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O Processo de criação da moeda Nas nossas economias de papel-moeda o princípio da criação de moeda resume-se a uma troca: são trocados activos não-monetários por dívidas que as instituições bancárias reconhecem sobre elas próprias. O que designamos por moeda é sempre uma dívida que uma instituição reconhece como "dívida sobre ela própria". O processo de reconhecimento destas dívidas pode ser feito de uma for- ma permanente ou temporária . Comecemos por ver a primeira. Designa-se, por vezes, esta modalidade por criação de moeda livre, o que significa que esta- mos perante moeda criada de uma vez por todas. É o que acontece quando o banco central recebe ouro ou divisas e em troca cede a sua própria moeda. Esta troca é de imediato definitiva. A moeda nacional posta em circulação não tem que voltar aos cofres, ou à cave, do banco central ao fim de período algum. Su- ponhamos que se trata de um exportador que de posse de divisas as pretende trocar por notas. Junto de um banco ele pode obter as notas correspondentes a essas divisas. Desta forma temos um aumento da circulação monetária, das no- tas de posse do sector não bancário. Quando o banco se dirige ao banco central e em troca das divisas obtém um depósito junto deste, ou notas, ele reconstitui as suas reservas ao nível anterior à troca realizada com o seu cliente. Daqui ten- do resultado um acréscimo definitivo da quantidade de moeda na posse dos agentes não bancários. Uma questão próxima desta, mas de facto paralela, refere-se à maior ou menor vontade com que os bancos trocam divisas. Estes últimos estarão mais facilmente dispostos a trocar divisas cuja procura seja elevada e/ou cuja cota-

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Page 1: Apontamentos sobre

O Processo de criação da moeda

Nas nossas economias de papel-moeda o princípio da criação de moeda

resume-se a uma troca: são trocados activos não-monetários por dívidas que as

instituições bancárias reconhecem sobre elas próprias. O que designamos por

moeda é sempre uma dívida que uma instituição reconhece como "dívida sobre

ela própria".

O processo de reconhecimento destas dívidas pode ser feito de uma for-

ma permanente ou temporária. Comecemos por ver a primeira. Designa-se,

por vezes, esta modalidade por criação de moeda livre, o que significa que esta-

mos perante moeda criada de uma vez por todas. É o que acontece quando o

banco central recebe ouro ou divisas e em troca cede a sua própria moeda. Esta

troca é de imediato definitiva. A moeda nacional posta em circulação não tem

que voltar aos cofres, ou à cave, do banco central ao fim de período algum. Su-

ponhamos que se trata de um exportador que de posse de divisas as pretende

trocar por notas. Junto de um banco ele pode obter as notas correspondentes a

essas divisas. Desta forma temos um aumento da circulação monetária, das no-

tas de posse do sector não bancário. Quando o banco se dirige ao banco central

e em troca das divisas obtém um depósito junto deste, ou notas, ele reconstitui

as suas reservas ao nível anterior à troca realizada com o seu cliente. Daqui ten-

do resultado um acréscimo definitivo da quantidade de moeda na posse dos

agentes não bancários.

Uma questão próxima desta, mas de facto paralela, refere-se à maior ou

menor vontade com que os bancos trocam divisas. Estes últimos estarão mais

facilmente dispostos a trocar divisas cuja procura seja elevada e/ou cuja cota-

Page 2: Apontamentos sobre

ção seja menos volátil. Mas esta questão refere-se aos lucros destas instituições e

ao preço a praticar nestas operações e não à operação propriamente de criação

de moeda. Mesmo na situação limite em que o banco central esterliza os movi-

mentos de capitais externos, ele conduzirá uma política que o levará a compen-

sar esta operação com o exportador, e que conduziu à criação de moeda livre.

A emissão de moeda também pode ser feita de forma temporária, dando

lugar à criação de moeda de crédito. Quando uma unidade de produção se endivi-

da junto de um banco, este último ou lhe entrega notas ou reconhece através da

criação de um depósito, que tem uma dívida para com a unidade de produção.

A operação que está subjacente a esta troca é uma operação de crédito, e por-

tanto temos um tempo a ditar a sua vigência, findo o qual terá de ser feita a tro-

ca contrária. Isto é, ao fim de algum tempo a unidade de produção terá de en-

tregar, reembolsar, o banco com notas, ou depósito sobre um outro banco, e as-

sim anular a dívida que admitia ter para com este. Nesta altura temos uma des-

truição de moeda, uma redução da quantidade de moeda em circulação junto

dos agentes não bancários.

Ao contrário do que se passava à pouco, a criação deste tipo de moeda,

que designamos por moeda de crédito, atendendo à sua forma de criação, é

agora temporária. A sua criação tem desde logo o imperativo da sua destruição.

Claro está que isto apenas se passa para cada operação. Se virmos as coisas ao

nível global de uma economia, acabamos por verificar que a criação deste tipo

de moeda, em cada intervalo de tempo razoável, excede a sua destruição, pelo

que a nível global também esta criação de moeda acaba por ser permanente.

No relacionamento entre o banco central e os bancos, as operações de

troca de divisas dão lugar a uma posse de moeda do banco central que é defini-

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tiva, e as operações de crédito, seja por desconto ou por refinanciamento, dão

lugar a uma disponibilidade de moeda do banco central que é temporária. Por-

tanto, aos diferentes níveis da emissão de moeda, seja ao nível do banco central

ou ao nível dos bancos, encontramos a justificação para aquela divisão em cria-

ção permanente e temporária.

Quando olhamos para os utilizadores finais da emissão de moeda e para

a forma como essa moeda é criada, vemos que temos em circulação notas e de-

pósitos, que mais não são do que dívidas assumidas pelo banco central e pelos

bancos, e que resultam de operações com ouro e divisas e de créditos aos agen-

tes não bancários. Neste último caso temos os créditos às unidades de produção,

às famílias e ao Tesouro. Quanto a este último é importante salientar que na

União Europeia os bancos centrais não podem conceder crédito, a descoberto,

aos respectivos Estados.

Importa ainda lembrar que apesar de dizermos que a moeda emitida é

sempre uma dívida da instituição emissora sobre ela própria, devemos distinguir

entre notas, depósitos no banco central e depósitos nos bancos. A primeira e se-

gunda formam o que designamos por moeda banco central e a terceira o que

podemos designar por moeda privada, porque emitida por agentes que relevam

desse direito. As notas têm curso forçado. Os depósitos junto do banco central

podem ser convertidos em notas deste, e a distinção entre uma e outra é apenas

de forma. Já a moeda dos bancos está sujeita a uma restrição de convertibilida-

de em moeda do banco central. Em qualquer momento essa restrição pode ser

usada a pedido dos seus possuidores.

A relação quantitativa entre a moeda de um e outro tipo é captada pelo

mecanismo do "multiplicador de crédito". Não pretendemos aqui retomar esse

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mecanismo, mas antes chamar a atenção para um conjunto de condicionantes

de comportamentos, subjacentes àquele mecanismo, que será útil no estudo da

execução da política monetária por parte do banco central. A criação de moeda

de carácter temporário, ou moeda de crédito, depende da existência de uma

procura de créditos, sobretudo, por parte das unidades de produção; da existên-

cia de uma aceitável liquidez bancária; e da política que o banco central preten-

de prosseguir quanto à criação de moeda por parte dos bancos.

O primeiro factor de enquadramento daquela criação refere-se, nem

mais nem menos que, ao mercado do crédito bancário. Este tipo de mercado,

como sabemos, é um mercado do tipo racionado, onde os problemas de selec-

ção adversa a isso aconselham.

Taxa de Juro

CréditoCe

re

Oferta

Procura

O

r

CdCo

Na Figura acima o valor do crédito de equilíbrio é de Ce. O crédito que

vai ser concedido pelos bancos não corresponde a esse valor, mas antes a Co,

porque os bancos irão praticar uma taxa de juro de r. O crédito a ser

concedido, representado pela curva O, conjuntamente com a taxa de juro prati-

cada, levam a uma procura não satisfeita de crédito do montante de Cd-Co.

Com este resultado pretendemos apenas lembrar que é normal, em qualquer si-

tuação de mercado de crédito, termos uma procura não satisfeita de créditos

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bancários e que esse desequilíbrio não resulta de uma rigidez de ajustamento do

seu preço, mas antes de características próprias do mercado.

Naquele caso, o crédito a conceder Co ditará a criação de moeda. O fac-

to de eventualmente esse crédito não significar qualquer acréscimo do crédito a

conceder, não elimina o fenómeno referido do excesso de procura verificado.

