antropologia ciencia das sociedades primitivas

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ANTROPOLOGIA 2. EDIÇÃO JEAN COPANS MAURICE GODELIER SERGE TORNAV CATHERINE BACKÈS-CLÉMENT ANTROPOLOGIA CIÊNCIA DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS? Situação da antropologia Quando Frei Bartolomeu de las Casas «chegou à conclusão absoluta de que tudo o que nas índias se realizava com respeito aos índios era injusto e tirânico», ofereceu a sua vida e as suas forças para explicar e defender «a justa causa dos povos índios». Denunciou perante os reis as iniquidades e multiplicou os « memoriales de remédios», isto é, as propostas de remédios. No seu patriótico esforço exprimiam-se já todas as contradições da sociedade ocidental, ponto de encontro da violência e da ciência, obstinada em negar ou destruir a heterogeneidade das outras sociedades é da vida de descobrir e explicar cientificamente uma umdade oculta nas diversidades. A heterogeneidade da vida em sociedade tornou-se progressivamente manifesta no decorrer do descobrimento e da ocupação colonial das sociedades não europeias. Reparou-se então que as sociedades da América, da Ásia e da África não eram feitas à imagem da sociedade europeia. Esta verificação começa por fazer dessas sociedades um objeto de reflexão filosófica ou política, antes de se tornarem objeto de ciência. A sistematização dessas reflexões sob uma forma científica torna- se possível a partir do momento em que a ciência das formações sociais e históricas se constitui, isto é, no decurso do século XIX (Saint- -Simon, Proudhon, Karl Marx, Augusto Comte).

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ANTROPOLOGIA

2. EDIÇÃO

JEAN COPANS MAURICE GODELIER

SERGE TORNAV CATHERINE BACKÈS-CLÉMENT

ANTROPOLOGIA

CIÊNCIA

DAS SOCIEDADES PRIMITIVAS?

Situação da antropologia

Quando Frei Bartolomeu de las Casas «chegou à conclusão absoluta de que tudo o que nas índias se realizava com respeito aos índios era injusto e tirânico», ofereceu a sua vida e as suas forças para explicar e defender «a justa causa dos povos índios». Denunciou perante os reis as iniquidades e multiplicou os « memoriales de remédios», isto é, as propostas de remédios.

No seu patriótico esforço exprimiam-se já todas as contradições da sociedade ocidental, ponto de encontro da violência e da ciência, obstinada em negar ou destruir a heterogeneidade das outras sociedades é da vida de descobrir e explicar cientificamente uma umdade oculta nas diversidades.

A heterogeneidade da vida em sociedade tornou-se progressivamente manifesta no decorrer do descobrimento e da ocupação colonial das sociedades não europeias. Reparou-se então que as sociedades da América, da Ásia e da África não eram feitas à imagem da sociedade europeia. Esta verificação começa por fazer dessas sociedades um objeto de reflexão filosófica ou política, antes de se tornarem objeto de ciência. A sistematização dessas reflexões sob uma forma científica torna-se possível a partir do momento em que a ciência das formações sociais e históricas se constitui, isto é, no decurso do século XIX (Saint- -Simon, Proudhon, Karl Marx, Augusto Comte).

A descoberta intelectual das sociedades «não europeias» coloca, pois, em foco a diversidade das formas sociais de pensamento e de comportamento e a das instituições correspondentes. Mas é difícil, a princípio, separar a abordagem científica da abordagem ideológica, ou morai desse fenômeno. A reação instintiva do Ocidente face aos povos exóticos é o etnocentrismo, que, implícita ou mesmo explicitamente, ajuíza das; sociedades anão europeias» pelo modelo europeia. De fato, tal diversidade põe em causa o fundamento natural das nossas tradições e das nossas relações sociais. Impele-nos a problematizar o fundamento da nossa manifesta superioridade técnica e, portanto, os quadros de pensamento que lhe servem de base.

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Paradoxalmente, é esta heterogeneidade da realidade social que vai conduzir a um progresso científico. Com efeito, impõe-se uma metodologia nova para apreender e comparar o conjunto das outras sociedades. Porque o fato de serem todas exteriores à Europa e de formarem, por assim dizer, um resíduo histórico, confere-lhes uma aparência de unidade. A constituição da etnografia, que recolhe os dados, e da etnologia, que os sintetiza e compara, visa, portanto, unificar teórica e metodologicamente essa realidade humana. Mas o comparativismo sistemático a que se recorre para analisá-la acaba por atribuir igual importância ao método e ao objeto, se não mais àquele que a este. E, finalmente, as sociedades «não europeias» não são mais que um pretexto, e o estudo das sociedades europeias sofre, por sua vez, o embate do método e do ponto de vista antropológico. Em menos de dois séculos a antropologia reencontrou assim um dos seus pontos de partida: a reflexão sobre si própria e a comparação de todas as sociedades humanas.

Mas, paralelamente a este movimento interno que leva a etnologia a transformar-se numa antropologia, a evolução histórica põe de novo em causa o princípio constitutivo da etnologia, isto é, a distinção entre sociedades europeias e «não europeias».

Realmente, a distinção entre sociedades «europeias» e sociedades «não europeias», base do «messianismo» ocidental do fim do século XIX, na teoria evolucionista e na prática histórica da colonização, aparece hoje como relativa. A história mundial unifica-se: o subdesenvolvimento, a exploração das sociedades «não europeias», não é mais que a contrapartida necessária do desenvolvimento das sociedades europeias. As transformações econômicas, políticas e sociais das primeiras, provocadas pelas segundas, tornara arbitrária uma distinção científica, cuja t razão de ser surge claramente como ideológica: era preciso que o bom selvagem fosse considerado diferente e distinto para que se tornasse possível defini-lo como objeto de conhecimento e... de exploração.

Por outro lado, uma outra necessidade se entremostra: a de um campo científico unificado ao nível das problemáticas e das elaborações conceptuais. O desenvolvimento de pesquisas interdisciplinares, embora seja a expressão de uma certa moda, indica precisamente que por si só cada disciplina não pode produzir o conjunto dos métodos e dos conceitos necessários para a explicação de todas as determinações do funcionamento do seu objeto.

