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António Ribeiro Sanches Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina Universidade da Beira Interior Covilhã – Portugal 2003

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Page 1: Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e … · Que os melhores estudos de Medicina da Universidade não são bastantes para ... os Boticários na fé desses droguistas

António Ribeiro Sanches

Apontamentos paraestabelecer-se um Tribunal e

Colégio de Medicina

Universidade da Beira InteriorCovilhã – Portugal

2003

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Conteúdo

I Apontamentospara estabelecer-se um Tribunal & Colégio de Medicina na intençãoque esta Ciência se conservasse de tal modo que sempre fosse útil aoReino de Portugal e dos seus dilatados Domínios 1

Necessidade que tem a Medicina que se estabeleça em Lisboa um Tribunal paradirigi-la e conservá-la. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3Continua a mesma matéria e sobre a jurisdição que deve ter o Tribunal

Médico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4Que os melhores estudos de Medicina da Universidade não são bastantes para

utilizar-se o Estado por esta Ciência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5Obrigações que contrairiam os Médicos decorados com os Partidos pelo Tribu-

nal da Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6Que o Tribunal Médico devia ter substitutos ou delegados em todas as cabeças

das Comarcas do Reino e Ultramar com Jurisdição emanada dele. . . . . 7Do Tribunal Médico e das Pessoas de que havia de ser composto. . . . . . . . 8Do Secretário do Tribunal de Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Consequências tiradas da Exposição acima. . . . . . . . . . . . . . . . . 9Quem deve dar a ordem para examinar e quais devem ser os Examinadores. . . 9Do modo que o Tribunal Médico devia prover os Partidos e mais postos dos

Médicos, Cirurgiões, Boticários, &c. Na Corte, e em todo o Reino e seusDomínios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

Modelo das Instruções que o Tribunal Médico devia dar a cada Médico que Eledecorasse com partido ou outro emprego em todos os Domínios de Portugal11

Sobre os honorários dos Partidos dos Médicos e dos salários dos Cirurgiõespagos pelo público e pelas Comunidades. . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Da Cirurgia e dos Cirurgiões, e se esta arte devia ficar separada da Medicina,como hoje se pratica em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

Do modo que se devia praticar no Estado a Medicina geralmente. . . . . . . . 14Obstáculos à proposta acima; e método que se poderia introduzir na prática da

Medicina no seu presente estado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15Propõe-se o Método de regrar a Medicina, Cirurgia e Farmácia conforme se

pratica actualmente em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15Digressão sobre as Boticas dos Conventos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18Obrigações dos Boticários, da Farmacopeia e dos Jardins das Plantas Medicinais19Da Farmacopeia, ou Regimento dos Remédios Símplices e Compostos do Reino20Da Tarifa, ou do Regimento do preço dos remédios. . . . . . . . . . . . . . . 20Dos Jardins das Plantas Medicinais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

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Das Águas Minerais, tanto Quentes, que chamamos Caldas, como das Frias queconhecemos com vários nomes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Dos Segredos da Medicina considerados como dependentes da Inspecção e dis-posição do Tribunal da Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Continua a mesma matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Das Parteiras, dos Oculistas, dos Dentistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25Dos oculistas e dos que pretendem curar hérnias pela operação manual. . 26Dos dentistas, e dos que haviam de exercitar esta arte. . . . . . . . . . . 27

Do exame dos livros de Medicina que devia pertencer ao Tribunal Médico antesde se imprimirem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Dos Médicos que por ordem do Tribunal Médico deviam viajar para saberem aMedicina que praticam as Nações Bárbaras. . . . . . . . . . . . . . . . 28

Sobre os Droguistas e os que vendem Remédios Químicos. . . . . . . . . . . 30O cuidado que deveria ter o Tribunal Médico de procurar os livros novos e notí-

cias literárias de Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

II Apontamentos para formar-se um Colégio de Medicina 33Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35A Medicina Prática deve ser governada no Estado Civil à imitação da Religião

e da Jurisprudência. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35Exposição do Colégio Real de Medicina que se propôs acima. . . . . . . . . . 36Primeira Assembleia dos Médicos referidos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Dos Censores deste Colégio Real de Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Dos Examinadores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Do Secretário deste Colégio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Requisitos necessários para ser agregado ao Colégio Real de Medicina que pro-

pomos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38Motivos das disposições acima. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38Sobre os Médicos Estrangeiros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39Dos Médicos dos quais devia ser composto o Tribunal Médico. . . . . . . . . 39Dos Exames, dos Médicos, Cirurgiões &c. Onde deviam ser e quais deviam ser

os Examinadores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40Dos Exames dos Cirurgiões. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41Dos Exames dos Cirurgiões e Boticários que serão examinados e aprovados pe-

los Delegados dos Tribunais dos Colégios do Reino e nos seus domínios. 41Dos Sangradores e das Parteiras. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42Dos Rendimentos do Tribunal do Colégio Real de Medicina e dos seus Delegados42

III Estatutos Morais 45Do Colégio dos Médicos de Londres para servirem de modelo aos do Colégio

Real de Medicina de Lisboa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

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Parte I

Apontamentospara estabelecer-se um Tribunal &

Colégio de Medicina na intenção queesta Ciência se conservasse de tal

modo que sempre fosse útil ao Reinode Portugal e dos seus dilatados

Domínios

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 3

Necessidade que tem a Medi-cina que se estabeleça em Lis-boa um Tribunal para dirigi-lae conservá-la

Saem formados da Universidade de Coimbra aque-les que estudaram a Medicina, são empregados ounos Partidos das Câmaras do Reino, ou se estabele-cem nas vilas e nas cidades praticando a Ciência queestudaram. Sem serem examinados pelo Físico-Mordo Reino sem dependência dele ou da Universidade:ficando só sujeitos ao castigo que merecem os Cri-mes: mas jamais contra as faltas cometidas contra asua arte, não havendo Tribunal algum que os preveja.

O que constitui a sociedade civil, e o aumento doEstado, é que pela força e intenção das leis se for-mam tais súbditos que pensam, não somente na Suaconservação, mas igualmente na dos compatriotas;que é o mesmo que o amor efectivo da pátria: comoos Médicos e os Cirurgiões e todos aqueles que de-pendem hoje do Físico e Cirurgião-Mores não de-pendem constantemente deles, daqui vem que cadaMédico pensa somente em aumentar o seu particularinteresse, sem considerar no aumento da Ciência queprofessa nem na utilidade que deve redundar dela aopúblico, donde ele mesmo é parte.

Daqui vem que muitos que nunca estudaram a Me-dicina se intrometem a praticá-la: que muitos Médi-cos e cirurgiões Estrangeiros, sem título, nem autori-dade alguma professam a Medicina no Reino, e nosseus Domínios do Ultramar, com tanto prejuízo doEstado: Daqui vem que se pelas Ordens do Físico-Mor, ou dos Corregedores forem persecutados estesintrusos da Medicina e da cirurgia, que qualquer Se-nhor, todos os Conventos os protegem, vivendo emSuas Casas, tendo domicílio também nas mesmascomunidades: Os Médicos e Cirurgiões do Reino,como não têm defesa, nem castigo de consultaremcom estes intrusos, consultam com eles diante dosenfermos, e os introduzem muitas vezes na práticamais frequente da sua arte.

O mesmo se observa nos Boticários, nos Droguis-tas e nos Barbeiros sangradores; nenhum destes ofí-cios conhece superior no exercício da sua arte: Todossabem o dano que causam as boticas dos Conventos;como as Comunidades Religiosas são mais ricas doque os Boticários; como o povo tem maior confiançada bondade dos seus remédios, daqui vem que todosos buscam nas boticas dos Conventos; e daqui vemque os Boticários Cidadãos não gastam os remédiosque compram e muito menos aqueles que compõem:ficando por último corruptos, e podres, com dano dos

Cidadãos; caem na miséria e na pobreza, que é omesmo, que na oficina de falsificar todos os remé-dios, que saírem das suas mãos.

Do mesmo modo sucede com os Droguistas: todoo Nacional, todo o Estrangeiro que quer vender dro-gas ou remédios achados no Reino, e seus domínios,ou compostos em Itália, França, Inglaterra, e Ho-landa não têm ordem nem regramento em contrário:os Boticários na fé desses droguistas desconhecidoscompram os remédios que não conhecem e desses éque despacham as receitas de Medicina e de Cirurgia.

As tropas de Mar e Terra, as praças de armas, e afrota, e algumas Conquistas, como também os Hospi-tais Reais e Militares necessitam de Médicos, e de ci-rurgiões tão capazes, como requer a conservação dosDefensores da pátria. Cada Câmara do Reino, cadacasa da Misericórdia, cada cabido, e muitos Mostei-ros têm ordinariamente Médico, e Cirurgião com sa-lário. Estes empregos e estes postos não são providosnem pelo Físico-Mor, nem pela Universidade ondeexiste a Faculdade de Medicina: o maior mereci-mento para que um Médico, ou cirurgião, que acabaos seus estudos, tem para serem empregados naque-les partidos, consiste em empenhos, e valias e que opretendente saiba ganhar as vontades: Não entrandojamais a capacidade, nem o talento para exercitar asua arte com louvor e utilidade pública: Porque osVereadores, os Provedores das Misericórdias, os Ve-dores Gerais, os Generais, Governadores, e os Pre-lados dos Conventos, são aqueles, que dispõem dospartidos referidos; não têm outra regra para julgar dacapacidade do pretendente em Medicina ou cirurgia,do que a fama e o modo agradável de apresentar-se.Bem se poderá considerar a quantas desordens fica-rão expostos este ditos partidos na sua prática!

A Universidade de Salamanca apresenta os Mé-dicos necessários para servirem cinquenta partidos:Está autorizada pelos seus Reis não só a nomear e es-colher os Médicos, mas também a impedir, e anularaqueles que as Câmaras escolherem sem sua aprova-ção e consentimento, do que resulta que sempre seacham Médicos estudiosos, que a Universidade em-prega, não só nestes partidos, mas também nas va-câncias dos Lentes de Medicina da mesma Universi-dade.

No Império da Rússia estabeleceu Pedro Primeiroum Tribunal de Medicina, cujo cargo é o de provertodos os partidos Civis e Militares com Médicos eCirurgiões.

Se o General, se o Governador, Almirante, ou Ma-gistrado das vilas ou cidades necessitam de Médico,ou de Cirurgião para eles, ou para os que estão à suaordem, é da sua obrigação representarem ao TribunalMédico a necessidade que têm e são providos ime-

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diatamente: Sendo-lhes por lei proibido a estes Ge-nerais, Governadores ou Magistrados de autoridadeprópria proverem aqueles partidos.

Só quem tiver experiência da prática desta lei po-derá conhecer a sua utilidade; não só para os Mé-dicos, Cirurgiões, mas também para a conservaçãoda vida, e da saúde dos Povos. Quando um Tribu-nal de Medicina está encarregado de prover os parti-dos de todo o Estado, tem cuidado especial não só deconservar um certo número de Médicos, e cirurgiões,mas ainda procura de todos os modos que sejam beminstruídos na sua arte: corresponde-se com as Uni-versidades, e com as Escolas de cirurgia; representa àCorte os defeitos destes estabelecimentos; promovea sua protecção, rendas, e bom ensino, para que seformem nelas súbditos capazes de honrarem a Ciên-cia Médica, e de utilizarem o Estado com a mesmadoutrina.

Além disso os Médicos e os Cirurgiões, uma vezempregados, têm um contínuo Inspector do seu pro-ceder no Moral e no científico; e como todos os ho-mens se movem con fervor pelo interesse, pelo lou-vor, desprezo, e esperança; Daqui vem, que insistemsem interrupção a merecer aplausos e prémios do Tri-bunal que os governa.

E como nas Instruções que cada Médico, e ci-rurgião recebe quando é provido com partido, sãoexpressamente obrigados a remeter ao seu Tribunaluma relação sumária do que observaram na sua prá-tica; das Epidemias, dos males Endémios, do númerodos mortos à proporção dos doentes, dos casos raros,ou extraordinários na sua prática daqui vem que sãosempre obrigados a estudar, e a meditar a arte queprofessam; e aumentar os seus conhecimentos.

Nos Reinos onde faltar o Tribunal de Medicinaque proporei, será impossível acudir o Governo atempo que se devaste uma Província por uma Epi-demia, ou Peste: não será avisado a tempo pelos Mé-dicos empregados nas províncias; chegarão os remé-dios, e as precauções depois da devastação dos po-vos: Ao mesmo tempo o Médico, e o cirurgião quenão for incitado naturalmente a cumprir as obriga-ções da sua arte, não receando castigo, pela omis-são, nem esperando prémio pela sua diligência, cairánaquela inércia e prática rasteira, na qual vem cairtodo o homem fora da sociedade, e da correspondên-cia Médica; o que se evitará, certamente se todo oMédico ou cirurgião for governado por um TribunalMédico.

Continua a mesma matéria e sobrea jurisdição que deve ter o TribunalMédico

Se S. Majestade que Deus guarde for servido quese estabeleça o Tribunal Médico que proponho,encarregando-lhe a Inspecção e a Direcção do recto eútil exercício da Medicina e Cirurgia, e dos mais ra-mos desta arte; Se lhe for ordenado que só Ele possarecompensar os Médicos e Cirurgiões com os parti-dos civis, militares; parece ser indispensável que neleesteja deposta aquela jurisdição censória, que castiganos bens, na fama, e na pessoa com prisão, e comexílio. O prémio, e o castigo exercitados à risca sãoos mais soberanos Mestres de todas as acções hu-manas no Estado Civil: Se o prémio for proporcio-nado ao merecimento, e o castigo ao crime, na ciên-cia da Medicina serão o mais sólido fundamento dasua conservação, e da sua glória.

Para conservar os bens e a fama dos súbditos de-põem os soberanos a jurisdição que têm, no poderdos Magistrados Civis para executarem as leis de-cretadas a este intento: Parece indispensável que omesmo soberano deponha na mão dos Médicos agre-gados em um Tribunal aquela jurisdição, autoridadee cuidado que sempre tiveram todos, pela conserva-ção da saúde e das vidas dos seus súbditos. Os Esta-distas e os Magistrados Civis não tendo os conheci-mentos da Medicina, é força que só os Médicos con-gregados em Colégios e Tribunais, sejam autoriza-dos a governar e a dirigir esta ciência: o exemplo damaior parte dos Reinos e Repúblicas da Europa serãoa maior prova do referido.

Bem sei que reside hoje em Portugal uma espé-cie de Tribunal a quem preside o Físico-Mor, e oCirugião-Mor: este tem a seu cargo mandar exami-nar os Cirurgiões e Barbeiros, e aquele os Médicosque não são formados em Coimbra e os Boticários:tem jurisdição para condenar com penas pecuniáriase mandar prender pelo seu Meirinho; Mas falta neleso proverem os partidos do Reino; terem mais parti-cular cuidado da boa ordem e fidelidade das Boticase Droguistas; poder para suprimir e desterrar todosaqueles segredos que são a causa da perda de Medi-cina; terem Delegados em todas as cabeças das Co-marcas, e grandes vilas onde houver cinco ou seisMédicos, e outras mais incumbências que indicare-mos serem inerentes a este Tribunal.

Para remediar tantos males, que destroem os súb-ditos de Sua Majestade; para estabelecer-se a rectaadministração da Ciência de Medicina no Reino, esuas conquistas, atrevo-me a propor um Tribunal deMedicina, distribuído por todo o Reino e seus Do-mínios, e juntamente um Colégio Médico estabele-

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cido na cidade de Lisboa, e a sua imitação espalhadopor todo o Reino onde se acharem estabelecidos doisMédicos. Não determinarei os seus Estatutos, nemas Leis, ou Jurisdição do Tribunal Médico: somenteapontarei a matéria deles, expondo primeiramente osdanos que resultam actualmente do governo desta Ci-ência.

Que os melhores estudos deMedicina da Universidade nãosão bastantes para utilizar-se oEstado por esta Ciência

Ainda que por Lei Divina todo o homem está con-denado ao trabalho, e à fadiga, vemos que se as LeisCivis não promovem esta essencial obrigação, comoMãe de toda a felicidade, e de toda a virtude, queraras vezes se acham naturais que se ocupem parautilizar-se, e o Estado onde foi nascido. É logoda obrigação do Legislador formar tais leis, instituirtais costumes que sejam todos obrigados a exercitaro cargo que lhes tocou na sociedade civil, mas detal modo ordenado que os homens se determinem asegui-la pela sua própria utilidade, e jamais pela hor-rorosa face do castigo.

Suponhamos que saiu um Médico formado daUniversidade de Medicina que propusemos, apro-vado com todo o louvor que merece o engenho, aindústria, e a virtude, e que se estabeleceu numa vila,ou cidade do Reino, ou das Conquistas, que começoucom felizes sucessos na sua arte a adquirir a fama dobom Médico, e que estabeleceu de tal modo a suareputação, que não teme já perder nem os partidosde que goza, nem as amizades, que adquiriu. EsteMédico capaz, este cidadão virtuoso se resfriará empouco tempo daquele ardor com que adquiriu aquelafama: os seus estudos não serão já todos dedicadosa adiantar a arte que professa, nem a penetrar todosos meios possíveis de curar as enfermidades que co-nhece ou mais perigosas, ou incuráveis. Começará aestudar as humanidades, e atraído daquele enleio dapoesia, comporá versos; outros se aplicaraõ às Mate-máticas, outros à História Sagrada, ou Profana; em-pregarão o seu tempo nesta leitura, e o que servirádo maior detrimento à sua arte será ou cair no entusi-asmo da Química, ou formar um gabinete da HistóriaNatural; e o mais lamentável estado em que poderácair será no tédio da sua arte, e no aborrecimento doslivros de Medicina.

Baglivio ponderando as causas da perda da Me-dicina Hipocrática assinou todas aquelas que acaba-

mos de relatar e que desviam os Médicos de seguiros estudos desta Ciência. Mas não me quero valer deautoridades para provar o que se observa na vida damaior parte dos Médicos, apelo para os mesmos quelerão, poderá ser este papel, e estou certo que ficarãotodos convencidos da verdade que referi.

Se os Médicos Práticos, já estabelecidosnas Províncias, ou na Corte fossem obrigadosa encontrarem-se, tratarem e falarem juntos,corresponderem-se por cartas nas matérias dasua arte, não largariam os estudos da Medicina,nem teriam tempo para deleitarem-se em outrostotalmente diversos da sua profissão: porque oamor do louvor, e daquela superioridade que todosquerem adquirir e conservar entre os seus colegas,os incitaria enquanto vivessem a tratar, e a meditarnaquela arte pela qual recebiam distinções, comfama merecida, e conveniências.

Do modo que vivem hoje os Médicos em Portugalsem Tribunal Médico, e sem colégios de Medicinanas vilas e nas cidades, é o mesmo que viverem sem-pre em guerra, afastando-se cada dia do progressoda sua arte. Ordinariamente sucede que todos sãoinimigos ocultos uns dos outros: ainda que saibamas obrigações recíprocas que se devem, expressadasnaquele livro das obras de Hipócrates deDecenti or-natu, como por lei não são obrigados a se comunica-rem, nem dar conta da sua prática a superior algum,daqui vem que cada dia vivem mais retirados daquelaSociedade Médica que incitaria conhecimentos maisacertados da sua arte: Não necessito descobrir o véuque cobre os vícios ocultos, que destroem a repu-tação dos Médicos, e muitas vezes a saúde dos en-fermos: Basta-me que nos apontamentos, que fizerabaixo, para servirem de base aos Estatutos do co-légio da capital, e das vilas, e das cidades indiqueaqueles que ocorreram a este iníquo modo de proce-der contra os seus colegas.

É certo que se houver um Tribunal de Medicinaestabelecido por todo o Reino com poder de exami-nar todos os que quiserem praticar esta Ciência; eigualmente de empregá-los nos partidos das Câmarasdo Reino, nos Hospitais Reais, e outros mais proce-didos de qualquer comunidade secular, ou eclesiás-tica, que resultarão deste estabelecimento os efeitosseguintes.

1. Que todos os Médicos que quiserem praticar seaplicaraõ ao estudo, e a practica da sua arte paramerecerem a estimaçaõ deste Tribunal.

2. Que os partidos do Reyno seraõ mais bem pro-vidos com utilidade publica.

3. Que o Tribunal de Medicina sendo obrigado abuscar Médicos para todos os Partidos, tanto do

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Reino, como dos seus domínios, será obrigado,não só a corresponder-se com a Universidade,e ter todo o cuidado que a Medicina se ensinena maior perfeição, mas também que a mesmaFaculdade de Medicina procure ter discípulosinternos, e externos em estado de procuraremcom louvor esta ciência.

Todos sabem que no tempo presente, nem oFísico-Mor, nem o seu conselho, têm relação algumacom a Faculdade Médica da Universidade, e que nãotêm superior, nem Fautor na Corte que a proteja, nemque procure aumentá-la em bons Mestres, nem naqualidade de discípulos. E logo se poderá conside-rar, quão útil será para todos os Médicos, e para opúblico a disposição acima.

Bem sei a oposição que faria a Faculdade de Medi-cina de Coimbra, quando todos os Médicos formadosnela fossem obrigados a examinarem-se pelo Tribu-nal Médico, para poderem praticar no Reino e seusdomínios com partido ou sem ele: A resposta se-ria muito fácil e a Faculdade da Jurisprudência damesma Universidade nos dá o exemplo cada dia: To-dos aqueles Legistas que querem seguir o caminhodas Varas da Magistratura lêem no desembargo doPaço, que é o mesmo que serem examinados, nãoobstante estarem já decorados com os graus de Ba-charel, ou de Doutor da mesma Universidade. OProto medicado de Madrid instituído por FranciscoVales ouVallesiusexamina todos os Médicos dosEstados de Castela, não obstante os graus das suasUniversidades Reais, e Pontifícias; sem qual examee aprovação não podem praticar. Em França, em Sa-voya, e na maior parte dos Estados da Alemanha osgraus da Universidade não são de bastante valia parapraticarem os Médicos a sua arte, sem serem previ-amente examinados pelos Colégios Médicos, ou pe-los Tribunais desta Faculdade: com estes exemplos,e com a utilidade pública que resultará destes exa-mes, consentirá a Faculdade de Medicina Portuguesaque sejam examinados pelo Tribunal Médico os seusalunos.

Temos mostrado a grande utilidade que tirará opúblico que esteja a cargo do Tribunal Médico no-mear aqueles que hão-de servir os partidos, e as co-munidades seculares, ou Religiosas; pelo que pode-mos esperar se estabelecerá este Estatuto: Se umavez passar por Lei, também fundada, segue-se in-falivelmente, que este mesmo Tribunal deve exami-nar todos os Médicos formados na Universidade domesmo Reino. Como será da sua obrigação esco-lher aqueles que ocuparão os partidos é força que co-nheça a sua capacidade; e sem esse conhecimentoseria cega a sua eleição: e nenhum modo se apresen-

tará mais apto para conhecê-la do que examiná-losantes que comecem a praticar naqueles postos.

Eu bem sei quanta oposição encontrará da partedas Câmaras do Reino, dos Vedores Gerais das Pro-víncias, dos Provedores das Misericórdias, dos Ge-nerais, e dos Cabidos, e outros Prelados, que só fiquereservado ao Tribunal Médico nomear os Médicospara os partidos, que eles escolhiam, e colavam na-queles cargos. Mas todos sabem os abusos notóriosque se cometem; e cometeram até agora por esta an-tiga disposição: a menor parte do merecimento quese pretendia pelos Vereadores, e Vedores Gerais, erada Medicina: as valias, a subornação, as inclinaçõesparticulares, eram pela maior parte as prendas queserviam, e servem para alcançar e exercitar aquelescargos.

Obrigações que contrairiamos Médicos decorados com osPartidos pelo Tribunal da Me-dicina

A primeira obrigação que contrairiam os Médicosdos Partidos do Reino; e dos seus Domínios, seria re-meter ao Tribunal de Medicinacada mês, cada doismeses, cada seis, ou cada anouma relação das Epi-demias que reinassem, e que observassem na sua prá-tica, e aqueles casos mais graves e mais remarcáveisdela. Não somente na intenção de obrigar todos osmédicos assim empregados ao serviço do público aconsiderar, e pensar enquanto vivessem, na sua arte,mas também para guardar um jornal da sua prática;coisa tão necessária para os seus acertos, e feliz su-cesso das curas que tratam.

Por estas relações o Tribunal Médico ficaria infor-mado exactamente da capacidade de cada Médico noseu serviço: e ao mesmo tempo poderia ordenar asdisposições necessárias, ou para prover as enfermi-dades, ou para remediá-las, dando parte ao Ministé-rio Político para que ordenasse o que lhe ensinaria desalutar para ser executado por ordem dos Magistra-dos e dos Generais. E dando instruções aos Médicosempregados para curar com maior acerto1.

A segunda obrigação dos referidos Médicos parti-distas seria comunicar ao mesmo Tribunal Médico asituação, a exposição, aságuas, os rios, asdoenças

1N. B. Conforme a distância do partido que houver entreo Tribunal se determinaria o tempo no qual seria obrigadoo Médico Partidista remeter-lhe estas relações: o que de-via entrar nas Instruções que este Tribunal devia dar a cadaMédico com partido ou no Reino, ou Ultramar.

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 7

endémicas daquelasVilas ou Cidades, ou Regiõesonde eram Médicos, imitando nestas relações a dou-trina de Hipócrates, naquele excelente livro, e hojetão pouco usado,De Aëre Locis & Aquis. Como tam-bém dasproduções naturaisdeles, naquela extensãoque pertence a arte Médica; e também asdoençasepidémicas dos animais úteis.

Seria também da sua obrigação executarem todasas ordens emanadas deste Tribunal ou ficarem excluí-dos do partido que gozavam. SucedemEpidemias, eàs vezes aPeste, e estes estragos da humanidade re-querem socorro imediato da Medicina; como os do-mínios ultramarinos são pelo ordinário tão distantesdo Reino sucedeu muitas vezes, ou que não se achouMédico para servir nas frotas, ou que foi conduzidopor força. Quando o Tribunal ordenasse aos MédicosPartidistas ocupar algum dos lugares, que requeremas necessidades acima, no caso que repugnassem se-riam excluídos de todo o posto, e salário público, de-baixo da incumbência do dito Tribunal. Por que éinjusto que o súbdito empregado no serviço do Es-tado, com honras, e salário fique isento do serviço notempo que requer a sua necessidade.

