopessimista e sua posio era tida como aportica por nos conduzira uma situao de desespero. Habermas teria sido aquele pensadorque tirou esta tradio de um beco sem sada ao conceber umasoluo positiva para os dilemas da modernidade, cujo efeito cola-teral foi o de abandonar a crtica radical do capitalismo devido aoseu carter excessivamente utpico em proveito de uma posiomais realista ou ancorada no real. Mas a questo que se coloca

    hoje para a Teoria Crtica a de saber at que ponto a modstia eo realismo suprimem efetivamente a utopia. Por exemplo: seriarealista imaginar um capitalismo mundializado regulado por umEstado democrtico igualmente mundializado? Ou ainda: seriarealista imaginar que uma democracia radical seria compatvel alongo prazo com as dinmicas capitalistas? Obviamente seria ti-mo ter o capitalismo, com sua eficcia na dimenso da reproduomaterial da sociedade e to somente expandir e aprofundar a

    democracia. Mas no seria esta posio justamente utpica? Poisse pensarmos seriamente nesta possibilidade, veremos que umareforma to profunda no regime poltico, monetrio ou redistri-butivo afetaria fortemente o ritmo de acumulao do capital, eportanto a economia capitalista no seu conjunto. Por vezes, sermodesto ou realista pode constituir a maior das utopias.

    Portanto, pensamos que neste caso o melhor assumirexplicitamente uma dimenso utpica na crtica social, desde que

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    esta seja compatvel com as perspectivas de emancipao de movi-mentos sociais. Alm disso, basta lembrar com Seyla Benhabib que

    a Teoria Crtica feita de crtica, norma e utopia (Cf. Benhabib,1986). A utopia , portanto, constitutiva de um pensamento quevisa pensar alm da realidade atual. No entanto, vimos que huma diversidade de utopias, e que certas utopias so mal-disfara-das de realismo. Pois bem, acreditamos que a Teoria Crtica, luzdos acontecimentos do sculo XX, precisa voltar a cultivar umautopia de modo explcito, no sentido de que preciso pensar demodo mais radical e vislumbrar uma transformao mais profunda

    da sociedade. Sem descuidar obviamente de um diagnstico refina-do da sociedade e de uma anlise das alternativas polticas dispo-nveis. No entanto, se nem colocarmos essa questo, que s postacom uma utopia explcita, se nos fecharmos de antemo numaposio pretensamente realista e modesta, nunca seremos capa-zes de enxergar eventuais potenciais inscritos desde j na nossarealidade. Curiosamente, reencontramos aqui o velho lema ilumi-nista do Sapere aude(ousa saber), iluminismo cujo maior defensor

    contemporneo Jrgen Habermas.Mas qual seria concretamente a alternativa a Habermas ? Notemos condies de desenvolver plenamente este ponto aqui. Noobstante, em virtude da fase atual do capitalismo marcada peloneoliberalismo, pela globalizao financeira e pelo ataque s de-mocracias ocidentais , temos um contexto que nos faz, talvez,revisitar a posio habermasiana original e explorar mais ampla-mente a tenso entre capitalismo e democracia radical. De fato,

    seu diagnstico de poca acabou sendo desmentido, mas tambmno por acaso que tanto Wolfgang Streeck quanto Nancy Fraser dois pensadores que tentam explorar esta tenso hoje o fazem apartir de uma discusso desta fase do pensamento de Habermas. Oque quer dizer que, mesmo se os detalhes de seu diagnstico soquestionados, seu gesto fundamental reatualizado, de sorte queuma obra como Problemas de legitimao no capitalismo tardioganhou muito em atualidade. Trata-se de uma atualidade da

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    crtica radical do capitalismo e da necessidade de se compreendersuas crises de um ponto de vista multidimensional.

    Com efeito, a experincia do jovem Habermas demonstra queretomar a crtica do capitalismo no significa necessariamente cairnuma espcie de economicismo, no paradigma produtivista, noparadigma da classe universal ou no paradigma revolucionrio daditadura do proletariado. Contra essa acusao, preciso ter emmente que para alm dos ataques do capital ao trabalho (que mes-mo hoje so muito importantes), h o conflito capital x democra-cia. Isto , se h de fato hoje diferentes possibilidades para vidas

    emancipadas, preciso reconhecer que o capitalismo contempo-rneo se apresenta como um obstculo central que no apenasexplora e prejudica materialmenteos trabalhadores e os desempre-gados, mas tambm cria obstculos no negligenciveis s possibi-lidades concretas de institucionalizao das condies de exercciodo dilogo emancipado.

    Se essa perspectiva estiver correta, um desafio que se colocahoje para a Teoria Crtica ento o de retomar uma perspectiva de

    crtica do capitalismo, sem contudo esquecer os ganhos normativostrazidos pela pluralizao dos sentidos da emancipao e recairnuma espcie de essencialismo da luta de classes. Uma das gran-des dificuldades que o Habermas de Problemas de Legitimao docapitalismo tardio enfrentou foi o de articular essa perspectiva te-rica com a prtica efetiva dos movimentos sociais. Em relao aeste ponto, a dificuldade permanece at hoje (Cf. Fraser, 2013, p.121). No entanto, movimentos sociais (Indignados, ZAD, Occupy)

    e mesmo partidos (Syriza, Podemos) extremamente recentes ounem to recentes assim (MST), bem como a possvel radicaliza-o por parte de movimentos j bem estabelecidos como o femi-nista tal como aponta Nancy Fraser (2009) suscitam ao menosa questo de saber se tal possibilidade de articulao entre teoria eprtica dentro de uma perspectiva crtica em relao ao capita-lismo, especialmente sua vertente neoliberal, no poderia ad-

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    quirir uma plausibilidade maior nos prximos anos. Esta eviden-temente uma questo em aberto.

    Em todo caso, do ponto de vista terico, parece que se vislum-bram ao menos duas grandes tarefas. De um lado, seria precisorenovar no s um diagnstico do capitalismo contemporneo,mas uma teoria das suas crises. Aqui, a intuio central de Haber-mas em 1973, segundo a qual existem na verdade diversos tipospossveis de crise pode ser bastante til (Cf. Fraser, 2014). Poroutro lado, mostra-se necessrio investigar mais detidamente econcretamente as dinmicas efetivas dos principais movimentos

    sociais contemporneos, inclusive os mais recentes. A articulaoentre a dimenso sistmica da crise e a dimenso social dos confli-tos, objetivo perseguido tanto por Marx quanto por Habermas, per-manece como um grande desafio terico.

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