Na análise que vamos fazer consideramos que o crédito bancário e o cré-

dito não bancário não são substituíveis, ou pelo menos são fracamente substituí-

veis. Trata-se de uma hipótese que é normal ser feita, embora pouca vezes seja

claramente explicitada.

O segundo factor de enquadramento, referido acima, respeita à liquidez

bancária. A redução de longo prazo da preferência dos agentes por moeda ban-

co central (MBC) teve repercussões ao nível do aumento da capacidade de cria-

ção de moeda de crédito. E isto porque a moeda privada dos bancos não sofre

uma restrição tão forte da regra de convertibilidade. Claro está que isto gerou

uma forte concorrência interbancária pela posse de maiores áreas de reconheci-

mento das suas moedas. A crescente liberdade de movimentos de capitais tam-

bém permitiu que os bancos pudessem mais facilmente obter divisas e assim

obrigar a criações definitivas de MBC, o que lhes pode evitar problemas de li-

quidez. Ao mesmo tempo a acção do banco central pode ser vista no sentido de

fornecer a liquidez necessária aos bancos procurando evitar problemas de exi-

guidade de liquidez e assim de crises bancárias. Em suma, a questão da liquidez

bancária, e da restrição que ela constitui na concessão de credito, deve ser vista

num processo de dinâmica da actividade económica.

O último factor refere-se de forma explícita à política monetária. E aqui,

por agora, apenas colocamos questões. Que intenções tem o banco central

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quanto ao volume da massa monetária e ao valor da taxa de juro ? Que tipos

de resposta estará disposto a dar à criação de moeda induzida pelo comporta-

mento de concessão de crédito dos bancos ? As pressões inflacionistas antecipa-

das pelos banco central também podem provocar comportamentos diferencia-

dos. Da mesma forma as diferentes fases do ciclo da conjuntura económica le-

vam a diferentes atitudes quanto à liquidez na economia e dos bancos.

A apresentação que vamos fazer dos instrumentos disponíveis para a ac-

ção da política monetária encontra-se bastante afastada da questão que domi-

nou durante bastante tempo uma certa forma de ver a política monetária e que

consistia em partir da fórmula da multiplicação de moeda para levantar a ques-

tão da estabilidade das previsões nela assentes. Assim, de:

DM = km $ DMBC

passávamos a considerar as duas hipóteses possíveis para as variáveis do mem-

bro direito. Se o valor do multiplicador, km, fosse estável a quantidade de moe-

da poderia ser controlada. Se, pelo contrário, aquele valor fosse instável, então,

não poderíamos pensar em controlar a oferta de moeda. Mas mesmo admitindo

a estabilidade do multiplicador, a previsão da oferta de moeda depende da ca-

pacidade de determinar a quantidade de MBC. No caso dessa quantidade não

ser controlada pelo banco central, podemos concluir que para fixar a quantida-

de da oferta de moeda é relativamente indiferente a estabilidade, ou não, do

multiplicador. Em parte, já reflectimos acima sobre estas questões.

Propomo-nos introduzir os possíveis instrumentos da política monetária

tendo em conta que o processo de criação monetária pode ser visto com um

processo dinâmico em dois tempos. Num primeiro tempo registamos a moneta-

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rização das dívidas dos agentes do sistema não bancário junto dos bancos. Num

segundo tempo os bancos defrontam a restrição de convertibilidade da sua mo-

eda em MBC, e assim resolvem o seu problema de liquidez.

No balanço (monetário) do banco central encontramos no seu passivo as

notas emitidas (∆B) e as reservas concedidas aos bancos na sua moeda (∆R). No

lado do activo temos as rubricas correspondentes às operações que deram ori-

gem àquelas responsabilidades, ou seja, a aquisição de divisas1 e o crédito con-

cedido aos bancos, ou refinanciamento. Assim, temos:

DDiv + D Re f = DB + DR

As variáveis através das quais o banco central pode actuar para intervir sobre a

liquidez da economia são as reservas (∆R) e o refinanciamento (∆Ref). É através

dessas variáveis que pode ser controlada a liquidez dos bancos e a partir daí o

seu comportamento de oferta de crédito e finalmente a liquidez da economia.

Dispomos assim de imediato de duas formas de fazer a política monetá-

ria que são identificadas através dos instrumentos pelos quais o banco actua: a

política de refinanciamento e a política de reservas bancárias. Em ambos os ca-

sos pretende-se usar a liquidez bancária para controlar a liquidez da economia.

A eficácia desta pretensão primeira da política depende da não inversão da rela-

ção apresentada atrás, ou seja, a relação deve "ir" da liquidez bancária "para" a

liquidez da economia, e não o contrário. A eficácia também depende da capaci-

dade de o banco central influenciar o volume dos créditos bancários. Esta últi-

ma questão sugere a eleição de uma outra forma de fazer a política monetária e

que consiste em escolher como instrumento dessa política o próprio volume dos

créditos bancários.

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1 Ignoremos os movimentos de ouro.

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Em resumo, podemos classificar as formas da política monetária, como

política de refinanciamento, de reservas e de enquadramento dos créditos. Pas-

semos seguidamente a estudar cada uma destas formas.

Política de Refinanciamento Bancário

Façamos em primeiro lugar a análise das operações conducentes a um

controlo da liquidez da economia através do montante de refinanciamento do

banco central aos bancos. Comecemos pela exposição dos princípios que guiam

uma tal política e passemos depois a analisar a eficácia da política sobre a liqui-

dez da economia.

O princípio primeiro para uma política de refinanciamento é a presença

dos dois tipos de intervenientes nas operações de refinanciamento. Sem a pre-

sença dos bancos não pode haver operações de refinanciamento, ou seja, é ne-

cessário que estes tenham necessidade de se refinanciarem junto do banco cen-

tral. Tendo os bancos necessidade de refinanciamento, o banco central irá ne-

gociar a concessão de refinanciamento ( ) ao preço entendido como ajusta-D Re f

do ( ) para tal operação. Como para qualquer bem em qualquer mercado,iRe f

vamos agora ter uma relação de oferta do tipo . A um dadoiRe f = F(D Re f, h)

preço corresponderá uma certa quantidade de refinanciamento. No entanto de-

vemos chamar a atenção para o vector de variáveis ali presente e que tornah

aquela função de comportamento dependente de muitas outras variáveis de na-

tureza conjuntural. A inflação esperada determinará os valores daquela taxa de

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cedência de liquidez, mas também a taxa de juro real esperada da economia as-

sim como a fase da conjuntura em estivermos. Também numa pequena econo-

mia aberta as alterações das taxas externas têm influência sobre aqueles valores.

Assim como o próprio período de constituição de reservas obrigatórias determi-

nará um comportamento cíclico da taxa.

Como as operações de refinanciamento envolvem uma quantidade, o

montante de refinanciamento, e um preço, a taxa de juro de refinanciamento,

podemos distinguir à partida dois efeitos na acção destas operações. Um efeito

quantidade e um efeito preço.

O efeito quantidade parte do princípio óbvio da necessidade desse refi-

nanciamento para a concessão de crédito, . Como o bancoD Re f h DCredito

central procura controlar a liquidez da economia terá de o fazer através da

quantidade de fundos que cede aos bancos, . Para cederD Re f(h Credito) h DM

a quantidade desejada desses fundos, o banco central irá fixar a taxa iRef a valo-

res compatíveis. Podemos assim dizer que o banco central utiliza como instru-

mento a taxa de juro de cedência de liquidez para atingir o objectivo operacio-

nal dado pelo montante de refinanciamento dos bancos.

O efeito preço deriva da acção da taxa a que a liquidez é cedida. Como

esse preço representa em primeiro lugar um custo para os bancos e pode vir a

representar um custo para os agentes não bancários, devemos dividir este efeito

preço num efeito preço directo e num efeito preço indirecto. O efeito preço di-

recto actua como um custo para os bancos que se refinanciam. O custo de re-

produção da sua estrutura de origem e aplicação de fundos torna-se agora mais

dispendiosa. Mas as conclusões deste acréscimo serão diferentes consoante os

bancos disponham ou não da possibilidade de alterar o preço a que concedem

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crédito aos seus clientes. Tomemos como primeiro caso a impossibilidade de

aumentar a taxa de juro de concessão de crédito. A substitubilidade entre acti-

vos bancários e não bancários, ou entre crédito bancário interno e externo,

pode levar a essa situação. Neste caso, o aumento da taxa de juro de refinancia-

mento leva a uma desvalorização dos activos bancários, uma vez que a taxa de

rentabilidade líquida desses activos diminui. O que leva os bancos a recorrerem

menos ao refinanciamento do banco central. O resultado será o inverso se a

taxa em vez de aumentar diminui. Neste último caso a procura de fundos de re-

financiamento iria aumentar.