Se os Médicos Partidistas com salário público, oudas Comunidades Seculares, e Eclesiásticas são obri-gados a cumprirem as obrigações referidas com oTribunal Médico, este mesmo deve ser o Protector,e Fautor dos mesmos Médicos; não só mantendo-osna posse dos privilégios de que gozam pelas Leis Ci-vis2 curatela, tutela, receita, quartéis, a eles suas mu-lheres e filhos; isentos da milícia e outros cargos, eimpostos comuns, mas ainda com especial protecçãodefendendo-os de toda a vexação, calúnia, e violên-cia. Seria da sua obrigação também, como de todosos Médicos aprovados por este Tribunal examinaremos abortos criminosos; abrir os cadáveres de morteviolenta por feridas, contusões ou veneno; examinaro grau da letalidade das feridas, logo que forem re-queridos pelas justiças do Reino, não só nos referidoscasos, mas também em todos aqueles que dependemdo conhecimento, e do juízo da Ciência da Medicina.

2COD. THEOD. lib. XIII, Tit. iii, De Mediciis & Pro-fessoribus per totum.

Que o Tribunal Médico deviater substitutos ou delegados emtodas as cabeças das Comarcasdo Reino e Ultramar com Ju-risdição emanada dele

O Tribunal Médico deve estar revestido da Jurisdi-ção de castigar com penas pecuniárias, prisão e exíliotodos aqueles que incorrerem na infracção dos seusEstatutos.

1. Que nenhum Médico, ou fosse formado na Uni-versidade do Reino ou em outra qualquer, pu-desse praticar a sua arte sem ser examinado eaprovado por este Tribunal.

2. Que nenhum Cirurgião, Sangrador, Oculista,Boticário, Droguista e Parteira pudessem exer-citar o seu ofício sem serem examinados e apro-vados pelo mesmo Tribunal, ou pelos seus de-legados nas cabeças das Comarcas.

3. Que todos os Médicos para praticarem nas Pro-víncias, como também os Cirurgiões, deviamapresentar as aprovações dos seus exames doTribunal da Medicina ao seu Subdelegado dolugar ou do distrito onde quisessem praticar;como também aos Corregedores das Comarcas,sem a licença dos quais não poderiam praticar:e não seriam bastantes as cartas da formaturada Universidade apresentadas aos Corregedo-res para alcançarem a dita licença como orde-nam as Ordenações liv. 1. tit. 53 § 33; seria,além desta lei, sempre necessário ser-lhe apre-sentada a atestação do exame do Tribunal Mé-dico, como fica determinado.

4. Que nenhum Boticário, Sangrador, Droguista,ou Parteira pudesse ter loja aberta, ou exercitaro seu ofício, sem serem examinados pelo Tri-bunal Médico, ou pelos seus Delegados, e jun-tamente autorizados por eles a exercitarem osseus ofícios. E que no caso que se achassempessoas que vendessem segredos de Medicina,que curassem com operações as enfermidadesdos olhos ou outras quaisquer pertencentes àMedicina, e à Cirurgia, ainda que vivessem de-baixo da protecção e asilo de Comunidade al-guma Secular, ou Eclesiástica, que deviam serpersecutados conforme as leis aqui abaixo indi-cadas,ex vida Jurisdição comunicada ao Tribu-nal da Medicina, e aos seus Subdelegados nascabeças das Comarcas.

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8 António Ribeiro Sanches

Abaixo trataremos em artículos separados o danoque causam ao bem público as Boticas das Comuni-dades Religiosas; como também que cada qual possavender os simples ou compostos das Boticas em lojaspúblicas com nome de Droguistas: Trataremos comdistinção do notável abuso de venderem-se publi-camente segredos tanto pelos Médicos e Cirurgiõescomo por outra qualquer pessoa Secular ou Eclesiás-tica: Trataremos também do sumo prejuízo que cau-sam aqueles asilos que dão muitas Comunidades eSenhores a certos homens Nacionais ou Estrangei-ros para curarem sem serem autorizados, nem pelaUniversidade nem pelo Tribunal Médico do Reino:E faremos distinção entre os Médicos Nacionais for-mados na Universidade do Reino e os Estrangeirosgraduados nas Universidades de Europa.

Do Tribunal Médico e das Pes-soas de que havia de ser com-posto

Até agora não entrou a Medicina no Estado Portu-guês como uma parte e como um dos ramos que de-vem contribuir para o seu aumento e para a sua con-servação: Até agora esta ciência considerou-se emPortugal, como uma arte saudável para socorrer asmoléstias com que se destrói a Natureza humana: detal modo que o seu exercício estava reduzido a socor-rer os homens, como se eles vivessem fora da soci-edade, que é o mesmo que viver sem Rei nem Leis:Os Tribunais do Físico-Mor, e do Cirurgião-Maior acujo cuidado, e Inspecção está o exercício da Medi-cina são tão concisos no seu poder, e tão limitados noaumento desta ciência, que parece não terem cone-xão alguma com o Estado Civil: Porque por aquelasdisposições não dependiam os Médicos daquele Tri-bunal, não esperavam pena, nem castigo, e muito me-nos prémio, ou recompensa, outra falta essencial seacha nestes dois referidos Tribunais ou Chancelarias,e vem a ser, não terem Subdelegados nas cabeças dasComarcas, e nos domínios do Ultramar, ficando destemodo reduzidos a exercitarem o limitado poder quetêm ao único lugar onde residem; ficando sem ins-pecção, sem governo todos os Médicos, Cirurgiõese Boticários &c. e jamais instruídos nem da capaci-dade dos que excelem na sua arte nem das faltas eerros que se cometem nela.

Outro defeito mais considerável se acha neste pre-sente Tribunal, ou Chancelaria do Físico-Mor, e nado Cirurgião-Mor. Os que presidem nelas são aspessoas dedicadas e empregadas na conservação daspreciosas vidas dos seus Augustos Soberanos; sem-

pre solícitos e ocupados na prática Médica da Corte;donde se poderá concluir facilmente que lhes não fi-cará tempo para cuidar, não só na boa administraçãoda Medicina e da Cirurgia, mas nem ainda para des-pachar as petições dos que necessitarem ser examina-dos e examinados conforme requer a importância dasvidas dos súbditos de todo um Reino: Será impos-sível que lhes fique tempo para desterrar os abusosintroduzidos que cada qual venda segredos de Medi-cina, que cada Comunidade Religiosa tenha uma bo-tica pública, que cada Nacional ou Estrangeiro possavender drogas ou remédios simples; e muito menosde estarem informados dos abusos que se cometemnesta matéria nas províncias, e principalmente nosdomínios do Ultramar.

Pelas razões referidas, e outras mais que serão fá-ceis de conceber-se por todos os Médicos e Cirur-giões com prática de alguns anos no mesmo Reinoe seus domínios, seria conveniente, e parece mesmoabsolutamente necessário, que nenhum Médico em-pregado no serviço da Corte fosse constituído nesteTribunal Médico que proponho.

Deveria constar dito Tribunal de um Presidente ededoisConselheiros; Médicos formados na Univer-sidade do Reino, e se pudesse ser, que tivessem vi-ajado por alguns anos nos Reinos Estrangeiros paraaprender e exercitar a sua arte: além destes requisitospara serem eleitos nestes lugares, deveriam ter prati-cado a Medicina ou no Reino ou nos seus domíniosdo Ultramar pelo espaço de dez anos do que teriamatestações.

Este Presidente e dois Conselheiros teriam cargospor toda a vida; e com salários tão suficientes quefossem bastantes para se sustentarem deles, sem se-rem obrigados a praticarem para ganharem a sua sub-sistência e das suas famílias.

Como seriam obrigados a largar estes cargos tantoque fossem condecorados com os cargos de Médicosda Família Real, da Câmara, ou de Físico-Mor, ou deCirurgião-Mor, os dois membros deste Tribunal pro-poriam três Médicos agregados no Colégio dos Mé-dicos que proporemos na mesma cidade de Lisboa,ao Secretário de Estado dos Negócios do Reino paraque S. Majestade, que Deus guarde, determinasse umdaqueles três propostos a exercitar o cargo de Presi-dente ou de Conselheiro que vagasse.

Além deste Presidente e dois Conselheiros entra-ria como parte constituinte deste Tribunal um Fis-cal ou Delegado do Procurador da Coroa, Doutor emLei, ou Licenciado para fazer executar os Estatutosdeste Tribunal, que deviam ter vigor de Lei; e pôrem execução as sentenças, e as resoluções do Presi-dente e Conselheiros: De tal modo que deste Tribu-nal saísse a sua execução autorizada com a Jurisdi-

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 9

ção Real para ser favorecida pelas justiças do Reino,quando fossem requeridas por este mesmo Fiscal.

Como todas as expedições deste Fiscal deviam serconforme a prática do Direito expressado nas Orde-nações do Reino, bem se vê devia ter seu escrivão,e seu Meirinho como se costuma em todos os Tribu-nais com Jurisdição.

Ainda que este Tribunal esteja suficientementeconstituído com um Presidente, dois Conselheiros, eum Fiscal, ou Delegado do Procurador da Coroa, nãoficarão excluídos dele o Físico-Mor, e o Cirurgião-Mor, ou este seja Médico somente, ou Cirurgião.

O Físico-Mor e o Cirurgião terão neste Tribunalassento a mão direita do Presidente, como Inspec-tores, e Fautores do objecto deste Tribunal, que é averdadeira prática e aumento da Medicina, e da Ci-rurgia: Eles terão o poder de verem e examinaremtodos os Jornais da Secretaria deste Tribunal, as sen-tenças, disposições, e resoluções dela; na intençãoque a Ciência da Medicina geralmente se pratique noReino e seus domínios com a maior vantagem dossúbditos, e com o maior aproveitamento, da mesmaciência e daqueles que a professam como Médicos,Cirurgiões, e Boticários, &c. Poderão representarpor escrito ou de palavra as suas intenções e os fun-damentos dos seus reparos não só a este Tribunal,mas também ao secretário de Estado dos Negóciosdo Reino. Mas não terão poder algum de intervir asuaInspecçãonas sentenças, nem nas expedições, ounomeação dos cargos que apresentará este Tribunal.

Do Secretário do Tribunal deMedicinaSerá de tanta consequência este cargo de Secretárioneste Tribunal, que devia saber a Medicina, escrevernas línguas materna, e latina, com elegância, e cominteligência das estrangeiras; além disso dotado deordem, actividade, e diligência: Porque havia de fa-zer os extractos das Relações dos Médicos emprega-dos nos partidos, e outros lugares: escrever as expe-dições, resoluções, e sentenças do mesmo Tribunal,que deviam ficar no seu cartório, e mandar as cópiasassinadas ao Fiscal, ao Colégio de Medicina, aos Mé-dicos, e aos cirurgiões dos Partidos e tudo mais quefosse da incumbência deste Tribunal.

Bem se vê que um cargo que necessita de tantaaplicação e assiduidade não poderá ser exercitado porum Médico que praticar a Medicina; e que será im-possível achar algum que queira destinar-se a esteemprego: Pelo que se poderá empregar nele aqueleque se conhecer for capaz de saber escrever na lín-gua materna e latina, deixando a inteligência do Pre-

sidente e dos Conselheiros dirigi-lo de tal modo quecumpra o que se requer dele. Não se determina osalário deste, nem de membro algum deste Tribunalpelas razões que todos poderão compreender.

Consequências tiradas da ExposiçãoacimaEstabelecido que for o Tribunal de Medicina pro-posto, ficarão o Físico-Mor, e o Cirurgião-Mor des-tituídos dos emolumentos que tinham pelos examesdos Médicos, Cirurgiões, Boticários, &c. Ficarãotambém privados do poder de examiná-los.

Somente o Tribunal de Medicina há-de ser reque-rido, e suplicado por todos os Médicos e Cirurgiõesque quiserem praticar no Reino e seus Domíniospara serem examinados, como também os Boticários,Sangradores, e Parteiras, ou pelos seus Delegados.

O Tribunal de Medicina não receberá dinheiro,propina ou outro qualquer emolumento pelo examedos Médicos, Cirurgiões, Boticários, &c. Nem osExaminadores; de tal modo que seja patente a todo omundo que por ser examinado ninguém deve pagar,nem pagará a mínima quantia.

Para evitar tanta fraude como se comete univer-salmente nos exames, o Tribunal de Medicina, com-posto de um Presidente e dois Conselheiros Médicos,não devia examinar suplicante algum para este efeito:O Colégio dos Médicos estabelecido no mesmo lugaronde residirá o Tribunal, seria aquele que examinariao Suplicante, ou fosse Médico, Cirurgião, Boticário,Sangrador ou Parteira; e para que mais facilmente sepossa conceber esta disposição seguiremos esta ope-ração desde a petição do examinando.

Quem deve dar a ordem paraexaminar e quais devem ser osExaminadoresJá dissemos acima que por Lei do Tribunal Mé-dico todos os Médicos formados na Universidade doReino, ou nas Estrangeiras deviam ser examinadospor ordem deste Tribunal, ou pelos seus Delegadospara alcançarem licença dele, poderem curar livre-mente: e que do mesmo modo se usaria com os Ci-rurgiões, Sangradores e Parteiras.

Suponhamos agora que um Médico que se formouna Universidade do Reino quer praticar nele ou nosseus domínios: o diploma da sua formatura não serábastante autoridade para praticar a arte que apren-deu: será obrigado a suplicar ao Tribunal de Medi-cina da Corte mandá-lo examinar, e que como espera

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ser aprovado pelos examinadores que lhe deputar, es-pera alcançar a licença de praticar a Medicina em to-dos os domínios de Portugal.

O despacho seria conforme os Estatutos domesmo Tribunal e do Colégio Médico concebido naspalavras seguintes: Visto, e examinado o Diploma(vg. de Bacharel, Licenciado, ou de Doutor, em talUniversidade) em virtude dos Estatutos deste Tribu-nal, e também dos do Colégio Médico recomenda-mos ao Ilustre Colégio dos Médicos desta cidade,determinar três examinadores conforme o Estatuto,para examinar o suplicante, e enviar o resultado assi-nado e selado a este Tribunal.

O Médico suplicante apresentará esta petição, e oseu despacho ao secretário do Colégio Médico paradeterminar o dia, ou dias do exame, e os examina-dores: os quais atestarão da capacidade do exami-nando, firmado pelo Deão ou Presidente e com o selodo Colégio: e entregando o suplicante esta atestaçãoao Tribunal de Medicina, feita em seu favor lhe pas-sará a licença de praticar a Medicina livremente pa-gando previamente a soma que estiver determinadapelos Estatutos do mesmo Tribunal.

Não obstante o dito exame, ficará ao arbítrio doPresidente ou dos Conselheiros examinar o supli-cante em particular para ficarem inteirados da suacapacidade principalmente se o quiserem empregarno serviço dos partidos do Reino, ou postos da suaJurisdição.

Mas os Cirurgiões, os Boticários, os Sangradores,e as Parteiras poderão suplicar para serem examina-dos e praticarem o seu emprego, e ofício não somenteao Tribunal de Medicina mas também aos seus De-legados nas cabeças das Comarcas, e nas cidades ca-pitais das Colónias e Conquistas: tendo as qualifica-ções necessárias para serem admitidos ao exame quepedem.

Como o Tribunal de Medicina terá os seus Delega-dos espalhados por todo o Reino, do mesmo modo oColégio dos Médicos estará fundado em cada vila oucidade cabeça de Comarca, ou cidade capital das Co-lónias, e Conquistas; e os Examinadores para Médi-cos, Cirurgiões, Boticários sairão e se acharão nesteColégio da Corte, e nos seus substituídos por todo oReino: E estes estabelecimentos subalternos deviamconformar-se aos Estatutos do Colégio Médico, e doTribunal de Medicina; o que apontaremos mais dis-tintamente quando propusermos a forma deste Colé-gio.

Deste modo não pagando o examinando o mínimovalor ao Examinador ficará livre o público do su-borno, e da falsidade, e determinaremos os emolu-mentos que terão estes examinadores dos Colégios,

que provirão daqueles que se agregaram aos mesmosou na Corte ou nas províncias.

Do modo que o Tribunal Mé-dico devia prover os Partidose mais postos dos Médicos, Ci-rurgiões, Boticários, &c. NaCorte, e em todo o Reino e seusDomínios

Um dos Estatutos deste Tribunal com força de lei de-via ser que tanto que fosse requerido pelas Câmarasdo Reino, pelos Provedores das Misericórdias, pe-los Vedores Gerais, pelos Cabidos, ou Prelados dasOrdens que nomeasse um Médico da sua aprovaçãopara curar na vila ou na cidade, Hospital ou Comuni-dade; ou para outros lugares, como Médicos da saúdedos Portos do Mar, ou outros quaisquer com saláriodo público, que dito Tribunal seria obrigado a no-mear e determinar um Médico, ou fosse no Reino,ou nos seus domínios do Ultramar, para exercitar ocargo requerido pelos ditos superiores.

No requerimento que fariam as Câmaras, ou osVedores Gerais se declararia o honorário anual, queteria aquele Médico, e a obrigação de curar, se, porexemplo era Hospital, Comunidade, ou uma vila, ouparte da cidade. Deste modo ficaria o Tribunal Mé-dico instruído da necessidade de ser provido aquelelugar, e igualmente, para dar-lhe as instruções, quedeveriam estar escritas num Livro da sua secretaria,para se dar delas a cópia a cada Médico com expedi-ção de partido; e parte delas estariam determinadaspelos Estatutos do mesmo Tribunal.

Como este mesmo teria conhecimento de todos osMédicos formados na Universidade do Reino; poisque devia ter com ela correspondência, e ficar intei-rado do número e dos nomes daqueles que se forma-vam cada ano: Como nenhum poderia praticar semexame por sua ordem e licença era forçoso que con-servasse uma lista de todos os Médicos existentes,com o seu nome, tempo da formatura, habitação, eresidência; e lhe seria então fácil nomear um Médicorequerido por qualquer Câmara do Reino, ou Tribu-nal para empregá-lo no lugar requerido pelos ditosMagistrados.

Todo o bom sucesso desta disposição consistirianas Instruções que o Tribunal Médico entregaria aoMédico nomeado no partido destinado; e para to-dos que lerem estes apontamentos fiquem persuadi-dos da sua utilidade, darei aqui o modelo, deixando a

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 11

quem determinar a execução diminuir ou acrescentaros pontos que se contém neles, conforme as circuns-tâncias particulares.

Modelo das Instruções que oTribunal Médico devia dar acada Médico que Ele decorassecom partido ou outro empregoem todos os Domínios de Por-tugal

Como o Vereador mais velho, Vereadores, e Procura-dor do Conselho de..... (do mesmo modo, se um Ve-dor Geral, ou Cabido, ou Governador) para executa-rem a lei de S. Majestade que Deus guarde requerema este Tribunal serem providos de um Médico, tãohábil e tão capaz que satisfaça o intento dos Reque-rentes e do público, conformando-nos à mesma leinomeamos a F....Médico formado na Universidade...no ano 17... e examinado por ordem deste Tribunal eaprovado para praticar a Medicina em todos os Do-mínios de S. Majestade no ano 17. ..digno de pos-suir, e servir o partido de Médico da Câmara da vila...com o honorário anual detantosmil réis: E para queo Médico provido neste cargo possa exercitá-lo comtoda a reputação que requer a arte Médica, e a utili-dade pública, será obrigado conformar-se à instruçãoseguinte expressada nos Estatutos autorizados comvigor de Lei que são os seguintes:

1. Que cada mês (cada três meses, ou cada seisconforme a distância que houver do lugar dasua residência à do Tribunal) será obrigado dara este mesmo Tribunal uma relação distinta dasenfermidades epidémicas, ou dos casos maisraros, e complicados que observar na sua arte;como também do número dos enfermos, dosque se curaram, ou que morreram.

2. E por que convém ao Tribunal Médico estarinformado da salubridade dos lugares, vilas, ecidades de todos os domínios do Reino comotambém dos lugares perniciosos à vida e àsaúde dos habitantes, será da obrigação do pro-vido no cargo nomeado, dar uma relação do sí-tio do lugar onde exercitar a sua prática, daságuas, do ar, e das enfermidades endémicas:e daquelas causadas pelos temporais, fomes,carestias, como também daquelas dos animaisúteis à sociedade civil.

3. E porque muitas vezes sucede aos mais bem

instruídos e experimentados na Ciência Médicaocorrerem enfermidades, e casos tão complica-dos que não se sujeitam ao mesmo estabelecidona Medicina, não só fica autorizado: o providonesse partido de consultar este Tribunal em se-melhantes casos, mas ainda em todos aquelesque achar necessário para exercitar o seu cargocom toda a dignidade e utilidade comum; doqual receberá resposta, e direcção conforme osseus estatutos dirigidos todos a este mesmo fim.

4. Poderá o provido do partido por esta presenteprovisão escrever em direitura pelo correio aeste Tribunal, ou ao seu Delegado na vila, ouna cidade que se achar mais perto da sua re-sidência; na intenção que seja despachado tãoprontamente como requerer a sua petição, ouconsulta. E para que se cumpram as formali-dades que requerem as Ordenações do Reino,e os Estatutos deste Tribunal essa carta de pro-visão será apresentada às Justiças, e ao Dele-gado deste Tribunal, existente na Comarca doseu partido, como também ao Colégio de Me-dicina, se existir no lugar onde exercitará o con-teúdo nesta presente provisão. Dado &c..

Sobre os honorários dos Parti-dos dos Médicos e dos saláriosdos Cirurgiões pagos pelo pú-blico e pelas Comunidades

Duvidarão alguns Políticos se os Médicos e os Pá-rocos deviam ter emolumentos do Público: porquesendo remunerados, e pagos, por todos aqueles queos ocupam, parece que ficaria esta sorte de cidadãosmais remunerados, do que todos os outros que ser-vem o público nas mesmas circunstâncias: que destemodo se perderia o equilíbrio nos cargos públicos;e que a maior parte dos cidadãos correriam a abra-çar estes dois empregos de Médico, e de Eclesiásticocura de almas, sendo ao mesmo tempo pagos pelosparticulares, e pelo público, o que se não achará nosmais empregos, ofícios, ou cargos facilmente, e comvantagens semelhantes.

No tempo del Rei Dom Manuel se fundaram asMisericórdias com Hospitais, do modo que hoje seconservam, e me parece que desde aquele tempo seestabeleceram os Partidos das Câmaras, que são or-dinariamente de 30 :000 rs: e como o marco de pratavalia naquele tempo 2 :400 rs., e hoje 6 :000, segue-se que o partido daquele tempo e no del Rei Dom

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João o III do valor de 30:000 rs. vale hoje 67:500 rs.[sic].

O Legislador considerando que as riquezas doshabitantes eram limitadas reduzindo-se todas pelamaior parte a uma agricultura privada de todo o co-mércio, dispôs admiravelmente que os Médicos ti-vessem honorário do público para o seu sustento pre-vendo que não poderiam subsistir com as pagas dosparticulares.

Como os povos na maior parte das Comarcas vi-vem hoje sem comércio, nem agricultura, subsistemas maiores causas para se continuarem os honoráriosdos partidos Médicos, no Militar com mais razão,e necessariamente nos Cabidos, e nas ComunidadesReligiosas.

Pelo que entraria nos Estatutos deste Tribunal quequando as Câmaras, os Vedores Gerais, os Governa-dores, os Cabidos, os Prelados de Comunidades lherequeressem a necessidade que tinham de Médico,de representar-lhe ao mesmo tempo o honorário quefixariam àquele Médico que seria destinado a serviro cargo requerido.

Seria também dos Estatutos do mesmo Tribunalque tivesse inspecção no justo salário que deviam teros Médicos destinados a servir os partidos; represen-tando talvez às Camaras aumentá-los, a proporção dotrabalho, e da extensão dos povos, e novas institui-ções de Hospitais que devia curar; talvez aos Secre-tários de Estado dos Negócios do Reino, e da Mari-nha, os poucos ou demasiados emolumentos que ti-nham os Médicos destinados a certos lugares, tudona intenção de proteger os beneméritos e ficarem ser-vidos os povos com sujeitos capazes, e inteligentes:ficando assim esse Tribunal não só como fautor destaciência, mas também como Fiscal de diminuirem-seos salários demasiados daqueles partidistas que peloseu pouco trabalho o não merecessem.

Tudo o referido se deve entender dos Médicos edos salários que não forem do serviço da Corte; osquais ficarão isentos de toda a inspecção, e Jurisdi-ção deste Tribunal: Para que fique a Jurisdição doMordomo-Mor sem a mínima oposição de Tribunalalgum que reger a Medicina.

Da Cirurgia e dos Cirurgiões,e se esta arte devia ficar sepa-rada da Medicina, como hojese pratica em Portugal

Entre todos os estabelecimentos das artes e ofíciosque se conservam na República, nenhum se conhece

mais indispensável, mais necessário, e mais útil doque a cirurgia; ou aquela parte da Medicina que curaos males pela operação das mãos: Mas ao modo dascoisas humanas, o que tem esta arte de útil quandofor bem administrada, tanto maior será o dano e aruína, se não for governada pelo Estado Político.

Enquanto existiu a Escola de Medicina em Ale-xandria; enquanto esta ciência foi somente exercitadapelos Médicos Gregos, todo o Médico era Cirurgião,e todo o Cirurgião era Médico; e não existia formal-mente separação alguma nesta ciência do modo quehoje é conhecida, e aprovada a sua separação, mesmopelas leis dos Estados da Europa.

Até o ano 700 não foi conhecida a cirurgia dis-tinta da Medicina: a destruição das Ciências e dasartes na Grécia e na Europa pela invasão das Naçõesdo Norte, e pelas conquistas dos Sarracenos, foi acausa: os poucos monumentos que ficaram das Ciên-cias, e particularmente da Medicina se retiraram nosConventos, e nos Cabidos; vieram então os Fradese os Clérigos, os Médicos daqueles tempos; e comopelo instituto da Igreja Católica Romana lhe não erapermitido verter sangue, daqui veio que estes Ecle-siásticos deixaram as operações de cirurgia, e se con-tentavam com a sangria, que qualquer homem igno-rante exercitava: os Médicos Árabes não exercitarama Anatomia, a sua Religião, o clima onde habitavam;o fundarem a Medicina na Filosofia Aristotélica, enos discursos Metafísicos, largaram este essencialensino para estudar e exercitar esta arte. Desta ori-gem veio o inteiro esquecimento da Anatomia até otempo deMundinono século quatorze; e desta ori-gem a total separação da Cirurgia e da Medicina: Eainda que no século XVINicolau Massa, Vessalio eFabricio ab Aquapentlenterestituiram a Anatomia, ea Cirurgia que exercitaram igualmente com a Medi-cina, sendo Médicos formados, nem por isso naqueleséculo, nem nos seguintes até os nossos dias deixa-ram estas duas partes da Medicina serem exercitadas,por duas sortes de homens no mesmo Estado.