Evidentemente, esta unificação não pode e não deve ser privilégio de uma ciência humana com exclusão das outras. Mas é necessária, e julgamos que o termo de antropologia convém perfeitamente aos múltiplos esforços que em diversas disciplinas se vão aplicando no sentido de unificar os métodos, os conceitos e os conjuntos teóricos. Trata-se, de certo modo, de retomar um velho projeto que data da segunda metade do século XIX e que consiste em indagar as leis gerais da evolução humana. Hoje está menos ameaçado que então de perversão ideológica, visto que a antropologia trabalha na elaboração da teoria do desigual desenvolvimento social e histórico. Cumpre-lhe, portanto, criticar a «superioridade» ocidental como produto histórico necessário de um desenvolvimento unilinear. Quer dizer: a antropologia já não é a ciência provinciana das sociedades exóticas e folclóricas, tal como foi frequentemente considerada. Com efeito, a unificação da evolução histórica das sociedades humanas i2npõe uma nova perspectiva que suprime as particularidades e as diferenças como constitutivas de teorias locais da evolução social. A esta necessidade histórica junta-se uma

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necessidade científica: a explicação do funcionamento das sociedades europeias e «não europeias», passadas e atuais, não pode ser elaborada senão dentro de um mesmo conjunto teórico.

ORIGENS DA ANTROPOLOGIA

Toda a ciência tem necessidade de descobrir os seus precursores. A antiguidade das preocupações «etnográficas» seria um indício da curiosidade natural das nossas sociedades relativamente aos outros grupos humanos, a fim de entre todos estabelecer as diferenças e as semelhanças. Esbocemos, pois, rapidamente, as grandes tendências desta inquirição sobre os outros que se instaura a partir da Antiguidade: to grego Heródoto (século V a. C) quem desempenha o papel ambíguo do herói mítico, fundador da História, da Geografia Comparada e da Etnologia. Necessário se torna chamar a atenção para o, duplo aspecto que toma, logo desde o princípio, o discurso sobre os outros: os não gregos são os «bárbaros», e, todavia, é preciso descreve-Ios para saber em que é que eles são ou não são bárbaros. O duplo aspecto da exclusão ideológica e da inclusão «cientifica» sustenta, portanto, todo o discurso etnográfico desde as origens.

A Idade Média dá uma nova forma a esse duplo aspecto do discurso sobre os outros: cristãos e não cristãos. É, aliás, em nane desta diferença que se justificarão as primeiras conquistas e explorações coloniais do Renascimento. No Renascimento principia a expansão mercantil e política do Ocidente europeu. As possibilidades de um discurso etnológico alargam-se a todo o planeta. Com efeito, durante quatro séculos, o Ocidente vai estabelecer progressivamente (e violentamente) o seu domínio sobre as sociedades não europeias. A exploração anterior ou consecutiva à implantação europeia tornar-se-á uma nova e importante fonte para a reflexão teórica ocidental.

Mas, na medida em que a Etnologia aparece como uma ciência do Ocidente, muito logicamente nos esquecemos de procurar os equivalentes «exóticos» desta inquirição sobre os outros. As crônicas, memórias, relatos de viagens dos árabes, dos Persas, dos Indianos, dos Chineses, têm muitas vezes um valor insubstituível, e nós mal começamos a tirar proveito científico destas obras, que constituem a visão não ocidental de .outras sociedades não ocidentais (pensemos na. importância dos textos dos ,viajantes árabes para o conhecimento; da África sudanesa ou oriental entre os séculos X e XV!).

A partir dos séculos XVII e XVIII vemos desenharem-se empiricamente os contornos de uma reflexão mais sistemática sobre as sociedades não europeias e sobre, a natureza das sociedades e do homem em geral. Os relatos de viagens levam cada vez mais explicitamente ao comparativismo (com a Antiguidade, com as sociedades europeias contemporâneas, com outras sociedades não europeias) . Assim, as narrações dos missionários relativas aos índios da América, as viagens de J. Chardin à Pérsia, de F. Bernier às índias, as descrições das sociedades da Oceania por Cook ou La Pérouse, as explorações de Mungo Park no interior africano, são outros tantos exemplos de uma curiosidade didática. Seguidamente, o material informativo e reflexivo acumulado acha-se sintetizado sob uma forma filosófica ou histórico-antropológica. Fontenelle, Bayle, Montesquieu, Diderot, Rousseau, Voltaire, o padre Raynal, Condorcet, são exemplos bem conhecidos.

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Explicar as diferenças e as semelhanças, as origens e as evoluções das sociedades, tal e o programa dos pensadores da segunda metade do século XVIII (Origine de l'inégalité parmi les hommes; Essai sur les moeurs, etc.). É, pois, neste contexto que aparece pela primeira vez o emprego dos termos etnologia e etnografia ia etnologia (Chavannes, 1787) é primeiramente um ramo da filosofia da história e depois a análise das características raciais. A etnografia é mais recente (Balbi, 1826) e designa a classificação dos grupos humanos a partir das suas características linguísticas. Apenas nos fins do século XIX as duas disciplinas se apresentam como duas fases complementares de um mesmo projeto: coleta dos documentos e descrição (etnografia), e depois síntese comparativa (etnologia).

Do projeto teórico ao trabalho de campo

É certo que a maior parte das virtualidades das ciências humanas se deixam já entrever embrionárias no fim do século XVIII. Mas é o século XIX que permitirá o desenvolvimento consciente e sistemático de algumas delas, e é no decurso desse processo que se fixa a especificidade do domínio etnológico. O primeiro campo empírico a tomar forma é o da evolução natural da espécie humana. A pesquisa das origens conduz às classificações biológicas das raças e à sua descrição racional: a antropologia física. Mas a pesquisa das origens conduz igualmente à paleontologia e à pré-história, descrição dos estádios anteriores da espécie humana como espécie social (fabricação de utensílios, etc.). É a distinção cada vez mais acentuada entre a origem e a evolução do ser humano como espécie natural e como ser social que explica a constituição de disciplinas científicas autônomas. A confusão acerca do objeto da reflexão filosófica vai desaparecendo progressivamente. O aparecimento de disciplinas autônomas não se acha apenas ligado a essa reflexão: provém igualmente da afirmação progressiva de métodos e de técnicas adequados ao objeto que se deseja estudar. E é a síntese metódica dessas diversas práticas que permite à etnologia delimitar um campo geográfico e social original no quadro do descobrimento (e da conquista) de novas sociedades.

Desde o início encontramos a preocupação do registro ordenado e sistemático dos elementos de cada sociedade. Em 1799 Gerando elabora um questionário que precisa: «O primeiro expediente para conhecermos bem os: selvagens é tornarmo-nos de certa maneira um de entre eles.» A multiplicação das missões científicas, o interesse posto na coleta de documentos e de objetos (em paleontologia, pré-história, antropologia física), o desenvolvimento da museografia e dos seus princípios (classificação, conservação, exposição), modificam consideravelmente as condições da reflexão teórica. Já não se trata de relatos dia viagens de que se tiram considerações ideológicas ou históricas; torna-se possível conhecer, descrever e, de algum modo, medir a diversidade das sociedades humanas. Mas, sob a influência do evolucionismo dominante, este comparativismo mantém-se apanágio dos «etnólogos de gabinete», eruditos da compilação. É com o desaparecimento da cisão entre as duas funções — colecta de documentos e interpretação e prática do trabalho de campa — que a etnologia adquire a sua originalidade. É entre 1880 e 1915 que «nasce» o trabalho de campo, com Franz Boas e Bronislaw Malinowski, entre outros, e é este nascimento que explica o prodigioso desenvolvimento da etnologia a partir de 1900.