Admitamos agora a outra situação, que a taxa de juro de concessão de

crédito por parte dos bancos vai aumentar. O sector bancário é um sector com

um comportamento oligopolista pelo que esta situação é bastante mais realista.

Se por hipótese a taxa de juro das operações bancárias activas for formada por

uma regra do tipo, , então é indiferente aos bancos que a taxa deia = m + iRe f

cedência de liquidez tenha aumentado. O acréscimo do custo de obtenção de

fundos passa directamente para os seus clientes. Podemos afirmar que esta hipó-

tese, sendo mais realista que a anterior, peca porque afinal o valor de 'm' tende

a diminuir com os acréscimos de iRef, mas essa observação não elimina o essen-

cial da conclusão a retirar e que é o efeito diminuto da variação da taxa de ce-

dência de liquidez sobre o comportamento dos bancos.

Mas como dissemos, os efeitos preço não se esgotam nos custos sobre os

bancos, actuam também sobre o comportamento dos agentes não bancários

que procuram crédito junto bancos. Estamos assim perante um efeito de custo

do crédito às empresas. Se a política de refinanciamento actua através do custo

do crédito, podemo-nos questionar se a política de refinanciamento não passará

de uma política de taxa de juro. Pensamos que a resposta é negativa. Como te-

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mos insistido, os aspectos de "preço" e "quantidade" são indissociáveis na con-

dução de uma política de refinanciamento. No que respeita aos agentes não

bancários, o seu comportamento irá alterar-se, ainda que perante uma variação

da taxa de refinanciamento (iRef) o comportamento dos bancos possa não se alte-

rar. A procura de créditos vai diminuir em face do acréscimo da taxa de juro. E

por essa via a política de refinanciamento afectará a liquidez da economia.

Podíamos ainda falar num outro efeito indirecto. O aumento do preço

das operações de refinanciamento leva a que as operações de crédito interban-

cário a curto prazo diminuam, o que torna os bancos na sua globalidade mais

dependentes do refinanciamento do banco central.

Em suma, a política de refinanciamento procura actuar via um efeito de

quantidade e um efeito de preço sobre a liquidez da economia. Esquematica-

mente:

DiRe f hD Re f h DMDia h DM

pelo que podemos dizer que a política de refinanciamento é tanto uma política

de taxa de juro como de quantidade; por exemplo, de reservas bancárias em-

prestadas.

Analisados que foram os princípios da política de refinanciamento cabe-

rá agora analisar a possível eficácia desta política. Já em cima insistimos na

ideia que para que uma política de refinanciamento possa ser executada é ne-

cessário que os "bancos estejam no banco", ou sejam, que os bancos dependam

do banco central para continuarem com a sua actividade de crédito. Se os ban-

cos se encontram em situação de folgada liquidez, não dependem do banco

central e portanto não poderá haver uma política de refinanciamento eficaz.

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Quando no final dos anos oitenta se preparou em Portugal a passagem da polí-

tica de controle directo dos créditos bancários par uma política de controle indi-

recto, em que a política de refinanciamento teria um importante papel a desem-

penhar, foi feita uma operação que durou bastantes meses de "secagem da liqui-

dez". As autoridades monetárias procuraram eliminar o excesso de liquidez que

dispunham os bancos, através da venda de títulos de dívida pública e de depósi-

tos remunerados junto do banco central, para posteriormente poderem actuar

sobre o refinanciamento dos bancos.

A actual situação de perfeita mobilidade internacional de capitais nos

países europeus, e nos mais desenvolvidos do mundo, leva a que os bancos pos-

sam refinanciar-se em mercados internacionais sempre que nestes as taxas se-

jam mais baixas que as praticadas pelos respectivos bancos centrais.

Uma outra forma de ineficácia surge nos casos de inflação crescente em

que a liquidez bancária se torna elevada dificultando a intervenção do banco

central. Esta intervenção pretenderá reduzir a liquidez na economia quando os

bancos têm posições liquidas suficientes para alimentar o fluxo de créditos. E

num processo inflacionista em que os bancos fiquem sem liquidez o banco cen-

tral não pode utilizar essa posição dos bancos para combater directamente a in-

flação sob pena de poder provocar uma forte instabilidade no sector bancário.

Algumas outras razões que impedem a ligação do refinanciamento ao

crédito bancário devem merecer a nossa atenção. A procura de liquidez por

parte dos bancos pode não depende do nível das taxas de refinanciamento. Já

vimos algumas das razões para que isso possa acontecer, pretendemos agora

apenas chamar a atenção que por vezes as taxas de refinanciamento que levari-

am a impor uma penalização no comportamento dos bancos, de forma a que

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estes o alterassem, podem ser tão elevadas que o banco central evita a sua utili-

zação. A razão porque o faz prende-se com o facto de as taxas de cedência de

liquidez serem um dos indicadores fundamentais da política monetária e não

apenas uma taxa de um mercado restrito, entre o banco central e os bancos.

Outra das razões que podem levar à ineficácia da acção do banco cen-

tral sobre a liquidez da economia resulta da inelasticidade da procura de crédito

à taxa de juro desse crédito. Se tal acontecer, a quantidade procurada de crédi-

to continuará a ser feita e os bancos continuarão a refinanciar-se para alimentar

esse fluxo de crédito. A procura de crédito bancário pode ser inelástica à taxa

de juro porque outras variáveis podem ser mais importantes na explicação des-

sa procura, ou porque os custos financeiros das unidades de produção não são

muito importantes, ou ainda porque numa prática de mark-up as unidades de

produção passam esses custos acrescidos para os preços finais. Finalmente uma

razão de peso para este comportamento resulta da possível confusão que pode-

mos fazer entre taxas nominais e reais. É natural que as unidades de produção

reajam a variações das taxas reais e não nominais. As taxas reais esperadas vari-

am ao longo do ciclo de negócios e têm um comportamento efectivo dependen-

te de uma certa rigidez das taxas nominais. Na Figura em baixo procurámos

ilustrar o que pretendemos dizer.

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A taxa de juro nominal reage com uma certa lentidão à evolução da in-

flação, pelo que ao longo da história da inflação as taxas de juro reais têm uma

história própria. No período em que é mais óbvio o crescimento da taxa de juro

nominal a taxa de juro real é negativa, porque aquela não acompanha o movi-

mento da inflação. Pelo que é natural que encontremos as taxas nominais a au-

mentarem e o crédito a aumentar também.

Por tudo o que temos vindo a dizer, acabamos por encontrar na política

de refinanciamento um efeito preço, mas nem sempre um efeito de quantidade.

Havíamos também sugerido, mais acima, que esta política poderia ser

dominada por efeitos perversos. Vejamos alguns desses efeitos. Num mundo de

perfeita liberdade de capitais a política de refinanciamento restritiva de um ban-

co central pode ser compensada, e por isso anulada, pela obtenção de créditos

no exterior. A uma subida da taxa de refinanciamento aumenta a entrada de

capitais externos, (i) para investimentos financeiros, que acabarão por reforçar a

posição de liquidez dos bancos, ou (ii) por efeito de empréstimos no exterior dos

próprios bancos. Um efeito que dominou a entrada da Espanha no mecanismo

de taxas de câmbio do SME acabou também por se aplicar, mais tarde, a Por-

tugal. A entrada da peseta numa zona de câmbios quase fixos e estáveis levou

ao efeito "lua-de-mel" que fez valorizar a peseta face às outras moedas. Como a

taxa de inflação em Espanha era mais elevada que na zona do marco, as autori-

dades espanholas faziam uma política monetária restritiva que levava a taxas de

juro elevadas. Estas taxas incentivavam a entrada de capitais que sustinham a

valorização da peseta. Os bancos estavam assim em situação de abundante li-

quidez quando o banco central procurava fazer uma política monetária restriti-

va. Esta situação acabou por acontecer também em Portugal. Num segundo

momento a manutenção dos valores nominais das taxas de câmbio empurra

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Page 15: Apontamentos sobre

para cima as taxas de juro que acabarão por impedir futuras desvalorizações

das moedas. No caso português, e num período de restrições de movimentos de

capitais internacionais, os bancos portugueses actuavam através da praça off-

shore da Madeira endividam-se junto de bancos alemães, que apresentavam as

taxas de crédito mais reduzidas, e compravam títulos da dívida pública portu-

guesa com taxas de juro bem superiores. O negócio não comportava riscos para

os bancos portugueses e assim a margem era garantida. Esta situação só termi-

nou quando o Banco de Portugal impôs a constituição de reservas para esses

empréstimos no montante de 90%.