Não é deste lugar tratar com especialidade dos da-nos que resultam por se exercitarem estas duas artes,por duas sortes de homens; e que toda a preferênciaque tinham, e devem ter os Médicos Gregos, consis-tia serem ao mesmo tempo Médicos, e Cirurgiões.O que importa saber ao Legislador e ao MagistradoPolítico é se o Estado recebe dano que a Cirurgiase exercite pelos Cirurgiões, do modo que se praticahoje em Portugal, Castela e França, e em Itália: ouse seria de maior utilidade que todo o Médico fosseCirurgião, e pelo contrário: ou que todos os Boticá-rios fossem Cirurgiões e todo o Cirurgião Boticário,como é constante costume em Inglaterra, fora da ci-dade de Londres. De tal modo que ficasse extinto

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 13

aquele ofício de Cirurgião no Estado Civil, daquelemodo que hoje se pratica.

Vários têm sido os tratados que escreveram muitosMédicos, e principalmente Goelick Platner e Heis-ter para obrigar todos os Médicos a praticarem a Ci-rurgia; e que nenhum Cirurgião fosse autorizado apraticar a sua arte sem ter estudado a Medicina: Naverdade, todos os que praticaram esta ciência fica-ram convencidos da força dos seus argumentos; mascomo escrevemos para quem não exercita esta arte,usaremos de outros mais palpáveis, e que todos po-derão conhecer ainda mesmo com pouca reflexão.

A Cirurgia se ocupa em curar pelas operaçõesaqueles males aparentes do corpo humano, ou sejapelo meio dos instrumentos, ou dos remédios; de talmodo que necessita o Cirurgião saber a ciência daMedicina tão bem, e tão perfeitamente como o Mé-dico: e como para aprender a verdadeira Medicinapor princípios demonstráveis é necessário aprender aCirurgia em primeiro lugar, daqui vem que tão obri-gado é o Médico a saber Cirurgia, como o Cirurgiãoa saber a Medicina.

Esta proposição é tão certa e tão evidente quenão haverá Médico ou Cirurgião instruído medíocre-mente na sua arte, que se oponha a ela com a menordificuldade: Mas desgraçadamente as Universidades,e as Escolas de Cirurgia, e os Magistrados dos Esta-dos Civis da Europa exceptuando Inglaterra, de al-gum modo, seguem a prática contrária. Nas Univer-sidades onde se ensina a Medicina os Estudantes quea estudam não aprendem a Cirurgia prática. E nasEscolas de Cirurgia não se ensina a Medicina, aindaque todo o mundo veja que os Cirurgiões curam tantoos males externos do corpo humano, como os inter-nos; que é o mesmo que dizer, que é o Cirurgiãoum homem no Estado Civil que exercita uma arteque nunca aprendeu; e para que ninguém me acuseque calunio os Cirurgiões, quero descrever aqui o seumodo de praticar a Cirurgia, e a Medicina e tambémdo modo que aprendem, ou são educados.

Raras vezes sucede em Portugal achar-se um Ci-rurgião que saiba Latim, e que foi educado nas es-colas: entra a aprender a Cirurgia em casa de umMestre, ou num Hospital: o que aprende são os prin-cípios da Cirurgia, alguma anatomia, e fazer as ope-rações; estuda e pratica nestas escolas por três, ouquatro anos, nas quais nem aprendeu arte Médica,Química, nem Farmácia; e nunca se aplicou a curarnem a tratar as febres, nem as mais doenças que des-troem o corpo humano.

Examina-se por último, sai autorizado com as suascartas assinadas pelo Cirurgião-Mor somente paracortar pernas e braços, e tudo o mais que pertence àCirurgia; estabelece-se numa vila, cidade, ou aldeia,

e com aquela licença que tem de praticar a Cirurgia,se autoriza para ser Médico, Cirurgião e Boticário.

É certo que em cem homens que caem enfermos,ordinariamente só cinco deles necessitam de socorroda pequena cirurgia, quero dizer sangria, abrir apos-temas, concertar um braço ou perna por deslocação,ou fractura simples de tal modo que de noventa ecinco, dos que adoecem necessitam absolutamentede Médico, e cinco somente do socorro do Cirurgião.Ninguém duvidará do referido: mas que faz este Ci-rurgião? Se é chamado por aqueles doentes que ne-cessitam somente de Médico não deixa de curá-loscom sangrias, purgas, e com aqueles remédios queele ou aprendeu naPolianthea de Curvo, ou noSo-corro Délfico de Henriques: a sua prática se reduza ser Médico: porque dentro de um ano este Cirur-gião fará dez operações daquela arte que aprendeu: eno caso que se contivesse por remorso de consciên-cia a não curar outro enfermo, que aquele que neces-sita da Cirurgia, é certo que este Cirurgião morreriade fome: porque entre 300 enfermos ordinariamentesomente 15 necessitam do socorro das operações dacirurgia maior, que são as operações feitas com ins-trumentos, exceptuando o dalanceta: não falo numHospital Militar no tempo da guerra: mas esses casossão raros; e eu falo aqui desta Ciência que se exercitano tempo da paz; ou entre os Cidadãos.

Do referido se vê que o Estado tem estabelecidouma escola de Cirurgia, e um Cirurgião-Mor, paraautorizar um Cirurgião a praticar por toda a vida umaarte, quero dizer a Medicina, que nunca aprendeu: énotório que todos os Cirurgiões tanto na Corte, comonas Províncias, nos Navios de Guerra, ou Mercantes,nas Colónias, e nas Conquistas curam todas as do-enças e enfermidades que costumam infestar o corpohumano: tão facilmente tratam as febres, e os ma-les crónicos, como uma ferida, ou fractura: mas nãoquero por juízes deste proceder que os mesmos Ci-rurgiões: que me digam em que livro, aprenderam acurar as febres, os Pleurizes, e as cólicas que tratam?Quem foi o Mestre que os ensinou a curar conformerequer a vida dos cidadãos, e a mesma humanidade?Mas que há-de ser, vê toda uma vila e uma cidadeque este Cirurgião tem faculdade de curar, que mui-tos o chamam, que curou a muitos de semelhantesqueixas, e julgando pelo que vê, ajuda a multiplicaros erros do povo, e a destruição de muitas vidas.

Além disso como os Médicos são raros nas vilas, enas aldeias, como nas colónias são ainda mais raros,ficam obrigados os Cirurgiões a curarem como Mé-dicos; porque a necessidade os autoriza igualmente,como o Estado, dando-lhe faculdade de curarem ex-pressamente a cirurgia: abaixo indicaremos a causada raridade dos Médicos nas Províncias e poderá ser

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que indicaremos o remédio mais acertado, para fica-rem providos deles sem dispêndio do público.

Até agora mostrei os danos que sofre o Estado Ci-vil por se exercitar a Medicina e a Cirurgia por duassortes de homens: agora mostrarei o dano que re-dunda na mesma ciência da Medicina e na Cirur-gia: Como a maior parte dos enfermos chamam noprincípio da queixa os Cirurgiões, e que o Médico ésomente chamado no quarto ou quinto dia, e às ve-zes mais tarde, daqui vem que poucos são os Médi-cos bem instruídos da história das doenças; principalfundamento para se curarem com feliz sucesso. OCirurgião não tendo a ciência da Medicina por baseda sua arte não sabe curar os sintomas que sobrevêmàs operações; e que aqueles que morrem das feridas,e das grandes operações, mais provém dos erros quese cometem na sua cura que no manual da operação.

Do referido me parece poderão todos julgar queseria utilíssimo ao Estado Civil que todos os Médi-cos fossem capazes de exercitar a Cirurgia; e que to-dos os que hoje conhecemos por Cirurgiões fossemeducados como são, e devem ser os verdadeiros Mé-dicos. E que seria necessário abolir na sociedade estasorte de emprego que conhecemos com o nome deCirurgião: E para que fosse possível pôr em práticaesta proposição, me atrevo a propor a disposição se-guinte.

Do modo que se devia prati-car no Estado a Medicina ge-ralmente

Se todos os Médicos fossem educados na Universi-dade como propusemos, nosApontamentos para for-mar uma Universidade Real, e por último se incorpo-rassem em colégios Médicos, como diremos abaixo,poderiam então dedicar-se a praticar a Cirurgia dasgrandes operações, como são doTrepano, Da fistulaLacrimal, doEmpiema, Das Hérnias &c.

Ao mesmo tempo devia haver tais escolas e tal dis-posição nelas, que todo o Cirurgião ordinário fosseBoticário, e que todo o Boticário fosse Cirurgião, ousoubesse a Cirurgia prática: em Inglaterra é a cons-tante prática fora de Londres, e das cidades princi-pais, que todo o Boticário é Cirurgião, e pelo con-trário: Deste modo o Boticário é o sangrador; o queaplica fomentações, abre os abscessos superficiais, eque cura as feridas não penetrantes; fazem o mesmocom os enfermos que fazem os nossos Barbeiros san-gradores, a quem El Rei concede cartas de meia ci-rurgia.

E quando requeressem as queixas que pertencem

à Cirurgia maiores socorros, então podia ser empre-gado o Médico Cirurgião; no que seria mais feliz, emais experimentado não só por que haveria mais oca-siões de operações, mas também por ser mais beminstruído, e educado que os Cirurgiões ordinários.

Vejamos agora a utilidade que retiraria o Estado,e a Medicina do proposto acima.

Empregam-se hoje em Portugal quatro sorte dehomens a exercitar a Medicina: resulta o dano quesão tantos os enfermos como aqueles que estão porofício obrigados a curá-los: resulta que muitos lu-gares, e aldeias ficam destituídos de todo o socorroda Medicina; mas se todo o Cirurgião fosse Boti-cário poderia estabelecer-se e adquirir a subsistênciaem cada lugar que constasse de trinta famílias. Hojecomo se necessita de Médico, de Cirurgião, de San-grador e de Boticário para curar às vezes uma febreacompanhada de parotidas, ou com gangrena, daquiprocede que fica a maior parte do Reino, sem socorroalgum da Medicina; em lugar que se todo o Cirurgiãotivesse Botica, e todo o Boticário fosse Cirurgião domodo proposto, podia-se estabelecer na mais ténuealdeia.

O Estado ganhava a metade daqueles homensque se empregam hoje na prática da Medicina: eo público ganhava socorros da Medicina em todosos lugares e aldeias, onde hoje nenhum Boticáriopoderá subsistir. A Medicina aumentaria conside-ravelmente: haveria Médicos práticos consumadoscomo eram os Gregos porque observariam as doen-ças desde o primeiro dia até o seu fim; porque nãohavendo os Cirurgiões de hoje que se intrometemsempre no ofício dos Médicos, ficava esse obstáculovencido, para vir a ser bom Médico, e sempre empre-gado: como praticaria, se quisesse a Cirurgia adqui-riria por esta prática dobrada ciência na sua arte; ese multiplicaria o número dos Médicos naqueles lu-gares onde hoje não podem subsistir, porque o Cirur-gião, e o Barbeiro sangrador intrometendo-se a pra-ticar fazem que faltem enfermos ao Médico formadonas pequenas povoações.

O Cirurgião Boticário, seria mais douto, e maisbem instruído do que são hoje os Cirurgiões, igno-rantes pela maior parte da Farmácia; e os Boticáriossaberiam melhor a sua arte praticando a Cirurgia, ea Medicina onde não houvesse Médico, ou consul-tando aqueles que estivessem no seu distrito.

Vimos os danos que redundam no público,exercitando-se a Medicina por Médicos, Cirurgiões,Sangradores, Barbeiros, e pelos Boticários: Propusos Médicos, Cirurgiões, como eram os Gregos: e ul-timamente mostrei a utilidade que redundaria no Es-tado, e na Medicina, se ao mesmo tempo se estabele-cesse que todo o Cirurgião fosse Boticário, e todo o

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 15

Boticário, Cirurgião: Deixo à consideração do Tribu-nal Médico, que propus de ponderar esta matéria, quetantos célebres Médicos, e Lentes nos nossos temposinstaram para introduzir-se, e somente na Inglaterrase tem introduzido nas suas províncias que os Cirur-giões sejam Boticários; e pelo contrário. E para quenão pareça que decido tudo sem pensar nos inconve-nientes, que se encontram nos novos estabelecimen-tos os proporei na secção seguinte e ao mesmo tempodo modo que se poderia tratar com os Cirurgiões noEstado presente, e com os Boticários, e com os Bar-beiros Cirurgiões.

Obstáculos à proposta acima; emétodo que se poderia introdu-zir na prática da Medicina noseu presente estado

Eu bem pondero a dificuldade que haverá necessaria-mente que todos os Médicos sejam capazes de prati-car a Cirurgia, e a Medicina ao mesmo tempo: comosão educados nas Escolas do Latim, da Eloquência, eda Filosofia por muitos anos, e que entraram a estu-dar a Medicina de dezoito ou vinte anos; nesta idadeainda que no Hospital da Universidade comecem aaprender, e a estudar a Cirurgia, e a Medicina, prá-ticas ao mesmo tempo, é certo que nem todos se-rão dotados de um natural tão activo, forte, e cons-tante, como requer a prática da Cirurgia. Não obs-tante que muitos Médicos nos nossos tempos pratica-ram com sumo aplauso a Cirurgia, como foramPlat-ner em Leipzig Heister em Helmstadt,Albinus emLeide, e João Douglas em Londres, é certo que pou-cos mais imitaram estes doutos e famosos homens:Além disso era necessário tempo para se formaremno Hospital da Universidade semelhantes Médicos,e entretanto não podia ficar o público destituído deCirurgiões.

Se todos os Boticários fossem Cirurgiões, e to-dos os Cirurgiões, Boticários, seria meter a confusão,ódios, e disputas entre estes Boticários, e entre os Ci-rurgiões, e Barbeiros Sangradores actualmente: Por-que estando estes últimos autorizados a exercitaremaquela arte, com razão se queixariam se os Boticáriossangrassem, e praticassem meia cirurgia: prevendotanta queixa, e murmuração, prevendo a dificuldadede introduzir-se o melhor, sem destruir previamentemuitos estabelecimentos, que os costumes antigospermitiram proporei pelo menos o que se poderá pra-ticar, nesta matéria conformando-me ao estado actualda Medicina e da Cirurgia, deixando à providência

do Tribunal de Medicina introduzir pouco a poucotudo aquilo que contribuir mais eficazmente à utili-dade pública, e ao aumento da Ciência Médica emgeral.

Propõe-se o Método de regrara Medicina, Cirurgia e Farmá-cia conforme se pratica actual-mente em PortugalConsiderando que todos os Médicos que se forma-rem na Universidade serão instruídos na prática daCirurgia, igualmente, como na da Medicina: consi-derando também que se estabelecerá na capital doReino, e à sua imitação em todas as cidades e vilasprincipais do Reino um Colégio Médico, facilmentese poderiam introduzir nele Médicos Cirurgiões parapraticarem ao mesmo tempo a Medicina, e Cirurgiadas operações principais, deixando a da sangria, ouaos Cirurgiões, ou aos Barbeiros Cirurgiões &c.

Médicos

Dissemos acima que todos os Médicos formados naUniversidade deviam ser examinados por ordem doTribunal da Medicina, e com sua aprovação e licen-ças alcançarem a faculdade de praticar a Medicina ea Cirurgia no Reino, e em todos os seus domínios.

Dissemos também que logo que um Médico assimautorizado quisesse estabelecer-se, ou na capital ounas províncias, que seria necessariamente obrigadoincorporar-se no colégio da vila ou cidade que esco-lhesse, se nela houvesse dito colégio.

Seria dos Estatutos deste Colégio Médico, quetodo o colega que quisesse praticar a Cirurgia, junta-mente com a Medicina, dedicando-se a fazer as ope-rações maiores desta arte, devia informar o TribunalMédico da determinação deste Médico, ou Médicos:E então seria da providência do mesmo Tribunal em-pregar estes colegas nos partidos mais lucrativos, edistintos: e deste modo em poucos anos se introdu-ziria que a maior parte dos Médicos exercitassem aMedicina e a Cirurgia ao mesmo tempo, do mesmomodo que praticaram os Médicos Gregos. Como des-graçadamente a Anatomia se não conhece na Univer-sidade de Coimbra nenhum Estatuto Médico, nemlei também civil obrigou aos Médicos, e aos Cirur-giões abrirem os cadáveres daqueles que morreramde morte violenta por ferida, contusão, sufocação, ouveneno; ou voluntariamente, ou por ordem da justiça.

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Uma semelhante Lei introduzida em todos os Reinosmais bem civilizados é comum em toda a Europa:As justiças têm a providência de ordenar aos Médi-cos, e Cirurgiões, ou sejam dos partidos, ou sem elesde abrirem semelhantes cadáveres, de indagar nelesa causa da morte, e de darem por escrito e assinado oque observaram neles.

Bem se poderá considerar quantas luzes tiraria ajustiça de semelhantes exames.

Cirurgiões

Que os Cirurgiões sejam examinados por ordem doCirurgião-Mor e aprovados com faculdade de prati-carem a Cirurgia, como hoje se pratica em Portugal,ou que os mesmos Cirurgiões sejam examinados porordem do Tribunal Médico como propusemos, ou pe-los seus Delegados, e terem dele a faculdade de exer-citar a Cirurgia, pouco importa para o que vou pro-por.

Nenhum Cirurgião devia ser aprovado, nem alcan-çar a faculdade de praticar a sua arte sem ter apren-dido a Farmácia pelo espaço de três anos na boticade um Boticário aprovado, e autorizado pelo Físico-Mor, ou pelo Tribunal de Medicina proposto acima.Desse modo obrigando todos os Cirurgiões a apren-der a Farmácia mais por prática do que pela teoria,seriam mais bem instruídos na sua principal arte, e aomesmo tempo não se multiplicaria o número dos Ci-rurgiões ignorantes tão facilmente como hoje se ob-serva, com dor e mágoa, considerando os danos quepode causar um Cirurgião ignorante: e deve preva-lecer tanto este pensamento na consideração do Ma-gistrado, que deve estimar mais que os seus povosfiquem sem socorro algum da Cirurgia, do que expô-los à prática desta arte sem as luzes necessárias deexercitá-la.

Se me disserem que ficando obrigados todos osCirurgiões a aprender por três anos a Cirurgia e poroutros três a Farmácia que não haverá bastantes noReino, nem para servir os povos, nem os exércitos,e a navegação, ou pelo largo tempo que necessitamde aprender, ou por que não terão os meios de dis-pender neste ensino de seis anos. Respondo que ne-nhum serralheiro, chapeleiro, ferrador &c. se queixaserem-lhe necessários seis e sete anos de aprendizpara exercitarem como Mestres o seu ofício; e queseria coisa sem fundamento algum que se queixemos aprendizes de Cirurgia, ou o público, que apren-dam por seis anos aqueles que devem ser aprovadosnela: consideremos o dano que poderá causar um Ci-rurgião ignorante, obrigado tantas vezes a curar todaa sorte de doenças, e então veremos que não debalde

toma o Estado tanta precaução no seu ensino: consi-deremos também que no mesmo tempo que o apren-diz Cirurgião estudar a Farmácia, poderá exercitar-sena Cirurgia, e adquirir nela maiores conhecimentos,principalmente se habitar nos lugares onde houverHospitais Reais ou das Misericórdias, ou do Exér-cito: É certo que nestes dois exercícios, Cirurgia, eFarmácia pelo espaço de seis anos adquiriria conhe-cimentos mais sólidos e necessários do que nos tem-pos presentes se observam no comum dos Cirurgiões.

A utilidade que receberia o Estado, além daquelade ter a seu serviço melhores cirurgiões, seria dimi-nuir esta sorte de homens que exercitam, e praticampor toda a vida, e em todos os lugares, não obstanteas devassas e o procedimento de proceder contra asleis do Reino, uma arte, qual é a Medicina, que ja-mais aprenderam na sua vida.

Se o Tribunal Médico quisesse somente premiarcom os partidos lucrativos aqueles Médicos que exer-citassem ao mesmo tempo a Cirurgia maior, é certoque muitos daqueles Cirurgiões que tivessem apren-dido a Farmácia, como acabamos de dizer, se deter-minariam a ser Boticários, devendo ter essa mesmafaculdade pelo exame, e aprovação deste referidoTribunal: Não necessitaria o Estado que se empre-gassem quatro sortes de homens em uma só arte, qualé a Medicina. Uma lei se observa em França tocanteaos Cirurgiões muito útil para a conservação da paz edas vidas dos povos, que não é conhecida em Portu-gal, ainda que sumamente necessária. Logo que umCirurgião curou uma ferida, contusão, ou outra qual-quer parte ofendida violentamente com espada, pauou bala e lhe aplicou emplastro ou outro qualquer re-médio é obrigado dar por escrito ao Juiz do lugar, oudo Bairro uma declaração daquele caso: e no casoque por negligência, ou malícia não cumpriu a lei, écastigado severamente.

Fora bem necessária em todos os domínios Portu-gueses esta lei, que todo o amante do género humano,e da Pátria quisera ver praticada exactamente.

Boticários

Ninguém pretenderá ler nestes apontamentos a an-tiguidade deste ofício, o seu objecto, a sua utilidade,ou dano que poderá causar ao público: As nossasOrdenações fazem menção dele em vários lugares emuitos outros Estatutos que não tenho presentes;

Sei que é lei do Reino que nenhum Médico nemCirurgião poderá ser ao mesmo tempo Boticário; quenuma mesma vila ou cidade não possam viver o PaiMédico, e o filho Boticário, e pelo contrário: Pareceque a intenção desta lei foi impedir que o Médico, ouCirurgião, não ordenassem remédios que não fossemprecisamente necessários aos seus enfermos, e que se

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 17

ajustariam com o Boticário em dano dos bens, ou davida dos enfermos.

Esta lei por ser muito acautelada, peca pelo poucoconhecimento que tem dos homens na sociedade ci-vil: todos se movem pelo interesse; todos se movempela reputação do seu estado: Além do referido estalei dá a entender que não há Tribunal que tenha ins-pecção e jurisdição sobre os Médicos e Boticários.

É coisa notável que até o Século XVI não houveBoticas, e Boticários como hoje se pratica na Europae que a primeira Farmacopeia pública que apareceunesta parte do mundo foi a de ValérioCordusna ci-dade de Ausburgo: É certo que no tempo dos Mé-dicos Gregos que curavam na Grécia, e no ImpérioRomano até o tempo de Paulo Aegineta não foramconhecidos os Boticários: Naquele tempo cada Mé-dico tinha a sua Botica, como hoje se costuma noImpério da China, e no da Turquia. Na Inglaterra,Alemanha e em muitos lugares, nas Províncias deFrança, a maior parte dos Cirurgiões têm suas bo-ticas, e são os que compõem, e vendem os remédiosaos seus enfermos: Na Polónia e na Livónia mui-tos Médicos têm a sua Botica pública receitam parasua casa, e ninguém parece até agora achou que estesMédicos e Cirurgiões esfolavam o público receitandoos seus próprios remédios; porque se conservam noseu ofício com crédito, e com estimação.

Não se poderá considerar jamais que seja um Boti-cário Cirurgião ou Médico tão avaro, e cobiçoso quereceite mais remédios, nem que os venda por preçotão demasiado, do que necessitarem os seus enfer-mos; porque cometendo este latrocínio por uma ououtra vez perderá o ser chamado pelo mesmo en-fermo, e pelos mais que vierem no conhecimentodeste engano: Tantas Nações Bárbaras, e outras namaior cultura civil, vivem neste costume de receitaros próprios remédios, e só as nossas Leis nos julgamos mais inimigos dos bens, e das vidas dos nossoscompatriotas, amigos, e parentes.

Pelo que parece que semelhantes Leis e Estatutosse deviam abrogar, e em seu lugar decretar aquelasque o mesmo Boticário Cirurgião, ou Médico, sendoautorizado, pelo Tribunal Médico, pudesse curar, ereceitar os seus próprios remédios ou de sua própriacasa ou da sua própria botica pública.

Em Londres é coisa tão comum, e tão ordináriaque os Boticários são os maiores praticantes de Me-dicina que nenhum estrangeiro que assistiu naquelacidade alguns meses, duvide desta inveterada prática:Eles são os que curam as enfermidades, os que con-sultam os Médicos famosos pelas queixas dos seusdoentes, e eles mesmos são os que lhes vendem osremédios das suas boticas. Se pensarmos que te-mos menos consciência, e humanidade do que os In-

gleses, não quero, nem quererei jamais insistir nesteponto.

Deste modo me persuado, que no caso que seestabeleça o Tribunal Médico proposto, como tam-bém o Colégio Médico que poderão todos os Cirur-giões, instruídos, como propusemos praticar a Cirur-gia, tendo ao mesmo tempo botica pública.

Já considero o excessivo número de boticas que seestabeleceram de novo por todo o Reino; já consideroa perda total dos antigos boticários: e as queixas, edemandas que excitariam os Barbeiros Sangradorescontra aquele Boticário que ousasse sangrar os seusenfermos, e praticar as mais operações de Cirurgia.

O dano que causaria o demasiado número de Boti-cas não se devia temer, se todos os Boticários fosseminstruídos e aprovados na Cirurgia com faculdade deexercitar esta arte: Se o Tribunal da Medicina nãodesse licença para ter Botica pública se não àquelesque fossem instruídos na Farmácia e Cirurgia comorequer o exercício destas artes, seria impossível quejamais se aumentasse o seu número, a tal excesso queredundasse em perda do público: E no caso mesmoque S. M. Fidelíssima ordenasse que nos HospitaisReais fossem educados à sua custa alguns CirurgiõesBoticários, nem por esta piedosíssima disposição seaumentaria o excessivo número das boticas; na in-tenção que se proibissem totalmente as Boticas dosConventos, como contravenção às leis Eclesiásticase ao bem público.

Existem hoje por todo o Reino muitos lugares ealdeias destituídos de todo o socorro Médico: sendoa causa que o limitado número dos seus habitantes, edas suas posses, não poderão contribuir ao sustentode um Boticário, um Cirurgião, e muito menos deum Médico: vivem nestes lugares os Barbeiros San-gradores; a necessidade os obriga a ser Médicos eCirurgiões; e aqueles que são mais prudentes e demelhor consciência consultam por escrito os Médi-cos nas doenças que tratam: Mas a resposta é depoisde dois ou três dias, como também os remédios, quevêm com o aviso do Médico das Vilas distantes àsvezes de quatro e cinco léguas: de tal modo que che-gam passada a oportunidade para curarem.

Além da inutilidade do referido socorro, que têmos povos pelos Barbeiros Cirurgiões, têm um danoinevitável e seu destruidor. Não têm estes homensconhecimento de outro remédio mais eficaz, nem quesaibam melhor aplicar do que aSangria: sangramem todas as queixas, porque não conhecem outro re-médio: daqui vem sangrarem doze até dezoito vezes(como vi) ainda mesmo nas febres intermitentes sím-plices: Ainda que muitos lêm os livros que escreve-ramJoão Curco, eFrancisco Henriquesmuito poucoserá o socorro que tiraram os enfermos desta leitura:

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tudo o que aprenderão neles serão alguns remédios,que tomara Deus não soubessem, porque lhes servempara destruir enfermos não sabendo de que modo de-vem ser aplicados, nem em que tempo.