Panorama de um itinerário teórico

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O agrupamento dos teóricos da etnologia e da antropologia num certo número de escolas ou de correntes é ao mesmo tempo uma realidade e uma comodidade ilusória. Este fenômeno exprime simplesmente o predomínio de uma escola sobre as outras num momento dado, mas seria esquemático, e até errado, conceber a evolução teórica como linear e fechada em si.

Pode-se dizer que, por princípio, o século XIX é evolucionista: o progresso técnico e econômico é prova incontestável de uma certa evolução histórica. Decalcando o modelo do evolucionismo biológico, buscam-se os estádios da evolução humana e, em consequência, as sociedades primitivas aparecem como os antepassados naturais das sociedades ocidentais atuais. Trata-se de um evolucionismo Unilinear, quer dizer, tal sucessão de estádios é necessária e obrigatória: por uma série de transformações passa-se do inferior ao superior. O americano Lewis H. Morgan (1818-1881) --ilustra perfeitamente esta tendência com o seu livro Ancient Society. O primeiro contributo de Morgan consiste em demonstrar a importância decisiva das relações de parentesco em determinado estádio das sociedades humana. Explica também a passagem de um estádio a outro (selvajaria, barbárie e civilização) a partir das correlações entre as formas de produção, formas de parentesco e formas de consciência social, e conhecemos a repercussão dessa análise em K. Marx e F. Engels. Os trabalhos contemporâneos de Banohoffen (1815-1887) sobre parentesco e de Sumner Maine (1822-1888) sobre direito integram-se também nesta pesquisa das origens e dos estádios de evolução.

E.-B. Tylor ,(1832-1917) alargou consideravelmente o âmbito da reflexão etnológica graças a um comparativismo que relativiza o evolucionismo. Aborda domínios inexplorados e de certo modo completa as primeiras análises e hipóteses de L. Morgan. Os seus trabalhos sobre as religiões e o animismo constituem uma primeira abordagem explicativa das funções ideológicas e mitológicas. Finalmente, a sistematização da comparação e a quantificação de certos dados fazem de Tylor um verdadeiro pioneiro de métodos hoje indispensáveis.

Mas a pesquisa das leis de evolução das sociedades levou frequentemente a extrapolações e a generalizações abusivas: as sínteses elaboradas acabam por silenciar as lacunas da documentação ou os fatos que contrariam a demonstração. Pode-se afirmar, sem exagero, que todas as teorias etnológicas subsequentes tomaram uma posição antievolucionista. Apenas vinte anos depois, e principalmente nos EUA, é que se assiste ao retomar de um neoevolucionismo (Leslie Wite, J.H. Steward, M. Fried).

Franz Boas (1858-1942), alemão naturalizado americano, é o primeiro que de modo consequente põe em causa o evolucionismo. Formado em Ciências Exatas e em Geografia Física, rejeita qualquer espécie de síntese. Especialista de antropologia física, de linguística e da mitologia dos índios da América do Norte, consagra-se ao registro de fatos e às correlações limitadas e controladas. Pratica um verdadeiro cepticismo teórico e anti-histórico.

Uma outra reação contemporânea é a da escola difusionista. Os difusionistas (na Alemanha com F. Graebner, P. Schmidt, L. Frobenius, nos E. U. A. com C. Wissier) pesquisam os círculos, as áreas culturais que delimitam e explicam as diferenças e semelhanças entre sociedades: os fenômenos de contacto, de empréstimo, de difusão de elementos são determinantes. Nascida da prática, museográfica (cartografia e apresentação das diferenças e semelhanças culturais), esta escola enferma de numerosos vícios: atomização dos conjuntos culturais, identificações formais, pesquisa de focos de difusão singulares...

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No entanto, é funcionalismo anglo-saxônico que mais consequente e duradouramente refuta o evolucionismo. Bronislaw Malinowski, de origem polaca (1881-1942), é o teórico mais sistemático da corrente funcionalista, e sem dúvida domina o período que decorre entre as duas guerras: Todo o elemento (instituição) de uma cultura desempenha uma função neste conjunto e reflete uma necessidade biológica. As respostas às necessidades primárias e, às necessidades derivadas constituem a cultura. Em certo sentido o funcionalismo representa um progresso, porquanto apresenta uma visão geral e integrada do sistema social. Mas, visto que tudo o que existe desempenha uma função, a transformação torna-se mecânica. É o conteúdo da função que se transforma, e não o conjunto das relações da totalidade social.

Ora, como sublinha Claude Lévi-Strauss: “Dizer que uma sociedade funciona, é um truísmo; mas dizer que tudo, numa sociedade, funciona, é um absurdo”.

Não obstante, o contributo de Malinowski é considerável. Antes de tudo, se não é o primeiro a fazer trabalho de campo, ao menos é o que alarga o seu alcance com a teoria da observação participante (primeira estada na Nova Guiné e nas ilhas Trobriands, a partir de 1915) . Especialista das sociedades melanésias, desbrava empiricamente dois novos campos de pesquisa:graças a uma certa perspectiva psicanalítica, a sexualidade e o inconsciente; com a sua análise dos ciclos de troca (o kula), a antropologia econômica. Mas não deixa de ser um representante típico da escola antropológica inglesa: favorável à antropologia aplicada, não porá nunca em dúvida a seriedade dos fundamentos do domínio colonial e das suas consequências.

Nos E. U. A, no período que medeia entre as duas guerras, desenvolve-se uma tendência bastante diferente do funcionalismo anglo-saxônico. Com E. Sapir, M. Mead, R. Benedict, e depois A. Kardiner e R. Linton, assiste-se a uma associação das pesquisas etnológicas, psicológicas e psicanalíticas. Trata-se essencialmente de referenciar e de construir os modelos, os princípios ou as configurações culturais (pattern) que fazem a originalidade. dos indivíduos e das culturas. Os processos de aprendizagem dos valores pelas crianças, a delimitação das mentalidades nacionais, a definição das normas e dos desvios — são outros tantos assuntos que o culturalismo desenvolve de maneira sistemática.