As dificuldades sentidas com a aplicação da política de refinanciamento

levaram algumas autoridades monetárias a optar pela introdução de várias ta-

xas de refinanciamento. Assim, pretendia-se incentivar o investimento e a capa-

cidade de oferta de alguns sectores produtivos ao estabelecer taxas de refinanci-

amento aplicadas a fundos que teriam esse destino. Esta forma de actuar é de

difícil controlo e de eficácia duvidosa, por isso caiu em desuso.

A evolução dos mercados de capitais e a adaptação feita pelos bancos

acabou também por fazer reduzir a eficácia desta política. Os bancos foram

evoluindo de forma a retirarem as suas principais actividades do activo do cré-

dito directo a unidades de produção e a adquirirem títulos negociáveis. Ao mes-

mo tempo reduziram as suas actividade de balanço desenvolvendo actividades

financeiras prestadoras de serviços, que embora envolvam responsabilidades

não surgem de imediato contabilizadas.

Até aqui vimos a política de refinanciamento através de operações de

crédito num mercado que envolve o banco central e os bancos, mas devemos

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chamar a atenção para um outra forma de refinanciamento. A que é feita atra-

vés de desconto de efeitos comerciais. Esta política de refinanciamento era afi-

nal a preponderante em países não anglo-saxónicos até há alguns atrás. Hoje, a

prática do desconto coexiste com a das operações do mercado monetário. Aca-

ba por ter um papel supletivo para situações marginais. A taxa aplicada nestas

operações é em geral superior à do mercado monetário e tem, com facilmente

se percebe, um carácter administrativo. A taxa é alterada com frequência muito

diminuta, reflectindo por vezes alterações de valor que já estavam consumadas

nos valores praticados nas outras operações de refinanciamento. A desvantagem

do desconto relativamente ao refinanciamento deve-se fundamentalmente ao

facto de o primeiro ter um carácter administrativo enquanto o segundo tem um

carácter contratual. Um está aquém do mercado, o outro está inserido no pró-

prio mercado monetário. O desconto pode funcionar como uma vávula de es-

cape. Se um banco tem necessidad de mais fundos do que os que obteve no

mercado de refinanciamento, pode consegui-los, mas uma preço bem mais ele-

vado.

Finalmente, pretendemos chamar a atenção para a utilidade desta políti-

ca de refinanciamento. Já dissemos que poderia ser uma política eficaz no con-

trolo da liquidez da economia, mas também que o seu sucesso poderia ser redu-

zido, e eventualmente nulo. Resta acrescentar que a sua importância advém-lhe

hoje da posição que ocupa como indicador de intenções dos responsáveis da po-

lítica económica, e monetária em particular. As suas alterações são um impor-

tante sinal dado aos bancos e agentes não bancários das intenções da autorida-

de monetária. Desta forma contribui de forma importante para moldar as ante-

cipações dos agentes económicos.

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Política de Reservas Obrigatórias

A política de reservas obrigatórias continua a ser uma política dirigida à

liquidez dos bancos. Ao obrigar os bancos a manterem obrigatoriamente certos

níveis de liquidez, ela acaba por ser independente do montante de refinancia-

mento obtido por estes e existe como restrição de liquidez previamente a qual-

quer operação de crédito.

Tomemos a fórmula geral do multiplicador de crédito:

DM = k $ DMBC

onde MBC representa a moeda do banco central de posse dos bancos e,

k = 1r$(1−b)+b

Como 'k' é uma função da taxa de reservas (r), podemos fazer 'k(r)' e chamar a

atenção para a relação negativa entre 'k' e 'r'. Haverá tendência para se dizer

que essa relação fundamenta uma política de reservas. Mas essa influência, ape-

sar de negativa não é muito importante. No quadro em baixo representámos a

situação em que a taxa de preferência por moeda do banco central (b) é de 22%

e a taxa de reservas obrigatórias que era de 2% passou para 3%.

Quadro ?:Diferentes valores do multiplicadorde crédito. 4,210,300,22

4,240,200,22

krb

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Como podemos constatar o valor do multiplicador passa de 4,24 para

4,21, o que é um decréscimo diminuto em face de uma variação de 50% na

taxa de reservas. Mas o efeito mais importante deste acréscimo da taxa de reser-

vas não se faz sentir através do valor do multiplicador. Em Maio de 1996 os

Depósitos no sector bancário em Portugal atingiam 10 354 600 milhares de

contos e em Junho passaram a ser de 10 469 500. Se a taxa de reservas bancá-

rias tivesse crescido mais 1%, tivesse passado de 2% para 3%, por exemplo, os

bancos teriam de imobilizar mais 1.149 mil contos, correspondente a 1% do

acréscimo de depósitos então registado (10 469 500 - 10 354 600). O que signifi-

caria uma redução de igual montante no crédito a conceder. Mas vejamos o

que entretanto também passou a ser exigido aos bancos. Estes deverão acrescer,

em Junho, as suas reservas no montante de 104 695 milhares de contos, valor

correspondente a 1% das suas responsabilidades totais em depósitos. Como ve-

mos, o valor de imobilização do activo, em moeda do banco central, é conside-

ravelmente superior àquele outro valor. É este último valor que corresponde ao

acréscimo das reservas de acordo com o novo valor da taxa de reservas.

Esquematicamente podemos representar o mecanismo descrito:

k o x MBC o M o

r m x

MBC o M o

Com este esquema chamamos a atenção para aqueles dois caminhos de

redução da liquidez bancária. Através dele podemos representar os diferentes

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efeitos que uma subida da taxa de reservas comporta para a liquidez da econo-

mia.

O efeito que ali é realçado é obviamente o efeito quantidade. Através da

redução da liquidez do sector bancário, seja como resultado do multiplicador

ou da formação das novas reservas, a quantidade de crédito irá ser afectada e

por essa via também a liquidez da economia.

Mas se existe um efeito quantidade também deverá existir um efeito pre-

ço. Este efeito é agora o resultado de um decréscimo da oferta de créditos, que

levará a pressionar a taxa de juro para a subida. Esta provável subida da taxa

de juro depende da concorrência interbancária e da forma como os bancos en-

caram o problema da selecção adversa na oferta de créditos.

A política de reservas também acarreta um outro efeito preço que actua

através dos custos do exercício da actividade creditícia. Como temos vindo a in-

sistir, a subida da taxa de reservas obriga a uma imobilização correspondente

ao valor das responsabilidades assumidas em depósitos, pelo que o acréscimo

total dos valores que terão de ser imobilizados acaba por ter um efeito impor-

tante em termos de custos. Estes custos correspondem a uma desvalorização do

activo bancário, pelo que haverá um tendência para fazer passar esse custo mais

elevado para os clientes elevando assim as taxas de juro de concessão de

crédito.

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Na Figura em baixo procurámos representar esta situação.

Crédito

Procurade Crédito

C

i

C C12 0

ii1

2

0

i Oferta deCrédito

Figura ? Efeitos possíveis de uma subidada taxa de reservas quando nãohá racionamento do crédito.

O crédito concedido era de C0 antes da subida da taxa de reservas.

Como resultado da subida desta taxa, por mera actuação mecânica do multipli-

cador, o crédito a ser concedido passa a ser de C1. Mas a redução dos activos lí-

quidos leva a que de facto o crédito oferecido passa a ser de C2, ao qual corres-

ponde uma taxa de juro bastante mais elevada que na situação de partida.

Uma das possíveis fugas a esta actuação sobre a liquidez bancária consis-

te em obter depósitos em moeda estrangeira quando estes depósitos são favore-

cidos em termos de taxa de reservas. Por isso em situações de políticas restritivas

também as taxas de reservas destes depósitos aumentam, e por vezes até au-

mentam mais quando a política restritiva tem efeitos sobre a valorização exter-

na da moeda nacional. Também a obtenção de créditos no exterior pode elimi-

nar os efeitos de uma política deste tipo, sobretudo se em período de relativa

instabilidade cambial, as taxas internas forem mais elevadas que as externas2.

Parece-nos que podemos concluir da política de reservas que um dos

seus efeitos é a subida das taxas de juro das operações activas como resultado de

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2 Já atrás fizemos referência ao período em que os bancos portugueses se endividavam juntodos bancos alemães e adquiriam títulos da nossa dívida pública através da praça off-shore daMadeira.