Estes danos, pelo menos, se evitariam infalivel-mente setodos os Boticários fossem Cirurgiões epelo contrário. Um Boticário Cirurgião podia-se es-tabelecer numa aldeia ou lugar: o limitado da po-voação e das suas riquezas seriam suficientes para oseu estabelecimento. Sendo um homem só que san-grasse, e administrasse o comum da Cirurgia, e aomesmo tempo que desse os remédios da sua botica ahoras, e a tempo causaria uma utilidade evidente na-queles lugares, que não conhecem hoje, nem podemgozar destes benefícios, e principalmente nas Ilhas,nas Conquistas, e nas Colónias.

É certo que um Cirurgião instruído por três anosna Farmácia, principalmente, se o Tribunal Médicoordenasse uma Farmacopéia como norma para se re-grarem por ela todas as boticas, que adquiria muitosconhecimentos utilíssimos para praticar a sua arte, ealgumas doenças e enfermidades pertencentes à Me-dicina: Não consistiria toda a sua ciência em saberesgotar de sangue os seus enfermos, ainda mesmonas hidropisias.

Na suposição que o Tribunal Médico abraçasseesta resolução de não aprovar Cirurgião, sem ser ca-paz de ser Boticário; nem Boticário sem ser capazde praticar a Cirurgia; já se vê que nesse caso deviaabsolutamente negar a permissão que dá o Cirurgião-Mor actualmente aos Barbeiros de Sangrar, e de pra-ticar a mesma Cirurgia: deste modo em poucos anosse extinguiriam os Barbeiros Sangradores, e se au-mentaria ao mesmo tempo o número dos CirurgiõesBoticários, e Boticários Sangradores, e Cirurgiões.

Digressão sobre as Boticas dosConventosVimos acima que pela destruição do Império Ro-mano na Europa e que pela dominação das NaçõesBárbaras do Norte se refugiaram as Ciências nosConventos, e nos Cabidos; e que desde aquele tempo,começaram os Frades, e os mais Eclesiásticos a pra-ticar a Medicina: chegou a tal excesso aquele abusoque foi proibido aquele exercício a todos os Ecle-siásticos por muitos Concílios, principalmente pelode Tours, ou Turonense no ano de 1096, e em outrosmuitos que se poderão ver na Colecçaõ dos ConcíliosGerais e particulares duP. Harduin.

Foram observados os ditos Concílios porque ve-mos hoje que os Eclesiásticos Regulares e Secularesnão exercitam a Medicina, tão notoriamente como

praticaram até o século XIII. Mas não se observa-ram do mesmo modo as Bulas dos Papas Pio IV, Ur-bano VIII, Clemente IX que proíbem com todos osConcílios a todos os Eclesiásticos toda a sorte de lu-cro adquirido pelo comércio, ou por outro qualquermodo mundano, próprio do estado civil; e principal-mente foi repetida esta proibição pela Bula do PapaClemente XIII do 7 de Setembro de 1759; Na qualexpressamente está proibido toda a sorte de lucrotemporal, como fazer a banca dos câmbios: serem osEclesiásticos administradores dos Leigos, ou em suascasas, ou para seu proveito e aumento; ou mesmo ad-ministrando as suas terras, a criação e multiplicaçãodos animais, do mesmo modo, e pelos mesmos meiosde que usam os Seculares dedicados a estes empre-gos.

É certo que as Ordens Regulares que têm Boti-cas de remédios, e que os vendem à porta aberta, domesmo modo que os Boticários Seculares, que con-travêm a observância das referidas Bulas: que o Bo-ticário Regular seja Sacerdote Leigo, ou Donato, écerto que todo o lucro da venda daqueles remédiossimples ou compostos, redunda no proveito daqueleConvento, do mesmo modo que os lucros das letrasde câmbio, ou outro qualquer comércio que se exer-cita comprando os materiais para os vender prepara-dos a dinheiro de contado, ou a crédito, como tam-bém todo o comércio que fazem os mesmos Religi-osos tendo em pensão a mocidade para ser educadaainda mesmo na doutrina das artes e das Ciências: doque se poderá ver o livro citado na margem3.

A observância destas Bulas pertence aos Ordiná-rios pô-las em execução: o que pertence ao EstadoCivil é conservar os Boticários na posse de exercita-rem o seu ofício de tal modo que fiquem na legítimaposse de servirem eles sós o público: que se reduz aomesmo que ser o proprietário dos seus bens, da suaindústria, e da arte que professam: Além desta inevi-tável execução das leis pertencentes ao bom governodo Estado Civil, resulta neste caso que deve ser daincumbência do Tribunal Médico governar, e dirigirtodos aqueles que se empregam no exercício da Me-dicina prática como Médicos, Cirurgiões, Boticários,&c. No caso que subsistir o abuso dos BoticáriosPadres dos Conventos, estes refusarão sempre comocostumam obedecer e executar as ordens deste Tribu-nal, como de todos os mais Civis; o que é conservarentão duas Monarquias no mesmo Estado.

É tão evidente este roubo do público, e aos Bo-ticários seculares pelas Boticas dos Conventos, quesó uma piedade fátua, só uma indolência e aversão

3Le Moine Marchand, ou Traité contre le commerce desReligieux Composé por Renatus aValle (Theophilus Ray-naldus) & traduit en François. A Amsterdam (Paris) 1761.

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para todo o bem comum poderá conservá-las no es-tado que hoje existem, apesar das Bulas dos Papas,das Leis do Reino, e de toda a boa ordem e conci-ência. Ninguém nega aos conventos de Frades ou deFreiras que possam ter boticas para seu próprio uso,do mesmo modo que nos seus pomares e jardins têmfrutos e hortaliças para provimento das suas comuni-dades: e se a sua consciência, as leis da Igreja, e asdo Reino lhes proibem vender às portarias dos Con-ventos aqueles frutos e verduras, do mesmo mododeveriam observar no uso dos remédios que compu-nham nas suas boticas. Se uma vez o MagistradoCivil compreendesse, e pusesse em execução, que oEstado não conhece as Comunidades Religiosas quecomo corpos permitidos a viver na sociedade das vi-las e das Cidades na suposição que não ofenderão oEstado Civil nem o Político: Que este não conhecenenhum Frade, Sacerdote ou Leigo como membrodo Estado Civil; o reputa por morto, e fora do mundopelos votos da profissão,obediência, pobreza e casti-dade. Então seria fácil impedir não só todo o comér-cio que fazem, mas também serem Procuradores dassuas próprias ordens, serem Párocos, Bispos, Len-tes de Prima, e viverem fora da obediência dos seusPrelados. O método mais fácil e eficaz, que poderiapraticar-se para acabar com as Boticas dos Conven-tos, e com todas aquelas que não estivessem autoriza-das pelo Tribunal do Colégio Real, me parece, seria oseguinte: seria dos Estatutos de todos os Colégios deMedicina do Reino e dos seus domínios que em todasas receitas que os Médicos, e os Cirurgiões receitas-sem escreveriam o nome do Boticário aprovado paradespachá-las: E no caso que não executassem esteEstatuto, ou usassem dos remédios dos Conventos,ou favorecessem a sua venda, que seriam expulsosdo Colégio onde estivessem agregados, ou castigadospelo Tribunal Médico e seus Delegados conforme aspenas expressadas nos ditos Estatutos.

Obrigações dos Boticários, daFarmacopeia e dos Jardins dasPlantas Medicinais

Entretanto que pela etiqueta da Nossa Corte o Físico-Mor não tiver de honorário mais quenoventa mil rs.e o lucro dequase quatro mil e oito centos rsde cadabotica do Reino, e os Médicos da Câmara, e da Fa-mília Real à proporção, é preciso que não somentefiquem as Boticas sem Farmacopeia, e sem Jardinsde plantas, mas também que haja nos cargos da Ju-risprudência muita confusão, e muita desordem.

E para que não me acusem que relevo; uma esta

matéria, [sic] bem odiosa, a quem exercitar os car-gos de quem hei-de tratar valer-me-á a saúde, quereclamam os Povos, e todos aqueles que desejamconservá-la no domínio Português.

Permita-me que historicamente relate que oFísico-Mor e o Cirurgião-Mor não tendo mais queum limitado honorário, têm facilidade suma para adi-antar a sua família em cargos, e honras, às quais po-deriam aspirar somente as famílias nobres com des-pesas e merecimento distinto: os Médicos da Câ-mara, e da Família gozam dos mesmos privilégios emproporção; e pratica-se com elas do seguinte modo.

Nunca se observou, (principalmente depois quefoi necessário para ser Médico da Corte ser familiardo S.tž Ofício, ou ser capaz de ter o Hábito de Cristo)que os filhos dos médicos da Corte de Portugal estu-dassem a Medicina e a praticassem como seus Pais:ordinariamente se têm tanta capacidade que apren-dem as letras humanas, estudam a Jurisprudência:não para servirem o Estado como Letrados, mas noscargos primeiros da Judicatura: Porque pelos privi-légios concedidos aos referidos Médicos, seus filhoscumprindo com a obrigação dos exames entram nosprimeiros cargos como Provedores, Ouvidores, Cor-regedores, e não sei se Desembargadores do Porto:de tal modo que se lhes paga não a eles mas a seusfilhos em detrimento do Estado, e com o tenuíssimoproveito da Corte: a qual se lhes pagasse enquantoexercitavam os cargos de Físico-Mor, Médico da Câ-mara salário proporcionado ao que costumam pagaras Cortes da Europa, ficariam premiados, e o Estado,e a Corte mais bem servida.

Este vício dos módicos salários, e honorários pe-los serviços meramente pessoais, e que devem acabarcom a pessoa, vem a ser a origem que o Estado vema pagar cem vezes aos seus descendentes perdendoao mesmo tempo o serviço que fariam se não fossemassim premiados. O dano que resulta ao Estado queos filhos dos Médicos da Corte sejam preferidos noscargos, pela única razão que se os Pais receberam de30 mil réis até 90 de honorário por todo o tempo quepraticaram a Medicina, é notório: por que bem se vêa incoerência de exercitar um cargo principal da Ma-gistratura aquele que sabe da Universidade, sem prá-tica das nossas ordenações, e raríssimas vezes com oconhecimento das Instituições de Justiniano.

Mas deixo a quem pertence estas considerações,porque não pertencem à Medicina; o que é da suacategoria que os Físicos-Mores tenham uma retribui-ção anual de cada Boticário para seu proveito, vistoterem tão pouco Salário da Corte: É justo e fundadona boa ordem civil que todo o homem que tem a suasubsistência pelo estabelecimento de uma loja abertavendendo o que operou com a sua indústria e traba-

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lho, que pague retribuição a quem foi a causa daquelebem e estabelecimento de que goza: Mas não se vêaqui que o Físico-Mor, nem o Cirurgião-Mor fize-ram, ou fazem despesas algumas para o ensino dosBoticários, e para o aumento da sua arte. Parece logoque a retribuição das boticas devia ser empregada noaumento da sua arte, no regimento, e na ordem deconhecer, e de preparar melhor os remédios, o quecontribuiria para o melhor ser dos Boticários, e paraa utilidade saudável dos povos.

Se o Tribunal de Medicina que propomos presen-temente tivesse tais Estatutos com força de Lei, pelosquais não fosse permitido a nenhum Boticário Ci-rurgião depois da data da dita lei em três ou quatroanos ter botica aberta e pública no Reino sem licençaexpressa sua, ou dos seus Delegados, e ao mesmotempo lhes impusesse uma taça anual a proporção donumeroso da povoação, e riqueza, onde semelhantebotica fosse estabelecida; e que seria para a caixa dotesoureiro do mesmo Tribunal, recebida pelos Dele-gados, ou por pessoa por ele determinada para estacolecta, parece que poderiam estas somas serem em-pregadas no uso desta arte com maior proveito do queaté agora se tem praticado.

Da Farmacopeia, ou Regi-mento dos Remédios Símplicese Compostos do Reino

Até agora não me parece que compuseram, ou man-daram compor os Físicos-Mores Portugueses umaFarmacopeia, como norma, e regra inviolável pelaqual se deviam compor, e preparar os remédios galé-nicos, e Químicos que se vendem em todas as Boti-cas, do seu distrito: Esta prática têm todos os Reinosque conheço, e ainda o de Castela depois do Proto-médico... Cervi, Médico Parmesano. E é de tantaconsequência que me parece impossível haver Mé-dico capaz, ou Botica ordenada sem esta Lei, ou re-gimento: Bem sei que temos bibliotecas inteiras dasnossas Farmacopeias como são a dos P.P. Vicentes, aSetubalense, e outras muitas de que me esqueci, se-melhantes à Vienense, à Parisiense, e à Madrilense;que servem hoje de monumentos da ignorância daquímica racional, e da Matéria Médica.

As somas que pagariam os Boticários anuais aoTribunal Médico seriam empregadas para comporuma Farmacopeia tal que servisse de lei para as Boti-cas; e também para se plantaremJardinsdePlantasem todas as vilas, e cidades do Reino onde houvesseColégio Médico, e Seis Boticários Cirurgiões comBotica aberta.

As condições da Farmacopeia que pro[po]nho ha-viam de ser: 1.ž que não excederia o seu volume deoito até dez folhas de papel de Impressão, semelhanteà última Farmacopeia de Londres, ou de Edimburgo,no volume, na forma, e disposição dos remédios sim-ples e compostos; nos cânones, ou regras para con-servar os simples e compor os remédios compostosGalénicos, ou químicos. a 2.da Que no princípio es-taria impresso um Alvará de S. Majestade Fidelís-sima pelo qual todos os Boticários seriam obrigadosa compor, e a conservar os remédios ali expressadosconforme a sua exposição, com penas pecuniárias,de prisão, e fechar a Botica a todo aquele, ou aquelesque contraviessem a dita Lei. Devia-se determinarna farmacopeia que proponho os pesos e as medidaspelas quais se pesam os remédios.

Não acusarei de ignorância, nem de negligênciaaos Físicos- Mores do Reino por não haverem atéagora cumprido nem executado o referido intento:Creio bem, e é muito provável, considerando quepresentemente, e nos tempos anteriores houve ho-mens doutos e amantes do bem público dignos da-quele honorífico cargo, que pensassem introduziruma tal farmacopeia como proponho: Mas prevendoque seria inútil, se deixaram de tão louvável intento:Tendo cada convento pela maior parte Boticas aber-tas, e com reputação tão acreditada, que só nelas sedespachavam as receitas de toda uma vila ou cidade,ficando os miseráveis Boticários seculares destituí-dos de todo o emprego, julgaram bem os Físicos-Mores que os Padres Boticários não observariam aordem, e Lei que ordenaria a sua Farmacopeia: Zom-bariam da sua Jurisdição; não podiam castigá-loscom fintas prisão &c. porque todos sabem que a Mo-narquia Eclesiástica pretende ter e tem seu Juiz Pri-vativo.

Mas no caso que se mandem fechar todas as Bo-ticas dos Religiosos, que se lhes defenda todo o Co-mércio pelas Leis dos Cânones da Igreja, e do Reino,e outras que de novo se poderiam decretar, pareceque não haverá obstáculo algum para que uma Far-macopeia tal, qual acabo de propôr, [se possa execu-tar]4 e pôr em prática por todo o Reino, e talvez emtodos os domínios Portugueses.

Da Tarifa, ou do Regimento dopreço dos remédios

Foi louvável o intento dos Físicos-Mores ordenarema impressão das tarifas, ou Regimentos dos remé-dios símplices, ou compostos para que os Boticários

4Riscado no Ms.

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não pretendessem pagas exorbitantes com prejuízodo Fisco Real, do Tesouro, e do público. Se aindaexistir a prática que as receitas dos Hospitais Reais,e Militares sejam pagas pela metade do valor expres-sado no Regimento ficará o público indubitavelmenteagravado, pagando o dobrado a que obriga a todos omesmo regimento.

Mas é coisa incrível que se taxem os remédios dasBoticas, sem terem uma Farmacopeia que determinea composição dos remédios observada como lei in-violável: É coisa incrível que comprando nós quasetodos os remédios símplices e compostos dos Estran-geiros, que sejam regulados os preços por uma ta-rifa que se imprime cada três anos, e às vezes cadaseis. Bem se deixam ver estas incoerências; e nãoposso atribuir esta prática a nenhuma origem, senão amesma razão que tiveram as nossas ordenações paraautorizar os Almotacés a almotaçar os comestíveis:na intenção de favorecerem os povos arruinaram aspescarias, e a agricultura; do mesmo modo que paranão ser obrigado o público a pagar o que lhe pedir oBoticário taxarem-lhe os seus remédios, que comprados Droguistas que os recebem da Ásia, da África,do Norte, e do resto da Europa.

Em Castela, na França, Holanda, Inglaterra, Ale-manha, e naqueles Estados da Itália que vi, não há talcostume de se taxarem os remédios dos Boticários:cada qual vende conforme pode: se o enfermo sevê agravado pelo excessivo preço do Boticário apelapara o Juiz, e este nomeia alguns Boticários com umMédico, regulam as receitas, pela qual avalição sãopagas.

Se se estabelecer o Tribunal Médico proposto,com os seus Delegados por todo o Reino, é certo quenão será necessária tarifa nem regimento para taxar opreço dos remédios das boticas: Porque no caso quealgum enfermo se sentir agravado do excessivo preçodo Boticário, terá recurso não só nos Boticários, Mé-dicos, e Delegado do Tribunal, obrigados a avaliaras receitas, matéria da Contenda, ou por ordem domesmo Tribunal, ou das Justiças, e Vereadores dasCâmaras; e sabendo os Boticários esta ordem esta-belecida nenhum se atreverá a exceder os preços dosremédios, que na verdade variam no mesmo ano, noComércio muitas vezes de metade, e do dobro do seuvalor ordinário: Persuado-me pelo que tenho experi-mentado depois de 35 anos que será sempre nocivoao público, e a quem vender que se lhe taxe o seubem, e a sua indústria, e principalmente a do Boticá-rio.

Dos Jardins das Plantas Medi-cinais

Já em outro lugar, haverá doze anos, mostrei a ne-cessidade indispensável, que tinha Portugal de man-dar aprender Médicos moços a História natural, e aBotânica; não só para indagarem os símplices quetemos no Reino, e fazê-los conhecer a todos os quepraticam os vários ramos da Medicina, mas tambémaqueles que servem nas artes; e que se acham nasNossas Ilhas, na América, na África, e na Ásia. Écoisa bem deplorável que se asomentassem as cin-zas de Jerónimo de Orta, e de Abraham Grisley, queconservou um limatado jardim das nossas plantas notempo do Senhor Dom João o IV! Com confusão, edor da alma o digo, não há vila considerável aindamesmo das Províncias da Europa, não há Universi-dade que não tenha um Jardin de plantas pelo menosnacionais, exceptuando Portugal e Castela. Todos osdias, todas as horas estão usando os nossos Boticá-rios das plantas frescas, ou que colhem, ou que com-pram, e nunca aprenderam numa escola a conhecê-las: Por esta causa estão comprando dos Estrangei-ros por preços exorbitantes aquelas mesmo que nas-cem em Portugal, e que colhem às vezes no mesmoReino: e quantas haverá destas, como de raízes, go-mas, bálsamos, e sementes nos domínios portugue-ses, que compramos das mesmas mãos?

Mas esquecendo por agora o passado, espero queserá chegado o tempo de remediar a tanta desolaçãodesta ciência, que é a Medicina. E principalmente sese estabelecer o Tribunal Médico, tantas vezes repe-tido, e os seus delegados por todo o Reino.

Em todas as vilas ou Cidades Capitais das Comar-cas onde houvesse Delegado do Tribunal Médico etrês Boticários com botica aberta devia haver um Jar-dim de Plantas Medicinais expressadas na Farmaco-peia referida. As Câmaras do Reino fariam dona-ção do terreno, e o que fosse necessário para plantá-lo, e fazer-lhes os muros: e seria da obrigaçaãodos três Boticários, e daqueles que dependessem domesmo destino, conservarem dito Jardim com Jardi-neiro pago à sua custa, e obrigados estes referidosBoticários nos primeiros quatro anos a terem e con-servarem no dito Jardim 400 plantas, e em cada umdos anos subsequentes acrescentarem vinte novas oudo Reino, ou dos domínios do Ultramar, ou de ou-tros Reinos: e como os Delegados do Tribunal Mé-dico seriam os Inspectores destes Jardins, e os queobrigariam a conservarem-se conforme os Estatutosdo mesmo Tribunal, facilmente se poderiam conser-var, e plantar ditos Jardins, e serviriam de escolaspúblicas, a todos aqueles que se dedicam à Medicina:

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Quando uma vez estivessem plantados, coisa fácil se-ria aumentá-los, e procurar um Médico ou Boticáriocom algum benefício procedido das fintas anuais dasBoticas daquela Comarca para ensinar a conhecer asplantas e as suas virtudes.

Das Águas Minerais, tantoQuentes, que chamamos Cal-das, como das Frias que conhe-cemos com vários nomes

Não entraram até agora as Águas Minerais do Reinodebaixo da Inspecção, e do governo nem do EstadoPolítico, nem do Físico-Mor do Reino: foram atéagora consideradas como uma produção da natureza,exposta a servir de delícia, ou de remédio a qualquerque queria usar delas. Bem sei que alguns dos nos-sos Médicos, como foi Francisco Henriques, Antó-nio Pires da Silva escreveram das águas Minerais doReino; mas com tão pouco conhecimento das suasvirtudes, do modo de usar delas, e da utilidade queos enfermos, e o Estado podiam aproveitar-se, quenão servem os seus livros, que para dar-nos a saberque temos tantas riquezas, supérfluas, ou ignoradas.Tanto quanto permite este papel, indicarei a utilidadeque poderá tirar a Medicina das Águas Minerais, e deque modo se deviam governar pelo Tribunal Médico,e pelos seus Delegados. E em segundo lugar aquelaque o Estado podia tirar, quando estivessem estabele-cidos os cómodos que se requerem naqueles lugarespara servirem de remédio à infinidade de queixas.

Nas cinco Províncias do Reino, e no dos Algarvesse acham toda a sorte de águas Minerais que se co-nhecem na Europa; e se uma vez forem conhecidasnão necessitaríamos das Águas de Spa, das de Pyr-mont, das de Bristol, e outras muitas que a ignorân-cia, e a moda aconselha que delas se use em Portugal,não advertindo que só chega o cadáver destas águasao Reino, e que a maior das suas virtudes consiste nasjornadas para bebê-las na fonte, e no espírito volátilque conservam somente nela.

Nenhum Médico me parece propôs até agora aoMinistério que se deviam fazer banhos nos lugaresonde houvesse caldas; e fontes, das águas mineraisfritas: e em ambos os lugares edificar casas, e dormi-tórios, abastecidos de alimentos para serem frequen-tados pelos enfermos: o Físico-Mor até agora nãotomou à sua conta nomear a cada uma destas fontesum Médico com obrigação de assistir nelas, e um ci-rurgião desde o mês de Maio até o fim de Setembro,ou Outubro: Na França, Alemanha os Médicos dos

Banhos, ou Águas Minerais pagam uma soma de di-nheiro ao Físico-Mor para servirem nestes lugares,onde os lucros são consideráveis. E nenhum Médicopode curar naquelas fontes sem provisão do Magis-trado, como emAix La Chapelle, ou do Físico-Mordo Reino.

Ninguém duvida que o mais efectivo remédio namaior parte das enfermidades crónicas seja o movi-mento, e a bebida, e os banhos de muitas águas Mi-nerais: Aquelas jornadas que são obrigados aquelesque querem usar destes remédios, o mudar de ar, dealimentos, de modo de vida, a liberdade do ânimo,a variedade de objectos, a intermissão dos ofícios,dos Cargos, dos Empregos, da contenção do ânimo,contribuem mais para curar muitas queixas, do queas mesmas águas; e por isso os Médicos mais expe-rimentados sempre aconselharam aos seus enfermosas águas mais distantes da sua residência.

À vista do referido todos assentarão que será daincumbência do Tribunal da Medicina tomar debaixoda sua inspecção, e direcção todas as Águas Mine-rais do Reino, e dá-las a conhecer ao público tantopor escritos impressos, como por Estatutos autoriza-dos para que cheguem à notícia de todos. Tanto queuma sorte de águas Minerais estivesse bem conhe-cida, e regrada, por exemplo asCaldasda Rainha, àsua imitação deviam ser regidas aquelas deChaves,de S. Pedro do Sul, e outras muitas conhecidas nosAlgarves e mais partes do Reino.

Bem considero que não seria bastante toda a inte-ligência, direcção, e actividade do Tribunal Médicopara utilizar o Reino com um remédio tão universal,se o Estado mesmo não contribuísse com os gastosnecessários para adquirirem os povos a saúde pro-metida pelos escritos impressos por sua ordem: Enesta consideração, parece que dito Tribunal deviarepresentar a S. Majesta( de] Fidelíssima em sumaos pontos aqui abaixo declarados.

1. Que estava firmemente persuadido da excelên-cia, e da eficácia das águas Minerais do Reino,tanto frias, como quentes, na cura de muitas en-fermidades, tanto em bebida, e acompanhadascom alguns remédios, como em banhos.

2. Mas para gozarem os povos destes eficazes re-médios com as menores despesas, e maiorescómodos necessitavam de caminhos, ou a ca-valo, ou em carruagens, ou carretas para setransportarem os enfermos em direitura às di-tas águas.

3. Que também se necessitava a providência demandar edificar nas estradas, que conduziam àságuas ou banhos, estalagens com camas, abas-tecidas do comestível.

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4. E que nas mesmas fontes das águas quentes oufrias se edificassem Banhos de vapor, ou sim-ples fontes de canos, para se banharem e bebe-rem as águas aqueles que delas necessitassem;E nos mesmos lugares se tomariam as mesmasprovidências, que nas estradas, mandando fa-bricar algumas casas, com camas, e outras al-faias, e abastecidas de alimentos de modo quetodos que frequentassem aqueles lugares achas-sem ali os cómodos de que necessitam os doen-tes, e os remédios aos seus males.

5. Que dito Tribunal tinha determinado consti-tuir naquelas caldas, ou fontes, Médicos capa-zes para administrá-las aos enfermos. Boticá-rios, Cirurgiões, e todas aquelas pessoas des-tinadas ao seu serviço: determinando-lhes nosprincípios destes estabelecimentos algum salá-rio competente, visto que seriam obrigados aviver por seis ou sete meses do ano naqueleslugares, ainda que fossem destituídos de povo-ação vizinha.