A etnologia francesa, essa, segue uma via particular. Os fundadores da sociologia, E. Durkheim, C. Bouglé, R. Hertz, M. Mauss, interessam-se muito de perto pelas sociedade ditas «primitivas» e pelas suas manifestações religiosas. Para eles, a etnologia, comparativa por excelência, é um ramo da sociologia. Mas as primeiras pesquisas têm um caráter documental e livresco. A fundação do Museu do Homem (1924), as curiosidades etnográficas dos: administradores coloniais e dos missionários na África e na Oceania vão impulsionar, por volta de 1930, os trabalhos de campo. Todavia, o verdadeiro fundador teórico da etnologia é Marcel Mauss: a magia, a religião, o parentesco, a economia (Essai sur le dom; 1923), dão origem a sínteses e a uma pesquisa das leis de funcionamento profundas e invisíveis. É Claude Lévi I Strauss, sob a influência da fonologia e da linguística estrutural (N.-S. Troubetzkoy, R. Jakobson), quem vai elaborar estes princípios de maneira rigorosa a partir de 1945.

O estruturalismo, tal como Lévi-Strauss o teorizou e praticou, não é um formalismo. De fato, o objetivo da etnologia (Lévi-Strauss conserva ainda nessa época, 1949, a acepção de M. Mauss) «é atingir, para além !da imagem consciente e sempre diferente que os homens formara do

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seu devir, um inventário de possibilidades inconscientes, que não existem em número ilimitado, e cujo repertório e as relações de compatibilidade ou de incompatibilidade que: qualquer delas mantém com todas as outras fornecem uma arquitetura lógica a desenvolvimentos históricos que podem ser imprevisíveis sem nunca serem arbitrários» . Tendo começado pela análise das Structures élémentaires de la parenté, Lévi-Strauss especializou-se depois no domínio adequado à manifestação das leis inconscientes: La pensée sauvage e Mythologiques renovam completamente, de há dez anos para cá, a reflexão teórica relativa às produções intelectuais das sociedades ditas «primitivas».

Mas há outras teorias críticas do funcionalismo. Assim, Max Gluckman, na Grã-Bretanha, e Georges Balandier, em França, puseram em foco a natureza contraditora não igualitária e assimétrica das ralações sociais. Partidários de uma espécie de empirismo historizante ou tipológico, consagraram-se a estados de dinâmica social (rituais de rebelião, messianismos, casos de antropologia política) que tentam esclarecer a natureza real das transformações produzidas pela colonização europeia na África negra.

Este panorama, sem dúvida muito esquemático, só adquire verdadeiro sentido pelo confronto das teorias com as práticas. Vamos, portanto, examinar sucintamente os diversos elementos que permitem caracterizar a atitude antropológica como um processo científico.

II

INVESTIGAÇÃO ANTROPOLÓGICA

Se bem que o objeto de uma ciência não seja um simples dado, não restam dúvidas de que a delimitação empírica de um certo campo ou domínio da realidade objetiva e histórica constitui o primeiro momento doo próprio, processo de construção do objeto científico. O aparecimento da etnologia (e a possibilidade de transformá-la numa antropologia) resulta de um fenômeno único e original. De foto, o carpo empírico da etnologia é o resultado de uma historia política e econômica que integra sociedades diferentes na orbita material e intelectual do Ocidente. O campo empírico é portanto imposto à reflexão teórica: não é um pensamento à procura do seu objeto que o recorta mais ou menos progressivamente numa dada realidade. Por isso é que durante muito tempo a procura de uma definição do novo campo social se confundirá com a elaboração propriamente teórica da sua natureza e das suas leis de funcionamento. A aparência tão diferente destas sociedades (a sua «simplicidade» em relação às sociedades europeias) apresenta-se coro a sua própria essência. A diferença das sociedades não proviria de uma história diferencial (desenvolvimento desigual), mas de uma natureza específica e irredutível. Compreende-se, por consequência, a prolixidade e a imprecisão do discurso teórico da etnologia: definir é analisar, visto que a aparência se apresentaria à primeira vista como sendo a essência. Mas esta particularidade do processo de constituição do campo empírico impõe ó método: o olhar exterior definiu o princípio de distanciação como científico. Já que a aparência não é uma modalidade, mas uma qualidade, é do «exterior» que podemos julgar das aparências graças aos processos é comparativistas e às próprias vantagens desta exterioridade. Já que a intervenção exterior é o próprio processo da relacionação destas sociedades com o Ocidente, a etnologia é levada a ter por científica uma relação que o não é. A etnologia é a busca eternamente renovada de um objeto que se escapa, porque não pode

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ser definido senão excluindo a priori a problematicização da relação não científica que o produziu. A etnologia atribui-se corno objeto um produto ideológico.

Para ultrapassar o etnocentrismo ideológico, conceptual e metodológico, é preciso dar nova forma as questões dirigidas a estas sociedades, isto é, demonstrar o vínculo entre a ilusão do método etnológico e o objeto da ilusão etnológica. O exame crítico (e evidentemente sumário) do objeto, do método e das técnicas da investigação etnológica, vai permitir-nos definir as condições dessa mudança de perspectiva. A antropologia enquanto ciência aparece, pois, primeiramente como uma articulação consciente da teoria com as práticas, como uma crítica do contexto histórico i9deológico e teórico que a toma possível.

O objetos

O objeto, como vimos, identifica-se em primeiro lugar com o domínio empírico que a expansão europeia constitui ao longo do seu desenvolvimento histórico. As sociedades recentemente descobertas vão ser qualificadas com uma multidão de sinônimos, todos igualmente mistificadores, aos quais se procura em seguida dar um estatuto científico. São primitivas, arcaicas, atrasadas, tradicionais, sem escrita, sem maquinação, etc. Contudo, mais que um estádio da história humana, estes termos imprecisos designam o quadro simétrico e inverso do modernismo ocidental. Por outro lado, explicitamente ou não, veiculam juízos de valor e permitem amalgamar sociedades de fato dissemelhantes sob certos aspectos determinantes (parentesco, política, religião, economia, etc.).

A antropologia contemporânea renunciou, regra geral, à busca da «primitividades>. Mas conservou, por comodidade, e, confim acrescentar, por preguiça conceptual, os referidos termos para designar este tipo de sociedades. O uso de aspas não altera em nada o problema é a invenção de novas expressões (o pensamento selvagem) para substituir as antigas (a mentalidade pré-lógica) não procede de uma crítica semântica, todavia necessária. A ambiguidade continua a ser a regra, e nenhuma expressão está ao abrigo de uma recuperação ideológica.