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um efeito que é em primeiro lugar um efeito de quantidade e apenas de forma

derivada um efeito preço e sobretudo de um efeito custo. As diferenças que

apresenta com a política de refinanciamento são várias. Como havíamos cons-

tatado, a política de refinanciamento é em primeiro lugar um política com um

efeito preço e apenas depois uma política com um efeito quantidade. Justamen-

te o inverso da política de reservas. Do ponto de vista da continuidade também

existem diferenças. A política de refinanciamento é uma política contratual, ao

passo que a de reservas é uma política regulamentada. A primeira exerce-se

através do mercado e a segunda de uma forma administrativa. Enquanto que

aquela actua permanentemente, desde que exista necessidade de financiamento

por parte do sector bancário, e pode evoluir de forma continuada, a última não

pode ser utilizada com frequência pela acção brutal que acarreta sobre os acti-

vos bancários. A política de refinanciamento também actua apenas sobre aque-

les que precisam de liquidez e por isso têm de recorrer ao banco central ao pas-

so que a política de reservas aplica-se sobre todos de forma indiscriminada. Por

este último motivo, a política restritiva de reservas ao actuar sobre todas os ban-

cos tem por vezes de ser compensada através de um política de refinanciamento

de sentido expansionista, sob pena de provocar forte instabilidade no sector

bancário.

Como sugerimos acima, a política de reservas pode ser uma política de

eficácia brutal. Por esse motivo ela é utilizada em circunstâncias muito especiais

em que seja necessário um esforço muito grande de absorção de liquidez do sis-

tema bancário. Situações deste tipo correspondem a choques inflacionistas, em

que a acção desta política pode ser um passo importante para conduzir a liqui-

dez a níveis mais compatíveis com a estabilidade do próprio processo inflacio-

nista.

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Porque esta política actua sobre os custos de actividade bancária pode-

mos encontrar efeitos simétricos na sua actuação. Se estivermos perante uma

redução da taxa de reservas, os bancos ficam de imediato independentes do

banco central e podem acrescer o volume de créditos contribuindo assim para o

crescimento da quantidade de moeda na economia, se a procura de créditos ab-

sorver aquela variação da oferta. Se a taxa de reserva aumentar, temos de ad-

mitir duas hipóteses de partida. Ou os bancos estão dependentes do banco cen-

tral na obtenção de liquidez ou então estão independentes. Um primeiro efeito

poderá ser o de colocar todos os bancos na dependência de refinanciamento do

banco central. E desta forma, mesmo para aqueles que à partida estavam inde-

pendentes do banco central, a política de refinanciamento pode passar a exercer

os seus efeitos. No caso dos que já estavam em situação de dependência, é natu-

ral que, para algumas destas instituições, o banco central tenha de conceder

créditos, que não puderam ser obtidos junto das suas congéneres, se pretender

assegurar a estabilidade financeira do sistema bancário.

Uma última observação sobre este procedimento da política monetária.

As taxas de reservas foram utilizadas no passado de uma forma bastante com-

plexa. A ausência de rácios de solvabilidade e de indicadores de exposição ao

risco, que tivessem de ser respeitadas pelos bancos, levava a que a política de re-

servas fizesse também parte da política de supervisão do sistema bancário por

parte do Banco Central. Ao mesmo tempo, a definição de valores seguros em

que as reservas fossem representadas dependia da política de financiamento do

Tesouro. Apenas no final da década de setenta a definição de reservas, e a sua

representação em balanço, começaram a ser simplificadas. As rácios e outros

indicadores definidos em Basileia e que se aplicam aos bancos portugueses e eu-

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ropeus, a impossibilidade de concessão de créditos a descoberto aos governos e

o ambiente fortemente concorrencial que caracteriza a actividade bancária in-

ternacional, acabaram por desvalorizar a importância das reservas e reduzir a

margem de manobra das autoridades monetárias na sua utilização.

Política de Enquadramento de Crédito

Vimos já que a política que visa atingir a quantidade de crédito a ser

concedido pelo sector bancário e que age através da liquidez dos bancos pode

ter a forma de política de refinanciamento ou de reservas bancárias. No primei-

ro caso, o instrumento da política é constituído pelas operações do mercado li-

vre, do mercado interbancário de títulos, que são feitas pelo banco central; no

segundo o instrumento é constituído pela taxa de reservas bancárias ou pela es-

trutura de taxas de reservas a serem impostas pelo banco central.

Mas existe uma outra forma de conduzir a política de controlo do crédi-

to bancário e que consiste em utilizar a própria variável objectivo como variável

instrumento. Ou seja, a política é definida em termos de controlo da própria

quantidade de crédito a ser concedido pelos bancos: política de enquadramento

do crédito. Trata-se assim de uma política extremamente intervencionista e au-

toritária, porque vai dizer aos bancos quanto podem emprestar.

Esta política tem-se justificado sobretudo por dois motivos: por ineficácia

das outras políticas, que pode ser o resultado de condições de natureza macro-

económica ou institucionais que impedem a aplicação com sucesso dessas políti-

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cas; ou porque a situação em termos de inflação é considerada tão grave que

esta forma de intervencionismo é justificada.

Vimos já que a subida da taxa de refinanciamento pode não ter quais-

quer efeitos de quantidade sobre a concessão do crédito, porque afinal a procu-

ra de crédito pode ser inelástica à taxa de juro. Os contextos inflacionistas são

mais propícios que outros ao aparecimento desta situação. As taxas de juro que

afectariam a procura de crédito seriam de tal forma elevadas, que se o banco

central as impusesse, elas não só teriam repercussões negativas na actividade

bancária como na actividade propriamente financeira, podendo no limite para-

lisar esta última. Para além disso, a procura de crédito deslocar-se-ia para o cur-

to prazo, na esperança fundamentada de um decréscimo futuro das taxas de

juro.

A política de reservas pode actuar neste caso pelo seu efeito quantidade.

Mas ao actuar de uma forma indiscriminada sobre o sector bancário leva à ne-

cessidade de uma política de refinanciamento discricionária de forma a garantir

a estabilidade do sistema bancário. O seu efeito sobre a rentabilidade dos acti-

vos bancários levam-na sempre a ser utilizada de forma mitigada e numa situa-

ção de inflação crescente não será a forma mais adequada até porque se preten-

de que a oferta real dos créditos venha a diminuir, o que afecta também a ren-

tabilidade do sector bancário.

A política de refinanciamento e de reservas acaba assim por comportar

um desvio expansionista perante processos inflacionistas importantes. Donde, a

tentação da actuação sobre a própria distribuição dos créditos fixando os seus

quantitativos. Esta forma de actuação é directa, no sentido em que não existem

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desfasamentos de actuação e não gera necessidades de intervenção contraditóri-

as, como acontece com a política de reservas bancárias.

Na Figura em baixo representámos uma hipotética situação de crédito

em que à partida não existe racionamento do crédito.

Figura ?:A política de enquadramentopermite reduzir a oferta de créditosem aumentar a taxa de juro.

Procurade Crédito

CCC 01

i

i1

i0

A passagem do nível de crédito de C0 para C1 obrigaria a uma subida da

taxa de juro de i0 para i1. Com uma política de enquadramento do crédito é

pois possível reduzir a oferta deste de C0 para C1 e manter a taxa de juro ao ní-

vel anterior de i0. Como resultado imediato também temos uma procura exce-

dentária de crédito de C0-C1.

Esta política não tem efeitos de preços, porque não é necessário elevar as

taxas de juro, o que acaba por poder ter efeitos positivos, num primeiro mo-

mento, como política anti-inflacionista. Os efeitos de propagação de custos fi-

nanceiros mais elevados sobre os preços da produção não existirão. No entanto,

as taxas de juro não poderão afastar-se permanentemente dos seus valores reais

de equilíbrio sob pena de toda a afectação de recursos ser enviesada. Como as

taxas de juro não sobem, e a quantidade de crédito se encontra restringida, os

bancos passam a executar uma política de créditos seguros. O que significa que

a inovação ao nível da produção não é favorecida, ou até mesmo contemplada,

porque envolverá certamente riscos mais elevados de reembolso de crédito.

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A actuação da política de enquadramento do crédito resulta de imediato

num efeito quantidade. É por isso natural que os bancos procurem fugas ao sis-

tema de controlo da quantidade de crédito, o que tende a fazer surgir conjuntos

de normas regulamentares para a concessão do crédito, para os seus registos e

para a sua fiscalização. O desejo de uma maior eficácia deste tipo de política

leva a que a concessão de crédito deva ser feita privilegiando sectores de activi-

dades dinâmicos, ou que se pretende que o venham a ser, e também leva a que

as autoridades monetárias estabeleçam taxas de juro preferenciais para o finan-

ciamento de algumas formas de actividade económica. A existência de maiores

disponibilidades de crédito assim como a redução do custo de financiamento

para certo tipo de actividades gera o aparecimento de falsas declarações sobre o

destino dos créditos. Podemos pois dizer que estas taxas levam naturalmente à

necessidade de maior fiscalização por parte da autoridade monetária, sendo im-

possível assegurar a total eficácia das suas medidas.