6. Que ditas despesas não seriam jamais a cargodo Estado porque em poucos anos poderia lu-crar triplicada quantia, daquela empregada naedificação das casas, caminhos, e banhos: Quese aumentaria o consumo do comestível, daspalhas, cevadas; que se multiplicariam os alu-gueres das casas, dos móveis, e das bestas; eque ficando o dinheiro espalhado naquelas Co-marcas, onde estivessem as fontes se aumenta-riam os povos, e por consequência, se podiamrepartir maiores taças, tendo adquirido maiorsubsistência pelos que frequentariam cada anoos banhos, ou fontes.

7. Que um dos arbítrios de França, Inglaterra, eAlemanha principalmente, para circular o di-nheiro pelos povos, consistia em acreditar asfontes das águas minerais, e nelas estabelecertais comodidades de estalagens, casas de pasto,jardins, passeios, e Música, que cada ano nãosó eram frequentados ditos lugares de muitosenfermos de Reinos Estrangeiros, mas aindadaqueles na melhor saúde, na intenção de serecrearem, e gozarem da conversação, e da li-berdade daqueles que ali se encontravam; Nãopoupando despesa alguma na segurança, e re-gularidade dos caminhos, e manter a abundân-cia, e boa ordem, na intenção de atrair a gozardaqueles recreios, e remédios, não só os natu-rais, mas ainda os Estrangeiros. &c.

Bem sei que a maior parte dos Médicos Portu-gueses que ouvirem semelhantes disposições, ou re-presentações sobre as Águas Minerais, que avalia-

rão tudo por sonhos de quem está acordado. Mas separa edificar um Laboratório Químico, um Jardim dePlantas, um Observatório Astronómico, se necessitade ter visto estes edifícios, do mesmo modo, para re-gular as Águas minerais necessitava a Medicina, e oReino que alguns Médicos tivessem visto as Águas,e banhos de Inglaterra, França e Alemanha, e princi-palmente aquelas deAix la Chapellee dePlombieresem Lorena: Então é que poderiam formar a ideia dasua utilidade, e do proveito que delas poderia tirar oEstado.

Dos Segredos da Medicina con-siderados como dependentesda Inspecção e disposição doTribunal da Medicina

O interesse e a credulidade fizeram sempre na Repú-blica da Medicina, a guerra às suas verdadeiras, e ex-perimentadas máximas, e com tão feliz sucesso quesempre a ignorância ficou nesta contenda vitoriosa:já se poderá considerar quão desanimado entrarei adiscorrer contra o abuso, e prejuízo que causam ossegredos; E que somente aquele que não teme perdera reputação na defesa do bem público será o que seatreverá a lutar contra esta hidra da razão e da justiça.Vários foram os Autores, que fundados na razão e naexperiência, combateram este infame abuso dos se-gredos da Medicina, sendo o principal deles ThomasKnight doutíssimo Médico Inglês5. E se fosse destelugar usar dos mesmos argumentos, infalivelmenteficariam convencidos os Autores dos Segredos, e osseus fautores: Mas como considero que o TribunalMédico será tão bem instruído na Arte Médica, e tãofora de todo o interesse, e suborno, não me parece sernecessário entrar nesta discussão, porque seria duvi-dar das virtudes e da ciência de que este propostoTribunal devia ser ornado.

Sem embargo destas justas considerações, como éprovável que este papel será lido por alguns que nemestudaram a Medicina, nem a praticaram não cala-rei aqui, que os segredos não só são perniciosos àsvidas dos Cidadãos, mas muito mais à arte da Me-dicina, e por último ao bem público. Direi algumasrazões sensíveis nos termos que todos as entendam,nestes três pontos, para que se animem não somentea destruir este cancer oculto das vidas, mas tambémdo Estado, e da Arte Médica.

5Reflections upon Catholicons, or Universal Medicine,By Thomas Knight M. D. London 1749,. 8.o.

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Se o Estado consentir e aprovar que se curem asenfermidades com segredos comprados em casa dehomens desconhecidos, como se compra qualquermercancia, não necessita de conservar a Faculdadede Medicina na Universidade sustentada com tantosgastos; as Escolas do Latim, Filosofia, e Medicina,como também nos partidos de que gozam os Médi-cos práticos. Para que servirão então os Lentes deMedicina ensinando a Anatomia, a Química, a Bo-tânica, a Patologia, e o método de curar? Tudo istoé supérfluo se se permittir que as doenças se curemcom segredos, por exemplo,com a água do Francês,com aÁgua de Inglaterra, e outros muitos segredoscontra quase todas as enfermidades.

O que constitui o verdadeiro Médico, o que vemalcançar depois de muitos anos de estudo, é conhecerpor certos sinais os males do corpo humano, o grauda sua malignidade, a sua força, e a sua duração; e aomesmo tempo saber aquele remédio que lhe convémpara curá-la: se os segredos forem autorizados nãosão necessários os conhecimentos referidos: a maisignorante velha, o mais atrevido rústico poderá serMédico com os segredos; basta que ouça queixar oenfermo de uma dor no lado para dar-lhe o segredocontra o pleuris: Basta que saiba que o enfermo ado-eceu com febre e arrepios para dar-lhe água de Ingla-terra a canadas; e do mesmo modo em todas as maisqueixas.

Pois neste caso, eu determinaria abolir toda a Es-cola da Medicina, toda a Ciência dos sinais, toda aAnatomia, e mesmo a Física Experimental. Porqueos segredos curando admiravelmente as queixas pelomais ignorante e atrevido saltimbanco, todos estesconhecimentos vinham a ser supérfluos na SociedadeCivil.

É coisa notável que para fazermos um vestido quenos informamos ordinariamente se é bom alfaiate, eque para sermos curados ainda das queixas mais gra-ves que confiamos a nossa vida ao primeiro que senos apresenta com um segredo, e uma figura des-carada, impudente, e resoluta? Mas o pior é queos Magistrados o consintam apesar das Leis, e queachem Senhores que os protejam, e que os deixemviver em suas casas, como fazem muitos conventos.Os estragos que fazem os segredos em todo o Reinoconsidere-os o Tribunal da Medicina actual, se acharser da sua obrigação: se considerar que nenhum re-médio é salutar se não dado a tempo, na dose ne-cessária, conforme a violência da queixa, com o co-nhecimento de cada constituição, então verá que ossegredossãoa destruição da vida, e da Medicina.

E no caso que o Tribunal Médico deixar correr omundo como começou, e que esse é o verdadeiro mé-todo de se conservar no seu posto sem inimigos, e

sem persecuções, fica então lugar ao Governo Polí-tico de remediar os dois males que resultam infali-velmente dos segredos.

O primeiro que se percam tantas vidas dos súbdi-tos, e a Medicina: o segundo que saia por esse canal odinheiro fora do Reino. Todos confessarão a primeiraparte, se quiserem compreender o referido: Tambémconfessarão que quase todos os segredos que ganha-ram crédito em Portugal que saíram de Inglaterra, ede França; e que os seus preparadores (não invento-res) têm tirado do Reino somas consideráveis depoisde noventa anos. Não creio que persuadi este vergo-nhoso abuso; não aos Magistrados, nem aos fautoresdos segredos; porque as verdades indubitáveis se senão sentem dentro de si mesmo, ninguém tem enten-dimento bastante para as demonstrar e persuadir: averdade que permitir curarem-se enfermos na socie-dade civil com segredos admisnistrados, e vendidoscomo pão e bacalhau, é desta classe.

Continua a mesma matéria

À vista do referido seria dos Estatutos do Tribunal deMedicina que propomos que não fosse lícito a pes-soa alguma de qualquer qualidade que fosse venderremédios secretos para cura de queixa alguma, nemusar, nem distribuí-los, nem ainda a título de cari-dade, pelo amor de Deus, como fazem muitas ordensReligiosas, e muitos Eclesiásticos: Que todos os re-médios de que se usasse no Reino deviam ser ven-didos pelos Boticários, conforme as leis da Farma-copeia, que devia compôr-se para este efeito: e quetodo aquele que ousasse desprezar, e contravir a esteEstatuto, com força de Lei seria perseguido em Jus-tiça com multas, desterro, prisão, e outras penas maisgraves conforme a pertinaz rebeldia.

É injusto que se vendam remédios no Reino porhomens, que não têm autoridade alguma de vendê-los: os Boticários têm somente este poder; e gasta-ram o seu bem, e a sua mocidade para adquiriremesta autoridade; e é roubo que se lhes faz permitir aqualquer pessoa que seja o mesmo poder, e autori-dade, ainda que seja debaixo do piedoso título, que épor esmola pelo amor de Deus.

Mas este Estatuto observado exactamente peloTribunal Médico, e seus Delegados, e pelos Magis-trados do Reino, não fecharia a porta à indústria, e àsagacidade de todo aquele que descobrisse um remé-dio efectivo para queixa alguma do corpo humano:Teria recurso ao mesmo Tribunal Médico, ou seusDelegados para apresentar-lhe a eficácia do tal remé-dio, e que lho descobriria sendo paga, e premiadaa sua indústria: O mesmo Tribunal faria notificar osque hoje distribuem, e vendem tantos segredos, como

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 25

se distribuem em Lisboa, e por todo o Reino, que nocaso que os quisessem declarar ao mesmo Tribunal,que seriam pagos à proporção da sua eficácia, e uti-lidade; e se não quisessem sujeitar-se a esta ordem,que seriam perseguidos pela autoridade com que es-tava revestido, não somente para impedir-lhes toda avenda, ou distribuição, mas ainda ulteriormente comexílio, e prisão.

Dissemos acima que seria da obrigação dos Boti-cários manter à sua custa um Jardim de plantas emcada cabeça de Comarca: e que seria cada boticaa pagar anualmente ao Tribunal Médico uma somaproporcionada à qualidade, e grandeza da Botica.Com justiça seriam estas somas dedicadas para pa-gar os Autores dos Segredos, quando os declarassemao mesmo Tribunal: Porque se este punha na possee livre exercício aos Boticários de venderem os re-médios símplices e compostos, com razão aquelassomas anuais que pagassem deviam ser empregadasna indústria e sagacidade daqueles que descobrissemremédios novos, úteis ao género humano. E destemodo se vê quão injustamente fica empregada hoje aretribuição que pagam os Boticários ao Físico-Mor.

Pelo Estatuto que propomos ficavam não só osmezinheiros e mezinheiras, Religiosos e Religiosas,excluídas desta mal entendida caridade, mas tambémos médicos, os Cirurgiões e os Barbeiros. É hojeconstante prática, que cada Médico, ou Cirurgião te-nha seu segredinho, ou que vende em sua casa, ouque o deposita em casa de algum boticário amigo:Imaginando estar autorizado a praticar este lucro, oumodo de adquirir fama, porque os costumes invetera-dos sempre tiveram força de lei. Mas é engano: umavez que o Estado autorizou uma sorte de homens avender os remédios para a cura dos males somente aeles pertence vendê-los, ficando excluídos da mesmaprática não só os que os distribuírem de graça, masainda os Médicos e Cirurgiões, que não os aplicamsem dinheiro.

Não necessito de expor com quanta circunspec-ção, e cautela devia proceder o Tribunal Médico noexame dos remédios que examinaria para pagá-losaos seus Inventores; os Médicos sabem as circuns-tâncias necessárias para autorizar-se um remédio; epor essa razão acho supérfluo deter-me nesta maté-ria.

Das Parteiras, dos Oculistas,dos DentistasEsta arte de parteira está hoje na maior parte da Eu-ropa tão aumentada nas observações, e na Ciênciaque não pode pretender-se que seja entendida nem

praticada por mulheres ignorantes, como são todasaquelas que se dedicam ordinariamente a este ofício:Não necessito de inculcar agora que naquele tempoque se aprender a Cirurgia prática deve ao mesmotempo o Estudante de Medicina, e o Cirurgião apren-der esta arte, fundada no conhecimento completo daanatomia das partes da geração femininas, como naFisiologia; e introduzirem-se naquelas escolas os li-vros que desta arte se tem escrito em francês, Latime Inglês, os quais indicará o Mestre que a ensinar.

Convém à República que estejam nela Médicos,ou Cirurgiões tão instruídos na ciência desta arte,como nas mais partes da Medicina, para remedia-rem todas as dificuldades dos partos laboriosos, aosquais humanamente não poderão socorrer as partei-ras: Deste modo trataremos somente como se deve-rão governar estas, do seu ensino, e do seu exame,como também por quem deviam ser governadas.

Bem sei que as Parteiras hoje são examinadas porordem do Físico-Mor em todo o Reino; e que se temimpresso alguns livros desta arte para seu ensino:Mas como se poderia regrar com maior vantagem dopúblico, e do género humano esta ordem, e esta dou-trina, parece-me que pertence a este lugar o que tenhopensado nesta matéria.

Todo o cuidado do Tribunal Médico, e dos seusDelegados, ou nas cabeças das Comarcas, ou nas vi-las onde residem Juízes de Fora devia ser,que as par-teiras não causassem mais mal que bem no exercí-cio da sua arte: Da Parteira mais rústica e ignorante,se ela pariu uma ou duas vezes o que é ordinário, eque devia ser uma condição para exercitar este ofício,poucos erros se poderão temer: É verdade que pou-cos socorros se podem também esperar dela: Mas an-tes se devem preferir estas parteiras, do que aquelasque pela leitura de algum livrinho escrito desta Arte,adquiriram alguma instrução. Estas sem experiênciae confiadas no que aprenderam, têm tudo o que lhesé necessário para cometerem mil erros no exercíciodesta arte de partejar.

Se em todos os lugares onde são necessárias asparteiras houvesse Hospitais com Médicos e Cirur-giões podia o Tribunal Médico obrigá-los a saberaquela parte do Esqueleto que contém as partes geni-tais do sexo, e assistirem às demonstrações desta artede partejar: Mas seria injustiça obrigar as parteiras aestes conhecimentos: Nesta consideração o primeirocuidado, e expediente que tomaria o Tribunal para re-grar esta matéria seria de mandar compor um livrinhoem 8.o de seis até sete folhas de papel de Impressão,no qual estivessem tratados estes artículos:

1. Do Parto Natural, e dos meios que se devemusar até sair a luz;

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2. Do Parto Irregular, e dos meios que se devemtomar para reduzi-lo ao estado Natural;

3. Do parto difícil e perigoso, e dos meios neces-sários para salvar a Mãe, e a criança;

4. Do modo de governar a criança tanto que nasce,e a parida.

Bem se poderá considerar quão necessária será aquia cautela de compôr-se este livrinho em estilo, econceitos tão claros, que uma mulher ignorante, opossa compreender: E ainda que não saibam ordina-riamente ler nem escrever, nem por essa causa seriasupérfluo este directório das parteiras, por que po-diam ser instruídas nele, ouvindo a leitura por ou-tra pessoa: Eu vi soldados ignorantíssimos a quemuma vez por semana lia o seu cabo de esquadra a suaobrigação em quarenta artículos, e os conservavamna memória tão bem que lhes serviam de directórioinfalível no seu exercício. Creio que poderiam destemodo ser instruídas semelhantes parteiras, e obrigá-las a fazer o seu exame por semelhante directório,sem o qual não deviam ter licença para partejar, nemainda nas aldeias, nem nos lugares.

Como o Tribunal Médico mandaria compor e im-primir estaInstruçãoparaas Parteiras do Reino, fi-caria a Impressão à sua disposiçaão e ordem, e man-daria a cada um dos seus Delegados em todo ele umnúmero competente destes livrinhos para serviremde ensino a todas as parteiras que quisessem alcan-çar deles licença para partejar: limitando-se, quantofosse possível o preço desta obra, como também ocusto do exame; não só considerando a pobreza daspessoas, ordinariamente da plebe, mas também paraque os Delegados atraídos do torpe lucro concedes-sem estas licenças, sem o merecimento necessário.

Esta parece ser a providência que se devia tomarcom todas as parteiras que viverem fora das vilasonde não houvesse Hospitais públicos, Delegados doTribunal Médico, e Colégio de Medicina; porque nocaso que assistissem nesta vilas ou cidades ornadasdestes estabelecimentos, nesse caso a sua instruçãonão ficaria reduzida àsimples instruçãopara as Par-teiras do Reino: Então seria de obrigação do Dele-gado, ou do Colégio de Medicina, ou do Cirurgiãodo Hospital de ensinar a Anatomia do Esqueleto quecontém as partes da geração, e a das mesmas partesnos cadáveres, e ao mesmo tempo os conhecimentosmais circunstanciados do que se contém naInstruçãopara as Parteiras: E as que residissem nestes luga-res seriam obrigadas a satisfazerem nos seus examesesta instrução, sem a qual não alcançariam licençapara partejar.

Alguns Médicos e Cirurgiões Portugueses e caste-lhanos traduziram bastantes tratados desta arte escri-

tos originalmente em Francês e Italiano, imaginandoque serviriam para o uso das parteiras das suas pá-trias: Mas não sabiam, nem advertiam que a maiorparte do povo em Itália é mais bem instruído que onosso; e que o de França universalmente sabe ler eescrever tanto meninos como meninas, tendo cadaparóquia, ainda nos campos escolas de graça. Dedonde vem que aqueles livros da arte de partejar sãoescritos com mais ciência, e descrições do que po-derão compreender as mulheres ordinárias Portugue-sas, e castelhanas, e que por essa razão ficam frustra-dos os seus intentos neste trabalho que tomaram detraduzir aquelas obras.

O que tenho de advertir ultimamente para a utili-dade pública nesta matéria é que deve ter particularcuidado o Tribunal Médico que existam Médicos ecirurgiões tão doutos e tão capazes nesta arte de par-tejar, que não invejemos às Nações Estrangeiras estesconhecimentos, e esta utilíssima prática: Uma vezque estivessem espalhados pelas Comarcas Médicosassim instruídos, e cirurgiões Boticários, esta ciênciase espalhará pelas parteiras infalivelmente, vendo-ospraticar quando forem chamados nos casos difíceis,e perigosos: sem esta precaução, tudo o que mera-mente se ordenar tocante às parteiras, não chegará aredundar no bem do público.

Dos oculistas e dos que pretendemcurar hérnias pela operação manual

Correm por toda a Europa uma sorte de homens acurar com segredos, e com operações, e Portugal nãofica isento desta peste da sociedade civil. No ano1738 viu o nosso Reino JoãoTaylor Inglês oculistamais famoso, do que afortunado na cura dos seus en-fermos, e sem embargo dos maus sucessos, que àsvezes são inevitáveis naquela arte, alcançou da Fa-culdade de Medicina de Coimbra, e do Físico-MorManuel da Costa Pereira atestações6 tão vantajosaspara aquele homem, que por elas se podia igualar,mais a algum santo milagroso, do que a um operadordestemido. Esta sorte de homens conserva aquelareputação que lhes dá o vulgo por saberem mudarde lugar cada duas, ou três semanas; As suas opera-ções dão algum alívio aos enfermos logo depois de-las, como depois de baixar a catarata, ou repor osintestinos no ventre, mas as consequências ordina-riamente acabam com a morte ou com outras quei-xas mais perigosas do que aquelas que trataram. Por-que substraindo-se pela ausência, não fica lugar aos

6E impressas com outras muitas em Frankfurt em Latime Alemão no ano 1750 em 8.o.

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enfermos de recorrerem aos mesmos, ou às justiçaspara serem castigados.

Toda a Europa está hoje convencida da falsidadedestas curas, e da capacidade destes saltimbancos:Por essa razão não são admitidos a tratar enfermoalgum em nenhum lugar com justiças e Polícia Mé-dica, mandando-os sair logo do lugar onde aparece-ram; é tão comum esta prática que não necessito citarexemplos.

Se o Tribunal Médico tiver experiência do quese pratica na Europa nesta matéria; se for instruídona Ciência Médica como se ensina na Escócia, Ho-landa, e Alemanha, será indubitável que proibirá oexercício destas queixas a todos aqueles que não esti-verem legitimamente examinados, e autorizados porEle mesmo.

Dos dentistas, e dos que haviam deexercitar esta arteDesde o princípio deste século se descobriu por causado luxo, e dos estragos que faz o Gálico esta nova,parece, arte de conservar, e limpar os dentes, de fazerpostiços, de limá-los, e de arrancá-los: Ninguém du-vida que desde o tempo de Esculápio foi conhecidoo instrumento de arrancar os dentes, e que os Médi-cos Gregos, ao mesmo tempo Cirurgiões continua-ram nesta prática: Depois que a Cirurgia se praticouno ocidente pelos latinos somente os Cirurgiões ad-ministraram esta operação: Mas nos nossos tempos,esta arte de arrancar os dentes, estendeu-se a mui-tos ramos da sua limpeza, da sua igualdade, e da suafalta, de tal modo que basta hoje para sustentarem-semuitos homens por ela unicamente, nas cidades po-pulosas.

Sem embargo que os erros que se cometerem nestaarte não serão logo imediatamente destrutores davida humana, convém portanto que todos aqueles quepraticarem esta arte estejam submetidos à direcção eà ordem do Tribunal Médico, ou dos seus Delegados.Hoje somente os Barbeiros em Portugal são os queordinariamente arrancam os dentes aos quais se deve-ria permitir esta prática, como também a de sangrar,enquanto no Reino não estivessem estabelecidos Bo-ticários Cirurgiões com botica aberta, proibindo-se-lhe com graves penas exercitarem outra parte mais deCirurgia, ou de Medicina; o que actualmente estandoas pequenas vilas e Aldeias destituídas de Médicos, ede Boticários cirurgiões será indispensável permitir-lhes esta prática em que a necessidade de socorrosMédicos os constituiu.

Somente nas cidades grandes onde o luxo tem asua residência são conhecidos os dentistas de profis-são: Que os Barbeiros, os Cirurgiões, ou qualquer

outra sorte de homens sem outra ciência professemesta arte pouco importa à Sociedade Civil: Seria daincumbência do Tribunal Médico por tanto mandá-los examinar, e passar-lhes cartas para exercitaremesta arte, depois de satisfazerem os gastos do des-pacho da sua licença: E porque muitos Estrangeirostêm entrada em Portugal para exercitarem esta arte,sem serem naturalizados, nem conhecerem superiornela, por essa razão seria dos Estatutos deste Tribunalobrigar todos os Estrangeiros que quisessem praticaresta arte ao exame, e pela licença que alcançassempagarem quatro vezes mais do que os nativos súbdi-tos Portugueses, sem distinção de Nação, nem mere-cimento.

Nas vilas e nas cidades das Províncias do Reinoprovavelmente ninguém se determinará exercitar estaarte de Dentista que os Barbeiros; ou sejam sangra-dores juntamente, ou cabeleireiros e seria conveni-ente que fossem examinados pelos Delegados do Tri-bunal Médico, e com limitado dispêndio alcançaremdeles a licença para praticarem esta arte.

Mas uma vez que o Tribunal tomar à sua contao exame dos Dentistas, e a inspecção sobre o seuexercício, deve ser também da sua obrigação con-tribuir para o seu ensino, e para a sua instruçãona mesma arte: Do mesmo modo que propusemosacima tratando das Parteiras que devia mandar com-por o mesmo Tribunal um livrinho daquela arte, con-vinha também nesta dos Dentistas mandar comporum semelhante para servir de instrução a estes ope-radores, e que contivesse as regras mais simples eexperimentadas de conservar os dentes, com a des-crição dos instrumentos e as suas figuras não só paraconservá-los, mas também para arrancá-los, e reme-diar os sintomas que sucedem às vezes depois destaoperação; e outras mais moléstias desta parte docorpo humano. Na Língua Francesa se acham muitobons tratados desta matéria, e seria fácil a qualquerMédico valer-se deles para compor uma precisa emetódica instrução para se instruírem aqueles quedeviam ser examinados nesta arte.

Do exame dos livros de Me-dicina que devia pertencer aoTribunal Médico antes de seimprimirem

Nos Apontamentos que escrevemos para formar-seuma Universidade Real mostramos a quem pertencea revisão e a aprovação de todos os livros que seimprimem nas Monarquias: Mostrámos pela prática

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dos Reinos de França e de Sardenha que pertencesomente esta aprovação aos Chanceleres-Mores doReino: E que os Bispos naqueles Reinos não têm al-guma outra acção para impedirem um livro contrá-rio à Religião, ou contra os bons costumes, que umaPastoral impressa, pela qual pedem e exortam os fiéisde se absterem da leitura daquele livro que eles con-denam como inimigo da Religião e da consciência.O cuidado que devia ter o chanceler-Mor de Portu-gal, tomaram a sua contra os Bispos e haverá duzen-tos anos o Tribunal do Santo Ofício em primeiro lu-gar, em segundo o Desembargo do Paço; e para quenão pareça que os Bispos perderam o que usurparam,saem todos os livros com a aprovação do Ordinário.

Não me pertence decidir da irregularidade desteproceder: o que me parece ser deste lugar, é discutirse não é da boa ordem e da utilidade pública que to-dos os Livros de Medicina que se imprimirem sejamrevistos e aprovados pelo Tribunal Médico antes dalicença de correrem? É coisa notável que seja per-mitido todo o livro em Portugal, se não contém coisacontra a fé católica Romana e contra o Estado, aindaque contenha os maiores absurdos contra as ciências,e contra as artes? A utilidade pública não entrou atéagora, parece, no ânimo dos Físicos-Mores; Ou nãoforam tão severos como requeria a importância daMedicina, para permitirem a impressão de muitos li-vros portugueses contrários aos dogmas desta ciên-cia, e da sua verdadeira prática.

Aqui parece pertencerem os reparos que fizerammuitos eruditos, e muitos homens de Estado, se épernicioso às Ciências que se escrevam nas línguasvulgares? o que a experiência tem mostrado atéagora nesta matéria é que escrevendo-se as Ciênciasnas línguas vulgares toda aquela Nação vem a ad-quirir muitos conhecimentos, que a fazem mais ci-vil, e mais inteligente: Mas ao mesmo tempo queas ciências se espalham, e se estendem pela maiorparte de súbditos, ela diminui-se, e parece que seconsome. Por que os seus Professores inundados detantos escritos modernos não lhes fica o tempo ne-cessário para consultar as fontes das ciências que seacham nas línguas Grega e Latina. Daqui vem quepelo excessivo número de livros escritos nas línguasmaternas, poucos são aqueles que merecem aplauso,e que muitos deles são concebidos em falsas suposi-ções, e muitos erros. Aqueles Autores que escreve-ram nas línguas doutas ordinariamente são mais beminstruídos tanto na antiguidade, como nos verdadei-ros principios da Ciência de que escrevem; porque osaber com alguma perfeição a língua latina traz con-sigo estas virtudes: Não quero entrar de propósito adeclarar a causa mais comum de tantos escritos vul-gares nas línguas modernas: todos sabem o comér-

cio dos livreiros, e que muitos escrevem somente noúnico intento de lucrar, e adquirir por este meio a suasubsistência.