A primeira operação científica consiste em definir o objeto em relação ao propósito da disciplina: propósito metodológico (estrutura); propósito totalizante (cultura, sociedade, fato social total) ; propósito metodológico (estrutura) ; propósito parcelar (domínio circunscrito do real: parentesco, economia, etc.) . Examinemos rapidamente estes diversos projetos. A expressão que logra maior aceitação é certamente a de cultura. Em 1952 M. Herskovits e C. Kluckhohn recensearam, pelo menos, cento e sessenta definições. O sucesso provém da generalidade do termo e, portanto, da multiplicidade das acepções possíveis. Em primeiro lugar, a própria antropologia é cultural. Trata-se de descrever o conjunto das práticas e produções humanas socialmente transmitidas ou adquiridas. Como alega M. Herskovits, a cultura é a parte do meio produzida pelo homem. A cultura opõe-se, pois, à natureza. Forma um conjunto e, segundo as diversas escolas, divide-se em elementos e em complexos de elementos (áreas e círculos). Podem observar-se fenômenos de 'troca entre as diferentes

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culturas (aculturação). A cultura é ao mesmo tempo consciente e inconsciente: é um modelo que se ensina e que por si, simultaneamente, se impõe. Enfim, responde a necessidades.

Será possível, porém, dissociar a cultura da sociedade? Não se trata de dois aspectos complementares de um mesmo fenômeno? Como sublinha Levi Strauss; «poder-e ia dizer que antropologia cultural e antropologia social abarcam exatamente o mesmo programa, uma, partindo das Técnicas e dos Objetos para culminar nessa “Supertécnica” que é a atividade social e política, tornando possível e condicionando a vida em sociedade; a outra, partindo da vida social para descer até às coisas sobre as quais imprime a sua marca, e até às atividades através das quais se manifesta».

A etnologia francesa, essa, inspirou-se na noção de fato social total elaborada por M. Mauss. Trata-se de apreender um tipo de fenômeno que seja simultaneamente expressão e síntese do conjunto da vida social de uma dada sociedade. ® estudo de certas configurações privilegiadas e estratégicas permitiria compreender o sentido real das relações sociais. Para Mauss, estas configurações aparecem encarnadas em indivíduos concretos: o fato social total é menos uma construção teórica que uma forma da realidade empírica. Chega-se assim a uma “dimensão fisiopsicológica”: «São, pois, mais que simples temas, mais que elementos de instituições, mais que instituições complexas, mais; mesmo, que sistemas de instituições divididos, por exemplo, em religião, direito, economia, etc. São todos sistemas sociais inteiros, cujo funcionamento tentamos descrever. Vimos sociedades no estado dinâmico ou fisiológico. Não as estudamos, como se elas se achassem imobilizadas, num estado estático, ou antes, cadavérico, e ainda menos as decompusemos e dissecamos em regras de direito, em mitos, em valores e em preços. Foi considerando o todo que pudemos perceber o essencial, o movimento do todo, o aspecto vivo, o instante fugidio em que a sociedade toma, em que os homens tomam consciência sentimental de si próprios e da sua situação perante os outros.

Mas, da mesma maneira que as noções de primitivo ou de tradicional, as noções de cultura, de sociedade, de fato social total, não definem os contornos reais dos objetos antropológicos. Estes constroem-se numa prática especializada. Cada grande conjunto de instituições ou de fenômenos deu lugar a uma série de estudos sistemáticos, monográficos ou comparativos, reunidos a seguir em antropologias regionais. Tal prática nem por isso aboliu o propósito totalizante, mas, criticando a aparente simplicidade das sociedades, os antropólogos ultrapassaram o discurso ideológico que explica e descreve tudo. Aos quadros gerais sucedem-se estudos mais precisos consagrados a fenômenos de um só tipo e ao seu lugar na sociedade.

Os grandes temas da investigação antropológica têm, pois, uma história (teórica e prática) cada vez mais distinta e autônoma. O fio diretor e a disciplina que estabeleceu os fundamentos da antropologia é a análise do parentesco. Torna-se necessário distinguir entre as subdivisões da antropologia — a sua especialização interna — e as aplicações de outras disciplinas no domínio antropológico — a especialização externa. No primeiro caso, temos a antropologia política, a antropologia econômica, o estudo dos mitos e das ideologias. No segundo, encontramos a etnolinguística, a etnobotânica, a etnozoologia, por exemplo. Finalmente, existe a fronteira imprecisa das reações interdisciplinares com outras ciências humanas, como a geografia, a demografia, a psicanálise. Este processo de expansão e de diversificação do

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interesse antropológico corresponde ao reconhecimento progressivo do campo -real desta disciplina: «As propriedades gerais da vida social.»

Um tal projeto teórico implica a afinação de certos métodos que vamos rapidamente passar em revista.

O método e as técnicas

Uma dupla ilusão preside ao desenvolvimento do método etnológico ainda considerado como o --modelo ideológico e formal da prática antropológica. Esta dupla ilusão é um subproduto natural das condições de descobrimento das sociedades «exóticas», pela Europa. Por um lado, o olhar alienígena é dotado de objetividade. Por outro, essas sociedades não excedem a capacidade do olhar individual dotado de objetividade: a sua grandeza é diminuta e a sua forma elementar geralmente de natureza comunitária (rural ou outra). A partir deste momento, uma falsa dialética se instaura entre a objetividade e a participação, condição necessária para a apreensão da comunidade e, portanto, de todo o sistema social. O chamado trabalho de campo é inegavelmente fecundo. Mas esta vantagem transforma-se em critério epistemológico se se desembaraçar das duas ilusões. Sem isso, a visão ideológica consubstancial à origem da prática da investigação retira-lhe todo o valor metodológico.

Realmente, o crédito da etnologia funda-se na originalidade do seu método. Etnologia é sinônimo de aproximação qualitativa e direta da realidade social. O fenômeno não é fortuito: é completamente determinado pela natureza das sociedades em questão e pelas condições em que a etnologia pôde apreendê-las praticamente. A falta de documentos escritos (visto que a maior parte destas sociedades conserva e exprime as suas particularidades oralmente) provoca uma nova ilusão que se acrescenta às duas precedentes. Para analisar a realidade, o etnólogo deve proceder a uma descrição visual e física, assim como à recolha dos diferentes discursos individuais e coletivos. Isto é: o trabalho de campo constitui antes de mais nada uma tomada direta, de contacto com a realidade social. Tomada de contacto que, conduzida ao seu limite lógico, implica uma investigação participante; já que e preciso viver com a comunidade para conhecê-la, o melhor método consiste em viver como a comunidade O alienígena, dotado de objetividade, torna-se assim capaz de descrever e analisar as regras ermos comportamentos porque se lhes submete e os encarna subjetivamente Assim, não haveria intermediário entre a realidade empírica e a sua explicação científica, enquanto o sociólogo ou o historiador trabalham sobre documentos «impessoais», porque frequentemente ligados a fenômenos de grande amplitude. A grandeza das sociedades e dos seus agrupamentos fundamentais exclui a preocupação de exaustividade, de contabilidade estatística, na medida em que a realização destas operações é impossível para um indivíduo isolado.