Como já foi dito atrás, uma política monetária restritiva entra em confli-

to com as necessidades de financiamento da economia. Uma política de enqua-

dramento do crédito é sempre uma política restritiva. E é uma política que co-

loca o seu ónus num único agente, o banco central, e em sistemas de banca cen-

tral dependente do governo o ónus acaba finalmente por cair no próprio gover-

no. O comportamento do sector bancário leva à identificação do governo como

responsável pelas restrições de crédito a que se encontra sujeito e que o obriga a

negar a concessão de crédito a muitas empresas, suas clientes, que o solicitam.

Isto significa que por razões de popularidade política esta forma de actuação

acaba por se tornar numa política que dificilmente será muito restritiva.

Mas não são apenas os quantitativos para certas actividades e as taxas

preferenciais que são escolhidas com o intuito de aumentar a eficácia de actua-

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ção desta política, também se criam excepções ao enquadramento com o mes-

mo propósito. Estas excepções surgem mais facilmente em economias em que

os problemas de inflação coexistem com problemas de desequilíbrios externos,

levando por isso as autoridades monetárias a desenquadrar, por exemplo, o cré-

dito ao sector exportador.

O interesse em não afectar negativamente sectores em dificuldades ou

em apoiar sectores em franco progresso pode levar à escolha de "plafonds" me-

nos restritivos e a taxas de juro mais baixas que para o restante crédito

bancário. Surge assim também o fenómeno das bonificações de certas opera-

ções de crédito.

A redução dos créditos a conceder pelo sector bancário leva ao apareci-

mento de novos circuitos de crédito. Assim podemos assistir ao desenvolvimento

de mercados financeiros para a obtenção de créditos a longo prazo, como acon-

teceu entre nós com o mercado obrigacionista. E também assistimos ao desen-

volvimento do crédito comercial e à alteração de hábitos de pagamento. Não se

trata apenas do desenvolvimento dos cheques pre-datados, mas também do

alongar dos prazos de pagamentos normais entre empresas. Parece-nos natural

aplaudir o desenvolvimento do mercado financeiro, mas o mesmo não pode ser

dito dos dois últimos mecanismos citados.

A concorrência entre bancos é seriamente afectada por uma política des-

te tipo. De notar que se a distribuição dos quantitativos de crédito a conceder

obedecesse a uma qualquer forma de proporcionalidade, os bancos menos dinâ-

micos estariam em condições de emprestar aos mais dinâmicos gerando-se uma

perfeita inversão das finalidades do mercado de concorrência. Por essa razão as

autoridades procuram através de critérios previamente estabelecidos incentivar

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formas de concorrência entre os bancos, cujos resultados levam à distribuição

desigual do total de crédito a ser concedido.

Mas a política de enquadramento de crédito ainda tem um outro aspecto

crítico. Numa economia aberta apenas os que se têm de limitar ao mercado in-

terno do crédito são realmente afectados por esta política, todos os outros po-

dem financiar-se no exterior. Mesmo que existam restrições a movimentos de

capitais as empresas podem fugir aos seus efeitos através das importações e das

exportações. Chamemos a atenção que no caso português foi a própria autori-

dade monetária a levar as empresas públicas a contraírem empréstimos no exte-

rior, porque dessa forma as reservas cambiais do país aumentavam. O "preço"

desta política para essas empresas foi elevado devido à desvalorização do Escu-

do e ao controlo dos preços da sua produção no mercado interno.

Regulamentos, actividade fiscalizadora, critérios de preferências de taxas

e desenquadramento são muitas vezes a forma de reagir aos efeitos mais peno-

sos da política de enquadramento do crédito. E também são em geral o seu fim.

Com o tempo, a desagregação começa a ser grande e os conflitos entre o banco

central e os outros bancos aumentam em número e em intensidade. Pelo que,

em geral, podemos dizer que sendo uma política restritiva eficaz não tem carac-

terísticas para durar muito tempo. Continuará a ser uma política de excepção,

ainda que essa "excepção" possa durar anos. Na ausência de um mercado mo-

netário operacional e na ausência de formas alternativas de aplicação de pou-

pança aos tradicionais depósitos bancários -que levam os bancos a ficarem fora

do poder de controlo do Banco Central- ainda é uma política a ser bastante

considerada em períodos de processos inflacionistas.

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Uma última palavra sobre o tipo de intervencionismo que pressupõe.

Devemos chamar a atenção que são muitos os economistas que pretendem ex-

cluir esta forma de actuação dentro das possibilidades de política monetária

pelo que ela implica sobre a concorrência no sector bancário. Trata-se para es-

tes autores de um intervencionismo destruidor da regulação automática a que o

mercado deve conduzir.

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Independência do Banco Central e Estabilidade de Preços

A independência dos bancos centrais é hoje analisada de diferentes pon-

tos de vista. Eles corresponderam a uma necessidade de classificar os diversos

graus em que a independência pode ser medida. Por isso correpondem a uma

forma de “retalhar” aspectos de comportamentos que nos ajudam a essa medi-

ção. A (in)dependência institucional refere-se à liberdade de tomada de decisões

por parte do banco central. A (in)dependência pessoal respeita ao mandato dos

governador, ou governadores, e à possibilidade da sua destituição ou substitui-

ção antes do termo do mandato. Entende-se por (in)dependência funcional a

possibilidade de estarem definidas em lei as atribuições da instituição e assim

depender, ou não, de objectivos escolhidos pelos governos. Finalmente a (in)de-

pendência financeira, refere-se à possibilidade de ter rendimentos próprios que

lhe permitam prosseguir a sua actividade, e ainda à obrigação, ou proibição,

como casos extremos, de financiar défices.

No que se segue vamos procurar reflectir sobre o significado da indepen-

dência dos bancos centrais do ponto de vista da estabilidade dos preços. A orga-

nização da nossa reflexão é sobretudo motivada pela associação negativa entre

independência e estabilidade que é defendida pela generalidade do economistas

que são adeptos da independência dos bancos centrais do poder político.

Veremos o significado da independência dos bancos centrais por referên-

cia às respostas que podemos dar a dois pontos envolvidos na análise do contex-

to de actuação dos bancos centrais: (1) a neutralidade das políticas e (2) a rela-

ção entre independência e taxa de inflação. Julgamos que é útil fazer a separa-

ção destes dois pontos para uma análise mais completa do tema em apreciação.

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Comecemos pelo primeiro ponto. Um banco independente poderá fazer

uma política monetária neutra nos seus efeitos reais ? Esta questão não se esgota

no problema da neutralidade da moeda. Mas por agora retenhamos as duas hi-

póteses seguintes: i) a moeda é neutra nos seus efeitos sobre as variáveis reais da

economia; e ii) a moeda não é neutra.

Se aceitarmos a primeira hipótese, então a acção do banco central não

terá efeitos sobre a produção e outras importantes variáveis da economia, ape-

nas actuará sobre valores nominais. Desta forma não haverá razão alguma para

avaliar nem proveitos nem custos da política monetária. Talvez identifiquemos

um custo, que poderá ser menor mas que existe. O custo de nos adaptarmos a

denominações nominais que podem alterar-se. Neste sentido, o desejável é ter

uma política que impeça a existência de inflação. Se o pressuposto 2, acima

apontado, nos indicar que a independência favorece a ausência de inflação, en-

tão a independência será a melhor opção a tomar.

Se aceitarmos a segunda hipótese, que admite que a moeda não seja

neutra, então devemos ainda esclarecer se acreditamos que: (a) a inflação é um

processo dinâmico que gera ineficiências que se traduzem em perdas de bem es-

tar e em redução do ritmo de actividade económica; ou (b) a política de estabili-

zação de preços desincentiva o crescimento da economia. A segunda destas po-

sições surge tanto de forma positiva, defendendo a existência de inflação, como

em forma de negação da primeira. Vejamos estas posições nos seus efeitos sobre

a desejável (ou não) independência dos bancos centrais. Tomemos (a) como cor-

recta. Sendo a inflação nefasta e havendo uma relação de causalidade entre in-

dependência e inflação, então a independência é desejável. No caso de (b) as

coisas são mais complexas. Este caso é tomado com frequência pelos que não

advogam a independência dos bancos centrais. A defesa da não independência

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baseia-se na necessidade de execução de políticas activas que devem ser dirigi-

das para a estabilização e crescimento do produto. Mas mesmo assim haverá

que perguntar se para se atingir esse objectivo o governo é mais eficiente que

uma instituição independente como um banco central. Sobretudo são dois os

argumentos contraditórios que nos merecem reflexão. Sendo o governo prove-

niente de um processo eleitoral democrático, nada nos garante que os objectivos

a prosseguir sejam temporalmente coerentes, mesmo do ponto de vista de uma

política de emprego. Neste sentido talvez fosse preferível que uma instituição

como o banco central executasse aquela política. O outro argumento diz-nos

que é preferível ser o governo a executar a política monetária porque também é

ele que executa a política orçamental, e a policy-mix monetária e orçamental, no

mínimo, não deve ser contraditória.