Do que se pode bem considerar que seria maisvantajoso para as ciências, e mais lucrativo para osseus Professores, que as escrevessem nas línguasdoutas: Mas como esta obrigação violentaria os en-genhos parece necessário que exista um Tribunal noEstado, a cujo cargo esteja somente examinar, e apro-var os livros das artes e das ciências antes que sejampúblicas: Todo o seu cuidado se reduziria a suprimira edição, ou o Manuscrito que contivesse doutrinaerrónea, ou princípio algum contrário à razão, e à ex-periência: Impedindo que se não divulgassem tantavariedade de remédios contra os males do corpo hu-mano dos quais não consta da sua bondade, nem dométodo de administrá-los.

Nos Apontamentos que escrevi para formar umaUniversidade Real, fui de parecer que tudo aquiloque se imprimisse nela ou pelos seus Professores,ou por qualquer outro Autor, fosse unicamente re-visto pelo Tribunal Académico, como Delegado doChanceler-Mor. Por esta disposição, se um dia forexecutada, nenhum livro de Medicina que se impri-misse na Universidade seria revisto nem aprovadopelo Tribunal Médico: Todos os mais que se impri-missem no Reino não poderiam correr sem licençadeste último Tribunal.

Como o Tribunal Médico nesta parte da Cen-sura dos livros de Medicina seria o Delegado doChanceler-Mor do Reino teria a autoridade de cas-tigar aqueles que vendessem, ou distribuíssem livrosdesta ciência sem a sua aprovação e exame, escritosna Língua Portuguesa ou Latina. O Principal remé-dio de toda a contravenção ao poder do Tribunal forao verdadeiro ensino dos que estudam a Medicina naUniversidade, e a vigilância dos Lentes, e dos Ma-gistrados da Universidade.

Dos Médicos que por ordem doTribunal Médico deviam viajarpara saberem a Medicina quepraticam as Nações Bárbaras

Muitas nações, diz Plínio, viveram sem médicos, masnenhuma sem Medicina. Os remédios de que se serveesta ciência todos foram achados e experimentadosantes que se reduzisse a sistema; O acaso, o instintodos animais, e a analogia foram as escolas primitivasda Matéria Médica, e da Medicina; e jamais as dis-putas, os argumentos, nem as especulações sobre os

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 29

mesmos remédios, o que tem sido pela maior parte aocupação de tantos Médicos, e pelo espaço de vinteséculos. É coisa notável que os três ou quatro remé-dios mais efectivos, e saudáveis que tem hoje a Medi-cina que nenhum deles foi achado por Universidadealguma, ou por algum Médico. O ópio, o mercúrio, aquina quina, o ruibarbo, e o almíscar foram achadose administrados por gentes bárbaras, ou ignorantesda Ciência Médica. É verdade que não sabendo asfunções do corpo humano, e os seus vários estadosem muitas doenças, que podiam ser nocivos em mui-tas ocasiões: Mas como observaram que mais vezeseram saudáveis, que perniciosos, adquiriram fama,que chegou à notícia dos Médicos para se aproveita-rem daquelas cegas experiências.

O Bálsamo do Peru, e de Copaiva, e outros muitosque vêm da América, e da Ilha de S. Tomé; a imen-sidade de gomas e de resinas que vêm desta partedo mundo e da África e da Ásia, a Jalapa, o Me-choacão, a Contra-erva Ipecacuanha e outra infini-dade de drogas, de que usa a Medicina e muitas ar-tes, todas foram descobertas pelas Nações bárbaras;aumentando-se por elas a vida e a saúde das Naçõesda Europa, e as riquezas de quem as possui pelo seulucrativo comércio.

Se o Tribunal Médico, que proponho, considerarbem, que não somente é da sua obrigação dirigir aMedicina conhecida para a conservação dos povos,mas também de aumentar esta ciência, será impossí-vel que não procure por aqueles meios, que lhe se-rão tão fáceis, executar tão louvável intento: Comoconsidero este Tribunal que há-de levar sempre porobjecto imitar os grandes Legisladores; dos quais osessenciais intentos foram sempre conservar os súbdi-tos existentes, e fomentar tais meios que se aumen-tassem no número, nas forças, e na subsistência, nãotemo que me acusarão de fantástico propor, que deviaentrar no seu exercício, a disposição seguinte.

Logo que da Universidade proposta saíssem Mé-dicos instruídos na Botânica, e História Natural;Logo que tivessem praticado no Reino com aplauso,o Tribunal Médico mandaria quatro destes Médicos,com salário Real, e recomendação aos Governadoresda sua destinação, viajar nos domínios Portuguesescom intruções, entre as quais seria a primeira que in-quirissem, e se informassem de todas as ervas, raí-zes, gomas, e bálsamos que servem àquelas Naçõesbárbaras de remédio, e em que queixas faziam usodelas, com o modo da sua administração: e como es-tavam instruídos na botânica, e história natural, lhesseria fácil virem, no conhecimento destes remédios,o que tudo observariam como Médicos para relata-rem ao Tribunal a quem dariam conta do seu Jornalcomposto sem intermissão: Nestas mesmas instru-

ções entraria a indagação de todas aquelas produçõesque servem para o uso das artes, e por último do co-mércio.

Quando estes Médicos voltassem, tudo o que ti-vessem observado, e escrito nos seus Jornais o depo-riam no poder do Tribunal, juntamente com os sím-plices (se lhes fosse possível) que observaram úteisconforme o intento da sua missão: Outros logo se-riam mandados em seu lugar, que poderiam aumentaros princípios dos primeiros, tanto pelas instruções,como pela notícia dos climas e das Nações que maisse deviam cultivar para o seu intento.

Estes Indagadores da História Natural, da Medi-cina, das antiguidades, e dos monumentos de todasas Nações nas quatro partes do mundo, não são no-vos nem desconhecidos na França, na Inglaterra, Di-namarca, Suécia, Saxónia, neste século e no passado,e em Florença no tempo da Casa dos Medicis: EstesEstados à sua custa mandaram, e mandam ainda con-tinuadamente estes homens doutos viajar, e recolhero que as Nações bárbaras, e polidas conhecem de útilà Sociedade: E quem duvidar desta constante prá-tica daqueles Estados, ficará convencido do que fez aHolanda, enquanto possuiu Pernambuco, e a Baía noséculo passado: mandou Guilhelmo Piso a indagaro que tinha aquela parte do mundo útil à Medicina,e à História Natural; e com tanta felicidade, e con-fusão nossa, que se não fora por este Holandês nemconheceríamos o Cipó, nem o Bálsamo de Copaiva,e outros muitos símplices de que usam as artes, e aMedicina.

Desgraçadamente extinguiu-se nos Médicos Por-tugueses aquele intenso ardor de servir a sua pátriae a humanidade; acabou-se com Garcia de Orta notempo del Rei Dom João o Terceiro, e tão torpementeque apenas é conhecida a sua obra em Portugal, senão estiveram traduzidos alguns pedaços delas emLatim nas obras de Carlos Clusio.

À vista do referido se o Tribunal Médico não to-mar esta indagação à sua conta, e promovê-la con-forme a sua obrigação, propondo a S. Majestade Fi-delíssima a suma utilidade que redondaria a saúde,as riquezas, e aumento dos seus súbditos, é certo, ouque todas as Nações mais instruídas vão erradas, ouque nós somente soubemos usar das nossas conquis-tas, e colónias.

Quando os Jornais destes Médicos, contivessemremédios para curar queixas, desconhecidos na Far-macopeia, o Tribunal Médico os comunicaria ao Co-légio Médico, e com os mesmos remédios fazeremexperiências; e quando constasse da sua eficácia en-trariam na Matéria Médica de que estava composta aFarmacopeia, para vir no conhecimento de todos osque professarem esta ciência.

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Sobre os Droguistas e os quevendem Remédios Químicos

Não se conhece comércio algum mais sujeito a dani-ficação, a falsificação das mercancias do que dos re-médios símplices, ou compostos, o que vulgarmentese chamam drogas: Por que as raízes e as sementesem poucos anos se alteram e apodrecem, e principal-mente aqueles que vêm por mar da Ásia, América,e África. Costumam os Droguistas não só vende-rem estes símplices, mas também muitos compostos,como são xaropes, elestuários, sendo as triagas osprincipais: vendem também quase todos os remédiosquímicos, como sais, tinturas, espíritos, extractos, eas várias preparações do mercúrio; tiram estes remé-dios dos Laboratórios de Itália, de Hamburgo, Ho-landa, e Inglaterra: e qualquer, ainda pouco versadonesta matéria, poderá conceber quanta falsidade, oupelo menos deterioramento dos referidos remédiospoderão adquirir pelo discurso do tempo.

Não me admiro que haja muitos Estrangeiros comloja aberta em Lisboa, no Porto, e em Coimbra quevendam aos Boticários do Reino todos os remédiosreferidos: Os Tratados de Comércio, ou Políticos po-derão ser a causa: Mas o que é incrível que estejamestes Droguistas fora de toda a inspecção e subor-dinação do Físico-Mor; que estejam todos os Boti-cários do Reino provendo-se de todos os remédiosem casa destes Droguistas, e que se confie todo umReino nesta parte e esta sorte de Mercadores, sem te-rem Médico, nem Químico que julgue da qualidadedos remédios de que usa toda uma Monarquia.

A Faculdade de Paris visita cada ano por sua or-dem as Boticas dos Droguistas na mesma cidade, nãoobstante serem todos Franceses: Na cidade de Lon-dres a Companhia, ou Irmandade dos Boticários edi-ficaram uma Botica e Laboratório Químico para seprepararem as Composições Químicas e Galénicasmais custosas, para o uso das Boticas particulares.Nenhum lugar se conhece hoje na Europa onde re-sida Jurisdição ou Inspecção Médica que não visite eexamine os remédios simples e compostos que ven-dem os Droguistas, igualmente como são visitadosos Boticários.

Não me determino o que vou a propor pelo exem-plo das Nações da Europa se não fossem fundadasneste particular na mais regular justiça, e conheci-mento do bem público. É certo que em todo o Reinobem governado deve haver uma inspecção particularnos remédios de que usar; se os almotacéis por Leido Reino têm obrigação de admitir ou rejeitar os ali-mentos de boas ou más qualidades com muita maiorrazão o Tribunal Médico deve ter a inspecção sobre

todos os remédios e autoridade para rejeitar aqueles,que poderão vir a ser venenosos, por podres, ou alte-rados, ou mal compostos, e preparados.

Se num Estado tudo se pudesse ter facilmentecomo requer a necessidade, e a utilidade pública, ésem controvérsia que não seria permitido a nenhumEstrangeiro ter loja aberta de drogas, e remédioscompostos, ou químicos para vendê-los em retalho:Essa permissão de vendê-los seria somente: nos seusarmazéns, e em grosso. Mas o remédio mais fácil se-ria que o Tribunal Médico determinasse, ajudasse eprotegesse um Droguista, ou alguns Droguistas Por-tugueses, com loja aberta onde os Boticários da capi-tal e das províncias podiam prover-se; E determinartal correspondência por recoveiros, e pelos correiosque os Boticários das Províncias ficassem providosunicamente pela correspondência de cartas: Este se-ria o remédio mais efectivo para que dito Tribunalentrasse sem repugnância na inspecção das Drogas edos Droguistas Portugueses para destruir aqueles Es-trangeiros que têm lojas abertas, ou pela força dosTratados, ou pelo pouco cuidado dos Físicos-Mores.

Mas o que necessitava do mais pronto, e mais ac-tivo socorro seria na composição, e distribuição dosremédios compostos e químicos. É evidente que senão se estabelecer nas capitais do Reino, ou pelomenos em Lisboa, um Laboratório químico, ondese componham todos os remédios compostos da pri-meira e segunda classe, e também os químicos, quejamais se cortará a raíz de usarem os Boticários detodo o Reino daqueles que vêm dos Estrangeiros:Este Laboratório seria fundado à custa do Estado domodo que achasse mais útil o Tribunal Médico, oqual poderia então obrigar os Boticários do Reinoa proverem-se nele por preços justos e moderados:e como devia ficar debaixo da sua inspecção, nin-guém duvidaria da verdadeira composição do que na-quela fábrica se vendia: Tudo isto seria necessárionos princípios, nos quais o Estado faria mui poucadespesa, considerando o que perde hoje pelo dinheiroque sai fora do Reino pelas drogas e pelos mais re-médios, que referimos. Mas logo que os Boticáriosse acostumassem a prover-se dos Droguistas Portu-gueses; logo que por recoveiros estivesse estabele-cida uma regular correspondência por cartas, e poresta via proverem-se as boticas: Logo que estivessemsuprimidas totalmente as Boticas dos Conventos, eque os Boticários fossem somente aqueles que fizes-sem a provisão das armadas, e dos Navios Mercan-tes, como também os Droguistas, neste estado, nãoseria já necessário ao Estado dispender em manteralguns Droguistas Portugueses, nem conservar à suacusta o Laboratório proposto: Então os mesmos par-ticulares conhecendo o lucro que lhes redundaria go-

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vernariam, e manteriam à sua própria custa estes re-feridos estabelecimentos. Deixo à consideração da-queles que entendem a Medicina, dos que amam ahumanidade, e também daqueles que conhecem osinteresses do Estado, se o que proponho agora nãosatisfaria a todos estes objectos.

O cuidado que deveria ter oTribunal Médico de procuraros livros novos e notícias literá-rias de Medicina

Se os Médicos, com o seu trabalho, diligência e ob-servância às ordens do Tribunal da Medicina, tirammuito da sua liberdade é justo que seja recompen-sada por Ele com a proteção e com aquela instruçãoque requer o seu estado: É necessário na Repúblicadas Letras uma compensação dos cargos literáriosem tudo semelhante à que constantemente se praticano Estado Civil; porque de outro modo fora o Tribu-nal Médico instituído só para castigar as faltas quecometessem os que exercitam as várias ocupaçõesda Medicina. Seria da sua obrigação não só regrara boa ordem da sua prática, mas também procurartodos os modos de instruir todos aqueles que esti-vessem às suas ordens: utilizar, e aumentar a ciênciada Medicina, e procurar honrados estabelecimentosàqueles que a praticassem com utilidade pública; edeste modo se previam as faltas, o que sempre suce-derá a todos os Tribunais que forem bem instituídos:Quanto mais trabalharem para prevenir os erros, e osdelitos, tão raras vezes terão ocasião, de repreender ede castigar.

Toda a Europa onde reside a República Literáriase comunica por aquelas gazetas literárias, que cha-mam ordinariamenteJornais, onde se contêm os tí-tulos dos livros, dos seus Autores, o lugar da impres-são, e em que ano: Contêm extractos do seu con-teúdo: ali sabe o Médico como se curaram tais e taisenfermidades, com que remédios novos, que teorianova, ou sistema se inventou para explicar muitossintomas; ali se vêem novas plantas com virtudes quenunca se observaram: o Médico Alemão que escre-veu um tal livro dentro de três meses é conhecido ea sua obra em toda a Europa exceptuando Portugal eCastela. Estes Reinos parece que estão separados doUniverso a respeito da comunicação que deviam terda República Literária Médica pelo menos, ou Polí-tica. É coisa lamentável que saia um Médico da Uni-versidade, que se vá estabelecer em Bragança, ou emBeja, que viva ali por cinquenta anos, e que em to-

dos eles não conheça mais do que os livros, que leu,ou ouviu nomear na Universidade: se consideramosos Médicos das nossas Ilhas, Colónias, e Conquis-tas, lamentaremos muito mais a obscura ignorânciado que se trata na República Literária. É certo quea Medicina é ainda hoje uma ciência incompleta, eque cada ano se descobrem novos métodos, e novasplantas para curar certos males; e que seria útil queos Médicos de qualquer Estado tivessem este conhe-cimento como têm os Alemães, e os Ingleses, e quasetodos os mais da Europa.

Pelas razões referidas não me acusarão que pro-ponho ser da obrigação do Tribunal Médico mandarvir dos Reinos estrangeiros aquele ou aquelesJor-nais que dessem mais particular notícia da Física eda Medicina, como é aquele que actualmente se im-prime em Leipsig com este título,Commentarii deRebus in Scientia naturali & Medicina gestis Lipsiae.8. principiado no ano 1752: cada três meses sabe a4.a parte, e dentro do ano sai um volume de 739 a 750páginas em 8.o. E outros muitos em França, Itália,Holanda &c. Do mesmo modo este Tribunal deviareceber os volumes das sociedades doutas da Europacomo são os da Academia Imperial de Petersburgo,da Academia Real da Suécia, da Academia de Medi-cina da Dinamarca, da Sociedade Real de Inglaterra,da Academia Real das Ciências de Paris, do Insti-tuto de Bolonha, e outras, nas quais obras se achamanualmente muitas observações necessárias aos Mé-dicos.

O uso que deveria fazer o Tribunal Médico destesjornais, e obras Académicas seria o de mandar fazerpelo menos uma lista dos Autores novos da Física,e Medicina, com uma brevíssima notícia do que tra-tam, e remeter a cada um dos seus Delegados nasProvíncias, ou Ultramar uma cópia, com ordem dedistribuí-la pelos Médicos do seu distrito. O Princi-pal e o mais útil seria mandar o mesmo Tribunal im-primir cada ano um extracto do mais útil que se des-cobriu na Europa na Física, e na Medicina, e remeteraos seus Delegados um número suficiente de exem-plares para serem distribuídos pelos Médicos daque-les distritos à sua custa; o que seria um dispêndiomuito limitado certamente.

Este método tão pouco custoso, e tão fácil deexecutar-se conservaria pela novidade aquele amorde saber, e de ler, que se embota, e se extingue porúltimo numa vila ou lugar de fronteiras do Reino, ounas Colónias; Incitaria os génios Médicos à corres-pondência literária, e como os dos partidos seriamobrigados a dar relações das Epidemias, e outros ma-les ao dito Colégio tudo concorreria para cultivarema sua arte, e trabalhar no aumento da saúde do pú-blico.

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32 António Ribeiro Sanches

A Sociedade de Medicina que se estabeleceu emEdimburgo na Escócia no ano 1733 nos volumes quepublicou com este títuloMedical Essays &c.quequer dizer t’t’Ensaios Médicos, e observações, revis-tas e publicadas pela Sociedade de Edimburgo pode-ria servir de modelo ao Jornal que proponho: no fimde cada volume (que são seis primitivos) se lia umcapítulo com este título“ Notícia das mais remarcá-veis descobertas na Medicina desde o ano, (vg) 1731até o ano (vg) presente. Como esta obra se acha emFrancês, língua mais comum, será fácil usar-se desteutilíssimo método para instruir os Médicos de umaNação inteira com tão pouco trabalho e dispêndio.

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Parte II

Apontamentos para formar-se umColégio de Medicina

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 35

Introdução

O Tribunal Médico, de que tratei até agora, e o Co-légio de Medicina de que vou tratar não serão sepa-rados na sua constituição, nem formarão dois Corposde Médicos. O dito Tribunal e o Colégio não farãomais do que um Tribunal que tenha a seu cargo nãosomente a ciência de Medicina administrada para uti-lidade pública, mas também que tenha uma particularinspecção em todos aqueles que a praticarem ou tra-tarem no que lhe pertence: Que se estabeleça umasubordinação entre todos os que praticarem esta arte;parecendo tão necessária, que será impossível resul-tar dela o bem, que pretende o Estado, sem o esta-belecimento referido, e este mesmo de que vamos adescrever.

Puderemos logo no princípio nomear o TribunalMédico, e o Colégio de Medicina somente de umÚnico Nome, por exemplo,Colégio Real de Medi-cina: Mas como não escrevo os Estatutos deste colé-gio; como escrevo somente os apontamentos para seformarem, achei a propósito de separar os seus no-mes para indicar mais claramente a sua constituição,e a sua obrigação. Achei que deviam estes dois Cor-pos de Médicos ter diferentes funções: e que ambosse ajudassem, e dependessem mutuamente um do ou-tro. A maior parte dos Médicos, me pareceu, deviamnesta sociedade servirem de conselheiros, de consul-tores, de examinadores, e de promoverem a Ciência,e a prática da Medicina pelas suas especulações, e ex-periência, como também ensinando, quando reque-resse a utilidade pública, e a conservação da saúdedos Povos.

Considerei então que devia existir nesta sociedadeum determinado número de Médicos autorizados daJurisdição Realpara executarem os Estatutos decre-tados, como também tudo aquilo que propusessem osmais Membros dela, no caso que se aprovasse peloPresidente, Conselheiros, Deão e Censores de quedevia ser composto este colégio, não só na capital,mas em todos os lugares do Reino onde se achassemseis Médicos formados.

Os Colégios dos Médicos estabelecidos na maiorparte das cidades da Europa, estão destituídos doPo-der executivodos seus Estatutos: não estão reves-tidos daJurisdição civilpara castigar todos aquelesque contravêm à sua observância; e daqui vem, quenão servem estas Sociedades Médicas que para impe-direm os Médicos Estrangeiros, e ainda mesmo Na-cionais, curar na mesma cidade, antes de serem agre-gados ao mesmo Colégio: porque cada colega achanaquela proibição a sua conveniência, sendo por estacausa o único estatuto que se observa nele.

O Protomedicado de Madrid, e o nosso do Físico-

Mor têm poder de executar aquelas Leis com que es-tão instituídos: Mas todos assentarão, quando consi-derarem esta matéria sem interesse, nem paixão, quenão redunda, nem no aumento da Medicina, nem nautilidade dos Povos.

Estes Tribunais não estão instruídos do número,nem das qualidades dos Médicos, dos Cirurgiões, dosBoticários, dos Droguistas, e Parteiras do Reino; emuito menos da ciência, e da capacidade de que sãodotados: Não têm o menor conhecimento da necessi-dade dos povos, nem das doenças Epidémicas, nemEndémicas com que são aflitos: Não têm conselho,nem aviso dos mais Médicos do Reino da necessi-dade de melhor ordem na prática da Medicina; e ne-nhum deles nestes tempos, nem propõem aos ditosTribunais estes defeitos, nem por estatuto seu seriamadmitidas semelhantes represenções, ainda mesmona suposição que fossem necessárias.

Além do referido este Tribunal, como o de Cas-tela estão providos pelo Físico-Mor, e pelos Médicosda Câmara, ou da Corte: É impossível que tenhamtempo, não digo para pensar regrar a ciência da Me-dicina, mas ainda assistir aos exames dos Médicos(como é uso em Castela) dos Cirurgiões, Boticários,e semelhantes despachos: Quando têm por cargo cu-rarem, e assistirem aos enfermos na corte: e como emPortugal os salários são muito módicos, são distraí-dos pela prática dos doentes da cidade, para puderemsubsistir.

Nesta consideração, e outras muitas, que ocorre-rão facilmente a todo o Médico que não exercitar se-melhantes funções de Físico-Mor, ou Presidente dosTribunais referidos, pensei o seguinte.

A Medicina Prática deve sergovernada no Estado Civil àimitação da Religião e da Ju-risprudência

Os Homens para evitarem os males a que esta-vam sempre expostos enquanto viviam como feras,juntaram-se em sociedades; formaram aldeias, vi-las, e cidades; e quando uma vez elegeram um paragoverná-los, formou-se o Estado Civil. O principalintento deste Maioral, ou Capitão, ou que devia ter nocargo de que estava revestido, era que os seus súbdi-tos tivessem a sua subsistência certa; e que vivessemem boa paz, e harmonia entre si, para resistirem maisfacilmente aos ataques dos seus inimigos. Para esta-belecer esta ordem civil, e este indispensável e louvá-vel intento, foram necessárias leis que determinaram

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penas e castigos: foram necessárias pessoas autoriza-das com a Jurisdição do Maioral que as executassem,para que pelo medo, e pelo exemplo se conservasse aharmonia entre os mesmos súbditos.

Apelo para o comum consentimento de todas asNações civilizadas, e observaremos nelas um Su-premo Tribunal de Justiça: com Delegados por todoo Reino, ou República: Todos estes Magistrados sãosubordinados; os menores, aos maiores, e todos aoLegislador. De tal modo que a Jurisprudência está tãoligada com o Estado Civil pelo seu exercício, e pelosMagistrados que a compõem que vem a formar-seum corpo indivisível, e indissolúvel, no que consistea sua conservação e felicidade.

A experiência, e a Religião revelada nos mostrouque não basta a providência, e a inteligência humanapara obrigar os homens a viver como racionais, ape-sar dos castigos e do mais atroz, que é a morte: Deuspela sua infinita Bondade revelou aos homens t’t’-Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, etin tota anima sua, & in tota mente tua“. Preceito omaior de todos, porque dele saem todos aqueles aque somos obrigados observar para salvar-nos. Esta-belece Deus Ministros para manterem a observânciade tão Divinos preceitos: Mas com subordinação eordem, também estabelecida no Estado Civil, que éa parte mais respeitada nele, formando um todo; e sefossem estes Divinos preceitos também observadoscomo é do nosso interesse, seria a Sociedade Civilindissolúvel, e a mais feliz.

Não necessito agora mostrar a suma necessidadeque tem o Estado Civil da Medicina: A EscrituraSagrada nos ensina foi criada por Deus; Se da obri-gação do Legislador é procurar por todos os meiospossíveis a conservação dos seus súbditos, pela sub-sistência certa, pela defensa dos Inimigos, fica evi-dente que entrará nos meios da sua Legislação a Me-dicina, como o mais eficaz para curar os males cu-ráveis a que estão sujeitos os seus povos: Ainda quePlínio declamou contra os Médicos, este mesmo ex-celente Político, e Filosófo mostrou claramente quenenhuma nação, por bárbara que fosse, viveu semmedicina. Uma contradição visível se observa namaior parte dos Estados Civis da Europa, que dispen-dendo prodigiosamente na educação dos Eclesiásti-cos, dos Jurisconsultos, e dos Médicos, nas Escolas,e nas Universidades, e que os curas dependam dosseus Bispos, e os Juízes das Aldeias, Vilas, e Cidadesdependam do Tribunal Supremo da Legislação, e quesó os Médicos práticos espalhados por todo o Reinofiquem independentes, sem subordinação a Superioralgum; sem inspecção no seu proceder; sem temorde castigo se cometeu faltas enormes no seu ofício,

e sem esperança de prémio, mais que do particular,como se vivesse fora do Estado Civil.

Os Ministros da Religião Revelada, os Magistra-dos que executam as Leis, os Médicos que exercitama Medicina, entraram no Estado Civil depois de estarjá formado: são partes constituintes dele: devem es-tar subordinados, e governados de tal modo que con-servem a sua união, e prosperidade: e que em todoo tempo sejam obrigados a lembrarem-se das suasobrigações, não só daquelas comuns a cada súbdito,mas também daquelas especiais à sua incumbência.

Estes são os motivos de propor um Colégio Realde Medicina, para o qual já escrevi os antecedentesapontamentos dirigidos a executar a Jurisdição quedeve ter sobre tudo o que pertença à ciência da Medi-cina: Agora tratarei daquela parte deste colégio, quecontribuirá com os seus avisos, trabalho, ensino, edoutrina, para que esta ciência redunde em utilidadepública, e saúde universal dos Povos.