A identificação do etnólogo com o seu objeto, através da vivência deste, condu-lo a pensar o dito objeto como um microcosmo expressivo. O método etnológico toma, sistematicamente a parte pelo todo e, por causa da aparente unidade do conjunto observado, esquece-se de o inserir no seio de uma rede de relações mais vastas, (a comunidade como comunidade de um conjunto “étnico”, ou outro, etnia em relação com outras etnias, ou dominada ,por uma sociedade europeia, etc. ). A tendência da etnologia, para a comparação encontra aqui a sua razão de ser. O comparativismo toma-se o substituto teórico de uma análise global que não reconhece o valor heurístico do objeto isolado, cuja coerência e cujo sentido s,ó o produto de

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uma experiência individual e subjetiva. A comparação é o único processo de compreender a averiguada diversidade das relações sociais: é o único processo de eliminar formalmente o olhar ideológico que seccionou e construiu arbitrariamente diversas unidades expressivas. Em resumo: a natureza das sociedades ditas «primitivas» só pode ser analisada através da participação efetiva na vida das mesmas a fim de recolher os documentos e dados necessários. A ilusão ideológica da objetividade do olhar alienígena permite transformar uma experiência pessoal e imitada numa experiência científica. O etnólogo confirma o valor dos seus resultados submetendo-os a uma comparação: abstém-se por esse fato de se interrogar sobre a natureza da sua experiência e sobre os princípios que transformam uma unidade isolada, a maior parte das vezes escolhida ao acaso, num microcosmo, modelo acabado, em pequena escala, de um certo tipo de sociedade. A sedução de uma experiência vivida tem sido certamente um poderoso incentivo para as- vocações etnológicas. E é porque esta experiência tear sempre sentido e coerência para aquele que a leva a cabo que se acaba por atribuir ao campo uma umidade e um sentido que não possui. Pelo menos a unidade e o sentido deste campo são determinados por relações exteriores ao etnólogo, e que ele se recusa a tomar em consideração (dantes, recusa de um passado; hoje, recusa da submissão destas sociedades a mecanismos econômicos e políticos internacionais). Basta ver em que condições se operou a transferência deste método para as sociedades ocidentais para compreender a ilusão que ele acarreta. Quer se trate cio estudo das sobrevivências (folclore), quer do estudo de unidades sociais com coerência espacial ou outra bem marcada (certos bairros urbanos, as comunidades étnicas, etc.), o método etnológico privilegia objetivamente a parte em 'relação ao todo e utiliza conceitos que explicam a parte como um todo (o que em muitos casos não é errado), bastando-se a si mesmo (o que é errado a priori e em todos os casos). O método oscila, portanto, entre uaná perspectiva totalizante ou generalizante e uma experiência pessoal precisa, considerada como científica, embora sujeita a todas as armadilhas do empirismo.

A antropologia não pode abstrair-se das condições que acabamos de expor. Mas pode tomar em conta os limites que elas impõem e conseguir os instrumentos teóricos e práticos precisos para assegurar a sua crítica. Assim, a antropologia deve ter em consideração as condições da oralidade. A importância da expressão oral é evidente. Mas torna-se necessário repor a oralidade na prática social real. Não convém confundir as normas da sociedade com as opiniões e as interpretações dos indivíduos (ou dos grupos). Além do mais, as opiniões e interpretações incidem tanto sobre as normas como sobre os comportamentos (as práticas reais). Esta última dimensão pode ser captada de duas maneiras pelo antropólogo ou visualmente ou oramente (descrição por um terceiro). O antropólogo é obrigado a distinguir a natureza das informações recolhidas, sem esquecer as condições da recolha (omissões, mentiras dos informadores). Enfim, não convém confundir as explicações da sociedade (ou de um dos seus grupos) com a explicação que o antropólogo deve elaborar

Esta critica permanente, esta reflexão, é uma das condições da transformação interna do método, que já não é apanágio de uma subjetividade iludida e privilegiada. A outra condição é de ordem teórica propriamente dita: a explicação necessariamente totalizante delimita o campo real dos elementos a considerar para um dado objeto. A antropologia não confunde as relações sociais, empiricamente visíveis (e, por conseguinte, a forma comunitária, campo da

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prática social e científica), com as estruturas que as tornam possíveis: a antropologia torna a pôr em questão a ideologia do discurso (porque já não é uma ideologia do discurso sobre os outros), confrontando sistematicamente normas, opiniões e práticas. Aceita a utilização de técnicas quantitativas para apreender fenômenos mensuráveis (porque coletivos ou distribuídos no tempo e no espaço), e já não se satisfaz com a descrição subjetiva direta (ou indireta). Esta abertura teórica só é possível mediante uma nova perspectivação dos elementos constitutivos de qualquer sociedade. O desenvolvimento da antropologia econômica é devido ao reatamento da reflexão marxista e do interesse manifestado pelos problemas de desenvolvimento.

Eis por que o trabalho de campo já não tem o atrativo da mudança de país. É na realidade uma prática de gabinete, onde se confrontam os diferentes tipos de informação. O campo deixa cada vez menos lugar à intuição e à simpatia participante como instrumentos científicos. A utilização dos meios audiovisuais, a colecta sistemática, por meio de questionários, de certos dados destinados a tratamento mecanográfico ou eletrônico, o recurso às disciplinas afins para situar cada elemento o mais precisamente possível (já não há descrição agrária possível sem levantamento dos terrenos, dos tempos de trabalhos, sem pesagem das colheitas; sem botânica, pedologia e agronomia; as análises nutricionais limitam a apreciação subjetiva das rações alimentares, etc.), são outras tantas dimensões novas que assinalam o fim de etnologia tradicional. A arbitrariedade subjetiva e individual de uma ciência infusa e «ocidental» cede o Lugar a uma antropologia respeitadora das regras do discurso cientifico e da complexidade das estruturas sociais.

III

TENDÊNCIAS ACTUAIS DA ANTROPOLOGIA

Cada disciplina científica possui uma consciência de si própria historicamente determinada em cada etapa da sua evolução. Esta «consciência de si» não é forçosamente explícita. Paradoxalmente, é mesmo, quase sempre, inconsciente. De fato, o que chamamos «consciência de si» de uma ciência não deve ser confundido nem com as elaborações teóricas que produz, nem com os pressupostos ideológicos que a acompanham. A «consciência de si» é a relação que a teoria mantém com as práticas que a fundamentam. Esta relação pode ser ignorada ou reconhecida. Mas convém não confundir ignorância das relações entre teoria e prática com ausência de relações, porque estas são evidentemente consubstanciais a todo o método científico. O que se modifica é o reconhecimento das relações, a avaliação da sua especificidade e da sua importância: a «consciência de si» torna-se desde então tomada de consciência. Mas, por definição, não pode nunca ser transparência absoluta entre a teoria e a prática.