Em suma, encontramos diferentes argumentos para a defesa da indepen-

dência do banco central e encontramos também razões para que o não seja.

Neste último caso encontramos a defesa de uma política activa de emprego

como um atributo a ser desenvolvido e aplicado pelos governos. Mas voltando

aos últimos comentários, vejamos mais precisamente o que poderíamos esperar

de um banco central independente executando uma política de emprego. Como

dissemos, tal situação seria desejável se atendêssemos à sua capacidade técnica e

à possibilidade de coerência temporal das suas medidas. Mas a questão princi-

pal a colocar neste caso é a seguinte: poderá um banco central executar uma

política de emprego ? Como se articula essa política com a política de estabili-

zação financeira ? Como podem ser a estabilidade nos mercados de crédito, de

curto e longo prazos, compatíveis com o prosseguimento prioritário dessa políti-

ca de emprego ? Quando colocamos estas questões somos levados a concluir

que o melhor é não fazer misturas. E assim, entendemos que é preferível que

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seja o governo a gerir a política de emprego. Mas também resulta daqui que a

não independência do banco central deverá ser uma não independência e uma

dependência de política. A primazia vai para a política de emprego e a política

do banco central, seja ela qual for, submete-se a esta última. Mas é interessante

notar que tudo se passaria sem grandes problemas se a política de emprego não

agisse sobre o comportamento monetário e financeiro da economia. Ou seja, se

a política virada para o sector real da economia fosse neutra do ponto de vista

monetário. E parece-nos que esse é um pressuposto tomado por alguns econo-

mistas que advogam a não independência.

Afinal como podemos resumir estas questões quando defendemos que a

política monetária não é neutra para o sector real da economia e a política de

emprego não é neutra para o sector monetário ? i) O emprego é importante e

para o aumentar devemos ter uma economia com estabilidade de preços: o

banco central poderá ser independente se a tal conduzir (2). ii) A moeda é neu-

tra, pelo que os custos da política monetária justificam que o banco central seja

independente. iii) O emprego é importante e a inflação não tem custos sociais,

ou tendo-os são menos importantes que os do não emprego: o banco central

não deverá ser independente. iv) O emprego é importante e a inflação não tem

necessariamente de ser provocada por essa política (neutralidade da política de

emprego), é pois natural que o banco central não seja independente.

Normalmente quem defende a independência do banco central situa-se

na posição i) e quem defende a sua não independência encontra-se em iv).

Através dos argumentos avançados para o ponto (1), sobre a neutralida-

de das políticas económicas pudemos constatar a dependência da opinião sobre

o estatuto do banco central em função de critérios analíticos. Procurámos tam-

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bém chamar a atenção que do ponto de vista da neutralidade não se trata ape-

nas de discutir a neutralidade da moeda no estudo dos fenómenos reais, mas

também a neutralidade de políticas directamente viradas para o sector real so-

bre o sector monetário. Porque se o primeiro tipo de neutralidade faz parte da

nossa herança como economistas, uma vez que esteve tantas vezes presente nas

polémicas que envolveram os economistas, o segundo tipo parece-nos que é

mais recente. E não só é mais recente, como se apresenta de forma implícita em

discussões entre economistas e não de forma explícita. A sua manifestação mais

óbvia verifica-se na negação de uma ligação entre políticas expansionistas da

procura, inflação e subidas de taxas de juro; ou ainda na ligação baixas das ta-

xas de juro, desvalorização cambial e queda na base monetária.

Contextuarmos a questão da dependência ou independência do banco

central não significa à partida que sejamos levados a ter uma posição inequívo-

ca. Mesmo que com base nalguns dos argumentos anteriores fossemos simpáti-

cos à independência dos bancos centrais, significaria isso que estávamos a tomar

tal posição com base numa resposta ao nosso segundo ponto (2) ? Ou seja, esta-

ríamos a supor que existe uma relação de implicação da independência para a

estabilidade dos preços ?

Passemos pois a analisar este ponto para que estejamos em condições de

compreender o significado de tal relação de implicação.

Os estudos que apontam para uma relação entre maior independência e

menor taxa de inflação baseiam-se em estudos que envolvem uma taxa média

de inflação e uma medida da independência dos bancos centrais envolvidos.

Normalmente esses estudos aplicam-se a economias desenvolvidas.

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A relação econométrica entre independência (IBC) e estabilidade dos

preços (EP) que é deduzida dos estudos acima referidos, levando à exclusão da

hipótese de ausência de relação e associando um coeficiente negativo a IBC,

leva os seus autores a defender não apenas a associação entre aquelas variáveis

mas também os conduz a reter uma causalidade de IBC para EP. Se a primeira

é um problema de mera leitura estatística, a segunda dedução merece que lhe

dediquemos alguma reflexão.

Em primeiro lugar aqueles estudos não envolvem variáveis definidas

temporalmente, mas são apenas estudos do tipo cross-section, pelo que a relação

de causalidade não pode ser retirada da relação econométrica estimada. A úni-

ca informação a reter destes estudos é a primeira: existe uma relação negativa

entre aquelas duas variáveis. E é tudo ! A deduzirmos alguma relação de causa-

lidade, ela deverá ser feita, ou a partir de estudos de time-series, ou da análise

económica -não sendo estes dois "caminhos" exclusivos um do outro-. Não es-

queçamos que ainda que num estudo time-series a causalidade empírica deduzida

fosse da IBC para EP, apenas a análise económica nos poderia assegurar que

não se tratava de uma causalidade invertida, como Granger nos advertiu. Supo-

nhamos que a estabilidade dos preços vai de par com a estabilidade a nível da

repartição de rendimentos o que por sua vez anda de par com a estabilidade

das instituições, o que permite que a influência do poder político sobre as insti-

tuições apareça diluído. Neste caso, haver causalidade ela vai da EP para IBC.

Mas a relação de causalidade pode ser de natureza muito complexa.

Procuremos ver o que acontece entre nós. Antes da nacionalização do Banco de

Portugal, e durante a ditadura de Salazar, quem punha e dispunha na direcção

do Banco era o próprio "chefe de estado" apesar da natureza privada do banco.

A nossa taxa de inflação fazia, no entanto, a inveja de muitos dos economistas

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europeus e americanos (que sabiam que existíamos). A política do Banco Cen-

tral ganha mais autonomia no período subsequente, o que coincidiu com uma

inflação crescente. Nestes períodos não podemos associar IBC com EP. Mas no

período mais próximo de nós, em que a política cambial e monetária foram

executadas de forma a contribuírem para a redução da inflação, estas políticas

foram executadas porque correspondiam a objectivos económicos do próprio

governo. E à medida que a inflação veio sendo controlada e reduzida foram

também publicadas alterações legislativas que tornaram o Banco de Portugal

cada vez mais independente. Para este último período não faz sentido associar

as variáveis IBC e EP. Mais, leiam-se a penúltima e antepenúltima Leis Orgâni-

cas para vermos como o respeito do Banco Central pelo Ministério das Finan-

ças era inquestionável. E justamente a penúltima coincide com a redução da

taxa de inflação e a outra com o seu aumento. Para o conjunto da nossa

história, dos últimos cinquenta anos, não faz sentido associar a independência

do banco central com a estabilidade dos preços.

Mas a associação entre IBC e EP não se limita a estes aspectos funcionais

e do que deles podemos retirar. Sabemos o que pretendemos dizer com IBC, e

a partir daí podemos, com dificuldade é certo, obter um índice que ordene os

diferentes bancos centrais a estudar, ou o mesmo ao longo do tempo. Podemos

fazer o mesmo com a EP ? Sabemos sem duvida como medi-la. Mas não dispo-

mos nós de uma teoria que a explique ? Será porque não a sabemos explicar

que andamos desesperadamente à procura de uma variável como IBC que a

possa explicar ? Felizmente não é nada disto. Temos mesmo teorias que compe-

tem entre si para explicar a inflação. Ficamos mesmo com vontade de pergun-

tar: que lhes fizemos para que estejam esquecidas ?