Exposição do Colégio Real deMedicina que se propôs acimaPara executar os Estatutos, e Leis, que deviam regrare governar todos aqueles que praticassem, qualquerparte, ou ramo da Medicina no Reino, parece que sóo Colégio Real de Medicina que propomos seria oúnico meio da sua observância, e execução.

Até agora demos a conhecer nos apontamentosreferidos a matéria dos Estatutos, ou Regramentosdeste Colégio; Agora proporemos a sua forma, tãoclara, e distintamente, que possam formar dela umperfeito conceito, ainda aqueles que não estudaram,nem praticaram a Medicina.

Suponho agora que se ordenou ao Físico-Mor ac-tual que faça juntar num lugar determinado todos osMédicos Práticos na cidade de Lisboa, autorizadosconforme as Leis da nossa Universidade, e do Reinoa praticar em todos os seus domínios, e que estandotodos presentes, o mesmo Físico-Mor lhes lesse umDecreto de S. Majestade, que Deus guarde, pelo qualordenava, que todos os Médicos da cidade de Lisboa,legitimamente autorizados a praticar nela a sua arte,compusessem daquele dia para diante um Colégio ouSociedade regida, e governada pelos Estatutos que oMESMO SENHOR mandaria compor.

Naquele mesmo lugar o dito Físico indicaria à So-ciedade o dia, e o lugar, onde deviam juntar-se paraouvirem, e prometerem observar os Estatutos firma-dos, e autorizados com força de lei por Sua Majes-tade Fidelíssima.

Parece-me supérfluo indicar aqui o lugar ondedeve existir este Colégio: bem se poderá considerar

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que se requer uma tal casa ou palácio onde possamjuntar-se sessenta pessoas: outra para assentar-se oTribunal, outra para as Secretárias, e arquivos, tantodeste, como do Colégio: Qualquer palácio velho, ouduas ou três casas juntas poderão nestes princípiosdeterminar-se para este efeito.

Primeira Assembleia dos Mé-dicos referidos

O Físico-Mor publicaria a esta Sociedade os Estatu-tos que deviam servir para compô-la, e dirigi-la, dosquais o primeiro constaria das seguintes cláusulas.

Que o Principal desta Assembleia seria aqueleMédico que mostrasse a maior antiguidade do seugrau na Universidade: Que teria entre todos o pri-meiro assento; e que pela mesma antiguidade se re-grariam os assentos e lugares dos mais Médicos;e que não seria alterada esta ordem, nem por eleFísico-Mor, Cirurgião-Mor, Médicos da Câmara, ouda Família, ainda que fossem decorados com algumaordem militar, ou outra qualquer insígnia de nobreza:E que os assentos nas assembleias ao adiante seriamregrados pela antiguidade do dia da recepção naqueleColégio, conforme apareceria pelos Estatutos abaixo.

Que nas consultas, e deliberações deste Colégio oseuDecanoouDeão, não teria mais do que um voto,mas que seria o último; E que o Médico primeiroque votaria seria aquele último que fosse formado naUniversidade, ou recebido, posteriormente naqueleColégio.

Este decano ou Deão terá autoridade de convocarpor escrito as assembleias, ou nos dias determina-dos, que serão cada quinze dias, ou cada mês, ou nosextraordinários conforme requerer a necessidade ouurgência. Ele terá autoridade de fazer observar a boaordem na assembleia, impor silêncio, ordenar as lei-turas, e outras funções mais, que se especificarão nosEstatutos abaixo.

Dos Censores deste ColégioReal de Medicina

Todos os Médicos de que se compuser este Colé-gio elegerão à pluralidade de votosquatro Censores,de entre eles mesmos e o Deão com o Secretário doColégio examinará os votos, e os declarará à assem-bleia; e ficarão neste emprego por três anos; no fimdos quais se fará nova eleição para se continuar nesteexer[cí]cio.

A sua incumbência será de aprovar os livros quedevem ser impressos: ficando ao poder do Deão de-terminar aquele que reverá, e examinará o livro emmanuscrito, ou impresso.

Também será da sua obrigação darem por escritoao Secretário do mesmo Colégio todas as contraven-ções aos Estatutos do mesmo; de tal modo que fi-cam encarregados de observarem, e de representaremtudo aquilo que cometerem eles não só os Médicos,mas também os Cirurgiões, os Boticários, Droguis-tas, Sangradores e Parteiras. Estes serão os que fa-rão a visita das Boticas das lojas dos Droguistas cadaano, juntamente com um Conselheiro do Tribunal, notempo que for determinado por Ele mesmo.

Dos Examinadores

Todos os Médicos deste Colégio elegeram à plura-lidade de votosquatro Examinadores. Exercitarãoeste cargo por três anos sucessivos: no fim dos quaisse fará deles nova eleição.

A sua incumbência será examinar todos os Médi-cos não somente que quiserem agregar-se neste Co-légio de Lisboa, mas também todos aqueles que qui-serem praticar a Medicina nos domínios do Reinode Portugal; não obstante que ditos examinandos te-nham estudado na Universidade do mesmo Reino, eestarem por ela decorados com o seu grau.

Estes mesmos Examinadores sem ajuda de ci-rurgiões examinarão todos aqueles que procuraremlicença para exercitar a sua arte, ou sejam Cirur-giões simplesmente, ou Cirurgiões Boticários, (comose propôs acima): Estes mesmos examinarão, semajuda de Boticários, todos os que quiserem usar desteofício, e também do de Cirurgião ao mesmo tempo.Examinarão igualmente os Sangradores, e as Partei-ras. Abaixo proporemos a forma destes exames emartículo separado.

Do Secretário deste Colégio

A obrigação do Secretário deste Colégio se reduziráa tão pouco trabalho que o poderá servir o Médicomais moço do Colégio: como toda a sua incumbên-cia se reduzirá pela maior parte a comunicar ao Se-cretário do Tribunal deste Colégio (de que tratare-mos abaixo) tudo aquilo que lhe communicarem porescrito o Deão, e os Censores; e ao mesmo tempo co-municar ao mesmo Deão, Censores, e Examinadorestudo aquilo que lhe comunicar o Secretário do ditoTribunal, pouco trabalho e muito pouco tempo serãobastantes para exercitar este emprego.

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Será bem útil a todo o Médico que entrar nesteColégio como agregado, que sirva este lugar por al-gum tempo, para conhecer a forma do seu governo, eo exercício dos seus Estatutos; porque pelo tempoadiante quando vier a exercitar os cargos de Con-selheiro, Censor, e Examinador saiba com razão eexperiência as obrigações daqueles cargos: Natural-mente não ficará muito tempo neste emprego porquenão será possível que passe um ano inteiro sem seagregar neste Colégio de Lisboa algum novo Médico,que será aquele que servirá logo de Secretário, ex-ceptuando aquele que for Estrangeiro, ainda que sejaformado na Universidade do Reino.

Requisitos necessários para seragregado ao Colégio Real deMedicina que propomos

Qualquer Natural, ou Estrangeiro poderá agregar-seao Colégio Real de Medicina, e por consequência emtodos os mais que se estabelecerem no Reino, e seusdomínios, se satisfizer as condições seguintes. Quemostrem a sua fé de Baptismo: Que apresentem aeste Colégio as Cartas, Diploma, ou Patente de for-matura de uma Universidade de grau de Doutor Li-cenciado, ou Bacharel, conforme o costume que sepraticar nela.

Os Médicos Portugueses formados na Universi-dade do Reino, e que estarão já examinados peloTribunal de Medicina serão obrigados a mostraremao Colégio a patente do dito Tribunal, pela qual se-rão autorizados a praticar nos domínios do Reino: ecom estas três atestações serão admitidos a este ditoColégio, sem exame algum ulterior: Sendo somenteobrigados a pagarem ao mesmo Colégio antes da suarecepção a soma denoventa e seis mil réis, ou ummarco de ouro.

Os Médicos Estrangeiros além da obrigação queterão de apresentarem a sua fé de Baptismo, Car-tas, Diploma, ou Patente, autênticas de uma Uni-versidade, não poderão ser admitidos nem ao examedo Tribunal da Medicina, nem a agregar-se a estedito Colégio, sem terem estudado na Universidadedo Reino pelo espaço de um ano Académico, no fimdo qual será examinado pelos Lentes da mesma Uni-versidade, do que lhe passarão atestação; e com estase apresentará ao Tribunal de Medicina em Lisboapara ser examinado por ele segunda vez: E com es-tas duas atestações dos exames poderá ser agregadoao dito Colégio, ou a outro qualquer do Reino, con-tanto que pague a soma referida no Colégio de Lis-boa, e soma menor nos Colégios dos Médicos nas

províncias, ou nos domínios do Ultramar do Reino,conforme os seus Estatutos particulares.

Motivos das disposições acima

É notório que todos os Estudantes Portugueses for-mados na Universidade de Coimbra têm a liberdadeda praticarem em todos os domínios de Portugal, outenham sido partidistas, ou estudado à sua custa: oque sucede desta liberdade é que ficam as provínciascom os piores Médicos do Reino, (porque sempre sãoos mais moços) ou que ficam faltas totalmente deles:Estabelece-se um Médico, que vem a sair da Univer-sidade, numa Vila, ou Cidade, ordinariamente lugardo seu nascimento, e se em poucos anos teve a for-tuna de adquirir nome e fama de bom Médico vemestabelecer-se na Corte, onde fica por toda a vida:Do que resulta que Lisboa tem mais Médicos, doque a maior parte do Reino; que não tendo todos queempregar-se, que nem adiantam no saber, nem con-servam todo o decóro necessário a um homem queprofessa uma ciência tão nobre, e tão necessária.

Bem se sente esta falta nas províncias, principal-mente nas pequenas vilas, e nos lugares mais bempovoados, onde apenas se acha um Médico, digno desatisfazer as obrigaçõss daquele nome. Daqui vemque os cirurgiões vêm a ser Médicos por força, domesmo modo os Barbeiros sangradores, as parteiras,e qualquer velha.

Para obviar esta desordem, e desolação de socorrode que necessita o interior do Reino, nenhum meiose practicará jamais tão eficaz como o de se estabele-cer em Lisboa um Colégio Médico, e a sua imitaçãoem todas as Cidades, Vilas, e Povos onde se acharemMédicos, ainda mesmo no número tão módico, quenão exceda dedois. Estes dois Médicos formarãoColégio Médico, corresponder-se-ão com o de Lis-boa, juntar-se-ão em casa do Boticário do lugar, ouem outro qualquer em que convierem.

Os efeitos destes Colégios estabelecidos em todasas povoações onde residirem dois, ou mais Médicossão os seguintes: Sai, por exemplo, um Médico for-mado da Universidade do Reino; chega a Lisboa, eexamina-se sem gasto algum pelo exame do Tribunalda Medicina, e com sua patente terá liberdade paraestabelecer-se onde lhe for mais conveniente. Esco-lheu, vg, Lamego por ser sua pátria: Mas nesta ci-dade como Capital de Comarca está estabelecido umColégio de Médicos, e por lei que são os seus Es-tatutos ninguém poderá praticar naquela cidade semser agregado àquele mesmo Colégio: para agregar-sedispenderácinquenta mil réispelo menos, e só então

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é que poderá considerar-se estabelecido, e no livreexercício da sua arte:

Suponhamos que este Médico depois de poucosanos quis mudar-se para ir viver no Porto; mas nestaCapital de Comarca e de Província está estabelecidoum Colégio Médico; e para praticar naquela cidadeser-lhe-á necessário agregar-se nele, e dispender pelaagregaçãooitenta mil réis. Estes custos indispensá-veis para agregar-se qualquer Médico aos Colégiosdas vilas, ou das cidades, onde quiser estabelecer-se o impedirão mudar-se facilmente: ficarão retidosnas províncias, e nem todos virão parar à Corte comohoje sucede; ficarão as pequenas vilas, e cidades pro-vidas de Médicos, e não haverá tantos supérfluos emLisboa.

Sobre os Médicos Estrangeiros

O que fica proposto acima sobre os Médicos Estran-geiros é fundado sobre o constante uso da Itália, Ale-manha e França. Todos sabem que para se formarum Médico nestes Reinos e em muitas Universida-des da Holanda que se requer mais o dinheiro paracomprar o diploma, do que o saber, espaço de tempopara aprender, e praticar: Chegarão muitos destes aPortugal em muitas cidades não só dos portos do mardo Reino, mas também das Ilhas e das Colónias, esão reputados por Médicos porque mostram as suascartas aos Magistrados.

Para prevenir que o Reino não venha ser povo-ado destes Médicos (e o mesmo se entende dos Ci-rurgiões estrangeiros) parece que nenhum obstáculomais efectivo se oporá a esta desordem das Universi-dades Estrangeiras, que obrigar estes Médicos douto-rados a estudarem por um ano Académico na Univer-sidade do Reino; no fim do qual seria examinado; ese satisfizesse o seu exame, sem gasto algum por ele,sem nova patente, nem outro qualquer grau, a Uni-versidade lhe passaria atestação do ano que estudaranela, e da aprovação que mereceu: Seria segunda vezexaminado pelo Tribunal de Medicina de Lisboa, edele receberia a licença para agregar-se no Colégioda vila ou cidade que escolhesse para sua habitação.

Por estas provas ficaria o público persuadido dasua capacidade: não tinham que queixar-se que nãousavam com eles da hospitalidade, por que pagariampela agregação do Colégio de Medicina uma somaigual àquela que pagavam os nativos: E se eramobrigados, depois de estarem doutorados, a estudarum ano na Universidade do Reino deviam entenderque naquele tempo aprenderiam a língua, a práticada Medicina, e os costumes do Reino onde queriamestabelecer-se.

Dos Médicos dos quais deviaser composto o Tribunal Mé-dico

Nenhuma República bem ordenada consentiu atéagora comunidade, sociedade, colégio ou conventí-culos sem ordem e autoridade sua expressamente porlei declarada: Por esta razão não devia existir nemformar-se dito ColégioReal de Medicinasem PatenteReal pela qual fosse estabelecido.

Mas este colégio por si só não seria revestido deJurisdição nem de autoridade alguma para dirigir,nem governar outros Médicos, Cirurgiões, Boticá-rios, &c. Pelos seus Estatutos seriam governados so-mente os Médicos deste Colégio, e por comum con-sentimento os observariam, sendo os Executores de-les oDeãoe osQuatro Censores, sem poder algummaior do que privar ao agressor dos Estatutos da So-ciedade do mesmo Colégio.

Temos mostrado até agora a forma deste Colé-gio Real que devia constar de todos os Médicos for-mados na Universidade do Reino, e dos autorizadospelo Físico Mor a praticar nele; temos visto que oDeão dirigiria esta comunidade: Que haveria nelequatroCensores, e quatroexaminadores: Determi-námos a sua obrigação; Mas até agora não determi-námos quais deviam ser aqueles Médicos, que jun-tos em forma de Tribunal autorizados com a Jurisdi-ção Real deviam executar os Estatutos de que trateiacima.

Nesta consideração deviam os quatroCensoresdeste Colégio, e o seuDeãoescolher seis Médicos,seus colegas, que tivessem praticado a Medicina pordez anos, com o talento e capacidade para execu-tarem os Estatutos, dos quais temos dado a maté-ria pelo discurso desta obra: Como deviam ser re-queridos pelo Secretário de Estado do Reino a faze-rem esta eleição, e nomeação deles se elegeria umcom nome deDirector ou Presidente, edois Con-selheiros, dos quais se formaria oTribunal Médicoque residiria na casa do mesmoColégio de Medi-cina, em sala separada, com seuSecretário, e Fis-cal como propusemos acima: Por Decreto de S. Ma-jestade que Deus guarde seriam autorizados a exe-cutar os Estatutos deste Tribunal que comporiam epara dirigir e governar todos aqueles que professamqualquer parte da arte Médica em todos os seus do-mínios, e todos os Médicos, ainda mesmo aquelesagregados nos Colégios, e dos Partidos, exceptuandoo Físico-Mor, Cirurgião-Mor e os mais Médicos daCorte, como também os Lentes e Leitores de Medi-cina da Universidade.

Este Presidente, ouDirector do Tribunal do Co-

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légio Real da Medicina, e os seusdoisConselheirosdeveriam ser ou por muitos anos, ou por toda a vidacom salário: já dissemos as razões que nos moverampara propor nem que o Físico-Mor, nem o Cirurgião-Mor deviam ocupar nenhum daqueles lugares, nemMédico algum da Corte: Ali indicámos que só fica-ria ao Físico-Mor e ao Cirurgião a inspecção da exe-cução, e da boa ordem deste Tribunal, para propor oque achassem mais útil e conveniente para o aumentoda Medicina, e utilidade pública, mas sem autoridadealguma para ordenar ou impedir as resoluções desteTribunal.

À imitação deste Colégio Real se estabeleceriamem todas as cidades do Reino semelhantes Colégios,quando houvesse nelas de seis Médicos para cima,usando dos Estatutos do referido Colégio Real parao seu Estabelecimento; e tanto que estivessem unidose conformes nos pareceres os Médicos das Cidades,dariam parte ao Colégio Real de Lisboa, para que oseu Tribunal lhes procurasse Patentes Reais e por elasse estabeleceriam os referidos Colégios e no caso quese achassem seis ou mais Médicos numa vila ou ci-dade do Reino que não quisessem congregar-se emColégio, o Tribunal do Colégio Médico obrigá-los-iaconforme o seu poder e autoridade. E este mesmoou com aviso do Deão e Censores dos Colégios dasProvíncias, ou com informações que tirassem, (nocaso que não estivessem estabelecidos os ditos Co-légios) poderia nomear umDelegadoem todas as ci-dades, vilas e lugares onde houvesse desde o númerode dois Médicos até outro maior suficiente para seformar deles um Colégio regular. Dito Tribunal se-ria informado por estes seus Delegados de tudo o quepertencesse à boa ordem da prática da Medicina emgeral, e do que mais contribuiria para a utilidade pú-blica:

Dos Exames, dos Médicos, Ci-rurgiões &c. Onde deviam sere quais deviam ser os Examina-dores

Por todo o discurso desta obra se vê claramente quenão convém ao aumento da ciência, nem da práticada Medicina que, por nenhum exame, pague o exami-nando dinheiro algum; mesmo que o Examinador ouExaminadores recebam dinheiro, presentes, ou qual-quer outro benefício ainda mesmo a título de agrade-cimento ou boa amizade: Quando os Examinadorestanto da Universidade como dos Colégios de Medi-cina estiverem persuadidos que não terão lucro al-

gum no caso que o examinando ficar aprovado, oureprovado, considerarão mais facilmente na obser-vância do juramento que darão quando forem eleitosexaminadores: E os examinandos não confiarão noque pagariam aos Examinadores para saírem aprova-dos.

Agora com toda a clareza que me for possível ex-porei quais devem ser os Examinadores doTribunaldo Colégio Médico, ou dos Colégios das Províncias,como devem ser eleitos, se devem ter salário: Comotambém quais serão aqueles que devem ser examina-dos pelos referidos examinadores.

Dissemos acima que oDeãoe os quatro Censo-res do Colégio Real de Medicina elegeriam entre elesquatro Médicos seus Colegas porExaminadores: es-tes assistirão constantemente a cada exame que forordenado pelo Tribunal do dito Colégio; E se, porimpedimento legítimo, faltasse algum deles, um dosquatro Censores supriria aquela falta. EstesquatroExaminadoresteriam honorário anual que lhes de-terminaria o Tribunal do dito Colégio Real de Medi-cina, que proviria da Caixa do dito Tribunal; na qualentraria o dinheiro que pagariam aqueles que se des-pachariam com licença de curar, e pelas provisõesdos Partidos, e outros lugares da armada, e do exér-cito, e Hospitais, lucrativos.

No princípio de cada ano o Tribunal do dito Colé-gio tomaria juramento nas mãos do seu Presidente aestes quatro Examinadores; e também ao Censor ouCensores do Colégio, antes que ocupassem o lugarde Examinador impedido; neste juramento promete-riam examinar, e dar o seu voto da capacidade doexaminando conforme a sua recta consciência.

Todos os Médicos formados, ou examinados eaprovados na Universidade do Reino seriam obriga-dos a suplicar ao Tribunal do Colégio de Medicinade Lisboa que os mandasse examinar para alcançarlicença de praticarem no Reino, e em todos os seusdomínios: dito Tribunal despacharia assinando o dia,hora, e lugar onde seria examinado: depois de apro-var as atestações ou grau da Universidade.

Presentes os quatro examinadores, e juntamenteum Conselheirodo Tribunal do Colégio referido se-ria examinado o suplicante em todas as partes da Me-dicina, por três dias, diferentes com intervalo de uma outro de um mês de tempo: E tendo satisfeito a es-tes três exames, cada um de duas horas, alcançaria domesmo Tribunal a patente para praticar, como reque-reu na sua petição; pagando ao mesmo tempo a somade doze mil réis, ou duas onças de ouro, incluídosnela todos os gastos do selo, e Secretário.

Ficaria à disposição do Conselheiro do Tribunaldo Colégio perguntar, ou não perguntar o exami-

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 41

nando: mas seria autorizado a desempatar os votosdos Examinadores.

Nenhum Médico poderia suplicar aos Colégiosdas vilas e das cidades do Reino, exceptuando o deLisboa, para ser examinado por eles ou dar-lhes li-cença para praticar.

Dos Exames dos Cirurgiões

Já mostrámos acima quanta utilidade resultaria à Re-pública, e à Ciência da Medicina se todos os Cirur-giões tivessem aprendido por três anos a cirurgia, epor outros tantos a Farmácia; e que fossem examina-dos nestas duas partes da Medicina para alcançarem alicença de praticarem a Cirurgia tendo, ou não tendoBotica aberta.

Nos primeiros três anos depois do estabeleci-mento do Colégio de Medicina em Lisboa, era pre-ciso examinarem-se Cirurgiões sem obrigação de sa-berem a Farmácia, como também os Boticários semobrigação de saberem a Cirurgia. Mas passado o ditotempo, seriam obrigados pelos mesmos Estatutos doColégio a satisfazerem nos exames estas duas partesde Medicina.

Nenhum Cirurgião nem Boticário poderia suplicarao Tribunal do Colégio Médico para serem examina-dos, sem lhe apresentarem atestados autênticos queaprenderão por três anos completos, e seguidos comCirurgiões, e Boticários aprovados, e com exercíciona sua arte, tanto nos Hospitais como na prática en-tre os habitantes das vilas ou cidades onde habitarão:E no caso que satisfizessem aos exames conformefica proposto acima, o Tribunal lhe daria a patentepara praticar a Cirurgia e a Fa[r ]mácia, pagandoao mesmo tempo por esta licença a soma de vinte equatro mil réis, ou duas onças de ouro.

Na Patente que lhes passaria o Tribunal do Co-légio iriam incluídos aqueles artículos dos Estatutostocante aos Cirurgiões, que conteria, como propuse-mos acima que deviam delatar às Justiças do lugaras feridas, contusões, ou outro qualquer dano feitopor violência pertencente à sua arte; como tambémde não praticarem a Medicina nos lugares onde hou-vesse Médico autorizado: De não fazer operação al-guma considerável sem a presença do Médico do lu-gar, e de outro Cirurgião mais antigo, ou experimen-tado.

Os quatro Examinadores do Colégio Real da Me-dicina e o Conselheiro do Tribunal do mesmo Colé-gio seriam os que examinariam os Cirurgiões, e osBoticários, sem ajuda nem presença de Cirurgião al-gum, ou Boticário.

Bem sei quão censurada será esta proposta: Mas

como mostrei a necessidade que tem todo o Médicode saber a Cirurgia, a Química, e a Farmácia, e quedeviam necessariamente aprender na Universidadenão somente a teoria destas partes da Medicina, mastambém a sua prática, parece-me que não sou obri-gado a dar satisfação àqueles Médicos que as igno-rassem.

Dos Exames dos Cirurgiões eBoticários que serão examina-dos e aprovados pelos Delega-dos dos Tribunais dos Colégiosdo Reino e nos seus domínios

Persuado-me que aqueles Médicos que praticaremem Faro, Beja, Évora, Porto, Braga, Lamego, Vi-seu, Abrantes, e em Castelo Branco quereriam porsua própria conveniência formarem colégios Médi-cos conforme os Estatutos do Colégio Real de Medi-cina de Lisboa e pedirem ao Tribunal do mesmo Co-légio Patente Real para o seu estabelecimento. Masno caso que por falta do número de ditos Médicosnão se possam formar Colégios Regulares, que con-tenham Deão, Censores, Examinadores e Secretáriosbastariam somente dois ou três para que o Tribunaldo Colégio Real de Lisboa autorizasse um deles como título, deDelegadoe Jurisdição para executar aque-les Estatutos pertencentes aos Delegados, tanto noReino, como nas Ilhas, Conquistas, e Colónias dodomínio Português.

Quando, por exemplo na cidade de Lamego hou-vesse somente três Médicos, deviam juntar-se emColégio, e um deles poderia exercitar a função de De-legado ao arbítrio do Tribunal do Colégio Real; e domesmo modo se praticaria nas mais vilas e cidadesonde houvesse semelhante número de Médicos.

Estando assim estabelecidas estas sociedades Mé-dicas, seria da utilidade pública que os CirurgiõesBoticários, que aprenderam nos Hospitais, e em casade seus Mestres estas duas partes da Medicina fos-sem examinados nas vilas ou capitais das Províncias,para não obrigar todos a virem examinar-se a Lis-boa, como actualmente se costuma; do que resultaque muito poucos são os Cirurgiões das provínciasaprovados, e que a maior parte que exercita esta artesão Barbeiros Sangradores.

Do mesmo modo os Cirurgiões que aprendessemnas Ilhas, nas Conquistas, e nas Colónias a Cirurgia,e a Farmácia deviam ser examinados pelos Delega-dos do Tribunal do Colégio Real por se considerar a

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dificuldade de passarem ao Reino para se examina-rem, e alcançarem licença de praticarem.

Todo o Cirurgião Boticário que se estabelecessenas Províncias seria obrigado a suplicar ao Delegadodo Tribunal do Colégio Real que o examinasse paraalcançar patente de praticar a sua arte: apresentariaa sua fé de baptismo: as atestações dos seus Mestresaprovados que aprendera por três anos a Cirurgia, epor outros tantos a Farmácia. o Delegado juntamentecom dois Médicos examinaria por dois dias o exa-minando, não só na teoria daquelas partes da Medi-cina, mas também na prática: e o mais certo exameseria fazendo alguma operação no Hospital daquelelugar; explicando as partes do Esqueleto, e fazendonum estafermo as ataduras, ou aparelho nas feridas,nas fracturas, e deslocações. Pela qual licença paga-ria o examinado uma módica soma, conforme a ri-queza das Províncias o que determinaria o Tribunaldo Colégio Real.