Trata-se de uma discussão clássica d epistemologia e da história das ciências. As ciências humanas e antropológicas forneceram matéria para numerosas reflexões deste gênero, visto que o seu objeto parece difícil de definir, e por consequência o estatuto científico 1aié ii tias vezes recusado. Desde há vinte anos a questão linguística preocupa as ciências antropológicas. Essa questão levou alguns filósofos a pôr em dúvida, senão muito simplesmente a negar, a possibilidade de constituir ciências humanas ou antropológicas enquanto ciências. Para Michel Foucault, o homem é uma invenção, «uma figura entre dois modos de ser da linguagem» Para

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Louis Althusser, existe uma separação radical entre ciência e ideologia, e por agora as ciências humanas estão na dependência da ideologia. Esta referência esquemática à atualidade não e gratuita. Indica uma situação nova, que é simultaneamente crise e interrogação sobre as formas do saber. Do ponto de vista da epistemologia científica; a necessidade histórica toma muitas vezes a forma de uma configuração teórica precisa é quase sempre uma questão -que se impõe por si naturalmente. Tal aparecimento «natural» dissimula frequentemente o processo que está em ação e impede a comunidade científica, apenas durante um certo tempo, de tomar consciência da nova situação teórica e prática em que se encontra.

Marx dizia que «ao homem só se põe os problemas que pode resolver». Ora, parece na verdade que para as ciências antropológicas chegou o tempo de pensar a prática em relação à teoria, portanto de constituir una «consciência de si» explícita e crítica. Porém, uma vez admitida a necessidade histórica deste fenômeno, é preciso tirar dela todas as consequências.

A sistematização da reflexão sobre a prática antropológica está apenas no início. Tal reflexão é ainda elementar, querendo isto significar que se aplica às fases elementares desta disciplina, e nomeadamente aos problemas que levanta o trabalho de campo. Todavia, convém ter em consideração as diferenças entre as diversas tradições científicas, neste caso entre as reflexões dos antropólogos franceses, anglo-saxônicos.

Como apreciar o valor científico de uma investigação? Enquanto nas ciências exatas ou naturais é normal definir e descrever tos protocolos da experiência, na ciência antropológica as condições da investigação (e portanto as repercussões possíveis destas sobre os resultados) são sistematicamente silencia as. O produto acabado (o trabalho) nunca aparece como a aplicação de um conjunto de métodos distintos, mas complementares. Enumeremos rapidamente as diferentes etapas do progresso científico:

— Crítica ideológica, semântica e científica das fontes documentais;

— Definição e realização das operações do trabalho de campo (questionários, entrevistas, etc.);

— Triagem e elaboração dos dados;

— Avanços teóricos da construção do objeto;

— Elaboração conceptual destinada à explicação; — Condições de apresentação do conjunto dos resultados (escolhas, sínteses, dados numéricos; documentos em bruto, etc.).

Em suma, é preciso apresentar a própria prática de campo, não sob a forma de memórias literárias, mas como prova de uma prática científica. É preciso ligar a descrição do método empírico à evolução da reflexão teórica sobre o objeto de estudo e sobre o próprio método empírico.

Desta maneira, não só ficaremos a entender onde o antropólogo quer chegar, mas também e sobretudo como pôde produzir a sua análise teórica e ao mesmo tempo apreciá-la.

Por sua vez, a análise teórica propriamente dita sofreu, e sofre ainda, um certo número de influências novas no sentido do rigor conceptual e da formalização.Sublinhamos já as

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consequências dos progressos da linguística sobre os trabalhos de Claude Lévi-Strauss. Variados campos inéditos puderam ser desbravados 'graças às metodologias elaboradas por esta disciplina. Em primeiro lugar, foi possível melhorar o registro, a transcrição, a tradução e a análise da -literatura oral (mitologias, contos, genealogias, etc.). A análise linguística intervém simultaneamente ao nível da apresentação mais rigorosa dos documentos e ao nível da sua análise antropológica. Além disso, assiste-se desde há menos de quinze anos ao desenvolvimento da análise componencial que visa revelar os elementos básicos dos sistemas de designação de parentesco, e, portanto as leis inconscientes do seu funcionamento lógico. Esta influência da linguística tende frequentemente para um requinte formal, por vezes esotérico, ruas supõe, a longo prazo, a delimitação do campo ideológico das sociedades ditas aprimitivas.

Outra influência determinante para o futuro da antropologia é a do marxismo. Antes de transformar o campo conceptual, o marxismo modificou implicitamente os temas de investigação: reconheceu-se aos domínios do político e do econômico um estatuto que a ideologia etnológica não podia conceder-lhes. O exame das relações de produção, das forças produtivas, das estratificações sociais não igualitárias, das múltiplas formas de regulação política, entre as quais o Estado, permite ao antropólogo compreender o funcionamento real da totalidade social. Além disso, estes temas exigem por definição a apreensão tanto das práticas como das normas estratégicas dos grupos, produção de excedentes, trocas, etc., atitude que mostra a uma nova luz os discursos do parentesco, da religião e da ideologia.

Paradoxalmente, a este progresso no rigor corresponde uma reconciliação entre antropologia e literatura. Desde a sua origem, a etnologia é também uma literatura, visto que ambas são um discurso, descritivo e valorizante. O romance realista do século XIX, não obstante as suas intenções psicológicas e estéticas, desempenha objetivamente um papel de conhecimento. Simplesmente, este conhecimento acha-se integrado numa certa ideologia, enquanto a etnologia se pretende científica logo de entrada. Durante século e meio trava-se um curioso diálogo de surdos entre a literatura e as ciências humanas. De fato, o desenvolvimento da psicologia, da psicanálise, da sociologia e da etnologia vai limitar cada vez mais os objetivos literários no que toca a realismo e naturalismo. Há, evidentemente, uma evolução interna peculiar da literatura, mas não deixa de ter interesse notar os laços entre essa evolução e o contributo das descobertas psicanalíticas e 'linguísticas.