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A resposta a esta questão é clara. A relação entre IBC e EP não pode ig-

norar as teorias da inflação. Não vamos agora passar em revista essas teorias e o

seu papel naquela relação. Limitamo-nos a lembrar o papel que alguns factores

podem desempenhar naquela relação. Comecemos pelos factores de natureza

monetária, passemos ao papel do mercado do trabalho e finalmente da impor-

tância dos factores externos à nossa economia.

Se os factores monetários, como a taxa de crescimento da base monetá-

ria ou a taxa de cedência de liquidez ao sistema bancário, forem determinantes

na explicação da inflação, então a importância do comportamento dos bancos

centrais na explicação da inflação é primordial. E neste caso a responsabilidade

destes é óbvia, ajam eles com independência ou de acordo com a política ditada

pelos governos. Assim, se a inflação for explicada por factores monetários, é de

crer que um banco central independente, que tenha como responsabilidade pri-

meira a estabilidade dos preços, seja bastante mais eficaz nessa política que um

banco dependente das diferentes políticas governamentais e portanto ele pró-

prio dependente de um ciclo político eleitoral.

Mas se os aspectos relacionados com os comportamento no mercado do

trabalho forem importantes na explicação das variações de preços, então o pa-

pel do comportamento do banco central no que respeita à inflação, muda subs-

tancialmente. E para além do mercado de trabalho poderíamos referir a rigidez

de preços que caracterizam os comportamentos dos diferentes mercados nas

economias. As negociações salariais apresentam características diferentes de

economia para economia, e dentro de cada economia evoluem. Veja-se o caso

português. De uma forma corporativa, ditada pela ditadura, passámos para ne-

gociações descentralizadas por sindicatos e mais tarde regressámos a um grau

de corporativismo elevado através da "concertação social". A passagem a esta

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forma mais corporativa de negociação coincidiu com a redução da taxa de in-

flação. O que é aliás frequente acontecer: as formas descentralizadas, em países

de forte movimento sindical, provocam crescimentos de preços mais elevados

que as formas mais corporativas. A própria opinião pública portuguesa passou a

conhecer as variações salariais propostas e aceites a nível da "concertação

social" e ignora tenazmente as negociações parcelares de salários3. A propósito

do ponto seguinte avançaremos com uma ilustração que também se aplica neste

caso.

A abertura das economias ao exterior também traz características parti-

culares aos processos inflacionistas. Em regime de câmbios fixos, como o que ti-

vemos desde o final da Segunda Guerra Mundial até praticamente 1973, as

economias tenderão a ter a taxa de inflação ditada pelo crescimento da massa

monetária do país cuja moeda é reserva internacional. Haverá uma margem de

manobra ditada sobretudo pela ausência de liberdade de movimentos de capi-

tais, mas em tendência é aquilo que se passa. Em regime de câmbios flexíveis a

política monetária adquire a sua independência e o valor da taxa de câmbio é

determinado endogenamente. Assim, com câmbios fixos a questão de uma rela-

ção de causalidade entre IBC e EP não faz sentido ser colocada e com câmbios

flexíveis já tal relação poderá fazer sentido. Mas tenha-se em conta que a deter-

minação do valor externo de uma moeda é um atributo do governo. Em econo-

mias muito abertas, e relativamente grandes, as autoridades económicas pode-

rão ter de optar entre a estabilidade interna dos preços ou a estabilidade do va-

lor externo da moeda. O facto de o banco central ser independente ou depen-

dente nada acrescentará àquela escolha.

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3 Como por exemplo as sistemáticas greves dos máquinistas da CP.

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Em economias fortemente integradas com uma política de estabilidade

de taxas de câmbio entre elas, como aconteceu, e ainda acontece, com o SME,

as diferentes economias tendem a ter taxas de inflação que acompanham a taxa

de inflação da economia de moeda dominante. Ou seja, nos últimos anos assis-

timos a uma convergência dos valores das taxas de inflação das diferentes eco-

nomias europeias para os valores da taxa de inflação alemã. E tudo isto aconte-

ceu independentemente do grau de independência dos diferentes bancos cen-

trais. O facto de a integração monetária ter progredido com a atribuição de

maior independência aos bancos centrais para que se atinja o sistema europeu

de bancos centrais não deve ser confundido com a causa da redução da taxa de

inflação. Talvez seja mesmo mais correcto dizer justamente o contrário.

A propósito da importância do mercado do trabalho e de choques exter-

nos façamos um pouco de reflexão sobre a situação registada em 1974 e 1975

no seguimento da crise dos preços do petróleo. Tomemos como exemplo a eco-

nomia inglesa e a nossa economia. No caso inglês a taxa de crescimento dos

preços implícitos na "absorção" havia sido de 7,8% em 19724. Em 1974 e 1975

essa taxa passou para 19% e 24%. Ao mesmo tempo o crescimento da "absor-

ção" em termos nominais foi de 16% e 22%. Estes valores correspondem a um

crescimento real da "absorção" de -3% e -2%. Se admitirmos que toda esta re-

volução nominal foi motivada pela dependência do banco central que foi inca-

paz de manter uma política de estabilidade dos preços e que deveria ter-se com-

portado por forma a manter uma taxa de crescimento nominal da "absorção"

de 5% (por exemplo), então o crescimento real da "absorção" teria sido de

-12% e -16%. No caso português estes últimos valores teriam sido de -15% e

-13%.

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4 Em Portugal o valor foi de 7%.

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-0,13-0,100,200,0810,80424,001975-0,150,050,230,299,00391,001974

7,30302,001973Portugal

-0,16-0,020,240,2233,7107,41975-0,12-0,030,190,1627,187,861974

TxCr_A=0,0522,875,861973TxCr_R_ATxCr_R_ATxCr_PITxCr_APrImplícitAbsorçãoInglaterra

A absorção está medida em milhares de milhões de Libras e em milhares de milhões de escu-dos; TxCr_A, TxCr_PI e TxCr_R_A significam taxa de crescimento da absorção, dos suespreços implícitos e dos seus valores reais, respectivamente.

Julgamos que não é preciso mais para que saibamos contextuar os cená-

rios económicos em que fará sentido falar do grau de independência dos bancos

centrais, uma vez que os fenómenos inflacionistas em muito extravasam as res-

ponsabilidade estrita destes.

Levantemos ainda uma outra questão que não se relaciona com as teori-

as da inflação, mas que é importante para o comportamento dos bancos cen-

trais. Pela sua natureza, os bancos centrais são chamados a terem responsabili-

dades de supervisão e a serem responsáveis pela estabilidade do sistema bancá-

rio em geral. Uma política monetária fortemente restritiva entra certamente em

conflito com aquela sua função de zelo pela estabilidade do sector bancário. Por

esse motivo é possível encontrar uma relação positiva entre a dimensão das su-

as responsabilidades e a própria taxa de inflação. É que afinal a independência

dos bancos centrais não tem apenas um significado a montante, com o governo,

mas também a jusante, com o sector bancário. E a falta de independência a ju-

sante afecta a sua capacidade de executar políticas restritivas e portanto tam-

bém tem influência sobre a estabilidade dos preços na economia.

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Estudar a independência dos bancos centrais tendo apenas em atenção a

estabilidade do nível geral de preços corresponde a uma análise limitada e que

pode afastar-nos da compreensão do papel dos bancos, do governo e do fenó-

meno da inflação. E que sendo feita com séries temporais nos impede qualquer

dedução de causalidade temporal. Concretamente a relação IBC(EP) peca pela

omissão de inúmeras variáveis, o que retira validade à análise empírica corren-

temente feita e, mais importante, leva-nos a discutir uma relação que do ponto

de vista da estabilização e da inflação, talvez seja das que menor interesse tenha

para os economistas.

Esta nossa conclusão sobre o ponto (2) poderá parecer um pouco exage-

rada e esconder uma opinião desfavorável à independência dos bancos centrais.

Mas não é disso que se trata. Julgamos que a discussão não faz sentido ao nível

empírico a que alguns economistas a apresentaram, como pensamos ter prova-

do. Mas a questão da independência, mesmo que não possamos provar uma re-

lação de causalidade dessa independência para a estabilidade dos preços, ainda

faz sentido. Ela deve ser discutida ao nível das diferentes preferências temporais

que podem caracterizar um banco central e um ministro das finanças e por isso

ao nível da coerências das políticas que uns e outros podem executar.

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