Logo que o Delegado desse a patente referida da-ria parte dela ao Tribunal de Medicina, e ao mesmotempo da sua capacidade; e se exercitaria a CirurgiacomBoticaaberta, ou somente esta arte.

Dos Sangradores e das Partei-ras

Fora mais útil à República que nenhum Barbeiro san-grasse, nem que jamais se lhe concedesse cartas demeia cirurgia: vêm estes homens ignorantes assimautorizados, curar toda a sorte de doenças ainda noslugares onde residem Médicos: Depois que apare-ceram livros de Medicina impressos em Português,estes homens sem princípios, nem educação alguma,usando deles se persuadem finalmente que possuema doutrina que praticam.

Enquanto não entrarem em execução os Estatutosdo Colégio Real de Medicina, pelos quais estará de-terminado que todos os Cirurgiões serão obrigadosa aprender a Farmácia, e fazerem o seu exame nes-tas duas partes da Medicina, com liberdade de teremBotica aberta, será indispensável examinar os Bar-beiros que se apresentarem para Sangradores: Mastanto que dito Estatuto se observar nenhum Barbeiro,ou outro qualquer será admitido a examinar-se parasangrar, ou para alcançar cartas de meia cirurgia.

O Tribunal determinaria o que se devia praticarcom os Sangradores, e com as Parteiras, tanto no lu-gar da sua residência, como nas Províncias, e tam-bém o que deviam pagar pelas cartas, que o mesmoTribunal lhes passaria, como também os seus Dele-gados. O mesmo cuidado deveria pôr no exame dos

Dentistas, e dos Oculistas, se tal sorte de empregosquisessem estabelecer-se em Portugal.

Dos Rendimentos do Tribunaldo Colégio Real de Medicina edos seus Delegados

Ainda que o Tribunal referido, e todos os seus Dele-gados, e os Médicos Partidistas não deviam pagar osportes das cartas, ou fossem do Reino, ou dos domí-nios do Ultramar, é certo que estaria obrigado a fa-zer muitas despesas, além daquela que devia fazer oEstado logo no princípio do seu estabelecimento, nosalário do seuDirector, ou Presidente, de doisCon-selheiros, umSecretário, e umFiscalcom um Meiri-nho. Seria sempre obrigado a pagar os gastos da Se-cretaria, de mandar comprar livros de Medicina, dosReinos Estrangeiros, onde teria correspondência, eoutros gastos mais, tão necessários para que os Mé-dicos de todos os domínios do Reino se apercebes-sem que têm um Tribunal que os pode premiar comhonras e conveniência, e castigá-los pelo menos como esquecimento, origem do desprezo.

Nesta consideração parece justo, e conveniente,atendendo à utilidade que redundará ao bem públicoque todos os Médicos, Cirurgiões, ou Boticários em-pregados nos Partidos do Reino, pagassem uma certasoma por cada partido novo que alcançassem comprovisão do Tribunal referido.

Já vimos acima que todo o Médico que sair daUniversidade não poderá praticar sem patente desteTribunal; do mesmo modo os Cirurgiões, os Boticá-rios, Sangradores, &c. Por este exame, e por estaprovisão não seriam obrigados a pagar coisa algumaa este Tribunal. Mas no caso que quisesse agregar-se ao Colégio Real de Medicina, ou a outro qual-quer do Reino seria obrigado a pagar a soma deter-minada pelos seus mesmos Estatutos. Se os Médi-cos assim examinados, e aprovados, e os Cirurgiõesfossem providos por exemplo com os partidos dasCâmaras, com os lugares, dos Hospitais ou das Mi-sericórdias, ou Reais, ou outros quaisquer pagos como dinheiro Real, nesse caso seriam obrigados a pagaruma quarta parte do rendimento do partido a este Tri-bunal por uma vez para entrarem depois nele: E ditaquarta parte seria paga por cada novo partido, aindamesmo no caso que o mesmo Médico ou Cirurgiãoalcançasse sucessivamente muitos partidos.

Estas disposições não terão lugar com os Médi-cos empregados no Serviço da Corte; os quais aindaque possam estar agregados ao Colégio Real de Me-

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dicina, ficarão isentos da Jurisdição do Tribunal dodito Colégio.

Os rendimentos das Boticas, de que goza hoje oFísico-Mor dissemos acima seria mais útil ao públicose se empregasse na fundação e conservação de jar-dins de plantas medicinais, nacionais, e estrangeirasnas principais cidades, e vilas do Reino, no caso queos salários do Físico-Mor, e do Cirurgião-Mor fos-sem suficientes, e semelhantes aos dos Médicos daEuropa em semelhantes cargos.

Ali demos a entender por quem devia ser feita avisita das Boticas anual, e das lojas dos Droguistas,ou dos Laboratórios químicos, no caso que se estabe-lecesse algum no Reino para provisão dos Boticáriosde todo ele, e não serem providos com os remédiosquímicos compostos pelos Estrangeiros. Pelo quenão necessitamos nesta matéria insistir mais nesteponto: Tanto que os jardins das plantas referidos es-tivessem estabelecidos, e aplicado algum rendimentodas Boticas, o que ficasse de resto seria para pro-veito do Tribunal do Colégio Real, e dos Delegados,que fariam a visita das Boticas da sua Comarca, ouProvíncia; e como teriam a incumbência de seremos Executores dos Estatutos do Colégio onde esta-vam agregados, e ao mesmo tempo corresponderem-se com o Tribunal referido, era justo que semelhanteocupação fosse premiada com algum interesse, e quedevia sair como dissemos do rendimento das Boticas.

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Parte III

Estatutos Morais

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Do Colégio dos Médicos deLondres para servirem de mo-delo aos do Colégio Real deMedicina de Lisboa

Sobre a conversação moral e os estatutos penais.

Se surgir algum litígio ou controvérsia, por faltade observância da ordem, gravidade e moderação(que determinámos sejam observadas nas reuniões),castigue-se o culpado, segundo o critério do Presi-dente ou do Vice-Presidente e dos Censores.

Mas se o Presidente cometer alguma falta contraos Estatutos, seja, como é óbvio, avisado pelos Con-selheiros, na presença dos Sócios em reunião; masnão seja castigado, a não ser por algum motivo deacusação grave (como o de peculato ou dissipaçãodos bens do Colégio e semelhantes), assim julgadopela maioria dos Sócios presentes. E queremos quedesse número façam parte quatro de entre os Eleito-res que juntamente com os restantes profiram a suasentença sobre tal matéria. Tão grande é a impor-tância que atribuímos à honra e autoridade do Presi-dente.

Que ninguém revele ou divulgue coisa de qualquerimportância que no Colégio se tenha dito, sob penade dez guinéus.

Nenhum colega acusará outro sob pretexto de ig-norância ou de má prática ou de qualquer outro crimeou acusação desonrosa, nem publicamente o atacará.Se ao Presidente ou Censores constar que alguémprocedeu de modo contrário, da primeira vez, pagaráem favor do Colégio quatro libras; da segunda, ser-lhe-á duplicada a multa; e se à terceira vez alguémcometer semelhante ofensa, será expulso do Colégioe não será integrado senão depois de pagar ao Colé-gio dez libras.

Nenhum médico que for chamado em segundo lu-gar para um doente fará que o primeiro médico sejadespedido: e não inovará coisa alguma (a não ser emcaso de urgência), antes de se reunir com ele. E paranão haver ocasião de fraude, todo aquele que é cha-mado para o doente perguntará a este ou aos presen-tes se alguém prescreveu algum remédio, sob penade vinte guinéus. Posteriormente, todavia, segundoa opinião do doente, ou será o único a medicá-lo ouconduzirá o tratamento, quer com o primeiro médicoquer com outro qualquer.

Esforçar-se-á, todavia, por reter consigo o pri-meiro na prática. E se, por decisão do doente e deseus amigos, tal não for possível, nunca censurará o

primeiro médico, de modo algum, e não diminuirá osseus actos perante o doente e os presentes, nem coma expressão do rosto, nem com o gesto, nem comsuspeitoso silêncio ou de qualquer outro modo. An-tes o louvará. E não procederá assim arteiramente,chamando-lhe honesto e probo, mas (e isto é muitoimportante) chamando-lhe médico experimentado esabedor, por forma a deixar o bom nome do outro naposição em que, dada a situação inversa, gostaria queo seu estivesse. É bem de ver, para honra e dignidadeda arte que professam.

Método de consulta

Se vários se reunirem para um tratamento, coma intenção de deliberar sobre a condição do doente,deve proceder-se na consulta com a maior modera-ção e exclusivamente fora das vistas de testemunhasestranhas. Trate-se a matéria em latim, sob pena demulta de cinco guinéus para proveito do Colégio. En-tão, deve primeiro inquirir-se cuidadosamente sobrea espécie de doença, causa e sintomas, devem serpropostos depois os remédios que mais convenhamao combate da doença e diminuição dos sintomas.

Comece o médico mais novo, conclua o mais ve-lho. Mas se um médico mais velho tiver sido cha-mado em primeiro lugar, conte ele primeiro todo ocaso aos restantes, a saber, o que fez e com que êxito,e por fim proceda-se como se disse.

Se reunirem mais vezes a fim de visitar o mesmodoente, ninguém prescreva coisa alguma, mais ainda,nem sequer dê a entender o que deve fazer-se, empresença do doente ou circunstantes, antes que, emprivado, se tenha chegado entre os próprios médi-cos a uma conclusão, depois de juntarem as suasopiniões. E isto para que ninguém ambiciosamentepareça antecipar-se na prática e arrebatar aos outrosa livre oportunidade de prescrever. A menos quepor qualquer súbita e urgente ocasião (que deve seraprovada pelo Presidente e Censores) tenha sido for-çado a prescrever sozinho. Se os médicos divergiremnas opiniões, de tal modo que não possam chegar aacordo sobre a mesma prática, conduzam-se entre-tanto com a maior prudência e moderação, por talforma que a sua discórdia não reverta em prejuízo daArte, nem seja patente aos outros, se possível.

Se os médicos forem só dois, ceda o mais novo aomais velho ou chamem um terceiro a quem a matériaseja referida.

Se em maior número, vença a maior parte; se,estando em desacordo, foram iguais em númeroconclua-se com a maior parte dos mais velhos. As-sim se terá em conta a honra e dignidade da Arteque, de outro modo, pela discórdia dos médicos fa-

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cilmente será motivo de desprezo. Quem procederem contrário, será multado em quarenta guinéus.

Para que não surja litígio ou controvérsia entremédicos por causa de visitas oficiosas, antecipaçõese sugestões, estabelecemos e ordenamos que, quandoà presença de um médico qualquer tiverem sido cha-mados outros médicos para consultas e, segundo ométodo por nós prescrito, acordarem entre si acercada doença e dos remédios, seja o médico mais an-tigo ou um outro a referir ao doente ou acompanhan-tes o que tiver sido aprovado e prescrito de comumacordo e deixem os restantes a sua execução ao mé-dico ordinário. E não visitarão de novo o doente, se-não expressamente solicitados pelo médico ordinárioou pelo doente a que o façam.

Nenhum médico, quer sócio, quer candidato, querautorizado, entre em conselho médico com um em-pírico ou expulso do Colégio e proibido de exercera prática da medicina, ou com outro qualquer queexerça a medicina sem admissão ou permissão, a nãoser por algum motivo urgente que deve ser aprovadopelo Presidente ou Vice-Presidente e Censores, ou asua maior parte, sob pena de quarenta guinéus.

Todo e qualquer médico deve considerar-se satis-feito com a honesta remuneração, segundo a condi-ção do doente e o seu próprio trabalho.

Ninguém faça contratos com o doente ou comoutra pessoa qualquer em nome do doente, sobre opreço da restituição da saúde. Mas se alguém to-mar a seu cargo a cura de doentes que não consi-derem acautelados os seus interesses, se não fizeremcontrato com o médico, ou der com indivíduos quesem preocupação com as possibilidades económicase honra próprias tratam os médicos com excessivaparcimónia e falta de generosidade, com tais criatu-ras será licito fazer contrato, reservando todavia o di-reito de o Senhor Presidente e Censores, e em suaausência quatro dos Eleitores, poderem corrigir, se-gundo o seu bom juízo, algum acordo demasiado in-justo e alterá-lo.

Que ninguém ensine ao vulgo os medicamentosou lhe indique os seus nomes (principalmente se fo-rem medicamentos demasiado fortes, como purgan-tes, drogas com ópio ou narcóticos, provocadores deaborto, vomitórios ou qualquer outro de maior im-portância e perigo), para que o povo não sofra como abuso deles, sob pena de quarenta guinéus todas asvezes que cometer tal ofensa.

Nenhum sócio, candidato ou autorizado utilizaráos serviços daqueles farmacêuticos que ou eles pró-prios exercem a medicina ou frequentemente servemmédicos que não foram examinados e aprovados se-gundo os Estatutos deste reino, sob pena de dez gui-néus todas as vezes que praticar a ofensa, multa a

pagar ao Colégio mal receba aviso do Presidente ouVice-Presidente e Censores.

Ninguém recusará pagar a multa que lhe foi apli-cada segundo os Estatutos, sob pena de violação dojuramento prestado ao Colégio.

Como os farmacêuticos e cirurgiões muitas vezestrazem aos médicos as urinas dos doentes e lhes pe-dem que pela observação das urinas receitem algumacoisa aos seus doentes e, seguidamente, sob este pre-texto de consulta, tecem eles próprios, a seu bel-prazer, a teia restante da cura, arrebatando para seuproveito toda a paga ou lucro e nada oferecendo aosmédicos além dessa minguada e magra recompensada observação das urinas, por isso, estabelecemos eordenamos que ninguém, ou sócio, ou candidato, ouautorizado comunique opinião alguma a manhososimpostores deste jaez, com base na simples inspec-ção das urinas, a menos que seja ao mesmo tempochamado à presença do doente, para que aí, segundoas circunstâncias, possa prescrever os medicamentosidóneos que devem ser preparados por um farmacêu-tico honesto. Queremos, além disso, que cada um es-creva em cada ficha ou receita (como lhes chamam)o dia do mês e o nome do doente e o seu próprio. Éevidentemente ridículo e insensato querer, à maneirados harúspices e intérpretes de sonhos, adivinhar al-guma coisa de certo e sólido, pela mera observaçãodas urinas, quer a respeito do género de doença, quersobre o estado e condição do doente. Aconselhamos,portanto, esses médicos a que de futuro se condu-zam nesta matéria com muito maior cautela do queera costume da maior parte anteriormente. E poresta causa proibimos a todos quantos exercem a me-dicina, que prescrevam algum medicamento a estescuriosos e às mulherzinhas que andam mostrando osurinóis dos doentes, a não ser que conheçam bem,de data anterior, o próprio doente ou que, ao menos,daqueles que lhes pedem conselho tenham recebidocabal e plena informação sobre a doença e respec-tivas circunstâncias. É que, desta maneira, não sóguardaremos melhor a dignidade da Medicina, comoainda descobriremos com mais segurança e certezaos remédios que hão-de convir aos enfermos.

Finalmente, estatuímos e ordenamos que todosquantos são admitidos como sócios do Colégio pro-metam, em documento subscrito com o seu nome,que hão-de observar diligentemente todos os esta-tutos atrás contidos ou que hão-de pagar, sem res-sentimentos, as multas impostas aos infractores. Seo nosso Colégio for governado segundo este Regu-lamento, pela prudência do Presidente, Eleitores eCensores; e se, eliminados os ignorantes e desbarata-dos os odiosos impostores, a Ciência receber as suashonras; é fora de dúvida que este nosso Colégio há-

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 49

de ser não apenas muito florescente no futuro, mastambém que (na esfera dos nossos deveres) todo opaís há-de ver cuidados os seus interesses bem e pru-dentemente.

Por isso, invocando o juramento de lealdade pres-tado ao Colégio, exortamos vivamente todos os só-cios a que provejam em todos os sentidos com dili-gência e prudentemente actuem, e a que não admitamseja quem for, como sócio, no Colégio, por influên-cias pessoais, mas que tudo decidam para louvor, lus-tre, honra e perpetuidade da Associação. Pois é certoque o nosso Colégio não pode erguer-se e manter-sesobre bases mais sólidas do que as boas leis, os sãoscostumes dos dirigentes e a singular virtude e erudi-ção dos seus membros7.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

De Conversatione Morali, & Statutis Pœnalibus.

Si quæ lis, aut Controversia, ex Ordine, Gravitate &Modestia (quæ in Comitiis observari praescripsimus)parem observatis, oriatur, arbitrio Præsidis aut Pro-Præsidis & Censorum, quicunque deliquerit puniatur.

At si præses contra Statuta quid admiserit, admo-neatur quidem per consiliarios, coram Sociis in Co-mitiis; non puniatur tamen, nisi ob grave aliquod Cri-men (quale est peculatus, sive dissipatio bonorumCollegii & Similia) tale Judicatum per majorem par-tem Sociorum præsentium: Inter quos Volumus, utquatuor sint ex Electoribus, qui una cum reliquis su-per ea re sententiam ferant. Tantum tribuimus Præsi-dis honori & auctoritati.

Ne quis revelet aut propalet quidquam alicujusMomenti quod in Collegio dictum sit, sub poena de-cem Solidorum.

Nullus Collega alterum vel Ignorantiæ vel malæPraxis, vel alicujus Sceleris aut Ignominiosi Criminisnomine accusabit; vel publice Contumeliis afficiet.Si quem contra fecissé Præsidi & Censoribus inno-tuerit; prima Vice solvet in usum Collegii quatuor li-bras, secunda duplicabitur Mulcta; quod si tertio quissimiliter offenderit, Expelletur e Collegio, nec denuoRestituetur priusquam Collegio decem libras solve-rit.

Nullus Medicus qui secundus ad ægrum vocabiturpriorem Medicum repelli faciet: Nec quicquam priusInnovabit (nisi res urgeat) quam illum convenerit. Etne quis fraudi sit locus, quicunque ad ægrum accer-situr, ab illo, vel adstantibus, an quis Medicamentumaliquod præscripserit, percunctabitur, sub poena vi-ginti solidorum. Postea tamen, ex ægri sententia, vel

7Tradução do Professor Doutor Américo da Costa Ra-malho, da Faculdade de Letras de Coimbra.

solus illi medibitur vel cum priore Medico, aut alioaliquo rem administrabit.

Dabit tamen operam ut priorem Secum in praxiretineat. Quod si ægroti vel Amicorum consensu idfieri nequeat; priorem tamen Medicum nullo modovituperabit; nec vultu, gestu, suspitioso Silentio velullo alio modo illius Acta apud ægrum vel astantestraducet, sed eum laudabit potius; neque Id dolose,honestatis & probitatis Nomine, sed (quod ad remmaxime attinet) periti & Intelligentis Medici, ut al-terius famam apud alios, eo loco habeat, quo suam,mutatis vicibus, esse Cuperet. Nempe ad artis quamprofitetur, honorem & dignitatem.

Consultandi formula.

Si plures Curationis Gratia, convenerint, de Con-ditione ægri deliberaturi; Consultandum est SummaModestia, & non, nisi seclusis Arbitris alienis; Latineautem Res transigatur, alioquin Mulcta esta quinqueSolidorum in usum Collegii. Tunc primum seduloinquirendum in morbi speciem Causam & Sympto-mata, deinde Remedia proponenda, ad Morbum pro-fligandum & Symptomata mitiganda maxime Conve-nientia.

Incipiat Junior Medicus, Concludat Senior, at siSenior aliquis primo accersitus fuerit, enarret ille pri-mum rem totam reliquis, nempe quid egerit & quosuccessu, deinde fiat ut dictum est.

Si sæpius ad eundem ægrum visendum conve-nerint, nemo quidquam præscribat, imo ne innuatquidem quid agendum sit, coram ægro vel astanti-bus priusquam conjunctis Consiliis privatim inter ip-sos Medicos conclusum fuerit; nequis ambitiose ni-mium videatur praxin præoccupare & reliquis libe-ram præscribendi ansam præripere; nisi subita & ur-gente aliqua Occasione (eaque approbanda a Præside& Censoribus) coactus fuerit solus præscribere.

Si Medici in diversas eant Sententias, ita ut in ean-dem praxin inter se consentire nequeant, summa ta-men Prudentia & Moderatione sic se gerant, ut eorumDiscordia in Artis prejudicium non cedat, nec Aliis,si fieri possit, innotescat.

Si duo tantum Medici fuerint, Junior cedat Seni-ori; vel tertium advocent, cui reg referatur.

Si plures, vincat pars major, si dissidentes, nu-mero pares fuerint, concludatur cum majore parteSeniorum. Sic honori & dignitati Artis providebi-tur, quae alioquin per Medicorum discordiam facilecontemptui habebitur. Qui contra fecerit, mulctabiturquadraginta Solidis.

Ne qua lis aut Controversia inter Medicos prop-ter officiosas Visitationes, præoccupationes, & Insi-nuationes oriatur, Statuimus & Ordinamus; ut cum

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50 António Ribeiro Sanches

ad Medicum quemlibet, alii Medici consultandi Gra-tia advocati fuerint, ac secundum formulam a Nobispræscriptam, de morbo & Remediis inter eos conve-nerit; Senior Medicus, aut alius aliquis referat ægro,aut astantibus, quæ approbata & præscripta communiconsensu fuerint, eorundemque Executionem cæteriOrdinario Medico relinquant; nec denuo visitabuntægrum, nisi a Medico Ordinario, aut ab ægro, ut idfaciant, expresse rogati fuerint.

Nullus Medicus sive Socius sive Candidatus sivePermissus Consilium ineat, cum Empirico aut rejectoa Collegio, & a Medicinæ praxi prohibito, aut alioaliquo sine Admissione aut Permissione Medicinamexercente, nisi urgente aliqua Causa, a Præside, autPropræside, & Censoribus aut majore parte illorumapprobanda sub poena quadraginta Solidorum.

Quilibet Medicus contentus esto, honesta proConditione ægri & laboris sui, mercede. Nemo pa-ciscatur cum ægro, aut alio quovis ægri nomine, deprætio Sanitatis Testituendre. Verum si quis ægrossusceperit curandos, qui sibi aliter satisfactum nonputabunt, ni pactionem cum Medico ineant; aut ineos incidat qui facultatum suarum aut honoris nullahabita ratione parce nimis & illiberaliter agunt cumMedicis, cum talibus licebit pacisci, Reservata tamenpotestate Domino Præsidi & Censoribus, atque in eo-rum absentia, quatuor ex Electoribus, pro ipsorumprudentia corrigere, si quid iniquius pactum sit & im-mutare.

Ne quis doceat populum Medicamenta, aut ho-rum Nomina illi indicet (præsertim si fuerint Medica-menta vehementiora, velut Purgantia, Opiata vel Nar-cotica, Abortum facientia, Vomitoria, aut quidquamaliud majoris momenti ac periculi) ne abusu eorumlaedatur populus: Sub poena quadraginta Solidorumquoties offenderit.

Qui paciscitur cum Pharmacopolis de aliqua pre-tii parte ex Medicamentis præscribendis percipienda,mulctabitur quadraginta Solidis quoties ita delique-rit.

Nullus Socius, Candidatus, aut Permissus eorumPharmacopolarum opera utetur, qui aut ipsi Medici-nam exercent, aut iis Medicis crebro inserviunt, quiexaminati & approbati non sunt secundum Statutahujus Regni, sub poena decem Solidorum quotiesoffenderit, Collegio Solvendorum, modo ea de re aPræside aut Pro-Præside & Censoribus præmonitusfuerit.

Nemo, Mulctam sibi pro delicto secundum Statutainflictam, solvere recusabit, Sub poena violatæ fideiCollegio præstitae.

Quoniam Pharmacopolæ & Chirurgi saepe ad Me-dicos Urinas ægrotantium deferunt, petuntque ut abUrinarum Inspectione aliquid ægris suis præscribant;

ac deinde sub hoc Consultationis prætextu, reliquamCurationis telam Ipsimet, pro arbitrio, pertexunt;quicquid inde quæstus sive lucri est, id omne sibiarripientes, Medicis vero nihil præter exilem illam& jejunam Urinarum spectandarum Mercedem of-ferentes. Idcirco Statuimus & Ordinamus ut Nemosive Socius, sive Candidatus sive Permissus Consiliiquidquam impertiat istiusmodi veteratoriis Imposto-ribus super Urinarum nuda inspectione; nisi Simul adægrum vocetur, ut ibidem pro re nata idonea Medica-menta ab honesto aliquo Pharmacopola componendapræscribat.

Volumus præterea ut singulis Schedulis sive Re-ceptis (ut vocant) di em Mensis, & Nomen ægri, su-umque quisque adscribat. Ridiculum quidem est &insulsum, ex Urinar um solummodo Inspectione sivede morbi genere sive de ægrotantis Statu ac Condi-tione, Aruspicum & Conjectorum More, velle quid-quam certi solidique divinare. Monemus igitur eosMedicos ut hac in re multo cautius in posterum segerant, quam antehac a plerisque factitari Solitum.Et hanc ob Causam omnibus Medicinam exercenti-bus inter-

dictum Volumus, ne Idiotis istis & Mulierculisægrotantium Matulas Circumferentibus, aliquod Me-dicamentum præscribant, nisi aut ipsum ægrum priusrecte noverint, aut Saltem ab iis qui Consilium pe-tunt, de morbo ejusque Circumstantiis & plane &plene instructi fuerint. Quippe hac Ratione & dig-nitatem Medicinæ melius tuebimur & multo aptiuscertiusque Remedia periclitantibus profutura excogi-tabimus.

Denique Statuimus & Ordinamus ut quicunqueadmittuntur in Societatem Collegii Subscriptis no-minibus polliceantur, se Statuta omnia praedicta di-ligenter observaturos aut Mulctas contra facientibusinflictas non invito animo persoluturos. Si ad hancNormam Collegium prudenti consilio Præsidis, Elec-torum, & Censorum gubernetur; & exterminatis in-doctis, profligatisque odiosis Impostoribus, Scientiadecoretur; certissimum est, & florentissimum futu-rum hoc nostrum Collegium in perpetuum, & Uni-versæ etiam Reip. (quantum nostra Officia attinet)recte provideque Consultum iri.

Quare per fidem illam Collegio datam Sacias afi-nes hortamur, & obtestamur, ut quoquo versum di-ligenter prospiciant & providenter agant, nec quem-quam respectu personarum habito, admittant in Soci-etatem Collegii: Sed ad laudem, decus, honorem, &perpetuitatem Societatis, omnia decernant. Quoniamcertum est Collegium Nostrum nulla re firmius Sta-biliri posse & Continuari, quam bonis Legibus, pro-bis Gubernatorum Moribus, & Collegarum singulariVirtute atque Eruditione.

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Apontamentos para estabelecer-se um Tribunal e Colégio de Medicina 51

Finis