Por outro lado, o etnólogo toma a palavra para falar dos que se calam (ou que foram obrigados a calar-se), dos que não falam (porque o seu discurso não estaria de acordo com a imagem que deles temos e que eles devem ter de si próprios). A descolonização pôs em moda as literaturas das países do Terceiro Mundo. A descolonização e as lutas de libertação nacional permitiram também que o objeto de estudo tomasse a palavra em lugar do etnólogo ou do romancista. Estes tornam-se simples porta-vozes. O fenômeno manifesta-se por meio de autobiografias faladas, histórias de vidas que o etnólogo se limita a apresentar como documentos em bruto ou ilustrações. Assim se acha reconhecida a origem individual e subjetiva da informação oral. É um americano, Oscar Lewis, quem vai dar forma a este princípio, transcrevendo e publicando as biografias faladas de todos os membros de um grupo familiar. A análise teórica cede o lugar a um pedaço de vida (do «romanesco»), mas pedaço de vida refratado por várias subjetividades, o que permite um mínimo de objetividade. Inversamente, o escritor vai-se

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transformar em, investigador para descrever uma certa realidade utilizando os documentos e as técnicas clássicas do trabalho de campo.

Mas estas tentativas (multiplicadas pelo emprego da fita magnética) podem tornar-se fonte de novas ilusões, substituindo a análise teórica necessária pela espontaneidade do discurso social e pela presença íntima do vivido.

IV

RESPONSABILIDADES SOCIAIS E POLÍTICAS DA ANTROPOLOGGIA

A história da etnologia é também a história das relações entre as sociedades europeias e as sociedades não europeias. Logo desde o princípio, a etnologia participa de um certo contexto político. O etnólogo tornou, portanto, posições políticas pela própria natureza da sua função objetiva. A ideologia colonial e a etnologia fazem parte de uma mesma configuração, e existe entre as duas ordens de fenômenos um jogo que condiciona o seu desenvolvimento respectivo. Esta dialética entre o contexto da prática e a função objetiva da disciplina manifesta-se ainda hoje no caso da antropologia. Quer dizer que pesa sobre as condições mesmas do seu desenvolvimento científico.

A antropologia, para vir a ser essa “consciência de si” explicita e crítica de que falamos atrás, deve pôr a descoberto as relações institucionais que a tomam possível. Esta estrutura e a da exploração e da dominação dos países subdesenvolvidos (o Terceiro Mundo) pelos países desenvolvidos ocidentais. Perante uma tal situação, duas reações são possíveis: uma sentimental, outra política. No primeiro caso, o etnólogo ”descobre” a espoliação, a alienação e o massacre das populações ditas “primitivas”, e chama etnocídio (por analogia com genocídio) ao que é de fato uma prática banal, com, pelo menos, quinhentos anos de existência (cf. Cortez, Pizarro. O tráfico de escravos, etc.). Os antropólogos são, pois, culpados, visto que permitem a manutenção de tais práticas. Esta paz branca, para usar a designação de R. Jaulin, cria problemas de consciência ao antropólogo, que «se serve» das populações que estuda, e que não pode impedir a alienação cultural, religiosa, econômica ou física de que a sua presença é álibi (ou causa). Mas a ingenuidade dá, as mãos à utopia quando o antropólogo valoriza .a .pureza primitiva em relação à inautenticidade das civilizações; brancas. A antropologia não se limita a participar nesta opressão, ela própria seria opressão.

A outra reação rejeita este moralismo abstrato e esta filosofia da natureza humana. É evidente que todas as nossas práticas individuais como antropólogos se inscrevem numa estrutura ideológica, política, econômica (e muitas vezes militar) imposta pelo Ocidente, donde a possibilidade de uma «paz branca». Mas tal procedimento equivale a esquecer que esta estrutura tem a sua lógica própria, de exploradores e de explorados, e que os exploradores do Terceiro Mundo têm de se libertar da exploração, e não de se refugiar num passado mítico (tanto mais mítico quanto o antropólogo é o cínico por agora a conceder-lhe a sua” VOZ”, quer dizer, uma expressão ,coerente e explícita) . Todas as ciências são acompanhadas de efeitos ideológicos mais ou menos contraditórios, mais - ou menos idênticos 'à estrutura ideológica dominante. Nesse sentido é que a antropologia ocidental participa também no “desenvolvimento do subdesenvolvimento” (para retomar a expressão de A. G. Frank), visto não permitir, em consequência cada estrutura, um desenvolvimento autônomo da

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antropologia do Terceiro Mundo. Esta consequência inintencional das práticas antropológicas torna ineficaz a melhor das vontades. A este nível, o problema é político, é o da luta revolucionária contra o imperialismo.

Não se trata de fazer de todo o antropólogo um Che Guevara e da antropologia uma pratica revolucionaria. Trata-se, antes, de reconhecer uma mudança ria natureza das sociedades estudadas: um novo «campo» se esboça, que é o da tomada de consciência de uma exploração ou de uma opressão (imperialista, cultural, racial). Os cargos cullt representam talvez uma degenerescência. Os bairros de lata e os «dormitórios» são indiscutivelmente fruto da civilização ocidental e não possuem tantos atrativos como a «natureza sublime» e romântica tão querida a R. Jaulin. Mas, se é preciso salvar os «primitivos», é preciso saber também que mundo os espera. Se o antropólogo volta as costas às mutações sociais que surgem por toda a parte, arrisca-se a condenar a sua disciplina a um empobrecimento teórico, precursor da total esterilidade. Entre o Vietname, o Biafra, o massacre dos índios da Amazônia e do Mato Grosso, as diferenças são consideráveis, mas a pureza da motivação não depende do primitivismo ou do isolamento da população em vias de extermínio. O antropólogo não deve chorar de saudades da calma dos mundos ainda fechados nem virar costas ao som e à fúria que pouco a pouco invadem todas as sociedades.

Para uma antropologia geral

Qualquer ciência tem necessidade de definir prioridades na investigação. Em antropologia confundimos ainda a ordem das urgências, quer dizer, hesitamos entre as sociedades «primitivas» em vias de desaparecimento e o projeto teórico da comparação do conjunto das sociedades humanas, históricas e contemporâneas. Uma tal confusão, porém, é igualmente resultado da cisão estabelecida entre a antropologia e as outras ciências humanas. Esta cisão aparece-nos cada vez mais arbitrária. O estudo das sociedades humanas constitui uma disciplina específica mas única e as modalidades particulares do objeto (grandeza, história, recursos,. etc.) introduzem apenas modalidades particulares ,nos métodos utilizados. A unidade das ciências manas não deve, pois, constituir um vão projeto nem um mito ideológico; é uma necessidade científica. Todas as ciências humanas (entre elas a antropologia) se acham a mesma exigência: experiência histórica atual das sociedades põe um certo número de problemas de ordem teórica e prática que só uma nova prática da investigação pode abordar e resolver .

A elaboração de uma antropologia geral é um projeto que demanda muito tempo. É também um projeto cujas vastas dimensões mal- foram ainda delimitadas. Por isso é que não encontraremos aqui mais do que um balanço das conclusões, uma recapitulação necessária dos problemas antes da longa marcha que nos deve conduzir à ciência única das formações sociais e históricas de que todos necessitamos.

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